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DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO MESTRADO EM COMUNICAÇÃO APLICADA ESPECIALIDADE EM ESTUDOS APLICADOS EM JORNALISMO TÍTULO: DO TRADICIONAL ESPAÇO PÚBLICO AO NOVODIGITAL. A APROPRIAÇÃO PELA AUDIÊNCIA NOS MEDIOS DIGITAIS. PARA UM ESTUDO DO PANORAMA PORTUGUÊS Autor: Ana Isabel Caxias Fonseca Orientadora: Prof.ª Doutora Inês Amaral Número do candidato: 20141203 Outubro 2017 Lisboa

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DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO APLICADA

ESPECIALIDADE EM ESTUDOS APLICADOS EM JORNALISMO

TÍTULO:

DO TRADICIONAL ESPAÇO PÚBLICO AO “NOVO” DIGITAL. A

APROPRIAÇÃO PELA AUDIÊNCIA NOS MEDIOS DIGITAIS. PARA

UM ESTUDO DO PANORAMA PORTUGUÊS

Autor: Ana Isabel Caxias Fonseca

Orientadora: Prof.ª Doutora Inês Amaral

Número do candidato: 20141203

Outubro 2017

Lisboa

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Por ti, Beatriz, a pessoa mais importante nesta vida

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A quem nos momentos mais complicados me apoiou: João, Paula.

À minha orientadora, Profª Dr.ª Inês Amaral,

o meu eterno agradecimento.

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Resumo

A criação da Internet e a evolução tecnológica provocaram uma mudança no paradigma

comunicativo. O que antes se limitava a uma sala, uma televisão e uma rádio alastrou-se a

ecrãs interativos e lugares diversos. A intensidade da comunicação aumentou, mas com ela

trouxe consigo um sentido paralelo de troca de informação, o que na prática revela o

potencial de transmissão, transformação e manipulação de dados por parte dos cidadãos. É

assim que o advento da rede e o reinado da esfera pública marcam os nossos tempos. O

espaço público, outrora limitado, abre fronteiras, dissipa-se e ganha caraterísticas muito

próprias: resiste às representações dos mass media e cria as suas próprias identidades e

manifestações. A esfera pública deixou assim de ser una, e começaram a existir diversos

fóruns de discussão, parte integrante da sua dimensão civil.

Neste contexto, a opinião pública ganha um papel principal na sociedade dos nossos dias: ela

influencia o poder político e é influenciada por ele. Historicamente, tem origem nos séculos

XVII e XVIII, mas no presente distancia-se do conceito original, mudança em tudo motivada

pela democracia de massa e pela sociedade de informação.

Nesta dissertação tentamos compreender como é que o reinado da Internet originou processos

de globalização, individualização e mediatismo sócio-comunicacionais. Daqui decorre a

nossa questão de investigação sobre o possível reconhecimento e a consequente apropriação

de um espaço público digital por parte de atores de distintas esferas.

Os objetivos específicos foram operacionalizados num estudo empírico que visou analisar, no

contexto português, o espaço público visível em meios de comunicação online. Para tal,

Jornal de Notícias (JN) e Público (que surgiram no offline, mas ganharam destaque no

digital, tanto em websites como em redes sociais) foram objeto de análise nas suas páginas de

Facebook, durante o mês de janeiro de 2017. Com base na metodologia da análise de

conteúdo, combinámos a vertente quantitativa com a qualitativa com o objetivo de aferir o

tipo de apropriação que os utilizadores fazem dos espaços públicos digitais destes media

nacionais nas páginas de Facebook e, por fim, quais as temáticas com maior participação dos

utilizadores nos espaços públicos digitais nos mesmos. Neste sentido, as hipóteses de trabalho

colocadas impliquem uma apropriação do espaço público digital pelos utilizadores ser feita

consoante as temáticas e posts publicados. Também a participação dos utilizadores está

condicionada aos temas da atualidade, e a interação no espaço público digital é maior quando

o conteúdo é multimédia e/ou visual. As temáticas internacionais foram alvo de maior

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abordagem, verificando-se o vértice excecional da morte do antigo Presidente da República,

Mário Soares. Por outro lado, a consequente interação do público com estes temas veio

salientar o interesse pelos primeiros, com um decréscimo pelo segundo.

Palavras-Chave: Espaço Público, Opinião Pública, Audiências, Rede, Digital.

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Abstract

The advent of the Internet and technological developments has changed paradigm of

communication. Television and a radio spreading to interactive screens changed what once

was limited to a room. The intensity of communication has increased, but has brought with it

a parallel sense of information exchange which reveals the potential for citizens to transmit,

transform and manipulate data. This is how network and public sphere mark our times. Public

space, once limited, opens frontiers, dissipates and gains characteristics of its own: it resists

the representations of the mass media and creates its own identities and manifestations. The

public sphere began to have a big variety of discussion forums, an integral part of its civil

dimension.

In this context, public opinion offers a major role in today’s society: it influences political

power and is influenced by it. Historically, it has been originated in the seventeenth and

eighteenth centuries, but nowadays it distances itself from the original concept, a change in

everything motivated by mass democracy and the information society.

We try to understand how Internet originated processes of globalization, individualization

and mediation. This raises our research on the possible recognition and the consequent

appropriation of a digital public space by actors from different spheres. The specific

objectives are operationalized in an empirical study that aims to analyze, in the portuguese

context, the public space visible in online media. For that, Jornal de Notícias (JN) and

Público were analyzed in their Facebook pages during January of 2017.

In order to access the level and type of appropriation that the users make of digital public

spaces like Facebook, we combined quantitative and qualitative aspects, such as the issues

they mostly use or the subjects which are mainly referred and discussed in this social network

by these users. The hypotheses implies a appropiation of the digital space by the users to be

done according to the theme and published posts. The participation of users is conditioned to

the usually issues, and the interaction in the digital public space is bigger when the content is

multimédia/visual. The international themes were the target of a greater approach, being

verified the exceptional item of the Mário Soares’s death. On the other hand, the consequent

interaction of the public with these themes emphasized the interest of the first ones, with a

decrease by the second.

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Keywords: Public Space, Public Opinion, Audiences, Network, Digital.

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8

Índice

Resumo

4-7

Índice 8-9

Índice de figuras 10

Índice de tabelas 11

Introdução

12-19

Capítulo I 20

1. Sobre o conceito de espaço público 20-23

1.1 Habermas e Luhmann. Opinião pública: duas perspetivas, um debate

23-29

Capítulo II 30

2.1 A evolução da noção de espaço público: o digital 30-35

2.2 Comunidades virtuais e comunidades imaginadas 35-37

2.3 Representações sociais: a necessidade de saber o que nos rodeia

37-38

Capítulo III 39

3.1 Sobre o conceito de audiência 39-41

3.2 Falar de audiências ou falar em públicos

41-43

Capítulo IV 44

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4.1 O estudo empírico 44-45

4.2 Metodologia 45

4.3 Amostra 46

4.4 Resultados e discussão

46-57

Conclusão 58-59

Referências bibliográficas 60-62

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Índice de Figuras

Figura 1: Evolução agregados domésticos com computador 2002 a 2014 40

Figura 2: Meios noticiosos com consulta de notícias online superior a

offline em Portugal

45

Figura 3: Top 3 dos conteúdos noticiosos no JN e no Público 47

Figura 4: Top 5 de engagements no JN 52

Figura 5: Top 5 de engagements no Público 53

Figura 6: Temáticas publicadas pelo JN 54

Figura 7: Temáticas publicadas pelo Público 55

Figura 8: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados JN 56

Figura 9: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados Público 57

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Índice de tabelas

Tabela 1: Agregados domésticos com computador - 2002 a 2014 40

Tabela 2: Agregados domésticos com computador por regiões - 2002 a

2014

41

Tabela 3: Publicações do JN 48-49

Tabela 4: Publicações do Público 50-51

Tabela 5: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados JN 56

Tabela 6: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados Público 57

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Introdução

O mundo, tal como o conhecemos hoje, é original e único. Original no sentido em que as

mudanças paradigmáticas tanto a nível social como comunicativo registadas desde há umas

décadas para cá fazem-nos crer que somos os principais responsáveis por ele ainda girar. E

único soberbamente ligado à capacidade inata que o ser humano tem vindo a mostrar de

querer, imaginar, criar e acelerar sempre o seu processo evolutivo. Desde a invenção da roda,

à criação da escrita ou tantas outras inovações o ser humano demonstrou sempre a capacidade

de se adaptar a novas realidades e transformar as oportunidades em seu proveito. É

precisamente isto que se passa com o fenómeno do aparecimento do digital: é como uma

segunda criação do mundo. Tudo mudou: estamos organicamente em Lisboa, mas à distância

dum clique de Paris, Londres, Madrid. Viajamos pelo mundo em minutos e isso é a pedra de

toque da essência imaterial dos nossos dias: a rapidez. Tudo a toda a hora, em todo o lugar.

As primeiras palavras de Gênesis dizem que “no início Deus criou os céus e a terra. A terra

era sem forma, vazia, escura e coberta de água. O Espírito de Deus flutuava sobre a água. E

Deus disse: “haja luz”, e ela apareceu. Deus viu que a luz era boa. Ousamos adaptá-las para a

origem daquele que foi, em termos gerais, o grande originador da mudança do paradigma

comunicacional: a rede e a sua criação.

É esta transformação do mundo em geral, e do processo sócio comunicacional que que se

inicia nos meados da Guerra Fria, quando os governantes americanos criam a ARPA

(Advanced Research Project Agency) de forma a poderem competir com os seus opositores

russos. E começou a fazer-se luz. Se bem que num método todo ele arcaico comparado com o

sistema atual, foi dado o primeiro passo para o desenvolvimento de uma comunidade virtual,

e assim… “Ele separou a luz da escuridão, e chamou a luz de «dia» e a escuridão de «noite»1,

o “ele” neste prisma mais humano e, ao mesmo tempo digital, é Vinton Cerf, considerado o

pai da Internet. Doravante evoluções comunicacionais e tecnológicas culminaram naquele

que é considerado o novo paradigma comunicacional: o objeto (no sentido tecnológico) é ao

mesmo tempo sujeito, e o que serviu no passado para encriptar mensagens tornou-se no

presente um veículo da sua transmissão, informações e conteúdos por excelência.

Com o passar do tempo e a natural evolução, tanto tecnológica como social, o que no começo

era uma ferramenta só de alguns generalizou-se, fundindo os media e a sociedade em geral

1 In Génesis

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num só, enquanto sujeitos da ação, capazes de obter a sua própria audiência, em que o fator

crucial é a liberdade - a livre escolha, a livre concorrência, o mercado livre, a livre opinião...

Mais: os primeiros, com o surgimento de redes sociais como o Facebook, Twitter, Instagram

ou Youtube, são ultrapassados em muitos casos pelo poder da ação de um ou mais indivíduos

utilizadores de uma rede para espalhar a palavra. Aliás, “graças à Web, o custo de publicar

algo à escala global caiu acentuadamente”, como escreve Shirky (2010, p. 19) a propósito de

um telemóvel perdido, cuja dona em parceria com o seu amigo Evan, move mundos e fundos

para tentar encontrá-lo, utilizando para isso uma “publicação em bruto”:

Podemos ver como Evan aceitou a sua parte deste compromisso com os seus utilizadores – estes

forneceriam a atenção que lhe permitiria continuar, o que tornava a história mais atrativa para os media

tradicionais, e o próprio Evan iria canalizar essa atenção, assinalando cada um dos seus passos. (Shirky,

2010, p. 19).

Este fenómeno é um grão de areia num novo deserto emergente: somos parte integrante de

uma história escrita a cada instante, e a nossa visibilidade social aumentou, tornamo-nos

ativos e um post que começa por um ato individual assume proporções sociais nunca antes

imaginadas. Existe uma incoerência entre dois aspetos fundamentais: a proposta para

participar no espaço público e, por outro lado, “a fragmentação dos discursos e dos interesses,

a coexistência, em todos os níveis da vida coletiva, de processos que nos vinculam e nos

tornam interdependentes juntamente com o enquistamento de diferenças que parecem

insuperáveis” (Innerarity, 2006, p. 7).

Vivemos numa sociedade de informação que molda a democracia da comunicação de massas

e que assiste, desde há muito, a um aumento do fluxo de informação. Cada vez mais os

cidadãos têm uma relação íntima com a tecnologia, e o uso de um computador e de uma rede

tornaram-se práticas comuns. A transformação dos processos de globalização,

individualização, comercialização e mediatismo em todas as áreas comunicacionais e da

sociedade é uma evidência. Os cidadãos do presente partilham as suas atitudes e opiniões

com outros cidadãos através da Internet. É, na prática, a participação da sociedade civil no

processo comunicativo. Para o mais comum dos mortais parece que todos têm alguma forma

tecnológica de aceder à Internet. A tal ponto que ficamos atordoados só de pensar na

possibilidade, por mais ínfima que seja, de ficarmos sem o tablet, o computador e,

principalmente, o telemóvel. A este propósito, referimos um estudo efetuado, em 2016, pela

Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), acerca das novas dinâmicas do

consumo audiovisual em Portugal que revelou que 75,2% dos inquiridos possui telemóvel ou

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smartphone, 52,9% portátil ou laptop, 48,5% computador tradicional ou desktop, 32,5% o

tablet e 30,2% consolas de jogos. No que concerne à televisão, 99% dos inquiridos afirmam

que veem regularmente programas televisivos. Com efeito,

Os dados comprovam a existência de um fosso geracional nas práticas de consumo, entre as gerações

mais velhas, que mantém a televisão e a sala de estar como principal meio e local privilegiado para o

consumo de conteúdos, por oposição às gerações mais jovens que, não obstante manterem uma

afinidade muito elevada com a televisão, diversificam os seus locais de consumo bem como os

dispositivos através dos quais acedem a conteúdos audiovisuais. A internet, e em particular as

plataformas participativas que hoje ocupam um lugar de relevo nas práticas de navegação online dos

indivíduos que acedem regularmente à rede, são claramente o motor da mudança da relação que existiu

até há algumas décadas entre cidadãos, a televisão, a rádio e a imprensa (ERC, 2016, p. 10).

Esta é uma temática atual que abre um infindável número de questões. Nesta investigação

assumimos como ponto de partida o advento da rede e o reinado da Internet no contexto da

esfera pública, considerando que:

A sociabilização em contexto digital reporta-se ao princípio de que um mundo de informação

(conteúdos, valores, objetivos) se apresenta num mesmo espaço, envolvendo os seus utilizadores para o

explorarem, desenvolvendo-o através da partilha e mantendo relações com outros elementos das

diversas redes em que participam. Com efeito, social networking resume a comunicação e interação

social direcionadas para o consumo de conteúdos, a partilha de informação e a expressão do Eu numa

sociedade de interesses ou valores partilhados, sem determinismo geográfico (Amaral, 2016, p. 13).

Questionamos se não será este fenómeno que já defendia Arendt (1958) como definição de

público: aquele que tem a maior divulgação possível de modo a ser visto e ouvido por todos e

a consequente forma como nós e os outros vemos a realidade (aparência).

Neste contexto, torna-se necessário abordar a opinião pública como um ator crucial na

sociedade dos nossos dias. Ela influencia o poder político e é influenciada por ele, mas não

só. A noção de público pluralista, tão estudada por Jürgen Habermas, entra no seu auge com

o crescente uso da Internet e de fóruns de discussão diversos que fazem parte da dimensão

civil da esfera pública geral. Mas mais. É um público que resiste às representações dos mass

media e que cria as suas próprias identidades e manifestações. A esfera pública deixa de ser

una e passam a existir diversos fóruns de discussão que fazem parte da dimensão civil da

esfera pública geral.

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Em A Sociedade em Rede (2000), Castells define os media como “um sistema de feedbacks

entre espelhos deformadores”, no sentido em que estes são “expressão da nossa cultura” que,

ela própria funciona essencialmente “por intermédio dos materiais proporcionados pelos

media”:

Nesse sentido, o sistema dos mass media preencheu a maioria das características sugeridas por

McLuhan no início dos anos 60: a Galáxia de McLuhan. No entanto, o facto de a audiência não ser um

objeto passivo, mas sujeito interativo, abriu caminho para sua diferenciação e subsequente mudança

dos media que, de comunicação de massas, passaram a segmentar-se, adequaram-se ao público e

individualizaram-se, a partir do momento em que a tecnologia, as empresas e as instituições permitiram

essas iniciativas (2000, p. 443).

É precisamente daqui que decorre a justificação desta investigação: aferir se, tal como

postulou Habermas (1997), a esfera pública passa a ser uma rede de comunicação de

conteúdos, de tomadas de posição e de opiniões, em sintonia com a prática comunicativa

quotidiana, operacionalizando uma alteração do conceito de espaço público que se traduz

numa dicotomia de esferas que se influenciam e potenciam o aparecimento de novos atores

públicos.

Neste sentido, desenvolvemos uma investigação sobre o espaço público e a sua apropriação

pela audiência nos meios digitais. A problemática em estudo é o espaço público em rede e na

rede. O tema deste trabalho rege-se no domínio da possível existência de uma interligação

entre o espaço público tradicional e o digital, entendido como o novo, e a sua possível mútua

influência.

O conceito de espaço público atual vai mais além da dicotomia entre universalidade moderna

e a diferença particular. Será que, tal como defende Innerarity, o segredo está na

determinação do “que pode hoje significar uma cultura pública comum”, bem como no

“entender a política para o mundo comum” (2010, p. 9)? Já que, para este, espaço público

É um conceito que poderia contribuir para se resolver de outro modo esse velho debate que tem vindo a

articular-se ininterruptamente, com diversos matizes, entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos

modernos, o bom e o correto, liberdades positivas e liberdades negativas, vontade geral e vontade de

todos, direitos humanos e soberania, entre liberais e republicanos, liberalismo e comunitarismo,

liberalismo e democracia (2010, pp. 9-10).

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Esta é uma temática atual que abre um infindável número de questões. Parafraseando

Innerarity, não podemos ignorar que muitas áreas da vida social “poderiam caber sob a

denominação de espaço público” (2010, p. 10). Mas no seu sentido mais estrito, “o conceito

refere-se ao tipo de comunicação que é efetuada pelos atores sociais na esfera em que são

decididos os assuntos de interesse comum” (Innerarity, 2010, p. 10).

Assim, procuraremos compreender como é que estes fenómenos eclodiram em processos de

globalização, individualização, comercialização e mediatismo por todas as áreas

comunicacionais e da sociedade. Daqui decorre a nossa questão de investigação: “Existe um

espaço público digital que é reconhecido e apropriado pela audiência?”.

Na sociedade contemporânea, os media tornaram-se preponderantes nas relações

comunicacionais. Até ao início da era Moderna a troca de informações e de conteúdo

simbólico era um processo de interação face-a-face. A partir do desenvolvimento mediático

dos séculos XIX e principalmente XX, a parceria de interações da vida social transformou-se.

A interação face-a-face do passado é agora complementada, e muitas vezes ultrapassada, por

outros meios.

Fenómenos como os ocorridos em 2015, nomeadamente dois jornalistas que são mortos, no

estado da Virgínia nos Estados Unidos da América, em pleno exercício das suas funções ou o

caso da agressão de um agente policial a um homem, após o jogo em que o Sport Lisboa e

Benfica se sagrou campeão a 17 de maio marcaram o espaço público digital. Facto a

acrescentar: no primeiro exemplo, o homicida filma os seus atos e publica na sua conta do

Twitter. Rasgos de loucura difíceis de explicar, mas que nos colocam numa moderna

encruzilhada da revolução digital: a par da evolução tecnológica, também o poder do

indivíduo na rede mudou, e o lugar do gatekeeper está em mutação. É, por isso mesmo,

importante sublinhar, numa visão sociológica e comunicacional, o que está a acontecer no

presente: alguém faz alguma coisa e publica isso numa rede social. Mais: em alguns casos os

media seguem-no. Não foram estes os produtores da notícia, mas sim o sujeito da ação. Aliás,

A mudança fundamental no domínio da comunicação foi a emergência do que chamei de

autocomunicação – o uso da internet e das redes sem fio como plataformas da comunicação digital. É

comunicação de massa porque processa mensagens de muitos para muitos, com o potencial de alcançar

uma multiplicidade de recetores e de se conectar a um número infindável de redes que transmitem

informações digitalizadas pela vizinhança ou pelo mundo. É autocomunicação porque a produção da

mensagem é decidida de modo autônomo pelo remetente, a designação do recetor é autodirecionada e a

recuperação de mensagens das redes de comunicação é autosselecionada. A comunicação de massa

baseia-se em redes horizontais de comunicação interativa que, geralmente, são difíceis de controlar por

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parte de governos ou empresas. Além disso, a comunicação digital é multimodal e permite a referência

constante a um hipertexto global de informações cujos componentes podem ser remixados pelo ator

comunicativo segundo projetos de comunicação específicos. A autocomunicação de massa fornece a

plataforma tecnológica para a construção da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo,

em relação às instituições da sociedade. É por isso que os governos têm medo da internet, e é por isso

que as grandes empresas têm com ela uma relação de amor e ódio (Castells, 2013, p. 15).

No outro caso referido, um cidadão anónimo filma e publica na rede. Rapidamente se tornou

viral, com os órgãos de comunicação, também eles, a fazerem uso destas imagens. E com isto

toda uma réplica de acontecimentos secundários tornaram-se notícia. Aliás, já este processo

de «marginalização» do jornalismo como uma outra fonte qualquer tinha sido previsto por

Hartley:

Individuals will exercise their right to communicate – but won’t bother with other journalism, whether

individual or industrial. The public will comprise more writers than readers. Such an eventuality

contradicts the historic achievement of journalism itself as a textual system, namely the creation of the

most important reading public of modernity – the public itself. The prospect of the democratization of

public writing is therefore a serious threat to journalism as we know it (2000, p. 43).

É a chamada “cultura participativa” de Jenkins (2009) que atingiu níveis nunca antes vistos.

Ao que tudo indica os cidadãos têm mesmo vontade de partilhar as suas atitudes e opiniões

com outros cidadãos através da Internet. É a participação da sociedade civil na “auto-

comunicação de massa” que pode ser estudada para uma apreensão crítica das audiências.

No estudo sobre Públicos e Consumos de Media (2015), levado a cabo pela ERC, foram

divulgados alguns dados importantes que sustentam a razão da nossa investigação. À

pergunta «Qual dos seguintes recursos usou na semana passada como fonte noticiosa?»,

66,2% dos inquiridos declarou preferir as redes sociais, e 54% websites e aplicações de

jornais (ERC, 2015, p. 27). Igualmente pertinentes surgem as respostas à questão «Qual a

importância que atribui a cada um dos recursos, quando se quer informar sobre um assunto

em geral, online?». Segundo o mesmo estudo, o computador aparece já em segundo lugar

como principal meio de pesquisa de notícias (com cerca de 50% dos inquiridos a usarem este

meio durante 20 minutos ou mais no dia precedente ao inquérito), só ultrapassado pela

televisão e à frente dos jornais impressos e da rádio, o que representa o crescente aumento da

Internet no que diz respeito ao consumo de notícias (ERC, 2015, p. 28). Mas não podemos

ficar por aqui. Internet e a plataformas participativas são dois fatores dinamizadores dos

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indivíduos que navegam online com regularidade e “são claramente o motor de mudança da

relação que existiu até há algumas décadas entre os cidadãos, a televisão, a rádio e a

imprensa” (ERC, 2016, p. 10). Daí que a investigação levada a cabo nos últimos anos

dedique especial enfoque às audiências a ao papel que estas “podem desempenhar na

configuração das mensagens mediáticas” (Ribeiro, 2017, p. 8). Trata-se não tanto do que “os

media fazem às pessoas” (Ribeiro, 2017, p. 8) mas sim “do que as pessoas podem fazer com

os média, nos média e através dos media” (Ribeiro, 2017, p. 8), o que

Tem colocado em evidência o desejo de dar à opinião pública espaço de expressão. Com novas

possibilidades técnicas, os próprios média propõem hoje um modelo de comunicação mais aberto, mais

colaborativo e mais dinâmico. Neste novo contexto, modelado pelas promessas do ciberespaço,

assistimos à emergência de práticas ditas inovadoras, como o jornalismo participativo ou do cidadão

[...] (Ribeiro, 2017, p. 8).

Ora, e seguindo este caminho, o objetivo geral desta investigação é o de determinar se existe

uma apropriação do espaço público no digital português por parte da audiência anónima.

Neste sentido, são objetivos específicos: a). avaliar se e como as audiências fazem uso dos

espaços públicos dos media nacionais no Facebook; b). analisar quantitativa a participação do

público nesses mesmos espaços; c). identificar, categorizar e analisar os temas mais

discutidos.

No que diz respeito aos objetivos específicos, estes são operacionalizados num estudo

empírico que visa analisar, no contexto português, a participação da audiência no espaço

público promovido pelos media nacionais no Facebook. O objeto de estudo são as páginas no

Facebook de dois meios de comunicação nacionais que nasceram no offline e têm presença

digital, analisados ao longo do mês de janeiro de 2017. Com o estudo empírico

ambicionamos aferir 1). a apropriação que os utilizadores da rede fazem dos espaços públicos

digitais dos media nacionais no Facebook; 2). que tipo de apropriação fazem os utilizadores

dos espaços públicos digitais dos media nacionais no Facebook; 3). que temáticas são objeto

de maior participação dos utilizadores nos espaços públicos digitais destes media nacionais

no Facebook.

Quanto à metodologia utilizada, num primeiro momento, desenvolvemos uma pesquisa

bibliográfica como forma de levantamento do estado da arte e explanação de conceitos

importantes para este trabalho. Em seguida, trabalhámos numa lógica quantitativa com

recurso à netnografia, uma metodologia de pesquisa interpretativa que se adapta as técnicas

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tradicionais etnográficas de investigação da antropologia para o estudo das culturas e

comunidades online formadas através da comunicação mediada por computador (Kozinets,

2010). A abordagem metodológica em que ancoramos esta dissertação centra-se no

cruzamento da netnografia com a análise quantitativa, que se refere ao conjunto de métodos

quantitativos que são utilizados na análise e descrição de um determinado fenómeno. Para

isso, servimo-nos de uma amostra do panorama português, onde foram selecionados dois

media digitais que têm a sua origem no offline: o Jornal Público e o Jornal de Notícias (JN),

numa margem temporal respeitante a janeiro de 2017, no Facebook. Para determinar as

publicações e participação dos utilizadores nestes espaços, foram delimitadas as seguintes

categorias na análise quantitativa: posts, temáticas, likes, comments, shares, engagements e

conteúdo.

As hipóteses de trabalho delineadas para esta dissertação e que pretendemos verificar são:

H1). A apropriação espaço público digital pelos utilizadores está subjacente às temáticas dos

posts publicados; H2). A participação no espaço público digital dos utilizadores é

condicionada pelos temas da atualidade; H3). A interação no espaço público digital é maior

quando o conteúdo é multimédia e/ou visual.

A todo este panorama prático, juntamos dados teóricos, já anteriormente abordados por

autores como Habermas, Arendt e Luhmann nas suas conceptualizações sobre o espaço

público e agregamos a problemática da rede e o que esta implica para e na sociedade atual.

No primeiro capítulo trabalhamos os conceitos de espaço público e opinião pública a partir de

diversos autores. Em seguida abordamos a evolução destes conceitos com o aparecimento do

digital. O terceiro capítulo centra-se na noção de audiência que entra em mutação com a

apropriação da rede pelos utilizadores. No quarto capítulo apresentamos, de forma

sistematizada, o nosso estudo empírico e os resultados obtidos. As principais conclusões, as

limitações do trabalho e as linhas de investigação futuras são apresentadas na última seção

desta dissertação.

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Capítulo I

1. Sobre o conceito de Espaço Público

O presente capítulo pretende clarificar uma ideia que, por si só, gera controversas definições:

o espaço público. Etimologicamente falando, ao separarem-se os dois termos, definimos o

primeiro, o espaço (do latim spatiu), como uma extensão indefinida, um lugar, uma área.

Quanto ao segundo, o público, classifica-se como substantivo masculino, ou como adjetivo

que:

“pertence ou diz respeito à massa geral dos habitantes de uma localidade. Pertencente ou concernente

ao povo; popular. Que diz respeito ao governo geral do país. Que é do uso e domínio de todos; comum.

Que é manifesto, vulgar, conhecido de todos, notório. Universalmente conhecido. Que se faz na

presença de quaisquer pessoas que se apresentem. Em que todos podem contribuir. Que pertence a

todos. Que corre, que se espalha como fama ou boato, que é dito por toda a gente” (Machado, 1981,

Tomo IX, p. 552).

Nas palavras de Innerarity, o conceito de público assemelha-se ao “instante mágico, sem

consequências práticas, de quem convoca uma greve ou a desaconselha com um apelo à

responsabilidade (...)”, acrescentando:

(...). Uma semelhante nostalgia da unidade explica o ato de exaltar a conveniência de um novo imposto,

de apelar à austeridade pública, de conjurar algum perigo para se pôr à frente dos medrosos, de

mencionar o interesse das gerações futuras ou de entoar um hino patriótico: uma breve ilusão de

unidade num mundo inexoravelmente fragmentado (2010, p. 8).

É a este propósito que se ouve frequentemente expressões como “a bem do interesse

público”, justificativas de um bem maior, superior, em tudo relacionado com uma política

que confere possibilidades de se “tratar realmente de qualquer coisa comum e integradora e

lhe conferir uma forma institucional – dos governos locais às mais complexas articulações da

cena mundial” (Innerarity, 2010, p. 8). E a consequente necessidade “de se pensar uma certa

ideia de bem comum num espaço mais civil e republicano que individualista” (Innerarity,

2010, p. 64).

Ora, quando juntamos aqueles dois conceitos podemos dizer, logo à partida, que o espaço

público é um lugar aberto a todos que, e por oposição ao privado, se torna acessível a uma

grande parte das pessoas: uma esfera de deliberação em que se articula o comum e onde são

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tratadas as diferenças que resultam de uma construção laboriosa e frágil. Varia consoante um

trabalho contínuo de representação, argumentação, e encontra na imediatez da política

estratégica e falta de estrutura dos espaços globais abstratos, as suas principais ameaças

(Innerarity, 2010). Mas este é apenas o ponto de partida para o que Esteves categoriza como

espaço público já “que não é propriamente físico ou territorial, mas um espaço simbólico de

reunião de diferentes públicos (do qual, porém, os espaços físicos propriamente ditos não se

encontram excluídos)”, por outras palavras, “é um espaço que projeta a simbolicidade própria

desses mesmos públicos (ou dos públicos em geral) a uma escala superior. E espaço público

será, assim, como que o grande público (imaginário) dos diferentes públicos (concretos)”

(2011, p. 166). Já no século passado, Arendt, sob uma perspetiva filosófico-política,

sublinhou um mundo próprio “na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar

que nos cabe dentro dele. Este mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como

espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica” (1958, p.

66).

Espaço público, opinião e/ou esfera pública. Três termos que têm sido alvo de acesas

discussões e extensas perspetivas deontológicas. Não só pelo seu significado empírico, mas, e

principalmente, pela sua mudança paradigmática, muito provocada pela alteração do papel do

indivíduo na sociedade e pelos meios que utiliza para o desempenhar. O modelo de

democracia deliberativa vem promover discussões abertas onde a comunicação é

argumentativa e “se caracteriza pela tentativa de fornecer alguma justificação ou alguma

prova para apoiar as afirmações, os juízos e as pretensões” (Innerarity, 2010, p. 65) que por si

só podem ser alvo de objeções e falibilidades.

A esfera pública é um espaço onde os cidadãos podem convencer e ser convencidos ou amadurecer em

conjunto novas opiniões. Os processos são decisivos, já que os interesses e as preferências dos cidadãos

não são predeterminados nem constituem, na sua generalidade, um todo coerente (Innerarity, 2010, p.

65).

É um legado de incerteza que conduz a uma forma de democracia deliberativa. Modelo este,

aliás, que Habermas introduziu já em Entre Factos e Normas (1996) ao explicar que a

formação da opinião pública pode ser institucionalizada, e que para isso muito contribuem os

processos comunicativos de formação, transformação de interesses e identidades dos

indivíduos. Aquele que é considerado um dos pensadores mais importantes da modernidade é

o grande responsável por esta noção de democracia, que tem em si duas funcionalidades: por

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um lado, é descritiva, e por outro, normativa. Introduz também, e segundo Silveirinha, o

termo “ética discursiva” em que:

Os cidadãos são movidos por um conjunto de capacidades comunicativas que garantem que se podem

reconhecer uns aos outros na esfera política como iguais e realizar juntos as condições de liberdade ou

auto-realização, por deliberação e ação. Assim, para Habermas, o espaço público abrange não só o que

para Rawls é a cultura subjacente (a esfera pública informal onde se desenvolve a formação da opinião,

em termos habermasianos), mas também o que é para Rawls a “cultura pública política” e que, para

Habermas são os processos políticos formalmente institucionalizados de opinião política e formação da

vontade (2006, p. 10).

Desta forma, o sentido normativo das instituições está estritamente ligado ao Estado de

Direito e à sua coerção legítima, anteriormente defendido por Kant, e relembrado por

Habermas, a propósito da dicotomia entre vontade e opinião na formação discursiva nas

democracias de massas e do Estado Social. Por outras palavras existe a necessidade de

salvaguardar o “desnivel entre el autointerés ilustrado y la orientación hacia el bien común,

entre los roles del cliente y del ciudadano” (Habermas, 1994, p. 28). A regra da maioria

ganha assim importância, já que se torna como que uma força moral argumentativa para

legitimar o poder jurídico-político, e “una decisión por mayoría debería sólo realizarse de un

modo tal que su contenido pudiera valer como el resultado motivado racionalmente”

(Habermas, 1994, p. 29) e os procedimentos legais tornam-se assim validados.

Se ao espaço público cabe a noção de lugar (físico ou não) onde se centra o comum, a opinião

pública é o que aí se manifesta. Esta deriva, logo à partida, da noção de opinião, que é um

juízo de valor, uma opinião individual. O que implica assim uma atitude pessoal e subjetiva,

fundamentada nas capacidades racionais de quem emite o juízo, mas também na sua própria

experiência e vivência social. De uma forma objetiva é a opinião de um indivíduo num grupo,

e num público. A opinião pública tem origem numa reflexão coletiva e, nesta arena

comunicacional, forma-se com base em fatores sociais e psicológicos, mas também sob a

influência de grupos e de líderes e de uma comunicação de massas. Todas as opiniões e

decisões que tomamos terão sempre a ver com a nossa formação pessoal, mas também com as

trocas que fazemos diariamente com outros membros da sociedade (relações interpessoais),

bem como com a informação que recebemos através dos órgãos de comunicação.

Nesta linha de pensamento destaca-se a ideia de “mecanismo de seleção temática” defendida

por Luhmann (1970), que atribui um carácter funcional à opinião pública:

Dentro do universo à partida potencialmente ilimitado de assuntos passíveis de uma qualquer tomada

de decisão, a opinião pública vai operar uma redução desta complexidade (e improbabilidade da

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comunicação), concretizando a seleção de um núcleo restrito de temas – a partir do qual o sistema

político pode adquirir a sua capacidade efetiva de intervenção. A “opinião pública” deixaria assim, de

facto, de ser (ou poder vir a formar) uma verdadeira opinião. Não qualifica (legitima) qualquer decisão,

criaria apenas as condições necessárias para o sistema político garantir a capacidade de decisão regular

(Esteves, 2005, p. 316).

Já Tocqueville advertia, na sua obra Da Democracia na América (1840), para a ameaça do

governo da maioria poder originar formas de insensibilização das pessoas (como que uma

doce ignorância) levando a cabo um reinado da opinião pública soberana, por si só é

castradora.

Quanto mais atento nos efeitos da igualdade sobre a inteligência, mais me persuado que a anarquia

intelectual de que somos testemunhas não é, como muitos o supõem, o estado natural dos povos

democráticos. Creio que é preferível considerá-la como um acidente particular da sua juventude, e que

ela apenas se apresenta nesta época de passagem, em que os homens já se desligavam dos antigos elos

que os uniam reciprocamente, enquanto ainda diferem uns dos outros pela sua origem, educação e

costumes; de tal maneira que, tendo conservado ideias, instintos e gostos muito diversos, já nada os

impede de os produzirem (Tocqueville, 2008, p. 391).

Adiantando ainda o autor que se “tornam semelhantes as principais opiniões dos homens à

medida que as condições se aproximam” (Tocqueville, 2008, p. 391). Ora, esta questão está

diretamente relacionada com uma falência do reino da crítica, constantemente ameaçado por

uma emergente força da opinião cuja sua única lei é a omnipotência política da maioria, isto

é, uma opinião que deixou de persuadir com as suas convicções e se limita a impô-las e a

fazê-las penetrar nos espíritos através de uma espécie de imensa pressão exercida sobre a

inteligência de cada um. “É muito difícil ser-se ouvido por homens que vivem em democracia

quando os assuntos de que tratamos não lhes dizem respeito diretamente” defende

Tocqueville, acrescentando que “(...) é muito difícil provocar o entusiasmo de um povo

democrático por uma teoria que não tenha uma relação palpável, direta e imediata com a sua

vida quotidiana” (2008, p. 392).

É assim que, aquele que é considerado um dos primeiros teorizadores sobre o conceito de

espaço público, problematiza a questão do livre intercâmbio de opiniões racionais, abertas e

críticas:

Tocqueville trata a la opinión pública más como coacción que impele a la conformidade que como una

potencia de la crítica (…) cree también vivir en una época en la que hay que considerar a la opinón

pública como una fuerza que, en el mejor de los casos, puede servir para limitar al poder, pero a la que,

en cualquier caso, hay que someter também de un modo efectivo (Habermas, 1990, pp. 164-165).

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A opinião é um juízo de valor que é feito, e não o acontecimento em si. Por outras palavras, é

uma tomada de conhecimento sobre algo que aconteceu. É interna e dependente do homem e

o modo de expressão acerca de uma sua atitude. Arendt assegura que “no mundo público, só

é tolerado o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de modo que o

irrelevante torna-se automaticamente assunto privado” (1958, p. 66), utilizando para isso

exemplos como a dor física, privada e menos comunicável, e o amor, pela sua caraterística

extraterrena. O facto de a esfera pública fazer esta seleção entre assuntos relevantes e

irrelevantes não retira encantamento aos segundos, aliás, a autora defende que “pode ter um

encanto tão extraordinário e contagiante que todo um povo pode adotá-lo como modo de

vida, sem com isso lhe alterar o caráter essencialmente privado” (1958, p. 66), utilizando para

isso o exemplo francês e a arte de ser feliz nas pequenas coisas, o Petit bonheur do século

XX, um primórdio, diríamos nós, da Higge dinamarquesa.

1.1 Habermas e Luhmann. Opinião Pública: duas perspetivas, um debate

Habermas é um dos filósofos que não podemos ignorar, ora pelos seus contributos

académicos, ora por nos identificarmos com a sua visão histórica-sociológica. Três das obras

que publicou representam um marco histórico do seu pensamento ao longo dos anos. Mas

elas próprias se diferenciam entre si. Mudança Estrutural da Esfera Pública publicada em

1962; A Teoria da Ação Comunicativa de 1981; e Entre Factos e Normas de 1992 que se

aproxima mais da primeira. A evolução do seu pensamento tem origem em dois momentos da

sua trajetória de investigação. Um primeiro, ainda sob as premissas da Escola de Frankfurt.

Nestas décadas as suas reflexões eram marcadas pela crítica ao processo de emancipação do

sujeito. Em Mudança Estrutural da Esfera Pública traça um panorama relacional entre as

esferas pública, privada e íntima da Grécia Antiga até ao século XX, e aponta o iluminismo

como precursor do início da decadência da vida pública. Provoca assim uma inversão de

premissas: a publicitação da esfera privada e a privatização da vida pública.

Quanto ao outro momento que marcou o seu pensamento, reportamo-nos à obra A Teoria da

Ação Comunicativa (1980) onde abraça o paradigma da comunicação: a sociedade passa a

estar em permanente tensão entre o mundo sistémico e o mundo da vida. O papel dos sujeitos

no espaço público muda: eles interagem entre si e podem interferir na realidade social, por

outras palavras é a emergência de espaços públicos múltiplos com uma pluralidade de vozes.

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Surge uma arena pública onde os sujeitos são participantes ativos do debate, da negociação e

da interlocução, e as esferas pública e privada misturam-se (Oliveira & Fernandes, 2011).

A teoria habermesiana da esfera pública faz-se independentemente do âmbito doméstico ou

familiar, exterior a convenções religiosas ou políticas. É, no seu sentido mais lato, a

existência de um espaço para as pessoas exteriorizarem aspetos da vida, onde são

examinados, discutidos e argumentados. Perspetiva abordada por Dahlgren que fala num

pensador que defende a esfera pública uma área onde se trocam informações e pontos de vista

acerca de questões comuns. “[…] Toma lugar quando os cidadãos, exercendo os direitos de

reunião e associações, se congregam num corpo público para discutir questões do dia,

especialmente os que são relativos à política” (1997, p. 7).

O pensamento de Habermas rege-se pela multiplicidade de significados de espaço público,

consoante a fase histórica, bem visível nas palavras seguintes:

L’usage que fait la langue des termes «public (ooffentlich) et «sphère publique (Offentlichkeit)» révèle

une pluralité de significations concurrentes qui proviennent de phases historiques diferentes. Et

lorsqu’on veut les appliquer de façon synchronique à certains rapports inhèrents à la société bourgeoise

industriellement avancée et dotée de la constitution d’un État-social, cette mise en relation reste

obscure (Habermas, 1990, p. 13).

O filósofo fala numa esfera pública burguesa2, como instância de reivindicação de poder, um

“fórum para onde se dirigiam as pessoas privadas a fim de obrigar o poder público a se

legitimar perante a opinião pública” (2003, p. 40), fundamentando “a separação entre a esfera

pública e a privada, mediando-as, mas sem confundir-se nem com o poder do Estado, nem

com a economia do mercado” (Guedes, 2012, p. 2). Esta esfera baseava-se no uso público da

razão, que implicava comunicar publicamente os pensamentos, por meio do discurso

racional: a publicidade crítica substituía a publicidade representativa e “desse confronto

surgia a esfera pública liberal, fundada na conversão crítica dos indivíduos entre si” (Guedes,

2012, p. 2). Significa então que “a esfera pública burguesa, portanto, constituía-se no locus de

exercício da problematização e da crítica de atores livres contra o poder do Estado, com a

finalidade de pressioná-lo e de interferir nas decisões sobre as políticas públicas, em direção

aos anseios, expectativas e interesses universais” (Guedes, 2012, p. 2).

Por un lado, el ejercicio del poder necessita del control permanente de la opinión pública – puesto que

«está amenezada por una serie de tentaciones» -; la publicidade de los debates parlamentários assegura

2 Que “pode ser compreendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas num público; elas

reivindicam esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a

fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante,

as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social” (Habermas, 2003, p. 40).

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una «supervisión del público», cuya capacidade crítica se da por sentada: «La totalidade de ellos

constituye un tribunal de más valor que todos los tribunales juntos. Puede uno ponerse terco respecto

de sus exigências, puede uno considerarla como un conjunto de opiniones limitativas y divergentes que

se anulan y destruyen mutuamente; pero todo el mundo percebe que esse tribunal, aun cuando no

exento de la posibilidad de error, es incorruptible; que busca constantemente aclararse, que contiene la

entera sabiduría y justicia de un Pueblo, que decide sempre acerca del destino de los hombres de

Estado. Y que las penas que impone son ineluctables (Habermas, 1990, pp. 133-134).

As reuniões eram feitas em salões e cafés, e essa esfera pública era constituída por atores

masculinos e de elite, onde ficavam de parte as mulheres e os escravos. Ora, aqui não

poderíamos deixar de sublinhar a pouca acessibilidade a esta opinião que se dizia pública: era

o termo universal a ser posto em causa já que não todos, mas sim só alguns podiam fazer

ouvir as suas opiniões. Era um espaço de representação dos proprietários e dos seus interesses

particulares3, uma troca de ideias da sociedade “oficial”.

Entretanto, o pensador alemão explora uma ideia em que, à medida que setores públicos e

privados se misturam e confundem, deixa de haver uma esfera pública burguesa. Surge a

imprensa comercial e a televisão – junta informação com entretenimento – e o espaço da

argumentação e crítica começa a diminuir. A estas mudanças no espaço público junta-se-lhes

as relações públicas, principalmente no período entre a primeira e segunda Guerra Mundial,

quando as grandes empresas americanas transformaram a sua estratégia comercial, motivadas

pelas mudanças nas reformas sociais. E logo este novo conceito se propagou à Europa,

impondo-se sobre a publicidade tornando-se num fenómeno crucial na vida pública já que

cria novidades e utiliza interesses despoletados por estímulos.

El reclamo publicitario privado va destinado a otras personas privadas en tanto son susceptibles de

convertirse en consumidores; las public relations se dirigen a la «opinión pública», a las personas

privadas como público y no como consumidores. El remitente de tal mensaje camufla sus intenciones

comerciales desempeñando el rol de alguien interesado en el bien público (Habermas, 1990, p. 220).

A propósito desta questão, Thompson escreveu em Os Media e a Modernidade sobre o

declínio da esfera pública burguesa de Habermas, referindo o grande contributo do aumento

intervencionista do estado e as “maiores responsabilidades na administração do bem comum

dos cidadãos” (1998, p. 71) originando um maior interesse participativo por parte dos grupos

intervenientes enquanto que as instituições outrora impulsionadoras da esfera burguesa foram

3 Neste ponto Thompson critica Habermas por ter deixado de parte outras formas de discurso e atividades

públicas existentes entre o século XVII e o século XIX que foram excluídas ou oponentes da esfera pública

burguesa, como os movimentos sócio-populares.

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desaparecendo com o tempo. Também o consumo de media se alterou: “o que antes era um

fórum exemplar de debate crítico-racional torna-se apenas de mais um domínio de consumo

cultural, e a esfera pública burguesa esvazia-se num mundo fictício de imagens e opiniões”

(Thompson, 1998, p. 71).

Habermas enfatiza, a partir da década de 90, a ideia de um público pluralista, que vai

resistindo às representações dos mass media e que cria as suas próprias manifestações. A

esfera pública deixa de ser una e passam a existir fóruns de discussão diversos que fazem

parte da dimensão civil da esfera pública geral.

A esfera pública passa a ser descrita por Habermas (1997) como uma rede de comunicação de

conteúdos, de tomadas de posição e de opiniões, em sintonia com a prática comunicativa quotidiana.

[…] A tematização de questões de interesse do bem-estar social por organizações específicas provoca a

demarcação de novos espaços participativos e, por conseguinte, a ampliação do jogo de disputa entre

interesses e opiniões e a possibilidade de ocorrência de conflito. […] A admissão de novos

interlocutores […] reconfiguram o espaço reconhecido para a participação política (Guedes, 2012, p.

5).

É este o paradigma da comunicação habermasiano:

Não é a relação de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo que pode ser representado e

manipulado, mas a relação intersubjetiva, que sujeitos que falam e atuam, assumem quando buscam o

entendimento entre si, sobre algo. Ao fazer isto, os atores comunicativos movem-se por meio de uma

linguagem natural, valendo-se de interpretações culturalmente transmitidas e referem-se a algo

simultaneamente em um mundo objetivo, em seu mundo social comum e em seu próprio mundo

subjetivo (Habermas, 1984, p. 392).

E é precisamente esta uma das premissas que Luhmann critica, propondo, por seu turno, uma

Teoria dos Sistemas Sociais. Ou seja, se em Habermas apenas é possível a construção de

significados através da discussão, em Luhmann isso não se verifica, já que, e sob um ponto

de vista funcionalista, “concebe a sociedade como sistema hipercomplexo, caracterizado pela

superespecialização funcional onde a opinião pública, nomeadamente a veiculada pelos

media e pelo parlamento exercem uma função de tematização ou canalização da discussão

que conduz à redução da complexidade real” (Correia, 2011, p. 44). E neste ponto há uma

particularidade no que Correia sublinha quando acrescenta que assim, “a Escola Crítica de

Frankfurt apresenta uma visão catastrofista da opinião pública como estando à mercê das

tendências irracionais e consumistas da «sociedade de massa»” (2011, p. 44). A propósito,

Luhmann (1967) descreve aos seus alunos de Münster que:

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[...]. Só os sistemas podem servir de meios da ilustração, não o público em livre discussão. [...] Não se

pode pressupor a redução da complexidade como capacidade humana inata, como razão, e já nem

sequer conjeturar que todos os homens participam de igual modo dessa capacidade, a abertura à

discussão pública não chega para realizar a ilustração. [...] Não é já a libertação da razão para uma

comunicação não coagida que clarifica, mas apenas uma intensificação efetiva do potencial humano

para a apreensão e a redução da complexidade (2005, p. 45).

Luhmann surge como principal defensor de uma transdisciplinaridade do conhecimento

científico, transpondo para a sociologia disciplinas como a cibernética, a física, a economia, a

psicologia ou a biologia, esta última personificada muito em Maturana e Varella, criando com

isto significações novas para termos já existentes. É o caso de autopoiesis, auto-referência,

diferenciação entre sistema e ambiente, operação, sentido e a própria comunicação. Defende

de igual forma a importância da comunicação para uma noção central de sistema (social)

mais abrangente, já que a primeira é a pedra de toque da reprodução no segundo.

Numa tentativa de “tornar visíveis, caracterizar e explicar os aspetos centrais da sociedade

moderna e da cultura da modernidade” (Santos, 2005, p. 8), a teoria de Luhmann baseia-se

numa “diferenciação funcional”, e com isto “não só o mundo não é um sistema, mas, além

disso, não há nenhum sistema que possa abarcar todos os aspetos da complexidade do

mundo” (Santos, 2005, p. 9). Defende a sociedade como um sistema autopoiético (autónomo)

que, por definição, é um sistema complexo e fechado que reproduz os seus elementos e

estruturas com a ajuda dos seus próprios elementos. Como tal, sistemas sociais e sistemas

psíquicos diferenciam-se já que fora dos primeiros não há comunicação e fora dos outros não

existem pensamentos. A autopoiesis é nuclear já que “does not necessarily presuppose that

the environment of a system is completely devoid of the types of operations by which the

system reproduces itself” (Luhmann, 1984, p. 34), só podendo ser reproduzido internamente.

On the one hand, there is no communication outside the communication system of society. This system

is the only one employing this type of operation, and to that extent it is, a sa matter of fact, necessarily

closed. On the other, this does not hold for all other social systems. They must define their specific

mode of operation or determine their identity by reflection to be able to regulate which internal

meaning-units enable the self-reproduction of the system and thus are repeatedly to be reproduced

(Luhmann, 1984, p. 34).

A comunicação, em Luhmann, é o elemento base do sistema social, como já o referimos

anteriormente. Ela é puramente social, não sendo possível existir comunicação individual.

Daí que o autor defenda a impossibilidade de a comunicação pertencer ao humano. Esta é,

pelo contrário, do sistema social, o que pode provocar algum desconforto e originar uma ideia

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de sociedade sem seres humanos. Interações, organizações e a própria sociedade são

diferentes tipos de sistemas sociais e distinguem-se, por exemplo, dos sistemas funcionais

(que são subsistemas). A sociedade é, assim, única. É global e abarca todas as organizações e

interações bem como os sistemas funcionais. A isto juntamos-lhe outra particularidade

luhmanniana: a comunicação não é uma mera transmissão de informação, é mais do que isso,

é a sua criação. E aqui entram em jogo os meios de comunicação de massa4 que, nos nossos

dias afagam a ideia da improbabilidade da comunicação, apesar desta ser unilateral, o que

provoca uma duplicação da realidade (a observação da observação). São eles a representação

da esfera pública (também constituem, por si só, um sistema autopoiético), considerada como

meio que abarca as comunicações públicas, e reproduzem-na conforme os seus critérios de

seleção, isto é, aqueles que consideram mais informativos e/ou importantes, atingindo assim

um monopólio social. Os meios de comunicação de massa não produzem a(s) opinião(ões)

pública(s), reproduzem-na(s), isso sim, defende Luhmann, e a realidade reproduzida através

deles passa a ser partilhada por (quase) todas as pessoas.

4 Para Luhmann (1984) meios de comunicação de massa são todos aqueles que reproduzem e difundem a

comunicação, tais como os jornais, a rádio, a televisão, o digital e/ou o cinema.

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30

Capítulo II

2.1 A evolução da noção de espaço público: o digital

É graças à unificação de todos os aspetos da vida numa tecnologia integrada que a

democracia capitalista pode realizar na prática as suas virtualidades totalitárias. O Big

Brother já não é uma figura de estilo – converteu-se numa vulgaridade quotidiana.

(Bernardo, 2015)

As anteriores palavras de Bernardo (2015), acerca da obra 1984 de Orwell, revelaram-se

atuais com o debate eleitoral americano de 2016 sobre pós-verdade e factos alternativos. 1984

aumentou as vendas em 10.000%, e passou a ocupar o primeiro lugar nos best-sellers do

Amazon, após a eleição de Donald Trump. Devido às declarações da sua responsável de

campanha, Kellyanne Conway, a ideia de fechar os olhos e tapar os ouvidos implementada

pelo Partido do Grande Irmão começou a assombrar as ideias democráticas e os alicerces

deste “novo mundo”, alcançado em boa parte pelo aparecimento do informacionalismo. A

quem leu anteriormente o romance, termos como Ministério da Verdade, novilíngua ou

socing surgiram-lhe num aglutinado de pensamentos temerosos sobre a liberdade

conquistada. A quem ainda não o tinha lido, aguçaram-lhe o apetite.

O propósito da novilíngua não era só proporcionar um meio de expressão da visão de mundo e dos

hábitos mentais dos devotos do Socing (a ideologia dominante no mundo orwelliano), mas que fosse

impossível qualquer outro modo de pensar. A intenção era a de que quando se adotasse definitivamente

a nova língua e se tivesse esquecido a velha língua, qualquer pensamento herético fosse inconcebível,

pelo menos na medida do pensamento que depende das palavras (Baron, em conferência de imprensa, a

25 de janeiro de 2017).

A opinião pública é um ator crucial na sociedade dos nossos dias. Ela influencia o poder

político e é influenciada por ele. As suas raízes históricas remontam aos séculos XVII e

XVIII, como foi referido anteriormente, mas a realidade atual já não tem muito a ver com a

dessa altura, motivada pela democracia de massa e pela sociedade de informação. E isto é tão

importante que, seguindo uma lógica conceptual, a ideia de sociedade é tida como um

“princípio de explicação” que encarna a razão “e o comportamento normal é aquele que

contribui para o bom funcionamento da sociedade. O homem é, antes de mais, um cidadão”

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(Touraine, 1994, p. 418). Ora, cada vez mais os cidadãos têm uma relação íntima com a

tecnologia, e o uso de um computador e de uma rede tornaram-se práticas comuns tornando o

ciberespaço um novo lugar de “estar e navegar”. A realidade é que a interação social foi em

muito modificada pelo avanço dos media comunicacionais. É o modelo da democracia de

massa no seu auge e o brutal aumento do fluxo de informação e comunicação, nunca antes

visto. Como refere Castells, no seu Fim do Milénio, passamos por uma era caracterizada por

uma “capacidade produtiva jamais vista” (2000, p. 486), em que a mente assumiu o poder.

Estamos na premissa do: penso, logo existo... e publico.

A revolução da tecnologia de informação motivou o aparecimento do informacionalismo como base

material de uma nova sociedade. No informacionalismo, a produção de riqueza, o exercício do poder e

a criação de códigos culturais passaram a depender da capacidade tecnológica da sociedade e dos

indivíduos, sendo a tecnologia da informação o elemento principal. [...]. De especial importância foi ter

possibilitado o desenvolvimento do trabalho em rede como uma forma dinâmica e auto-expansiva de

organização das atividades humanas. A lógica preponderante de redes transforma todos os domínios da

vida social e económica (Castells, 2000, p. 459).

O que inicialmente estava cingido a um espaço físico, renasce num contexto

“desterritorializado”, onde os envolvidos podem ou não compartilhar do mesmo espaço-

temporal. Essa interação é também moldada pela diversidade das características do meio

utilizado. A noção de espaço público atual está intimamente relacionada com a noção de

globalização. As interações e as interdependências a vários níveis aceleraram este processo, e

por isso, “temos, ou deveríamos ter, uma consciência acrescentada da unidade da fragilidade

do mundo humano” (Innerarity, 2010, p. 259). E é inegável o importante papel de todo um

conjunto de esquemas que contribuíram para isso, como o “desenvolvimento dos meios de

transporte e das técnicas de comunicação, a intensificação dos intercâmbios económicos e

dos fluxos financeiros, o incremento generalizado da mobilidade, sem esquecer a

solidariedade que nos liga aos nossos semelhantes perante os riscos compartilhados”

(Innerarity, 2010, p. 259). Mas a globalização traz também consigo um consenso universal

sobre uma “imediatez das mediações”, em que, e segundo Innerarity, “a mediação política já

não tem uma função relevante na determinação das formas da espacialidade” (2010, p. 260).

O facto de haver a necessidade de que os nossos desejos sejam concretizados sem esta

política mediadora faz com que exista uma suposta desresponsabilização, configurando “um

espaço que não é o âmbito de discussão, legitimação e atribuição de responsabilidades - um

espaço público em sentido estrito - mas o encontro imediato de indivíduos que não se

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reconhecem em algo de comum” (Innerarity, 2010, p. 261), o que não corresponde totalmente

à verdade já que, tal como refere o autor, existe e existirá sempre uma ideia inata de

identidade comum e vínculos de pertença.

A ideia repetida ao longo de anos de debate em ciências da comunicação não pode ser

esquecida, afinal “o meio é a mensagem” (McLuhan, 1964) e os media comandam o processo

comunicativo entre alguém que transmite e alguém que recebe. Pode mesmo dizer-se que são

cruciais neste processo, e não meros recursos neutrais.

Cada vez mais os indivíduos são capazes de captar informações e conteúdos simbólicos de fontes

outras que não as pessoas com quem interagem diretamente no decurso das suas vidas quotidianas;

cada vez mais eles têm acesso a um «conhecimento não-local» e que podem incorporar, de maneira

reflexiva, nos seus processos de reconstrução pessoal. […] O desenvolvimento dos meios cria novos

campos de ação e interação que envolvem diferentes formas de visualidade e nos quais as relações de

poder podem alterar-se rapidamente, dramaticamente e tomando caminhos imprevisíveis (Thompson,

2008, p. 20).

Thompson propõe uma análise sociológica dos media através das formas de interação que

estes criam entre os indivíduos: a interação comunicativa. A experiência nas sociedades

contemporâneas dissocia-se dos contextos locais, onde os indivíduos vivem e torna-se uma

experiência mediada. Na sociedade moderna dá-se um “desenraizamento das tradições”, o

(re)incorporar nos novos contextos leva a uma mudança na sua natureza e no seu papel,

ligada ao desenvolvimento dos meios de comunicação. É a capacidade de outro lugar.

O eu torna-se, assim, num self como projeto simbólico, com novas opções e novas

responsabilidades: a vida num mundo mediado. O que leva a conclusões perentórias acerca

do impacto que o desenvolvimento dos media teve no processo de autoformação do

indivíduo. O mesmo investigador sublinha que “quando o indivíduo tem acesso a formas

mediadas de comunicação, torna-se capaz de usar um extenso leque de recursos simbólicos

para construir o self. Isto pode provocar uma dupla dependência já que trás consigo um efeito

desorientador das sobrecargas simbólicas e a absorção do self na quase-interação mediada”

(Thompson, 2002, p. 184).

Ora, o conhecimento, a informação e a deliberação pública são sempre mediados pelos mass

media, daí a sua importância na e para a sociedade atual. Uma parte da comunicação política

concentra-se na área dos media, por ocuparem lugar cimeiro na formação de opiniões em

larga escala. Os meios de comunicação recriam um espaço alargado de visibilidade pública,

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proporcionando um diálogo generalizado. Informam e constituem espaços de deliberação

anteriormente mais restritos, e assim, desde que consigam ser independentes do seu contexto

e incluam uma sociedade civil participativa, podem proporcionar a entrada na cena pública

dos atores sociais. No fundo, reavemos aqui a agora alterada esfera pública de Habermas.

Aliás, tal como escreveu Esteves, “a força que os públicos retiram da comunicação (que eles

próprios estimulam internamente) projeta-os com um poder de influência que acaba por

irradiar muito além dos seus próprios limites” (2003, p. 29), provocando o reordenamento da

sociedade em geral e a reformulação do espaço público e da opinião pública.

Atualmente, para se dar a conhecer algo parece que existe a obrigatoriedade de aparecer na

rede. A Internet tem mais de 20 anos, já vai na idade adulta, e nos últimos dez amadureceu e

transformou-se qualitativamente. As suas aplicações multiplicaram possibilidades, passaram

a tratar a rapidez por tu. Antes íamos ou estávamos na Internet. Agora, jovens e adultos estão

em rede em permanência com os smartphones, as redes wifi, o 4G. Antes era a geração baby

boomer, seguida da geração X e da Y, agora estamos na Z, onde os jovens são siameses da

tecnologia, viciados e moldados por ela. No panorama atual português não podemos deixar

de sublinhar um fosso geracional: quanto menor a idade, maior é a taxa de utilização da

Internet, o uso do telemóvel para diferentes tarefas (multitaskers) aumenta, preferem os

desenhos animados e os talk-shows. Quanto aos mais velhos, navegam menos na Internet,

utilizam o telemóvel para tarefas simples (singletasking), os géneros televisivos mais vistos

são notícias, debates e entrevistas, e são os utilizadores com mais idade que consultam

notícias mais vezes ao longo do dia (ERC, 2016). Aliás, já anteriormente a Obercom levara a

cabo um estudo sobre Os Media e as Dinâmicas Geracionais na Sociedade Portuguesa onde

relatara:

Um caso paradigmático é o do conceito de “thumb generation” ou “thumb tribe”, isto é, a “geração”

nascida a partir de 1985, cujos adolescentes comunicaram em larga escala através do uso de aparelhos

móveis. Sendo esses aparelhos de pequena dimensão, operados com apenas uma mão, estamos perante

uma geração que interagiu comunicacionalmente usando o polegar nestes pequenos aparelhos. Vários

estudos demonstraram que esta é, efetivamente, uma marca geracional (2014, p. 3).

A este propósito escreveu Paulo Moura no jornal Público:

Já se tinha identificado uma geração de “nativos digitais”, ou de “millennials”, mas só muito

recentemente surgiram entre nós os primeiros seres totalmente conectados de nascença. Há quem lhes

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chame “hyperconnected” ou “cyberkids”, mas a verdade é que ainda não há nome para a nova espécie,

e pouco se sabe sobre o que são ou virão a ser (20155).

Já vimos que o fenómeno multimédia contribuiu para uma pluralização do espaço público

contemporâneo, e a tecnologia para a criação de espaços públicos parciais. Comunicar é um

ato natural, desde sempre. Nos tempos de hoje, comunicar (da sua origem epistemológica

tornar comum) não implica deslocações e gastos, o conhecimento está disponível em

quantidades que não acabam. A pluralidade de espaços públicos como as associações ou os

movimentos sociais (instâncias vistas como um resgate da conceção de esfera pública

habermesiana) ligadas à partilha mais local, formam novos tipos de relações sociais e

configuram novas formas de poder e prestígio na influência interpessoal.

A «sociedade da auto-promoção» de Thompson (2008) nasce com o desenvolvimento dos

media comunicacionais, e os indivíduos passam a ter uma forma íntima de apresentação

pessoal, livres da obrigatoriedade presencial: aparecem perante outros e contam aspetos

íntimos da sua vida pessoal. E neste jogo até os políticos portugueses começam a ser

participantes ativos, onde aparecem não só como líderes, mas também como cidadãos

comuns, com páginas pessoais no Facebook, Twitter ou Instagram. Nomes como António

Costa, Catarina Martins, Assunção Cristas, Pedro Passos Coelho, Rui Moreira participam

nestas plataformas, numa relação ainda muito tenra já que “os políticos ainda tropeçam

frequentemente nesta ferramenta. Não sabem traçar uma linha muito clara entre o que é vida

pública e vida privada” (Ferrer, 2017)6.

A verdadeira urgência do nosso tempo consiste em cosmopolitarizar a globalização. Sempre assim

aconteceu ao longo da história; um dos seus vetores de progresso tem sido precisamente o politizar, isto

é, transformar âmbitos que estão confinados à “naturalidade” (da tradição, da autoridade e da

imposição) em questões sobre as quais se deve discutir e chegar a acordo: do trabalho doméstico às

relações internacionais, passando pelos diversos códigos de comportamento ou pelas formas de

organização social. Todos os impulsos democratizadores partiram do escândalo de haver decisões

vinculativas que não tinham sido tomadas por todos. E assim acontece também no

caso da mundialização (Innerarity, 2010, p. 279)

5 Disponível em https://www.publico.pt/2015/04/05/sociedade/noticia/a-geracao-da-net-esta-sem-rede-1691262

[Consultado a 24 de julho de 2017] 6 Disponível em

http://observador.pt/especiais/redes-sociais-os-politics-estao-no-meio-de-nos/ [Consultado a 24 de julho de

2017]

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O lado humano das questões políticas adquiriu primazia sobre a sua competência

profissional. Na realidade, o esquema de articulação entre público e privado do passado tem-

se vindo a alterar: os governantes na sua intimidade, as celebrações familiares, a esfera

religiosa enquanto espaço comum, a identidade sexual na esfera pública provocam, a cada

momento, uma privatização do público.

Ora, um espaço público bem articulado exige a separação das questões sociais: as do âmbito

da deliberação pública e as que são protegidas do «escrutínio coletivo». É como uma

negociação entre o que se mostra e o que se deve guardar na esfera íntima. Então o que nos

leva a publicar coisas da nossa vida privada para todos os olhos verem? Nas palavras de

Innerarity, estas ações devem-se à debilidade da própria identidade.

Por sua vez, o espaço digital originou novas formas de ativismo político. Certas plataformas

relativas a causas concretas permitem exercer o clicktivismo concreto, termo usado por

Innerarity (2006), a favor de determinadas causas, como o caso da Primavera Árabe, em que

“a tecnologia foi essencialmente um meio para o exterior” (Amaral, 2016, p. 86).

À credibilização feita pelos meios profissionais seguiu-se a disseminação de conteúdos com recurso a

várias plataformas e práticas sociais, como a classificação semântica através de hastags com vista a

indexar conteúdo. As primeiras apropriações dos media sociais enquanto ferramenta de divulgação de

revoltas políticas foram #moldova e #iranelection, a propósito das manifestações na Moldávia e no

Irão, em 2009. O papel de mobilização social que se atribui a estas plataformas pode não existir em

pleno, mas, ao passar pela mensagem, convoca-se a adesão de outras audiências. Nestes casos a lógica

viral está muito associada à ideia de comunidade para diluir a complexidade da leitura de informações

avulsa e narrativas dispersas (Amaral, 2016, p. 86).

2.2 Comunidades virtuais e comunidades imaginadas

A sociedade em rede origina uma nova sociabilidade baseada numa dimensão virtual que

transcende o tempo e o espaço (Castells, 2000). Parece-nos claro que os temas sociais

conduzem para questões políticas, onde são estudadas as influências da Internet na política e

as implicações políticas na Internet, uma vez que, e também por isso, estamos a viver novas

formas de intervenção social que, por sua vez, nos conduzem aos conceitos de comunicação,

liberdade e privacidade, dependência e controlo, quer por parte das instituições

governamentais quer por parte do mundo das empresas. Estando a comunicação na base de

todo este processo, Castells faz referência aos novos modelos comunicacionais gerados a

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partir do fenómeno da Internet e explora a sua relação com o conceito multimédia, dando

conta da relativa dificuldade em fazer convergir as linguagens script-audio-visual na rede. Ao

mesmo tempo aborda as implicações que advêm da livre circulação de música, vídeo, jogos,

jornais, livros e outras expressões. O autor fala na “constelação da Internet” (2000, p. 439)

como forma de demonstrar a sua geografia única, o que, por outras palavras, revela a

alteração das noções de espaço e tempo por parte da rede, originando uma confrontação. É

um mapa muito próprio onde se constrói e desconstrói novas paisagens sociais e onde

existem naturais discrepâncias entre quem está na rede e quem, não tendo acesso a ela, é feito

seu “prisioneiro”.

Nesta linha lógica, emergem conceitos importantes como o de comunidade imaginada, de

Anderson (1993), que se refere a uma comunidade política imaginada, limitada e soberana. É

imaginada porque os membros de uma determinada nação nunca irão ter conhecimento de

todos os seus compatriotas, embora todos tenham conhecimento de uma vida em comum. Daí

que, apesar das diferenças que possam existir, comunidade é algo partilhado numa espécie de

companheirismo ou solidariedade igualitária. O que origina, em Naim, o nacionalismo, citado

por Anderson:

El “nacionalismo” es la patologia de la historia moderna del desarrollo, tan inevitable como la

“neurosis” en el indivíduo, con la misma ambiguedad essencial que ésta, una capacidad semejante

intrínseca para llevar a la demência, arraigada en los dilemas de la impotencia que afetan a la mayor

pare del mundo (el equivalente el infantilismo para las sociedades), y en gran medida incurable

(Anderson, 1993, p. 20).

Anderson refere que as comunidades devem distinguir-se pela maneira como são imaginadas.

Uma nação será limitada porque tem fronteiras finitas que acabam onde a outra nação

começa, e soberana já que todos têm o sonho de ser livres e viver num Estado soberano. Mas

uma nação é também imaginada como comunidade independentemente das desigualdades

que possam existir. A nação concebe-se sempre com um companheirismo horizontal.

Los aldeanos javaneses han sabido sempre que están conectados com personas que jamás han visto,

pero esos lazos fueron imaginados alguna vez de manera particularíssima, como redes infinitamente

extensas de parentesco y clientela. Hasta hace muy poco tiempo, el idioma javanês no tenía ninguna

palabra que significaria la abstración “sociedad”. Ahora podemos pensar en la aristrocacia francesa del

ancien regime como una classe; pero es seguro que sólo mucho tiempo después fue imaginada como tal

(Anderson, 1993, p. 24).

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A consciência nacional é produto da História, para o qual contribuiu a mudança do caráter do

latim; a repercussão da Reforma e, por fim, uma lenta difusão geográfica desirmanada das

línguas particulares como instrumento de centralização administrativa. O que significa que,

na fragmentação política europeia, nenhum soberano conseguiu monopolizar o latim, e

convertê-lo em língua exclusiva do Estado. De uma forma geral, a convergência do

capitalismo e a tecnologia impressa na diversidade de linguagens humanas tornou possível

uma nova forma de comunidade imaginada, que na sua morfologia básica preparou o cenário

para a nação moderna. A extensão potencial destas comunidades estava forçosamente

limitada, ao mesmo tempo que tinha uma relação mais fortuita com as fronteiras políticas

existentes.

Uma comunidade virtual partilha, como qualquer outro tipo de comunidade, um conjunto de

ideais, conhecimentos, informações sem as tradicionais barreiras da distância e do tempo. Daí

que se verifiquem certos movimentos sociais em rede nunca antes vistos. Originais e, ao

mesmo tempo, emocionais porque, e tomando como nossa a ideia de Castells, se destinam a

influenciar mentes, já que esta é “uma fonte de poder mais decisiva e estável” (2013, p. 13).

“A forma como as pessoas pensam determina o destino de instituições, normas e valores

sobre os quais a sociedade é organizada. Poucos sistemas institucionais podem perdurar

baseados unicamente na coerção. Torturar corpos é menos eficaz que moldar mentalidades”

(Castells, 2013, p. 14). É esta a porta de entrada para a tomada de posse de uma “participação

do cidadão” tal como defende Canavilhas (2008), que compara este tipo de ações às antigas

cartas dos leitores na imprensa e que se opõe ao termo “jornalismo do cidadão”. Os cidadãos

estão atentos e, num mundo em que reina a desfragmentação geral, agarram-se aos seus

ideais, às suas crenças e às representações sociais veiculadas pelos media.

2.3 Representações sociais: a necessidade de saber o que nos rodeia

Sequencialmente ao que já foi falado, o conceito de representações sociais é enriquecedor, na

nossa perspetiva, para o desenrolar deste trabalho. Jodelet descreve a representação social

como “uma forma de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, que tem um

objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”

(2001, p. 8). A socióloga refere a necessidade de, desde sempre, o ser humano ter a

necessidade de estar informado sobre tudo o que está à sua volta.

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Além de nos ajustar a ele, precisamos saber como nos comportar, dominá-lo física ou intelectualmente,

identificar e resolver os problemas que se apresentam: é por isso que criamos representações. Frente a

esse mundo de objetos, pessoas, acontecimentos ou ideias, não somos (apenas) automatismos, nem

estamos isolados num vazio social: partilhamos esse mundo com os outros, que nos servem de apoio,

às vezes de forma convergente, outras pelo conflito, para compreendê-lo, administrá-lo ou enfrentá-lo.

Eis por que as representações sociais são tão importantes na vida cotidiana. Elas guiam-nos no modo de

nomear e definir conjuntamente os diferentes aspetos da realidade diária, no modo de interpretar esses

aspetos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se frente a eles de forma defensiva (Jodelet, 2001,

p. 17).

Daniel, Caetano, Monteiro e Amaral afirmam que “o estudo das representações sociais tem

procurado compreender a relação entre significados sociais mais amplos e o modo como os

indivíduos pensam e expressam as realidades e visões do mundo” (2016, p. 354). Neste

sentido, as representações sociais decorrem da validação social consensualmente aceite como

sendo um feito dos media. Assim, as representações sociais resultam em construção social

partilhada que classifica os acontecimentos a partir da perspetiva comum. Efetivamente, “o

processo de construção das representações sociais é social porque acontece num contexto

social determinado e determinante, composto de ideologias, valores e sistemas de

categorização social partilhados, através da comunicação e da interação social” (Daniel et al.,

2016, p. 354).

As representações sociais são resultado “do processo de socialização e estão diretamente

associadas à identidade coletiva” (Daniel, Antunes & Amaral, 2015, p. 291). E é neste

sentido que é importante ressalvar que os recortes discursivos dos media constroem a imagem

que a sociedade tem de algo ou alguém.

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Capítulo III

3.1 Sobre o conceito de audiência

Neste terceiro capítulo debruçamo-nos no tema da audiência e de como, muitas vezes, ela se

associa à ideia de público e da dinâmica do consumo de media. O consumo mediático tem

vindo a sofrer alterações, muito motivadas pelas novas tecnologias que proporcionam

feedback e influenciam resultados, mas também pelas audiências, que ganham cada vez mais

o poder de escolha e, acima de tudo, têm o controlo de quando, onde e como consomem os

media. Isto quer dizer que “a forma como os sujeitos se apropriam de cada novo dispositivo

tecnológico e os processos através dos quais usam e partilham a tecnologia, configura novas

formas de mediação e posicionamento relativo do sujeito face à tecnologia” (Damásio, 2005,

p. 2). Tecnologia essa que assumimos ser, tal como Livingstone e Lievrouw (2002) a

interpretaram, “a soma de um dispositivo, das suas aplicações, contextos sociais de uso e

arranjos sociais e organizacionais que se constituem em seu torno” (Damásio, 2005, p. 2).

A autonomia das audiências está relacionada com o empoderamento dos consumidores que,

para além de receberem informação, também a produzem e distribuem os seus próprios

conteúdos. Esta alteração da cena da apropriação dos dispositivos e dos discursos promovidos

através deles proporciona também a dispersão da atenção do público. Na sua origem está,

entre outros fatores:

A Internet, e em particular as plataformas participativas que hoje ocupam um lugar de relevo nas

práticas de navegação online dos indivíduos que acedem regularmente à rede, são claramente o motor

da mudança da relação que existiu até há algumas décadas entre os cidadãos, a televisão, a rádio e a

imprensa (ERC, 2016, p. 10).

A propósito da grande revolução tecno-sociológica levada a cabo pelo Big Bang digital, a

nível mundial, os estudos revelam que Portugal se encontra na cauda da Europa no que diz

respeito ao uso da Internet. A ERC concluiu que “39,5% dos inquiridos não acede

regularmente à Internet” (2016, p. 10), ou seja, “mais de um terço da população” (ERC, 2016,

p. 10). Lembramos que esta investigação teve uma amostra inicial de 1018 entrevistados,

residentes no território nacional continental, e as questões foram categorizadas por sexo, faixa

etária (dos 15 aos 24 anos, dos 25 aos 34 anos, dos 35 aos 44 anos, dos 45 aos 54 anos, dos

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55 aos 64 anos e com 65 ou mais anos), e também por regiões (Norte, Centro, Lisboa,

Alentejo e Algarve).

O mapa do panorama português desenha-se nos seguintes termos: de 2002 a 2014, o número

de agregados familiares com computador aumentou em 41,2%, sendo a Região Autónoma da

Madeira a que registou, neste espaço temporal, a maior subida percentual (dos 17,2% para

69,9%, assumindo um aumento de 52,7%), seguida pela Região Autónoma dos Açores

registando uma subida de 45,8% de agregados com computador (de 23,6% para 71,5%), e por

Lisboa, que dos 34,8% passou para os 74,7% (registando uma subida de 39.9%). Estes são

dados do Relatório da Obercom de 2015 que se podem observar nas tabelas 1 e 2, e na figura

1.

Tabela 1: Agregados domésticos com computador - 2002 a 2014

Agregados domésticos com computador (%) 2002 a 2014

Agregados

com

computador

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

26,8 38,3 41,3 42,5 45,4 48,3 49,8 56,0 59,5 63,7 66,1 66,7 68,0

Retirado e adaptado (fonte) do INE/UMIC, Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da

Comunicação pelas Famílias 2002-2014, OberCom.

Figura 1: Evolução agregados domésticos com computador 2002 a 2014

Retirado e adaptado (fonte) do INE/UMIC, Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da

Comunicação pelas Famílias 2002-2014. Edição: OberCom.

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41

Tabela 2: Agregados domésticos com computador por regiões - 2002 a 2014

Agregados domésticos com computador (%) por regiões (NUTS II), 2002 a 2014

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Norte

24,1 35,4 36,9 39,6 42,0 45,0 47,6 56,5 58,4 62,8 64,6 65,3 67,0

Centro

24,3 35,5 38,6 41,4 45,2 46,7 43,7 50,0 53,8 58,7 61,1 62,1 63,3

Lisboa

34,8 46,6 50,2 48,6 52,8 55,8 57,9 62,0 67,7 71,4 74,8 74,8 74,7

Alentejo

21,2 32,2 37,3 34,9 35,0 38,6 43,2 43,0 47,1 53,6 54,6 55,7 57,4

Algarve

22,4 36,8 41,6 44,1 41,7 47,7 54,4 56,0 61,7 63,1 64,4 64,4 68,2

R. A.

Açores

23,6 31,5 35,8 41,0 45,5 49,8 51,6 54,9 61,2 64,8 67,3 67,5 71,5

R.A.

Madeira

17,2 32,9 38,2 41,6 46,5 48,7 52,6 58,1 59,9 61,5 64,2 66,1 69,9

Retirado e adaptado (fonte) do INE/UMIC, Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da

Comunicação pelas Famílias 2002-2014. Edição: OberCom.

Efetivamente, o paradigma da comunicação digital é uma metáfora à teia de aranha, toda ela

interligada por pontos, com algo em comum, e que se vão reproduzindo em outros pontos

sucessivamente. As palavras de Amaral são nesta direção:

Num espaço em rede como o ciberespaço, as pessoas transformam-se em nós conectados por

informações. Os novos objetos sociais promovem interações complexas baseadas no conteúdo e

metadados. Portanto, as práticas sociais resultam da (re)construção de objetos e as novas relações

concretizam-se na ligação entre nós e redes baseadas em metadados, conteúdos, folksonomy e

funcionalidades coletivas (2016, p. 172).

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3.2 Falar de audiências ou falar em públicos?

Livingstone (2005) defende a necessidade de distinguir audiências de públicos, e vice-versa.

No primeiro capítulo já debatemos a definição, ou definições, de público. Para falarmos de

audiências, e na perspetiva desta autora, temos de ter em conta como ocorre a mediação do

público, tanto a nível tecnológico, como material e discursivo. E também como o público, por

sua vez, participa enquanto audiência. E assim nos deparamos com uma envolvência de

ambas as esferas, já que

In a thoroughly mediated world, audiences and publics, along with communities, nations, markets and

crowds, are composed of the same people. This apparently banal observation is significant when we

observe that it is commonplace to define audiences in opposition to the public. In both popular and elite

discourses, audiences are denigrated as trivial, passive, individualised, while publics are valued as

active, critically engaged and politically significant. Bearing in mind that the audience is generally

ascribed to the private domain, consider these common associations of public versus private, each of

which valorises public over private: rational versus emotional, disinterested versus biased, participatory

versus withdrawn, shared versus individualised, visible versus hidden (Livingstone, 2005, pp. 18-19).

É neste momento que abraçamos a prerrogativa de que tanto o íntimo como o social fazem

parte da existência humana, e que, tal como defendia Arendt (1958), “a privacidade moderna,

na sua função mais relevante - proteger aquilo que é íntimo - foi descoberta não como o

oposto da esfera política, mas da esfera social, com a qual, no entanto, tem laços ainda mais

estreitos e mais autênticos (2001, p. 52). O que nos leva a pensar nessa dificuldade de separar

audiências e públicos, já que, tal como o privado e o público, estas se misturam em certa

parte: vemos as audiências como algo rígido e funcional, audiências essas que são compostas

por públicos, por sua vez, orientados por emoções, opiniões, crenças e valores.

Ora, ao falarmos em público referimo-nos a um entendimento comum do mundo, “a shared

identity, a claim to inclusiveness, a consensus regarding the collective interest. It also implies

a visible and open forum of some kind in which the population participates in order that such

understandings, identities, values and interests are recognised or contested” (Livingstone,

2005, p. 9).

No que diz respeito ao conceito de audiência, a sua conceção habitual refere-se a um coletivo

que participa numa comunicação pública, quer seja ela centrada ou mais dispersa. Daí que as

audiências de televisão ou rádio, de espetáculos ou concertos, sejam referências a

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telespectadores, ouvintes ou utilizadores. Enquanto substantivo, a audiência é uma “ação de

ouvir ou de dar atenção a alguém que fala. A ação de uma pessoa de categoria elevada

receber e atender quem deseja falar-lhe” (Machado, 1981, Tomo II, p. 131), mas a audiência

representa, nos dias de hoje, muito mais do que isso. É também uma prova da tensão

existente “between citizenship and consumerism, that is the relation between media, the

public sphere and the market; the challenges facing the media, cultural policy and the public

service media in Europe” (Bondebjerg & Golding, 2005, p. 2). A noção de audiência, a par da

de público, descentralizou-se e sofreu tal reviravolta paradigmática que conceitos como o de

convergência e fragmentação se transformaram com o desenvolvimento dos media quer a

nível europeu como global. À medida que a audiência foi ganhando poder em relação ao

consumo de conteúdos também foi fazendo parte cada vez mais do panorama mediático. Em

Portugal, “a partilha de notícias através das redes sociais é uma prática muito frequente entre

os consumidores de notícias online em Portugal: mais de metade partilha notícias nas redes

sociais semanalmente (55%)” (ERC, 2015, p. 10), pelo que

Comparando com os dados do Reuters Institute, conclui-se que Portugal é o país onde esta prática

regista maior frequência, com uma distância considerável em relação aos restantes. Os consumidores

de notícias portugueses são dos que mais publicam comentários online, comparando com os países

analisados pelo Reuters Institute. Mas preferem fazê-lo mais no contexto das redes sociais do que

diretamente nos sites noticiosos: a frequência de comentários a notícias nas redes sociais é muito

superior àquela que se regista para os comentários noticiosos (39 % vs 19%). (ERC, 2015, p. 11).

Dois anos passados deste estudo da ERC é necessário pôr o dedo na ferida e clarificarmos

quantidades: como é que o público português interage com a informação que é publicada

pelos media, mas de forma descontextualizada nas redes sociais?

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44

Capítulo IV

4.1 O estudo empírico

Chegados a esta fase de investigação empírica, convém repassar algumas questões

pertinentes. Assumimos que a comunicação é tudo, mas o ato de comunicar transformou-se,

como aliás já tivemos oportunidade de referir anteriormente. Com a fronteira entre media e

sociedade em geral a dissipar-se, como também já foi abordado, o “espalha a palavra”

generalizou-se e a liberdade de comunicar marcou posição. A audiência, tal como

caracterizada em capítulos anteriores, deixa a sua pegada digital e fá-lo ciente disso, já que

participa abertamente no espaço público em geral e no digital, em particular. Sob esse

pressuposto, sublinhamos o tema central do nosso trabalho: o espaço público e a sua

apropriação pela audiência no digital. Espaço público esse que, e abraçando a ideia

habermasiana, onde existe comunicação diária com troca de conteúdos e tomada de posições.

Assim, a nossa questão de partida para o estudo empírico desenvolvido é a seguinte: “existe

um espaço público digital que é reconhecido e apropriado pela audiência?”.

Sob um objetivo mais geral de concluir sobre a possível apropriação do espaço público no

digital português por parte da audiência anónima, esta investigação tem como objetivos

específicos determinar também: 1). a apropriação que os utilizadores da rede fazem dos

espaços públicos digitais dos media nacionais no Facebook; 2). que tipo de apropriação

fazem os utilizadores dos espaços públicos digitais dos media nacionais no Facebook; 3). que

temáticas são objeto de maior participação dos utilizadores nos espaços públicos digitais dos

media nacionais no Facebook. Como possíveis respostas à nossa questão de investigação,

delineamos as seguintes hipóteses de trabalho: H1). A apropriação espaço público digital

pelos utilizadores está subjacente às temáticas dos posts publicados; H2). A participação no

espaço público digital dos utilizadores é condicionada pelos temas da atualidade; H3). A

interação no espaço público digital é maior quando o conteúdo é multimédia e/ou visual.

Foram selecionadas as páginas de Facebook do Público e do Jornal de Notícias (JN), e as

suas publicações durante o mês de janeiro de 2017. O motivo desta escolha foi, como se pode

verificar na figura 2, o facto de se posicionarem em primeiro e segundo lugar,

respetivamente, no que concerne à superioridade da consulta de notícias online.

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Figura 2: Meios noticiosos com consulta de notícias online superior ao offline em Portugal

Retirado e adaptado (fonte) do Relatório do Projeto ERC - Públicos e consumos de Média: O Consumo de

Notícias e as Plataformas Digitais em Portugal e em Mais Dez Países (2014).

4.2 Metodologia

A abordagem metodológica centra-se na netnografia, que permite estudos orientados para a

cultura de interações sociais mediadas tecnologicamente que ocorrem através das tecnologias

digitais. Kozinets (2010) explica a netnografia é uma forma de pesquisa etnográfica adaptada

para incluir a influência da Internet nos mundos sociais contemporâneos. Recorrendo à

netnografia, procedemos a uma análise quantitativa de conteúdo.

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46

4.3 Amostra

A amostra resulta de dados extraídos das páginas do Facebook do JN e do Público durante o

mês de janeiro através do crawler Netvizz. Foram recolhidas todas as publicações realizadas

pelas duas páginas durante o mês de janeiro de 2017. Os dados extraídos têm características

de dimensão técnica e dimensão semântica, que foram selecionadas e combinadas na análise.

Nos 31 dias do primeiro mês deste ano o JN teve um total de 3674 posts, enquanto que o

Público se ficou pelos 1737.

4.4 Resultados e discussão

O levantamento de dados eclodiu com os resultados que apresentamos de seguida. Foram

analisados os números de posts diários, temáticas, likes, comments, reactions e shares de

cada um dos meios de comunicação, como se pode observar nas tabelas 3 e 4. As publicações

foram organizadas em 11 categorias: sociedade, desporto, política, economia, local, cultura

(onde se incluem artes, exposições, cinema, literatura e música), ciência e tecnologia,

internacional, opinião, lazer (onde se incluem viagens, tempo livre) e lifestyle (onde se

incluem socialites, fait divers). A análise de conteúdo teve por base cada uma destas

categorias e foi feita numa abordagem quantitativa, no sentido de determinar quais os

assuntos mais publicados e os que geraram maior interação.

Na figura 3 apresentamos o maior número de conteúdos noticiosos. Foram selecionados os

três posts com maior engagement em cada um dos media estudados, e como se pode verificar

o conteúdo sobre Donald Trump foi o mais repetido em ambos (173 no JN e 138 no Público),

seguido pela morte de Mário Soares (69 no JN e 82 no Público) e, pela saída de Barack

Obama da presidência norte-americana (o que inclui discursos/declarações, manifestações)

em terceiro lugar no JN (36), enquanto que no Público, na mesma posição, encontramos toda

a problemática que envolve a central nuclear de Almaraz (19).

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Figura 3: Top 3 dos conteúdos noticiosos no JN e no Público

Elaboração própria.

O JN destacou-se pelo número de publicações que fez na sua página de Facebook: 3674 (cf.

tabela 3). O dia 20 de janeiro é onde se verifica maior número de posts (149) com as 11

temáticas (categorias) delimitadas por este estudo: internacional (59 posts), sociedade (31

posts), desporto (18 posts), local (13 posts), lifestyle (8 posts), ciência e tecnologia (6 posts),

política e lazer (com 4 posts cada), economia e opinião (com 2 posts cada), e, por fim, cultura

(1 post). O que soma 147857 likes (também o dia onde se constata maior número), 187713

comments, 7359 reactions e 45275 shares. Por seu turno, no dia 1 verifica-se um menor

número de posts (75) nos quais são tratadas também as 11 temáticas: internacional (com 27

posts), seguida de sociedade (com 13 posts), local (com 9 posts), lifestyle (com 8 posts),

cultura (com 5 posts), desporto (com 4 posts), lazer (com 3 posts), política e economia (com

2 posts cada), ciências e tecnologia e, também, opinião (com 1 post cada). Daqui resultam

61844 likes, 84517 comments, 4633 reactions e 21101 shares.

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Tabela 3: Publicações do JN

Publicações JN

Dias

(janeiro 2017) Posts Temáticas Likes Comments Reactions Shares

1 75 11 61 844 84 517 4 633 21 101

2 113 9 68 058 86 198 5 722 20 314

3 117 11 197 483 225 938 10 177 58 026

4 132 11 75 291 93 254 6 818 25 216

5 130 11 60 713 78 883 7 679 17 411

6 148 11 55 162 70 368 6 583 10 268

7 120 11 63 365 77 054 8 016 17 503

8 88 10 48 396 72 432 5 879 21 847

9 110 10 101 690 115 579 5 993 20 758

10 109 11 55 365 68 289 4 789 15 632

11 129 11 82 596 99 821 5 711 27 445

12 145 11 52 201 63 342 4 255 18 774

13 129 11 78 083 95 259 5 707 14 089

14 110 11 70 259 79 360 5 899 10 218

15 83 11 56 281 67 521 3 787 19 017

16 99 11 62 925 79 960 5 239 28 406

17 133 11 64 677 84 592 6 388 23 893

18 141 10 77 164 96 606 6 353 33 362

19 145 10 72 115 97 333 5 642 28 135

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49

20 149 11 147 857 187 713 7 359 45 275

21 116 11 86 569 102 830 6 885 13 103

22 99 11 43 941 57 198 4 474 8 559

23 102 11 47 437 59 266 3 745 11 495

24 102 10 68 074 80 958 3 173 24 705

25 137 11 77 606 117 237 8 020 38 690

26 139 11 60 352 76 737 5 886 15 449

27 131 11 68 411 88 541 5 769 17 386

28 88 11 47 600 58 025 4 548 11 609

29 89 11 70 544 83 040 4 381 13 815

30 129 10 101 178 126 795 8 338 45 957

31 136 11 86 515 108 312 7 610 26 046

Totais 3 674 Não se aplica 2 309 752 2 882 958 185 458 703 504

Elaboração própria.

Quanto ao Público, verificou-se um acentuado decréscimo de publicações: 1737 (cf. tabela

4), na prática menos de metade das do JN. O dia 20 de janeiro é onde se verifica um maior

número de posts (71) onde são abordadas 9 temáticas (categorias), nomeadamente:

internacional (30 posts), sociedade (13 posts), desporto (3 posts), opinião (5 posts), cultura

(12 posts), política (3 posts), local (2 posts), ciência e tecnologia (2 posts), lifestyle (1 post).

O que totaliza 21324 likes (também o dia com maior número), 2498 comments, 25967

reactions e 4500 shares. Por seu turno, no dia 1 são publicados menos posts (37), sob 10

temáticas, nomeadamente: internacional (16 posts), cultura (6 posts), sociedade (4 posts),

lazer e opinião (com 3 posts cada), e, por fim, desporto, política, economia, local e lifestyle

(com 1 post cada). Daqui resultam 11617 likes, 966 comments, 14790 reactions e 2318

shares. De salientar que, em ambos os casos, os dias com mais e menos posts coincidiram,

dia 20 e dia 1, respetivamente. Remetemos esta questão para a agenda noticiosa: Donald

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Trump tomou posse como presidente dos Estados Unidos da América a 20 de janeiro; por

tradição, o dia 1 de janeiro é considerado Dia de Ano Novo sendo a informação mais

diminuta e as redações trabalham com menos profissionais.

Tabela 4: Publicações do Público

Publicações do Público

Dias

(janeiro 2017) Posts Temáticas Likes Comments Reactions Shares

1 37 10 11 617 966 14 790 2 318

2 53 7 14 727 1 145 16 488 3 516

3 64 10 15 478 3 194 18 804 4 225

4 65 11 14 053 2 680 17 338 4 567

5 67 11 11 792 2 286 14 138 3 742

6 66 11 18 928 2 231 22 441 4 235

7 55 9 19 594 4 612 24 530 5 411

8 45 8 14 571 2 945 18 437 2 597

9 63 11 20 432 3 205 23 908 3 703

10 57 10 8 717 1 879 11 187 1 777

11 59 9 16 933 2 199 20 732 4 724

12 64 8 17 556 3 726 20 608 4 346

13 61 11 17 102 2 037 20 704 5 088

14 35 7 5 887 1 107 6 867 834

15 38 8 13 103 1 927 16 387 3 012

16 64 10 9 620 2 211 12 498 2 799

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17 68 11 15 673 2 406 20 028 5 038

18 65 9 7 014 1 869 9 484 1 527

19 62 9 15 502 2 399 18 583 3 141

20 71 9 21 324 2 498 25 967 4 500

21 48 10 11 565 2 588 13 521 1 980

22 40 9 6 910 1 219 8 247 1 924

23 57 8 15 028 2 226 21 797 4 669

24 60 9 11 639 2 284 14 747 2 839

25 59 8 10 176 1 771 13 095 2 328

26 62 9 11 819 2 396 15 018 3 342

27 59 9 15 177 3 378 19 609 4 087

28 36 8 9 361 1 499 12 879 2 956

29 36 7 17 315 1 598 19 865 3 540

30 59 10 28 472 2 770 33 073 6 315

31 62 8 16 782 3 823 21 737 5 420

Totais 1737 Não se aplica 443 857 73 074 546 507 110 500

Elaboração própria.

Na figura 4 são clarificados os 5 maiores engagements no JN. Torna-se necessário neste

momento explicar que este vértice do nosso estudo é o resultado da soma de comments,

reactions e shares. Na prática é aqui que ambicionamos chegar: o que nos revela o feedback

dos utilizadores destas duas páginas noticiosas de Facebook. Também aqui o JN se distancia

do Público: em escala decrescente verifica-se em primeiro, e com 60657 engagements, a

notícia “Dezenas de solidários ajudam casal da A1”, tendo sido replicada às 11:42 do dia 3 de

janeiro. Em segundo lugar (com 39611 engagements) encontra-se a notícia que se centra

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52

também na solidariedade prestada ao casal que distribuiu água aos condutores da A1, a 7 de

agosto de 2016, cujo título é “Pessoas a quem deram águas estão agora a retribuir”. Na

terceira posição (com 36936 engagements), ainda este tema, sendo a notícia “Consultas,

emprego e comida para heróis da A1” e, em quarto lugar no top dos engagements (com

31082) encontra-se a notícia cujo tema central é o adeus de Obama, com o título “Obama

despede-se da presidência e reconhece que EUA não ultrapassaram racismo”. Por fim, com

27128 engagements, temos a notícia cujo título é “Mulher deu à luz bebé com mais de 6

Kgs”.

Figura 4: Top 5 de engagements no JN

Elaboração própria.

Quanto ao Público (cf. figura 5) verifica-se em primeiro lugar (com 11816 engagements) a

notícia sobre o aumento da dívida pública em 2016, e cujo título é “Portugal enfrenta mais

um pico de reembolso da dívida pública”. De seguida verificam-se 10493 engagements para a

notícia “Fundação Champalimaud disposta a receber cientistas barrados por Trump”, e 10465

para “Licenciava lares de idosos a troco de cinco mil euros, suspeita PJ”, uma notícia cujo

tema é a extorsão levada a cabo por um técnico superior do Instituto da Segurança Social. Em

quarto lugar verificam-se 8383 engagements na notícia sobre o óbito de Mário Soares, cujo

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53

título é “Morreu Mário Soares. Adeus a um português maior”. Por fim, em quinto lugar temos

“A rapariga espadaúda”, com 7622 engagements, uma crónica com imagens fotográficas.

Figura 5: Top 5 de engagements no Público

Elaboração própria.

Na figura 6 são descritos os posts mensais do JN analisados em cada categoria. Internacional

(944), sociedade (779) e desporto (521), demarcam-se das restantes, e são abordadas em mais

de 61% das notícias. A nível individual a categoria de internacional abrange mais de 25,70%,

sociedade mais de 21,20%, desporto mais de 14,18%, local mais de 8,76%, lifestyle mais de

7,84%, economia mais de 6,23%, cultura e opinião mais de 3,70% cada, ciência e tecnologia

mais de 3,05%, política mais de 2,93% e, por fim, lazer com mais de 2,69%.

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Figura 6: Temáticas publicadas pelo JN

Elaboração própria.

Quanto ao Público, sociedade é a categoria mais abordada, seguida de internacional, e, em

terceiro lugar, cultura. Em números: 462, 443 e 191 posts respetivamente (cf. figura 7). O

que em termos percentuais representam mais de 63% das publicações. A nível individual a

categoria de sociedade abrange 26,60%, internacional 25,73%, cultura 11%, opinião 9,73%,

política 8,40%, desporto 6,22%, economia 4,78%, local 2,88%, ciência e tecnologia 1,90%,

lazer 1,67% e, finalmente, lifestyle a ter 1,44% de publicações.

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Figura 7: Temáticas publicadas pelo Público

Elaboração própria.

Nas figuras seguintes abordamos uma questão indispensável para a nossa investigação: uma

inerente interação entre o tipo de conteúdo das notícias e o seu engagement, o que na prática

se centra na participação e apropriação que a audiência e/ou utilizadores fazem dos meios

e/ou notícias publicadas. De salientar que, no Netvizz, o engagement revela um somatório

dos shares, comments e reactions, enquanto que os likes já incluem a métrica das reactions.

Os utilizadores não só reagem ao que é publicado (reactions), mas, em certos casos

comentam o que veem (comments) e ainda partilham essa notícia (shares). Focamo-nos, mais

uma vez, nos 3 tipos de conteúdo mais falados. Assim, constatamos que o JN teve um total de

344 118 engagements ao longo do mês de janeiro, dos quais 179 617 foram da temática

Donald Trump, 51 443 de Mário Soares e os restantes 113 058 de Barack Obama (cf. tabela 5

e figura 8).

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Tabela 5: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados JN

Conteúdos Likes Comments Reactions Shares Engagements

Donald Trump 103 009 14 148 132 765 32 704 179 617

Mário Soares 24 228 9 219 31 922 10 302 51 443

Barack Obama 88 898 1 975 101 416 9 667 113 058

Elaboração própria.

E, neste ponto, há um fenómeno a salientar: a diferença entre o posicionamento dos

conteúdos mais abordados e o seu engagement, nomeadamente no caso da morte do antigo

estadista português que, apesar de aparecer mais vezes do que o ex-presidente americano, é

alvo de menos interação dos internautas. E isto revela-se tanto em likes, como comments,

reactions, shares e engagements. O que nos leva a crer uma menor falta de interesse sobre

este assunto.

Figura 8: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados JN

Elaboração própria.

Já na página de Facebook do Público constatamos um total de 173 811 engagements ao longo

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do mês de janeiro, dos quais 85 715 foram da temática Donald Trump, 81 001 de Mário

Soares e os restantes 7 095 de Almaraz (cf. tabela 6 e figura 9).

Tabela 6: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados Público

Conteúdos Likes Comments Reactions Shares Engagements

Donald Trump 49 172 11 218 62 882 11 615 85 715

Mário Soares 31 363 8 476 33 664 7 498 81 001

Almaraz 2 477 396 3 455 767 7 095

Elaboração própria.

A análise da tabela anterior como a da figura 9, permite-nos verificar que mesmo entre os 3

conteúdos mais abordados pelo Público existe uma visível diminuição de número de posts,

tanto entre o primeiro e o segundo (Trump e Soares), mas principalmente entre estes dois e o

terceiro conteúdo mais abordado (Almaraz). Relembramos que Donald Trump foi noticiado

em 139 posts, Mário Soares em 82 e Almaraz em 19. Esta relação decrescente é também

verificada no número de engagements de cada conteúdo: dos mais de 80 000 de Trump e

Soares, regista-se um decréscimo para pouco mais de 7 000 de Almaraz.

Figura 9: Engagements dos 3 conteúdos mais publicados Público

Elaboração própria.

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Conclusão

Em cada 60 segundos na Internet muita coisa acontece. Segundo um estudo levado a cabo

pelo próprio Facebook7 são enviados 156 milhões de emails, feitos 900 mil logins no

Facebook e 46 200 posts no Instagram, realizadas 3,5 milhões de buscas no Google,

visualizados 4,1 milhões de vídeos no Youtube, enviadas 16 milhões de SMS, efetuados 452

mil tweets, entre tantas outras coisas. O Facebook anunciou este ano de 2017 que tem mais de

2 mil milhões de utilizadores ativos mensais, seguido pelos 1,5 mil milhões do Youtube, os

700 milhões do Instagram e os 328 milhões do Twitter. Esta dissertação teve como objetivo

tentar descortinar de que forma é que este surto digital originou uma mudança no paradigma

comunicacional, trazendo consigo o estreitamento relacional entre globalização e

individualização, entre público e privado, entre singularidade e mediatismo. Tentámos

perceber se, à luz do tradicional espaço público tradicional, existe um novo digital que seja

reconhecido e apropriado pela audiência, onde exista uma comunicação diária e regular com

a consequente troca de conteúdos e tomada de posições.

Com este propósito, foram selecionados dois meios portugueses que nasceram no offline e

têm representação no online, o JN e o Público8. A amostra balizou-se temporalmente no

primeiro mês do ano de 2017, sendo desenvolvido um trabalho empírico que se regeu sob

uma perspetiva quantitativa de conteúdo, instrumentalizando-se sob a Netnografia. O que

resultou em conclusões que determinam desde o número de posts de ambos os meios,

passando pelos conteúdos mais abordados, até às temáticas em que o público interagiu mais,

tanto a nível de likes, como de reactions, comments e shares. Existem diferenças entre o

número de posts mensais destes dois media (o JN publicou 3674 posts e o Público 1737). Do

tipo de conteúdo publicado, destaca-se a temática Donald Trump (em tudo motivada pela

agenda noticiosa e a sua eleição a 20 de janeiro), seguida logo pela morte de Mário Soares (a

7 de janeiro). Por fim, e na terceira posição, no ranking de conteúdo que elaborámos,

registou-se a saída de cena de Barack Obama (no JN), e a temática da central nuclear de

Almaraz (no Público). De referir que existiram inúmeros temas que foram abordados em

menor quantidade, daí não serem referidos neste estudo. Concluiu-se também que o nível de

7 Informação disponível em visualcapitalist.com [Consultado a 31 de outubro de 2017]. 8 Que segundo o relatório do Projeto ERC - Públicos e consumos de Média: O Consumo de Notícias e as

Plataformas Digitais em Portugal e em Mais Dez Países (2014) são os dois principais meios cuja consulta de

notícias online é superior à offline, como se referido anteriormente no capítulo 3 do presente trabalho.

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engagement, tanto num como no outro meio, também varia consoante o conteúdo tratado: no

Público este decresce conforme o ranking de conteúdos. Por outras palavras, em números

Trump teve um total de 85 715 engagements, Soares de 81 001 e Almaraz de 7 095. Mas a

mesma relação já não se verifica no JN, isto é, o conteúdo sobre Soares foi o que menos

engagements teve (51 443), enquanto que Trump e Obama tiveram mais do dobro. Concluiu-

se também que o dia 20 de janeiro foi a altura em que mais posts foram registados, e o dia 1

foi o dia em que menos posts foram publicados, em tudo relacionado com o facto da

informação, tradicionalmente falando, ser mais reduzida e existirem menos profissionais a

trabalhar.

Quanto aos objetivos específicos a que nos propusemos inicialmente verificamos que: 1) a

apropriação que os utilizadores da rede fazem dos espaços públicos digitais dos media

nacionais no Facebook é notória através desta amostra e sempre consoante os assuntos

selecionados pelos media (gatekeeping); 2) o tipo de apropriação que é feita pelos

utilizadores dos espaços públicos digitais dos media nacionais no Facebook acontece através

de manifestações que implicam reações e partilhas digitais; e, 3) os conteúdos com maior

participação dos utilizadores nos espaços públicos digitais destes media nacionais, no

Facebook, destacam-se por serem o que maior interesse suscitam aos internautas, também

condicionados pela agenda mediática.

Daí que a primeira e segundas hipóteses de trabalho delineadas possam ser respondidas

afirmativamente: H1). “A apropriação do espaço público digital pelos utilizadores está

subjacente às temáticas dos posts publicados” e H2). “A participação no espaço público

digital dos utilizadores é condicionada pelos temas da atualidade”. No que diz respeito à

terceira hipótese, H3). “A interação no espaço público digital é maior quando o conteúdo é

multimédia e/ou visual”, notámos que todos os posts com mais engagements são

acompanhados de imagem e/ou fotografia, o que os torna mais atrativos. Assim, gostaríamos

de sublinhar o facto do maior quinto engagement do mês de janeiro, no Público, ser o artigo

intitulado “A rapariga espadaúda”, um artigo acompanhado por conteúdo multimédia.

Para futuras investigações fica o desejo de podermos alargar este estudo a mais medias

nacionais, abraçando uma maior baliza temporal (durante os 365 dias de 2017).

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