derrida. essa estranha instituição chamada literatura
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Tradução e Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 18, Ano 2009
Marileide Dias Esqueda Universidade do Sagrado Coração - USC [email protected]
JACQUES DERRIDA E ESTA ESTRANHA INSTITUIÇÃO CHAMADA LITERATURA
UNIBERO Centro Universitário Ibero-Americano
Contato [email protected]
Resenha Recebido em: 15/7/2009 Avaliado em: 31/8/2009
Publicação: 30 de setembro de 2009
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Sem dúvida, hesitei entre filosofia e literatura, não abrindo mão de nenhuma das duas, talvez buscando obscuramente um lugar a partir do qual a história dessa fronteira pudesse ser pensada ou até mesmo deslocada – na própria escritura e não somente pela reflexão histórica ou teórica. E uma vez que o que me interessa hoje não se denomina estritamente literatura ou filosofia, entretenho-me com a idéia de que meu desejo adolescente – vamos chamá-lo assim – pudesse ter me direcionado a algo na escritura que não era nem uma coisa nem outra. O que era então? “Autobiografia” é talvez o nome menos inadequado, pois permanece para mim enigmático, o mais aberto, mesmo hoje. (DERRIDA, 1992, p. 34, minha tradução).
A entrevista organizada e editada por Derek Attridge, estudioso inglês, com
Jacques Derrida, filósofo francês de origem argelina, no livro Acts of Literature, traz à tona
as discussões acerca dos temas tradução, literatura, filosofia e desconstrução1. Supondo
que seja possível retraçar essas fronteiras como uma resenha, é preciso resignar-se a não
buscar explicar suas relações com outras reflexões trabalhadas pelo entrevistado em
outros de seus textos, considerando, de saída, que essa entrevista mostra as voltas de
Derrida em torno do tema da essencialidade e da institucionalidade (Em Gramatologia e A
Escritura e a Diferença, por exemplo, ele se volta para os textos fundadores do sujeito e das
instituições, principalmente com relação a Saussure e a Lévi-Strauss).
O objetivo desta resenha é sublinhar, ainda que de maneira breve, os pontos que
me parecem de maior interesse para nós, tradutores – o que necessariamente me obriga a
tão somente tangenciar a importante questão da essencialidade, ou da falta dela, a partir
da qual se articulam literatura e filosofia. Contudo, embora as relações que Derrida
estabelece nessa entrevista levem ao debate concernente à relação entre a(s) língua(s), a
tradução, o (in)traduzível e a desconstrução, é preciso acompanhá-lo ao menos em uma
parte dessa trilha, para que o estranhamento se faça mais uma forma de refletir sobre o
que está em jogo para o tradutor nessas fronteiras estranhamente instituídas.
O ponto de partida preciso é, como tema proposto, o espaço da literatura. Espaço
que, segundo a lógica derridiana, não é somente aquele de uma ficção instituída, mas
também de uma instituição fictícia, a qual, em princípio, nos permitiria dizer tudo:
Dizer tudo é, sem dúvida, reunir, por meio da tradução, todas as figuras umas nas outras, totalizar através da formalização; mas dizer tudo é também transpor [franchir] proibições. Franquear-se [s’affranchir] – em todos os campos onde a lei pode burlar a lei. A lei da literatura tende, em princípio, a desafiar ou a transgredir a lei. Ela nos permite, portanto, pensar a essência da lei na experiência desse “tudo a dizer”. É uma instituição que tende a transbordar a instituição. (p. 36)
Derrida se dispõe, nessa entrevista, a dar mais um passo que repensa a
complexidade dos textos literários. O autor apresenta as tensões que operam
exorbitantemente no texto literário, destacando que apresentar essas tensões não é apenas
1 Essa entrevista intitulada This strange institution called literature foi estudada, resenhada e traduzida por mim como parte das atividades do Grupo de Pesquisa “Traduzir Derrida: Políticas e Desconstruções”, criado em setembro de 2002 pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Ottoni (in memoriam) do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp – Campinas/SP; atualmente (a
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desejável, mas necessário. Para Derrida, o texto literário “ordena” sua operação de leitura
e essa ordem exerce um papel decisivo no jogo das interpretações, forças, desejos e
tensões que autorizam qualquer leitura:
“O que é literatura?”; literatura como instituição histórica, com suas convenções, regras, etc., mas também essa instituição de ficção que dá, em princípio, o poder de dizer tudo, de desvencilhar-se das regras, de deslocá-las, e, desse modo, instituir, inventar e também suspeitar da diferença tradicional entre natureza e instituição, natureza e lei convencional, natureza e história. Aqui, deveríamos levantar questões jurídicas e políticas. A instituição da literatura no ocidente [maiúscula], em sua forma relativamente moderna, está ligada à autorização para se dizer tudo, e, sem dúvida também, à vinda de uma idéia moderna de democracia. Não que ela dependa de uma democracia no seu lugar, mas parece-me inseparável do que causa uma democracia, no sentido mais amplo (e, indubitavelmente, ele mesmo por vir) de democracia. (p. 38)
A configuração suplementar que Derrida imprime nesta Estranha instituição
chamada literatura é o deslize da origem. Os textos literários consomem e devoram a
história e as relações que tentam apresentar, multiplicam sua diversidade e pluralidade,
em vez de se apresentarem com uma estrutura única:
A literatura não tem originalidade pura nesse sentido. Um discurso filosófico, jornalístico ou científico pode ser lido de forma “não-transcendental”. “Transcender”, aqui, significa buscar, além de interesse, o significante, a forma, a linguagem (observe que eu não digo “texto”) na direção do significado ou referente (esta é a definição de prosa um tanto simples, mas conveniente, de Sartre). É possível fazer uma leitura não-transcendente de qualquer tipo de texto. Além disso, não há nenhum texto que seja literário em si. A literariedade não é uma essência natural, uma propriedade intrínseca ao texto. É o correlativo de uma relação intencional com o texto, uma relação intencional que integra em si, como um componente ou uma camada intencional, a consciência mais ou menos implícita de regras que são convencionais ou institucionais – sociais, em todo caso. (p.44)
Mas Derrida adverte que a literariedade e o sentido de subjetividade em um
texto não são nem algo empírico nem um capricho de cada leitor. Há “no” texto
características que exigem a leitura literária e invocam a convenção, a instituição, ou a
história da literatura. Essa estrutura noemática (visada) está incluída na subjetividade, mas
uma subjetividade que é não-empírica e ligada a uma comunidade intersubjetiva e
transcendental. Derrida acredita que essa linguagem de tipo fenomenológico seja
necessária, mesmo se, em certo ponto, ela deva ceder ao que, em uma situação de escrita
ou de leitura, e em particular escrita e leitura literárias, põe a fenomenologia em crise,
bem como o próprio conceito de instituição ou de convenção.
Sem suspender a leitura transcendente, mas propondo uma mudança de atitude
com respeito ao texto, o filósofo expõe que é sempre possível reinscrever, em um espaço
literário, qualquer relato – um artigo de jornal, um teorema científico, um fragmento de
conversa. Há, portanto, um funcionamento literário e uma intencionalidade literária, uma
experiência, mais do que uma essência, de literatura (natural ou a-histórica). Nesse
partir de 2008), encontra-se instalado no Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus-Itabuna, Bahia. A publicação da tradução dessa entrevista na íntegra ainda aguarda autorização oficial.
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contexto, a essência da literatura – se nos ativermos a essa palavra essência – é produzida
como um conjunto de leis objetivas em uma história original dos “atos” de uma inscrição
e leitura.
As circunstâncias apontadas, contudo, não bastam para identificar e descrever a
instituição da literatura. Derrida pergunta como reagimos a essa identificação que o texto
literário propõe, e interessa-se, de fato, por essa estranha instituição, pelo além da
instituição literária. O objeto de análise da literatura está sempre longe de ser evidente e
solúvel:
[...] é sempre possível inscrever na literatura algo que não fora originalmente destinado a ser literário, dado o espaço convencional e intencional que institui e, portanto, constitui o texto. Convenção e intencionalidade podem mudar; elas sempre induzem certa instabilidade histórica. Mas, se é possível re-ler tudo como literatura, alguns acontecimentos textuais prestam-se a isso melhor que outros, suas potencialidades são mais ricas e mais densas. Daí o ponto de vista econômico. Essa riqueza em si não dá origem a uma avaliação absoluta – absolutamente estabilizada, objetiva e natural. Daí a dificuldade de teorizar essa economia. Mesmo que alguns textos pareçam ter um maior potencial para formalização – obras literárias e obras que dizem muito sobre literatura e, portanto, sobre si, obras cuja performatividade, em algum sentido, parece a maior possível no espaço menor possível –, isso pode dar origem somente a avaliações inscritas em um contexto, a leituras posicionadas que são, elas próprias, formalizantes e performativas. A potencialidade não está escondida no texto como uma propriedade intrínseca. (p. 44)
O passo-além que Derrida apresenta é o de que nos deparamos com os indícios
da literatura, com aquilo que conseguimos encontrar como sendo pertinente à literatura, e
que, a priori, nos causa problemas de linguagem. É um discurso que tentamos
acompanhar. Um pacto que fazemos com o texto. O texto, e não apenas o literário, causa-
nos uma vertigem referencial: ao multiplicar as significações, torna ilusório todo
fechamento de análise. A ambigüidade fundamental da linguagem, principalmente a
literária, não nos permite tomar posição em favor da interpretação literal ou da
interpretação retórica.
Mas se ela não se abrisse para todos estes discursos, se ela não se abrisse para quaisquer daqueles discursos, não seria nem mesmo literatura. Não há literatura sem uma relação suspensa com significado e referência. Suspensa significa suspense, mas também dependência, condição, condicionalidade. Em sua condição suspensa, a literatura pode exceder apenas a si mesma. Sem dúvida, toda linguagem refere-se a algo além de si mesma, ou à linguagem como alguma outra coisa. (p. 48)
A partir da noção de que a literatura mantém uma relação suspensa com o
significado e com a referência, podemos pensar que a tradução, e não somente a tradução
literária, também opera essa não-institucionalidade, opera o romper de proibições. Ou
seja, a questão da troca do campo de análise que a desconstrução promove torna
nebulosas as dicotomias ficção e teoria, literatura e filosofia, ler e escrever, o crítico e o
escritor. Assim, ao traduzir, inevitavelmente nos deparamos com os limites nebulosos
dessas instituições.
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Para Derrida, dizer tudo na instituição da literatura é provocar um sentimento de
existência, o próprio além do significado que origina a escrita. Ele argumenta que a
perplexidade dessa instituição está ligada a uma dynamis filosófica, uma “força” que
certas obras exercem sobre nós que, de fato, nos leva à questão sobre a essencialidade. A
pergunta “o que é (literatura, filosofia, tradução)” se impõe. É menos a história da obra,
em si, que problematizamos, mas as determinações a-históricas:
A poesia e a literatura têm como característica comum, mesmo que de maneira desigual e diferente, suspender a ingenuidade “tética” da leitura transcendente. Isto também responde pela força filosófica dessas experiências, uma força de provocação para pensar fenomenalidade, significado, objeto, mesmo sendo, como tal, uma força que é pelo menos potencial, uma dynamis filosófica – que pode, porém, ser desenvolvida somente em resposta, na experiência de leitura, porque não é intrínseca ao texto como uma substância. A poesia e a literatura proporcionam ou facilitam o acesso “fenomenológico” àquilo que torna uma tese uma tese como tal. Antes de ter um conteúdo filosófico, antes de ser ou comportar tal “tese”, a experiência literária – na escritura ou na leitura – é uma experiência “filosófica” que é neutralizada ou neutralizante, até o ponto em que permite pensar a tese; é uma experiência não-tética da tese, da crença, da posição, da ingenuidade, do que Husserl denominou “atitude natural”. (p. 45)
Portanto, para Derrida, são essas determinações que provocam, desconstroem a
institucionalidade. O grande risco das análises literárias, ou da denominação do que seja
literatura, ou até mesmo filosofia, seria adotar para elas um objetivo. Os problemas
complexos e fundamentais, no que tange ao conteúdo da literatura e ao conteúdo da
filosofia, apontam a possibilidade de um estudo não do texto propriamente dito, mas da
fruição do imaginário que nos permite, nessas instituições, dizer tudo, rompendo
proibições.
Assim, a experiência da tradução dessa não-institucionalidade faz emergir essa
necessidade de ruptura; ou seja, o tradutor encontra-se entre o tentar traduzir a
essencialidade (ou falta dela), e o buscar traduzir o (in)traduzível. É nessa experiência que
o tradutor se depara também com uma estranha institucionalidade.
Derrida não oferece o conforto das definições. Na entrevista, o leitor pode
apreender nas respostas do autor que ele não sonha com uma obra literária, nem com
uma obra filosófica, mas estima que tudo o que ocorre, tudo o que acontece (ou deixa de
acontecer) em um texto, deveria ser selado, colocado em reserva, escondido de modo a ser
mantido na própria assinatura do texto, na verdadeira forma do selo, com todos os
paradoxos que atravessam a estrutura de um selo. Relacionar os dizeres de Derrida com a
tradução torna possível pensar que, nesta, a essencialidade é colocada em questão e o
tradutor é levado pela denúncia da falta de essencialidade e de institucionalidade.
A argumentação de Derrida torna disponível um tratamento menos comum para
a escrita. Esse é o jogo da desconstrução. Esse é o jogo da tradução, mas esse é um jogo
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jogado com peças envoltas por uma aparente institucionalidade, envoltas por uma
estranha instituição chamada literatura.
A partir dessa entrevista, o tradutor – e não só aquele do texto literário – pode
confirmar que a tradução não envolve apenas operações lingüísticas. Não com base no
fato comprovado de que é preciso considerar fatores extralingüísticos, aspectos
pragmáticos, sócio-culturais, políticos..., mas, considerando o olhar derridiano, a
exposição de que a linguagem joga e negocia com a suspensão referencial, e que tal
suspensão ocorre de maneira distinta em cada ideário textual.
As reflexões derridianas proporcionam descortino com relação à essência (ou
falta dela) da literatura, da filosofia e, inevitavelmente, da tradução, e essas reflexões
podem vir a fazer parte da formação de tradutores, ensejando a oportunidade para o
exercício crítico da reflexão sobre a referencialidade, pondo em dúvida as certezas
dogmáticas, oxigenando o campo do conhecimento da e sobre tradução, com novas
perspectivas interpretativas embasadas na ampliação do horizonte teórico do tradutor.
REFERÊNCIAS
DERRIDA, Jacques. Acts of literature. Jacques Derrida: edited by Derek Attridge. New York, US: Routledge, 1992, p. 33-75.
______. A Escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Niza da Silva. 3. ed. São Paulo, BR: Perspectiva, 2002.
______. Gramatologia. Tradução de Miriam Schneiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo, BR: Editora Perspectiva e Editora da Universidade de São Paulo, 1967. (Coleção Estudos).
Marileide Dias Esqueda
Doutora em Lingüística Aplicada - Área de Tradução, pela Universidade Estadual de Campinas. Professora em regime integral da Universidade do Sagrado Coração de Bauru, nos cursos de Tradução e Letras. Área de atuação: teoria de tradução, formação de tradutores, ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras.