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Page 1:  · deria, emulando, imitando os caras que eu gostava e lia, escrever também. É engraça-do que o meu primeiro livro, que eu escre-vi com oito anos de idade - eu ainda tenho os
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Revist{ntrevista

Entrevista com Eduardo Bueno, no dia 08 de novembro de 2014.

Eduardo - Evocês, com as suas ideias pré--concebidas já, né? Alguns devem ter pensa-do: é o típico arrogante gaúcho. Mas não, atéporque eu sou gaúcho, mas não exerço. Eusou gremista. Há uma diferença. É uma for-ma superior de ser gaúcho. Eu estou agindoé com a arrogância típica do jornalista. Por-que o jornalista é o cara que exerce-uma dasprofissões mais arrogantes e prepotentes domundo. Por quê? Porque há uma parte doprincípio que ele tá qualificado pra descre-ver uma pessoa ou um .acontecimento comdistanciamento e com objetividade. E já estáprovado, antológica e filosoficamente, queé impossível você descrever qualquer coisacom esse distanciamento e com essa objeti-vidade. O jornalista, quando chega pra fazerou uma reportagem ou uma entrevista, ele játem - e é natural que assim seja - ideias pré--concebidas do que vai fazer. Então ...

Hélio - (interrompendo) Eduardo, deixaeu aproveitar o que você tá falando, porquea gente vai começar, na verdade, falandoda sua vida como jornalista, o início na car-reira. Eu quero perguntar sobre aquilo ouaqueles fatores que o levaram a escolher ojornalismo, esse interesse pela área, e so-bre a maneira como você entrou também(na profissão).

Eduardo- Desde o começo da minha vida,descobri que a fabulação e o vínculo com apalavra, tanto escrita por outros, como de-pois eu vim a descobrir que também poderiaser escrita por mim, era meu único caminhode salvação. Porque eu sentia um desconfor-to muito grande com relação ao meu papelno mundo, na família, no colégio, em todasas estruturas vigentes. É até engraçado - eutava lendo a entrevista do Xico Sá (jornalistacolega de trabalho do Extra Ordinários, docanal SporTV, entrevistado na edição núme-ro 32 da revista Entrevista), feita pela turmaque antecedeu vocês - que às vezes você vêa narrativa de caras que têm uma trajetórianas artes ou nas Letras, digamos, e váriosdeles têm essa infância meio Severina, e ain-da mais o Xico Sá que veio aqui do Nordeste.E você tem um natural pendor: "Uau, o carasuplantou tantas dificuldades", esquecendodas dificuldades vividas pelo pobre meninorico, no caso eu (fala rindo).

Eu nasci numa família de classeA-hahaha.Meu pai (Milton Bueno) era ligado à direção

do Unibanco (União de Bancos Brasileiros,que se fundiu com o banco Itaú em 2008, tor-nando-se Itaú Unibanco). Ele ganhava um di-nheirão. Haviam oito empregados na minhacasa, pra você ter uma ideia. Em geral, quan-do um cara fala que nasceu rico, todo mundodá uma olhadinha meio de inveja. Em tese,né? E o outro: "Ah, o outro nasceu no Crato",Cara, mas você não imagina que tipo de pri-são pode ser essa (nascer em família rica),se você é um desadaptado, entendeu? Achoque, bem entre aspas, "cada um sabe a delí-cia e a dor de ser o que é", a velha frase. Mas-por um lado, na época, pelo menos, eu prefe-ria ter nascido no Crato. Até no Crato! (Grita).Essa desadaptação encontrava uma válvulade escape muito rápida nos livros. Meu paiera letrado, graças a Deus. Eu tenho sete millivros hoje, a minha biblioteca. Porém eu jáme livrei de dois mil! Meu pai tinha em tornode dois mil. Ele era um financista, ele curtiaesse jogo do dinheiro, que eu nunca curti. Elegostava de ganhar dinheiro em transaçõesfinanceiras, essa era a profissão dele, só ga-nhava o salário dele e toda-se. Tanto é que,conforme ele prometeu, nós não herdamosabsolutamente nada dele. Meu pai tinha umlado meio beat, beatnik. Mas o fato é que eletinha essa biblioteca e essa biblioteca logo serevelou o quarto encantado.

Eu mergulhei muito cedo nesse mundode letras. E muito cedo, aprendi que eu po-deria, emulando, imitando os caras que eugostava e lia, escrever também. É engraça-do que o meu primeiro livro, que eu escre-vi com oito anos de idade - eu ainda tenhoos cadernos-espirais - é um livro que indicao que eu viria a fazer depois: ser um merocompilador de ideias dos outros (ri). Era umlivro sobre o Egito antigo. Eu tinha plenaconvicção que eu tinha vivido no Egito numavida anterior, convicção que ainda tenho -basta tomar os produtos certos que dá praacessar essas vidas anteriores e... (risos).Meu primeiro tema de interesse na vida erao Egito. Comecei a ler tudo o que eu encon-trava sobre e resolvi escrever sobre o Egito.Eu pegava vários livros, tirava trechos umpor um e misturava. E eles acabavam fican-do meus. Porque quem fazia o corte, aspas,a edição era eu. E também descobri, incons-cientemente, como você não só pode comodeve se apropriar das ideias dos outros. Ah!

EDUARDO BUENO I 111

Hélio, Jonas e Ronaldobuscaram Eduardo no Ae-roporto Internacional Pin-to Martins, em Fortaleza,no dia sete de novembro.Eduardo os cumprimentoucom: "Eu sabia que acha-ria vocês se procurassepelas pessoas mais feiasdo saguão!"

No voo de Porto Alegrea São Paulo, Eduardo lide-rou um movimento de "li-bertação" dos passageiros,então impedidos de sair daaeronave por quase duashoras, após episódio envol-vendo um (perdido) cigarrode maconha a bordo.

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Eduardo é um defensorveemente de uma discussãomais ampla e compreensivaem relação ao uso de dro-gas e critica a posição "hipó-crita" assumida socialmenteem torno do assunto

Fizemos contato comEduardo inicialmente pormeio de Cláudia Saraiva, se-cretária dele na editora Bue-nas Ideias. Sem a coopera-ção, insistência e paciênciade Cláudia, esta entrevistaprovavelmente nunca teriase concretizado.

REVISTA ENTREVISTA I 112

Afinal um dos meus maiores ídolos, o 80bDylan, ele copia tudo. Mas o jeito que ele co-piou é só ele que seria capaz de fazer. Quemme dera inclusive eu fosse um copiador quenem ele, né?

Jadiel - Mas nessa sua forma de regis-trar as coisas que lia, você já tinha consciên-cia de que era jornalismo? Como é que vocêfoi ter consciência?

Eduardo - Não, eu tinha zero consciênciade que era jornalismo. Eu queria ser egip-tólogo e arqueólogo. Concluí logo que paraser arqueólogo, principalmente, tinha que terdentre as suas qualidades a meticulosidadee a paciência. Eu nunca tive nenhuma dasduas, nem um arremedo (ri). E eu nunca tivemétodo. Meu método sempre foi errático.Mas veio a coisa da palavra e a necessidadevital de escrever. Veio também uma paixãopor futebol, pelo glorioso Grêmio, o que mefez começar a escrever sobre os jogos dotime, lá pelos dez, 11 anos de idade. Porquevocês sabem - isso tem de ficar registrado- que a imprensa é vermelha (fala gritandoao gravador)! A imprensa, além de petista evermelha, ainda é colorada! Todo mundo éum protocolorado. Todo mundo tem um co-lorado escondido dentro de si! E a gente temde se revoltar ... Não (volta ao tom normal, oque faz a equipe rir), mas eu lia as coisas eficava: "Não estão vendo o jogo do jeito queeu vi! Eu vou escrever o jogo do jeito quefoi!" Incrível isso, né? Porque tem a ver coma natureza do jornalismo, tem a ver com essanatureza de você ter o seu olhar, tem a vercom aquela história de paixão, de que jeito

você mistura ou não mistura sua paixão como jornalismo, entendeu?

Aquilo para mim não era jornalismo, mascomeçou obviamente a encaminhar minhacarreira para o jornalismo esportivo. Tan-to é que, quando eu fui fazer o vestibular,não restava outra possibilidade para mimque não fosse o jornalismo. Porque eu já ti-nha concluído que eu não ia fazer história.Eu já era meio refratário às estruturas fixasda história, da historiografia. Todos os his-toriadores que eu gostava tinham um viésmuito mais literato do que propriamentehistoriográfico. Dois nordestinos que muda-ram minha vida: Gilberto Freyre e Luís daCâmara Cascudo, que eram historiadores,mas escreviam como grandes romancistas.

"Então decidi entrarno jornalismo. Foiuma opção bem

extraordinariamenteconsciente, para um

garoto que tinhadezessete anos deidade e fumava um

todo dia"

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o Sérgio Buarque de Holanda também. Eudigo: "Bacana, eu não vou entrar na UFR-GS (Universidade Federal do Rio Grande doSul) para estudar história". E, além do mais,porque vai demorar muito pra eu ter umaprofissão em função disso. Então decidientrar no jornalismo. Foi uma opção bemextraordinariamente consciente, para umgaroto que tinha 17 anos de idade e fumavaum (faz sinal de "baseado" levando as mãosà boca) todo dia, que vivia meio doidão.

E aí, pá! O pobre menino rico vira o favo-recido menino rico. Porque o meu pai e a mi-nha mãe (Beatriz Bueno) eram amicíssimosdos donos da RBS (grupo empresarial decomunicação filiado à Rede Globo, respon-sável também pelo Jornal Zero Hora), ami-císsimos. Meu pai era muito amigo do Mau-rício Sirotsky, fundador da RBS, e a minhamãe prima do Fernando Ernesto Corrêa, queera vice-presidente da RBS, para quem eu fuipedir emprego. Eu passei no vestibular, emjaneiro de 1976. E a primeira pessoa que veiome cumprimentar foi ele mesmo, porque elemorava lá na zona dos ricos, perto da minhacasa. Vinha fazendo o jogging (modalidadede atividade física, pique) dele, as pessoastudo fazendo jogging, já fazendo jogging em76. E no meio do jogging (falando semprebem acentuadamente a palavra "joqçinq")dele ele cruzou comigo e disse: "Ah, eu li" -no jornal dele (Zero Hora) - "o teu nome nalista dos aprovados. Por que você não vai lápedir emprego?" E eu fui e...

Hélio - (interrompendo) Isso foi por co-modidade, por saber da possibilidade ou por

afeição mesmo ao veículo?Eduardo - Não, não tinha a menor afei-

ção pelo veículo. Nunca tive a menor afeiçãopelo veículo (risos).

Oavid - Era por vontade de praticar?Eduardo - Era vontade de praticar jor-

nalismo e era o canal, por ali. Fui direto namaior ingenuidade, eu tinha 17 anos, diretono quarto andar, onde ninguém podia nemir - depois demorei anos para voltar lá - eo cara (Fernando Ernesto Corrêa) disse: "Oque é que você quer fazer?" Eu disse: "Euquero escrever sobre o Grêmio, porque sótem colorado nessa porra, esses filhos-da--puta". E ele é gremista fanático: "Você querEsporte, então espera aí. Quem é o chefe deEsporte?" (refere-se à seção do jornal. Edu-ardo imita um tom de voz ranzinza). Comesse tom. Responderam que o chefe estavaviajando porque era aquele torneio do bicen-tenário da independência norte-americanae teve um torneio de futebol. O Brasil foicampeão, até. E levou dois jogadores hor-rorosos do Grêmio, o Neca e o Beto Fuscão(risos da turma). E o cara, que era o chefãodo Esporte, estava cobrindo esse campeona-to, nos Estados Unidos. "Quem é que tá nolugar dele?!" (perguntou o vice-presidenteda RBS). Disseram: "É o Fulano lá, o Ronal-do ...'', O Ronaldo, esse tipo de gente assim(apontando para o professor Ronaldo entrerisos). Veio um cara, o que me apelidou dePeninha depois. E ele pior que era parecidocom ele (o professor Ronaldo Salgado) mes-mo, porém era mais curvado. Entrou. Tinhacerteza que ia ser demitido, né? Chamado na

EDUARDO BUENO I 113

Só falamos diretamentecom Eduardo ao telefonepor duas vezes: para con-firmar a presença e no diada chegada - ligação queHélio considerou rejeitar,acreditando em um pos-sível telemarketing de umDDD distante às oito damanhã de sexta-feira.

Durante a entrevista, emmomentos de exaltação,ou quando imitava outraspessoas, Eduardo muda-va bruscamente o volumede voz. O que foi dolorosopara os ouvidos de Hélio eJadiel durante a transcri-ção de mais de três horasde conversa.

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Consideramos umapena termos de trocar os"tu" por "você" na ediçãodo material, por motivosde formalidade. Adoraría-mos contemplar as marcasde oralidade sulistas, assimcomo os inúmeros "bá" e"barará, barará, barará",

No dia da entrevista,Eduardo vestia uma cami-sa amarela com as inscri-ções Beat Generation e OnThe Road, referências aomovimento com o qual seidentifica e ao livro símbo-lo dessa filosofia.

110 apelido me tirouum pouco dessa

coisa da seriedade.Não que eu tenhatanto interesse na

seriedade."sala do vice-presidente. Nunca tinha ido. Eele chegou, entrou. E o cara disse assim ...

Jadiel- ...Qual era o nome dele?Eduardo - É Mauro Toralles e o apelido

é Boró. O filho-da-puta tá vivo e é a mesmapessoa. O vice-presidente chegou pro carae disse: "Esse aqui é o Eduardo Bueno, ami-go da casa, e ele vai trabalhar no Esporte".O carà disse: "Não tem vaga no Esporte".Ele olhou pro cara (Boró) e disse: "Esse aquié o Eduardo Bueno, amigo da casa, ele vaitrabalhar no Esporte". Paw! (Eduardo fazcara de espanto). (Eu) me fodi. O cara des-ceu, reuniu a equipe e disse: "Ó, atendi umfilho-da-puta lá em cima", isso depois eleme contou. "Um filhinho-de-papai, um es-croto, um canalha que foi lá pedir empregoao Fernando Ernesto. Ele vai trabalhar aquie nós vamos foder com ele". Eu ia começarna semana seguinte. E o meu irmão (Fer-nando Bueno) é fotógrafo e tinha trabalha-do anos na Zero Hora, tinha recém-saído. Ahistória se espalhou num rastilho de pólvora

pela Zero Hora e chegou na Fotografia. Umdos caras muito amigo do meu irmão na Fo-tografia ligou pra ele e disse: "Cara, o queé que teu irmão fez?". Meu irmão disse quenão sabia. O cara explicou a situação: "Elecriou uma porra aqui, o voo da maconha. Sóse fala no nome dele, tá toda a redação pre-parada pra destruir ele". "Mas o que é queele fez?" meu irmão perguntou. E o cara res-pondeu: "Não sei. Só sei que ele pediu em-prego, mandou que dessem emprego paraele e os caras vão foder com ele. Diz pra elenão vir". Meu irmão me liga e diz: "0 que éque você fez, seu idiota, seu animal, seu im-becil!" (imitando uma voz também ranzinzae exaltada). Meu irmão inclusive me trataexatamente assim até hoje ... Meu navio táindo embora 'sem mim! (aponta pela janelapara um cruzeiro zarpando do porto) Estoufalando sério, olha lá meu transatlântico.Porra! (risos da turma)

Breno - Eduardo, você falou em uma en-trevista em 1998 ao jornal Não que a figurado Peninha já lhe deu muita coisa, mas tam-bém já lhe tirou algumas outras. O que foique essa figura lhe tirou?

Eduardo - Ela dá um tom de falta de serie-dade, entendeu? Por isso que eu digo aquelafrase: eu só referendo o que eu escrevi. Euestou cagando para o que eu disse. O queeu digo não vale merda nenhuma, que, ali-ás, vale para essa entrevista de vocês. Eu sóbanco o que eu escrevi. Eu estou cagandopro que eu falo. Falo merda pra caralho ...Brincadeira (risos). Mas eu gostaria de ca-librar um pouco mais essa questão da se-

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riedade. o Peninha me deu esse nome queme protege. Depois vocês vão lá pesquisarsobre a história do Peninha, porque é do ca-ralho. Eu sou grato ao Boró por ter me ape-lidado. A primeira história do Peninha é ele,vegetariano, convencendo o dono (do jornalA Patada, onde o personagem trabalha) a vi-rar vegetariano e a fazer ioga! Puta que pariu,quase ejaculei (quando ele leu). (risos) O Pe-ninha, com o qual hoje eu me identifico, mepermitiu a criação de uma persona. Tanto éque o Augusto Nunes (jornalista que dirigiua redação do jornal Zero Hora quando Peni-nha foi editor chefe. Augusto é hoje da Veja)é um dos que diziam: "índios, crianças e oPeninha são imputáveis". Porque, cara, eu jáfiz tanta merda, já fiz tanta loucura que os ca-ras diziam que não podia ser possível.

É um personagem que me protege. Maso que ele me tirou? Quando eu tento trazeras coisas para um nível de seriedade maior,especialmente com os meus livros de histó-ria ... Costumam dizer que os historiadoresnão gostam (de seus livros historiográficos).Diz o nome de um! Não tem nenhum! Ne-nhum que tenha dito o nome e posto a cara.Só tem uma coisa assim corporativista, semnome, anônima, anódina, sabe? "A academianão gosta do Peninha". Quando vem o caracom o nome, depois eu digo todos os nomesdos caras que saíram em minha defesa ...Tem o Evaldo Cabral de Mello (historiador eescritor recifense). Tá bom, né? Eu podia pa-rar nesse, mas tem mais, muito mais. Nico-lau Sevcenko (historiador de São Vicente-SP,falecido em 2014), o maior ... Tem muitos. Oapelido me tirou um pouco dessa coisa daseriedade. Não que eu tenha tanto interessena seriedade. Mas é que, quando veio essacoisa do histórico e do confronto com a aca-demia, precisava de seriedade ... Os carasfalavam: "É o Peninha, se chama Peninha".Não é um apelido que referende muita ... Né?

Hélio - Não sendo um apelido que referen-de muita seriedade, muita carga de profissio-nalismo, como foi que você ganhou o apelido?

Eduardo - O meu irmão disse: "Ó, vocênão pode entrar lá. Você não pode". Isso erajunho. Eu fiz o primeiro semestre, entrei nafaculdade ... Era junho de 1976 e o cara dis-se: "Se entrar eles vão foder contigo direto".Eu entrei na faculdade em março de 1976 eera o pior pesadelo do mundo. Era ... Ele estáperdendo a foto, ó! Eu estou com as mãosassim (se dirige ao fotógrafo Jonas enquantoarqueia os braços para cima com os dedostensionados) e ele perdeu a foto. Ele veio doMaranhão, o entrevistado põe as mãos nacara, faz assim e ele só fez a foto porque eucontinuei com as mãos pra ele fazer.

Jonas - Depois você podia ficar mais bo-nito também, pra ajudar.

Eduardo - É. Depois você me faz umafoto abraçado com as meninas. Quando euentrei na Zero Hora, o jornal só saía de se-gunda a sábado. E o Correio do Povo (jornalpertencente à Rede Record), que era o jornal

11( ... ) abriu umputa de um cortena minha mão, acachaça (molhoua ferida): 'Aaah l",ardeu pra caralhol(...) Eis que o Boró

diz: "Contratamos oPeninha"

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Geração ou movimentobeat é um termo usado tan-to para descrever a um gru-po de norte-americanos,principalmente escritores epoetas, conhecidos no finalda década de 1950 e no co-meço da década de 1960,quanto ao fenômeno cultu-ral que eles inspiraram.

A entrevista estava mar-cada para às 15 horas dodia oito de novembro de2014, no Mareiro Hotel daAvenida Beira Mar - ondeEduardo esteve hospeda-do. O espaço foi um audi-tório de reuniões de frentepara o mar, cedido pelagerência do próprio hotel.

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Eduardo recebeu todosos membros da equipe àmedida que foram chegan-do, um a um. Assim se de-senvolveu o clima de maisde uma hora de conversase brincadeiras, antes mes-mo do início da entrevista.

Com Hélio e Ronaldo pre-parando o auditório do hotelpara a entrevista, Eduardoconversava com a equi-pe. Falou de seus hábitosde corrida - incluindo pelaBeira-Mar na noite anterior,onde contou exatamente 50prédios de apartamentos.

concorrente, não saía segunda. Eles tinhamum acordo meio tácito de um não sair nes-se dia e outro não sair no outro, como erafrequente em todos os grandes jornais. Duassemanas depois de eu entrar, o tal MaurícioSirotsky reúne toda a redação e diz assim:"Tenho uma boa notícia: Zero Hora vai pas-sar a circular aos domingos" - aí todo mundoque tava com o pau assim (levanta o ante-braço, imitando uma ereção) já ficou ... (de-cai o antebraço) - "Mas não se preocupem,vocês não vão precisar trabalhar sábado. AZero Hora de domingo vai ser feita sexta--feira depois de vocês terem feito o jornal desábado" (fala sorrindo). Que é o tal pescoçãoque existe até hoje! Quem fazia seis jornaispor semana passou a fazer sete sem ganharnada a mais! Só ele (o dono do jornal) pas-sou a ganhar mais com o jornal de domingo,que é o que mais vende até hoje! E não podiabeber na redação. Porém todo mundo deci-diu que na sexta-feira a gente ia beber, né?

Na época não tinha cocaína, essa drogamaravilhosa que te faz trabalhar mais propatrão pelo mesmo dinheiro que ele te paga

Pode?" (em referência à série de quadrinhos"Riquinho", lançada originalmente nos EUAna década de 1950, publicado no Brasil pelaeditora Rio Gráfica entre as décadas de 1960e 1980). Foi que um cara disse: "Não, vai lá,bebe". Porque também negar álcool é muitobaixo. Eu fui beber e fiz assim (se agacha),bati com o pé, uma garrafa bateu na outra,as duas caíram, quebraram, espalhou todaa cachaça pelo chão. E eu fui rapidamentejuntar os cacos, abriu um puta de um cortena minha mão, a cachaça (molhou a ferida):"Aaah!", ardeupra caralho! "Aaah!" (segura amão com a outra insinuando dor). Daí ficoucachaça, sangue, copo ... Eis que o Boró diz:"Contratamos o Peninha". O Peninha era orepórter do jornal A Patada, só dava cagadadentro do jornal. Pronto, respondi sintetica-mente. (risos da turma)

Breno - Você encontrou nessa época, ouaté hoje, alguma contradição entre a sua per-sonalidade e o trabalho jornalístico?

Eduardo - Olha, cara: eu tive um confron-to muito grande, desde o início, que era comessa coisa da suposta objetividade, sabe? A

liA História é uma fabricação. O cara queescreve, escolhe deixar fora algumas

coisas e dentro outras. Ele não pode ter apretensão de escrever a história total."

(quase sussurrando). Todo mundo era cacha-ceiro . E esses caras, se eles não bebessem apartir das 11 da noite, o cara começava a terum treco. Não podia beber no jornal. Assimcomo não pode fumar maconha em aviãoaté hoje, o que é um absurdo (após uma co-missária de bordo ter encontrado um "base-ado" no chão do banheiro da aeronave emque Eduardo estava - ainda em Guarulhos,antes da conexão para Fortaleza - e aciona-do a Polícia Federal, os passageiros do voopassaram quase duas horas sem poder sairdo avião) (risos). Os caras decidiram que iambeber. E fizeram - chegou na resposta agora- duas garrafas de cachaça com mel e dei-xaram escondido debaixo da mesa do che-fe, que já tinha voltado dos Estados Unidos,o tal Antonio Oliveira. Todo mundo tinha odireito a beber um talagaçozinho (um gole).Eu também era filho de Deus, embora nãofosse (sorri), e perguntei: "Eu posso beber?"Os caras disseram: "Não, não me diz que tubebes?" Eu digo: "Sim, eu bebo". "Ah, o Ri-quinho quer beber, o Richie Rich quer beber!

minha ligação com a palavra escrita e com aleitura sempre teve um viés esquizofrênico.Como eu falei, ela sempre foi fruto de umadesadaptação. Eu não me sentia adaptadoao mundo, então eu me refugiava no mundodos outros, no mundo da literatura e mes-mo no mundo da história. Porque o mun-do da história que eu sempre julguei comoliteratura também, porque a história é umafabulação, né... A história é uma fabricação!O cara que escreve escolhe deixar fora algu-mas coisas e dentro outras. Ele não pode tera pretensão de escrever a história total. Cla-ro que muitos historiadores têm um apreçogigante por serem fidedignos. Eu, no meutrabalho como jornalista, eu sempre me es-forcei o máximo para, não só ser objetivo ...Objetivo nunca me esforcei muito! Mas paraser fidedigno eu sempre me esforcei muito,porque eu sabia que a minha natureza de ge-miniano, de maluco, poderia me abrir portaspara desconfiança no meu trabalho. E eu sa-bia que a pedra angular na qual eu tinha deconstruir a minha carreira era o fato de ser

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fidedigno. Mas eu sempre vivi um confrontoenorme entre a matéria que tinha de ser secae distanciada e objetiva do desejo voraz, in-contido, de dar a minha versão da história.

Eu sempre odiei jornalista que escreve naprimeira pessoa, sabe? A não ser que vocêseja o Tom Wolfe, o Truman Capote, enten-deu? O Norman Mailer (os três escritoresestadunidenses citados são consideradospioneiros do New Journalism), entendeu? Aíescreve na primeira pessoa! Agora um bostaque vem escrever ... Agora eu sempre odieitambém matéria que não tenha o tom, a vozpessoal do cara. Eu sempre acreditei em ma-térias nas quais o repórter se põe, coloca asua visão. E deixa implicitamente claro queé um observador que tá escrevendo e con-

lêmica). Como jornalista, como pessoa queprocura se colocar no texto material e emsociedade, como é que você se sentiu, dadotodo esse episódio?

Eduardo - Olha, cara, de início eu sentiapenas uma raiva enorme que eu já tinhae tenho de redes sociais e dessas opiniõesanônimas ou não-anônimas desses (começaa gritar) imbecis de merda que nunca leramporra nenhuma e vêm escrever nessa mer-da de Twitter e Facebook! Eles que enfiemno cu a opinião deles! Porque o seguinte, tutem de ser qualificado para ter opinião. Masdepois até deixou de me dar essa raiva. Foio seguinte: eu e o Xico Sá temos uma rela-ção sensacional, né? Ele fica eventualmentepegando no pé dessa coisa do "gaúcho vea-

tando isso pra você. Foi assim que eu conse-gui meu espaço muito cedo na Zero Hora ...Eu tinha a ânsia, o desejo de fazer a matériacom um tom pessoal. O que eu vi eu estoucontando, não estou contando como se eufosse um fantasma, entendeu? Um observa-dor inatingível.

Hélio - Eduardo, considerando essa tuaposição em relação à fidedignidade e tam-bém a teu esforço, desde sempre, de te co-locar dentro do teu próprio trabalho, a gentechega a um ponto que foi todo esse proble-ma envolvendo a tua pessoa no Extra Ordi-nários (Um trecho do programa, onde Edu-ardo chamava o Nordeste de "aquela bosta"ganhou repercussão na Internet e gerou po-

do", de que só tem veado no Rio Grande doSul - que é maravilhosa. Porque, o seguin-te, quem conhece o Rio Grande do Sul e vaiem Bagé, no Alegrete, em Uruguaiana, né...Vá lá fazer piadinha de "gaúcho veado" pravocê ver o que é que acontece. Os caras sãotão machos, tão machos, especialmente lána fronteira do Uruguai com a Argentina ... Emachista e sexista. E uns carnívoros, come-dores de carne, que tem mais de pegar no pée chamar de veado mesmo. E dentro dessabrincadeira que a gente faz com preconcei-tos, o Xico Sá pega no pé...

E eu estava falando ... Era (o jogo da Copado Mundo de 2014 entre) Holanda e Espa-nha. E, na santa ignorância das pessoas, os

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David e Nathanael che-garam em cima da hora.No aguardo, Eduardobrincou que sempre con-cede sete minutos de to-lerância para qualquer jor-nalista. A dupla conseguiuchegar às 14h58min, doisminutos antes do horáriomarcado, e nove da "tole-rância" de Eduardo.

Eduardo não cansou decortejar as quatro entrevis-tadoras - entre elogios ebrincadeiras durante todo ocontato. Uma pena, segdo ele próprio, que a e _vista contasse tambempresenças mascurnas..

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Durante o programa Ex-tra Ordinários, na ediçãodo dia nove de novembro,Eduardo agradeceu à equi-pe da Revista Entrevista eao professor Ronaldo Sal-gado pelo convite. Ele es-tava fantasiado de porco,graças a uma aposta internado programa.

Quem sugeriu o nomede Eduardo Bueno para oprojeto foi Hélio Grangei-ro, que já lia sobre o escri-tor e usou de uma expan-siva argumentação sobrea quantidade de históriasque o jornalista e escritorpoderia ter para contar.

caras nem sabem que Espanha e Holanda ti-nham travado uma batalha por Salvador em1621, porque era ainda a União Ibérica, por-tanto o Brasil ainda era uma colônia de Por-tugal, que por sua vez estava vinculado, tinhasido engolido pela coroa da Espanha. E a Ho-landa estava travando com a Espanha umaguerra de independência. Os países estavamsob domínio espanhol e eles (holandeses)atacaram o Brasil também como uma formade atacar a Espanha, e travaram essa batalhaem Salvador. E eles iam jogar em Salvador:Holanda e Espanha! Porra, cara, era um mo-mento ... E eu estava dizendo: "Eles estavamatacando lá..." E o Xico Sá: "Sim, a partemais rica do Brasil". E era mesmo. Eu disse:"É, sim, aquela bosta lá". Dentro da nossacoisa (da brincadeira entre ele e Xico Sá) econtinuei a história que eu estava contando,que era uma história interessante. E pegaramessa parte "aquela bosta", "aquela bosta". Ebotaram lá na Internet, Twitter e Facebook.Mas eu digo: "Tá, tá, mas eu não me conhe-ço, eu não vou ter um ataque histérico".

Cara, eu conheço o Nordeste inteiro, to-dos os lugares. Cara, eu conheço o Raso daCatarina (área de atual preservação ecológi-ca, na Bahia)! Eu fiquei uma semana lá pe-gando a vibe - a vibe! (gíria, a sensação) - do

Raso da Catarina! Porque ia virar um depósi-to de lixo nuclear. Quando descobri que exis-tia um lugar que era abaixo do nível do mar,que era um lugar selvagem, intocado, ondeo Brasil estava planejando jogar lixo nucle-ar, eu não só me vinculei à campanha contrao lixo nuclear ser jogado lá, como fui paraver onde era o lugar. Eu conheço a Serra dasConfusões, cara, que é do lado ali da Serra daCapivara (ambas no Piauí). Conheço a Serrada Capivara, com as suas pinturas rupestres.Conheço aquele indício de fósseis brasileirosna Paraíba - esqueci agora o nome - os carasestão roubando os fósseis brasileiro há anos.Conheço a Pedra do Ingá ...

Jadiel - Sousa (na Paraíba).Eduardo - Sousa, é. Conheço essa porra

inteira! Li tudo o que tinha de ler! Conhe-ço estado por estado da porra do Nordeste!Conheço a história e a arte da região! E ocara vem encher o meu saco (começa a gri-tar) dizendo que eu sou contra o Nordeste!Eles que vão tomar no cu! Eles têm todosos evangélicos do mundo para lutar con-tra! Os evangélicos que estão proibindo asestátuas de orixás na Lagoa de Abaeté (nomunicípio de Itapuã-BA)! Eles têm todos osempresários filhos-da-puta nordestinos queconstruíram 50 prédios nessa orla (refere-se

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à orla fortalezense)! Mil e quinhentos apar-tamentos têm aqui nessa merda, somando.Não tem nem sol nessa merda. Não podetomar nem banho, a água é poluída. Vãolutar contra essas porras, contra as merdasda OAS, da Odebrecht (grandes empresasimobiliárias), esses cânceres brasileiros.Vão lutar contra esses senhores de enge-nho, esses produtores de cana, esses filho--da-puta! Eles são os inimigos do Nordeste!Não eu! Eu que sempre amei ... Vão tomarno cu! Vão pra puta que pariu! E, se quiserduelo, tem duelo! Se quiser que seja comarma, é com arma! Eu prefiro com palavra.Então é isso. (risos da turma, após a gritariadurante toda a resposta)

Jadiel- Depois a gente vai falar dessa coisade amor e ódio que você sente pelo Nordeste ...

Eduardo - Pelo Nordeste eu só tenhoamor! Verdade!

Jadiel - Eu acredito que essa questãotenha sido também por um fator de exposi-ção. Você está na televisão. Mas você tam-bém já quis entrar na onda de historiadormesmo. É tanto que você desistiu de jorna-lismo por um tempo, lá pelos anos 90, nãoé? Como é que você voltou para a Comuni-cação? Você abandonaria de novo? Por queé que você continua fazendo jornalismo deesporte, por exemplo?

Eduardo - O meu trabalho ligado à his-tória é basicamente de jornalista. Nunca dei-xou de ser. Eu nunca deixei de me sentir jor-nalista. Talvez agora eu esteja deixando deser porque eu estou escrevendo meu primei-ro romance. Mas até então toda essa minhaobra ligada à história do Brasil é basicamentea obra de um jornalista. Meus livros, na mi-nha opinião, já disse isso em várias entrevis-tas, têm o que o jornalismo tem, aspas, demelhor. O que o jornalismo tem de melhor? Éum texto fluido, é um texto direto, é um textoque não enche o saco do leitor nem ofere-ce as coisas de mão beijada para o leitor. Eugosto de algumas coisas que o capitalismooferece, que é essa coisa do mercado. Eupassei a minha vida inteira vendendo notícia,no melhor sentido, no jornalismo. E depoiseu resolvi vender eu mesmo as minhas pró-prias notícias, que estão ligadas à história doBrasil. Porque eu achava que a minha visãoda história do Brasil era mais lúdica, era maisluxuriante e se adaptava a esse tipo de texto.Mas isso nunca deixou de ser uma forma doexercício do Jornalismo.

E o que o jornalismo tem de mais trági-co? A fragilidade, mesmo. Não há espaçopara tanta reflexão, nos modos acadêmicos.E ele se permite, e é uma vantagem e umadesvantagem, o pano rápido, as abrevia-ções, as simplificações. Minha obra foi feita

toda muito conscientemente com base nis-so. Eu abandonei o jornalismo diário. Espe-ro que Deus me abençoe o suficiente paranunca mais ter de lidar com as empresasjornalísticas. Ao mesmo tempo, eu sempretive um lance ligado com a TV. É óbvio, por-que todo mundo que me via desde quandoeu era repórter na Zero Hora ... Porque eunão sou uma pessoa que passa exatamen-te despercebida, até por causa do tamanhodo nariz, etecetera e tal. E quando estou pe-lado, por causa do tamanho do pau. Estoubrincando, inclusive porque ele é minúsculo(mostra o tamanho com o polegar e o indi-cador). Mas eu não sou exatamente o caraassim ... "Quem é essa pessoa discreta quepassou por aqui?" (risos da turma) Váriaspessoas já pensaram: "Pô, esse cara tem depôr na TV, não é?" Que é o lugar dos histri-ônicos. Sempre muito cedo eu tive convitepara TV. E veio de novo esse convite (parao Extra Ordinários). PÔ, era o Xico Sá, umcara que eu gostava, era a Maitê que eu ...Até porque a Maitê é inacreditável. Uma daspessoas mais incríveis que conheci! Supe-rinteligente e qualificada, fala tudo o que élíngua. Inclusive língua do Pê (risos). Fala ja-

EDUARDO BUENO 1119

Hélio tomou conhecimentoda pessoa e obra de Peninhaatravés da tradução do On theRoad, do escritor norte-ame-ricano Jack Kerouac, símboloda Geração Beat

Eduardo não só traduziuOn the Road como tam-bém percorreu o caminhodescrito na obra de Kerou-ac. Peregrinar faz parte doestilo de vida de Peninha,que já contou diversas ve-zes como ele e os gaúchos"desvirginaram" as praiascatarinenses.

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Peninha, personagemda Disney e inspiraçãopara o apelido de EduardoBueno, é um pato desas-trado que trabalha comojornalista no jornal A Pa-tada. Ganhou muita popu-laridade no Brasil a partirdos anos 60.

Os estadunidenses DickKinney e AI Hubbard cria-ram o Peninha, original-mente Fethry Duck, em1968 em homenagem àgeração beato A atribuiçãoa Eduardo não parece tersido mera coincidência.

"(...) resolvi vendereu mesmo as

minhas própriasnotícias, que estão

ligadas à história doBrasil. Porque eu

achava que a minhavisão da história

do Brasil era maislúdica"

vanêst É a mulher que fala javanês. E o Pau-lo Miklos, que eu conhecia desde a épocados Titãs (se refere à época antiga da ban-da). Então, me convidaram pro programa.

Eu não ia ficar me reprimindo. Eu sabiaque alguma coisa poderia dar merda. Masessa que deu aí, para mim, nem é merda (re-fere-se à polêmica sobre o Nordeste). Por-que eu estou consciente do que eu fiz. Eutenho absoluta certeza que era brincadei-ra. Depois teve aquele meu desabafo, tipoesse, que eu mantenho cada palavra, cadavírgula. E é o seguinte: eu acho que tem es-

sas merdas de Twitter e Facebook que enfiea opinião no cu! Por favor, tem como ser otítulo da matéria isso? No cu! Eu só leio opi-nião de quem tem opinião pra dar. E pra teropinião pra dar precisa ter um currículo portrás, cara! Você tem de ter lido, você tem deter se posicionado, você tem de ser alguémna porra da vida, entendeu?

Mas também um limitado desses, vouesperar que um nordestino tenha lido ... Vo-cês leem no Nordeste? (risos e brincadeirasgeneralizadas) Não, mas eu queria falar pravocês uma coisa legal do Nordeste, agora fa-lando sério, que pra mim é importante ... Eununca tive preconceito com o Nordeste por-que era um conceito, e isso é muito legal dediscutir. Verdade: todo mundo que nasceuno Rio Grande do Sul tem, a priori, a certe-za de que o sulista é superior ao nordestino,e não é exclusividade de vocês, porque naverdade o sulista, no caso específico do gaú-cho, já tem meio certeza de ele é superior aquase qualquer coisa ... Talvez não mais queo argentino, porque o argentino tem absolu-ta certeza que ele é dono do mundo!

Oavid - Isso seria um preconceito con-sigo mesmo? Em relação a ter certezasindubitáveis de .

Eduardo - É, se bem que também éisso que eu quero dizer. Porque "preconcei-to" é uma coisa que tu tens antes de pensar,né? Se bem que os caras nem pensam nis-so, então sim, nesse sentido é um "precon-ceito" porque já tá "pré-concebido", por-

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que é uma condição inata. E eu me lembroa primeira vez que - e agora estou falandosupersério, e queria compartilhar com vo-cês porque nunca compartilhei isso publi-camente. A primeira vez que eu pensei quetalvez, quem sabe, o Rio Grande do Sul nãofosse superior, por exemplo, à Bahia. Por-que na verdade o "preconceito" se dá detal jeito - e eu acho que vocês devem saberdisso - que para o sulista "médio", o Nor-deste é tudo Bahia. Daí eu devia ter uns 15anos, andando na rua e pensei "PÔ, Caeta-no, Gil, Jorge Amado ... Poxa, não tem nadanem parecido aqui no Rio Grande do Sul!"E música é o seguinte: (gritando) tinha deter uma lei contra a música gaúcha! TipoMPB, claro que não a música gaúcha de raiz- que é do caralho! Eu digo essas coisas aí,Engenheiros do Hawaii, essas coisas ... Tá,literatura: "Tem o Érico Veríssimo. Mas oÉrico Veríssimo ... Ah, prefiro o Jorge Ama-do ... PÔ,será que a Bahia se equipara ao RioGrande do Sul?" Juro. Porque é uma coisaque estava introjetada - hoje mudou, masaté os 80 estava -, sabe o Sul Maravilha? DaGraúna (personagem do cartunista Henfil),aquela coisa. Sul Maravilha! Cheio de "ale-mão", as pessoas são loiras dos olhos azuis- que nem eu (Eduardo é moreno, tem olhose cabelos castanhos).

Cara, mas era isso, e é incrível: se aindapegar umas certas facções e for conversara sério com os caras, eles vão achar queo tema talvez não seja relevante: porque éindiscutível a superioridade do Sul sobre oNordeste. E, quando tu paras pra pensar:aquela porra nem Brasil é! (risos) Para o beme para o mal, porque tem um lado bom denão ser Brasil também, sério, tem um ladomais "civilizado". No Brasil "neguinho" joga

lixo na rua... Hoje eu vi umas pessoas jogan-do lixo aqui na praia "assim" (gesticula), e éimpressionante. E tem um outro lado que éBrasil, igual aqui (Ceará). E aqui é um milhãode vezes mais Brasil: a arte, o artesanato, acomida, o clima, o comportamento, as rela-ções humanas são muito mais o que o Brasilsupposed to be do que lá. É aquilo que eufalo: Salvador é de 1549, Porto Alegre é de1773... São 220 anos. Aquela merda lá só ti-nha neve. Lá naquela porra, aquilo faz frio.

Hélio - Considerando isso que você faloude que mesmo como historiador nunca deixoude ser jornalista, inclusive pela linguagem, pelomodo de apresentar: que pontos negativos epositivos você acha que essa linguagem enri-quece ou empobrece a historiografia?

Eduardo - Primeiro eu tive a ideia de fazeresses livros já baseado nos livros que outrosjornalistas já tinham feito antes de mim, porquem nem morro totalmente de amores. O

JlE música é oseguinte: (gritando)tinha que ter umalei contra a músicagaúcha! Tipo MPB,

claro que não amúsica gaúcha

de raiz - que é docaralho!"

EDUARDO BUENO I 121

Na pesquisa e produ-ção, o material que maischamou a atenção de Hé-lio e Jadielfoi uma entre-vista de 1998 para o jornalNão, cuja ideia inicial eraser "um boletim de convi-vência". De linguagem eramuito descontraída, lem-brava o Pasquim.

Eduardo Bueno e XicoSá - entrevistado na ediçãoanterior -, além de amigos,são colegas na apresenta-ção do Extra Ordinários,que faz parte da programa-ção do canal SporTV desdeo período da Copa do Mun-do de 2014.

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o new journelisrn foium gênero jornalísticosurgido na imprensa dosEstados Unidos, na dé-cada de 60, Classificadocomo romance de não-fic-ção. A principal caracterís-tica é misturar a narrativajornalística com a literária.

Ao passo que Hélio e Ja-diel apresentaram a "figura"de Eduardo, uma das gran-des inseguranças do grupoesteve no trato com o entre-vistado. Ana Maria chegou arevelar um certo "( ...) medode falar alguma besteira eser cortada por ele".

(jornalista) Fernando Moraes é um cara quejá tinha aberto essas portas ao fazer o Che-teau e muito antes disso o Diga e inclusiveaquele A ilha (livros-reportagens biográficos,respectivamente, sobre Francisco de AssisChateaubriand Bandeira de Mel/o, Diga Bená-rio Prestes e sobre Cuba). Depois o (jornalista)Rui Castro, cujas biografias são basicamentehistória. É a história da bossa nova, a históriado Garrincha ... Aquelas outras porras que elefez lá. E o (escritor e cientista político) JorgeCaldeira que escreveu Mauá - Empresário doImpério. Mas qual é a diferença desses caraspra mim? A diferença é que esses caras escre-veram ou sobre o século XX ... Todos, porque,na verdade, embora o Mauá (lrineu Evange-lista de Sousa, Barão de Mauá) seja do século

XIX, ele é o arauto do século XX, ele é o caraque anuncia o século XX para o Brasil. E sãotemas que estavam mais ou menos esqueci-dos e desconhecidos pelas pessoas.

Eu peguei o que todo mundo sabia, queera aquela porra do colégio, que era didáti-co ou coisa que estava desde a cartilha até aporra do vestibular, que era o descobrimen-to do Brasil, Cabral (Pedro Álvares Cabral) edei essa outra roupagem, com o intuito es-pecífico de ajudar a história a se libertar dobanco escolar- que foi o que eu fiz! Os livrosvenderam mais de um milhão de exempla-res! E a história virou tema de discussão embar, neguinho se encachaçando e dizendo:"Porra e aquele livro lá do Peninha, 'Náufra-

gos, Traficantes e Desgraçados'?", que nemum cara chamou (fala rindo). É Náufragos,Traficantes e Degradados, né, bá! Depoisdisso, natural, abriram-se as brechas parao (jornalista) Laurentino Gomes, LeandroNarloch (jornalista e escritor), Pedro Dória(jornalista) ... Que, porra, vocês não vão mefazer falar sobre isso. PÔ, mas, Ó, faltou fu-mar, entendeu? Nunca fumaram. Ninguémque não fuma ... Aliás, quem aqui de vocêsque fuma baseado?

Orielle - A sua iniciativa de escrever histó-ria, história do Brasil, partiu do fato de você veralgum problema na historiografia brasileira?

Eduardo - Não, olha só, eu já falei issooutras vezes, mas quero repetir pra vocês. Oturning point (transformação) da minha vidafoi o dia em que eu vi o Bob Dylan a primei-ra vez na minha vida. É que eu menti váriasvezes pra mim mesmo, pras pessoas que ti-nha sido o dia oito de março de 1974. Mas eu

JJEuVOU ser umprofeta com a

garganta cheia detrovões, que nem o80b Dylan é. E nem

que eu tenha deficar pregando nodeserto - e é issoque eu vou fazer."

sempre soube que foi no dia oito de marçode 1975. O disco que eu digo que eu ouvinão tinha saído em oito de março de 1974.Eu não poderia ter ouvido, a não ser que eutivesse ouvido vozes (diz "vozes" fantasma-goricamente, arqueando os braços). Ooh!Ele fez a foto agora quando eu disse 'voo-zes' (refere-se ao fotógrafo). Se eu não gos-tar dessas porras dessas fotos que você táfazendo, você tá fodido, Ô, maranhense. Eudou um telefonema pra minha amiga Rose-ana Sarney e você tá morto. (risos da turma)

Quando eu ouvi o Bob Dylan eu disse:"Vou me rebelar, eu vou passar a vida inteirasendo rebelde, ninguém nunca mais vai dizero que é que eu tenho de fazer ou deixar defazer. Eu vou ser um profeta com a gargan-ta cheia de trovões, que nem o Bob Dylané. E nem que eu tenha de ficar pregando nodeserto - e é isso que eu vou fazer. É isso

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(repete três vezes) !" É essa voz, é essa revol-ta, é esse repúdio ao status quo, aos caretas.Minha paixão por ele foi tão grande que qual-quer coisa minimamente relacionada a eleme interessava. Tanto é que muito rapida-mente eu cheguei no On The Road (livro sím-bolo do movimento beat, de autoria de JackKerouac), que foi o livro que eu viria a tra-duzir. Mas eu comecei a me interessar muitopor história dos Estados Unidos também. Eucheguei naquele livro que era um best-sellerno Brasil em 1973, e isso era 1975, Enterremmeu coração na curva do Rio - Bury My Heartat Wounded Knee -, do Dee Brown, que é umhistoriador que escreve como se fosse umjornalista brilhante, que conta como é que osíndios norte-americanos foram massacrados

desde o primeiro contato. Que todo mundosabe do massacre dos índios americanoslá, pelos cowboys, na década de 1860, osíndios-sul Apaches, Comanche, das grandesplanícies. Mas eles começaram a ser mor-tos já ali onde hoje é Boston, Nova lorque,ele conta desde o início. E eu pirei e concluíque era óbvio que só podia ter sido assim noBrasil também. Porque, cara, o seguinte: osíndios mal apareciam na história, né, cara?A não ser que por meio de um indigenista,claro, o Darcy Ribeiro ... Mas os livros de his-tória, as história dos índios (bate uma mãona outra balançando a cabeça pros lados) ...

E começou aquela trip de índio. Foi atéquando eu comecei a ir pra Santa Catarina,

as praias de Santa Catarina eram virgens,os gaúchos que descobriram Santa Catari-na e eu fiz parte da primeira geração ... Eu fuilá: "Vou tomar aqueles cogumelos" e entreinuma (Iombra) de que era índio. "Bá, souíndio, eu sou pelado, vou viver que nem ín-dio ..." (fala isso em voz lenta). Mas eu nuncafui muito burro. (Eu) me perguntei: "E se osíndios daqui fossem uns atá rios, uns escro-tos e uns trouxas? Quem eram os índios queviviam aqui?" Eu fui perguntar quem eramos índios de lá, ninguém sabia. Porque San-ta Catarina não tem história, é tão ... SantaCatarina não tem história (grita)! E o Paranátambém não (sussurrando), porque o RioGrande do Sul inventou uma visão de históriapra si, que é falsa, mas acredita e mantém.

Criou uma identidade cultural e histórica dogaúcho, a Revolução Farroupilha, o caralho!Tudo mentira, mas acredita, e é legal e é docaralho! O Ceará também! - mesmo sendoessa porcaria aí. Criou-se uma identidade cul-tural. Existem uns lugares que não criaram!Sabe? Santa Catarina, Paraná são um lugarque fica entre Rio Grande do Sul e São Pau-lo. Ninguém sabia nem quem eram os índios.Eu comecei a pesquisar pra caralho os índioscatarinenses. Concluí que eu queria escreversobre os índios e o primeiro contato (com oeuropeus). Era um sonho antigo, que depoiseu mudei e escrevi pelo olhar eurocêntrico, (olivro) que se chama Viagem do Descobrimen-to. Vem um monte de idiota e diz: "Mas não

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O professor Ronaldo Sal-gado confessou ter passadopor preocupação semelhan-te à de Ana Maria, tendoconsiderado - por algunssegundos - pedir a Eduardoque "pegasse leve" com aequipe. Consideração que,felizmente, não se realizou.

Outros integrantes daequipe reveleram tentar, deinício, uma posição analí-tica de "expectadores" daentrevista, para melhor sesituar em relação àquelapersonalidade instável quese apresentava ao grupo.

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Peninha sabia com o queestava lidando: por vezespercebendo a insegurançado grupo, brincava, incen-tivava e provocava. "Denove pessoas, só eles doisquerem perguntar coisaspra mim, é isso?"

Eduardo costuma - assu-midamente - se estender emsuas respostas, dificultandoo controle do tempo. Che-gou a brincar com o profes-sor Ronaldo: "Para de olharpro relógio, isso é falta deeducação, cara!"

foi descobrimento, foi invasão" (faz uma vozaguda e enjoada). Tá bom, foi uma invasão.Vai tomar no eu, escreve teu livro A Viagemda Invasão e vê se vende (grita)! Té, pronto.

Ana Maria - Eduardo, de todos os livrosque você já escreveu, qual você considerao melhor?

Eduardo - É um livro que todos vocês de-veriam comprar. Chama-se A Coroa, a Cruze a Espada. É o quarto volume da coleção"Terra Brasilis". Mas ele demorou tanto tem-po pra sair que as pessoas acham que a co-leção "Terra Brasilis" são três volumes só.Demorou por causa de um monte de merdaem que eu me meti, a minha vida sempre foimuito tumultuada. Eu nunca tive um planode carreira nem nunca vou ter. Até talvez de-vesse ter. Porque, por exemplo, esse aí (o Ro-naldo) tem aposentadoria garantida, eu nãotenho aposentadoria ... Foda, hippie é foda!Maconha destrói uma parte do cérebro dapessoa. E aí...

Jadiel - E qual o pior?Eduardo - Não, nenhum! Cala a boca! Eu

vou chegar lá. Não tem nenhum ruim! Nãotem nenhum ruim! Não tem nenhum nemmais ou menos! (grita) Depois eu falo, vouchegar lá. (O melhor livro) é A Coroa, a Cruz

e a Espada, que são a origem da corrupçãono Brasil. É a chegada do Tomé de Souza praconstruir a cidade de Salvador. É o GovernoGeral. E ele vem com dois corruptos - elevem com muitos corruptos, mas ele vemcom dois corruptos de grande poder. O pri-meiro ministro da Justiça do Brasil, que eraum dos desembargadores, chamado Ouvi-dor Geral, o desembargador Pedro Borges,um corrupto, ladrão, com provas documen-tais. E o primeiro donatário do Ceará, Anto-nio Cardoso de Barros, que era um filho daputa total que foi um dos únicos donatáriosque não vieram - porque era obrigado a vir.Mas ele tinha as costas tão quentes com o reique ele não veio. Só dois não vieram, o Joãode Barros (e o Antonio Cardoso de Barros) ...O João de Barros era um gênio da língua. OJoão de Barros pode fazer tudo, porque gê-nio pode fazer tudo. E não veio, porque erano Maranhão. PÔ, no Maranhão, né, cara?Imagina (a dificuldade da época) pro cara irpara o Maranhão, né? Ele disse: "Ô, Rei, euganhei o Maranhão aqui. ..tr O Rei: '~h, noMaranhão não precisa ir".

E o outro era o Ceará. Com todos os seusproblemas, era o Ceará. O cara podia ter vindo,pra Jericoacoara, porra, um lugar do caralho o

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Ceará. O cara podia ter vindo. Não veio porquetinha as costas quentes. E veio pra Salvador,em 1549. Ele tinha de ter vindo em 1532, 1533,no máximo 1534, pro Ceará. Passaram-se 15anos e ele veio pra Salvador como Ministro daFazenda,como servidor-moro

Ana Maria - Por que é o melhor livro?Eduardo - Porque é um livro muito reve-

lador para o Brasil e trata de assuntos de umjeito que nunca ninguém tratou antes. Porexemplo, a morte do bispo Sardinha, que eraum corrupto, que era um canalha também,que mereceu o fim que teve, comido pelosíndios Caetés. Não tem nenhum texto noBrasil que reúna, nenhum livro no Brasil quereúna tanta informação sobre o bispo Sar-dinha. Não tem nenhuma informação nova.Nenhum livro meu tem nenhuma informaçãonova, que ninguém saiba. Se eu tivesse des-coberto algo que ninguém nunca tinha fala-do, eu tinha saído nu pintado de azul, preto ebranco (cores do seu time) gritando: "Desco-brimos, porra!" Mas eu nunca descobri nada.Até porque eu nunca pesquisei em arquivosem fontes originais, eu só pesquisei em li-vros de outros que estão citados ali.

No entanto, eu tenho uma enormidade delivros e eu tenho livros de 1800 e tanto. E eufaço uma releitura desses livros muito maispotável, muito mais palatável. Por exemplo,o bispo Sardinha: não tem nenhuma novida-de sobre o bispo Sardinha. Mas ninguém fezum perfil tão completo e juntou tudo o quese sabia sobre ele do jeito que eu juntei. Es-tava tudo esparso. E botei tudo ali, sobre amorte dele. E o Walter Salles (diretor do filmeOn The Road, 2012, adaptado do livro de Ke-rouac) vai filmar o episódio do bispo Sardi-

"Nenhum livromeu tem nenhumainformação nova,. ,

que runquernsaiba. Se eu tivesse

descoberto algo. ,que runquern

nunca tinha falado,eu tinha saído nupintado de azul,preto e branco."

nha, baseado no A Coroa, a Cruz e a Espada,informação em primeiríssima mão, num fil-me que vai se chamar Sardinha. Com roteirodo brilhante, do admirável, do inigualável. ..Eduardo Bueno (todos riem).

Amanda - Você falou de a história estarpresa nos bancos de escola. Isso é uma coisaque você sentia quando ainda era estudante?

Eduardo - Sim, pra mim era um tormen-to. As minhas aulas de história foram umtormento. Os meus professores de históriaeram horrorosos. Com exceção de um queera ótimo, chamado Arno Kern, que é o maiorarqueólogo do Sul, da história do Rio Grandedo Sul até hoje. Porém, ele entrava na aulae a primeira coisa que ele dizia era "Bueno,rua" (ri). Estou falando sério, porque eu tinhacerteza, na época, que eu sabia mais históriaque ele. Eu queria falar mais que ele na aula.Ele entrava e já me mandava pra rua direto.Eu nunca consegui ter muita aula com ele.Ele era meio prepotente, mas, porra, é queele não tinha saco pra mim, com toda a ra-zão. Eu tenho 56 anos de idade e sou assim,você pode me imaginar com 16, né? Eu nãoera muito diferente do que eu sou com 16,porque eu já tinha ouvido Bob Dylan. Mas eutinha 16, então você pode imaginar que nãoera muito fácil aguentar. Tá, mas daí. .. Qualera a pergunta antes que eu não terminei deresponder? (comenta-se tentando relembrara pergunta anterior) Faltou uma coisa. Qualera a pergunta anterior?

Jadiel - Era falando sobre o livro edepois foi ...

Eduardo - ...Ah, o melhor livro e depoisesse imbecil aqui (se referindo Jadiel) per-guntou qual é o pior. Nenhum, filho da puta!

EDUARDO BUENO I 125

A conversa com Peni-nha seguiu por um tempode precisas três horas - amais longa entrevista des-ta edição. Contamos coma compreensão do profes-sor Ronaldo para uma edi-ção mais extensa, buscan-do a valorização máximadeste conteúdo.

Por diversas vezes oprofessor Ronaldo foiquestionado sobre o usode "palavrões" na Revis-ta Entrevista - por alu-nos, convidados e a pró-pria Universidade. "Masse eles falam, o que éque a gente pode fazer?Pedir pra serem maiseducados? Não!"

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"(...) a minha modéstia não só é maior quetodas as de vocês juntas, como se vocêspegarem todas as modéstias de vocês e

somarem, não dá metade da minha."

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No material bruto, antesda edição, a palavra "eu"foi citada aproximadamen-te 30 vezes. Seguida dapalavra "foda", que, na for-ma de verbo ou substan-tivo, foi utilizada 26 vezespelo nosso entrevistado.

Protagonista de umapolêmica em brincadeiraofensiva à Região Nordesteno Extra Ordinários (Spor-TV). Eduardo foi, ao con-trário, sugerido para a En-trevista devido à relevânciade sua produção literária ecaracterísticas de sua per-sonalidade excêntrica.

liA grandeza é queabriu o horizonte

da História para umnúmero de pessoas

que nunca tinhanem se interessado

por História,e de um jeitoespetacular."

Lê todos, são 33. Se você encontrar um queseja mais ou menas, me diz que eu te rodo.Não; porque quando surgiu essa discussãosem nome ... "Os historiadores não gostamdo Eduardo Bueno". Sim, os historiadoresnão gostam do Eduardo Bueno. Qual é onome do historiador? Eu queria conhecer.Eu sou uma pessoa tão cordata, sempre tãodisposto a ouvir o outro, não é mesmo? Enunca defendendo as minhas posições comveemência. Sou uma doce pessoa, então porque não me trazem esse historiador? Porquenunca nenhum filho da puta botou o nomeà cara. É sempre assim: "A academia nãogosta". O que é verdade. Não estou dizen-do que não seja verdade. É verdade, mas éaquela coisa corporativista. Quem não gostade mim, na real, é professor de história e dosegundo grau. Na universidade também, al-guns não. Mas nunca vieram ...

Historiador de renome, de nome ... Todosque eu admiro e respeito saíram em minhadefesa: Lily Shwartz, Ronaldo Vainfas - queé o consultor da coleção (Terra Brasilis) -, oNicolau Sevcenko, o Alberto Costa e Silva,o Evaldo Cabral. Todos os que eu admiro erespeito, todos me defenderam sem eu terfalado com eles, sem eu ter pedido, dizendouma coisa. No frigir dos ovos eles quiseramdizer o seguinte: "Olha a grandeza" - e aí nãoprecisava dizer, elegantemente, mas nas en-trelinhas estava claro - "e a pequenez doslivros de Eduardo Bueno". A grandeza é queabriu o horizonte da história para um núme-ro de pessoas que nunca tinha nem se inte-ressado por história, e de um jeito espetacu-lar. A pequenez é que, em termos de análisehistoriográfica, não tem nenhuma novidade.Mas eles próprios dão uma volta: "Mas nãoé ao que se propõe". No que se propõe, deserem livros de divulgação, de serem livrosde compartilhamento da história ... Porra!

Do caralho! Todos eles disseram a mesmacoisa, entendeu? Todos são bons de ler, sãobem escritos, todos eles são gentis, são ge-nerosos. Que nem eu, que sou uma pessoagentil e generosa (sorri).

Não, mas daí, no meio dessa confusão,dizem assim: "Escreveu uma biografia dosMamonas Assinas", que é o meu primeirolivro. Eu digo: "Leu, filho da puta?" "Não, eunão li". "Então vai tomar no teu eu", Compra,custa três reais, na estante virtual, a biografiados Mamonas Assassinas. É um exemplo deNew Journalism. O cara me ligou (o editor),eu nem conhecia os caras. Aliás, conhecia eodiava. Típica posição de jornalista. Pegueisó pelo dinheiro. Virei fã, sou fã dos Mamo-nas Assassinas. E a história eu conto desdeos avós. Conto a história dos avós deles, dospais deles e deles. Até o momento que elesentram no avião. E o avião, no meu livro, nãocai. É um livro oportunista com relação à situ-ação. Entretanto, não é um livro de conteúdooportunista. Era um resgate da história delese ainda do cara lho, porque eu sou um gênio,como vocês perceberam, especialmente es-sas meninas aqui. Inclusive você (Jadiel) po-dia passar para o lado de lá, que daí eu podiaficar olhando só pra cá (todas as meninas,Amanda, Ana Maria, Drie//e e Mariângela es-tavam sentadas lado a lado na parte direitada roda de entrevista. Jadiel estava do mes-mo lado). Às vezes eu olho pra cá e te pego(sem querer). Essa parte, por favor, consta namatéria. (risos da turma)

Oavid - Em uma de suas entrevistas (ante-riores) você falou que o Brasil é o pior e o me-lhor lugar pra se viver, ao mesmo tempo. Yine Yang. Eu quero saber de você, tendo todoesse embasamento de estudos em relação aoBrasil do passado, como é que você analisao Brasil de hoje, os Brasis de hoje. Ouais asmelhores qualidades e piores qualidades?

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Eduardo - É aquela frase maravilhosa,que virou chavão, mas mesmo sendo chavãocontinua valendo "o Brasil não é pra princi-piantes", do (compositor) Tom Jobim. O Bra-sil não é para amadores. É um país dinâmico,complexo que você pode reducionistamenteconsiderar só uma merda, porque tem umlado que o Brasil é uma merda. E naque-la história: o Nordeste é uma bosta? Minharesposta foi sim, o Nordeste é uma bosta. Eeu quero dizer aqui de novo: o Nordeste éuma bosta. Por que o Nordeste é uma bosta?Porque o Brasil é uma bosta. Quando tu co-nheces os países realmente desenvolvidos,complexos e dinâmicos, tu vês que isso aquié uma Idade Média, isso aqui é uma merdade lugar. E por que o Brasil é uma bosta? Por-que o mundo é uma bosta! E por quê? Por-que os humanos são uns bostas! Tem aquelafrase do (escritor) Bernard Shaw: "Não sei seo humano é um anjo que caiu ou um animalque enlouqueceu". Mas é uma coisa no meio(rindo).

É o seguinte: se você é jornalista ouvocê é escritor e não ficcionista, você temde aprender (a separar sua posição pessoalda sua produção profissional) - e eu aprendigraças à coisa do Grêmio ... Eu era fanáticopelo Grêmio e escrevia sobre esporte. Cara,pra mim foi facílimo não misturar uma coi-sa com a outra. E eu não consigo perdoar

quem mistura! Eu sou totalmente fanáticopelo Grêmio, quero a extinção do Internacio-nal. Quero a extinção do Internacional (gri-ta)! Pode deixar registrado. Eu quero que oInternacional se foda, por mim que acabe.E nunca na porra da minha vida, quando eusentei pra escrever uma matéria sobre Grê-mio e Inter, isso teve alguma influência. Nãopode ter! Cara, é o seguinte, é um botão quetu ligas e desligas. É o teu trabalho, trabalhoé sagrado, trabalho é libertador. A profissãoestá numa redoma. Ela é sagrada. O trabalhoé que nos faz quem nós somos e você se fazatravés do seu trabalho.

Jadiel - Dentro deste país, Eduardo, oque você conservaria e mudaria se tivessea oportunidade?

Eduardo - Cara, como vocês já viram eu soumeio Doctor Jekyll and Mister Hyde, um médi-co e um monstro (referência ao romance deRobert Louis Stevenson, de 1886), um morde eo outro assopra. Eu tenho essa natureza dúbiae dupla - eu sou geminiano ... O Bob Dylan tam-bém é assim, por que eu não posso ser, não émesmo? A minha visão sobre o povo brasilei-ro: tem um lado que vou falar antes, porqueesse lado é muito menor e quase passageiro,um lado meio desprezível do povo brasileiro:fruto de muita desinformação e de uma inércia,um descaso, uma coisa meio "deixa estar", letit be. (cantando) "Let it be, let it be..." Porra, vai

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Apesar das brincadeirase referências constantes,Peninha assumiu, em di-versos momentos, umapostura séria e sincera emrelação ao episódio asso-ciado ao seu nome no ExtraOrdinários. Foi o próprio en-trevistado quem pediu quetocássemos no assunto.

Eduardo declarou, repe-tida e enfaticamente, seuamor ao Nordeste, ao SuL ..Ao Brasil. Assim como de-clarou sua raiva para comos problemas do País: "Eporra, tu achas que é umpreconceito? Não, é umador no coração, uma dor!"

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Houve o receio de queprocessos burocráticoscomprometessem a vindade Peninha e a finalizaçãoda revista. A confirmaçãoformal da viagem veioapenas uma semana an-tes da data marcada paraa realização da entrevista.

Eduardo por vezes co-menta o visível descon-forto que seus "ataques"(gritos, urros, saltos) pro-vocam em alguns dosentrevistadores, especial-mente em Mariãngela, epromete tentar controlar asi próprio.

tomar no cu com tet it be né? Agora tem umoutro lado, que é o seguinte: cara, a naturezado povo brasileiro ... Que é múltipla, né? Não dápra dizer que "o pooovo brasileiro", claro que ogaúcho é diferente do cearense, que é diferentedo mato-grossense, que é diferente do cabo-clo amazônico, mas há uma vibe no brasileiroque é do caralho! Então, o que eu manteria? Opovo. E qual a principal alteração? Eu não sou oSérgio Buarque (de Ho/anda, historiador) mas éóbvio: a educação. "Neguinho" diz: 'Ah, o Brasilprecisa de saúde, segurança ..." E não, não, não,cara! Essas coisas vão vir ao natural, quando agente tiver um povo educado, no sentido plenoda palavra - não o "povo educado" no sentidode (debochando e rindo) "bem educado" -, umpovo que pensa e reflete ...

A transformação da Coreia com base nareforma educacional que os caras fizeram ...(gritando) A Coréia é muito melhor que oBrasil! Não dá pra engolir! E a transformaçãoé essa; que é pela universidade ... Mas é cla-ro que está tão baixo o nível de tem que co-meçar pelo estudo básico mesmo. É essa atransformação pela qual o Brasil tem de pas-sar. Porque é o seguinte: qual é realmente ogrande dilema do Brasil? É um dilema éticoe moral: é um país sem ética e moral, vê osjeitos que as pessoas dirigem! E não só osfilhos da puta dos motoristas: vê o jeito queo pedestre se comporta. O pedestre tambémnão cumpre nenhuma lei, atravessa em qual-quer lugar e foda-se! Tudo bem que o pedes-tre tem todo o direito do mundo. Foda-se ocarro! O carro é o cigarro do futuro.

Oavid - Eu quero passar para um próxi-mo tópico, sobre seu livro, sua ficção. De umcerto modo você explicou que não existe umdistanciamento entre a ficção e a historio-grafia, mas eu quero saber o seguinte: vocêdisse nessa sua última resposta, que existemuita diversidade no brasileiro, e o assuntodesse livro vai ser o Rio de Janeiro, que vocêdiz que resume o Brasil. Quero saber como

você enxerga que o Rio possa resumir o País.Eduardo - O Rio de Janeiro está muito

longe de resumir o Brasil em vários sentidos,e muito mais perto que qualquer outro lugarporque ele é um acumulado de clichês e di-visões que o brasileiro tem de si mesmo eprojeta para o mundo. É o lugar, primeiro, dacordialidade - a coisa do "carioca cordial" ...No cu, que seja, mas tudo bem -, "o lugarda malandragem", "da musicalidade" - e aí émesmo, indiscutivelmente, do samba, do car-naval. "O Rio de Janeiro é o lugar da bunda!"Porque esst é um país que só pensa em bun-da ... Só pensa não, mas pensa bastante embunda - eu, graças a Deus, nunca dei bola prabunda. Sempre teve essa fixação brasileira, ri-dícula e facilmente explicável por bunda, quegraças a Deus.cJiminuiu neste século XXI, masaté o século XX o brasileiro ainda gostava debunda. E bunda é foda, né? Ou melhor, não éfoda - no meu modo de ver.

O Rio de Janeiro tem toda essa história,e, além de tudo, projetou desde o day one,que ... Porque é o seguinte, o livro é todo, todobaseado em história. Tudo, tudo, tudo, cempor cento o entorno como é: os barcos sãocomo são, eles comem o que comem, vestemcomo se vestem e eles falam parecido comoo que é (na história do descobrimento).

Oavid - Em relação a esses meandros en-tre a ficção e a historiografia: por que, dessavez, uma ficção, e por que isso se define comouma ficção? Ouais são os objetivos dela?

Eduardo - Primeiro, porque é o seguin-te: na minha vida foi sempre tudo embalo,impulso, sabe? Buscando visões. Eu estavatomando banho - eu sempre tomo banhopensando em livros, nessas merdas, masnão em bobagem! Ainda mais não em mu-lher, porque sabe como é: você tá lá toman-do banho, pensando em mulher e tal. .. Não!Não! Estou lá, tomando banho, e me veioessa história inteira do Rio de Janeiro, eu vi olivro! E eu sempre sabia que ia escrever um

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livro quando eu era jornalista, sempre soubeque esse livro ia ser de história, e no fundoeu sabia que ia ter a ver com índios e como descobrimento! Isso nunca foi conscientemas estava latente, e eu sempre soube queia escrever um romance na minha vida. E eraóbvio que ia ser um romance histórico, maseu realmente não sabia que ia ser sobre oRio de Janeiro. O Rio de Janeiro é um lugarmarcante na minhavida. Eu já escrevi várioslivros sobre o Rio de Janeiro: a história daAvenida Rio Branco - antiga Avenida Central-, da Avenida Presidente Vargas, a Históriada Higiene Pessoal no Brasil - toda centra-da no Rio, que era um lugar mais sujo, maisimundo. Então, eu já tinha uma "coisa" como Rio há anos, e aí pá! Veio esse.

Por que ficção? Porque, embora a baseseja histórica, vai ter vários personagens quenão existiram, são criações ficcionais. E al-gum de vocês - tu, me entregaste, porque ésdedo duro (apontando para Hélio que havia,em reunião, informado a equipe sobre a pro-dução e influências de Eduardo) - fala: "PÔ,o cara falou que vai ser um Game of Thro-nes! (série de televisão baseada na série delivros A Song of Ice and Fire, de George R.R. Martin)" E infelizmente eu não tenho amenor condição de escrever alguma coisacomo Game of Thrones. Inclusive eu tenhofama de egocêntrico, o que é um absurdo,porque eu sou uma das pessoas mais mo-destas do mundo! Aliás talvez tenha de ficarregistrado aqui: a minha modéstia não só émaior que todas as de vocês juntas, como sevocês pegarem todas as modéstias de vocêse somarem, não dá metade da minha. Foraque a minha modéstia é linda, linda, linda, elareluz! Então, além de ser muito modesto, eu

ainda sou um cara consciencioso - e o pioré que agora é verdade. O que eu me inspireino George Martin não é um mundo de fanta-sia nem a criação de um mundo: o que meinspirou nele foi o jogo de poder. São famí-lias que eu estou criando, quatro míseras fa-mílias - ele criou 200 famílias que ainda porcima viram reinos! Mas essas quatro míserasfamílias vão ter ramificações por esses 500anos de história e vai ser esse jogo de po-der sórdido, vil e rasteiro - quase nordestino(brinca). Esse ódio familiar, esse nepotismo,esse "Eu ponho meu filho no poder", esse"Eu te mato", vai ser isso. Em cima da famíliaSá - do filho da puta do Xico Sá -, que vaiexistir como é ela, a verdadeira, do mal, domal, do maaal. .. Se tu leres vai ser: "Porra,isso aqui foi o George Martin que escreveu"e não, é isso aqui mesmo. E três outras fa-mílias ficcionais, foi por isso que eu falei deGame of Thrones: não tem dragão!

Hélio - Eduardo, sobre suas principais -

11( ... ) qual érealmente o grande

dilema do Brasil?,E um dilema éticoe moral: é um paíssem ética e moral,vê os jeitos que aspessoas diriqern!"

EDUARDO SUENO I 131

Peninha confessa-se o tí-pico "cara que não se enxer-ga", e entende sua situaçãocomo positiva: se procu-rasse enxergar, analisar a sipróprio, dificilmente - acre-dita - teria coragem de darvazão à sua natureza irônica,expansiva e explosiva.

Eduardo reafirma suapersonalidade dupla - edúbia: um "Eduardo Sue-no" de pessoa jurídica,jornalista, historiador eanalista de um país; outro"Peninha", a pessoa físicaque grita, ironiza e saltasobre as pessoas.

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o gremista fanático acre-dita no poder do constran-gimento, do estranhamen-to e das discussões: "E esteé um país que tem de sediscutir, né, cara?"

Jadiel Lima quis retri-buir a descontração comque Peninha os havia tra-tado e perguntou qual arelação entre ele e Laerte(tendo ambos narizes tãoparecidos). "Nós dois co-memos a tua mãe", res-pondeu o gremista.

sejam elas inúmeras - influências na escri-ta, tanto na obra histórica como ficcional. Etalvez esteja aí a oportunidade que pediu defalar do Gilberto Freyre.

Eduardo - (risos) Olha só, na minha es-crita jornalística, as minhas principais influ-ências são os quatro grandes caras do newjournalism que realmente me influenciarammuito, abriram a minha cabeça: Gay Talese,Norman Mailer, o Tom Wolfe e o Truman Ca-pote. Esses caras foram chave pra mim, euos li relativamente cedo e disse: "Pá, vou serum new journelist", Mas essa influência foitemperada por um cara que eles odiavam,que é o Jack Kerouac, e é legal que ... Cara, éo seguinte, eu ouvi o Bob Dylan e, o que eudecidi? Que eu ia me rebelar. Té, vou contaruma aqui maravilhosa pra vocês: criaram oManual de Redação do Estadão, quando eutrabalhava lá, em 1990. Feito por um cara ...Bom, descobre o nome lá (O Manual de Re-

tores, uma editora brasileira localizada emPorto Alegre, fundada em 1974), e tinha umcara, que a gente descobriu, que só traduziaos rebeldes, só traduzia coisa intraduzível,coisa louca, e o dono da editora, Ivan Pi-nheiro Machado, foi ao Rio conhecer o cara.Quando ele voltou, primeira coisa, eu olhei edisse: "Como é que é o cara?" E ele: "Ah, umcaixa do Bradesco" (rindo alto). Aquilo foi amaior brochada, ele nem se lembra que dis-se isso e até hoje eu uso a expressão "umcaixa do Bradesco". Então, um caixa do Bra-desco fez o Manual de Redação do Estadão- ó, já fechei o travessão. E botou lá uma listade palavras proibidas. E eu cheguei em casa,abri (o manual) e... "Como assim? Como as-sim palavras que não pode usar?" Eu fui nasala do Augusto Nunes e: "Augusto Nunes,tu és o diretor de redação de um jornal quefez uma lista de palavras proibidas? Comoassim? Vai pra puta que te pariu com palavra

dação e Estilo do Estado foi escrito por Edu-ardo Martins, com primeira edição lançadaem 1990. Martins trabalhou durante toda avida no jornal O Estado de S. Paulo, come-çando em 1956 como colaborador, aos 17anos, criando Palavras Cruzadas). O cara eraum caixa do Bradesco! É que essa frase nãoé minha: eu trabalhava na L&PM - abri maisum parêntesis, o meu estilo é parentético: euabro chave, colchete, parêntesis e travessão,mas depois eu fecho o travessão, o parên-tesis, o colchete e a chave e volto ao temaoriginal. É um dom que eu tenho. Então: meesqueci do que eu estava falando (risos entretodos).

Hélio - Estava falando das tuas principaisinfluências na escrita.

Eduardo - Não! Eu ia contar essa história ...(confusão geral, várias vozes)Eduardo - Eu trabalhava na L&PM (Edi-

proibida!" Daí ele: "É, pois é..." E eu digo:"Vem cá, posso fazer uma matéria só compalavras proibidas?" "Pode". Cara, eu passeium mês ... O que eu gastei de maconha e deneurônio naquela merda, juntando as pala-vras proibidas, caara ... Mais parecia quebra--cabeça. Aí pá! Entreguei uma matéria sócom palavra proibida, com início, meio e fim,pum! Ah, do caralho, pode me cumprimen-tar, uma salva de palmas, por favor, pra ficarregistrado ... (grita) Uma salva de palmas!

(palmas fracas)Eduardo - É, obrigado ... Foi meio brocha

mas té, merecia. Bom, fechei o parêntesis,agora o colchete. Té, qual era a pergunta?

Hélio - A pergunta era sobre as suas in-fluências na escrita ...

Eduardo - Tá. Ouvi o Bob Dylan, jurei queia ser rebelde. Daí é o seguinte: jornalismotem de ser o texto telegráfico: sintético, fra-

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ses curtas, não pode usar mais que um adje-tivo - se é que usa o adjetivo - e tem de terponto logo em seguida. E o Jack Kerouac, táaí a resposta da influência: a Geração Beatfoi uma enorme influência na minha vida, es-pecialmente o Kerouac, que escrevia aquelasfrases torrenciais, que às vezes usava seisadjetivos pra um substantivo. E é isso.

E eu estou falando isso porque o TrumanCapote disse aquela frase maravilhosa sobreo Jack Kerouac, ele disse: "This is not wri-ting, this is typewritingl" "Isso não é escrita, édatilografia!" Disse com aquela mordacidadeque (gritando) só uma bicha louca que nemo Truman Capote poderia ter, né? (continuagritando) E o Jack era macho! Ao contráriodo Capote! ... Não, o Capote é maravilhoso,do caralho, mas porra, uma bicha má, umabicha muito má, e daí deu essa alfinetada ...Espera aí, não pode dizer "bicha má" agora?Vai tomar no cu que não pode dizer "bichamá"! Como se não tivesse um monte de bi-cha má, e como se não tivesse um monte debicha má totalmente talentosa, dentre elas abicha má-mor que é o Truman Capote - que

Hélio - Não se preocupa que não tem.Eduardo - Tá bom. E nenhum desses ca-

ras é influência nos meus livros de história,por eles (os livros) terem tanto de um viésjornalístico que a influência que eles recebemsão dos caras que me influenciaram comojornalista, no seu texto jornalístico ou literá-rio. Porque esses historiadores eu admiro,respeito e muitas vezes minhas informaçõesvieram deles, mas eles não tiveram uma influ-ência direta na forma. E de certa forma nemno conteúdo - no conteúdo, sim, no conteúdoinformativo, mas não no cerne do conteúdo,que é o conteúdo com essa visão jornalísticada história. Entendeu? Respondido.

Hélio - Eduardo, agora seguindo adian-te, eu quero pedir licença para ler uma cita-ção onde você diz: "Eu não minto, apenasapresento uma versão turbinada da verda-de. Tenho dito isso e juro que é verdade,que não me responsabilizo pelo que faço,nem pelo que digo, só pelo que escrevo.Sou que nem bicheiro: vale o que está nopapel." Minha pergunta é...

Eduardo - Que frase, né? Dita de improviso,

"Tá cheio de foto de veado no meuescritório mas é por acaso! (...) Não quero

censura nessa merda desta entrevista,hein? Não deixa eles me censurarem!"

eu venero! Como um homofóbico que sou,adoraria odiá-Io, mas não consigo, porquesou solúvel em talento!

E, na história, os brasileiros são SérgioBuarque de Hollanda, Gilberto Freyre e Câ-mara Cascudo. Mas eu também tenho admi-ração num cearense, que é o Capistrano deAbreu, e o Capistrano é um positivista, tá ul-trapassado, mas é o seguinte cara: é genial,é maravilhoso, eu adoro, é o meu cearensefavorito, my cearense number one, viu, XicoSá? (Eduardo ressalta também a importân-cia do historiador Francisco Adolfo de Var-nhagen) Eu tenho uma foto do Capistrano deAbreu no meu escritório, ao lado do "pan-teão" ... Ele não ia gostar, porque ele tá juntocom Jean Genet, com o Rimbaud, com o BobDylan, ele ia se sentir meio mal eu acho, comaquela veadagem ali mas ... Fazer o quê? (gri-ta) Embora eu odeie veado! Tá cheio de fotode veado no meu escritório mas é por acaso!Olha ... Não quero censura nessa merda des-ta entrevista, hein? Não deixá eles me censu-rarem (para o professor Ronaldo)!

tem de ser um gênio. Eu sou incrível né, cara?Sabe que eu sou a pessoa mais incrível que euconheço? Falando sério (risadas gerais).

Hélio - ...Mas levando isso em conside-ração eu quero perguntar: pra além do quevocê faz, como você se percebe, como de-finiria a sua maneira de "se colocar", de seapresentar ao mundo?

Eduardo - Que bom que você fez essapergunta! Porque é o seguinte: eu sou o ver-dadeiro "que não se enxerga", cara. Falandosério, se eu ficasse me enxergando, me per-cebendo, eu não conseguiria ser desse jeitoque eu sou. Não pensa que não tem um ladoque eu tenho "vergonha" do jeito que eu sou- claro que eu não tenho vergonha, mas é oseguinte: eu sou histriônico, maluco, porqueeu dou vazão à minha natureza expansiva,mas eu não fico me enxergando. Por exem-plo: nesse episódio da maconha no avião. Eume esqueço, graças a Deus, que eu sou umapessoa conhecida e as pessoas me reconhe-cem, porque, se eu ficasse me lembrando,eu não ia ter coragem de levantar e começar

EDUARDO BUENO I 133

Eduardo tem, comopiada interna, a atribuiçãode "caixa do Bradesco"para pessoas nas quaisnão se sente interessado- pessoas "sem graça".A história da expressãovem do trabalho dele naL&PM, e é narrada nas pá-ginas desta entrevista.

Jonas Bastos de Araú-jo, fotógrafo que registroua entrevista de Eduardo eacompanhou os proces-sos de produção e prepa-ração junto à equipe, já foicaixa do Bradesco.

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Jonas Araújo faz umtrabalho de fotografia au-toral e vive em São Luís(MA), sendo amigo pesso-al de Hélio e indicado paraa entrevista pelo próprioHélio. Mais do trabalho deJonas pode ser encontra-do em fb.com/jonasarau-jophotography

Eduardo buscou, por di-versas vezes, interagir como ambiente ao redor: le-vantando-se, movendo-se,apontando, sussurrandoaos gravadores - chegou aposar e pedir fotos a Jonas.

a gritar do jeito que eu gritei.Como é que eu me enxergo? Eu não me

enxergo, cara! Não, lógico que é o seguinte:eu procuro fazer uma leitura do meu papele da minha posição como pessoa jurídica.Nesse mesmo sentido que eu faço essa dis-tinção entre o que eu sou e o que eu penso,eu procuro refletir sobre mim como pessoajurídica. E acho, quase de brincadeira, (risos)não, de brincadeira: que já tá quase na horade ter uma estátua de bronze pra mim. Por-que, cara, eu já prestei grandes serviços aeste país. (risos) É verdade: eu traduzi o OnThe Road quando ninguém queria. E comisso eu trouxe toda Geração Beat pro Brasil.Foi um lance que partiu de mim e foi difícil deconseguir. Pô, depois eu trouxe o Bukowski(Henry Charles Bukowski, escritor americanode origem alemã: tido como um represen-tante tardio da Geração Beat, por semelhan-ças de estilo e comportamentais), cara!

Eu editei mais de 200 livros, eu fiz uma co-leção de história em 1980 na L&PM: Cristóvão

Colombo, Américo Vespúcio, Hernán Cortés,que nunca tinham saído no Brasil. Colomboclaro que já tinha. Mas o Américo Vespúcio,as cartas dele, o Cortés, o (Francisco) Pizarro(González, conquistador do Peru) e até umaversão sólida que eu publiquei do MarcoPolo nunca tinham saído no Brasil. Depois eufiz uns programas de TV lá em Porto Alegreque bá, cara, uns programas assim, radicais,sabe? Introduzi um monte dessa "garotada"também no Henry David Thoreau, no WaltWhitman, era um programa diário de TV. PÔ,depois eu fiz essa coisa aí pela história queporra, tudo bem que resultou no Laurentino(Gomes) e no Leandro Narloch, mas a culpanão é minha (risos) que resultou neles. Foiuma transformação no mercado editorialbrasileiro. Então, eu faço uma leitura minha,e ela é positiva, da minha posição "pessoajurídica". Agora: como eu me enxergo comopessoa física, cara, eu não me enxergo, por-que eu tenho até vergonha, eu vou me acharpalhaço. Quando eu ouço de novo minhas

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entrevistas, porra cara, é demais, isso aí nãosou eu. Embora eu saiba que eu sou assim,porque eu sou, mas não pensa que eu morrotanto de orgulho de ser assim: eu podia seruns dois graus abaixo.

Mariângela - Você disse em entrevistasanteriores que "acreditá no poder do cons-trangimento". Como é que esse constrangi-mento define a pessoa de Eduardo Bueno?

Eduardo - Ah, o constrangimento? Ah, éisso! Do tipo assim: "Cara, sou evangélico"."Mas tu és evangélico? Então, é o seguinte:nós vamos discutir a porra da Bíblia: (gritan-do) qual é a merda da Bíblia, da versão daBíblia que tu leste ô filha da puta? Tu nem sa-bes o que foi o (Primeiro) Concílio de Nicéiaem 325 (concílio de bispos na atual Turquia,na tentativa de obter consenso da igreja empontos específicos da crença cristo lógica,como a data da Páscoa), tu não sabes que oscaras reescreveram essa porra dessa bíbliainteira? Seu idiota! Seu merda!" (baixa o tomde voz) Assim, entendeu? Uma coisa branda.

Não, na verdade, eu não gosto de ter es-ses ataques - o que eu tenho tido cada vezmais -, mas eu gosto do constrangimentoque causa. Por exemplo, daí o cara é do ...Sei lá, TFP (Tradição, Família e Propriedade,organização católica tradicionalista' brasilei-ra fundada em 1960), que não tem mais. Ocara é da TFp, daí todo mundo: "Ah, fulanoé da TFP" e tinha medo dos caras da TFP.Eufui um dos primeiros que viraram e (gritan-do): "Vem cá tu não tens vergonha de ser daTFP? Tu vais pra puta que te pariu que tu é daTFP!" Mas cara, numa coisa branda.

A garota (olha para Mariângela) já nãoaguenta mais os meus gritos, agora imaginao infeliz que for tirar a fita. Você sabe quetodo mundo que tira as fitas já me reclamoumil vezes: "Porra que pariu, cara, eu tô láouvindo a fita e tem umas horas que tu fa-Ias mais baixo, tem de aumentar, e tu gritassem que a pessoa possa saber ..." (risos) Jávários casos, vários mandaram um: "Vai tefoder! Já que tu tens tanta mania de mandar

IIAgora: como eume enxergo comopessoa física, cara,-eu nao me enxergo,

porque eu tenho atévergonha, eu vou

me achar palhaço."os outros se foderem, estou eu mandando:vai tu te foder com esses teus gritos, essasporras e o jeito que tu falas, porque não dápra aguentar!"

Ana Maria e Nathanael - Eduardo (si-multaneamente) ...

Eduardo - Não, não, tem de ser ele, eleainda não falou nada!

Nathanael - Além de acreditar no poderdo constrangimento, você já falou em entre-vistas anteriores que adora o estranhamen-to. E qual a importância dessa sensação deestranhamento em sociedade - seja pela suapersonalidade ou pelo seu posicionamento?

Eduardo - É, não, essa coisa da persona-lidade ... Eu gostaria que a coisa se desse nonível de idéias, de conceito, não é no grito -por isso que eu deveria gritar menos. Sério,aqui com vocês eu estou gritando de brin-cadeira - é óbvio, espero que vocês tenhampercebido -, mas a questão é, quando eu co-meço a discutir, mil vezes eu começo a gritarde "verdadeira", e não dá: leva a discussãopra uma outra vibe, literalmente, ela vibra deum outro jeito e ela não chega onde tem dechegar. E esse é um país que tem de se dis-cutir, né, cara?

E o estranhamento é o seguinte: emboraeu tenha desenvolvido esse lado mais ra-dical, com um flerte com a intolerância, naverdade isso me preocupa um pouco por-que a minha natureza é muito mais do debo-che, da ironia ... Em vez do constrangimen-to, eu prefiro um estranhamento, uma fraselá do Bob Dylan, blow their minds, explodircom a cabeça deles ... Tu criares riddles ...Charadas! Enigmas! Falar por enigmas ever se confunde o cara, mas também ... Nãoadianta tanto porque as pessoas são meioburras mesmo, né? Às vezes eu sou a fim doconstrangimento. E aquela menina (Mariân-gela) já tá com uma cara tão apavorada queeu juro que eu não vou gritar mais. Ela tema audição sensível e não aguenta mais tantoberro e tanta violência.

Ana Maria - Agora falando de religião:

EDUARDO BUENO I 135

O professor RonaldoSalgado foi referenciadodiversas vezes pelo escritorantes, durante e depois daentrevista: "Tu não deixaseles me censurarem!"

Eduardo brincou, porvárias vezes, com a ques-tão da censura. "Nãopode falar palavrão nestamerda?" "Eu vou dizer, e ébom que isso fique regis-trado!" "Este país é umabosta, e pode por isso lá!"

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o gremista ameaçou, emcaso de censura de conteú-do ou descumprimento aospedidos de of{, dar empre-gos aos presentes na equipeda entrevista: na Folha deSão Paulo ou na revista Veja.Todos os pedidos de Eduar-do foram respeitados.

Apenas Ana Maria foiagraciada com uma pro-posta de emprego pre-miada - após lembrar adata da primeira vez queEduardo ouviu Sob Dylan:oito de março de 1975.

REVISTA ENTREVISTA I 136

você falou que não é nem um pouco pacien-te e já comentou em entrevista anterior queé totalmente religioso. Se me permite a leitu-ra: "Gostaria de me dedicar inteiramente sóa meditar, mas é meio difícil pra mim. Abrirmão de tudo. Meu maior delírio é virar umandarilho rezador". Nessa tua personalidadetão explosiva, que grita muito e ao mesmotempo busca a meditação, o que a espiritua-lidade representa na tua vida?

Eduardo - É, então, é exatamente isso.Toda essa geração hippie, toda essa históriavia Geração Beat ... Não foram os beats queintroduziram o zen-budismo e o budismono Ocidente, mas foi na mesma época queeles estavam fazendo a obra deles e por viasmuito similares. E depois eles ajudaram,especialmente o Jack (Kerouac) e o GarySnyder - que é budista praticante, vive ain-da em mosteiro ... E o Jack escreveu aqueleDharma Bums, os vagabundos do Dharma,

"Eu não fiz nadasozinho, semprefui orientado por

mestres da palavra,os caras que eu lia eeu dizia 'Bá, vou ser

assim!"

sobre o Gary Snyder. E o Allen Ginsberg,que eu também conheci pessoalmente, eraligado ao budismo. Então, era um caminhonatural pra todo mundo que era meio hippiechegar nessa coisa budista, tomando LSD...Olhando uma margarida e... (balbucioscontemplativos) Esse misticismo empurranaturalmente para o zen-budismo e para obudismo. Como a minha hippiedade, a mi-nha rebeldia foi sempre baseada em mode-lo literário ... Tudo que eu fiz na minha vidaera uma "cópia" ou tinha uma "base" nummodelo literário. Eu não fiz nada sozinho,sempre fui orientado por mestres da pala-vra, os caras que eu lia e eu dizia "Bá, vouser assim!" Entendeu? Graças a Deus todosos caras que eu li eram malucos, rebeldes.Os que me pegaram mesmo foram os taisbeats, e eles tinham esse apreço pelo budis-mo, que eu imediatamente desenvolvi.

É uma boa piada: eu tenho 140 livros so-bre budismo e zen-budismo e vem um carae (diz:) "Pode ter lido, mas nunca aprendeunada, né?" Eu já estou bem mais distante, jáfui bem mais próximo da prática, inclusive.Eu fui macrobiótico (regime alimentar base-ado no aformismo "alma sã em corpo são':tendo cereais integrais como alimentação--base): fiz jejum, dez dias de arroz, quatrodias de jejum, ficava em posição de lótusinteira durante muito tempo. Mas é umacoisa da qual estou superafastado, e come-çou o afastamento porque teve uma épocana minha vida em que eu cheirei muito pó.Para trabalhar! Lá na Zero Hora eu cheira-va pó loucamente e depois quando eu fui

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fazer essa coleção Terra Brasilis. Eu escre-vi A Viagem do Descobrimento em 44 dias,Náufragos, Traficantes e Degredados em 62dias e Capitães do Brasil em 98 dias. É im-possível escrever nessa rapidez, a não serque tu estejas "turbinado". Eu sempre odieia cocaína, sempre' achei uma droga do maltotal, acho que ela tá supervinculada ao de-mônio. Para continuar no meu misticismo:eu acredito em Deus e acredito no demônioplenamente. Tenho quase pena de quemnão acredita no demônio, porque, cara, odemônio não só existe (rindo) como ... Ru-les! Manda pra caralho!

As pessoas me perguntam muito: "Qualo melhor livro que tu já leste na vida?" Etodo mundo acha que é piada mas não é:a Autobiografia de um logue do Yoganan-da. Ele descreve o processo de iluminaçãodele: vendo o universo inteiro em um satori- na súbita iluminação, no súbito despertar.E eu acredito totalmente, mas entre o acre-ditar e o praticar há um abismo. Começoupor causa dessa cheiração, né? E a cheira-ção leva ao cigarro, cigarro ao café. Porquepra mim é o seguinte: se eu pudesse escre-ver ... E eu adoro falar sobre drogas porqueé tão hipócrita o discurso. As pessoas sãotão filhas da puta, é tão ridículo o jeito queelas falam, que elas pensam, que elas são. Eé o seguinte: quem usa, em geral, não fala,e os que falam, falam pra acusar e nuncausaram, ou então conheceram uns idiotas"lá" que usaram ... O que eu mudei na vidaé que antes eu achava aquilo de "maconhaé para todos". Depois, LSD pra todos tam-

bém. Cocaína, cigarro e café pra ninguém!E eu achava mesmo, eu achava que as pes-soas tinham de ser amarradas e (gritando:)"Vai fumar esse baseado aqui e toma issoaqui que vai ser bom!" Eu descobri que pracada pessoa ela age de um jeito.

Oavid - Eduardo, você tem o trabalhocomo um lugar sagrado, um lugar que dig-nifica o homem de um certo modo. E falouagora que tinha de usar drogas para produzirmais. Como é que se dá essa relação?

Eduardo - Não, dá fácil, dá fácil! Porqueé o seguinte: era, nesse caso, como jogardopado, entendeu? Porque é o seguinte: o(atleta) Ben Johnson ... Esses caras que cor-rem dopados: tudo bem, não pode porqueeles vão morrer, por isso que é proibido.Não é moralmente, é uma proteção ao indi-víduo. Agora: "Se eu usar o mesmo dopingdo Ben Johnson ou do (pugilista) Mike Tysonou quem for, eu vou conseguir fazer o queo cara faz?" Não vai, né, cara! Aquilo é umaqualidade nata do cara que aquela substân-cia só potencializa. É o meu caso: o meu tra-balho era sagrado. Eu usei drogas que nãosão sagradas, sem afetar com isso a sacra-lidade do meu trabalho e a devoção a ele.E ao contrário: eu usei pra ter mais devo-ção a ele, entendeu? Então, se eu pudesse,e se essas três drogas não fossem ruins, eutrabalharia única e exclusivamente: de ma-drugada; cheirando cinco carreiras de pó;tomando uma garrafa térmica de café "destetamanho" (mostra com as mãos o tamanhoque seria) e fumando seis cigarros ... Ou sete.Todo dia. Com isso eu rendo muito mais, eu

EDUARDO BUENO I 137

A entrevista com Edu-ardo foi a única que acon-teceu em um dia fora doprograma previsto peladisciplina - um sábado -por restrição da agendado entrevistado. Todas asoutras aconteceram emterças ou quintas-feiras.

Hélio já conhecia a filhamais nova de Eduardo. Aocomentarem o fato comEduardo, Jadiel recitou overso de Chico Buarque"Você não gosta de mim,mas sua filha gosta".

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Ao contrário daquiloque se costuma acredi-tar - segundo o próprioEduardo -, o escritor nadatem contra a obra de Chi-co Buarque, apenas nãose identifica. Por outrolado, valoriza o trabalhode Sérgio Buarque de Ho-landa "dez vezes mais".

Peninha se surpreendeuem como a entrevista assu-mia por vezes um caráter"confessional, quase psicana-lítico". Foram nesses momen-tos que o escritor se manifes-tou mais sério, introspectivoe contemplativo, em contra-dição ao lado explosivo dele.

escrevo muito mais e muito melhor. Eu tejuro, eu já vi isso, não é uma ficção. Mas é oseguinte: não dá. Porque, primeiro, são trêsdrogas meio do mal, especialmente o pó,porra: uma coisa horrorosa, faz mal a tudo,é uma droga produzida do jeito mais horrívelpossível, pelas pessoas mais horríveis possí-veis, te tira o que tu tens de pior! Chama-sedroga por causa disso! Cigarro: é uma porrahorrorosa, eu já tive tuberculose inclusive, éum horror - eu fumo, eventualmente.

Eu concluí que eu tinha de ter uma drogapra escrever (sobre o hábito do cigarro). Eunão consigo escrever sem ter uma droga, eupreciso estar drogado pra escrever - é umamerda, mas é verdade. Não consigo escre-ver, não consigo entrar em mim. A únicadroga que eu gosto, e "recomendo" é a ma-conha. Porém é o seguinte: eu não consigoescrever depois de fumar maconha. Porqueeu fumo um "baseado" e vou escrever, entãovamoscomeçar com meu nome. "Eduardo.E. Êêêêê. Vogal. A. E. I. O. Uuuuuuuu (canta-rolando). O alfabeto. Alfa. Beta. Zeta." Daí tuolhas são cinco da tarde eu escrevi "E"!

Jadiel - Falando dessa questão da rela-ção com o uso de drogas e tua escrita, pare-ce ter algo a ver com um autorrespeito. E agente quer te perguntar sobre esse respeitoque você tem ao indivíduo, de uma visão in-dividualista - citando Thoreau e Walt Whit-man, sobre "cantar a si próprio para cantaro mundo": como você se vê no mundo? Asoutras pessoas? O que busca das relaçõescom essas pessoas?

"Humano um., ,por um Ja e

complicado. Pensa:se olha no espelho

" ,,-e ve se voce naoé complicado,olha pra mim e" -ve se eu nao soucomplicado."

Eduardo - Eu sou um americanófi/o, e écada vez mais difícil de dizer essa palavrapor causa da incompreensão que as pesso-as têm, por associarem os Estados Unidosao que têm de pior - eles têm muita coisaruim - e à política externa dele. Mas foi o úni-co país do mundo que teve um gênio comopresidente - porque o Benjamin Franklin eraum gênio, no sentido pleno da palavra "gê-nio", do QI e tudo o mais. Teve o (Abraham)Lincoln, teve o George Washington e daí secriou um movimento filosófico nos EUA, naCosta Leste, chamado transcendentalismo.Que eram o (Ra/ph Wa/do) Emerson, o pró-prio Walt Whitman e o Henry David Thoreau- que escreveu Wa/den ou a Vida nos 80s-

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ques, que é o cântico à liberdade individualmáxima. Escreveu A Desobediência Civil, acoisa que ele propõe de você ser desobe-diente mesmo, derrubar o sistema através dadesobediência - que influenciou o Ghandi,na revolução indiana. O Herman Melville, deMoby Dick, o Nathaniel Hawthorne e até, decerta forma desviante desses malucos, o Ed-gar Allan Poe. Todos esses caras ali da costaleste americana. Esses caras me formarammuito, também. E o Jack Kerouac, de anosdepois, também é daquela zona de Massa-chusetts. E eles fazem um canto ao indivi-dualismo - que é erroneamente confundidocom o egoísmo, ou com o anti-comunismo,ou com uma coisa reacionária, politicamentecorreta ... Quando não é! Ao contrário! Pri-meiro: é uma das bases do anarquismo, oThoreau é um dos pilares involuntários doanarquismo, então eu acredito nisso... E,além de tudo, os humanos são muito cha-tos na maioria. Ouando você vê humano emgrupo ... Em rodoviária, no avião ... Puta quepariu!

Humano um por um já é complicado.Pensa: se olha no espelho e vê se você nãoé complicado, olha pra mim e vê se eu nãosou complicado - embora muito modesto egenial e magnânimo. Sério, humano é meiofoda: um monte de humano junto, porra!Piorou! Um monte de humano junto queren-do fazer a mesma coisa, pegar um ônibus ouum avião: não tenho muita paciência. Ago-ra: pá, você encontra um humano ... Se eue ele (aponta para Hélio) saíssemos, agora,

ali para o (Centro Cultural) Dragão do Mar...Se a gente saísse, só nós dois? PÔ, já mudatudo! Vem essa coisa do indivíduo! E se vocêconseguir, mesmo no meio da massa, ver oindivíduo e perceber o valor inequívoco efantástico e luminoso do indivíduo ... Sabe,eu acho que é uma forma de agir politica-mente. E é o meu jeito de ser.

Nathanael - Numa entrevista ao Jô Soa-res, você falou que o passado está sempresendo reescrito. Tem algo no seu passadoque você gostaria de reescrever?

Eduardo - (risos) Cara, é uma respostatola, é uma bobagem, mas como está viran-do uma entrevista confessional aqui eu voufalar. Na minha trajetória profissional nãotem nada que eu recue ou ... Claro, gostariaque tivesse sido melhor, gostaria que eu ti-vesse trabalhado no (jornal americano) Wa-shington Post, de ir pra Califórnia escreverroteiro em Hollywood, mas isso é óbvio. Masno que eu fiz: ok, não me arrependo de nada,não reescreveria nada. Mas, na minha vidapessoal, tem uma coisa que está começandoa me incomodar - e a minha filha falou umafrase, ela disse: "Pai, eles não estão à alturado teu ódio", se referindo ao outro time láque joga em Porto Alegre. Porra, cara, eu nãopodia levar tanto a sério assim o meu ... Não,tem um lado que é óbvio que eu não levoa sério, que eu sei que é brincadeira. Mas abrincadeira tomou uma dimensão tão gran-de que, como eu brinco 23 horas e meia pordia e na outra meia hora eu estou desantentoem relação a isso ... O que eu reescreveria no

EDUARDO BUENO I 139

Dada à oportunidade departicipação na entrevistacom uma pergunta, LíziaBueno, filha mais novade Eduardo, respondeu,rindo, que "Acho que jásei de tudo. Não tenhoopção: você já reparou noquanto ele fala?"

Apesar de se definircomo "expansivo, histriô-nico e maluco", Eduardoé fortemente influenciadopor filosofias e crençasorientais, especialmenteligadas ao budismo. Acre-dita na valorização do in-divíduo por suas própriasações e relações humanas.

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Na reunião da equipepara avaliação da entre-vista, Jadiel confessou terpensado na música "Dan-~a do Ventre", do grupoE o Tchan: identificou emEduardo uma mistura en-tre Brasil e Egito, graçasàs influências historiográ-ficas do entrevistado.

Ao término de três ho-ras de entrevista, os agra-decimentos e a propostade celebração: entre ami-gos, comidas, bebidas econversas. A despedidaoficial do projeto e denosso convidado.

passado era ter apenas desprezo irônico pelotradicional rival do Grêmio Porto Alegrense.É uma resposta tola, mas já que virou psica-nálise aqui ...

Hélio - Você falou mais cedo sobre a re-lação com a Geração Beat quanto à influên-cia na sua obra. Quero perguntar: em toda aestética - tanto escrita como em outras artes-, o que primeiro lhe tocou nessa filosofia?Que não só fez com que você se identificas-se, mas também se fizesse identificar?

Eduardo - Ouvir o seu diálogo interior eexterná-Io. É isso. O Jack ouvia a cacofoniada própria mente, dava uma forma a ela -que, por um lado, era anárquica e dinâmica,mas fazia todo o sentido. E se projetava na-quela imagem literária de si próprio, que elemesmo estava criando. E quando eu ouviaaquilo eu dizia: "Cara, ouvir a própria voz, aprópria voz interior", que era uma voz queeu mantinha sufocada no meu quarto, lendosobre o Egito. Eu só tinha o meu quarto: e láeu podia ouvir a minha voz, embora, comoeu falei, fosse um processo esquizofrênico.Era de ouvir uma voz que eu não sabia seera minha, projetar em uma voz literária, e,ao projetar isso, eu fui formando a minhavoz interior, e essa voz eu decidi, primeiro,que eu tinha de ouvir, depois, que eu tinhade expô-Ia. E a única forma que eu sabia deexpor era escrevendo. E veio o Bob Dylantambém - com essa voz gritante - e eu:"Cara, esse é o caminho!" Ouvir a sua vozinterior e narrá-Ia: se as pessoas não gos-tarem, criar o constrangimento. (gritando)"Por que tu não gostaste do que eu escrevi,seu animal?"

Jadiel - Vamos dar uma corridinha logopro último tópico?

Eduardo - Bora.Jadiel- Pegar um gancho falando daquilo

que você estava falando da música gaúcha.Eu lembrei da questão do Bob Dylan: temmuito o Dylan e você como representações

IIEra de ouvir uma-voz que eu naosabia se era minha,

projetar em umavoz literária, e ao

projetar isso eu fuiformando a minha

voz interior (...)"

do movimento beat, mas você acha que temalgum outro ícone aqui no Brasil que repre-senta essa geração? Quem seria?

Eduardo - Olha, exatamente assim não,embora tenha tido uns rebeldes. Mas porra,cara, o Caetano, o Gil e, de certa forma, oChico, pra quem eu, particularmente, não te-nho muita paciência. Mesmo ele sendo umgigante, na minha opinião, o pai dele é dezvezes mais, mas isso não está em questão.Então, tem o Caetano, que eu acho incrível, eele faz um contra ponto com o Gil, acho inclu-sive ele mais que o Gil, mas entra essa coisabaiana que foi o que eu disse: "Opa, essescaras são baianos. Baianos? É, incrível".

E eu conheço muito a história de Salva-dor, é muito mágica. Que, aliás, é uma bosta,né? É do caralho e é uma bosta. O único lu-gar na merda da minha vida onde eu fui as-saltado. Salvador não é uma bosta? Salvadoré uma bosta! Salvador é do caralho, a verda-deira, a projeção, o que Salvador significa,a história, a formação, a estrutura, o Pelouri-nho, o mar, a cultura, as pessoas. Cara, Gre-gório de Matos (Guerra, advogado e poeta,alcunhado de Boca do Inferno) escreveu deSalvador! O Padre (Antônio) Vieira escreveude Salvador! Puta que pariu, o João Ubaldo(Ribeiro), a ilha da Itaparica, o Jorge Amado,o Carybé (Hector Julio Páride Bernabó, ar-gentino) - o maior humano que eu já conhe-ci na minha vida -, eu conheci o Carybé, o(fotógrafo francês) Pierre Verger - eu convivicom o Pierre Verger. Todos eles viviam lá. RioVermelho, aquela coisa. Mágico. Mágico ...

E é uma bosta. É uma bosta porque tátudo fodido, tem cheiro de merda, um mon-te de assaltante, tá tudo uma bosta, tá tudoabandonado, tá tudo largado, (gritando) e éuma bosta! E porra, tu achas que é um pre-conceito? Não, é uma dor no coração, umador! Eu conheço a história de cada rua deSalvador. Vocês vão ler a porra de A Coroa, aCruz e a Espada, conta a história de cada rua

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e cada prédio.(Eduardo atende ao telefone)Eduardo - Porra, os caras continuam fa-

lando aqui, Paula, acredita? Eles não paramde falar, ainda bem que tu ligaste. Não, eu jáestou quase desmaiando! Eles falam, falam,falam ... Não, e a maior parte das coisas nãose aproveita do que eles dizem, é impressio-nante, tchê. Ainda bem que tu ligaste aqui.Sim, estão falando sobre o tema que maisme interessa: eu próprio. É, me, myself andI. Tá bom, vou desligar. Depois te ligo, meuamor, beijo.

(Eduardo desliga o telefone)Eduardo - Minha mulher não é uma san-

ta? Não tem de ser santificada uma pessoadessas? Imagina ser casada comigo. Imaginatu acordar e eu estar do teu lado!

Oavid - Não, obrigado.(risos gerais)Hélio - Só pra gente finalizar, sobre essa

sua ligeira afeição pelo Dylan, você já ma-nifestou a ideia e a vontade de escrever so-bre o Dylan, sobre os encontros com ele,até uma biografia. A quantas anda esse pIa-no da escrita de um livro, desse materialsobre ele? E quais são os futuros planospara a escrita - tanto historiográfica comoficcional, se houver?

Eduardo - A história do Sob Dylan é umahistória ... Do livro sobre o Sob Dylan é umahistória muito, muito perturbadora pra mim

porque eu me envolvi com Victor Maymu-des, que era o personal manager dele. O SobDylan não lida com o mundo, sabe? Quer di-zer, ele lida com o mundo de uma única for-ma: ele sai do hotel ... Ele mora em hotel: eledá 200 shows por ano, ele passa 250 dias doano fora da casa dele, no mundo inteiro, emhotel. Ele sai do hotel às duas da manhã ecaminha das duas às seis da manhã. Quatrohoras. Vai em qualquer lugar, sozinho, emgeral ... Às vezes com uma mulher, porqueele é totalmente mulherengo ... Mas muitasvezes sozinho e algumas raras vezes com al-guém da entourage dele. Segurança quasenunca, raríssimo. E ele vai em favela, ele vaiem tudo. Ele vai em tudo sozinho, de mão nobolso. Fala com mendigo, fala com gente narua, é uma coisa inacreditável. Ele já foi pre-so três vezes andando na rua sem documen-to, aí diz: "Ah, eu sou o Sob Dylan". E o cara(responde:) "(risos) Sim, e eu sou o papa" eo levam preso. E ele é o Sob Dylan.

Mas, no mundo formal, ele mal consegueacender e desligar uma lâmpada. Algunsacham que ele é idiot savant, sabe? Que éo idiota gênio, tipo aquele Forrest Gump,de um outro jeito. A melhor imagem queeu tenho é a seguinte: a gente funciona emAM e o cara funciona em FM: então tu nãoconsegues conectar. Ele está em outra. Eleestá em outra, ele vive em outro plano. Elediz há anos que um cara perguntou pra ele:

EDUARDO BUENO I 141

A trigésima terceira edi-ção da Revista Entrevistatrouxe-nos a um extremono começo para terminarem um outro: o primei-ro, Yuri Firmeza, do olharcontemplativo e voz cal-ma. Já o último ...

Na decisão de paraonde iríamos, Eduardo -objetiva e imparcialmen-te - acatou a sugestãode Amanda, mesmo semhonestamente saber doque se tratava. "Aman-da e eu decidimos quevamos para a Barraca daBoa", sentenciou.

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Na hora do brinde, Pe-ninha dá uma advertênciaa Jadiel por sua breve dis-tração - o fato de encarar ocopo ao erguê-Ia - dizendoque brinde tem de ser noolho a olho. Um aprendiza-do sobre boemia e, por quenão, sobre o jornalismo.

Na mesa de bar, a últi-ma confissão: um Eduar-do tímido (e desconheci-do) caminha sozinho emdireção à praia para seucigarro diário: "Tenho ver-gonha de fumar na frentedas pessoas".

"Quantos anos tu tem?" E ele: "Mas quepergunta idiota. Faz muito tempo que eunão penso nisso". E deve ser verdade, elenão deve saber quantos anos ele tem. Eunão estou brincando, entendeu? Ele estáem outro plano de criação. Ele é foda, ele éfoda! Você olha pro cara e se borra, se elefizer "Ooh!" tu te cagas nas fraldas.

O Victor tomou um pé na bunda dele eme ligou querendo escrever um livro to-talmente vingativo e eu fui pros EstadosUnidos, larguei tudo, larguei minha mulher,minha filha, coleção "Terra Brasilis", o cara-lho ... Pra convemcê-Io de que seria ridículoele escrever um livro porque ... Tu queresque o Bob Dylan ainda seja legal? Tu queresque ele seja uma pessoa legal? Por que tunão queres que o Baudelaire tenha sido le-gal? Que o Picasso tenha sido legal? Por quetu não queres que o Rimbaud tenha sido le-gal? E gravamos 57 horas de fita e o Victormorreu, cara ... O filho dele achou as fitas,que eu mandei a transcrição, e publicou fazum mês o livro dizendo "Um jornalista bra-

J'A melhor imagemque eu tenho é aseguinte: a gente

funciona em AM eo cara funciona em

FM: então tu nãoconsegues conectar.Ele está em outra."

sileiro gravou essas fitas". Tá é o seguinte:foda-se. Eu não vou escrever. Talvez algumdia eu escreva sobre o Bob Dylan, o que oBob Dylan significou pra mim, o meu BobDylan, entendeu?

Eu pretendo, algum dia, retomar a cole-ção "Terra Brasilis" algum dia com um volu-me V (quinto), que é a França Antártica - vaiacabar a nossa conversa, porque ninguémaguenta mais. Mas é o seguinte: a coleçãoera pra ter sete volumes e eu vou fazer 15.Eu ameaço o Brasil com 15 volumes. Sãomais nove. E são todos do caralho, falan-do sério. Piratas no Brasil, descoberta dorio Amazonas, missões jesuíticas ... Vai de1500 a 1700, 15 volumes do tamanho doViagem do Descobrimento. Antes disso euvou fazer Carioca - são três volumes, que éhistória do Rio de Janeiro -, vou fazer Pau-lista - três volumes da história da cidade deSão Paulo - e vou fazer Gaúcho - três volu-mes que é a história ... Daí não é a históriade Porto Alegre, porque Porto Alegre nemtem história pra contar, mas é a história doRio Grande do Sul, é óbvio. Nenhum delesé o que parece ser em relação ao nome.Carioca é o Rio, não é o carioca. Paulistaé o que os jesuítas chamavam de bandei-rantes, porque os bandeirantes são uma in-venção. Os jesuítas chamavam-nos de "ospaulistas", não é o paulistano nem nascidoem São Paulo. E Gaúcho ... Cara, gaúcho éuma palavra muito maluca cujo significadoetimológico é um mistério, embora já este-ja resolvido, mas ninguém tem coragem dedizer o que significa e eu não vou dizer, sóno livro ... E aí vou ter de ir embora.

Então é isso. Isso me dá projeto até os ...Tenho 56, até os 65 anos. Depois de 65 vousó fumar maconha. No Nordeste. Em umarede. Provando que amo este lugar. Aliás,amo mais que vocês todos juntos, seus ...Não, mas que vocês todos juntos não, mas éo seguinte: fui muito feliz no Nordeste. Mui-

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to feliz e muitas vezes. Fui muito, muito felizaqui. PÔ, fiquei uma semana no Raso da Ca-tarina. Vi o nascer da lua em Jericoacoara. Fi-quei lá com a Niede Guidon na Serra da Capi-vara ... PÔ, demais, que lugar, né? Depois vemos filhos da puta e vêm dizer que eu chameio Nordeste de uma bosta (gritando). É umabosta mesmo! O Nordeste é uma bosta! Aúltima frase desta entrevista é "0 Nordesteé uma bosta!" ... Tu juras que tu terminas as-sim?

Hélio - Tu queres que termine assim?

Eduardo - Se depois de tudo isso (trêshoras de entrevista) não der pra entenderque é uma brincadeira ...

Ronaldo - A entrevista do Xico Sá foramduas horas e vinte minutos, a sua foram três ...

Eduardo - Tá, mas eu tenho muito maisconteúdo que o Xico Sá (risos). Eu sou umapessoa com muito mais camadas que o XicoSá. Xico Sá nasceu no Crato! Imagina umapessoa que nasceu no Crato! Te põe no lugar!

(O professor Ronaldo Salgado é naturaldo Crato)

EDUARDO BUENO I 143

À porta do hotel, apertosde mão e abraços de des-pedida em agradecimentossaudosos de ambos os la-dos. Para citar Eduardo: nãosomos mais um grupo dehumanos fazendo a mesmacoisa (uma entrevista, umproduto), mas um grupo deindivíduos que se percebem.

Ao longo das três ho-ras de conversa, Eduardoacompanhou cada perguntae intervenção com olharesatentos, afirmações alegrese sorrisos respeitosos. Im-possível apontar se por edu-cação, ansiedade ou candu-ra, o jornalista se entregouà entrevista de corpo, alma,coração e manias.