demografia, democracia e direitos humanos

Upload: jose-eustaquio-diniz-alves

Post on 30-May-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    1/32

    Ministrio do Planejamento, Oramento e GestoInstituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE

    Escola Nacional de Cincias Estatsticas

    Textos para discussoEscola Nacional de Cincias Estatsticas

    nmero 18

    DEMOGRAFIA, DEMOCRACIA E

    DIREITOS HUMANOS

    JOS EUSTQUIO DINIZ ALVES

    Rio de Janeiro

    2005

    [email protected]

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    2/32

    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - IBGE

    Av. Franklin Roosevelt, 166 - Centro - 20021-120 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil

    Textos para discusso. Escola Nacional de Cincias Estatsticas, ISSN 1677-7093

    Divulga estudos e outros trabalhos tcnicos desenvolvidos pelo IBGE ou em conjunto comoutras instituies, bem como resultantes de consultorias tcnicas e traduesconsideradas relevantes para disseminao pelo Instituto. A srie est subdividida porunidade organizacional e os textos so de responsabilidade de cada rea especfica.

    ISBN 85-240-3805-5

    IBGE. 2005

    Impresso

    Grfica Digital/Centro de Documentao e Disseminao de Informaes CDDI/IBGE, em 2005.

    Capa

    Gerncia de Criao/CDDI

    Alves, Jos Eustquio DinizDemografia, democracia e direitos humanos / Jos Eustquio Diniz Alves. - Rio de Janeiro : Escola

    Nacional de Cincias Estatsticas, 2005.33 p. - (Textos para discusso. Escola Nacional de Cincias Estatsticas, ISSN 1677-7093 ; n. 18)

    Inclui bibliografia.ISBN 85-240-3805-51. Demografia. 2. Democracia. 3. Direitos humanos - Brasil. 4. Brasil - Populao. I. Escola Nacional

    de Cincias Estatsticas (Brasil). II. Ttulo. III. Srie.

    Gerncia de Biblioteca e Acervos Especiais CDU 314RJ/2005-05 DEM

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    3/32

    SUMRIO

    1. Introduo___________________________________________________________ 7

    2. Demografia: o debate sobre populao e cidadania______________________ 9

    3. Democracia, Cidadania e Direitos Humanos____________________________ 15

    4. Democracia, Cidadania e Direitos Humanos no Brasil ___________________ 20

    5. Populao e Direitos Reprodutivos no Brasil____________________________ 25

    6. Concluses_________________________________________________________ 29

    7. Referncias Bibliogrficas____________________________________________ 32

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    4/32

    RESUMO

    O objetivo desse Texto para Discusso abordar a relao entre demografia

    especialmente a discusso sobre populao e desenvolvimento democracia e

    direitos humanos no Brasil. Para tanto o Texto comea com uma reviso do debate

    demogrfico, dando nfase para a polmica ocorrida no decorrer da Revoluo

    Francesa e seus desdobramentos posteriores at a Conferncia Internacional sobre

    Populao e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, que marcou

    uma mudana de paradigma na questo populacional, ao priorizar a questo dos

    direitos reprodutivos. Em seguida, o Texto aborda a evoluo do conceito e dasconquistas dos direitos humanos no mundo, principalmente os avanos ocorridos

    depois da criaoda Organizao das Naes Unidas (ONU) e da proclamao da

    Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948. O fim da Guerra-Fria trouxe

    a possibilidade da expanso do Estado de Direito e da democracia no mundo,

    apesar de amplas parcelas da populao continuar vivendo na pobreza e sem

    acesso cidadania plena. O Brasil, nas ultimas dcadas, em especial depois do

    processo de redemocratizao de 1985, tambm passou por grandes mudanas na

    legislao e na execuo relativa aos direitos humanos e reprodutivos. Assim, o

    principal desafio da atualidade colocar em prtica os direitos humanos e

    reprodutivos objetivando a melhoria das condies de vida do povo brasileiro e o

    bem-estar de seus cidados e cidads.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    5/32

    ABSTRACT

    The objective of this working paper is to tackle on the relation between

    demography, especially the discussion about population and development

    democracy and human rights in Brazil. For this, the text begins with a revision of

    the demographic debate, given emphasis to the polemic occurred throughout the

    French Revolution and its later repercussions up to the International Conference on

    Population and Development (ICPD), carried out in Cairo, in 1994, which has

    marked a change in the paradigm of population issues by giving priority to issues

    related to reproductive rights. Following, the paper goes on to approach the

    evolution of the concept and the conquers on human rights worldwide, mainly, the

    advances occurred after the creation of the United Nations (UN) and the

    Declaration of the Universal Human Rights, in 1948. The end of the cold war

    brought the possibility of the expansion of theState of Rights and the Democracy

    in the world, although large parcels of the population still lives on poverty and

    without complete access to citizenship. Brazil, in the last decades, especially after

    the process of redemocratization in 1985, also has gone trough major changes in

    the legislation and the execution of laws regarding human and reproductive rights.

    Hence, the current main challenge is to put in practice the human and reproductive

    rights with the purpose of improving life conditions of the Brazilian people and the

    wellbeing of its citizenships, men and women.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    6/32

    1. INTRODUO1

    Cada cidado um membro da soberania e como tal no pode admitirsujeio pessoal, sua obedincia existe apenas em relao s leis

    Thomas Paine (1737-1809)

    A Assemblia Geral das Naes Unidas proclama a presente Declarao Universaldos Direitos do Homem como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as

    naes, com o objetivo de que cada indivduo e cada rgo da sociedade, tendo sempre

    em mente esta Declarao, se esforce, atravs do ensino e da educao, por promover orespeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoo de medidas progressivas de carternacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observncia

    universais e efetivos

    Declarao Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948)

    A histria das conquistas dos direitos humanos preenche uma das pginas mais belas

    do livro que conta a trajetria humana na Terra (Comparato, 2003). Os direitos de

    cidadania da maioria da populao ainda esto, certamente, longe de serem

    universalizados. Todavia, a conscincia moral da existncia de direitos inalienveis eindivisveis uma realidade que tem avanado bastante ao longo das ltimas dcadas,

    apesar da efetivao desses direitos estar aqum do desejado. A Revoluo Francesa

    de 1789, mesmo no se constituindo como nico evento fundamental, foi um marco

    na transformao da populao, de um conjunto de indivduos com obrigaes

    devidas a um Soberano, para um conjunto de cidados que possuem direitos e so a

    fonte da Soberania Nacional. Portanto, representa uma virada na histria da espcie

    humana. Porm, os direitos civis e polticos obtidos na aurora da Era moderna foram

    apenas um primeiro passo na longa marcha da conquista de uma cidadania plena.

    Direitos econmicos, sociais, culturais, reprodutivos e direitos coletivos e difusos

    1

    Professor Titular do Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional deCincias Estatsticas (ENCE) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    7/32

    8

    foram sendo adicionados ao longo do tempo. Todavia ter direitos no significa que a

    populao conseguiu alta qualidade de vida e bem-estar.

    O debate moderno sobre populao, cidadania e direitos humanos, no por

    coincidncia, tem uma mesma origem histrica: a Revoluo Francesa. A partir do

    final sculo XVIII, a relao entre populao e cidadania entrou na pauta da discusso

    poltica e das preocupaes sociais. Os indivduos que eram contabilizados como

    sditos de um monarca (soberania divina), passaram a ser tratados como cidados

    possuidores de direitos inalienveis e, em ltima instncia, senhores da soberania

    democrtica. Segundo Bobbio, com a Revoluo Francesa houve uma inverso

    histrica, em que passou-se da prioridade dos deveres do sdito prioridade dos

    direitos dos cidados (1992, p. 3). Todavia, a prevalncia dos direitos humanos na

    orientao das polticas pblicas no aconteceu plenamente com o fim do Ancien

    Rgime e nem teve uma trajetria linear e continuamente ascendente.

    Ao contrrio, durante os ltimos 200 anos houve muitos retrocessos e a

    populao foi vtima de polticas equivocadas. Muitas vezes a populao foi tratada

    como vil e culpada por seus prprios problemas e no como detentora de direitos

    civis, polticos, sociais, econmicos, culturais e reprodutivos. Este artigo apresenta

    um breve histrico do debate sobre populao, cidadania e direitos humanos, tendo

    como objetivo mostrar que a conquista dos direitos reprodutivos, que teve seu

    momento culminante na Conferncia Internacional sobre Populao eDesenvolvimento (CIPD), realizada na cidade do Cairo, em 1994, representou uma

    mudana de paradigma na longa trajetria das conquistas democrticas. A existncia

    dos direitos reprodutivos uma condio sine qua non para a justia e o avano da

    qualidade de vida dos cidados e o progresso das naes. No Brasil, a trajetria das

    conquistas democrticas e cidads seguiu um caminho tortuoso, mas apresenta

    grandes possibilidades de melhora nesse incio do sculo XXI.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    8/32

    9

    2. Demografia: o debate sobre populao e cidadania

    A palavra demografia formada por dois vocbulos gregos dmos (Demo) -

    povo, populao ou povoao, e grphein (grafia) - ao de escrever, descrio ouestudo. O objetivo da demografia , portanto, o estudo das populaes humanas. Ela

    estuda o tamanho da populao, sua composio por sexo e idade e seu ritmo de

    crescimento, tanto positivo, quanto negativo. Para o demgrafo francs Alfred Sauvy

    a demografia pode ser entendida em sentido puro ou amplo. No primeiro caso,

    representa uma contabilidade de homens. No segundo caso: estuda os homens em

    suas atitudes, seu comportamento; preocupa-se com as causas dos fenmenos e com

    suas conseqncias. Nesse sentido, ela desemboca em um campo imenso,

    compreendendo numerosas disciplinas: economia, sociologia, etnografia, direito,

    poltica, etc., e at mesmo a agronomia, a urbanologia, a biologia, a biometria, a

    medicina, etc. Uma vez franqueados os limites que a anlise estabelece, no h mais

    fronteiras (Sauvy, 1979, p. 16).

    A demografia teve seu maior crescimento no bojo da discusso entre

    populao e desenvolvimento, especialmente aps a Revoluo Francesa (1789).

    Todavia, ao longo da histria, a demografia tem apresentado muitos avanos, mas

    tambm tem sido utilizada de forma inapropriada, criando constrangimentos e recuos

    por parte dos demgrafos. No debate sobre populao e desenvolvimento existem

    autores que, no longo prazo, enxergam um equilbrio de foras que se auto-ajustam,

    enquanto outros consideram que o desequilbrio uma constante. Alguns consideram

    que a populao uma varivel independente e outros a consideram uma varivel

    dependente do modo de produo econmico prevalecente na sociedade. Porm, em

    qualquer contexto, preciso colocar a discusso demogrfica no campo da discusso

    da cidadania. Essa discusso tem razes longnquas e conhecer as abordagens

    histricas pode nos ajudar a compreender melhor a evoluo da disciplina e, de forma

    prtica, nos ajudar a superar possveis impasses, assim como traar rumos para o

    avano da disciplina.

    Em suas origens clssicas, os estudos demogrficos surgiram, ainda que de

    forma embrionria, no bojo da discusso entre populao e cidadania. No seria

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    9/32

    10

    exagero dizer, portanto, que a demografia nasceu com a democracia. A palavra

    democracia (demokratia) formada por dois vocbulos gregos dmos (Demo) povo

    e kratos - poder. Democracia, portanto, o poder do povo ou o governo do povo.

    Mas povo no poder pressupe a existncia de cidados, ao invs de sditos. Para os

    gregos ser cidado era participar da plis (ter participao poltica) e tambm ser

    habitante da cidade (no latim civitas, que deu origem palavra cidadania e cidado).

    Assim, ser cidado ter direitos polticos. Contudo, na democracia grega a

    participao poltica era um privilgio dos homens livres das cidades-estado, sendo

    que as mulheres, os escravos e os metecos (imigrantes) que constituam a grande

    maioria da populao - estavam privados da cidadania e no participavam da liberdade

    existente napolis. A populao da Grcia antiga estava dividida em cidados e no-

    cidados, no sendo, pois, o conceito de cidadania, uma idia que se aplicava ao

    conjunto dos habitantes.

    Alm dessa limitao de origem, as dificuldades da democracia de Atenas

    (evidentes, por exemplo, na condenao de Scrates) fizeram com que o filsofo

    Plato, em um de seus livros clssicos, imaginasse um Estado-ideal onde o controle

    da cidade e da populao teria um papel central. Em a Repblica (Politia), Plato

    teorizou sobre uma sociedade estratificada, com uma cidadania restringida, j que aos

    trabalhadores caberia prover as necessidades materiais da coletividade, aos soldados

    a segurana e aos filhos das Idias (os verdadeiros cidados) caberia governar

    atravs do Filsofo-Rei. O fundador da Academia defendeu princpios eugnicos,

    controle social sobre os filhos e sobre os casamentos (himeneu coletivo), limitao do

    tamanho das cidades, etc. A repblica platnica rompeu com a representao grega

    da plis e introduziu princpios autoritrios na administrao da populao que

    voltariam a aparecer, sob novas formas, nos tempos modernos (Arendt, 2003).

    O fim da democracia em Atenas (e tambm em Roma) arrefeceu o debate

    sobre cidadania e populao, apesar de ter havido diversas manifestaes tericas

    esparsas que foram registradas ao longo dos sculos. S na democracia moderna, a

    demografia iria se firmar. Foi com a Revoluo Francesa que novos parmetros foram

    estabelecidos e uma consistente formulao terica abriu caminho para os avanos da

    cidadania. Um dos primeiros tericos a apresentar uma clara compreenso sobre a

    relao entre populao e democracia foi o Marqus de Condorcet (1743-1794).

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    10/32

    11

    Revolucionrio de primeira hora e inspirado nos princpios iluministas e nos ideais de

    Liberdade, Igualdade e Fraternidade, escreveu o livro Esboo de um quadro histrico

    dos progressos do esprito humano, em 1794, no qual defendia a idia de que o

    homem um ser indefinidamente perfectvel, sendo que o avano da civilizao e da

    cidadania seria uma vitria da razohumana sobre os preconceitos, os fatalismos e as

    supersties. Condorcet considerava que a pobreza, a misria, as epidemias, as

    guerras e a fome poderiam ser vencidas por meio das reformas sociais, da interveno

    consciente do ser humano e da organizao democrtica das naes. Ele previu uma

    grande reduo das taxas de mortalidade e natalidade e considerava que a populao

    conquistaria, nos sculos seguintes, nveis elevados de cidadania e progresso material

    e cultural (Condorcet, 1993).

    Os primeiros anos da Revoluo Francesa foram saudados com entusiasmo

    pela intelligentzia europia e significaram a materializao dos progressos da razo da

    Idade das Luzes. Porm, a boa receptividade no durou muito e a defesa dos

    princpios da democracia e da cidadania no foi observada e nem se difundiu pelo

    mundo. As vitrias militares do exrcito de Napoleo e o Terror provocaram um recuo

    geral e uma hostilidade, especialmente do outro lado do Canal da Mancha. Edmund

    Burke (1729-1797) - aristocrata irlands e parlamentar britnico - foi uma das

    primeiras vozes conservadoras a atacar os ideais da Revoluo Francesa, abrindo

    caminho para novas crticas. Poucos anos depois, em 1798, o economista ingls e

    sacerdote da Igreja Anglicana, Thomas Malthus (1766-1834) publicou o panfleto

    intitulado Ensaio sobre o princpio de populao e seus efeitos sobre o

    aperfeioamento futuro da sociedade, com observaes sobre as especulaes de Mr.

    Godwin, Mr. Condorcet e outros autores2 em que no apenas repudiava os

    acontecimentos franceses, mas colocava o crescimento desenfreado da populao

    como a principal causa da pobreza, da misria, da fome e das guerras.

    No modelo malthusiano no havia espao para a cidadania, entendida como

    conquistas polticas, sociais e econmicas. Malthus foi contra a lei dos pobres na

    Inglaterra, contra a reduo da jornada de trabalho, e achava que qualquer aumento

    de salrio alm do nvel de subsistncia incentivaria o cio e a bebedeira. A teoria

    2 A primeira edio do Ensaio surgiu como publicao annima e a segunda edio, conhecida como oSegundo Ensaio, mais completa, foi assinada pelo autor e publicada em 1803.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    11/32

    12

    populacional de Malthus introduziu princpios conservadores e premissas religiosas

    que continuam atuantes nos discursos contemporneos sobre populao e

    desenvolvimento. Todavia, embora responsabilizando o alto crescimento populacional

    (dos pobres) pelos males da misria, da fome e das guerras, Malthus opunha-se

    regulao da fecundidade e era radicalmente contra o aborto, a utilizao de mtodos

    contraceptivos pelos casais, o intercurso sexual antes do matrimnio e

    relacionamentos sexuais fora do casamento, isto , Malthus era contra os direitos

    reprodutivos (Alves, 2002).

    Os partidrios da Revoluo Francesa e os pensadores socialistas do sculo

    XIX reagiriam contra a ideologia malthusiana, pois consideravam que as causas da

    misria, da pobreza e da fome no estavam no crescimento descontrolado da

    populao, mas sim na falta de cidadania e de desenvolvimento econmico e social.

    Karl Marx (1818-1883), por outro lado, acha que s uma nova revoluo, liderada

    pelo proletariado, iria alm do reino das necessidades para criar o reino das liberdades.

    No sculo XX, especialmente durante o conflito Leste versus Oeste, ficou muito

    marcado a tendncia de a direita pregar o controle da natalidade e a esquerda

    defender o desenvolvimentismo (Alves e Corra, 2003).

    Enquanto os seguidores de Malthus e Marx polemizavam se o crescimento

    demogrfico era ou no um empecilho melhoria da qualidade de vida da populao,

    uma nova corrente de pensamento, inspirada em parte em Plato e Darwin, ganhou

    corpo: a eugenia. Os eugenistas elaboraram formulaes cientficas destinadas a

    demonstrar que a qualidade da populao era mais importante que a cidadania. Os

    defensores da eugenia consideravam que o sucesso ou fracasso dos indivduos

    dependia mais das caractersticas genticas e menos dos direitos inalienveis da

    pessoa humana. Na primeira metade do sculo XX a eugenia, no

    surpreendentemente, desaguou no racismo aberto do nazismo alemo e do fascismo

    italiano e japons, provocando o maior desastre histrico dos direitos humanos.

    Depois da Segunda Guerra Mundial, j num contexto de queda generalizada

    das taxas de mortalidade em todo o mundo, a preocupao se voltou para a

    manuteno das altas taxas de fecundidade. Os demgrafos neomalthusianos

    passaram a chamar ateno para a exploso demogrfica, compartilhando a viso de

    que o alto crescimento populacional inviabiliza o combate pobreza, mas divergindo

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    12/32

    13

    de Malthus, ao proporem o controle da fecundidade dentro e fora do casamento.

    Livres dos preconceitos religiosos conservadores, vrios idelogos neomalthusianos

    advogavam a utilizao de mtodos contraceptivos eficientes, metas populacionais

    restritivas e, formas coercitivas de reduo da natalidade, como forma de eliminar os

    entraves demogrficos ao desenvolvimento econmico. A ideologia neomalthusiana

    ganhou terreno na poltica nas dcadas de 1950 e 1960 e definiram os contedos das

    Conferncias de Populao realizadas em Roma, em 1954, e Belgrado, em 1965,

    ambas de carter mais acadmico. As metas de crescimento zero da populao

    serviram para restringir e cassar os direitos reprodutivos de homens e mulheres.

    O debate entre populao e cidadania voltou ao centro da poltica internacional

    durante a Conferncia Mundial sobre Populao e Desenvolvimento de Bucareste,

    promovida pela primeira vez pela ONU, em 1974, e que contou com a participao de

    137 pases. A maioria dos paises foi contra o neomalthusianismo, afirmando O

    desenvolvimento o melhor contraceptivo. Contudo, em 1984, quando foi realizada

    na Cidade do Mxico a segunda Conferncia de Populao auspiciada pela ONU, a

    maioria dos pases em desenvolvimento se mostrava muito mais aberta idia do

    planejamento familiar, agora influenciada pelo ressurgimento do conservadorismo

    moral no trato das questes populacionais. O governo Reagan nos Estados Unidos, a

    Igreja Catlica e outros grupos religiosos envidariam esforos sistemticos para

    restaurar a antiga ordem moral afetada pelos desregramentos familiares, sexuais e

    reprodutivos decorrentes do progresso, em que se incluam as novas idias

    referentes regulao da fecundidade. Na Conferncia do Mxico, em aliana aberta

    com o Vaticano, os EUA bloquearam toda e qualquer meno ao aborto no

    documento final e conseguiram incluir recomendaes favorveis promoo dos

    meios anticoncepcionais ditos naturais (Corra e Sen, 1999).

    Na Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento (CIPD)

    realizada na cidade do Cairo, em 1994, j no contexto do ps-Guerra Fria, a questo

    da cidadania entrou para o centro da agenda internacional. Diferentemente das

    conferncias realizadas anteriormente os debates do Cairo no foram prejudicados

    pelo conflito Leste versus Oeste. Ao contrrio, a questo populacional foi tratada de

    maneira ampla e no exclusivamente associada ao debate sobre crescimento

    econmico, mas sim incorporando dimenses relacionadas ao desenvolvimento social,

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    13/32

    14

    ao meio ambiente e, mais especialmente, perspectiva da cidadania e dos direitos

    humanos. Circunstncias favorveis fizeram com que a CIPD mobilizasse uma forte

    presena de organizaes no-governamentais (ONGs), incluindo-se os movimentos

    de mulheres, grupos de ambientalistas e de defensores dos direitos humanos. Nessas

    condies polticas excepcionais, a Plataforma do Cairo, aprovada por consenso de

    179 pases, conseguiu colocar a questo da populao dentro dos marcos da

    cidadania e avanou ao firmar como princpio universal a conquista dos direitos

    reprodutivos (Caetano et al, 2004).

    A definio de direitos reprodutivos estabelecidos na Conferncia do Cairo

    rompeu com qualquer proposio autoritria anterior, ao estabelecer: Os direitos

    reprodutivos abrangem certos direitos humanos j reconhecidos em leis nacionais, em

    documentos internacionais sobre direitos humanos em outros documentos

    consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito bsico de todo

    casal e de todo indivduo de decidir livre e responsavelmente sobre o nmero, o

    espaamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informao e os meios de assim

    o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padro de sade sexual e reprodutiva.

    Inclui tambm seu direito de tomar decises sobre a reproduo, livre de

    discriminao, coero ou violncia (Plataforma da CIPD do Cairo, 7.3).

    A definio do conceito de direitos reprodutivos no foi um ato isolado, mas

    sim fruto de uma grande mobilizao da sociedade civil global que se mobilizou e se

    fez presente na Conferncia do Cairo. Tambm, foi de fundamental importncia o

    conjunto de Conferncias da ONU que reafirmaram a noo ampla de cidadania, tais

    como: a Conferncia sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro,

    1992; a Conferncia Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, em 1993; a IV

    Conferncia Mundial sobre a Mulher em Pequim, em 1995; a Cpula Mundial sobre o

    Desenvolvimento Social em Copenhague, em 1995; a Conferncia Mundial sobre

    Assentamentos Humanos em Istambul, em 1996 e a Cpula Mundial sobre Alimentos

    em Roma, em 1996. Assim, os direitos reprodutivos surgiram como parte de uma

    cidadania plena que inclui os direitos das mulheres, assim como os direitos

    ambientais, habitacionais, de segurana alimentar e todos os direitos sociais. Em

    sntese: a noo de que os direitos humanos so amplos, universais e indivisveis.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    14/32

    15

    3. Democracia, cidadania e direitos humanos

    Para Aristteles existiam trs formas de governo: Monarquia, que o governo

    de um s, Oligarquia, quando apenas alguns cidados esto no governo e Democracia

    que representaria o governo de todos. Assim, a Democracia, desde a sua concepo

    grega, o regime construdo a partir da soberania popular (Todo poder emana do

    povo). Em tese, ademocracia poltica o regime em que cada indivduo (adulto) tem

    a possibilidade de participar livremente das decises polticas que afetam a sua vida

    pessoal e coletiva. O cidado o sujeito que tem liberdade e autonomia para legislar

    para a coletividade e, em ltima instncia, para si mesmo. Em tese, cada cidado,

    como membro da soberania popular, livre para legislar ou para escolher seus

    representantes legislativos e s deve obedincia s leis (votadas

    democraticamente).3 A democracia poltica representativa exige: liberdade e soberania

    do ato eleitoral, obedincia vontade expressa da maioria, divisodos poderes (para

    evitar o autoritarismo e os abusos) e respeito aos direitos das minorias. Nessas

    condies, ser cidado ter direito vida, liberdade, livre iniciativa, propriedade,

    segurana, privacidade, justia, igualdade perante a lei (direitos civis); ,

    tambm, participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter liberdade de

    expresso, manifestao e associao (direitos polticos). A democracia poltica d

    mais nfase ao quesito liberdade e, em geral, requer controle popular sobre os

    poderes constitudos e a no interveno estatal na liberdade individual e social.

    A democracia social aquela que d nfase aos fatores que propiciam a maior

    igualdade social, buscando garantir a participao proporcional do indivduo na riqueza

    coletiva. Nessas condies, ser cidado ter o direito educao, habitao, ao

    trabalho, ao salrio justo, sade e ao atendimento mdico, segurana alimentar,

    previdncia, ao lazer, em suma, ter direito a uma vida digna, satisfatria e feliz. Ao

    contrrio da democracia poltica, a democracia social d mais nfase igualdade, o

    que, em geral, requer maior interveno estatal para se atender as demandas sociais,

    3

    Na definio de Rousseau os legisladores devem fazer prevalecer a vontade geral. Porm, na democraciarepresentativa nem sempre os legisladores representam verdadeiramente seus eleitores e nem sempreconseguem (ou desejam) conciliar o interesse particular e o interesse coletivo. Nas democracias modernasexiste uma longa distncia entre o ideal terico de representao e a prtica real. Mas essa discusso foge aoescopo do Texto.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    15/32

    16

    assim como para regular as distores causadas pela atuao dos diversos agentes

    econmicos a partir da lgica do mercado.4

    A democracia poltica no incompatvel com a democracia social, mas nem

    sempre elas andam juntas. Ter cidadania plena, isto , ter direitos civis, polticos,

    econmicos, sociais, culturais e reprodutivos ser cidado de uma democracia queconsiga combinar a maior liberdade possvel com a maior igualdade desejvel,

    especialmente a mais completa igualdade de oportunidades. De fato, a democracia e a

    cidadania no so uma realidade estanque, mas sim um processo histrico, o que

    significa que variam no tempo e no espao. Nesse processo histrico, teve papel

    fundamental a concepo moderna dos direitos humanos baseada no princpio de que

    Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

    No caminho clssico, a cidadania civil e poltica precedeu a social. O professor

    emrito da Universidade de Londres, T. H. Marshall, em Conferncia realizada em

    Cambridge, em 1949, fez questo de reafirmar a crena do famoso economista ingls

    Alfred Marshall, at ento posta em dvida, da possibilidade de que, mais cedo ou

    mais tarde, todo homem ser um cidado. Ele foi o primeiro terico a apresentar a

    evoluo dos direitos humanos em trs partes, ou geraes: civil, poltica e social. O

    direito civil composto dos direitos necessrios liberdade individual liberdade de ir

    e vir, liberdade de imprensa e de concluir contratos vlidos e o direito justia. O

    componente poltico entendido como o direito de participar no exerccio do poder

    poltico, como um membro de um organismo investido da autoridade poltica ou como

    eleitor dos membros de tal organismo (Legislativo e Executivo). O componente social

    se refere a tudo o que vai desde o direito a um mnimo de bem-estar econmico e

    segurana ao direito de participar, por completo, na herana social e levar a vida de

    um ser civilizado de acordo com os padres que prevalecem na sociedade. As

    instituies mais intimamente ligadas com ele so o sistema educacional e os servios

    sociais.

    O objetivo de T. H. Marshall no foi teorizar sobre a divisibilidade dos direitos

    humanos ou traar um modelo de evoluo da cidadania. Ele apenas apontou, de

    4

    O termo mercado utilizado para designar a existncia de um processo de compra e venda de bens,servios, trabalho, dinheiro, etc., que segue a lgica da racionalidade econmica na busca da melhoralocao dos fatores de produo e venda de mercadorias e servios.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    16/32

    17

    maneira resumida, o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra, relacionando os

    direitos civis (Habeas Corpus, abolio da censura imprensa, direito consuetudinrio,

    etc.) ao sculo XVIII, os direitos polticos (direito ao voto de grupos e que foi se

    tornando universal, direito de associao, etc.) ao sculo XIX e os direitos sociais

    (trabalho, educao, sade, previdncia, etc.) ao sculo XX. Com seu estudo

    histrico, ele mostrou que o enriquecimento do status da cidadania foi uma forma

    de reduzir as desigualdades sociais (Marshall, 1967).

    Sem dvida, os direitos civis na Inglaterra tiveram um grande impulso aps a

    chamada Revoluo Gloriosa, de 1688 e apresentaram uma evoluo nos sculos

    seguintes. Tambm a Declarao de Independncia dos Estados Unidos da Amrica,

    de 1776, foi um momento maior da afirmao dos direitos humanos. Mas foi com a

    Revoluo Francesa, quando a Assemblia Nacional aprovou, no dia 26 de agosto de

    1789, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado que a sociedade humana

    assistiu sua revoluo copernicana. Contudo, na maior parte do sculo XIX e

    durante as duas grandes Guerras Mundiais do sculo XX, os direitos humanos tiveram

    uma aplicao limitada a parcelas minoritrias da populao de poucas naes do

    mundo.

    O grande salto da universalizao dos direitos humanos ocorreu na segunda

    metade do sculo XX. O momento axial aconteceu com a criao da Organizao das

    Naes Unidas (ONU), quando os Estados integrantes da ordem internacional do Ps-Guerra lanavam-se ao desafio de construir um cdigo universal de direitos humanos,

    estabelecendo na Carta da ONU o propsito de promover e encorajar o respeito aos

    direitos humanos. Para esse fim foi criada a Comisso dos Direitos Humanos (CDH)

    que recebeu a incumbncia de elaborar uma Carta Internacional de Direitos. No dia 10

    de dezembro de 1948 foi aprovada sem reservas e sem votos contrrios, por 48

    naes, a Declarao Universal dos Direitos Humanos, consagrando um consenso

    sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados. A Declarao de

    1948 introduz a concepo contempornea de direitos humanos marcada pela

    universalidade e indivisibilidade destes direitos. A universalidade dos direitos humanos

    resgata a idia de que a condio de pessoa o atributo nico e exclusivo para a

    titularidade de direitos e enfatiza o valor da dignidade inerente ao indivduo, sendo

    proibida qualquer discriminao que tenha por base a raa, a etnia, a nacionalidade, o

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    17/32

    18

    gnero, a idade e demais critrios. Alm do alcance global dos direitos humanos, a

    Declarao Universal tambm inova ao consagrar direitos civis e polticos edireitos

    econmicos, sociais e culturais. A Declarao ineditamente combina o discurso liberal

    e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da

    igualdade (Piovesan, 1998).

    A universalidade dos direitos humanos implica tambm no processo de

    internacionalizao destes direitos, passando da esfera nacional para a esfera mundial

    e, ambas, se reforando mutuamente. Exatamente por isso, assumiram importncia

    primordial as Conferncias da ONU na difuso dos direitos de cidadania. Partindo-se

    do critrio metodolgico que classifica os direitos humanos em geraes, a

    Declarao Universal adotou o entendimento de que uma gerao de direitos no

    substitui a outra, mas se interagem no ciclo intergeracional. Assim, a idia da

    sucesso progressiva de direitos acolhe a idia da expanso, cumulao e

    fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente

    complementares e em constante dinmica de interao. Os direitos definidos na

    Declarao costumam ser relacionados em duas categorias: os civis e polticos,

    correspondendo aos Artigos 3 seguintes at o 21 e os econmicos, sociais e

    culturais, do Artigo 22 ao 28.

    A idia de que a noo de Direitos Humanos uma construo ideolgica

    desenvolvida pelo capitalismo desenvolvido no aplicvel ao resto do mundo umerro. Como mostrou o embaixador brasileiro Lindgren Alves, as afirmaes de que a

    Declarao Universal um documento de interesse apenas ocidental so falsas e

    perniciosas: Falsas porque todas as Constituies nacionais redigidas aps a adoo

    da Declarao pela Assemblia Geral da ONU nela se inspiram ao tratar dos direitos e

    liberdades fundamentais, pondo em evidncia, assim, o carter hoje universal de seus

    valores. Perniciosas porque abrem possibilidades invocao do relativismo cultural

    como justificativa para violaes concretas de direitos j internacionalmente

    reconhecidos (Alves, 2003)

    Adotada a Declarao Universal, a CDH comeou a preparar uma Conveno

    ou Pacto destinado a regular a aplicao dos direitos recm reconhecidos

    internacionalmente. Contudo, alguns pases se opuseram a uma nica Conveno,

    alegando de que os direitos correspondiam a espcies distintas: os civis e polticos

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    18/32

    19

    seriam de aplicao imediata, enquanto os econmicos, sociais e culturais seriam de

    aplicao progressiva. No contexto da Guerra Fria foi difcil chegar a um acordo.

    Depois de um longo processo de debates e controvrsias, a Assemblia Geral da

    ONU, por unanimidade, aprovou em 10 de dezembro de 1966 o Pacto Internacional

    de Direitos Civis e Polticos e o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais eCulturais.

    Desde a proclamao da Declarao Universal, de 1948, as Naes Unidas

    adotaram mais de sessenta declaraes ou convenes, dentre as mais importantes,

    se destacam:

    Conveno Internacional para a Eliminao de Todas as Formas de

    Discriminao Racial (1965);

    Conveno para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra

    a Mulher (1979);

    Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos e Punies Cruis,

    Desumanos e Degradantes (1984);

    Conveno sobre os Direitos da Criana (1989).

    Houve tambm duas importantes Conferncias internacionais. A primeira

    Conferncia Mundial de Direitos Humanos - Teer, 1968 - representou, de certo

    modo, a gradual passagem da fase legislativa, de elaborao dos primeiros

    instrumentos internacionais de direitos humanos (a exemplo dos dois Pactos de

    1966), fase de implementao de tais instrumentos. A segunda Conferncia

    Mundial de Direitos Humanos - Viena, 1993 - procedeu a uma reavaliao global da

    aplicao de tais instrumentos e das perspectivas para o novo sculo, abrindo campo

    ao exame do processo de consolidao e aperfeioamento dos mecanismos de

    proteo internacional dos direitos humanos. A Conferncia de Viena, ocorrida no

    contexto ps-Guerra Fria, avanou no propsito de assegurar a indivisibilidade detodos os direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais com ateno

    especial aos mais necessitados de proteo.

    Todos os avanos tericos e prticos, que permitiram a implantao dos

    princpios dos direitos humanos no mundo na segunda metade do sculo XX,

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    19/32

    20

    propiciaram a criao de um campo frtil para a elaborao dos direitos reprodutivos,

    aprovados na Conferncia Internacional de Populao e Desenvolvimento, ocorrida na

    cidade do Cairo, apenas um ano depois da Conferncia de Viena. O impacto de todo

    esse processo sobre o Brasil e a luta pela cidadania no pas foi muito grande. A

    interao entre as conquistas internacionaise nacionais possibilitou que populao,

    cidadania e direitos humanos no Brasil passassem a ser tratadas de maneira conjunta,

    abrindo espao para a superao das velhas crenas neomalthusianas.

    4. Democracia, cidadania e direitos humanos no Brasil

    Os conceitos de cidadania e direitos humanos no Brasil foram recebendo os

    aportes internacionais e se desenvolvendo, internamente, a partir de conflitos e de

    lutas econmicas, sociais e culturais. Mas a trajetria da cidadania brasileira foi muito

    tumultuada e sofreu inmeros revezes, antes de se tornar tema corrente e recorrente

    a partir do processo de redemocratizao de meados da dcada de 1980 e da

    Constituio Cidad, de 1988. Ao contrrio da histria inglesa, os avanos da

    cidadania brasileira no seguiram a seqncia das geraes dos direitos civis, polticos

    e sociais, cada um correspondendo a um dos trs ltimos sculos. A democracia

    brasileira e a construo cidad no pas tiveram uma histria mais acidentada e, de

    certa forma, mais complexa, apesar de mais limitada (Carvalho, 2003).

    O Brasil herdou, em 1822, quando da Proclamao da Independncia, uma

    tradio cvica pouco encorajadora. Os portugueses deixaram um territrio e uma

    cultura relativamente unidos, mas tambm uma populao analfabeta, uma sociedade

    baseada no trabalho escravo, uma economia monocultora e latifundiria e um Estadoabsolutista. No havia cidados brasileiros. E o pior, a independncia no introduziu

    mudanas radicais nesse panorama. Mesmo durante o Imprio (1822-1889) os

    direitos civis beneficiavam a poucos, os direitos polticos a pouqussimos e nem se

    falava em direitos sociais. O fim da escravido em 1888 foi um avano, sem dvida,

    mas a introduo do trabalho livre no significou que a populao negra tenha

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    20/32

    21

    conquistado a cidadania. A obteno de alguns direitos formais no implicou na

    conquista de direitos reais. Nas palavras do presidente Washington Lus,

    representando o pensamento reinante na Repblica Velha (1989-1930), a questo

    social uma questo de polcia.

    A questo social s passaria a ser tratada como uma questo de poltica apsa Revoluo que terminou com a Republica do Caf com Leite. O presidente Getlio

    Vargas chegou ao poder atravs de uma insurreio em 1930, foi eleito de forma

    indireta em 1934 e deu o golpe de 1937, cancelando as eleies programadas e

    instalando a ditadura do Estado Novo. Com a Revoluo de 30 o pas abandonou o

    modelo primrio-exportador e iniciou um processo de industrializao, com base no

    mercado interno, via substituio de importaes. O ano de 1930 foi um divisor de

    guas, tambm, no que diz respeito histria da cidadania. Os principais avanos se

    deram no plano da poltica social especialmente com a legislao trabalhista e

    previdenciria e no no plano dos direitos polticos5. No primeiro governo Vargas

    teve incio o processo de Modernizao Conservadora, que pressupe uma analogia,

    do caso brasileiro, "revoluo passiva" ou via prussiana de passagem sociedade

    do tipo industrial. Na chamada "revoluo passiva brasileira" no existe uma

    cidadania plena, mas sim uma cidadania que vem sendo qualificada pelos diferentes

    autores como: "deficitria", "incompleta", "regulada", "inacabada", "imperfeita",

    "virtual", dentre outras (Viana, 1996).

    Ao fim do governo Vargas, iniciou-se um processo de democratizao, sendo

    que a Constituio de 1946 manteve as conquistas sociais do perodo anterior e

    garantiu os tradicionais direitos civis e polticos. Porm, o Brasil continuava um pas

    majoritariamente rural com forte influncia das elites oligrquicas. Durante os 19 anos

    da Repblica Populista (1945-1964) menos de 20% da populao brasileira estava

    apta a votar e a cidadania social estava restrita a algumas categorias de trabalhadores

    que estavam cobertos pela assinatura da Carteira de Trabalho, era a chamada

    cidadania regulada (Santos, 1979). Em 1950, 54% dos homens e 61 das mulheres

    eram analfabetas. O censo demogrfico de 1960 mostra que as condies

    5

    Uma grande conquista poltica aconteceu em 1932, atravs da legislao que introduziu o voto feminino,acabando com a excluso poltica da metade da populao brasileira. Mas as mulheres s comearam autilizar de fato esse direito, ainda que de maneira limitada, aps o processo de redemocratizao de 1945.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    21/32

    22

    habitacionais eram extremamente precrias: somente 21% tinham acesso rede geral

    de gua, 13% estavam ligados rede de esgoto, 38,5% tinham luz eltrica, 4,5%

    tinham televiso e 11% tinham geladeira (Alves, 2004).

    O golpe de maro de 64 instituiu a Ditadura Militar (1964-1985) que

    restringiu significativamente os direitos polticos. Os Atos Institucionais (AI), 1 e 2implantaram a represso poltica visando reforar o Poder Executivo e restringir a

    atuao dos sindicatos, partidos e associaes. Com o AI-5, de dezembro de 1968,

    iniciou-se a fase mais repressora da ditadura, com perseguio, tortura e morte de

    opositores polticos, cassao de mandatos de deputados, expurgo de funcionrios

    pblicos e professores universitrios, etc. Contudo, no plano das polticas pblicas,

    houve at ampliao dos direitos sociais6, a despeito da ampliao simultnea da

    desigualdade social (Fausto, 1995).

    No final dos anos 70 o Brasil assistiu um ressurgimento do movimento de

    massas, atravs da luta contra a carestia, pela anistia, por melhores condies de

    trabalho e salrio, pelas liberdades democrticas, etc. A campanha pelas Diretas J,

    de 1984 se constituiu na maior mobilizao popular do perodo e antecipou o

    processo de democratizao que teria efeito aps 1985 e culminaria na Assemblia

    Constituinte. A Constituio Cidad, de 1988, foi um marco do estabelecimento dos

    direitos civis e polticos e no tratamento dos direitos humanos na concepo

    universalista e indivisvel, com prevalncia da dignidade da pessoa humana.

    Com a chamada Nova Repblica, que teve incio com a eleio indireta de

    Tancredo Neves em 1985, o Brasil iniciou um novo ciclo histrico. Pela primeira vez

    os direitos econmicos, sociais, culturais e reprodutivos passaram a ser enfrentados

    em um quadro que prevalece o Estado de Direito (direitos civis e polticos) amplo,

    geral e irrestrito. De fato, os dados da tabela 1 mostram que o eleitorado de 1933

    representava apenas 3,7% da populao brasileira. Durante os 19 anos da Repblica

    Populista o eleitorado atingiu no mximo 22% da populao. Durante a maior parte daditadura militar o eleitorado cresceu, mas no existia eleies para governadores e

    presidente da Repblica. O grande salto do eleitorado aconteceu depois da

    6

    Durante a ditadura militar houve ampliao especialmente da previdncia (com a criao do INPS) e dossistemas educacionais e de sade.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    22/32

    23

    Constituio de 1988, que permitiu o voto dos analfabetos e possibilitou o voto

    facultativo para os jovens entre 16 e 18 anos.

    Os dados da tabela 1 tambm mostram que a grande ampliao da democracia

    brasileira se deveu ao crescente alistamento eleitoral das mulheres. No se tem dados

    precisos sobre o eleitorado feminino at 1974, mas sabe-se que comeou em umabase muito pequena e foi crescendo aos poucos. Nas dcadas de 30 e 40 as

    mulheres eram maioria analfabetas e no podiam votar. O crescente nvel de

    educao e participao poltica das mulheres fez com que o sexo feminino se

    tornasse maioria do eleitorado nas eleies do ano 2000. O nmero de mulheres

    eleitas para o parlamento tem aumentado progressivamente, mas ainda est muito

    aqum de uma situao com maior equidade de gnero. Para aumentar a participao

    feminina no Parlamento, o Congresso brasileiro instituiu uma poltica instituindo 30%

    no mnimo e 70% no mximo das candidaturas para cada sexo (Alves, 2003).

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    23/32

    24

    Tabela 1

    Populao, eleitorado total e feminino no Brasil: 1933-2004

    Ano Populao Eleitorado Total% eleitorado

    sobre apopulao

    Eleitoradofeminino

    % doeleitoradofeminino

    1933 39.939 1.466 3,7

    1945 46.177 7.459 16,2

    1950 51.944 11.455 22,1

    1960 70.191 15.543 22,1

    1970 91.139 28.966 31,8

    1974 100.000 34.000 34,0 12.000 35,3

    1980 119.900 49.079 40,9 22.089 45,0

    1990 144.500 83.817 58,0 41.082 49,0

    1998 165.000 106.101 64,3 52.795 49,8

    2000 170.000 109.826 64,6 55.437 50,5

    2002 175.000 115.254 65,9 58.605 50,8

    2004 179.000 118.493 66,2 60.668 51,2

    Fonte: Nicolau, 2002, IBGE, 2004 e TSE

    O quadro partidrio tambm se alterou muito no Brasil nos ltimos 75 anos. Os

    partidos da Repblica Velha (1889-1930) no tinham um carter nacional. Os

    partidos Republicanos Mineiro e Paulista os famosos PRM e PRP eram peasessenciais das mquinas da poltica dos governadores estaduais. ou dos Estados. O

    Partido Comunista Brasileiro PCB foi criado em 1922, fez uma tentativa

    equivocada e fracassada de chegada ao poder em 1935 e s se consolidou como uma

    promessa de alternativa de esquerda depois de 1945. Contudo, o PCB foi posto na

    ilegalidade em 1947. Trs partidosdominaram a cena poltica brasileira entre 1945 e

    1964: o Partido Social Democrtico (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a

    Unio Democrtica Nacional (UDN). O regime militar mudou totalmente o quadro

    permitindo o funcionamento de apenas duas agremiaes partidrias: a ARENA -

    Aliana Renovadora Nacional e o MDB - Movimento Democrtico Brasileiro. A ampla

    liberdade partidria no Brasil s viria a acontecer depois de 1985 (Schmitt, 2000).

    Em 1989 o Brasil retomou o processo de eleies diretas para Presidente da

    Repblica. Em 2002, pela primeira vez, foi eleito um presidente de origem operria -

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    24/32

    25

    migrante nordestino que se tornou lder sindical em So Paulo. As primeiras eleies

    presidenciais do sculo XXI marcaram uma efetiva alternncia de poder, tanto em

    termos de partido quanto em termos de representao de classe. As eleies

    municipais de 2004 consolidaram o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o

    Partido dos Trabalhadores (PT) como as duas maiores agremiaes partidrias do pas,

    dentre as 27 siglas existentes. A normalidade democrtica tem se consolidado no

    Brasil. Mesmo que ainda imperfeita, jamais na histria da democracia brasileira se

    atingiu um grau, quantitativo e qualitativo, de participao popular. Desta forma,

    espera-se que a conquista dos direitos civis e polticos possam criar o cenrio propcio

    para que a populao, em um regime democrtico, tenha condies de se movimentar

    com liberdade para conquistar os demais direitos de cidadania, permitindo que cada

    pessoa se transforme em uma cidad plena, participando da gerao e da repartio

    da riqueza nacional.

    5. Populao e Direitos Reprodutivos no Brasil

    Como a trajetria dos direitos civis e polticos foi tortuosa e como o alcance

    dos direitos econmicos, sociais e culturais so restritos, no de se estranhar que a

    populao brasileira no tenha conseguido, at hoje, ter acesso integral aos direitos

    reprodutivos. Nessa rea, inclusive, os cidados e cidads enfrentam as ideologias do

    Estado e das igrejas. Desta forma, as parcelas mais carentes da populao brasileira

    alm de terem dificuldades de acesso sade bsica, tambm tm dificuldades

    especiais de acesso sade sexual e reprodutiva. As mulheres brasileiras e os casais

    tm que enfrentar o descaso do Estado com a sade e a resistncia do

    conservadorismo moral e do fundamentalismo religioso em relao aos direitosreprodutivos.

    Tanto o Brasil, quanto os demais pases latino-americanos, adotaram, ao longo

    dos sculos, desde a colonizao, uma poltica populacional expansionista visando

    ocupao territorial e consolidao das suas fronteiras. Alm disso, o tipo de

    atividade econmica prevalecente at meados do sculo XX, que tinha como base a

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    25/32

    26

    economia de subsistncia, o colonato e as parcerias agrcolas, favorecia um padro de

    casamento precoce e a adoo de famlias numerosas, devido ao baixo custo das

    crianas e aos altos benefcios dos filhos para com as geraes mais velhas. O Estado

    e a Igreja legitimavam uma alta natalidade, especialmente diante das altas taxas de

    mortalidade comuns em todo o continente. Nos anos de 1940 foi implantada uma

    legislao explicitamente anticontrolista no Brasil que favorecia a famlia numerosa,

    proibia o aborto e tratava como contraveno a divulgao de mtodos

    anticonceptivos e desestimulava a prtica de preveno da gravidez. Esta legislao

    restritiva permaneceu em vigor durante todo o perodo democrtico seguinte e foi

    radicalizada na primeira fase do regime militar.

    Segundo Wood e Carvalho: At recentemente, a poltica governamental

    relativa populao era francamente pr-natalista. A segurana nacional e o desejo

    de povoar regies de fronteira figuravam entre os fatores que explicam a relutncia

    oficial em endossar qualquer poltica que se vislumbrasse como ameaa ao

    crescimento populacional. A posio pr-natalista mostrava-se compatvel com as

    doutrinas da Igreja Catlica, cujos ensinamentos permeavam pronunciamentos

    pblicos. Em 1967, o presidente Costa e Silva comentava, da seguinte maneira, a

    Encclica Humanae Vitae do Papa Paulo VI em um pronunciamento que demonstra a

    notvel fuso entre religio e poltica: como chefe de uma nao que se esfora em

    ocupar mais da metade do seu territrio e que est, ainda, exposta aos riscos de umadensidade demogrfica incompatvel com as necessidades globais de seu

    desenvolvimento e segurana, no nos atemos nossa inabalvel f nos

    mandamentos do Cristianismo para aplaudir esse notvel documento (1994, p. 183).

    A preocupao expansionista mostra que as elites brasileiras, at o incio da

    dcada de 1970, estavam mais preocupadas com a ocupao populacional dos

    espaos vazios do territrio nacional do que com o atendimento dos direitos

    reprodutivos e de cidadania. A queda das taxas de mortalidade em geral e, em

    especial, da mortalidade infantil, desde os anos 40, fizeram aumentar o nmero de

    filhos sobreviventes, enquanto as mudanas estruturais e institucionais ocorridas no

    perodo, diminuram a demanda por filhos. O desejo de reduzir o tamanho da prole fez

    crescer a demanda por mtodos contraceptivos eficazes. A regulao da fecundidade

    deixou de ser uma pauta imposta pelo neomalthusianismo, para se tornar uma

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    26/32

    27

    demanda legtima do direito autodeterminao reprodutiva. A partir dos anos 80,

    principalmente aps o processo de democratizao do pas, a discusso sobre o

    tamanho e o ritmo de crescimento da populao, no plano macro, cedeu espao para

    o debate sobre as condies de vida dos brasileiros, sobre as desigualdades sociais e

    regionais e sobre a degradao do meio ambiente. Por outro lado, cresceu a

    discusso, no plano micro, sobre a regulao da fecundidade e o planejamento

    familiar, no no sentido de definir o volume da populao, mas como um meio de as

    pessoas estabelecerem o tamanho desejado de famlia.

    Devido interveno dos defensores dos direitos humanos e, principalmente,

    em decorrncia da participao ativa do movimento feminista, a questo da regulao

    da fecundidade passou a fazer parte das demandas sociais. A primeira iniciativa

    governamental no sentido de oferecer servios na rea da reproduo se deu por meio

    do Ministrio da Sade que lanou, em 1977, o Programa de Sade Materno-Infantil,

    contemplando a preveno da gestao de alto risco. Mas com a crescente presena

    feministas no cenrio poltico nacional, a questo do planejamento familiar passou a

    ser defendida dentro do contexto da sade integral da mulher. O resultado foi o

    lanamento do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM), que se

    propunha a atender a sade da mulher durante seu ciclo vital, no apenas durante a

    gravidez e lactao, dando ateno a todos os aspectos de sua sade, incluindo

    preveno de cncer, atenoginecolgica, planejamento familiar e tratamento parainfertilidade, ateno pr-natal, no parto e ps-parto, diagnstico e tratamento de

    Doenas Sexualmente Transmissveis - DSTs, assim como de doenas ocupacionais e

    mentais.

    O PAISM representou um grande avano em relao a toda discusso

    anterior, pois assumiu uma postura de neutralidade diante dos objetivos natalistas ou

    controlistas das polticas sociais do pas e colocou a questo da regulao da

    fecundidade nas delimitaes dos parmetros dos direitos humanos. Tendo como

    base os princpios do PAISM e o quadro mais geral dos direitos humanos, foi que se

    travou um grande debate para normatizar, de forma democrtica, a questo da

    regulao da fecundidade na Constituio de 1988. Ouvidos os principais atores

    polticos e sociais envolvidos com a questo da reproduo, A Assemblia

    Constituinte redigiu e aprovou o 7, do artigo 226 da Constituio brasileira de

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    27/32

    28

    1988, da seguinte forma: Fundado nos princpios da dignidade da pessoa humana e

    da paternidade responsvel, o planejamento familiar livre deciso do casal,

    competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e cientficos para o exerccio

    desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituies oficiais ou

    privadas (Constituio Federal, 1988).

    Na Constituinte houve uma certa soluo de compromisso quanto questo do

    aborto e o assunto no fez parte do texto constitucional, j que as feministas

    propugnavam a importncia da legalizao do aborto, por razes teraputicas e como

    um problema de sade pblica, enquanto as Igrejas Catlicas e Evanglicas defendiam

    o direito vida desde o momento da concepo, o que eliminaria a possibilidade de

    se permitir o aborto voluntrio nos casos previstos pela legislao vigente. A questo

    da esterilizao tambm no fez parte do texto constitucional. A ligao tubria e a

    esterilizao masculina eram vetadas pela legislao brasileira que considerava crime

    qualquer leso corporal de natureza grave, resultando em debilidade permanente de

    membro, sentido ou funo do corpo. Todavia, a alta prevalncia da esterilizao no

    Brasil motivou a instaurao de uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI), em

    1991, para investigar as causas da esterilizao em massa das mulheres brasileiras

    e se existia maior probabilidade de esterilizao das mulheres negras. Os trabalhos da

    CPI mostraram que no existia discriminao racial j que as mulheres brancas

    tinham maior probabilidade de estarem esterilizadas mas apontou para a

    necessidade da regulamentao da prtica de esterilizao feminina e masculina

    (Cavenaghi, 1997).

    A partir das concluses da CPI, o Parlamento brasileiro comeou a discutir uma

    lei sobre o assunto. Somente em 1996 o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 9.263

    de 1996, que regulamenta o pargrafo 7 do art. 226 da Constituio Federal, que

    trata do planejamento familiar no Brasil. Contudo, o artigo 10 da referida lei, que

    tratava da questo da esterilizao foi vetado pelo Presidente da Repblica e, depois

    de muito debate, foi finalmente aprovado e sancionado no final de 1997. A

    concepo que permeia o contedo da referida Lei tributria do conceito dos direitos

    reprodutivos, conforme estabelecido na CIPD do Cairo de 1994. Desta forma, pode-se

    perceber que nas dcadas de 1980 e 1990 o Brasil conseguiu implantar uma

    legislao regulando a prtica dos direitos reprodutivos no pas.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    28/32

    29

    Porm, apesar da legislao brasileira respeitar, em tese, os direitos humanos

    na rea reprodutiva, a disponibilidade e a variedade de mtodos contraceptivos na

    rede pblica de sade continuam baixas devido crise fiscal do Estado brasileiro. O

    fato que as famlias mais pobres no podem exercer de maneira plena os seus

    direitos autodeterminao reprodutiva. Como mostrou Faria (1989), existe um

    efeito perverso no processo de transio demogrfica no Brasil, pois as camadas

    sociais mais pobres da populao aquelas que possuem menos acesso aos direitos

    de educao, emprego formal e sade no possuem recursos para obter os meios

    de regular a fecundidade e so obrigadas a conviver com a gravidez indesejada7.

    Desta forma, so exatamente as parcelas da populao mais excludas da cidadania

    social que encontram, tambm, mais dificuldades para ter acesso aos direitos

    reprodutivos.

    Na verdade, o Brasil do comeo do sculo XXI j tem os instrumentos legais e

    institucionais para atender a demanda por regulao da fecundidade. O PAISM, o

    Sistema nico de Sade (SUS), o pargrafo 7 do Artigo 226 da Constituio Federal

    e a Lei n 9.263 de 1996 foram concebidos de acordos com as recomendaes

    emanadas da Declarao Universal dos Direitos Humanos e das Conferncias

    Mundiais de Teer e de Viena, alm, obviamente, de estar em consonncia com a

    Plataforma do Cairo. Portanto, basta colocar em prtica o que est na legislao

    nacional e mundial para que o pas respeite os direitos reprodutivos e as concepes

    demogrficas aprovadas nos Fruns Internacionais.

    6. Concluses

    O filsofo alemo Immanuel Kant (1724-1804) dizia que, juntamente com o

    cu estrelado, a conscincia moral das pessoas era uma das duas coisas que o

    deixavam maravilhado. Ele encarava a Revoluo Francesa como um marco da

    disposio do homem a progredir e um smbolo da perfectibilidade humana.

    7

    Muitas mulheres que ficam grvidas por falta de acesso aos mtodos contraceptivos acabam recorrendo aoaborto inseguro e, freqentemente, acabam engrossando as estatsticas de mortalidade materna.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    29/32

    30

    Inspirado nas idias de Kant, Bobbio defende a seguinte tese: O atual debate sobre

    os direitos do homem cada vez mais, amplo, cada vez mais intenso, to amplo que

    agora envolveu todos os povos da Terra, to intenso quefoi posto na ordem do dia

    pelas mais autorizadas assemblias internacionais pode ser interpretado como um

    sinal premonitrio (signum prognosticum) do progresso moral da humanidade

    (Bobbio, 1992, p. 52).

    Os direitos reprodutivos aprovados na CIPD do Cairo so o filho caula da

    Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948. No por acaso, o direito vida

    tem destaque especial na Declarao. J o direito de planejar a vida, regulando a

    fecundidade, no poderia ficar de fora do arcabouo geral dos direitos humanos.

    Exatamente por isso, o Consenso do Cairo de 1994, reafirmado na IV Conferncia

    Mundial da Mulher, de Pequim, em 1995, vieram coroar todo o esforo para se criar

    um cdigo universal de direitos humanos, incluindo os direitos reprodutivos. Essa

    nova concepo de direito ainda mais importante quando consideramos que, na sua

    origem, a cidadania exclua as mulheres. Portanto, criou-se um consenso que no

    haver direitos humanos se no se alcanar os plenos direitos das mulheres.

    Na virada do milnio existe o reconhecimento de que apesar de todos os

    avanos polticos e tericos alcanados, a efetivao dos direitos humanos ainda est

    longe de ser uma realidade no mundo. Por isso, os pases das Naes Unidas,

    reunidos na Cpula do Milnio, em 2000, lanaram as Metas do Milnio com o

    objetivo de criar uma mobilizao internacional em torno de 8 metas visando tornar a

    cidadania o centro dos esforos da comunidade mundial para uma melhoria

    mensurvel e significante, mesmo que ainda parcial, das condies de vida dos povos:

    1) Erradicar a pobreza extrema e a fome; 2) Atingir o ensino bsico universal; 3)

    Promover igualdade de gnero e autonomia das mulheres; 4) Reduo da mortalidade

    infantil; 5) Melhorar a sade materna; 6) Combater HIV/aids, malria, e outras

    doenas; 7) Garantir a sustentabilidade ambiental; 8) Estabelecer uma Parceria

    Mundial para o Desenvolvimento. Porm, as Metas do Milnio podem serconsideradas um mnimo denominador comum do que se tem discutido no mundo em

    termos de direitos humanos, pois a agenda das diversas Conferncias Internacionais

    muito mais ampla.

    No Brasil, foram feitos muitos esforos, aps 1930, para construir e ampliar a

    cidadania. Todavia, chegamos no sculo XXI com a sensao desconfortvel de uma

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    30/32

    31

    transio incompleta. Parcelas significativas da populao encontram-se abaixo da

    linha de pobreza, sem acesso educao, sade, ao saneamento bsico, aos meios

    de regulao dafecundidade, etc. De acordo com vila (2002, p.125): Nas ltimas

    duas dcadas, no Brasil e na Amrica Latina, a cidadania ganhou importncia como

    referncia para os projetos de transformao social. possvel afirmar que a luta por

    democracia no Brasil se desenvolve em torno da luta por uma cidadania real. Por outro

    lado, onde no existe cidadania e sua correlata, a democracia, j est dado que os

    direitos humanos no so respeitados.

    Segundo Carvalho, (2003, p. 220) a conquista dos direitos humanos, na

    seqncia inglesa, seguiu uma lgica que reforava a convico democrtica: As

    liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judicirio cada vez mais

    independente do Executivo. Com base no exerccio das liberdades, expandiram-se os

    direitos polticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ao

    dos partidos e do Congresso, voaram-se os direitos sociais, postos em prtica pelo

    Executivo. A base de tudo era as liberdades civis. Contudo, o exemplo ingls no o

    nico caminho, j que existem pases bem sucedidos que tambm passaram por

    grandes turbulncias.

    De certo, a histria da democracia brasileira no sculo XX no seguiu a

    seqncia relatada por Marshall, mas o sculo XXI comeou com as maiores eleies

    gerais do pas (com cerca de 66% dos brasileiros aptos a votar) e com o

    fortalecimento do Estado de Direito. O Brasil demorou a criar uma democracia civil e

    poltica, mas antes tarde do que nunca. Temos que recuperar o tempo perdido e j

    contamos com importantes aportes internacionais. No h dvidas de que vivemos

    uma cidadania incompleta no Brasil. Porm, a conquista de uma cidadania plena que

    permita elevar os padres de vida da populao e garantir direitos do nascimento ao

    tmulo s ser obtida se, colocando em prtica as recomendaes internacionais e a

    legislao nacional, respeitarmos o carter universal e indivisvel dos direitos

    humanos. As condies tericas j esto dadas, s preciso colocar em prtica.

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    31/32

  • 8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos

    32/32

    FARIA, V.E. Polticas de governo e regulao da fecundidade: conseqncias no antecipadas

    e efeitos perversos. In: CINCIAS sociais hoje. So Paulo, ANPOCS, 1989.

    FAUSTO, B. Histria do Brasil, So Paulo, Editora USP, 1995.

    IBGE, 2004

    MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1967

    NICOLAU, J. Histria do voto no Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2002.

    ONU, Declarao Universal dos Direitos Humanos, Nova Iorque, 1948. Disponvel em

    PIOVESAN, F. Temas de direitos humanos. So Paulo, Max Limonad, 1998.

    SANTOS, Wanderley G. Cidadania e Justia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1979.

    SAUVY, A. Elementos de Demografia. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1979.

    SCHMITT, R. Partidos polticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2000.

    VIANNA, Luiz W. Caminhos e descaminhos da revoluo passiva brasileira. Dados, Rio de

    Janeiro, v.39, n.3, p.377-392, 1996.

    WOOD, C., CARVALHO, J.A.M. A demografia da desigualdade no Brasil. Rio de Janeiro, IPEA,1994.