democracia ou paganização · eles, com muito merecido destaque, aos nossos queridos filhos jorge...

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1 DEMOCRACIA OU PAGANIZAÇÃO DEDICATÓRIA Dedicamos este trabalho a todos que, por amor à justiça, à verdade, e aos seus semelhantes, preocupam-se menos com os modismos do que com a desarmonia e os sofrimentos que deles resultam, e que estão no ar, produzindo a atmosfera de incerteza e de angústia, em que vamos mergulhando mais e mais, a cada dia que passa. Atmosfera cujas causas profundas e deliberadamente ocultadas do público, pretendemos expor, ainda que resumidamente, à consideração e à análise dos que venham a tomar conhecimento das linhas e entrelinhas de que se compõe mais este esforço, realizado em espírito de serviço. Dedicamo-lo, também, a quantos, com a pureza dos seus corações, e a elevação dos seus espíritos, têm ajudado a reduzir a rudeza e a imperfeição dos nossos. Dentre eles, com muito merecido destaque, aos nossos queridos filhos Jorge Afonso e Maria Isabel.

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DEMOCRACIA OU PAGANIZAÇÃO

DEDICATÓRIA

Dedicamos este trabalho a todos que, por amor à justiça, à verdade, e aos seus

semelhantes, preocupam-se menos com os modismos do que com a desarmonia e os

sofrimentos que deles resultam, e que estão no ar, produzindo a atmosfera de

incerteza e de angústia, em que vamos mergulhando mais e mais, a cada dia que

passa. Atmosfera cujas causas profundas e deliberadamente ocultadas do público,

pretendemos expor, ainda que resumidamente, à consideração e à análise dos que

venham a tomar conhecimento das linhas e entrelinhas de que se compõe mais este

esforço, realizado em espírito de serviço.

Dedicamo-lo, também, a quantos, com a pureza dos seus corações, e a elevação

dos seus espíritos, têm ajudado a reduzir a rudeza e a imperfeição dos nossos. Dentre

eles, com muito merecido destaque, aos nossos queridos filhos Jorge Afonso e Maria

Isabel.

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"O QUE OS HOMENS FAZEM DEPENDE DO QUE ELES PENSAM"

John Stuart Mill in "Governo Representativo"

"A DESORDEM QUE REINA NA SOCIEDADE REINOU PRIMEIRO NA MENTE E

NO CORAÇÃO DOS QUE A COMPÕEM"

Fulton Sheen in "Angústia e Paz"

"O DESTINO DOS POVOS DEPENDE DAS IDÉIAS QUE OS VÃO DIRIGIR"

Gustave Le Bon in "Premières Conséquences de la Guerre", apud Mons. Dr. Emílio

Silva in "Filosofias da Hora e Filosofia Perene"

Referindo-se às guerras deste século : "PRÉVIA À DOS CAMPOS DE BATALHA,

DEU-SE A LUTA NO CAMPO DAS IDÉIAS. OS POVOS TINHAM SIDO

ESPIRITUALMENTE DESARMADOS E ARMARAM-SE MATERIALMENTE;

CUMPRE REARMÁ-LOS NO ESPÍRITO PARA DESARMÁ-LOS NO CORPO".

Mons. Dr. Emílio Silva

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SUMÁRIO

Explicação Preliminar .....................................Capítulo 1

Removendo Obstáculos .....................................Capítulo 2

O Falso Dilema .....................................Capítulo 3

A Questão Preliminar .....................................Capítulo 4

O Longo Caminho de Volta ao Bezerro de Ouro .....................................Capítulo 5

O Falso Dilema .....................................Capítulo 6

O Que São as Ditaduras

O Dilema Verdadeiro .....................................Capítulo 7

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CAPÍTULO I

EXPLICAÇÃO PRELIMINAR

É nossa convicção, desde há muito serenamente amadurecida, que, do ponto de

vista cultural, o Ocidente entrou, em virtude de fatores que agasalha em seu próprio

seio, em descaminhos equivocados, os quais ensejaram o engendrar de erros, no

domínio de sua visão crítica, de seus hábitos, de suas instituições políticas e sociais,

que engendraram novos erros, dentre os quais, pelo menos dois acabaram por

constituir-se em verdadeiras superstições, impingidas pelos interesses que as criaram

e as sustentam, como coisas às quais deveriam os homens servir. Não existiriam,

portanto, tais coisas para eles mas, ao contrário, eles para elas. Nada obstante, uma

breve reflexão evidencia, claramente, o erro grosseiro - mas de efeitos por vezes

dramáticos - que aí se esconde, falacioso e desonesto. Em obra nossa, sob o título "O

Mito da Caverna", tivemos a oportunidade de citar matéria de jornalista de certo país

do sul da Europa, na qual, com singular e surpreendente desenvoltura, dizia ele,

referindo-se à sua sociedade, que nela reinava a desordem econômica, que a

segurança individual estava sendo exposta a riscos crescentes, que a corrupção se

alastrava por toda a parte, que a degradação dos costumes, o uso de drogas e, até, o

sexo promíscuo, começavam a contaminar a própria infância mas que, a despeito de

tudo, podia afirmar que a situação era gloriosa (sic), "eis que continuavam vigentes e

intocadas as instituições democráticas!" Em tão gritante alienação, que equivale à

afirmação de existirem os homens para elas, e não elas para eles, está embutido um

dos descaminhos e erros a que fizemos alusão inicialmente, e de cujas causas, com

efeitos que podem ser do tipo que acabamos de apontar, e de outros, procuraremos

nos ocupar, ainda que de maneira sucinta, nas páginas que irão seguir-se.

E o faremos somente comprometidos com o que nos parece verdadeiro e justo,

rogando a Deus que nos ilumine para que nos equivoquemos o menos possível.

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CAPÍTULO II

REMOVENDO OBSTÁCULOS

Em nossa "Explicação Preliminar", fizemos menção à existência de equívocos

promovidos e transformados em verdadeiras superstições pelos interesses que os

engendraram e os alimentam com sucesso, a despeito dos frutos nefastos que, desde

há muito, têm produzido. Trata-se do fenômeno mencionado por Michael Novak em

sua obra "O Espírito do Capitalismo Democrático", segundo o qual idéias, no mundo

moderno, podem prevalecer sobre realidades concretas, mesmo quando estas as

desmintam frontalmente. Refere-se o autor ao formidável poder da mídia e das

técnicas de comunicação, cada vez mais sofisticadas, de que pode dispor e cuja

eficácia, dizemos nós, cresce na medida em que as sociedades, esvaziadas da crença

em valores permanentes entrega-se, ainda que sem percebê-lo, a ceticismo que as

torna disponíveis e vulneráveis à magia de uma comunicação de volume avassalador e

às ciladas da sua retórica e das suas abordagens cada vez mais penetrantes e mais

sutis.

Convém lembrar, a propósito, amigo que perdemos recentemente, e de cuja

estima tivemos o privilégio de privar por muitos e muitos anos. Estamos nos referindo

ao saudoso professor Armando Dias Tavares, cientista dos mais importantes dentre os

que tivemos nestas últimas décadas, e que só não desfrutou da notoriedade a que fazia

jus, exatamente pela extraordinária dimensão humana e pela lúcida inteligência que

possuía e que o tornavam muito resistente às influências acima referidas. Para que

tenha o leitor uma idéia acerca do valor daquele homem extraordinário, basta dizer

que, de origem humilde morou, em solteiro, em distante subúrbio da zona norte do

Rio de Janeiro, em casa que construiu com as suas próprias mãos a despeito de ser, à

altura da referida construção, já professor na antiga Universidade do Brasil, hoje

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Formado em Matemática, foi diletíssimo aluno de eminentes mestres italianos,

entre os quais Luigi Sobrero e Francesco Mamana, contratados pelo Governo Federal,

para lecionar na então recentemente criada Universidade do Distrito Federal, em

seguida transformada na Faculdade Nacional de Filosofia, em que se diplomou.

Iniciando as suas atividades de magistério e de pesquisas, dedicou-se o dileto

amigo de quem estamos traçando resumidíssimo currículo, às Matemáticas, de onde

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transitou para a Física teórica, instrumentalmente tão dependente daquelas. Na

objetividade e humildade inerentes ao seu espírito, mais adiante passou a dedicar-se à

investigação experimental dos fenômenos físicos, logo desempenhando as funções de

assistente do eminente professor e pesquisador Joaquim da Costa Ribeiro, descobridor

do efeito termo-dielétrico, em pouco conhecido pelos físicos do mundo inteiro como

"efeito Costa Ribeiro". Tendo sido aquele cientista surpreendido precocemente pela

morte, continuou-lhe as pesquisas o nosso dileto amigo, ao qual se devem os maiores

desenvolvimentos dos estudos do fenômeno a que acabamos de aludir, realizados

principalmente em instituição criada por ele, fora da área do serviço público, cansado

como estava dos entraves burocráticos tão presentes na administração estatal,

agravados ainda mais pelos pequenos grupos que monopolizavam, ou monopolizam,

as pesquisas em nosso país, dominados pelos adeptos da ideologia que nestes dias cai

em descrédito, na medida em que as forças que a promoveram e a sustentaram no

poder na União Soviética, convenceram-se da sua incapacidade para realizar os

objetivos maiores e mais sutis que tinham em vista. Àqueles adeptos, somavam-se os

oportunistas de todas as épocas e de todos os campos, com a mediocridade e o

servilismo que costumam caracterizá-los.

Como se estava já, na plena fase destrutiva da "revolução progressista",

importava aos seus seguidores, em outros domínios, a promoção de hábitos corruptos

e de costumes fáceis, elementos de desagregação de qualquer sociedade a ser

conquistada e, por isso, outros tantos fatores de aproximação, mesmo nos arraiais das

ciências exatas, com as forças e os elementos que de fato os dominavam. Jamais,

porém, o amigo de quem estamos tratando, sequer colocou um cigarro na boca ou

provou de alguma bebida alcoólica, tendo se casado aos trinta e cinco anos de idade,

segundo supõem os seus mais íntimos amigos, de vez que - ele mesmo jamais discutiu

tal assunto - sem ter conhecido antes qualquer mulher. De sua exemplar esposa

Doramia, teve seis filhos. Por tais razões, a despeito de seus hábitos singelos, ao ponto

de, pelo descuido com que se trajava, em desacordo com a pequena classe média a

que pertencia, sugerir tudo, menos o domínio pelo que os "progressistas" da época

denunciavam como "preconceitos pequeno-burgueses"; e de mais de uma vez o

termos surpreendido realizando, com as próprias mãos, lanternagem de automóveis - e

ele mesmo andava a pé ou de ônibus - para, com o dinheiro auferido, conceder bolsas

a estudantes pobres; a despeito de ter sido eleito membro da Academia Brasileira de

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Ciências, ainda não dominada totalmente pelas forças e grupos a que fizemos

referência antes; de publicar os seus trabalhos em revistas cientificas das -mais

reputadas do exterior; de manter habitual correspondência e cooperação com

pesquisadores de universidades como, entre outras, a de Pisa, na Itália, e a de

Cambridge, na Inglaterra, viveu e morreu quase na obscuridade conhecido,

praticamente, em nosso país, apenas de círculos científicos, pelos motivos vistos,

geralmente indiferentes aos seus esforços, e pelos seus alunos, que o estimavam e

admiravam. Tudo isso estamos dizendo para que tenha o leitor idéia da magnitude do

chamado "patrulhamento", não apenas no livro, na imprensa escrita, falada,

televisada, nas artes, a nível popular ou erudito, mas até no campo das ciências exatas,

eis que desejava, e deseja, dar prestigio e notoriedade apenas aos integrantes dos

grupos antes referidos. E o exemplo que estamos usando é ainda mais expressivo,

antológico mesmo, porque Armando Dias Tavares não era, como talvez suponha o

leitor, alguém com opção religiosa e, em,tal sentido, capaz de, por aquele motivo,

contrariar as idéias e os grupos já antes mencionados. Não; o nosso amigo Armando

jamais conseguiu acreditar em Deus, só não se dizendo ateu por não sentir-se capaz de

provar a Sua inexistência, coisa a que pretenderam abalançar-se os que, ao menos até

ontem, se apresentavam como conhecedores de única e exclusiva ciência, o

Materialismo Histórico, resultante do Materialismo Dialético, fora dos quais tudo

seria ignorância e alienação... Quanto aos males conseqüentes a tão colossal equivoco,

à sua coorte de ódio e de lutas, tantas vezes sangrentos, ao atraso e, ela sim, alienação

que ele produziu e alimentou ao longo de tantos anos, os que até aqui se

.apresentavam como arautos daquela única e exclusiva "verdade" preferem agora

silenciar e mudar de assunto, ou realizar claras tentativas de tergiversação, como se

nada tivesse acontecido e como se não fossem responsáveis por nada. A alienação

pedante a que estamos nos referindo, catalisadora e promotora de tanta violência e

tanta perversão da realidade, não é, porém, a única. Nem é, sequer, originária, mas

conseqüente ao outro dos descaminhos a que foi feita alusão na "Explicação

Preliminar" com que iniciamos este trabalho.

A esta altura, tem todo o direito de se perguntar o leitor pelo menos duas coisas:

Qual será o outro descaminho e por que terá sido feito aqui o relato, ainda que

sumaríssimo, da vida e da obra do professor e cientista Armando Dias Tavares? E a

resposta é a seguinte: O outro,descaminho é a forma equivocada que se tem dado à

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democracia, cuja forma, com ligeiras e irrelevantes nuanças, certos interesses

pretendem impor a todo o mundo, depois de terem abandonado, convencidos da sua

obsolescência e do seu fracasso, o grande projeto de aluição das fronteiras e dos

sentimentos nacionais, projeto em fase atual de abandono.* O referido projeto, não se

espantem os leitores, longe de antagônico, sempre foi um desdobramento logicamente

previsível do processo de confusão cultural do Ocidente, acelerado a partir do século

dezoito, século encharcado de falsa racionalidade, e cheio de exaltação com respeito

às supostas capacidades ilimitadas da razão humana. Assunto, aliás, tratado em

trabalho. deste autor, editado na série "Tema Atual", pela coragem e honestidade

editorial de -"PRESENÇA", sob o titulo: "Posição do Marxismo no Processo Cultural

do Ocidente".

Quanto à segunda. parte da pergunta, relativa ao relato acerca da vida e da obra

da grande figura humana que foi Armando Dias Tavares, a resposta consiste no

seguinte: a confusão cultural acima mencionada é tanta que, embora a maioria entre

nós continue a dizer-se cristã, a impregnação por um pragmatismo viciado a quase

todos atinge, tendo sido ensejada tal impregnação pelo ceticismo que se foi instalando

e fortalecendo, na mesma medida em que se cuidava do enfraquecimento da fé

religiosa e das preocupações com a transcendência da realidade e da vida dos homens.

Daí a suspeita que tantos alimentam quanto à validade e à operacionalidade do que se

afirma, independentemente das provetas, das balanças e dos microscópios. Pois

Armando Dias Tavares, investigador devotado e competente, tanto quanto os que

mais o tenham sido entre nós, ademais agnóstico e, por isto, completamente cético em

matéria religiosa, reiteradas vezes nos disse que não lhe era necessário crer na

divindade de Jesus Cristo para compreender, sem sombra de dúvida em seu espírito,

que fora dos ensinamentos evangélicos, não haverá solução para os problemas que

angustiam a humanidade. E era nele tão firme a convicção a tal respeito que sua vida

foi sempre, em todos os aspectos, exemplo irrecusável e coerente dela. E,

acreditamos, ele amou, conheceu e serviu muito mais à Ciência do que a maioria de

nós jamais o fez.

Outros grandes vultos da Ciência, a começar por Einstein, foram também

deístas e transcendentalistas. O ceticismo, pois, e a disponibilidade que dele costuma

decorrer são, assim, filhos da inadvertência e da falta de reflexão mais profunda,

submetidas a uma massa avassaladora de propaganda, geralmente indireta, que visa a* Este trabalho, publicado em 1991, referia-se, neste ponto, ao regime soviético. O projeto que, já então, era oobjetivo real do marxismo, mudou de estratégia e chama-se, hoje, neo-liberalismo e globalização.

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desarmar os espíritos para melhor manipula-los, manipulação da qual, tantas vezes

têm resultado as guerras que ninguém diria representarem o que de mais racional e

mais prático podem os homens fazer.

Uma coisa é, pois, a essência do ideal democrático.

Outra, muito diferente, são as formas institucionais que pretendem realizá-lo,

quase todas, senão todas, impregnadas das conseqüências do agnosticismo, do

racionalismo iluminista ou, mesmo, do ateísmo, tão presentes no período histórico em

que se originaram.

"Pelos frutos os conhecereis", é a lição imortal.

E quais têm sido, em termos de valores e de vida cristãos, em consonância com

os alicerces da cultura e da civilização a que pertencemos, os por elas produzidos, em

qualquer parte mas, muito particularmente, por estar disponível à nossa observação,

neste país em que vivemos? Afora a repetição paroxística da propaganda a seu favor,

cantando-lhe incansavelmente as excelências, o que é que tem se mostrado entre nós

excelente como resultado do seu funcionamento?

São estas, questões muito profundas com as quais, permitindo-nos Deus,

pretendemos nos ocupar, ainda que resumidamente, nos páginas que se vão seguir.

CAPÍTULO III

O FALSO DILEMA

Quando, a despeito da formidável propaganda que a promove, alguém ousa

ponderar que, talvez, alguma coisa equivocada existe no que, com tanta freqüência, é

denominado "normalidade democrática", algo supostamente tão perfeito e tão

definitivo que, fora dele, tudo mais seria anômalo e, portanto, absolutamente

condenável, de imediato aquele alguém passa a ser descrito como possível adepto da.

tirania e das ditaduras. Teria, portanto, a sociedade dos homens, em matéria de

organização social e política, atingido a perfeição.

Ora, toda a gente percebe que, desprezados os engodos daquela propaganda,

sustentados por interesses que se guardam de mencionar os reais objetivos que os

movem, nenhuma obra humana foi, é, ou será, perfeita e definitiva dada a

precariedade da nossa irrecusável insuficiência de seres contingentes. Assim, somente

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com relação a objetos tão complexos como são a sociedade humana, e as suas formas

de organização e de convivência interpessoal e intergrupal, somente aí teríamos

alcançado a perfeição definitiva. Mas, afirmou-o Michael Novak, em nossos dias,

idéias,conseguem prevalecer sobre fatos, ainda quando estes as desmintam de modo

frontal.

E somente isto enseja a sustentação do mito da irretocabilidade a que nos

estamos referindo, a despeito das realidades, clamorosas, que ai estão, diante dos

olhos de todos, algumas representando contradições gritantes e grosseiras. Veja-se,

por exemplo, na ordenação do convívio internacional, como funciona a famosa

Organização das Nações Unidas. Integram-na mais de uma e meia centena de países,

dos quais apenas cerca de dez por cento compõem o chamado Conselho de Segurança

e, neste, somente os EUA, a URSS, a Grã-Bretanha, a França e a República Popular

da China gozam do especialíssimo privilégio, consistente no chamado "direito de

veto". Note-se que os integrantes desse grupo privilegiado, compõem-no em caráter

permanente, excluída a hipótese de qualquer rotatividade. O que existirá de comum

entre esses co-participes, capaz de, no plano moral, justificar o privilégio de que

gozam com exclusividade? Será a identidade de pontos de vista acerca da organização

da sociedade ou, indo mais fundo, acerca da maneira de conceber a própria natureza

do homem e as finalidades da sua existência? Todos sabemos que, absolutamente,

não. E em que consiste o privilégio de que desfrutam? Simplesmente em vetar,

tornando sem efeito, com um único voto de qualquer deles, resoluções adotadas pela

Assembléia Geral, ainda que unânimes, com exclusão, apenas, do representante do

que veio a exercer o veto. Mas, qual é, basicamente, a espécie de deusa suprema que

caracteriza a democracia, na forma em que ela se tem materializado até aqui? Não é a

famosa vontade da maioria, critério soberano e inatacável de quaisquer decisões?

Nem se pense que a contradição que estamos apontando existe apenas em

potencial. Ao contrário, ela tem se materializado com freqüência, inclusive em áreas

sensíveis do mundo, como o Oriente Médio, no momento em que estamos

escrevendo, em lamentável, perigosa e sangrenta conflagração. Ali, a criação do

Estado de Israel em território.palestino abriu uma ferida que se tem agravado

continuamente, de vez que aquele Estado, alegando necessidades relativas à sua

segurança nacional, aquela mesma que, entre nós, foi tão abrangente e

irresponsavelmente criticada e condenada – ocupou territórios como o da Cisjordânia,

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a faixa de Gaza e a região de Golan, como a do Sul do Líbano, esbarrando todas as

decisões da Assembléia Geral, contrárias àquelas ocupações, no veto sistemático, pelo

menos dos EUA, cujo governo, como é notório, no mínimo em sua política externa

relativa àquela região, tem se mostrado absoluta e totalmente dócil a todos os ditames

de Tel-Aviv.

Não é nosso propósito aqui, apreciar, no mérito, as razões ou sem razões dos

fatos apontados. O que desejamos é pôr de manifesto, a contradição entre o direito de

veto e o principio basilar, a própria alma da democracia como tem sido entendida,

sobretudo no Ocidente, contradição existente no órgão supremo que resultou da

vitória, na 2ª guerra mundial, dos que se diziam defensores e propugnadores do citado

regime. E buscamos fazê-lo por meio de exemplo tirado de acontecimentos de

inquestionável gravidade, para que se possa ter idéia da dimensão do exercício da

escandalosa distorção. Entretanto, nada obstante a gravidade da evidência que

estamos apontando, não é tanto ela, em si, ou outras que lhe sejam congêneres, o que

mais importa. O que mais importa são as razões profundas que tornam, possível a sua

prática e a abúlica apatia de suas vítimas, que permitem se implantem e possam

operar. Como explicar, por outro lado, que algo tão perfeito e irretocável se possa

mostrar tão contraditório, mesmo com relação aos seus mais característicos

fundamentos? Quais serão, de fato, as raízes de tão deplorável fenômeno?

Por enquanto, seja-nos permitido dizer que a sustentação acrítica, equivalente a

uma espécie de superstição, de alguma coisa que se evidencia muito longe de

qualquer idéia, já não diríamos de perfeição, mas de excelência, só é compreensível à

luz do fenômeno apontado por Novak, da prevalência de idéias sobre fatos, ainda

quando estes as contrariem e desmintam de modo frontal. Refere-se aquele autor,

seguramente, à formidável capacidade da mídia e das técnicas à sua disposição, para a

prática de uma espécie de sedução ou de anestesia intelectual coletiva, que conduz a

maioria à aceitação passiva de modismos e de idéias feitas, entre as quais as referentes

à supremacia absoluta das decisões majoritárias - as mesmas que são contrariadas em

Instituições como, entre outras, a ONU - com elisão de valores permanentes, aos quais

todos devam submeter-se.

A desconsideração de tais valores, é claro, equivale à adoção, como critério

supremo para todas as decisões, da areia movediça representada por maiorias

volúveis, cada dia mais influenciáveis pelos meios de comunicação de massa. É

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preciso entender, digamo-lo desde já, que a consulta à opinião das maiorias é

somente, e tão somente, um método ou processo de tomada de decisões, de fato, em

muitos casos, insubstituível. Supô-lo, porém, instância suprema para tudo, é um

dramático equívoco, em aberta contradição com os fundamentos. da cultura cristã em

que nos integramos e, de resto, com os de outras culturas de bases transcendentalistas

como a nossa. A sua prevalência em tais dimensões, só seria logicamente defensável

em sociedades confessadamente céticas, infensas à admissão da hipótese sobre a

transcendentalidade do que somos como realidades existenciais, e daquilo a que

estamos destinados.

Como vê o leitor, a alternativa democracia x ditaduras é uma simplificação que

não nos, honra a inteligência e, talvez, uma espécie de intimidação para que voltemos

à abulia que convém a tantos interesses estabelecidos e, por isto mesmo, empenhados

na manutenção do "status quo".

O ideal democrático, ao menos segundo o entendemos, consiste na organização

de superestruturas sociais e políticas que sirvam, o melhor possível, aos objetivos

legítimos e aos interesses justos daqueles que deverão viver sob a sua jurisdição.

Como realiza-las é algo que deve ajustar-se constantemente à variação da realidade a

que, naqueles termos, devem servir.

A discussão, como se vê, merece ser aprofundada, e é o que pretendemos fazer,

nas páginas que irão seguir-se.

CAPÍTULO IV

A QUESTÃO PRELIMINAR

Parece-nos bastante óbvio que, antes de saber-se como os homens devem

organizar-se, é necessário definir, com clareza, o que é que eles são. Somente a partir

daí será possível, razoavelmente, identificar a natureza das suas necessidades,

qualificá-las adequadamente e estabelecer uma ordem racional e moralmente

defensável de prioridades.

A partir de meados do século passado, surgiu no panorama cultural do.

Ocidente, o Materialismo Dialético de Marx-Engels, cuja feição dinâmica e

impulsionadora da ação serviu para que atendesse a um anseio de seu principal autor

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segundo o qual, "a Filosofia servira, até então, para descrever o mundo, cumprindo,

dali para diante, que fosse capaz de transformá-lo". Como se sabe, em 1848 era

divulgado o manifesto com que aqueles dois íntimos colaboradores pretendiam se

iniciasse uma revolução de âmbito mundial, destruidora das fronteiras e dos

sentimentos nacionais, que não passariam de alienações do homem, revolução que,

libertando-o também da de natureza religiosa, o integrasse, afinal, no que eles

consideravam a sua verdadeira realidade.*

Copiosa literatura foi produzida sobre o assunto, em todos os países do mundo

e, nós mesmos, a ele dedicamos principalmente duas obras: "Marxismo: Alvorada ou

Crepúsculo?", ed. Récord, e "Ocidente Traído", lª ed. Impres, S. Paulo. Tratava-se, no

que tange àquele materialismo, da primeira tentativa, ao longo de toda a História, de

organizar os homens e educá-los, compulsoriamente, com base na negação explícita

da sua transcendência, da existência de um Deus criador e, finalmente, de qualquer

coisa diferente ou além da matéria, que seria a única realidade. Como se vê, o

Comunismo moderno, corolário do Materialismo Histórico, por sua vez conseqüente

ao Materialismo Dialético, e os partidos que o tinham como ideário, era algo novo,

sem qualquer precedente, e que, do ponto de vista religioso, qualquer que fosse ele,

era inaceitável. Nem foi por outra razão que o Magistério da Igreja, em carta encíclica

de Pio XI, a "Divini Redemptoris", o qualificou como "intrinsecamente perverso".

Nada obstante, como sabemos todos, as democracias ocidentais, que já no final da

primeira metade deste século, levaram à morte muitos milhões de jovens do mundo

inteiro, com os objetivos proclamados de "salvar a civilização ocidental cristã,

defender a soberania da Polônia e a Democracia" realizaram-nos, infelizmente, assim:

a civilização do ocidente cristão, trazendo para o coração da Europa Ocidental e

cristã, as legiões de um Estado, o Estado soviético, pública e oficialmente sob regime

materialista e ateu, sendo que numerosas daquelas legiões eram originárias dos

recessos da Ásia; a soberania da Polônia, - que havia sido encorajada a resistir às

pressões nazistas, reivindicando a posse do chamado "corredor polonês", como

ninguém ignora, faixa da Prússia Oriental, e que a dividia em duas e fora adjudicada à

soberania de Varsóvia em conseqüência da derrota alemã na I Grande Guerra - com a

cessão do território polonês situado a leste da chamada "linha Curzon", para efeito de

anexação à União Soviética; e, finalmente, a Democracia foi defendida por intermédio

da realização dessas coisas, em criminoso conúbio com o Estado ditatorial,* Projeto hoje em curso sob nova estratégia como assinalado em nota anterior. (Nota do Autor)

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materialista e ateu, personificado em Joseph Stálin que, hoje, os próprios compatriotas

descrevem como o mais sanguinário déspota da História contemporânea. Mais tarde,

bem mais tarde, os auto-apregoados defensores "da Democracia e da civilização

cristã", deram acabamento jurídico às injustiças que resultaram daquele conúbio, por

intermédio do recente* tratado de Helsinque, pelo qual foi coonestada a anexação,

pela União Soviética, também dos territórios da Carélia, arrebatado violentamente da

pacífica Finlândia, como ninguém ignora, as repúblicas do Báltico, e os territórios da

Bessarábia e da Bucovina, conquistados da Romênia. Os acontecimentos dos dias

presentes estão se constituindo, pela evidência de que as populações daquelas áreas

não estiveram nunca de acordo com os atos contra elas praticados, não apenas por

Moscou mas, também, como vimos, pelos supostos defensores da justiça e da

eqüidade entre os povos, em um libelo contra eles.

Outros exemplos poderiam ser citados, e abundantes, inclusive dos dias que

correm, da diferença entre o discurso daqueles "paladinos", e os seus atos e práticas.

Não nos estenderemos, porém, em seu rol, contentando-nos com os exemplos, que

entendemos bastante significativos, e que acabam de ser citados. É que, ainda que os

mencionássemos todos, a soma deles não teria tanta importância quanto a análise das

causas que os tornaram possíveis, estas sim, segundo pensamos, da mais preocupante

significação. O que resta, no sentido cultural, do Ocidente cristão, precisa decidir-se:

continua a prosternar-se diante do Bezerro de Ouro, ou volta aos seus valores

originários, fundados na aceitação da transcendência e na convicção de que, ao

contrário do que supõem os materialistas, dialéticos ou não, a realidade do homem

não se esgota, como temos procurado repetir tantas vezes, na consideração da sua

realidade biológica a qual, tão fugaz, transcorre entre o nascimento e a morte. Que, ao

contrário, é algo que se projeta em termos de infinito e de eternidade, diante da qual,

quanto ao nosso destino, somos responsáveis desde agora.

Como se pode vislumbrar do que, tão resumidamente, foi dito até aqui, estamos

diante de problemática cuja complexidade já a faz difícil de ser percebida sem

reflexão. Tanto mais quanto a propaganda a que fizemos referência desde o início,

quase toda se volta para a manutenção dos erros que agasalham interesses, tantas

vezes espúrios e inconfessáveis, mas sempre por ela revestidos de um "make up"

brilhante, ainda que geralmente enganador.

* Texto escrito em 1991. (Nota do Autor)

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Em páginas que se vão seguir, procuraremos oferecer à inteligência dos que

venham a ler este trabalho alguns subsídios fundamentais para a compreensão do que,

realmente, jaz, tão cuidadosamente velado, no fundo da crise destes dias atormentados

em que o Ocidente, referto de bens materiais, vem se tornando moralmente indigente

e, do ponto de vista cultural, racionalmente ininteligível.

É o que começaremos a tentar já a partir do próximo capítulo.

CAPÍTULO V

O LONGO CAMINHO DE VOLTA AO BEZERRO DE OURO

Estamos perfeitamente conscientes de que um dos efeitos da prevalência da

propaganda a que temos feito . tão reiteradas referências - nem toda ela realizada com

clara consciência pelos seus autores, acerca do seu verdadeiro significado - consiste

numa espécie de disposição comodista a qual, a pretexto de pragmatismo geralmente

distorcido em sua significação, leva quase todos a absterem-se de reflexões

consideradas abstratas, ou teóricas. Ocorre, porém, que "o que os homens fazem,

depende do que eles pensam". E que, "a desordem que reina na sociedade, reinou

primeiro na mente e no coração daqueles que a compõem"!

Realmente, nenhuma realização do homem, existente no plano concreto, deixou

de existir, antes, em seu pensamento. Como, fora da visão holística, que visa abranger

os fatos do presente e os do passado que lhe deram origem, com identificação dos

nexos lógicos que os correlacionam e tornam compreensível o processo de que são

parte, fica muito difícil, senão impossível, apreender-lhes o significado e a dimensão,

teremos que pedir ao leitor que aquiesça em acompanhar-nos em resumidíssimo

retrospecto histórico-cultural, que, longe de mero diletantismo, esperamos venha a ser

de real utilidade - e nisso vai uma aspiração pragmática - para quantos desejem livrar-

se das "superstições" referidas já no começo deste trabalho. E isso nos recomenda a

utilidade de recuar até o século XIV, para focalizar uma dada colocação filosófica

que, em si mesma, de importância modesta, passou a influenciar, grandemente, o

pensamento ocidental, na criação de um novo "zeit-geist", um novo espírito de época,

muito à feição de interesses que já se haviam constituído e procuravam manifestar-se,

praticamente desde os primórdios da influência do cristianismo sobre o Ocidente. E a

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compreensão da índole e da gênese de tais interesses, na Europa, nos recomenda um

recuo ainda maior no tempo. Que os leitores nos relevem e se armem de paciência

para acompanhar-nos nesta marcha, que buscaremos tornar brevíssima, mas sem a

qual, parece-nos, torna-se impossível entender o que, de confuso, contraditório e

praticamente ininteligível, está presente e debilita a cultura a que todos pertencemos.

É necessário realçar que, efetivamente, como matéria de fato, não meramente

opinativa, aquela e a civilização a que pertencemos têm os seus fundamentos

assentados essencialmente na mensagem do cristianismo. Naturalmente, não é

possível ignorar a contribuição dada a esse contexto pelas tradições judaicas, nem

outras contribuições menores como, por exemplo, as representadas pela presença

árabe no Ocidente, além de influências da África negra e de culturas autóctones de

maior ou menor relevância. Essencialmente, porém, repitamo-lo, somos parte de

cultura e civilização de origem cristã.

Ora, para a visão do cristianismo existem, claramente estabelecidos, valores

permanentes, cuja realidade e pertinência não dependem de decisões humanas, eis que

assentam na Revelação. Segundo a mesma visão, o homem é um ser criado por Deus

à sua imagem e semelhança, porém decaído da graça em razão do que, em linguagem

religiosa, se denomina pecado original. Decaído, assim, da sua condição original, o

destino desejável do homem é a sua reintegração no seio do Criador e o desfrute da

Sua contemplação, em eterna bem-aventurança, destino tornado acessível pela

Redenção, com a qual foi reafirmada a Lei, e esclarecido o seu significado. Tudo isso,

é claro, do ponto de vista do cristianismo. Tal ponto de vista, entretanto, tem sido tão

desconsiderado, para não dizer, deliberadamente ocultado, que já é difícil mencioná-

lo, para que não soe falso ou "pouco objetivo". Em que, porém, consistiu o

Nominalismo há pouco referido, e qual a importância que veio a adquirir, não

diretamente, mas por via de conseqüência?

A resposta à questão acima, remete-nos a uma discussão epistemológica, que

em suas minúcias, ultrapassaria os limites deste trabalho e seria de difícil

entendimento para o leitor não especializado a que ele, essencialmente, se destina.

Cabe, entretanto, esclarecer que, essencialmente, ele se propôs negar a existência

objetiva dos universais, dos conceitos que, assim, não teriam existência concreta, fora

do domínio mental. Existiriam, portanto, objetivamente, e realmente, apenas os

objetos da nossa percepção sensorial; os conceitos não passariam, para citar as

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expressões de Ruscelino, de "flatus voces", sons vazios. William Ockham,

praticamente o iniciador do Nominalismo a que nos estamos referindo, por alguns não

é tido senão como um "nominalista moderado". De qualquer maneira, foi a sua obra

que, principalmente, suscitou a célebre "querela dos universais", colocando em

cheque, sobretudo, os excessos da escolástica. Na verdade, entretanto, servindo ele

aos interesses dos que pretendiam contestar a validade do pensamento contemplativo,

contribuía para desligar o homem da sua realidade interior e das suas ligações com um

Criador, situado fora da natureza e do alcance da sua percepção sensorial. Ao mesmo

tempo, é claro, impulsionava-o para a extroversão e para o estudo prioritário dos

fenômenos naturais.

Poderíamos dizer que o indutivismo de Francis Bacon, alguns séculos mais

tarde, de tamanha influência sobre a Enciclopédia, especialmente em razão dos bons

ofícios de Condillac e de Diderot, estava marcado claramente pelo Nominalismo a

que nos estamos referindo. Foi, assim, o referido Nominalismo, componente essencial

do extraordinário impulso à pesquisa dos fenômenos naturais, cujos frutos numerosos,

fecundos e surgentes rapidamente, deram origem a uma contrapartida negativa,

representada por uma espécie de "cientificismo" exaltador das capacidades da razão

humana, exaltação característica do Racionalismo, o mesmo que levou Immanuel

Kant a declarar, pouco adiante, que a humanidade alcançara a sua maioridade, já não

necessitando mais de nada que não fosse elaborado pela sua própria razão. Como se

vê, as correntes influentes de pensamento tendiam para uma disposição. cada vez

menos marcada pela religiosidade e pelos valores permanentes por ela, no caso da

nossa cultura, principalmente trazidos pelo cristianismo. Foi em tal clima cultural, em

meio a semelhantes tendências dominantes, que prosperaram e produziram

conseqüências sociais e políticas, os pensamentos de John Locke e de Jean-Jacques

Rousseau. O primeiro, como é notório, inspirador fundamental da Revolução

Americana de 1776, e o segundo, da Revolução Francesa de 1789. E quem

desconhecerá que a democracia, tal como vem sendo praticada e, de algum tempo a

esta parte, praticamente imposta ao mundo, especialmente ocidental, brotou daqueles

pensamentos e alimentou-se do clima a que fizemos alusão? Clima que tem sido,

continuamente, mais e mais difundido e adensado, com os resultados de paganização

crescente que, hoje, já o mais distraído dos observadores pode notar com clareza?

Paganização que tem produzido, invariavelmente, e por toda a parte, os frutos da

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degradação dos costumes, da corrupção cada vez mais extensa, dos vícios que

grassam, cada vez mais difundidos, da violência pessoal e institucional, sempre mais e

mais bestial e vergonhosa. Entretanto, como as idéias, segundo Novak, conseguem

prevalecer sobre os fatos, mesmo quando estes as desmentem frontalmente, consegue

não apenas manter-se como imperar, uma ordem de coisas, denominada democracia, a

despeito dos frutos assinalados que acima apontamos, e que tendem a agravar-se, na

medida em que continuem prevalecendo alguns de seus aspectos fundamentais, como:

a desconsideração de valores permanentes ou eternos, trazidos aos homens pela

Revelação, substituídos por um mero método para a tomada de decisões como,

indiscutivelmente, é a consulta à vontade ou à opinião da maioria. Tal opinião, ou

vontade, como já foi antes assinalado, é algo influenciável e volúvel não podendo,

pois, substituir valores permanentes e eternos, situados fora e acima daquela

volubilidade. O esquecimento de realidade tão evidente é que tem conduzido as

sociedades modernas a incorrerem no que se condena, por exemplo, no cap. V, vers.

16-23, da epístola de S. Paulo aos Gálatas, no qual se lê: "Digo-vos pois: Andai

segundo o Espírito e não os apetites da carne. Porque os desejos da carne são opostos

aos do Espírito, e estes aos da carne, pois são contrários uns aos outros. É por isso que

não fazeis o que quereries.

"Se, porém, vos deixais guiar pelo Espírito, não estais sob a Lei.* Ora, as obras

da carne são estas: Prostituição, impureza, desonestidade, idolatria, malefícios,

inimizades, contendas, ciúmes, iras, rixas, discórdias, partidos, invejas, homicídios,

embriaguez, orgias e outras coisas semelhantes, contra as quais eu previno como já

antes preveni: Os que as praticarem não herdarão o reino de Deus. Mas o fruto do

Espírito é: Caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade,

mansidão, temperança. Contra estas coisas, não existe lei."

Considere o leitor, porém, que, segundo a visão adotada pelo cristianismo, fonte

originária da nossa cultura - seja-nos permitido repetir mais uma vez - o homem é

uma dualidade consubstancial de corpo e alma, na qual coexistem, sempre e

necessariamente, em conseqüência do pecado original cometido pelos nossos

primeiros pais, tendências boas e más, as marcadas pela natureza espiritual e pela

natureza carnal, segundo a lição dada aos Gálatas, primeiramente e, após, a todos os

cristãos, pelo Apóstolo Paulo. Em acordo com essa lição, o caminho a seguir, pelo

homem, visando a uma vida futura de duração eterna, é um caminho difícil, eis que

* Na interpretação do mosaismo. (Nota do Autor)

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deve passar, não pela supressão dos impulsos carnais, mas pela sua disciplina

sublimadora, de modo a que cada vez mais e melhor se realizem as tendências do

espírito e dos frutos que elas podem produzir, descritos na última parte da transcrição

feita de trecho da epístola citada. Trava-se, nessa visão, no íntimo de cada ser

humano, um combate permanente entre o Bem aspirado pelo Espírito, e o Mal,

resultante da entrega exacerbada aos reclamos carnais. E estes últimos, é necessário

realçar, são mais próximos, em nossa fase de existência corpórea, clamando, por isto

mesmo, as suas vozes, muito alto e cada vez mais exigentemente, de vez que é, no

homem, indefinida a capacidade de crescimento de certos apetites, sendo limitada,

porém, a sua capacidade de atendê-los a todos plenamente. É justo que o homem se

alimente com satisfação, não lhe convindo, porém, a gula. Como é justo que satisfaça

o seu impulso genésico, mas não que se entregue à lascívia, como uma espécie de

objetivo de vida, pois seria este mutilador da sua realidade dual, por corresponder,

apenas, às exigências de seu componente carnal. O leitor percebe, é claro, a

instrumentalidade da noção de pecado e dos prejuízos decorrentes de sua prática.

Como percebe que, na medida em que tais conceitos e valores vão sendo

desacreditados em nome, por exemplo, do exercício de uma liberdade mal

conceituada, vão se instalando os frutos descritos como da carne na epístola, que neste

momento, serve de suporte às nossas considerações. Assim, as atividades humanas

voltadas, essencialmente, para o atendimento injusto das exigências ou dos reclamos

carnais, as atividades inspiradas pela concupiscência, sempre encontraram entraves na

ética decorrente da aceitação dos princípios do cristianismo em .nosso contexto

cultural. E, em tal contradição, entendemos, está a raiz mais profunda de grande parte

dos males que compõem a crise civilizacional que estamos vivendo, crise registrada e

mencionada por, praticamente, todos os autores que se têm ocupado com assuntos

dessa natureza; desde Berdiaeff e Splenger, até vultos mais recentes como, entre

outros, o de Arnold Toynbee, passando por mais de um Papa e mais de um documento

de origem pontificial.

E é aqui que nos permitiremos iniciar novo recuo histórico, ainda mais

profundo, para destacar detalhe importante do mundo pagão, ao tempo do domínio

romano. Àquele tempo, à retaguarda dos exércitos que marchavam para os confrontos

resultantes das políticas dos poderes a que obedeciam, era sempre identificada a

presença de algumas pessoas que não tinham interesse pela justiça, ou injustiça, das

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causas defendidas pelas forças em litígio, desejando, apenas, comerciar com elas, na

busca de lucros e proveitos materiais. Os evangelizadores cristãos, porém

originariamente provenientes do Oriente Médio, realizavam a sua obra, que progredia,

do Sul para o Norte da Europa. Ao mesmo tempo, desciam em sentido contrário,

tribos germânicas, constituídas por guerreiros notoriamente belicosos e que

buscavam, não uma nova ordem de idéias, mas a ocupação de espaços, com suas

riquezas, tornados disponíveis quando ocorreu a queda do império que até há pouco,

dominara a Europa. Ocorre, ainda, que com aquela queda, a ordem reinante nas

estradas construídas pela diligente administração romana desapareceu, em

conseqüência da retração do gládio das legiões, que até ali a mantivera. Com isso, as

referidas estradas passaram a ser extremamente inseguras, especialmente para os

possuidores de bens e de riquezas cobiçáveis. Entre eles, obviamente, os que,

anteriormente enriqueciam às expensas do comércio lucrativo com as. forças em

campanha. Entretanto, os evangelizadores a que já nos referimos, ao desempenharem

a sua tarefa junto aos guerreiros germânicos, também já mencionados, longe de

tentarem eliminar-lhes a belicosidade, buscaram sabiamente colocá-la a serviço da

nova ética que lhes era transmitida durante a catequese. E foi assim que,

essencialmente, surgiram os primeiros cavaleiros feudais, em torno de cujas

residências passou a reinar a segurança que havia desaparecido das estradas. É que os

evangelizados, herdeiros de tradição guerreira, punham agora, impregnados dos ideais

da fé cristã que haviam abraçado, as suas espadas e as suas lanças, ao serviço da

virtude e da justiça, na conformidade da nova visão da vida à que haviam aderido as

suas consciências. Dentre eles surgiram os personagens que povoaram, como

cavaleiros andantes, as lendas mais douradas da nossa infância e da nossa juventude.

Ocorre, porém, que tais cavaleiros, ao mesmo tempo em que buscavam reprimir as

violências e injustiças dos malfeitores, também buscavam impedir as transações

baseadas no desejo puro e simples, de levar vantagem em relação ao próximo. É que,

entendiam em sua visão da vida, o único móvel da atividade econômica, digno do

dever de um cristão, haveria de ser o suprimento. de suas necessidades e das carências

do seu próximo. Com isto, é claro, teve origem, já então, uma oposição de interesses

entre os que, antes, haviam andado atrás dos exércitos, na busca exclusiva de lucros,

os seus descendentes e os imitadores de suas atividades, mais lucrativas e menos

sacrificantes do que o amanho da terra e o apascentar dos rebanhos, e os cavaleiros

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cristãos e seus inspiradores espirituais. O leitor, é claro, compreende que estamos

tentando oferecer-lhe um bosquejo, extremamente resumido, de fatos e circunstâncias

cujo tratamento mais circunstanciado exigiria, entre outras coisas, muito mais espaço

do que o que é compatível com o determinado para o presente trabalho. Entretanto,

parece-nos, aponta esse bosquejo para a raiz da oposição que, desde aquela época, e à

feição de suas características, se estabeleceu entre aspectos da atitude cristã diante da

atividade econômica e a dos que, na mesma atividade, objetivam, prioritariamente, a

auferição de lucros e vantagens materiais. O problema está colocado, neste momento,

em simplificação esquemática, mas põe, supomos, de fato em evidência, uma

antinomia que tem atravessado os séculos e cuja raiz, embora muitas vezes oculta ou

não aparente, consiste na maior ou menor ênfase a ser dada quanto aos objetivos da

vida e à felicidade passível de ser nela conquistada: ou devem eles levar em conta a

aceitação da vida eterna e da nossa responsabilidade nela tal como na cultura a que

pertencemos, é descrito este problema, ou centralizar as energias na satisfação das

necessidades do corpo e no aqui e agora da transitoriedade das nossas existências

biológicas que, como costumamos dizer, fugacíssimas transcorrem entre o nascimento

e a morte. A aceitação daquela responsabilidade, o leitor bem o entende, traz

conseqüências que haverão de projetar-se, praticamente, no dimensionamento que

deveremos dar às nossas vidas individuais e ao relacionamento com os nossos

semelhantes. Para dar um exemplo da importância da opção a que nos estamos

referindo, basta pensar, no processo produtivo, na sua orientação e nos tipos de

relações de produção a serem adotadas. É indispensável, neste caso, considerar o

trabalho, ou apenas em sua dimensão objetiva, representada pelos frutos materiais que

ele produz, ou também, e talvez prioritariamente, na dimensão subjetiva que pode ser

inferida já da leitura do livro do Gênese, quando o Criador de todas as coisas

determinou às suas criaturas: "Crescei, multiplicai-vos, e dominai toda a terra". Este

domínio, é claro, é feito por intermédio do trabalho, que é, assim, obrigação esculpida

na natureza do homem, para que se cumpra a vontade do Criador. Daí, obviamente, no

que tange sobretudo às relações de produção, existir uma diferença essencial entre a

visão dos que aceitam a ética cristã e a dos que a contestam ou, de maneira emoliente

no sentido do debate de idéias, simplesmente ignoram-na, quanto possível, na prática.

A compreensão, porém, de aspectos, para nós fundamentais, da realidade dos

dias que correm, recomenda-nos, em compromisso com a visão holística que nos

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propusemos adotar, volver ao fio da exposição que vínhamos seguindo, e na qual fora

assinalada a oposição existente, em matéria de atividades econômicas, entre os

cavaleiros cristãos e seus mentores espirituais, e aqueles que, naquelas atividades,

colocavam em primeiro plano, senão exclusivamente, o propósito de auferir vantagens

materiais. Claro que a estes últimos interessou, sempre, promover tudo quanto

surgisse capaz de criar dificuldades, de enfraquecer a fé, fonte animadora do novo

poder que se ia constituindo à medida em que avançava a evangelização. E tal

trabalho, tenaz, persistente - e tal persistência é compreensível na medida em que

persistia a oposição de interesses a que já nos referimos - foi produzindo os seus

frutos. Por exemplo, foi assim que surgiu, como tão bem o assinalou Mac Fadden, o

que ele designou como "liberalismo intelectual". Em que consistiria ele? Na

reivindicação, aparentemente até louvável, do livre exame dos textos do paganismo,

muitos dos quais vedados, pelo "index" da Igreja, única mantenedora dos centros de

estudos universitários da época, que não desejava se multiplicassem tendências

heréticas, por acaso resultantes da leitura de alguns daqueles textos. De fato o

cristianismo, àquele tempo, era ainda chama bruxuleante, ameaçada pelo sopro de

desvios doutrinários e heresias que, como todos sabem, não faltaram em seus

primeiros dias. A esse "liberalismo intelectual" seguiu-se, ainda segundo Mac Fadden,

o que ele designou como "liberalismo moral", consistente no descumprimento das

normas rígidas de conduta, característicos dos primeiros tempos de fervor religioso,

exatamente aquele fervor que os interesses a que nos estamos referindo, desejavam

atenuar, pela via da não sujeição às suas normas, de cristãos que, assim, a pouco e

pouco, se iriam "libertando". De fato, a instigação do propósito de não levar tão em

conta as recomendações e exigências da Igreja, acabou por desaguar na

insubordinação à autoridade de Roma, representada pela Reforma, pelo cisma do

cristianismo que ela representou, e cujas razões ou sem razões seria impertinente

discutir aqui, de vez que o que estamos propondo à consideração pela inteligência dos

leitores é apenas uma via, um caminho traçado pela antinomia entre a ética cristã em

matéria econômica, e os interesses por ela prejudicados. Tal antinomia, é claro, não é

suficiente para explicar todo o quadro; mas é, supomos, bastante para evidenciar o seu

principal motor, em consistência, em pujança e em continuidade de ação. Mas o que

poderíamos denominar de "espírito liberal" não parou aí. Como seria previsível,

transitou para o domínio político, tendo encontrado, ai, seus principais arautos, na

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Inglaterra, nos vultos, já citados, de John Locke e Hobbes e, na França, em Jean-

Jacques Rousseau e em muitos Enciclopedistas. É que, ao se contestar a autoridade de

Roma, a estabilidade de todos os tronos dos reinos cristãos, obviamente sofreu abalo

profundo, de vez que a autoridade dos reis era como que chancelada pela autoridade

papal. Como se vê, iniciativa aparentemente apenas de ordem intelectual, foi gerando

a progressão de um espírito de rebeldia em relação à autoridade espiritual suprema

daquele tempo, rebelião, é claro, que acicatada pelos reclamos dos impulsos

instintivos, fazia apelo crescente ao orgulho dos homens, colocando-lhes diante dos

olhos um reclamo por liberdade a qual, entretanto, não se definia quanto aos

contornos e limites do seu exercício justo - o que acabou por se corporificar

politicamente, na Revolução Americana de 1776 e na Revolução Francesa de 1789,

igualmente já mencionadas. Com elas, subia ao cenário político uma nova ordem que,

desconsiderando o referencial fixo, de conteúdo axiológico, representado pela

Revelação, mas reconhecendo a impossibilidade de organizar a sociedade na ausência

de quaisquer valores, estabeleceu a afirmação - ímpia do ponto de vista religioso -

segundo a qual "todo poder vem do povo"*. A proclamação em causa, em sua

essência, tem sido consagrada em todos os nossos textos constitucionais, inclusive no

que está atualmente em vigor. E, para operacionalizar essa disposição, instituiu-se a

adoção do critério da maioria, que não é outra coisa, repitamos, senão um método, por

vezes insubstituível, para a tomada de decisões. Mas, as maiorias são volúveis, como

já vimos, e suscetíveis de influências condicionadoras de suas preferências e opiniões.

Erigi-las, assim, em critério último e definitivo de sentido avaliador, ao desamparo de

um referencial axiológico fixo, é, de fato, tentar construir o edifício social sobre areia

movediça, suscetível, inclusive, de sofrer influências deletérias, desagregadoras e

corruptoras. Na ausência daquele referencial, é meridianamente claro que quanto

favoreça aos sentidos e à concupiscência em seu sentido mais amplo, poderá ser

manipulado, sobretudo em nome da liberdade - sempre anunciada sem contornos

precisos quanto aos limites do seu exercício - com relação ao qual o que se usa dizer,

com deplorável superficialidade, é que "o direito de cada um termina onde começa o

de outro". Ora, a mais ligeira reflexão mostrará que à pergunta sobre onde começa o

do outro, a única resposta consiste em dizer que é onde termina o do um...

Convenhamos que não se faz necessária demasiada exigência critica para verificar

que estamos diante de lamentável, para não dizer imperdoável, inconsistência.* Do ponto de vista cristão, dever-se-ia dizer: Todo poder vem de Deus e, para fins adequados, será exercido pelopovo ou por seus representantes, na conformidade de Sua Lei. (Nota do Autor)

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De quanto foi dito até aqui, não é difícil ao leitor compreender que, na mesma

direção do enfraquecimento das exigências religiosas - em muitos casos contrárias à

transformação da atividade econômica em uma espécie de desalmado vale-tudo -

exigências voltadas, obviamente, em grande parte, para o aperfeiçoamento do espírito,

impunha-se a exaltação da "necessidade" de transformar os reclamos carnais em

“direitos", a serem proclamados e reivindicados em nome da liberdade. Mas daquela

liberdade que não se define quanto a objetivos nem quanto a limites, transformada,

portanto, em uma espécie de carta sem endereço. Ora, pelas razões já vistas, e por

tantas outras que poderiam ser acrescentadas, a liberdade dentro de uma perspectiva

cultural cristã deve ter sentido finalista, de sorte a dar conteúdo e clara inteligibilidade

a tão sublime aspiração do espírito, eis que no que diz respeito, estrita e tão somente,

ao corpo, o que de fato existe são apetites que reclamam satisfação. Tal satisfação,

assim, longe de libertadora, é restritiva e limitadora, mais aprisionando o homem,

estiolado por tal via em sua criatividade sem paralelo no mundo natural, à estrita e,

em tal sentido, aprisionante dimensão corpórea, sem projetos e sem amplitude.

Acreditamos, pois, que a esta altura, já se torna fácil compreender que o agnosticismo

o qual, na prática, impregnou, tanto a Revolução Francesa quanto a Americana, ambas

implementadoras de Estados laicos, e não apenas no sentido da separação, em nosso

entendimento salutar para ambas as Instituições, entre a Igreja e o Estado, levou ao

desprezo crescente pela disciplina decorrente de valores eternos fundados na

Revelação. Tal afirmativa é plenamente compreensível de vez que tratava-se,

exatamente, e assim tem sido feito ao longo do tempo, de esvaziar a influência da

Revelação cristã, sobretudo pelos seus efeitos lesivos aos interesses dos que

pretendiam, e pretendem, praticar a atividade econômica sem peias e sem

condicionantes superiores aos interesses materiais. Tais interesses, é claro,

correspondem mais à concupiscência em suas múltiplas formas, do que à obediência a

preceitos que levam à salvação na vida eterna, mais próprios dos reclamos do espírito.

Quando tenham aqueles interesses feito concessões à justiça, quase sempre o fizeram

sob pressão, no contexto da luta de classes. O século dezoito, portanto, berço de

ambas as Revoluções citadas, no campo cultural passou a apresentar, agudamente, o

fenômeno que temos denominado de interferência, por analogia ao que ocorre com

um receptor de rádio cujo seletor de freqüências esteja com defeito. Tal receptor

começa a amplificar não mais sons inteligíveis, mas silvos, estrondos, guinchos, em

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desagradável algaravia. Do ponto de vista cultural, sobretudo o Ocidente, tem vivido,

ou sofrido, essa algaravia, desde quando, à altura do século dezoito foi-lhe superposta

a visão agnóstica e a disposição nominalista que, em última análise, lhe deu origem.

No século seguinte, não como uma ruptura, mas como um desdobramento

logicamente inteligível do longo processo iniciado muitos e muitos séculos antes,

fazia-se presente no cenário da História, o Materialismo Dialético, com os seus

corolários de Materialismo Histórico e de Comunismo, de certo modo conseqüentes à

oposição, já citada, entre a ética cristã e os que achavam conveniente esvaziá-la. O

leitor deve observar como, partindo da luta contra o vigor da influência religiosa e dos

valores permanentes que ela recomenda, chegamos, como fenômeno sem nenhum

precedente conhecido, à tentativa de organizar a sociedade dos homens, excluindo a

hipótese da transcendência e da existência de um Deus criador e providencial. Como

parte do percurso, o liberalismo agnóstico, com o seu laicismo, do ponto de vista da

cultura cristã, contraditório, a sua exaltação de um conceito impreciso de liberdade o

qual, pela inexistência de contornos e limites nítidos, enseja a transformação dos

reclamos instintivos em direitos, e suas práticas como necessariamente toleráveis e

freqüentemente objetos de promoção e exaltação. E tudo isso, é fácil entender,

significa uma marcha no rumo da paganização, em cujo bojo se realizam as

circunstâncias e realidades apontadas na epístola de São Paulo aos Gálatas,

anteriormente citada, como obras da carne, com a sua coorte de desarmonia, confusão,

corrupção, egoísmo, luta e sofrimento. Tudo característico do caos que brota e é

alimentado pelo "Pai da mentira desde o início", aquele mesmo que, ao rebelar-se,

bradou "Non Serviam", não servirei, a disposição básica, o traço, nem sempre

ostensivo, mas sempre presente, de todas as tendências que convergem para a

submissão aos impulsos instintivos, cada vez mais sem peias, exaltada em nome

daquela liberdade a que nos temos referido e a que se referiu Leão XIII em sua

encíclica "Libertas". Nós nos atrevemos, neste ponto, a recomendar, com ênfase, aos

leitores deste, pequeno trabalho, que não deixem, se puderem, de ler a referida

encíclica, contemporânea da famosa "Rerum Novarum". Esta, por referir-se à questão

operária, foi muito divulgada e tornou-se universalmente conhecida. "Libertas", por

colocar o dedo sobre a essência de um liberalismo político que, no plano filosófico,

corresponde ao naturalismo agnóstico, não foi promovida pelos interesses que

estamos apontando neste trabalho, pelos motivos óbvios que os leitores podem

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perceber. As considerações até aqui propostas à análise pela inteligência do leitor,

supomos, ainda que extremamente sumárias, são suficientes para, em termos de

coerência com os fundamentos da cultura cristã a que pertencemos, revelar a clara

inadequação de aspectos fundamentais da democracia, tal como vem sendo concebida

e tenta impor-se a todas as sociedades do mundo; e para mostrar o quanto é superficial

e ingênua a suposição de que o dilema profundo presente à crise do mundo em que

estamos vivendo, em termos de ordenação social, consiste na oposição democracia x

ditaduras.

CAPÍTULO VI

O FALSO DILEMA

No final do capítulo anterior fizemos duas afirmações que cumpre, agora,

justificar. A primeira, referente à desarmonia existente entre uma ordem política e

social que, na prática, para a formulação dos seus instrumentos operacionais, política

e socialmente falando, desconsiderou a necessidade da observância de valores

permanentes que, vindos da Revelação, transcendem critérios meramente humanos

acerca da sua validade. Tais valores, como vimos, foram sendo erodidos por trabalho

pertinaz e multissecular, levado a cabo pelos interesses contrariados em tal ou qual

medida, pela ética deles decorrente, interesses cuja luta ao longo do tempo foi fazendo

prosélitos. Alguns, talvez a maioria, enganados por aspectos superficiais de uma

propaganda de efeitos verdadeiramente mágicos feita, sempre, ou quase sempre, com

ostentação de rótulos enganosos, mas atraentes. Um deles, talvez o principal, a

reivindicação por liberdade, como vimos anteriormente, colocada com imprecisão de

contornos e de limites referentes ao seu exercício, o que vem transformando, e todos,

a esta altura, podemos vê-lo como meridiana clareza, em licenciosidade, fora de

qualquer dúvida, muito mais própria de sociedades pagãs do que de uma sociedade

propriamente cristã. Entenda-se, desde logo, que não é nosso propósito tentar impor a

aceitação do cristianismo como postura religiosa e cultural necessariamente

observável por todos. O que queremos significar, e isto parece-nos fora de dúvida é

que sendo á cultura a que pertencemos fundada, essencialmente, na mensagem do

cristianismo, a erosão de seus valores fundamentais, a pouco e pouco substituídos

pelo ceticismo e por uma postura de caráter predominantemente naturalista e

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agnóstico, constitui-se - e a realidade concreta o vem mostrando de maneira

claríssima - em um caminho de retorno ao paganismo e à corrupção que, do ponto de

vista cristão, o caracterizou. Em termos religiosos e dentro da ótica cristã, em um

retorno ao clima descrito por S. Paulo, em sua epístola aos Gálatas, que voltamos a

lembrar, correspondente à submissão aos reclamos da carne, cujos frutos são os

descritos pelo apóstolo e evidenciados pela observação das circunstâncias e dos

sintomas presente no mundo que nos cerca. Quem, observando este mundo, deixará

de concordar que, nele, de modo crescente, estão presentes "as obras da carne", nas

expressões do evangelista dos gentios: prostituição, impureza, desonestidade,

idolatria, malefícios, inimizades, contendas, ciúmes, iras, rixas, discórdias, partidos,

invejas, homicídios, embriaguez, orgias e outras coisas semelhantes?

Estamos conscientes de que nenhum homem conseguirá livrar-se totalmente de

suas más tendências e viver apenas para as obras do espírito, que ainda segundo o

mesmo evangelista, são: caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade,

fidelidade, mansidão, temperança. Mas, se o clima cultural em que vivemos passa a

prestigiar, na prática, preferencialmente, as "obras da carne", fazendo-o, embora, em

nome da liberdade, aquela mesma que se recusa a definir com precisão de contornos e

de limites quanto ao seu exercício, alguém de bom senso haverá de supor que os

resultados possam vir a ser outros senão os do aumento do egoísmo mais brutal, com

todas as suas conseqüências, em todos os níveis e circunstâncias da vida, o

crescimento, entre tantos outros efeitos, da prática da injustiça e do exercício da

violência mais vergonhosa? Ainda agora, o mundo, estarrecido, assiste a uma

selvageria sem nome, praticada na disputa de um bem material - eis que ninguém é

tão ingênuo ao ponto de supor que o móvel da questão gira em torno da observância,

ou não, de normas jurídicas pertinentes ao convívio internacional. Será isto cristão ou,

claramente, algo mais próprio do paganismo mais perverso? O dilema profundo,

portanto, que está na raiz da crise dramática em que há muito tempo vimos

mergulhando - tenhamos a coragem de dizê-lo - não reside na oposição entre

democracia e ditaduras, mas entre cristianismo e paganização. E, ainda uma vez,

tenhamos a coragem de dizer que a chamada democracia, tal como vem sendo

concebida e, praticamente, imposta a todos, é concepção gestada no âmbito do clima

de interferência cultural a que já tivemos a oportunidade de referir-nos, sob a égide de

tendências cada vez mais claramente laicas, céticas, agnósticas ou, como foi tentado a

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partir do século passado, franca e cruamente materialista. Materialismo, de resto,

como o dissemos anteriormente, que não representou ruptura no processo cultural do

Ocidente, mas um seu desdobramento lógico, ainda que não necessário ou inevitável,

do qual o passo imediatamente antecedente foi dado pelas formas políticas resultantes,

essencialmente, dos pensamentos de John Locke e de Jean-Jacques Rousseau. O

dilema profundo, assim, é paganização x cristianismo e, nele, a democracia, tal como

entendida e em fase de tentativa de imposição a todos, é mais aliada do primeiro do

que do segundo termo do referido dilema. Deveremos, por uso, repudiar a democracia

e supor que a alternativa válida para ela são as ditaduras? De maneira alguma.

Tenhamos, porém, a bravura de dizer que se torna imprescindível - se é que

desejamos salvar o que resta de cristianismo no mundo dos nossos dias - proclamar

que o ideal de governos que sejam representativos dos interesses justos e das

aspirações legítimas daqueles que eles irão jurisdicionar é eterno, por ser o único

compatível com a racionalidade com que o Criador dotou os seres humanos e com a

Justiça que deve presidir a vida e o convívio. entre eles. Por isso afirmou o

aquinatense: "Não é o reino que pertence ao rei; é o rei que pertence ao reino".

Quando falamos, porém, de interesses justos e de aspirações legítimas, estamos

evidenciando a necessidade da existência de referencial axiológico permanente que,

em nossa cultura, será o que decorre da Revelação. A substituição desse referencial

pelas decisões de maiorias eventuais, influenciáveis e volúveis, é um equívoco cujos

frutos estão aí, patentes diante dos olhos de todos. Pedimos ao leitor,

encarecidamente, que reflita, no âmago de sua consciência, sobre as ponderações que

estamos oferecendo à análise pela sua inteligência. São problemas muito profundos,

cuja apreensão é ainda mais dificultada pelo fascínio verdadeiramente mágico de

idéias repetidas milhões e milhões de vezes, a ponto de se transformarem em algo que

se passa a aceitar sem análise, nada obstante os resultados concretos que produzem e

que nos cercam e nos angustiam indiscutivelmente, as desmintam frontalmente. É o

fenômeno que mencionamos no inicio deste pequeno trabalho, apontado por Michael

Novak como um dos mais preocupantes do mundo moderno. Quanto às ditaduras e à

justa interpretação das suas motivações mais freqüentes, seja-nos permitido

acrescentar, novamente com coragem, verdades que nos parecem bastante evidentes,

o que buscaremos fazer no capítulo que irá seguir-se.

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CAPÍTULO VII

O QUE SÃO AS DITADURAS.

O DILEMA VERDADEIRO

O estabelecimento de uma ditadura no mundo moderno, obviamente pode ter

mais de uma causa. O certo, porém é que será muito ingênuo supor que a assunção do

poder por qualquer delas se torne viável na ausência de circunstâncias que sirvam de

motivo, ou de pretexto.

Por outro lado, é um dado que não pode deixar de ser levado em consideração,

o consistente no fato de que, na maioria absoluta das vezes, os regimes ditatoriais

resultam de iniciativas militares, sobretudo no Terceiro Mundo, a que pertencemos.

Ora, as alegações quanto às suas causas, consistentes em atribuí-las, tão somente, às

ambições pessoais de seus líderes, é uma superficialidade que não pode, sequer,

merecer a consideração de um exame mais demorado. Claro que a ambição dos

homens que aspiram ao poder é componente do fenômeno relativo à sua conquista,

mas não explica o fenômeno todo nem é exclusividade dele. É indispensável, pois,

que se levem em conta as características do contexto social que ensejou a subida ao

poder de um regime ditatorial. No caso brasileiro - é necessário ter-se a coragem de

dizê-lo, desde que se implantou a República, o processo político resultante

transformou-se em uma sucessão de sobressaltos, a que não faltaram rebeliões

militares e governos civis de exercício autoritário, como, notoriamente, foi o do

presidente Arthur Bernardes. Figura marcante dos bastidores do Movimento de Março

de 64, por exemplo, em matéria amplamente divulgada pela imprensa, assinalou

aqueles sobressaltos, designando-os como "sístoles" e "diástoles", por analogia com a

contração e a expansão do músculo cardíaco, no desempenho de suas funções. A

imagem, a nosso ver muito feliz, sê-lo-ia ainda mais, se aquele personagem tivesse

invertido a ordem dos termos usados, e falado de "diástoles" e "sístoles". À primeira

vista, a muitos haverá de parecer irrelevante a observação. Em nosso entendimento,

porém, é ela de capital importância para a compreensão da atribulada trajetória da

nossa vida republicana. É que a Constituição de 91, amplamente liberal, representou o

que, no funcionamento do coração, representa a dilatação daquele músculo, a cuja

dilatação sucede um aperto, ou "sístole". As idéias republicanas, como é sabido,

chegaram-nos impregnadas da embriagues resultante do clima intelectual da

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Enciclopédia, com o seu componente libertário, e apoiadas pela Maçonaria e pelo

Positivismo. Os que implantaram a República, fizeram-no por meio de um típico

golpe militar, contando para o seu sucesso com o apoio da influência, já mencionada,

do Positivismo no meio castrensa. Como se vê, tudo inteiramente dissociado, já não

diremos do apoio, mas do próprio conhecimento do povo, do que é sintoma a rebeldia

desencadeada em Canudos tanto tempo depois, tendo como uma de suas aspirações

centrais restaurar a monarquia, de vez que Antonio Conselheiro e os seus seguidores

consideravam a República, pura e simplesmente, "obra do demônio". Pressentiam,

assim, aqueles sertanejos, em sua rude simplicidade, que de fato ela contou com o

apoio e foi concebida por integrantes de forças e de interesses do tipo mencionado em

partes anteriores deste trabalho, como interessadas em esvaziar a fé religiosa e a

autoridade de governos e regimes cujo prestigio assentava na adesão àquela fé. A

observação que acabamos de fazer não significa, de nenhuma maneira, tentativa de

abrir discussão entre as excelências das monarquias e as das repúblicas. Mantivemo-

nos, ao fazê-la, em terreno puramente factual e descritivo, de vez que achamos que os

aspectos formais dos regimes políticos podem apresentar vantagens ou desvantagens,

mas que o grande problema não consiste essencialmente naquelas formas, mas nos

homens. Pode-se, perfeitamente, conceber uma república impregnada de ceticismo,

agnosticismo, e imprecisão quanto, por exemplo, ao conceito de liberdade, da mesma

maneira como ocorre às monarquias constitucionais modernas. Mas estávamos

falando das ditaduras e do fato delas, na maioria dos casos, nascerem de intervenções

do estamento militar na condução do processo político, e tal fato merece uma

explicação. Em nosso entendimento, é ela muito simples. É que, em toda a parte, as

Instituições militares têm formação conservadora e voltada, especialmente, para o

sentimento de que a elas compete, como parte dos seus deveres, garantir a defesa dos

valores fundamentais da nacionalidade a que pertencem. Os países do Terceiro

Mundo, como o temos dito tantas vezes são, em muitos aspectos da sua realidade,

inclusive nos que respeitam às suas superestruturas políticas, países de cultura reflexa.

Assim, idéias e formas políticas concebidas em outras sociedades, de configuração

sensivelmente diferente da dos que lhes importam aquelas idéias e formas, são como

que transplantadas, com um mínimo de adaptação, ou sem adaptação alguma, e

passam a sofrer o que temos chamado de "processos de rejeição", por analogia com os

que acontecem a tecidos estranhos, impostos a um organismo diferente daquele que os

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gerara. Foi assim em 189l - diástole inadequada ou irrealista em relação ao nosso

organismo social de então. Daí, problemas, crises e sístoles, às vezes determinadas

por intervenções militares. Mas, como já vimos em páginas anteriores, as formas

institucionais que convêm aos interesses que se opõem à ética do cristianismo, ou a

qualquer ética equivalente, sobretudo em matéria de atividades econômicas, oposição

que fazem desde os recessos da História, são transformadas em verdadeiras

superstições, aceitas pela maioria esmagadora de maneira praticamente acrítica. Foi

assim, entre nós, em Março de 64. Embora líderes políticos tentem hoje faltar à

verdade a respeito, a realidade é que estávamos, então, entregues à mais desenfreada e

reles demagogia, e a um passo de termos implantado em nosso pais, de cima para

baixo, um regime comunista, do mesmo tipo cujo fracasso, hoje, patenteia-se diante

dos olhos de todos. Nesse ponto, os militares, instigados pela maior parte da nossa

burguesia - que gosta dos exageros da liberdade, mas temia a implantação do

bolchevismo - e por parte ponderável do clero católico, animou-se, com o aplauso da

classe média, a derrubar o governo vigente e a instaurar um regime autoritário, que

hoje é caricaturado como uma negra ditadura. Politicamente, porém, estavam eles -

como imaginamos que continuam a estar-vitimados pela alienação consistente na

crença supersticiosa de que o que se tem denominado democracia entre nós,

representa algo perfeito ou, pelo menos, irretocável, de vez que, com a maior boa-fé e

comovente candura, continuam a falar de "normalidade democrática", sem sequer

parar um momento para refletir que a sua vigência, antes de 64, ensejara,

precisamente, a ordem, ou desordem das coisas contra as quais se haviam eles

insurgido. E, fiéis a tal concepção, acabaram por cumprir a promessa que todos os

governos anteriores haviam feito, de restaurar a "normalidade democrática" -

restauração que só não veio antes em virtude das guerrilhas urbana e rural

desencadeadas pelas alas mais radicais das esquerdas. No momento em que

escrevemos, estamos com seis anos de "normalidade", de diástole, pois. E o que foi

que melhorou na nossa realidade e no que tange aos interesses legítimos e aspirações

justas do povo? Aliás, como defini-los com firmeza, na ausência de um referencial

fixo, de conteúdo axiológico?

De quanto foi dito até aqui, parece-nos ter ficado claro que, de fato, o dilema

profundo não é, na prática, democracia x ditaduras, pois estas, nos casos mais singelos

a que acabamos de referir-nos, não nascem de movimentos contra a democracia, que

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consideram a "normalidade". Mas contra o que imaginam desvios e distorções

praticados por pessoas e grupos contra ela. Em alguns casos, uma vez no poder,

ditadores e seus amigos, por motivos ainda mais insignificantes e desprezíveis

agarram-se a ele, nunca, porém, falando a respeito, em campo doutrinário ou, ainda

menos, propriamente teórico. Em nosso século, talvez as únicas exceções, fora do

campo do socialismo marxista, foram os regimes fascista, nazista e, até certo ponto, o

salazarista, o franquista e o integralismo que, entre nós, porém, não chegou ao poder.

Sem que isto signifique que eles foram excelentes ou, sequer, representaram

alternativas válidas para a ordem política baseada no ceticismo e impregnada de

agnosticismo naturalista que tantos consideram tão perfeita que, fora dela, tudo seria

anormal, parece-nos que os historiadores do futuro, quando se debruçarem sobre

aspectos essenciais da crise dos nossos dias, encararão aquelas exceções fora do

campo do marxismo, como espasmos, estertores de reação contra as forças de

destruição da ordem fundada na admissão de valores eternos, e em uma disposição

não nominalista, embora provavelmente nem sempre consciente em seus líderes e em

seus adeptos.

O dilema profundo, portanto, repitamo-lo ainda uma vez, que está na raiz da

crise dramática que estamos vivendo, em nosso entendimento não é pelas razões

vistas, representado por democracia x ditaduras mas, na verdade, por paganização x

cristianismo. As formas de organização social e política só serão aperfeiçoadas, em

termos da visão da cultura a que pertencemos, quando forem concebidas por quem

aceite, de maneira consciente, os princípios norteadores da conduta individual e social

que defluem do cristianismo e quando forem usadas por pessoas e grupos de mesma

inspiração. É preciso compreender que a questão de fundo reside na paganização

crescente que continua em curso e da qual, digamo-lo com coragem, faz parte, pelos

erros que agasalha em seus próprios alicerces, a democracia liberal, que tantos

interesses se esforçam para fazer supor que é obra humana - a única aliás - acabada,

perfeita e, portanto, irretocável.

O campo de batalha da reação contra a crise cruel em que vamos mergulhando,

e esta é uma verdade de dramática importância, está na mente e no coração dos

homens, pois, segundo Fulton Sheen, já citado, "a desordem que reina na sociedade

reinou primeiro no coração e na mente daqueles que a compõem".

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Muito, ainda, resta por dizer. O tamanho deste trabalho não permitiria fazê-lo

agora. Consentindo Deus, tentaremos realizá-lo em próximo livro* em que possam ser

ventilados assuntos que não foram, por agora tocados, bem como ampliar o

tratamento, aqui apenas aflorado, de alguns outros. Por enquanto, por favor, meditem

os leitores no conteúdo deste despretensioso trabalho.

* O livro em questão foi escrito e já está em 2a edição. O seu título é: "OS SOFRIMENTOS E O CAOS DESTEFINAL DE SÉCULO" e o subtítulo é: "SUAS VERDADEIRAS CAUSAS E A RESTAURAÇÃO, POSSÍVEL,DA JUSTIÇA E DA PAZ".(N.A.)