(des)caminhos entre

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LEANDRO BARRETO DUTRA NOS (DES)CAMINHOS ENTRE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E ARTES CIRCENSES E LINGUAGENS E CONHECIMENTOS E FORMAÇÕES DE PROFESSORES E... E... EM AUTOPRODUÇÕES ALEGRES JUIZ DE FORA 2015

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    LEANDRO BARRETO DUTRA

    NOS (DES)CAMINHOS ENTRE CINCIAS BIOLGICAS E ARTES

    CIRCENSES E LINGUAGENS E CONHECIMENTOS E FORMAES DE

    PROFESSORES E... E... EM AUTOPRODUES ALEGRES

    JUIZ DE FORA 2015

  • LEANDRO BARRETO DUTRA

    NOS (DES)CAMINHOS ENTRE CINCIAS BIOLGICAS E ARTES

    CIRCENSES E LINGUAGENS E CONHECIMENTOS E FORMAES DE

    PROFESSORES E... E... EM AUTOPRODUES ALEGRES

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao, rea de concentrao: Linguagem, Conhecimento e Formao de Professores, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre. Orientadora: Prof. Dr. Margareth Aparecida Sacramento Rotondo.

    JUIZ DE FORA 2015

  • Dutra, Leandro Barreto.

    Nos (des)caminhos entre Cincias Biolgicas e artes circenses e linguagens e conhecimentos e formaes de professores e... e... Em autoprodues alegres / Leandro Barreto Dutra. 2015.

    126 f.

    Dissertao (Mestrado em Educao)Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2015.

    1. Linguagens. 2. Educao. I. Ttulo.

  • LEANDRO BARRETO DUTRA

    NOS (DES)CAMINHOS ENTRE CINCIAS BIOLGICAS E ARTES

    CIRCENSES E LINGUAGENS E CONHECIMENTOS E FORMAES DE

    PROFESSORES E... E... EM AUTOPRODUES ALEGRES

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obteno do Ttulo de Mestre em Educao. rea de Linguagem, Conhecimento e Formao de professores.

    Aprovado em

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________________________

    Profa. Dra. Margareth Aparecida Sacramento Rotondo - Orientadora (Universidade Federal de Juiz de Fora)

    _______________________________________________________________

    Profa. Dra. Ktia Maria Kasper (Universidade Federal do Paran)

    _______________________________________________________________

    Profa. Dra. Snia Maria Clareto (Universidade Federal de Juiz de Fora)

    ____________________________________________________________________

    Profa. Dra. Maria Helena Falco Vasconcellos (Universidade Federal de Juiz de Fora)

    JUIZ DE FORA 2015

  • minha famlia. A vocs o meu eterno

    agradecimento.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, por que sem Ele eu nem estaria aqui. Foi Ele quem me

    escolheu e quem me sustentou em vida. Que trazia sempre bons encontros

    para que a vida pulsasse em mim e que nos momentos difceis me

    fortaleceu em alegria para que pudesse, revigorado, partilhar o viver com

    sabedoria de poder, com Ele, selecionar os encontros. Gratido.

    A minha famlia, por me apoiar o tempo todo. Ajudando-me a afirmar

    a vida enquanto potncia e singularidade. Firmando meus ps na rocha,

    onde no sou confundido. Me, pai, irmo, irm, cunhado, e Mateus (o ser

    mais risonho e carinhoso que alegra nossa famlia) gratido pelo cuidado.

    Aos meus amigos pela compreenso, conhecimento compartilhado e

    incentivo. Em especial ao Henrique Sagave, amigo-irmo-palhao que

    ganhei na estrada e que me ajudou tambm nas leituras e produes

    acadmicas.

    Margareth, orientadora, que soube caminhar comigo durante o

    processo. Soninha, lder do Travessia Grupo de Pesquisa, que sempre

    com um sorriso no rosto, me recebia carinhosamente, mesmo em situao

    inspidas. Nina que me acolheu e me incentivou no mestrado, dando-me

    abraos apertados, palavras carinhosas e respiraes profundas. Aos

    professores da FACED que me ajudaram e estiveram comigo durante a

    trajetria, em especial Cris Flr, com seu jeito terno e querido, me abriu

    horizontes alegres e possveis na Cincia. Ao Guilherme Trpia que,

    durante o mestrado, me deu apoio com suas palavras, caminhou comigo

    em produo e me fez lembrar o quanto bom ser professor. A Cludia

    Avellar, que tambm esteve presente, me dando oportunidades para

    despertar noes de curiosidade e ludicidade na Cincia. A Ktia Kasper,

    pela leitura delicada, aberta e sensvel da qualificao do mestrado e

    pelas belas orientaes de caminhos possveis neste percurso at a

    dissertao. Minha sincera gratido!

    As professoras e amigas do Mutiro da Meninada do Vale Verde:

    Maria Helena, Cludia Toledo, Maria Ins, Ana Lcia e Gabriela Machado

    que me ensinaram tanto... Deram-me oportunidade de vivenciar o Vale

  • Verde e as mltiplas educaes de forma marcante, alegre e viva! Admiro o

    trabalho no Vale.

    A todo o Mutiro da Meninada do Vale Verde, essas crianas que

    inventam alegremente modos de viver. Que me surpreende tanto com seus

    modos habilidosos de estar comigo. Essa meninada me deu goles de

    sade. Fica minha gratido em especial aos participantes das atividades

    circenses. Vocs me ensinaram muito.

    Agradeo o apoio financeiro com a bolsa de estudos a CAPES e ao

    apoio do PPGE/FACE/UFJF.

    Enfim, a todos que de alguma forma estiveram comigo nessa

    trajetria que est para alm da academia... uma histria e tanto.

    Gratido.

  • RESUMO

    Aprender como um exerccio potente com a vida. Aprender a aprender no

    processo de viver. Usar a alegria como trilha de aprendizagens. No havendo

    ttulos e nem chefes. Amar como proposta: amor fati. Todo conhecimento se d

    no corpo. Fica-se apavorado, certamente. potico demais! utpico! Mas

    segundo Eduardo Galeano, a utopia nos faz caminhar! Caminhemos! Nessas

    trilhas em invenes de formao de professores, a discusso da Cincia permeia

    a escrita. A tentativa de inventar cincias e modos de se viver na resistncia pela

    alegria o que move esta dissertao e para alm dela, move a vida potente de

    quem ousa sonhar perigosamente com outros mundos possveis. Augusto Boal

    nos dirige em sonhar quando diz que ns atores temos essa responsabilidade de

    inventar outro mundo, porque no fundo sabemos que outro mundo possvel.

    Acreditemos! Nessas trilhas de mestrar: fiz-me aluno e professor. Artistar aluno.

    Artistar professor. Num exerccio contnuo. O palhao foi chamado para professar

    a alegria da criana que vibra no presente. O palhao que improvisa, que joga,

    que brinca, para nos ensinar a aprender com, a inventar com. O palhao como

    professor dos professores. Ri dos medos e de suas ignorncias. Ele que sempre

    est em relao, em jogo, vem alegre posicionarmo-nos em outra esfera de

    acontecimentos. Nesses imprevistos da vida, s o improviso d conta

    provisoriamente do inesperado. Tudo que se quer improvisar bem. Isso

    exerccio. s vezes se acerta... mas, o treinar questo fundante.O convite para

    a leitura desta dissertao pensar outras biologias possveis, outras relaes

    entre professor-aluno, outros modos de resistir s intempries e inventar-se outra

    coisa! Exercitar num nevoeiro povoado em conversaes, numa pea teatral junto

    s metamorfoses nietzschianas e numa autobiografia presenada foram os modos

    arranjados para dar conta do problema, tambm, inventado: O que se pode fazer

    para se autoproduzir alegremente? A contao de histrias que se faz neste

    mestrado tenta responder essa questo eterna. S tenta, outras respostas so

    possveis. Se quer inventar mtodos improvisados e singulares que servem para o

    presente e s.

    Palavras-chave: Formaes de professores, Cincias Biolgicas,

    Invenes.

  • 9

    ABSTRACT

    Learn with life as a powerful exercise. Learning and learning in the living

    process. Use happiness as a path of apprenticeships. With no titles neither

    bosses. Love with a purpose: fati love. All the knowledge occurs in body. It

    gets certainly terrified. It is too much poetic. It is utopian! But according to

    Eduardo Galeano, the utopia makes us walking! So, lets walk! In those tracks

    of teachers formation, the discussion of science permeates writing. The trying

    of inventing sciences and ways of living in the resistance of joy is what drives

    this thesis and far from that, it drives the powerful life of who dares

    dangerously to dream with other possible worlds. Augusto Boal guides us to

    dream when he says that we, the actors have the responsibility of inventing

    another world, because we know that another world is possible indeed. Lets

    believe! On these tracks of teaching: I was a student and a teacher. An artist

    student.An artist teacher.In continuous exercise. The clown was called to

    profess the happiness of child which vibrates in the present. A clown who

    improvises and plays, to teach us with, to invent with.A clown as a professor of

    teachers. That laughs from his fearsand ignorance.He, who is always in

    relation to, in the game, joyfully comes to position ourselves in another sphere

    of events. In this unforeseen life, only improvisation gives provisionally

    account of unexpected. All that is wanted is to improvise well. It is exercise.

    We sometimes do it rightbut, the training is fundamental. The invitation to

    the reading of this essay is to think about another possible biology, other

    student-teacher relations, and other ways to resist bad moments and invent

    other things! To exercise in a crowded talk, in a play with the nietzchianians

    metamorphosis and in an autobiography, those were the ways to handle with

    the problems, also invented: What we may do to happily produce ourselves?

    The stories telling we do in this master try to answer this eternal question. It

    only tries to, another answers are also possible. So invent makeshifts and

    singular methods which serve for the present and just it.

    Key words: teachers formation, biological science, inventions.

  • 10

    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Quando eu subo no tesido eu sinto muito ben mas o tesido e muito legau tesido muito bom demais......................................................................76

    Figura 1 - O tecido e bonito mais e um poquino difcio...................................76

    Figura 2 - Acho o Tecido uma coisa legal a pesar que as vezes da um pouco de medo. Assi: Lorena....................................................................................76

    Figura 3 - ANDR Eu gosto do tecido doi os meus braos e minhas pernas.77

    Figura 4 - ALLAN: O tecido dificil mas eu consegui.....................................77

    Figura 5 - Tecido: uma coisa boa ensina a gente vira mortal. Alexandre Gomes Fonseca.............................................................................................78

    Figura 6 - EL AMO TECIDO...........................................................................78

    Figura 7 - Amaio parte e diFicio mais de pois que pega o geito e rapido e muito legal a iz que eu sei realeza. Anderson.............................................79

    Figura 8 - Eu achei muito bom fcil. Leonardo............................................79

    Figura 9 - Jean. Eu achei muito interessante porque muito bom. E maneiro...........................................................................................................79

    Figura 10 - Legal e no di! maneiro! LUIZ ANDR....................................80

    Figura 11 - CAMILE. eu gostei do tesido mas quando eu estou no tesido eu sinto muito bom de mais. tesido e muito legou...............................................80

    Figura 12 - A gente acha que no sabe, que no vai conseguir, mas quando a gente sobre a gente faz um monte de coisas. A gente inventa outra coisa quando a gente no sabe. Sinto que estou no palco! Sempre quando a gente sobre no tecido tem mais imaginao! Gostei muito de apresentar e queria mais uma vez..................................................................................................81

  • 11

    SUMRIO

    1 CONVERSAS INVENTIVAS....................................................................12 2 PEA TEATRAL......................................................................................58 3 UM CONTO BIO.......................................................................................99 4 REFERNCIAS......................................................................................123

  • 12

    1 - CONVERSAS INVENTIVAS

    Entre ensinos e aprendizagens: saltos, quedas, pulos e afins... relaes

    nos cuidados de si em (auto)formaes alegres e/ou linguagens e

    conhecimentos em formaes de professores

    Era bom viver em suposies e cercados de fartos acontecimentos por adivinhar. Cada dia um encanto tomava lugar do outro. O mundo assim obscuro exigia um olhar mais delicado, um pensamento mais cauteloso i.

    Durante minhas idas e vindas da escola, do bairro Vale Verde, da mata,

    do teatro, da Faculdade de Educao, do Travessia Grupo de Pesquisa e de

    todos os demais lugares que frequento h caminhos, deslocamentos, ruas,

    vielas e afins... H caminhos j traados, sinalizados e construdos para a

    passagem. E na passagem, nesses deslocamentos, levo comigo no corpo as

    marcas do vivido em cada espao nas/das relaes estabelecidas. o

    passado se atualizando torcendo as relaes passado-presente. Esse entre

    lugares me caro! lugar de esvaziar-me. Vazio povoado de inquietaes.

    Silncio movido entre carros, semforos e buzinas. Deslocamento do corpo

    sem descolar. Espao intenso de visitaes. Visito-me constantemente e por

    vezes contrariamente ao desejo. Mas fao-me livremente sem mesmo pedir

    autorizao razo. Erra-se sempre: desvios, trilhas, tombos ... Nunca se o

    que se era.

    Em construes e cuidados de mim busco outras vias para algum

    destino! No gosto da rotina ordinria. Invento. Dou voltas s para passear...

    Gosto que tenho aprendido com meu pai que anda por lguas sem rumo e se

    perguntado para onde est indo, responde: Estou passeando. Ento vou

    passeando pelos caminhos construdos, porm outros, sempre outros no

    outros por si s, mas pelas relaes que, sendo eu outro, estabeleo ento,

    outros e outros novos sentidos com os caminhos durante o passeio. Nunca se

    o que se era. Leva-se sempre um escorrego sem querer.

    Exercitando-me nesse movente, sou repentinamente acometido por

    pensamentos que me vo vindo, constituindo-me e, que me fazem, de

    repentemente, estabelecer novas relaes com o que vejo, cheiro, percebo,

  • 13

    sinto... um assalto, um susto mesmo! Movem-me inteiramente e, de repente

    tomando um picol ou atravessando a rua ou comendo pipoca, sou outro!

    Metamorfoseei-me! Nunca se o que se era. Erra-se sempre.

    Pensando nesses tirocnios de se metamorfosear tento trazer ao

    entendimento o que acontece! Busco uma linearidade... Crio possibilidades.

    Vou me arriscando a pensar at chegar outra coisa que ainda no sei o que

    ...

    Este texto vem para conversar com os saltos entre os textos que

    encontraro nessa leitura! A ideia inicial era que eu pudesse, de algum modo,

    linkar os textos! Sendo impossvel uma linearidade convincente propus esse

    pensar sobre esses entre-textos, entre-lugares, entre-espaos, entre-estados.

    Essa metamorfose sbita que nos acontece, nos forma, nos move: Vida!

    Pensando que nos metamorfoseamos de modo repentino, fica ento um

    nevoeiro denso sobre os caminhos que o corpo traa nessa inveno de si!

    Nunca se define, se entende o que se passou ao saltar. Os saltos que se do

    ficam inebriados no acontecido, no corpo, no outro, no instante alongado que

    carregamos e atualizamos em vida. Falar sobre o mistrio escondido num

    nevoeiro foge s minhas competncias e visto que impossvel dissociar-me

    de mim o que por vezes seria uma graa, porm levo-me comigo para onde

    vou. Certo que por vezes esqueo-me, invento-me... Mas assombrosamente

    sinto-me prprio Penso ento, que mais me alegra deixar o mistrio no

    nevoeiro e convidar-te, caro leitor, para sentir o nevoeiro comigo! Adentremo-

    nos na experincia e, l envolvidos na nvoa, falaremos com o mistrio e com

    sorte seremos seres metamorfoseados em enigmas! No seria curioso

    inventar-se misteriosamente e, at mesmo manter-se secretamente em si?

    Inteligentemente e j contrrio ao que propus no caminho do nevoeiro e

    ao mesmo tempo tambm dentro do nevoeiro e buscando desesperadamente

    um argumento, busco em Deleuze o paradoxo do salto! Estive com ele, mas

    sem nimo de visit-lo nas pginas dos livros. S no pensamento. Deixei-me

    nesse exerccio at ver onde ia dar. Pensando e pensando, estabelecendo

    relaes sinpticas! Sinapse: saltos de um neurnio ao outro, e outros e outros:

    conexes! Pensando e pensando, estabelecendo relaes, dano! Dana:

    entre pulos, saltos e mais saltos de chapp a Glissadi e outros tantos saltos e

    outros: conexes! Pensando e pensando estabelecendo relaes, caio!

  • 14

    Tombos, quedas nas dificuldades dos saltos. Inmeros exerccios e treinos que

    so necessrios para que venha um salto bem executado e, pensando e

    pensando, estabelecendo relaes com os saltos vinham as quedas e outras

    tantas quedas e outras: conexes!

    E assim permaneci enchendo-me de desejo pela escrita no nevoeiro!

    Escrita ainda no pronta, ainda no feita... Mas, desejante! A espera

    necessidade minha! Aguardo-me at o ponto de abrir o ralo e deixar escoar

    tudo aquilo que, misturando-se comigo e entre eles, esses prprios

    conhecimentos vo se fazendo outras coisas, at aqui, neste momento

    enquanto escrevo.

    Pensar exige tempo, preparao rigorosa e um territrio apropriado. Um

    salto possvel atravs do encontro e da espera e do treino e da preparao e

    do espao e do corpo entregue nesse encontro saboroso de relacionar-se

    consigo e com outros e outros de si e de outros de outros mesmos.

    Fui inundando-me do desejo. Buscando o salto encontrei outras coisas

    pelo caminho que me foram confortando e alegrando o caminhar. A escrita veio

    vindo e de repente um amigo me chama para conversar no meio da travessia!

    A alternativa foi convid-lo para a caminhada desejante:

    - E a mano o que t fazendo?

    - Estou tentando escrever um texto sobre salto

    - Salto que voc fala aquilo de s vezes 'pular' etapas no processo n?

    - Voc simplesmente avana

    - He He he

    - Isso!!!

    - pros gnios

    - Auhsuahsuas

    - No, para todo mundo!!

    - Eu acho que eu tive um pouco disso no palhao

    - Quando eu morava aqui, antes de ir para SP, eu sempre ia nas aulas

    de palhao. Me esforava. Mas eu no acessava o estado.

    - Dae fui para SP e fizemos os trabalhos juntos. Mas ainda assim acho

    que as coisas para mim eram estranhas.

    - Para mim no funcionava!

    - Quando voltei, sei l, funcionou.

  • 15

    - isso a!

    - Catarei seu relato!

    - kkkkkkkkkkk

    - Claro que nesse tempo eu vi voc, teve todas as aulas que fiz, existiu

    um processo, n, mas no retorno foi um salto, no sei explicar porque passou a

    funcionar!

    - Sim! isso... micro!

    - E nas coisas de palhao a gente aprende muito vendo os outros, n, e

    foi um tempo que eu vi voc, que no era minha referncia inicial de

    palhaaria, voc era uma coisa diferente da Michelle1... kkkkkk

    Acontece algo que escapa do entendimento, do racional, do inteligvel,

    percebe?! Foge nossa lgica. Um acontecimento (in)esperado e inexplicvel.

    Porm no inexplicvel que encontro meu modo de existir no mundo com

    minhas incongruncias, absurdos, crenas e vontades, que por vezes, so

    contrrias... Minhas ineficincias me enobrecem.

    Volto, desarticuladamente, ao nevoeiro, porque assim que me vou

    fazendo... Como disse, tenho herdado esse gosto do meu pai. Vou passeando

    pelo caminho, desviando a rota, criando atalhos. No explico-me, caminho!

    Agora, espero que voc entre comigo! No busque a linearidade at

    porque estamos imersos num nevoeiro e aqui a viso meio embaada! Mas

    exercitemo-nos numa outra sensibilidade corporal. Escuta-se bem! Corpo

    atento e inevitavelmente mais aberto ao suspense e perigo eminente que um

    nevoeiro provoca! Passo a passo no silencioso e nebuloso nevoeiro. Nesse

    momento um vento forte nos separa! Cada um agora se encontra sozinho

    nessa branquitude escura! Uma quase cegueira! E o corpo ativamente se torna

    ainda mais sensvel ao acontecido e novamente suspenso no suspense

    instalado pela nvoa! Quase imveis escutamos nossa respirao! Corao

    batendo forte e escutamos sussurros, vozes, risadas, barulhos misteriosos!

    Medo? Alerta! O que toma conta do nosso corpo agora? No estamos sozinhos

    e no vemos ningum!

    Metamorfoseamo-nos!

    1 Michelle Silveira da Silva, a palhaa Barrica, artista reconhecida nacionalmente na rea da palhaaria.

    Sempre convidada para participar de um dos maiores eventos de palhaaria do pas: Anjos do Picadeiro.

    Professora de Teatro pela prefeitura de Chapec SC.

  • 16

    Devagar vamos ouvindo as vozes que vo se aproximando:

    - No ar no existe caminho traado, todo espao direo. Na terra

    sofre-se de muitos impedimentos ii.

    - Eles no procedem por caminhos pr-traados, por associaes j

    feitas. O que acontece? Se soubssemos, acho que entenderamos tudo. Isso

    me interessa iii.

    - Sete e oito. Echapp, Falli, Sissone, Pli e Pas de Chat. Gliassade e

    Entrechat. Espera, espera... cinco, seis, sete e oito. Volta! Echapp, Falli,

    Sissone...

    Essas falas se repetem e se misturam! Vo se conectando e sem

    sentido algum, em arritmia, vo bailando as vozes! O pulsar do meu peito vai

    fazendo coro como um bumbo vai.

    Escuto sua voz me dirigindo:

    - Conversa com eles!!

    Eu com medo e alegre pulso. Voc escuta o bumbo e silencia-se! Um

    grito:

    - Aaaaarrrrrrh!

    Silncio toma conta do nevoeiro!

    Passos...

    O corpo agora est presente! Totalmente entregue ao acontecimento!

    - Quem est a?

    Bumbo!

    - Como faz para sair daqui?

    - O nevoeiro est por toda parte!

    - No tem sada?

    - s vezes, quando bate um vento, d para v algumas coisas e, s!

    Vozes mais prximas! Bumbo!

    - Para onde est indo?

    - Estou passeando e perdi meu leitor.

    - Estou aqui!

    - Quem?

    - Deleuze!

    - Quem? (Bumbo!!!)

    - Alice!

  • 17

    - Calma gente! Pelo visto estamos em mais de dois!

    - Quantos esto aqui?

    Muitas vozes... Bumbos, tamborins e alaridos...

    - Teria alguma soluo para sairmos ou pelo menos nos organizarmos?

    Algum caminho?

    - Bem, por exemplo, as solues tm de ser muito variadas, quer dizer,

    duas extremidades nervosas no crebro podem entrar em contato. isso que

    chamamos de processo eltrico nas sinapses. H outros casos bem mais

    complexos, talvez, que so descontnuos, nos quais h uma falha a saltar.

    Acho que o crebro cheio de fendas, que h saltos que obedecem a um

    regime probabilista, que h relaes de probabilidade entre dois

    encadeamentos, que algo muito mais incerto, muito incerto. As comunicaes

    dentro de um mesmo crebro so fundamentalmente incertas, submetidas a

    leis de probabilidade. O que faz com que eu pense algo? Voc dir: Ele no

    est dizendo nada de novo, a associao de ideias. Seria quase necessrio

    se perguntar se, quando um conceito dado... Ou um quadro, uma obra de

    arte contemplada, olhada... Teramos de tentar fazer o mapa cerebral

    correspondente. Quais seriam as comunicaes contnuas, as comunicaes

    descontnuas de um ponto a outro iv.

    - Quem disse isso?

    - ... Sete e oito e Pli, Pas de Chat, Glissadi...

    - Quem disse isso? Algum pode me responder?

    - Que doideira! No estou entendendo nada! Eu s queria escrever um

    texto sobre saltos e convidei um amigo-leitor para entrar nesse nevoeiro

    comigo e experimentarmos um pouco uma escrita outra no acontecimento! E

    agora essa confuso! Um monte de gente doida...

    - Ei... Parece-me que essa voz falava algo interessante! No s doideira!

    Quem disse, repete!!

    - Acho que o crebro cheio de fendas, que h saltos que obedecem a

    um regime probabilista, que h relaes de probabilidade entre dois

    encadeamentos, que algo muito mais incerto, muito incerto. As comunicaes

    dentro de um mesmo crebro so fundamentalmente incertas, submetidas a

    leis de probabilidade v.

    - Isso est me parecendo um texto deleuzeano...

  • 18

    - Ah eu sou bilogo! No sou filsofo! Ser que daria para conversarmos

    algo mais interessante no qual eu pudesse opinar?! J que no tem sada, o

    jeito aproveitar o tempo! Preciso de um texto para a qualificao do mestrado

    falando sobre os saltos entre um aprendizado e outro... Entre textos na

    verdade! Sabem o que qualificao, n?!

    - Sou doutor meu querido!

    - Ah, que legal! Doutor em que?

    - Doutor em ignoras vi!

    - Algum normal aqui?

    - Algum que quer escrever um texto sobre salto numa qualificao de

    mestrado o que voc chamaria de normal?

    - Algum no filosfico seria possvel? No sei nada de filosofia! No

    tenho formao! No tenho papel que me autorize!

    - Tem uma coisa que me reconforta muito. Acho que h vrias leituras

    de uma mesma coisa e acredito piamente que no preciso ser filsofo para

    ler filosofia. A filosofia suscetvel, ou melhor, precisa de duas leituras ao

    mesmo tempo. absolutamente necessrio que haja uma leitura no-filosfica

    da filosofia, seno no haveria beleza na filosofia. Ou seja, no-especialistas

    leem filosofia e a leitura no-filosfica da filosofia no carece de nada, possui

    sua suficincia. simplesmente uma leitura. Isso talvez no valha para todos

    os filsofos. Vejo com dificuldade uma leitura no-filosfica de Kant, por

    exemplo. Mas um campons pode ler Spinoza. No me parece impossvel que

    um comerciante leia Spinoza vii.

    - L vem voc com suas filosofias...

    - Eu no te conheo! Voc importante? Por que eu s escuto e fao

    citaes de gente importante!

    - To importante quanto voc, n?!

    - Ah, Spinoza fcil! Quero ver ler Nietzsche!

    - Nietzsche?

    - Nietzsche mais ainda!

    - Ser?

    - o que acho tambm!

    - Mas, quem acha isso?

    - Deleuze!

  • 19

    - Deleuze? Voc est brincando... Deleuze acha isso?! Ento, posso ler

    e entender filosofia?

    - No! Voc pode ler e entender filosofia. Entendeu a diferena?

    Bumbos, brumas, brisas...

    - Mas sendo bilogo no estava pensando em usar da filosofia! Eu nem

    queria isso quando entrei nesse nevoeiro! Estava pensando em falar dos saltos

    fazendo uso da imagem dos neurnios e o processo de transmisso dos

    impulsos nervosos! Por que sabemos que na transmisso de um impulso

    nerv...

    - Um impulso nervoso percorre o neurnio e chega finalmente a uma

    terminao sinptica, produzindo a secreo do neurotransmissor que cruza o

    espao entre as membranas desencadeando uma permuta eltrica na clula

    receptora. Somente especializaes como essas possibilitam aos neurnios,

    bem como a outras clulas, uma influncia mtua e localizada, e no difusa -

    ou generalizada, como ocorreria se as interaes se dessem por permutas de

    concentrao entre algumas molculas na corrente sangunea. Sobre cada

    neurnio, em sua rvore dendrtica, h muitos milhares de terminaes

    sinpticas de centenas de neurnios distintos. Cada uma das terminaes faz

    uma contribuio pequena permuta total de atividade eltrica do neurnio a

    que se conecta. Alm disso, cada neurnio capaz de influenciar

    quimicamente a estrutura de todos os neurnios que a ele se conectam por

    meio da difuso de metablitos que saem e penetram as superfcies sinpticas

    e se elevam pelos axnios at os respectivos corpos celulares. Desse duplo

    trfego eltrico metablico depende, a cada momento, o estado de atividade e

    o estado estrutural de cada neurnio do sistema nervoso viii.

    - Isso! Era exatamente com isso que eu pensav...

    - Alm disso, se pensarmos que no crebro humano existem

    certamente mais de 1010, e talvez mais de 1011 neurnios (dezenas de bilhes),

    e que cada um deles recebe contatos mltiplos de outros neurnios que, por

    sua vez, se conectam com muitas clulas, a combinatria de possveis

    interaes mais que astronmica ix.

    - Nossa! Tendo esse conhecimento do corpo lembro-me que Nietzsche

    diz que h mais razo no teu corpo do que na tua melhor sabedoria x! Por que

    pensando que entre um neurnio e outro ocorre um salto desse impulso

  • 20

    nervoso, o corpo sabe aquilo que ns no sabemos! Talvez ainda outra coisa:

    O corpo vive, funciona no desconhecido! No mistrio! Que passa a no ser

    mais mistrio quando conhecemos, porm ao conhecer alguma coisa outros

    mistrios vo se fazendo... No ?! Tenho pensado sobre isso ultimamente!

    Diferentemente de como era antes conhecer um mistrio no retira a beleza

    ou o silncio ou at mesmo o segredo! Por que o segredo mesmo que

    conhecido por algum passa a ser confidencias trocadas entre os mistrios: o

    mistrio que sou e o mistrio que conheci... No se est passvel ao completo

    conhecimento: H mais coisas entre os cus e a terra que nossa v filosofia...

    - No era voc que disse que no sabia nada de filosofia? O que est

    dizendo?

    Bumbos! Medos! Corao dispara...

    - S estava pensand...

    - Cabe a esse plano de imanncia ou de consistncia compreender

    brumas, pestes, vazios, saltos, imobilizaes, suspenses, precipitaes. Pois o

    fracasso faz parte do prprio plano: preciso, com efeito, sempre retomar,

    retomar pelo meio, para dar aos elementos novas relaes de velocidade e de

    lentido que os fazem mudar de agenciamento, saltar de um agenciamento

    para o outro. Da a multiplicidade dos planos sobre o plano, e os vazios, que

    fazem parte do plano, como um silncio faz parte do plano sonoro, sem que se

    possa dizer falta algo xi.

    - Agradecido.

    - Mas ainda pensando nesse impulso nervoso... Ele no acontece no

    vazio! No nada!

    - Pli, Jet entrelace e sete e oito...

    - Quem est danando nessa conversa? Poderia ser avisada que

    estamos no meio de um nevoeiro e ningum consegue ver sua performance?

    Ela est danando para quem, gente?

    - Estamos em uma conversa sria enquanto esse nevoeiro no passa e,

    a mocinha est danando! Ns, aqui, falando sobre filosofia e tentando

    entender o salto deleuzeano e ela vem fazer gracin...

    - Estou me constituindo na conversa! Fao-me corpo das falas!

    Obviamente no se salta no nada! Salta-se num espao! Um salto na lua

    diferente de um salto na Terra! Um salto na terra diferente de um salto no

  • 21

    linleo. Em cada territrio um corpo e para cada salto uma fora... J sabemos

    disso! Ns bailarinos, artistas, sabemos disso faz tempo! Mesmo que no

    entendemos bem no intelecto, o corpo sabe! O corpo faz! O corpo ensina!

    - Justo! O impulso nervoso salta numa regio entre neurnios. Para que

    o salto ocorra os neurnios precisam produzir substncias que ocupam,

    preparam o lugar do salto neurotransmissores. Essas possibilitam o salto, a

    transmisso de um lugar para o outro... Permite corrente eltrica.

    necessria a produo de um territrio para possibilitar um salto! No de

    qualquer maneira que ele acontece! Os envolvidos no processo precisam estar

    na produo conjunta desse lugar sinptico! Indo para uma questo macro:

    Como algum aprende? O que acontece entre um texto e outro? Quantos

    saltos se do entre textos?

    - Se queremos entender as aes humanas no temos que observar o

    movimento ou o ato como uma operao particular, mas a emoo que o

    possibilita. Um choque entre duas pessoas ser vivido como agresso ou

    acidente, dependendo da emoo na qual se encontram os participantes. No

    o encontro que define o que ocorre, mas a emoo que o constitui como um

    ato. Da que os discursos racionais, por mais impecveis e perfeitos que sejam,

    so completamente ineficazes para convencer o outro, se o que fala e o que

    escuta o fazem a partir de diferentes emoes xii.

    - Talvez ento a emoo seja uma espcie de neurotransmissor que

    possibilita o salto! O modo como se conectam, por exemplo, professor-aluno

    pode criar um territrio mais propcio ou no para esse salto na aprendizagem!

    Mas, pensar que o que importa seja s a emoo entre o professor e o aluno

    seria muita inocncia nossa, ser que no?! Por que o que possibilita o

    aprendizad...

    - Claro! Vejamos alguns traos da distino saber e aprender, de

    acordo com Deleuze. Aprender o salto que leva do no-saber ao saber.

    Nesse caminho, muitas coisas acontecem, muitas marcas riscam nossos

    corpos ou ficam gravadas como memria de um tipo especial. Aprender

    sempre algo da ordem do virtual, do inconsciente, de que o corpo participa,

    necessariamente. Por isso aprender carrega consigo uma violncia, um

    adestramento diverso daquele que caracteriza o saber, o qual, como resultado

    de um aprender, o domnio das regras de uma disciplina xiii.

  • 22

    - Ento posso afirmar que dominar um contedo de uma disciplina

    aprendizado?

    - Talvez! O que precisamos pensar, ento, seria o que dominar um

    contedo... No ?!

    - No quero fugir do assunto... Continuemos nesse salto.

    - No est fugindo do assunto! Est passeando no caminho, na

    conversa... V saboreando o caminho! Mude as rotas, entre em vielas... No

    ande s por caminhos pr-definidos.

    - Por exemplo, aprender a nadar consiste em ajustar atos reais de um

    corpo ao movimento das ondas. Para tanto, o aluno tem de formar uma ideia

    de mar. Aprende-se quando a ideia de mar entrou no ou se ajustou ao corpo do

    aprendiz. Ou, ainda, quando o mar se tornou uma micropercepo, para

    utilizar um termo deleuzeano, que se conjuga sensibilidade de seu corpo.

    Com isso, temos uma soluo para o campo problemtico que se cria entre um

    corpo e o mar, atravs de uma ideia. O professor aquele que nada com o

    aprendiz, mesmo que seja no nvel elementar da ideia atravs da qual o aluno

    problematiza seu encontro com o mar xiv.

    - Talvez eu precise que vocs nadem comigo no nvel elementar! No

    me importo aqui de ter uma dissertao elementar! Bsica! Boba... Importa-me

    um processo rico em saltos, bailes, aprendizagens mltiplas, conexes e

    presena!

    - Muitos conceitos ps-estruturalistas...

    - No sei o que ps-estruturalista! Junto e uso as palavras por amor,

    pelo som, pelo gosto e no pela sintaxe, ordem, conceitos...

    - Voc est procurando problemas com a filosofia!

    - Uai, prefiro pensar que estou fazendo uso da filosofia como um

    campons talvez! Eu no sou s um universitrio, a dita nata intelectual. No.

    No me ato s regras gramaticais e nem somente a razo e o conhecimento

    me afirmam! Sou palhao, bailarino, rio das minhas ignorncias e, por vezes,

    riso de felicidade! Poder ir do no-saber ao saber um salto e poder ir do

    saber ao no-saber uma queda que abre caminhos para outros saltos, que

    conecta com outros territrios, que tambm se aprende...

  • 23

    - J tomei muitos tombos! A preparao importante! Nos aprendizados

    para os saltos e sua execuo bem feita muitos tombos so inevitveis. Treina-

    se at para cair! Saber cair tambm um aprendizado!

    - Justo, quando se estuda palhao um dos primeiros passos talvez seja

    aprender a cair! O palhao aprende a ganhar a queda como um salto em seu

    nmero. na queda que o palhao ganha o riso, a alegria! E no pense voc,

    meu caro, que estou falando de uma facilidade, pelo contrrio, tem-se de

    aprender a cair e para tal o modo tradicional circense diz: repetir, repetir,

    repetir, at ficar diferente. Repetir um dom do estilo xv. O muito repetir faz

    com que o corpo v adquirindo, aperfeioando, uma tcnica corprea que

    treina a si prprio. Isso no o faz s por necessidade, mas junto ao prazer!

    um esforo que, para alm da tcnica, o palhao treina o modo, o tempo

    cmico, a descontinuidade corporal que leva ao riso! Isso um trabalho

    rigoroso!

    - Ah, mas isso que voc est falando do palhao talvez se assemelhe ao

    que Deleuze chama de salto. Porque Deleuze no est dizendo de um salto

    fsico, mas de um conceito filosfico!

    - Bem, pode ser... Mas para mim pouco me importa os conceitos... No

    me acorrento a eles, vivo!

    - Mas isso tambm faz parte do conceito... Vem de um vivido! Do

    experienciado... O fato que o estado corporal no o mesmo... Altera-se!

    - Sim. Um salto pode ser compreendido como uma passagem. Um salto

    como uma agitao, um movimento, um aumento de altura, uma queda de

    altura, uma presso sobre os ps, uma alavanca, uma liberao de presso...

    Ele tem como garantia a queda inevitvel em outro espao de onde se muda a

    perspectiva do olhar.

    - Entrechat, entrechat, entrechat...

    - Veja a dana danando com o conceito!

    - Do que voc est falando?

    - Por favor, bailarina, repita o salto! E explique-nos como que se faz

    isso.

    - Sete, oito... Entrechat! um pulo vertical na quinta posio, com a

    troca dos ps no ar, duas (entrechat quatre), trs vezes (entrechat six), quatro

  • 24

    vezes (entrechat huit), e, excepcionalmente cinco vezes (entrechat dix). E os

    ps tocam o mesmo lugar no cho.

    - O ballet nos faz danar na sua fala minha querida... No h garantias

    de mudana de espao! possvel saltar e continuar no mesmo lugar, no

    mesmo territrio! A mudana est no estado! Aps o salto o corpo que volta j

    no o mesmo! Por mais que volte no mesmo lugar, seu estado corporal,

    fora, respirao, energia... j no a mesma! A repetio para a

    aprendizagem ensina o corpo a adquirir uma tcnica, um modo tal de se fazer,

    executar o movimento de tal jeito que acontea o aprendizado! A apreenso

    em invenes de um determinado contedo, modo, jeito...

    - Mas como acontece esse aprendizado? a repetio? O treino?

    - Conectar um corpo e um objeto atravs de uma ideia, essa a

    principal razo pela qual podemos dizer, com Deleuze, que o aprender envolve

    um tipo especial de amizade. Vis--vs, ensinar significa criar condies ou,

    antes, deixar correr certas intensidade para que um corpo e uma ideia, uma

    sensao e um conceito possam encontrar-se sob circunstncias que nunca se

    repetem. Aluno e professor esto em um mesmo movimento, eles

    desconhecem para onde vo, como se remassem um barquinho deriva no

    grande mar entre o no-saber e o saber. No reconhecer o destino o que

    torna a aventura do aprender o lugar da confiana xvi.

    - Volto ento questo da qualificao... Agora j vamos criando um

    espao para o salto! No se salta no vazio! Do nada! H de ter uma preparao

    para que isso acontea e o treino, a repetio pode fazer parte desse lugar!

    Como havamos dito anteriormente, vamos preparando esse lugar, essa

    sinapse possvel na amizade e confiana e repeties e amor e...

    - Ah, que lindo! Que romntico! Voc est, um tanto quanto, clich e

    bobinho e inocente e...

    - Voc no est entendendo o que estou a dizer... um

    engendramento... um outro modo de habitar o mundo! No estou falando de

    um mesmo lugar! Saltei e voc no deu conta! Nem voc e nem o leitor...

    Aposto!

    - Ah, saltou?! Ento assim, no meio da conversa voc vai e salta?!

  • 25

    - Claro! J tinha dito no incio do texto, antes mesmo de entrarmos nessa

    conversa imersa nesse nevoeiro, que a coisa assim! De repente,

    metamorfoseamos...

    - Uma pausa para o descanso! O corpo tambm precisa! Algum sabe

    onde encontro gua por aqui? Dancei demais... Sabe como , n?!

    - Bem, minha querida, por aqui eu no sei... Penso ser necessrio

    esperar um pouco para que passe esse nevoeiro... Da veremos um caminho,

    um lugar possvel...

    - Mas, afinal que tanto vocs conversam? Vocs so filsofos?

    - Sim.

    - No.

    - Um pouco.

    - Bilogo!

    - Palhao.

    - Quantos esto por aqui?

    - No sabemos tambm! Mas, muitos certamente... mas, no s

    fisicamente, n?! Por que alguns de ns fazemos uso de outras pessoas e

    falas para afirmar sua posio... Como no temos muito que fazer nesse

    lugar... Estamos acalorados com esse bate papo!

    - Acalorado mesmo! Tambm estou suando... mas no pela conversa,

    mas pelo ensaio!

    - Tinha um romntico falando de emoes... Estvamos bem na

    discusso at entrarmos nesses quesitos sentimentais! Estudo cincia! A

    conversa falava inicialmente sobre neurnios... sinapse... conexes nervosas...

    assuntos cientficos! De repente, a coisa veio para uma filosofia... E at voc,

    que da dana, est entrando no assunto... est vendo?! No d para ficar

    misturando as coisas! Temos de escolher um assunto! Est uma misturada

    sem fim! No faz sentido!

    - Para mim est fazendo um sentido! Estou conseguindo estabelecer

    conexes com as coisas!

    - Para mim fica difcil quando comea a entrar em sentimentos!

    - Mas, no pensa que por isso mesmo, por achar que emoo no tem

    nada a ver com cincia, que deveramos conversar sobre isso?! No acha que

    so suas dvidas que potencializam uma discusso?

  • 26

    - Mas eu no tenho dvidas! Estou certo de que no se podem misturar

    as coisas! Cincia Cincia. Literatura literatura. Dana dana. Educao

    educao e pronto! Vocs esto tentando criar problemas onde no existe.

    Est tudo muito bem resolvido.

    - Todos os conceitos e afirmaes sobre os quais no temos refletido, e

    que aceitamos como se significassem algo simplesmente porque parece que

    todo o mundo os entende, so antolhos. Dizer que a razo caracteriza o

    humano um antolho, porque nos deixa cegos frente emoo, que fica

    desvalorizada como algo animal ou como algo que nega o racional. Quer dizer,

    ao nos declararmos seres racionais, vivemos uma cultura que desvaloriza as

    emoes, e no vemos o entrelaamento cotidiano entre razo e emoo, que

    constitui nosso viver humano, e no nos damos conta de que todo sistema

    racional tem um fundamento emocional xvii.

    - Ok! Tudo bem. Mas no temos como provar isso? Quais instrumentos

    iro usar na cincia para comprovar essas emoes? Como se prova?

    - As emoes no so algo que obscurece o entendimento, no so

    restries da razo: as emoes so dinmicas corporais que especificam os

    domnios de ao em que nos movemos. Uma mudana emocional implica

    uma mudana de domnio de ao. Nada nos ocorre, nada fazemos que no

    esteja definido como uma ao de um certo tipo por uma emoo que a torna

    possvel. O resultado disto que o viver humano se d num contnuo

    entrelaamento de emoes e linguagem como um fluir de coordenaes

    consensuais de aes e emoes. Eu chamo este entrelaamento de emoo

    e linguagem de conversar xviii.

    - o que est acontecendo aqui! Estamos envolvidos na conversa e,

    emocionalmente inclusive! Estamos todos atentos s falas que vo surgindo e

    com alguma ligao feita entre as falas e ns e tantas outras coisas que

    carregamos em ns... Vamos criando falas para nos fazer presente! A conversa

    um modo... mas, no qualquer conversa, no mesmo?!

    - bvio! Depende com quem converso... Dependendo com quem for

    terei uma postura diferente da que estou tendo aqui! No sei quem so vocs!

    No os conheo...

    - Isso! o que Foucault diz sobre as relaes de poder! Isso tambm

    est em jogo num territrio para o salto! As relaes que estabeleo no

  • 27

    territrio podem favorecer ou no o acontecimento de um salto! De um

    aprendizado... E no cabe tudo cincia! H relaes que no podem ser

    medidas pela cincia!

    - Mas, a como fao?

    - No podem ser medidas, mas existem! Acontece! Negar sua existncia

    uma possibilidade... Mas se no, tenho de inventar um modo de perceb-la e

    agir com ela...

    - Um modo cientfico? Ento basta inventar um mtodo que possa ser

    repetido...

    - Mas como? Quando falamos de relaes microperceptveis, parece

    que estamos mudando o contexto. Talvez a Cincia produzida at aqui no d

    conta de habitar esse espao inventado e novo... Talvez, n?!

    - Eis a questo! Talvez tenhamos de abrir brechas nessa Cincia para

    adentrarmos num outro modo de habitar esse mundo... Sabemos que acontece

    e a Cincia inventada at aqui no apreende estas circunstncias. Como faz

    com esse corpo no apreendido no meio acadmico?

    - Por isso estvamos falando de coisas que compem o territrio, mas

    que no necessariamente estar passvel de apreenso, medio,

    quantificaes. Na relao pedaggica est inclusa os prprios conceitos de

    um pensamento. Expor conceitos j ensin-los, principalmente porque eles

    envolvem os ouvintes ou alunos em um tipo especial de amizade, uma amizade

    deleuzeana, pela qual se processa um devir-mestre molecular que passa ao

    largo das formas majoritrias ou molares do professor e do aluno,

    desterritorializando-os, desrostificando-os xix.

    - A voc est entrando no conceito de corpo sem rgos, no ?!

    - Isso! Claro! Como estamos aqui... Sem rgos!

    - Eu no estou sem rgos! Estou com eles bem aqui!

    - Vamos aos exemplos da biologia: Acontece que em uma das

    extremidades de sua teia a aranha registra a mais leve vibrao que se

    propaga at seu corpo em ondas de grande intensidade e que a faz, de um

    alto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, a aranha responde

    unicamente aos signos e atingida pelo menor signo que atravessa seu corpo

    como uma onda e a faz pular sobre a presa xx.

  • 28

    - Ok! Isso no significa que ela est sem rgos! E quem tirou seus

    olhos? Sua boca? Suas clulas receptoras de vibrao? Como os peixes

    possuem a linha lateral que apresentam clulas capazes de perceber vibraes

    na gua e assim se localizar no ambiente percebendo predadores ou presas,

    assim a aranha tambm em seu corpo apresenta clulas sensveis vibrao!

    Se removessem esses rgos da aranha como encontraria a presa? corpo

    com rgos!!

    - Mas voc no est entendendo o conceito... E tambm no acho que

    isso seja um problema, at porque o conceito desenvolvido por Deleuze e

    Guattari, retirado de Artaud, funciona muito mais como prtica, ou conjunto de

    prticas, em vez de uma noo bem definida. Faz parte de um estilo de vida

    nmade... Por vezes no compreendemos o conceito, o vivemos.

    - Entendo, ou melhor, no entendo, n?! Porque pra mim importante

    que o corpo tenha rgos sensveis para o que acontece! Se retirado os rgos

    como fica o corpo?

    - Ah, agora voc entrou em outro quesito importante: a sensibilidade!

    importante que na relao de aprendizado ambos estejam sensveis... sensvel

    aos signos... Poderia usar de Deleuze quando explica sobre a sensibilidade

    que o carpinteiro tem aos signos da madeira, mas... Seria preciso dizer: vamos

    mais longe, no encontramos ainda nosso corpo sem rgos, no desfizemos

    ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a

    interpretao pela experimentao. Encontre seu corpo sem rgos, saiba

    faz-lo, uma questo de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de

    tristeza e de alegria. a que tudo se decide xxi.

    - Hum, ento quer dizer que...

    - Volto a insistir com o palhao! O palhao tem esse corpo poroso capaz

    de afetar-se tambm pelas foras de sua poca e do momento preciso em que

    atua. A iniciao clownesca torna-se uma experincia de devir-outro,

    aprendendo a afetar e ser afetado, envolvendo uma atitude de escuta do

    mundo com o corpo todo, um estado de alerta e ao mesmo tempo de grande

    entrega e disponibilidade. Nesse sentido, ele extrapola o termo pessoal, pois

    trata-se das ressonncias dos encontros. Trata-se de algo que ocorre entre o

    clown e o outro seja uma laranja, uma pessoa, um vento, uma borboleta que

    passa xxii Ele deixa de interpretar para experimentar! Tem essa sensibilidade

  • 29

    no viver! Ele se liga com o pblico e, nessa ligao sensvel, ele vai

    percebendo o que funciona e o que no funciona! Vai jogando, brincando at

    perceber, sentir para que lado deve ir caminhando e conquistando a plateia na

    caminhada. isso! uma maquinaria, se voltssemos a pensar no corpo sem

    rgos... uma amizade, um compartilhar a vida... Uma cumplicidade, penso

    que seria a melhor palavra!

    - Justamente, a amizade que se d entre professor e aluno constri-se

    na exterioridade dos indivduos. A amizade, portanto, modifica o professor e o

    aluno. A amizade se d pelo exterior. uma amizade impessoal cuja atmosfera

    nos envolve a todos. A exterioridade o lugar da amizade. Tal exterioridade foi

    pensada por Deleuze e Guattari como uma zona de indiscernibilidade ou de

    vizinhana onde um elemento pe o outro em devir, de modo que ambos se

    tornam algo distinto do ponto de partida devir-mestre e aluno-bumerangue

    xxiii.

    - Mas embora a amizade entre professor e aluno seja um elo

    pedaggico, tambm verdade que o aprender implica uma solido prpria a

    uma esttica da existncia, no sentido foucaulteano do termo, pela qual

    aprendemos a nos dobrar sobre ns mesmos, em busca de um governo de si

    que lance novos modos de existir. Ser feliz com essa solido a lio bsica

    de uma pedagogia que vibra com o pensamento de Deleuze e Guattari xxiv.

    - Justo! Ento, nesse territrio construdo para o aprendizado, temos de

    exercitar vrias variveis: amizade, cumplicidade, repeties...

    E no meio da conversa... assim sem pedir explicaes veio um vento...

    uma chuva forte! Molhou, lavou tudo! Lavou a alma, acalmou os coraes...

    Deu-se risos! Lavou-nos! Deixou tudo a vista! Porm, nem tudo lmpido... no

    retirou as inquietaes de descobrir modos de se criar, inventar um territrio

    possvel para saltos e afins... No ficou ntido o caminho que a cincia ter de

    percorrer para possibilitar essas experimentaes de metamorfoses! Alis, com

    essa conversa inventada, j somos outros... Pela fora do vento tempor veio

    novos ares, novas cores e com eles novos corpos, novas sensibilidades!

    - E onde est aquele povo todo? A bailarina, o bilogo, o filsofo, o

    palhao...

    - No sei meu caro, por vezes pensei que fossem voc!

    - Eu?

  • 30

    - Sim, numa grande brincadeira para me assustar... Sendo muitos!

    - Ser? Bom, o fato que ainda preciso resolver minha escrita para a

    qualificao! No sei o que faz uma pessoa ser mestre! Como isso medido,

    cara? Como se avalia isso? Ser a quantidade de livros que li? Ser o modo

    como escrevo? Quem poder dizer se tenho competncia para mestre ou para

    palhao ou para pai ou para...

    - Calma! Acho que esses dilogos que supostamente voc fez consigo

    mesmo, ou seja l quem fez isso tudo, servir de discusso para voc nesse tal

    de mestrado! No acha? E afinal, qual sua questo para esse negcio? Por

    que voc tem que ter uma questo bem definida e estabelecer suas hipteses

    e test-las e verific-las! Assim, respondendo a sua crucial questo...

    Validando ou no suas hipteses! No assim?!

    - A que est... Pode ser assim para uma certa Cincia, mas para essa

    cincia que discutimos a pouco... Nem tudo to bvio e claro e certo, pois a

    questo que tenho pra vida toda e que, por ocupar-se em linhas limtrofes

    dos conhecimentos, no respondida nunca! Pergunto-me sempre das

    relaes que estabeleo! Pensando na Ecologia, que vem do grego oikos,

    significando casa, que assim se refere nossa circunvizinhana imediata, ou

    ambiente; ecologia o estudo de todas as inter-relaes complexas

    denominadas por Darwin como as condies da luta pela existncia xxv. Fico

    perguntando-me que ecologia se faz nas inter-relaes que estabeleo com o

    outro... Quando experimento, em presena, as relaes que vo se

    constituindo, indago-me que formao se d para a existncia, resistncia,

    invenes?

    - Isso no est amplo demais? No complexo demais?

    - Existe uma ecologia das ideias danosas, assim como existe uma

    ecologia das ervas daninhas xxvi.

    - E qual voc quer estudar? Separa isso!

    - Mas, meu corpo no separa nada!

    - Como assim?

    - Meu caro, a vida no assim? Um amontoado de coisas e gentes e

    relaes...

    - Ser?

    - Ser? Bem, o que me parece ser...

  • 31

    - Mas, como voc vai fazer, ento? Por que para dar conta de tanta

    coisa... meio difcil, no ?! E sempre quando falo a palavra difcil, lembro

    daquela frase que voc sempre diz: Toda criao difcil xxvii.

    - Est a. Criao! Acho que voc me deu uma palavra boa.

    - No entendi. Apenas falei a frase que voc sempre diz.

    - Pois , mas o que para voc foi apenas concordar falando a mesma

    frase que eu sempre digo, para mim, abriu mundos de imaginaes. J estou

    pensando em mil modos de apresentar essa questo to complexa e, como

    tinha dito, sem resposta!

    - U, mas como?

    - Teatro, meu caro. Teatro!

    - Voc vai fazer um teatro?

    - Sim. Farei!

    - Mas voc ator? Tem DRT? Cursou Artes Cnicas? diplomado? Eu

    no sabia.

    - No. Eu no tenho nada disso. Mas tambm no vou encenar. Vou

    escrever uma pea.

    - Piorou. Eu no sabia que voc era Dramaturgo...

    - E no sou. Pelo menos no tenho papel que me autorize... Mas acho

    que a vida me possibilita de ser quase tudo ou quase nada, independente dos

    papis de autorizao...

    - Isso no vai prestar, meu amigo. Voc ter grandes problemas. Uma

    banca que se preze no vai aceitar esse tipo de coisa. Voc j conversou com

    sua orientadora? Ela aceitou isso?

    - Ainda no. Tenho que ir l.

    - Voc quer que eu v com voc?

    - E tem como eu ir sozinho?

    - Provvel que no.

    - Ento, s me resta viver sempre acompanhado desse monte de gentes

    e vozes e coisas... No d para escapar.

    - Ento, vamos l?!

    Saram do bosque. Apenas ele. Mas, ao mesmo tempo, muitos deles,

    nele. Foram at a orientadora.

  • 32

    - Tive uma ideia para a qualificao. Vou escrever uma pea de teatro. O

    que acha?

    - Acho timo.

    - Que?

    - Acho a ideia tima. Mas, vai dar tempo de escrever tudo para a

    qualificao? Deixemos para a defesa. O que acha?

    - Acho timo.

    - Que?

    - Acho a ideia tima. Vou escrever uma pea de teatro como

    dissertao.

    - Isso. Mas, vamos conversando no meio do caminho. Depois da

    qualificao a gente conversa. Pode ser?

    - Acho timo.

    - Que?

    - Acho a ideia tima. Assim que passar a qualificao venho aqui para

    gente conversar.

    Saram.

    Qualificaram.

    Que beleza! Que banca! Que alegria!

    Quantas falas delicadas e atentas e presentes...

    Moveram corpos na qualificao...

    Uma voz feminina e firme e delicada e potente compartilha na banca a

    seguinte fala sobre o texto da qualificao:

    - A escrita que gostoso guarda (ou produz) o frescor que voc

    afirma em seu resumo que mantm, no caso o frescor do iniciante que vibra

    com as conquistas dirias de um corpo expansivo, poroso e em constante

    amplido, e potente ao encontro do (im)previsvel e em presena suspensa e

    inteira.

    Seu texto alegre, sem choramingos e lamentaes [...] Potente. Ele

    cria, inventa, no se pauta por limitaes, mais pela ampliao da potncia de

    agir. Delicadeza, ateno a detalhes na percepo do outro.

    Muito forte nele: PROCESSO, trajetos, queda, salto, risco, riso, medo

    (enfrentado)...

  • 33

    Elementos como gua, terra, calor, vento, chuva... Processos e

    metamorfoses. [...] Abordando as potncias do corpo. Corpos potentes e no

    corpo que se quer obediente e dcil. Os corpos so agenciados de tal modo

    que ativa sua potncia. Para experimentar, colocar-se em risco, saltar, cair,

    subir, gritar, rir, enfrentar...

    [Saltos, quedas, riscos no palhao- aprendizagem bsica para os

    nmeros, ainda que o nmero no trabalhe com nmeros clssicos de queda

    (ainda que no utilize diretamente). A aprendizagem da improvisao passa

    por uma aprendizagem de preparao da disponibilidade, da abertura desse

    corpo. Uma tcnica dificlima, modos de fazer para construir esse corpo do

    palhao. Essa improvisao envolve uma poltica de abertura para o

    acontecimento, para a relao com a alteridade que implica em ressoar com o

    outro. Isso diz muito de uma possibilidade educativa praticada no seu

    trabalho.2.

    Passou o dia da qualificao!

    No passaram os encontros com a qualificao!

    Estava ele ainda a conversar com suas prprias incongruncias, essas

    que o compem. Essas que foram anunciadas com delicadeza pela banca,

    mas, tambm, outras foram conversando na produo com essas coisas todas.

    A qualificao agora j era caminho vencido?

    O que vinha de potente era a dissertao final ou o que se estava a

    produzir aqui dentro e, fora desse emaranhado de gentes e encontros que se

    firmaram na qualificao e antes dela e depois dela e que, por fim, resultaria.

    Porque assim que , numa tal dissertao final?

    O processo instaura a necessidade de uma dissertao final.

    - No d para brincar com o final e o processo? Parece-me que seu

    trabalho est em processo e sempre... isto me leva a Deleuze: Tudo

    mquina de mquinaxxviii.

    - Acho que temos que pensar o que a banca vai pensar.

    - Mas isso possvel?

    2 Parte do texto/fala produzida pela professora Dr Ktia Kasper durante a banca de qualificao deste

    trabalho no dia 31 de maro de 2014.

  • 34

    - Vamos inventar possveis questes e vamos aqui tentando respond-

    las. Porque certamente faro perguntas. Alguns podem assumir o papel de

    advogado do diabo... Voc sabe que tem gente assim, no ?!

    - Sim. Sim. Pode acontecer...

    - Mas, quais seriam as possveis perguntas? Voc faz ideia? Por que

    ainda no est pronto o texto da pea, ento como faremos as perguntas sem

    ler o que ainda ser produzido?

    - Inventando, uai. No sempre assim que voc fala?! Alis, na sua

    qualificao surgiram perguntas que no foram diretamente respondidas, no

    foi?!

    - Sim, foi.

    - Que tal respond-las agora?

    - No. Penso em no responder quelas perguntas agora. Deixarei para

    que, com processo de leitura, de aproximao com a escrita cada pessoa que

    a fez, encontre suas respostas ou pelo menos as possveis. Que invente algo

    com elas, problematizando-as. Essa uma possibilidade de abertura com o

    outro. Se usaro dessa possibilidade, j foge ao controle de qualquer um que

    lana o convite do possvel.

    - Ok! Mas, ento quais critrios vamos pegar para inventarmos outras

    questes possveis?

    - Bem, tem alguns temas que eu gostaria de pensar, de gastar tempo...

    - Quais? Podemos partir deles...

    - Arredondamento acadmico, S a alegria produz conhecimento,

    Relaes do modo como escrevo com a

    pesquisa/corpo/educao/fruio/alegria/conhecimento, O estado do corpo

    para os estranhamentos no viver, Os (des)caminhos de um pesquisar

    passeando no (des)conhecido e dando conta do que no entendo,

    Possibilidades outras de (re)existir num mundo outro, tambm possvel de se

    inventar por becos de existncias, preparao do palhao/corpo/narrativas,

    Entre absores e clasmocitoses3 na academia/ vida/ encontros: pelo cuidado

    de si.

    3 Clasmocitose ou defecao celular o processo de eliminao de resduos provenientes da digesto

    intracelular realizado pelas clulas. Termina quando o vacolo residual se funde membrana

    plasmtica da clula e expulsa o seu contedo para o meio externo.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Membrana_plasm%C3%A1ticahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Membrana_plasm%C3%A1tica

  • 35

    - Nossa... Mas isso muita coisa. Acho que precisaremos chamar outras

    pessoas para conversarem conosco sobre...

    - No precisa chamar. Lembra da outra vez que simplesmente elas

    apareceram? Elas so assim. Aparecem sem que chamemos. Quando lhes

    cabe vez, quando querem, quando fazem link com a coisa... Da surgem

    rompendo lugares, criando devires...

    - Tudo bem. Ento, comecemos por partes. Vamos focar no primeiro

    tema: Arredondamento acadmico. O que voc teria para dizer? Por que voc

    tem grandes dificuldades em arredondar as coisas. Voc fica sempre tentando

    sair pela tangente e nunca se enquadra no que se deve.

    - Mas, arredondamento nem sempre est ligado ao enquadramento. At

    pode, depende do contexto. De quem vem a fala.

    De repente, sem pedir licena, o tempo fechou. Uma ventania comeou

    brava. As nuvens cinza foram cobrindo o cu. Uma tempestade se formou. Mas

    era uma tempestade diferente. Ela era da cor marrom avermelhada. Era densa.

    Era uma tempestade de areia. Nunca havia tido dessas coisas nessa cidade.

    Aquilo era novo. No havia jeito. Fechar os olhos era inevitvel. A terra

    vermelha que compunha a tempestade era grossa e com a fora do vento

    machucava a pele. Eles tinham que se proteger. Deitaram-se no cho de

    barriga para baixo e cobriram o rosto com as mos. Foram se fechando

    corporalmente para que a superfcie de contato entre o corpo e a terra fosse a

    menor possvel. Estavam arredondados. Surge uma voz a espreita de ouvidos

    atentos.

    - Corram para aquela toca. Protejam-se ali no meio daquelas folhagens.

    Foram seguindo o som daquela voz desconhecida. No abriram os

    olhos, mas seguiam o som. No corriam, rastejavam. Era uma desfigurao no

    caminhar. No era um bicho. No era gente. Era um modo na tempestade de

    se evitar machucados, de manter a vida... Era inveno de formas... Era

    arredondar-se substancialmente e necessariamente... Aqui, o ptico deu lugar

    mais intenso ao hptico?

    Chegaram naquela toca improvisada, onde podiam, provisoriamente,

    habitar por um tempo at que a tempestade passasse. A voz seguiu sua fala:

  • 36

    - Husserl fala de uma protogeometria que se dirigiria a essncias

    morfolgicas vagas, isto , vagabundas ou nmades. Essas essncias se

    distinguiriam das coisas sensveis, mas igualmente das essncias ideais,

    regias, imperiais. A cincia que dela trataria, a protogeometria, seria ela mesma

    vaga, no sentido de vagabunda: nem inexata como as coisas sensveis, nem

    exata como as essncias ideais, porm inexata e contudo rigorosa ("inexata

    por essncia e no por acaso").

    O crculo uma essncia fixa ideal, orgnica, mas o redondo uma

    essncia vaga e fluente que se distingue ao mesmo tempo do crculo e das

    coisas arredondadas (um vaso, uma roda, o sol...). Uma figura teoremtica

    uma essncia fixa, mas suas transformaes, deformaes, ablaes ou

    aumentos, todas suas variaes, formam figuras problemticas vagas e,

    contudo rigorosas, em forma de "lentilha", de "umbela" ou de "saleiro". Dir-se-ia

    que as essncias vagas extraem das coisas uma determinao que mais que

    a coisidade, a da corporeidade, e que talvez at implique um esprito de

    corpo. Mas por que Husserl v a uma protogeometria, uma espcie de

    intermedirio, e no uma cincia pura? Por que ele faz as essncias puras

    dependerem de uma passagem ao limite, quando toda passagem ao limite

    pertence como tal ao vago?

    Estamos diante de duas concepes da cincia, formalmente diferentes;

    e, ontologicamente, diante de um s e mesmo campo de interao onde uma

    cincia rgia no para de apropriar-se dos contedos de uma cincia nmade

    ou vaga, e onde uma cincia nmade no para de fazer fugir os contedos da

    cincia rgia xxix.

    - Em outras palavras o arredondamento acadmico est ligado

    produo de uma cincia nmade. Daquela que est sempre em fuga da

    categorizao, do enquadramento da cincia rgia. No que o faa para brigar

    com a normatizao, mas porque assim que ...

    - Mas, quem disse que assim que ?

    - A voz. Voc no ouviu?

    - Ouvi. Mas posso discordar. Posso pensar que de outro modo.

    - Claro. exatamente isso que estamos afirmando. Quando voc prope

    outro modo, est evidenciando a fuga de uma normatizao, lei,

    enquadramento. Entende? Claro que algum pode enquadrar voc em algo...

  • 37

    Essa a funo da cincia rgia e no faltam seguidores por a. Mas isso

    tambm foge do controle de quem est em produo da cincia nmade.

    Deleuze mesmo ficou enquadrado como ps-estruturalista. O que discordou

    em vida, mas fugiu do controle. Entende?

    - Hum, acho que est comeando a fazer sentido. Ento quer dizer que

    ao pedir que voc arredonde seu trabalho, no necessariamente est pedindo

    que voc siga a norma, mas que voc invente um caminho que tenha em si

    uma norma; podendo ser outra, mas ainda assim tem uma linha. Como no

    palhao, ele opera numa linha prpria e inventada.

    - Acho que sim. Porque no vale qualquer coisa... Tem um rigor a ser

    seguido. Tem um trabalho a ser executado. inexata e, contudo rigorosa.

    - O Estado no pra de produzir e reproduzir crculos ideais, mas

    preciso uma maquina de guerra para fazer um redondo xxx.

    - No fcil. um trabalho rduo. uma guerrilha, melhor talvez uma

    guerra de trincheiras. A coisa funciona em escavaes, meio rizomtica... Para

    ganhar espao e sobreviver s bombas, uma trincheira passa ser uma ttica

    proveitosa. uma briga mesmo! Porm tambm podemos inventar modos de

    se brigar...

    - Ento, quer dizer que estamos em guerra?

    - Sim. Estamos na guerra da sobrevivncia e se queremos um lugar

    nessa vida, h de se cavar trincheiras, becos para existir. Poderia citar para

    voc muitos palhaos que esto em guerrilhas, inclusive em guerrilhas

    literalmente falando como o caso da ONG palhaos sem fronteiras que vo

    a reas de guerra para levar o riso. Existem palhaos famosos por suas

    atuaes nada convencionais e que, sim, esto em guerra: Lo Bassi,

    Chacovachi e poderia citar tambm o mestre Charles Chaplin que brigava,

    ironicamente e escancaradamente, com a sociedade que estava inserido. So

    modos diferentes de atuar, mas esto a ganhando vida ao cavar suas

    trincheiras. Produziam rizomas...

    Ventania, ainda com fora.

    Os olhos permaneciam meio fechados.

    O corpo estava um pouco mais protegido, ali debaixo das folhagens.

    Veio uma voz mais branda:

  • 38

    - O rizoma um tipo caulinar de plantas vasculares, mais ou menos

    cilndricos e faz parte da morfologia do eixo vegetativo, sendo considerado um

    tipo de caule subterrneo que tem o crescimento horizontal paralelo a

    superfcie do solo e coberto de folhas escamosas e possuem razes.

    Este caule possui folhas modificadas que so denominadas de catfilos.

    Os catfilos so as folhas que protegem as gemas (broto da planta) dormentes

    (que ainda no germinaram), e so as gemas que fazem com que possamos

    distinguir rizoma de raiz; a disposio de folhas, gemas e razes de forma

    irregular. O rizoma pode ser carnudo ou delgado. O rizoma carnudo na maioria

    das vezes une os pseudobulbos. Ainda pode se desenvolver sob o solo ou no

    substrato, onde emergem os pseudobulbos das orqudeas.

    Os rizomas possuem numerosas ramificaes e emitem algumas partes

    areas, como ocorre em algumas plantas como as bananeiras - nelas, o caule

    considerado um rizoma e contm uma parte area onde ficam as folhas, uma

    nica vez em sua existncia um ramo proveniente do caule nasce para fora do

    solo, dentro de vrias folhas, e forma na sua parte superior uma inflorescncia

    que mais tarde vai se torna um cacho com bananas.

    O rizoma tem a funo de rgo reprodutor de forma assexuada das

    plantas, geralmente so as plantas ornamentais e armazenam substncias

    nutritivas (nitrognio) para as plantas. Em alguns rizomas pode ocorrer

    acmulo de substncias nutritivas que resulta no tubrculo que por sua vez

    considerado um rizoma hipertrofiado, como por exemplo, as batatas inglesa

    xxxi.

    - Essas vozes comearam a participar da nossa conversa novamente.

    Eu no havia dito a voc que quando eles quisessem passagem, eles viriam...

    - Sim. Ento, podemos entender que quando estamos falando de

    rizomas podemos conceber muitas outras ideias com isso, como por exemplo,

    que a forma rizomtica possibilita o crescimento sem ser visto, pois rasteiro,

    coberto de folhagens e, como estvamos falando agora a pouco, ele ainda

    meio cilndrico, meio arredondado...

    - Isso. No sei se seria sem ser visto, mas certamente rasteiro,

    quase imperceptvel. Mas, temos de lembrar que sua forma reprodutiva

    area, ou seja, vista! um modo de operar... E que no pequeno. Isso

    uma verdade! Por que se sabe que o maior animal do mundo um fungo.

    http://www.infoescola.com/plantas/caule/http://www.infoescola.com/plantas/raiz/http://www.infoescola.com/elementos-quimicos/nitrogenio/

  • 39

    - Ah sim, aquele cogumelo-do-mel. No esse?! Que foi encontrado

    em novembro de 2000 sob o solo da Floresta Nacional de Malheur,

    nas montanhas Blue no leste do estado chuvoso de Oregon, Gabi atualmente

    considerado como a maior colnia de fungos do mundo. Atravs de estudos

    de DNA e ndices de taxa de crescimento, descobriu-se que este fungo cobre

    uma rea de 8,9 km (equivalente a 1220 campos de futebol). A sua idade

    difcil de avaliar, e embora alguns estudiosos afirmem que este organismo vivo

    pode ter 2400 anos de idade, pesquisas recentes, com base no genoma do

    fungo, parecem indicar que pode ter 8000 anos. Estima-se que este fungo

    possa ter uma massa total de 605 toneladas xxxii. Ele considerado como o

    maior organismo do mundo.

    O fungo nasceu como uma partcula minscula (esporo) impossvel de

    ser vista a olho nu, e vem estendendo seus filamentos, entre as razes

    das rvores. superfcie do solo, ele possui a forma de pequenos cogumelos

    de aparncia inofensiva, mas sob o solo (miclio) fixa-se nas razes das

    rvores da floresta, roubando-lhes gua, nutrientes,

    provocando putrefao e morte das mesmas. Embora existam espcies de

    rvores que resistam a este fungo, a taxa de crescimento fica comprometida.

    uma guerra silenciosa, mas potente! uma guerrilha biomolecular para

    sobreviver e ganhar espao.

    - Isso mesmo! Perfeita descrio! Essa produo de substncias

    qumicas, atravs do metabolismo secundrio, gerando fenis, terpenos e

    alcaloides que servem para combate intra e interespecfico com a finalidade de

    sobrevivncia, no mesmo uma guerra silenciosa?! Atravs de um nico

    esporo, um animal de quase 9 km2 foi formado. Que grandioso crescimento!

    Aparentemente inofensivos fungos olho nu e por debaixo do solo um

    gigantesco mundo micelar. disso que estamos falando: do micro. Do que est

    por baixo e, que no que por estar por baixo, ou ser menor olho nu... que

    se torna menos importante, no mesmo?!

    - Sim. No menos importante mesmo.

    - A est a necessidade de um arredondamento: para que se consiga

    produzir as substncias necessrias mantendo-se vivo e potente. Quais modos

    de produo, por quais vias devo ir para que se produza substncias que me

    http://pt.wikipedia.org/wiki/2000http://pt.wikipedia.org/wiki/Floresta_Nacional_de_Malheurhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Montanhas_Blue_(Oregon)http://pt.wikipedia.org/wiki/Oregonhttp://pt.wikipedia.org/wiki/DNAhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Fungohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Genomahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Esporohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Raizhttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81rvorehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mic%C3%A9liohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Florestahttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81guahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Nutrientehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Putrefa%C3%A7%C3%A3ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Morte

  • 40

    permitam crescer, viver e frutificar? Essa uma das perguntas que tenho

    feito...

    - Ento os fungos e outros seres vivos tm muito a nos ensinar...

    - Evidentemente. Manoel de Barros quando estava em borboleta disse:

    Vi que as arvores so mais competentes em auroras

    do que os homens.

    Vi que as tardes so mais aproveitadas pelas garas

    do que pelos homens.

    Vi que as guas tem mais qualidade para a paz do

    que os homens.

    Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que

    os cientistas.

    Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do

    ponto de vista de uma borboleta.

    Ali at o meu fascnio era azul xxxiii.

    - Nossa! Ele percebeu muitas coisas quando estava borboleta! Talvez

    essa seja uma trilha possvel estar outra coisa para poder perceber-se noutro

    mundo. Metamorfosear-se uma possibilidade! No s em redondos, mas em

    borboletas, andorinhas, pentes, sofs...

    - Bem, me parece que o tema do arredondamento acadmico foi dito...

    Qual seria o prximo tema?

    - Seria S a alegria produz conhecimento. Mas acho que o miclio4 est

    talvez mais ligado a outro tema: Relaes do modo como escrevo com a

    pesquisa/corpo/educao/fruio/alegria/conhecimento. Por que o modo como

    escrevo est ligado a essa produo micelar e rizomtica. um modo de

    crescimento subterrneo e diferencial. Como o rizoma, minha escrita,

    pretensiosamente, se quer produzir de modo a criar numerosas ramificaes e

    no s subterrnea, pois se sabe que para atingir territrios mais longnquos

    necessria a presena do esporfito na parte area, a fim de que seus

    esporos, atravs dos ventos, possam ser carregados para outros lugares.

    - Uma escrita rizomtica?!

    4 Miclio o nome dado a um conjunto de hifas dos fungos multicelulares. Cada hifa um filamento

    microscpico, um tubo. Quando se renem em grandes emaranhados, esse conjunto o que recebe o

    nome de miclio.

  • 41

    - . Talvez eu esteja ambicioso demais... Mas, esse o desejo da

    escrita. Como Nietzsche dizia no querer ser confundido, de igual modo

    tambm no quero.

    - Mas, como se faz uma escrita rizomtica? Por que muitos j falaram

    que sua escrita potica e, portanto, no acadmica. Lembra disso no ?! Foi

    at na ANPEd Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em

    Educao - que um parecerista escreveu: No se trata de um recorte de uma

    pesquisa acadmica em andamento, mas sim, do compartilhar e refletir sobre

    uma experincia inspiradora xxxiv. Ou seja, no acadmico.

    - No acadmico, mas ele disse no final do parecer: Sou favorvel

    aprovao xxxv. Isso no um crescimento rizomtico? Estar na academia e

    ainda assim no ser acadmico?! E, neste caso, seria rizomtico por dois

    motivos: primeiramente por escrever poeticamente e cheio de citaes literrias

    e conseguir ser aprovado. E outro momento, tambm importante, quando

    esse parecerista abre brechas na academia para que um texto como este

    possa fazer parte com. Porque certamente no foi por ser bonzinho que este

    parecerista aprovou o trabalho! Provvel que ele tambm entenda que

    preciso outros modos para compor a academia! No s percebe, como

    menciona isso em seu parecer, n?! Ele rompe modos pragmticos de

    selecionar trabalhos acadmicos! Ele possibilita novos ares, novos modos...

    tambm um modo outro de habitar essa academia! a mesma academia, s

    que de outro modo, n?! Escreve-se de outro modo, com outros ares, se l

    com outros modos, com outros ares, move-se, habita, inventa com.

    Veio uma voz a compor.

    - verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um escritor

    escreve para os leitores, ou seja, para uso de, "dirigido a". Um escritor

    escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor tambm escreve pelos no-

    leitores, ou seja, no lugar de e no "para uso de". Escreve-se pois "para uso

    de e no lugar de". Artaud escreveu pginas que todo mundo conhece.

    Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas. Faulkner escreve pelos idiotas. Ou

    seja, no para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o

    leiam, mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. Escrevo no lugar dos

    selvagens, escrevo no lugar dos bichos. O que isso quer dizer? Por que se diz

    uma coisa dessas? Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos.

  • 42

    isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando se escreve, no se

    trata de histria privada. So realmente uns imbecis. a abominao, a

    mediocridade literria de todos as pocas, mas, em particular, atualmente, que

    faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha

    privada, sua historinha privada, sua av que morreu de cncer, sua histria de

    amor, e ento se faz um romance. uma vergonha dizer coisas desse tipo.

    Escrever no assunto privado de algum. se lanar, realmente, em uma

    histria universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer... xxxvi.

    - Metamorfoseia-se em analfabeto, em louco! Mas no entendi muito

    bem a relao que ele faz.

    - Ele est conversando sobre o processo da escrita. No fcil escrever.

    No basta contar uma historinha. Por isso ele faz diferena entre um escritor e

    um contador de histrias. Quando escrevo no estou falando de mim,

    propriamente dito, mas estou falando de um territrio comum, mltiplo e que

    por isso mesmo singular. uma trama de letras e palavras que produzem

    sentidos por algum ou para algum. Mas que para, alm disso, talvez, o

    ganho real seria conseguir escrever sendo outro. Manoel escreve o idioleto

    Manoels xxxvii e eu invento um idioleto Leandrols... H de se inventar idiomas

    para uma escrita potente e alegre. E alm do mais, ele filsofo, temos que

    dar um desconto... Porque a vida mesma um tanto estranha. Daria para

    imaginar, que um esporo formaria um animal to grande? Daria para imaginar,

    que atravs de uma fecundao vulo mais espermatozoide nasceria voc?

    Tudo bem que no dos bonitos, mas gente.

    - Palhao.

    - Ah, tambm tem essa onda do palhao que nos ajuda a ver os miclios

    da vida...

    - O imperceptvel?

    - Isso. J entraramos no outro tema que seria: O estado do corpo para

    os estranhamentos no viver.

    - A palhaada.

    - Isso cara. O palhao ajuda o corpo a se manter atento para estranhar o

    comum. Isso tambm tem relao com a escrita que falvamos agora a pouco.

    Deleuze faz associao entre quem escreve e um animal.

  • 43

    - . Se me perguntassem o que um animal, eu responderia: o ser

    espreita, um ser, fundamentalmente, espreita.

    - Como o escritor?

    - Sim. O escritor est espreita, o filsofo est espreita. evidente

    que estamos espreita. O animal ... Observe as orelhas de um animal, ele

    no faz nada sem estar espreita, nunca est tranquilo. Ele come, deve vigiar

    se no h algum atrs dele, se acontece algo atrs dele, a seu lado. terrvel

    essa existncia espreita. Voc faz a aproximao entre o escritor e o animal

    xxxviii.

    - Eu diria que o palhao teria esse estado animal. No em vo que em

    muitos cursos de iniciao palhaaria o Messi faa uso das caractersticas

    bsicas de animais para que os aspirantes a palhao experimentem situaes,

    movimentos, olhares, andares animalescos a fim de aflorar, precipitar,

    aumentar o palhao pessoal. A commedia Dell arte tinha os animais como

    referncia o porco (Doutore), o macaco (Arlequim), a galinha (Colombina)...

    - O palhao um ser espreita. Est sempre atento ao que se passa.

    Sempre traz no corpo as perturbaes do que o envolve e mostra isso para o

    outro. de praxe que o palhao seja identificado logo na sua entrada. O

    figurino, a maquiagem, a postura... Todo o conjunto soma informaes,

    sensaes para que a plateia perceba quem esse palhao que entrou. Se ele

    rico, pobre, manda, obedece, falante, esfomeado, gentil, inocente, safado,

    nojento, burlesco... um estudo profundo, uma preparao eterna, tem de se

    desacostumar o olhar, o corpo todo est livre dos costumes e exercita-se num

    estado outro. O palhao exercita-se em transver as coisas, pois j no um

    personagem construdo, como se faz no teatro tradicional, mas a

    exarcebao do singular, do erro... No se trata do eu psicolgico, mas de

    uma inveno de possveis e muitos eus que o constituem. O transver o

    mundo manoels criar rombos de possibilidades infinitas...

    - Ento, como aquele errar l no incio da conversa toma proximidade

    com este erro do palhao?

    - Transver o mundo. Transver o mundo xxxix!

    - Quando o mundo est transvisto, as coisas se alteram e tomam outros

    sentidos! Inventam-se! Multiplicam-se sentidos... O erro toma lugar do acerto!

    pura inveno!

  • 44

    - A expresso reta no sonha.

    No use o trao acostumado.

    A fora de um artista vem das suas derrotas.

    S a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pssaro.

    Arte no tem pensa:

    O olho v, a lembrana rev, e a imaginao transv.

    preciso transver o mundo xl.

    - Para transver preciso imaginao.

    - Por isso a tangente de escrever uma pea de teatro pode ser uma boa

    fuga da cincia rgia. Uma boa linha a ser puxada do redondo, um bom modo

    de esticar o tempo, de possibilitar imaginaes...

    - Bruninha5 j disse que quando ela sobe no tecido6 ela fica cheia de

    imaginaes. A arte ajuda a criar mundos. O palhaar uma arte e, portanto

    inventa um mundo para si... Ele afirma-se num mundo.

    Bruninha tambm se afirma no mundo, este que ela inventou para si,

    nas aulas de circo. Ela se afirma enquanto Bruninha. Este o seu nome. Nome

    que ela escolheu para si. E, apesar de ser a menor do grupo, em estatura e,

    menina e negra e, e, e, por tantas vezes ser subjugada, tambm por esses

    motivos, consegue foras nesse coletivo circense para se afirmar enquanto

    dona de sua prpria existncia! Ela toma para si as rdeas do viver. No

    aceitando docilmente os apelidos ofensivos, mas afirmando seu nome

    enquanto fora alegre! Isso maravilhoso! um arrombo formativo: Bruninha e

    pronto e ponto!

    - seu nome prprio, u... No vejo nada demais! Apenas colocou no

    diminutivo. S isso. O que tem de arrombo formativo nisso? Afirmar seu nome

    prprio algo maravilhoso?

    - No s afirmar seu nome prprio. Se quer saber, por vezes ele nem

    indica isso, tampouco em funo de uma forma ou de uma espcie que um

    nome pode tomar um valor de nome prprio. O nome prprio designa antes

    algo que da ordem do acontecimento, do devir ou da hecceidade. So os

    militares e os meteorologistas que tm os segredos dos nomes prprios,

    5 Bruninha uma personagem inventiva que faz parte do Mutiro da Meninada do Vale Verde ONG

    que atuo desde 2011 com aulas circenses. 6 Tecido areo acrobtico. Modalidade circense.

  • 45

    quando eles os do a uma operao estratgica, ou a um tufo. O nome

    prprio no o sujeito de um tempo, mas o agente de um infinitivo [...] o nome

    prprio, no a marca constituda de um sujeito, a marca constituinte de um

    domnio, de uma morada xli.

    - Entendo. Ento, no uma questo de um sujeito, mas de um

    acontecimento que cria, impulsiona e possibilita a precipitao de devires.

    Devir-Bruninha, devir-palhao, devires... Bruninha palhaar!

    - Isso!

    - E como o acontecimento relacional, entende-se, portanto, que para

    ser um bom palhao, para se afirmar em vida, para se dar um devir-Bruninha

    deve-se agir de tal modo com pblico... relacionando-se inteiramente a ponto

    que este seja envolvido na lgica inventada de quem prope, no jogo, na

    brincadeira... A que a gente ri: Quando damos conta do que o palhao vai

    fazer... A gente antecipa seu gestual e camos na gargalhada ao percebermos

    que entendemos.

    - Isso mesmo. Quando num espetculo o palhao deixa o pblico

    perceber a sua lgica de raciocnio, que ele mesmo inventou para si, quando

    d o start no corpo de quem assiste ao operar tambm nessa mesma lgica

    outra produzida pelo palhao, o riso inevitvel. Porque a plateia tambm

    inventou uma lgica prpria. A est o ganho, o riso. Claro que o contrrio

    tambm acontece. Quando o pblico sempre surpreendido pela sada

    inesperada que o palhao encontra. Isso tambm gera (in)certo riso... Outros

    modos e infinitas possibilidades so possveis de se inventar para que o riso

    acontea. uma questo de relao com... de presena com... de ocupaes e

    engendramentos em devires...

    - Mas e o que isso tem haver com a questo de perceber o

    imperceptvel?

    - que o palhao cria para si uma lgica e, portanto, seu modo de existir

    e atuar sobre e com as coisas diferente do nosso. Isso possibilita um mundo

    de coisas novas. Porque ele perde tempo com coisas que jamais perderamos.

    Por isso inventa mistrios, encontra belezas, tropea em alegrias e bons

    encontros. Porque o palhao est sempre espreita de um encontro. Ele tem

    um corpo poroso que auxilia nas percepes... Ele estica horizontes xlii.

    Perceber o imperceptvel uma artistagem que os cientistas fazem bem.

  • 46

    Utilizam de instrumentos que possibilitam ver coisas que ningum v. O

    microscpico, por exemplo, um instrumento fantstico que permite ver coisas

    que a olho nu no vemos! Obviamente que para ver algo num microscpio

    voc tem de preparar um material em uma lmina, lamnula... Utilizar de

    procedimentos tcnicos e saber manejar bem o equipamento para que nesse

    manejo, o invisvel seja notado! uma alegria estonteante... perceber

    mundos que nem sequer damos conta de sua existncia.

    Um cientista, ou aluno, ou qualquer pessoa que se aventure num

    microscpio tem de atentar para o que est fazendo. O corpo fica em posio

    de ateno ao que se v. Olhos atentos. Movimen