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UFRJ
DEMOCRACIA EM CINCO TEMPOS – A LUTA CONTRA A ÁGORA
Luiz Carlos de Barros Penteado
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Ciência Política.
Orientador: Charles Pessanha
Rio de Janeiro
Junho de 2005
ii
DEMOCRACIA EM CINCO TEMPOS – A LUTA CONTRA A ÁGORA
Luiz Carlos de Barros Penteado
Orientador: Charles Pessanha
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Ciência Política.
Aprovada por:
___________________________________
Presidente, Prof. Charles Pessanha
___________________________________
Prof. Aluízio Alves Filho
___________________________________
Prof. Ivair Coelho Lisboa Itagiba Filho
Rio de Janeiro
Junho de 2005
iii
Penteado, Luiz Carlos de Barros.
Democracia em cinco tempos – A luta contra a Ágora/ Luiz Carlos de Barros Penteado. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2005.
x, 257f.: 30 cm.
Orientador: Charles Pessanha
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 244-247.
1. Constitucionalismo. 2. Democracia. 3. Instituições. 4. Liberalismo. 5. Polis. I. Pessanha, Charles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-graduação em Ciência Política. III. Democracia em cinco tempos – A luta contra a Ágora.
iv
RESUMO
DEMOCRACIA EM CINCO TEMPOS – A LUTA CONTRA A ÁGORA
Luiz Carlos de Barros Penteado
Orientador: Charles Pessanha
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.
Análise das origens das instituições liberais, a partir de uma noção-
referência de democracia, construída por meio de uma síntese dos elementos
centrais de noções gerais, liberais e não liberais, de democracia. A democracia
direta da polis ateniense é estudada como momento original e o exemplo mais
radical de democracia registrado pela História, o mais aproximado do exercício
direto e pleno do poder político pelo povo. É feito a seguir um estudo da Roma
republicana e das grandes revoluções atlânticas dos séculos XVII e XVIII, buscando
mostrar, em todos esses casos, o ambiente histórico, a herança intelectual e o
pensamento político, e o arranjo constitucional, sob uma ótica comparativa à
noção-referência de democracia por nós adotada, procurando-se evidenciar o grau
de inserção do povo em relação à constituição e ao exercício efetivo do poder,
traçando-se por fim paralelos entre os projetos político-sociais desses cinco
momentos fundacionais das instituições políticas atuais.
Palavras-chave: constitucionalismo, democracia, instituições, liberalismo, polis.
Rio de Janeiro
Junho de 2005
v
ABSTRACT
FIVE TIMES OF DEMOCRACY - THE FIGHT AGAINST THE ÁGORA
Luiz Carlos de Barros Penteado
Orientador: Charles Pessanha
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.
The aim of this study was to investigate the origins of liberal institutions
from the democracy referential notion, built through central elements in general
notions of liberal and non liberal democracy views. The direct democracy of
Athenian polis is studied into an original moment and the most radical example
of democracy was registered by the History as the nearest approached direct
and entire exercise of politics power of people. In order to show our purpose,
the study of republican Roma and the greater atlantics revolutions in 17th and
18th centuries was done within not only the historic and intellectual aspects, but
in the politics and constitutional thoughts too. Everything, from the comparative
optic from the democracy referential notion that our studies adopted, in order to
bring people to attend to the constitution and the effective exercise power,
considering in the end, a parallel among politics-social projects in these five
origin moments of the of the actual politics institutions.
Key words: constitucionalism, democracy, institutions, liberalism, polis.
Rio de Janeiro
Junho de 2005
vi
AGRADECIMENTOS
À minha família, pelas infindáveis horas de estudo subtraídas à sua convivência; ao
meu antigo chefe, General-de-Exército Jorge Armando Félix, cuja compreensão e
apoio possibilitaram-me a realização deste curso; aos meus companheiros da
inesquecível Assessoria Jurídica da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Exército
Brasileiro, pelas contínuas amizade e camaradagem e pelo constante apoio; à
Eliane Cristina, sem cujo concurso este curso não teria sido realizado; aos meus
professores e colegas do PPGCP/IFCS, pelo descortino de muitos novos horizontes e
pela constante e estimulante troca de idéias; e a Deus, acima de todas as coisas.
vii
Este trabalho é dedicado aos meus pais, que fizeram brilhar as luzes que até hoje iluminam meu caminho,
e à minha filha, em cujo caminho espero ser uma luz.
viii
SUMÁRIO
Introdução 1
Objeto
Plano deste trabalho
Metodologia
Divisão do trabalho
Capítulo 1. A definição de democracia 8
O problema epistemológico
Variabilidade significativa
Capítulo 2. A democracia em sua origem: os valores integrativos da
polis e a invenção da política 27
O ambiente histórico
Herança intelectual e pensamento político
O arranjo constitucional da democracia na polis
A equação democrática da polis e seu legado histórico
Capítulo 3. A república romana e a articulação institucional das
potências políticas: o nascimento da constituição mista 52
O ambiente histórico
Herança intelectual e pensamento político
O arranjo constitucional e a democracia
O desenho institucional da república
A dinâmica da constituição mista republicana
Capítulo 4. A emergência dos valores civis e a constituição mista: o
século revolucionário inglês 79
ix
O ambiente histórico: a ascensão social e política dos valores privados
Ascensão social
Ascensão política
Herança intelectual e pensamento político: a ascensão intelectual dos
valores privados
A transição para a modernidade
A revolução do pensamento
Hobbes
Harrington
Locke
O destino político e intelectual das idéias de Hobbes, Harrington e
Locke
O arranjo constitucional e a democracia: os redesenhos revolucionários
da arquitetura institucional
Capítulo 5. A consolidação dos valores privados e o controle das
multidões: o desenho contra-revolucionário americano da
constituição mista 129
O ambiente histórico: o impulso ao igualitarismo e à liberdade e a luta
interna pelo poder
Herança intelectual e pensamento político (I): a concepção constitucional
da Revolução
O arranjo constitucional
A primeira constitucionalização
A reação e a re-constitucionalização
Herança intelectual e pensamento político (II): a concepção
constitucional da reação
x
Separação de poderes e constituição mista em Monstesquieu: a
gênese liberal francesa na crise do ancien régime
Separação de poderes e constituição mista nos federalistas: a gênese
liberal na crise da revolução americana
A democracia na equação política de 1787
Capítulo 6. A emancipação burguesa e a potência constituinte das
multidões: a revolução francesa 188
O ambiente histórico e sua transformação revolucionária
O caráter da revolução
Os momentos da revolução: os movimentos dentro do movimento
Herança intelectual e o pensamento da Revolução
O Iluminismo
Rousseau e a sociedade hipostasiada na “vontade geral”
A luta pela produção de sentidos
Sieyès e a “vontade geral” representativa
A pré-formação dos arranjos constitucionais revolucionários: as
Declarações de Direitos e a democracia
Considerações finais 229
A re-fundação da sociedade
O controle político da potência constituinte das multidões
Referências bibliográficas 244
Introdução
Tornou-se lugar comum, em nossos dias, recorrer-se ao termo democracia como
meio de legitimação das instituições políticas sob as quais vivemos, não obstante
discutir-se relativamente pouco acerca da própria noção de democracia e de como
ela se relaciona com os valores que alicerçam a organização da sociedade e a
controlam. Ou, ainda, de como essa noção veio a ser construída, modificada,
abandonada e apropriada ao longo do tempo, desde as primeiras práticas que se
deram sob o nome de democracia - em sua etimologia original, formada pela
junção dos termos demos e kratos, ou o kratos do demos, o poder do povo, em
contraposição à aristocracia, o poder dos aristoi, dos melhores ou dos nobres, ou o
do autos, o poder de um único – até os dias de hoje. Não caberia, nos limites deste
trabalho, discutir todo esse processo ao longo dos milênios decorridos entre o
surgimento das primeiras idéias sobre democracia e seu uso atual; pretendemos,
então, discutir o que foi esta última em sua origem, a qual se confunde com o
surgimento da própria idéia de política, e de que forma se relaciona com a origem
das instituições políticas liberais que hoje prevalecem em grande parte deste
planeta – ou seja, em que medida foi afirmada ou negada, explicita ou
implicitamente, no pensamento e nas práticas que originaram essas instituições. É
pertinente ainda registrar que, não obstante a importância dos aspectos
historiográficos para o nosso tema, nossa finalidade não é traçar uma história
específica de um determinado conjunto de fatos políticos, mas produzir uma
interpretação política específica de um determinado conjunto de fatos históricos, os
quais têm profundas ressonâncias até nossos dias.
Objeto
Em coerência com essa proposta, tanto na definição do tema do nosso trabalho
como em sua elaboração, procuramos, na medida do possível, nos ater a uma visão
global, de preferência a nos determos em objetos parciais. Sem pretendermos
negar a importância dos estudos focados em fenômenos individualizados, fomos
2
conduzidos em nosso desiderato pela tentativa de evitar fazer uma análise de
forma mais ou menos isolada dos acontecimentos que abordamos, os quais,
enquanto momentos políticos fundacionais de nossa era, nos parecem exigir, para a
sua compreensão e a de nossa própria época, uma perspectiva que seja, na medida
em que suas características particulares o permitam, relacional e comparativa.
Procuramos também fugir a uma tentação que por vezes nos parece acometer os
pesquisadores, ao elegerem seus objetos de pesquisa a partir das flutuações
ocasionais da consciência social, como, por exemplo, uma eleição específica recém-
realizada, uma ação pontual do Estado em face da delinqüência urbana etc. Pierre
Bourdieu exprime bem essa questão, definindo o que para nós é um ponto
importante no esforço de entendimento dos fenômenos políticos:
Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relações com o todo. Daqui resultam os problemas de estratégia que encontramos sempre e que se colocarão constantemente nas nossas discussões de projectos de pesquisa: será que vale mais estudar extensivamente o conjunto dos elementos pertinentes do objecto construído, ou antes, estudar intensivamente um fragmento limitado deste conjunto teórico que está desprovido de justificação científica? A opção socialmente mais aprovada, em nome de uma idéia ingenuamente positivista da precisão e da seriedade é a segunda: a de estudar a fundo um objecto muito preciso, bem circunscrito, como dizem os directores de teses.1
Então, dentro dos limites deste trabalho e dos nossos próprios, e portanto
sem a pretensão de termos esgotado um assunto tão vasto, buscaremos percorrer,
sob a perspectiva da democracia, um conjunto de acontecimentos decisivos, os
quais, em que pese a distância no tempo e no espaço entre eles e entre eles e a
nossa própria época, formam um conjunto de elementos que se interligam na
origem política desta última.
Plano deste trabalho
a) Metodologia
1 BOURDIEU, P. O poder simbólico: 31 (grifo original).
3
Tendo em vista que o nosso trabalho implica basicamente a análise de um objeto
determinado - a estrutura constitucional, assim entendida como a organização
política dos poderes em um Estado ou organismo histórico equivalente -, sob um
foco determinado - a democracia -, em cinco diferentes lugares e momentos, surge
desde logo a questão preliminar de definir o modo de abordagem, ou seja, a lógica
interna de sua organização. Se considerarmos que cada lugar em cada instante tem
peculiaridades que lhe são próprias, e que o distinguem de todos os outros e até de
si mesmo em instantes diversos, poderíamos ficar inclinados a adotar uma
abordagem inteiramente particular para cada lugar e momento a ser analisado,
distinta das que seriam empregadas em cada um dos demais. Tal opção, se
adotada, refletiria a idéia hegeliana de que o real é um processo, a contradição e a
mudança são o seu conteúdo e a lógica formal, enquanto teoria geral das
estabilidades, pouco teria a dizer sobre ele, posto que lhe refletiria a aparência, e
não os elementos dialéticos que integram a estrutura dinâmica e multifacetada
daquilo a que chamamos de realidade. Assim, cada acontecimento seria uma
mudança peculiar e particular, e desse modo um deslocamento do real, uma
abertura para o novo em um movimento com dinâmica própria a que poderíamos
chamar de histórico, cuja correta compreensão, segundo esse entendimento,
estaria a exigir que fosse reconstruído e percorrido pelo movimento do nosso
pensamento, movimento esse que seria diferente e específico para cada diferente e
específico acontecimento histórico. Desse modo, se em nosso trabalho
precisaremos correlacionar o mesmo objeto sob o mesmo foco em lugares e
momentos diferentes, faz-se então necessário estabelecer uma linha de abordagem
que permita a respectiva compreensão e ao mesmo tempo possibilite a correlação e
a comparação entre eles. Considerando que, não obstante os movimentos terem
sempre suas especificidades, eles ocorrem dentro de contextos que são conjuntos
gerais de fatores que se relacionam e se interligam na produção de cada um desses
movimentos ou deslocamentos do real, então é possível afirmar que é factível a
contextualização dos cincos diferentes momentos que iremos estudar dentro dos
4
mesmos conjuntos gerais de fatores, definindo no interior destes as
particularidades de cada um. Assim sendo, optamos por tratar esses cinco
momentos fundacionais das instituições políticas hoje existentes em capítulos
próprios, mas todos elaborados dentro dos mesmos três conjuntos de aspectos
interconectados: ambiente histórico; herança intelectual e pensamento político; e,
por fim, o arranjo constitucional e a democracia. Organizaremos então cada
capítulo, do segundo ao sexto (o primeiro e o último têm finalidades específicas que
apontaremos no subitem Divisão do trabalho desta introdução), basicamente
sempre dentro desse conjunto de itens, mas desdobrando-os e adaptando-os de
modo compatível com as particularidades próprias de cada lugar e momento.
No nosso caso, se esse exercício de abstração sobre o passado implica
raciocinar sobre ele com os parâmetros que o próprio passado impõe, como diz,
referindo-se à Revolução Francesa, o jurista e professor da PUC-RJ Aurélio Wander
Bastos,2 implica também um esforço de compreensão crítica e comparativa das
respectivas épocas e desenvolvimentos particulares sob uma perspectiva específica,
definindo-lhe uma intelegibilidade ligada de alguma forma à nossa própria época –
aqui sendo a da democracia. Com essas medidas pretendemos atingir, no
tratamento do nosso objeto ao longo dos diversos capítulos, uniformidade
metodológica suficiente para proporcionar coerência e intercomparabilidade entre
os conteúdos respectivos, ao mesmo tempo em que evitamos fazer do método uma
camisa-de-força intelectual que tenderia a comprimir - e em conseqüência a
deformar - o real no interior do nosso pensamento. Vale aqui a observação do
historiador inglês Cristopher Hill, no sentido de que
a sabedoria é reconhecer as interrelações complexas, e não nos deixarmos influenciar excessivamente pelas categorias de análise que inventamos para nossa própria conveniência.3
Por outro lado, com o intuito de evitar o alongamento desnecessário de um
texto que, pelo seu próprio tema, dificilmente poderia ter a concisão que
2 BASTOS, A. W.: 2001, xxviii. 3 HILL, C. Origens intelectuais da revolução inglesa: 403.
5
desejaríamos, procuraremos nos ater tão somente ao que parecer mais decisivo e
diretamente relacionado com o objeto do nosso trabalho. Desse modo,
procuraremos nos cingir, quanto à história, aos dados mais imediatos relativamente
aos eventos políticos que abordaremos; e quanto ao pensamento, àquele mais
representativo das principais posições em disputa. Em ambos os casos,
procuraremos, de um lado, sermos seletivos e sintéticos na medida em que não
prejudique a compreensão, e, de outro lado, manter o foco voltado sobre o tema
central do trabalho. Em sendo assim, algumas discussões, complementos ou
esclarecimentos que nos pareçam importantes, mas não fundamentais em relação
ao nosso objeto, serão tratados em notas de rodapé.
b) Divisão do trabalho
Preliminarmente às discussões às quais pretendemos nos dedicar nas páginas
seguintes, buscaremos expor, no capítulo inaugural, os principais problemas que
envolvem a definição de democracia, e a diversidade de sentidos que podem ser
associados a esse termo.
Principiando a seguir nossa discussão propriamente dita, elegemos como
caso referencial, conforme já foi dito, o da democracia grega clássica, em especial a
ateniense. Assim o fizemos por entender ter sido este o momento inaugural da
história onde o pensamento, as práticas políticas e os valores integrativos
correspondentes deram origem à própria idéia de democracia, e, dentro dessa
primeira noção, mais se aproximaram da plenitude do exercício coletivo, livre e
direto do poder político. Este será o objeto do nosso segundo capítulo.
Em seguida, faremos o registro daquilo que foi associado à democracia no
período republicano de Roma, que alguns consideram como tendo assinalado a
primeira prática efetiva da constituição mista, e, dentro desta, de instituições
diferenciadas pelo exercício de tarefas políticas distintas e por representação de
seguimentos sociais diversos. Esse será o teor do nosso terceiro capítulo.
6
Percorreremos a seguir, no nosso capítulo quarto, a primeira das grandes
revoluções atlânticas, a inglesa. Esta foi na verdade um período revolucionário que,
se nos ativermos apenas aos eventos políticos mais radicalmente transformadores,
se estendeu por cerca de um século, re-inaugurando na história a constituição
mista, como um arranjo de representação política das forças sociais mais
relevantes.
Em nosso capítulo quinto, abordaremos a revolução norte-americana, evento
fundamental associado às instituições políticas modernas, no qual ocorre o
ressurgimento da democracia como tema. Desse processo, percorreremos sua
trajetória entre uma revolução de sentido democrático, em face da grande
inclusividade política do poder popular, e uma contra-revolução oligárquica
(burguesa), que re-fundou a constituição mista sobre uma base social
completamente diferente da que havia informado até então esse princípio de
estruturação constitucional.
No nosso capítulo sexto, trataremos de um outro evento fundamental, a
revolução francesa, um tema excepcionalmente profícuo – um processo que alguns
consideram não ter ainda terminado até os dias de hoje –, do qual nos ateremos,
dentro do período de sua eclosão até a derrota jacobina, às alternativas relativas à
amplitude da inclusão política do poder popular, em face dos detentores do poder
econômico.
Encerrando este trabalho, faremos nossas considerações finais, nas quais
procuraremos traçar paralelos e distinções globais entre a fase democrática da polis
grega entre os séculos VI a V a.C., a república romana e as três grandes revoluções
da Europa e América do Norte dos séculos XVII e XVIII d.C., comparando os
respectivos arranjos constitucionais naquilo que possa ser relacionado, afirmativa
ou negativamente, com democracia. Buscaremos focalizar os pontos de
aproximação entre eles e aquilo em que se distanciam, especialmente quanto a
7
semelhanças ou diferenças fundamentais de sentido entre o projeto liberal das
revoluções atlânticas e o projeto grego original de democracia.
Capítulo 1
A definição de democracia
A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe infusões da vontade e dos afetos.
Francis Bacon, Novum Organon, 1620.4
Democracia é um termo amplamente usado, notadamente em nossos dias, como
instrumento de justificação ou legitimação de instituições, práticas e regimes
políticos. Isso significa dizer que não se trata de uma palavra que designe algo que
seja axiologicamente indiferente, como uma espécie biológica, por exemplo, ou
produto de uma conceituação baseada em uma racionalidade puramente abstrata e
inteiramente neutra em face dos valores relacionados com aquilo que é
conceituado.
O problema epistemológico
O que está sendo definido e conceituado, em qualquer caso no qual o objeto de
estudo é algo que diz respeito a situações de poder que afetam ou podem afetar
sociedades inteiras, tanto se reveste como é atingido por interesses que
ultrapassam de muito o âmbito restrito da pesquisa puramente acadêmica. É
possível então dizer que um tal objeto de estudo suscita questões epistemológicas
relevantes, das quais iremos tratar a seguir, tão somente e no limite do que nos
parece necessário como demonstração de alguns problemas apriorísticos
fundamentais no âmbito da ciência política, e que se refletem na construção e
tratamento do objeto de pesquisa que escolhemos – a construção da noção de
democracia em cinco momentos fundantes da história política do Ocidente.
Acreditamos que não podemos iniciar nosso estudo sem uma breve reflexão sobre
as possibilidades de instrumentalização política da produção de conhecimento, as
quais ficam um pouco mais evidentes em nossa época, no caso específico da
4 Apud SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro: 200.
9
democracia, como nos mostra os muitos e discrepantes usos que esse termo tem
tido, dentro inclusive das acepções alegadamente científicas que lhe são agregadas.
É preciso, em primeiro lugar, atentar à relatividade da posição do próprio
pesquisador, que no caso particular da ciência política, enquanto disciplina voltada
para o estudo das formas de controle dos homens socialmente organizados – entre
os quais está incluído o pesquisador - via de regra integra o próprio âmbito de
manifestação dos fenômenos que investiga, reagindo a eles e às vezes até sobre
eles, fazendo portanto parte do processo respectivo. Essa reflexão inicial, pela sua
natureza, não poderia deixar de ser preliminar a quaisquer outras pesquisas a
serem realizadas, uma vez que estas serão conduzidas segundo uma determinada
organização prévia do aparelho mental do pesquisador. Não se trataria, assim, de
simplesmente definir opções metodológicas para, segundo a escolha feita, abordar
o objeto de pesquisa, mas de abordar a priori a própria escolha, as diferentes
racionalidades possíveis que a poderão presidir, os fatores racionais e até mesmo
irracionais envolvidos nas respectivas origens e construções e as distintas
implicações políticas das possíveis estruturações da abordagem dos fenômenos a
serem, depois, pesquisados – incluindo, no limite, a própria definição desses
fenômenos. A possibilidade de uma pesquisa consciente e autônoma
necessariamente implica a pesquisa prévia das possibilidades de autonomia
consciente do próprio pesquisador. Antonio Gramsci observa que
a personalidade histórica de um filósofo individual é também dada pela relação ativa entre ele e o ambiente cultural que ele quer modificar, ambiente que reage sobre o filósofo.5
o que, mutatis mutandis, é válido também para as ciências sociais e a ciência
política em particular. Em sentido semelhante, Boaventura de Souza Santos,
reproduzindo entendimento de Ferreira de Almeida e de Madureira Pinto, sublinha
que
5 GRAMSCI, A. Concepção dialética da história (Il materialismo historico e la filosofia de Benedetto Croce): 37.
10
as condições sociais de produção teórica são determinantes em relação às condições teóricas dessa produção.6
Entre os cuidados que tal postura reclama no plano epistemológico, está o
de que a ciência política situe como objeto de cognição a própria produção dos
objetos de cognição pela ciência política, e, no limite, até mesmo a produção de sua
cognição. Parafraseando Bourdieu, poderíamos dizer que deixar em estado
impensado o seu próprio pensamento seria, para um cientista político mais do que
para qualquer especialista de qualquer outro campo da ciência, condenar-se a ser
apenas instrumento daquilo que ele se propõe a pensar.
não construir, como faz o hiperempirismo positivista, que aceita sem crítica os conceitos que lhe são propostos é ainda construir, porque é registrar – e confirmar – o já construído.7
No campo das ciências sociais, e particularmente no da ciência política,
mesmo diante de uma escolha de objeto e de uma correspondente opção
metodológica alegadamente conscientes, é preciso não perder de vista que tais
disciplinas científicas são também práticas sociais, e, enquanto tais:
são subjetivadas pela sociedade na medida em que esta cria as condições de emergência e fortalecimento, tanto dos sujeitos individuais da ciência (os cientistas), como dos sujeitos coletivos (as universidades, as disciplinas científicas, os centros e os projetos de investigação).8
Ao contrário do que normalmente ocorre com as ciências naturais, cujo
trabalho se dá com sistemas que são em geral fechados, as ciências sociais
trabalham com sistemas sociais que são em geral abertos. Nestes últimos,
diferentemente daqueles, os mecanismos respectivos sofrem alterações resultantes
de mudanças ou variações qualitativas de suas condições causais, não sendo
constante a relação entre o conjunto dessas condições causais e as condições
externas que de alguma forma afetam sua operação ou efeitos – leia-se
variabilidade e margem de imprevisibilidade da ação humana dos agentes que
atuam no e sobre o sistema, e das relações entre uns e outros, ou simplesmente o
6 SANTOS, B. de S. Introdução a uma ciência pós-moderna: 21. 7 BOURDIEU, P. O poder simbólico: 35. 8 SANTOS, B. de S. Introdução a uma ciência pós-moderna: 15.
11
caminho tortuoso e acidentado da história da humanidade. Dados esses fatos, não
é difícil compreender porque não somente as previsões tendem à falibilidade (como
ocorre, sobretudo, no campo da economia), como também, e principalmente, que
toda a explicação social, ainda que se pretenda científica, se dê dentro de quadros
interpretativos particulares.9 Por outro lado, sendo a história uma realização do
homem coletivo a que se referia Gramsci, pressupondo uma unidade cultural-social
necessária à unificação da multiplicidade de vontades desagregadas em torno de
fins homogêneos, o que implica uma base de idêntica e comum concepção do
mundo,10 tais quadros interpretativos integram o processo de estruturação do
mundo social e político. De tudo isso decorre que
A luta pela interpretação é constitutiva da nossa prática social, e a ampliação ou a restrição do campo da interpretação é o aspecto mais importante dessa luta... Nestas condições, as descrições da realidade são sempre prescrições e, também, como Bourdieu acrescentaria, proscrições. A verdade é normativa e só existe enquanto luta de verdades.11
Mesmo se considerarmos uma possível ausência de intencionalidade por
parte do sujeito da produção de conhecimento em ciência política, pelo menos no
nível consciente, seria ainda preciso levar em conta as limitações e pluralidade de
possibilidades inerentes à razão, inclusive quanto à substituição desta última como
criação livre do sujeito pensante por meio da organização do aparelho de
pensamentos desse mesmo sujeito a partir de uma razão que lhe é exterior.
É necessário ter presente que conhecimento não é algo que tenha uma
origem, no sentido de ser um fenômeno naturalístico, ou uma decorrência
espontânea de algum fenômeno desse tipo. O conhecimento não é um produto
direto dos instintos humanos, nem é algo inerente à natureza humana: é uma
invenção, algo que surgiu em um ponto no espaço e em um momento no tempo, e
9 Ou ainda, dizendo de outra maneira, como Louis Althusser ao comentar a diferença que Hobbes via entre as matemáticas e as ciências sociais: as primeiras unem os homens; as segundas dividem-nos. ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 18. 10 GRAMSCI, A. Concepção dialética da história (Il materialismo historico e la filosofia de Benedetto Croce): 36-37. 11 SANTOS, B. de S. Introdução a uma ciência pós-moderna: 95.
12
que tem uma história. É um dizer de alguma coisa algo que não é dado
imediatamente pela coisa. Esse dizer é uma elaboração, criada pelo próprio sujeito
ou absorvida por ele de outro, ou outros sujeitos, e que lhe permite falar da coisa
objeto do seu pensamento, de tal forma que a coisa, ao ser definida, torna-se uma
criatura do processo de criação dessa definição. Isso implica uma historicidade, não
somente do conhecimento em si, mas das formas do conhecer, e, já que não se
cogita da verdade como iluminação particular de homens individuais, à parte do
resto do mundo e de seus semelhantes, mas que atuam organizados numa
sociedade que não é um aglomerado caótico de indivíduos isolados, significa a
possibilidade de as formas de saber serem e terem sido articuladas socialmente
como instrumentos de domínio. Poderíamos mesmo dizer que esse processo, ao
construir um conceito de conhecimento, participa da construção do próprio sujeito
do conhecimento, compondo de fato sua personalidade; no limite, substitui-se à
desiderabilidade que lhe seria particular, desiderando em seu lugar. Desse modo,
esse sujeito do conhecimento, como observa Michel Foucault comentando
Nietzsche, não é um dado definitivo ou apriorístico, a partir do qual a verdade
surge na história, mas se constitui no interior desta, sendo nela continuamente
fundado e refundado. O que então ocorre é
a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais.12
Em síntese, podemos dizer que o conhecimento representa a inserção do
sujeito em uma determinada relação estratégica, a qual define o efeito do
conhecimento, que será, em virtude disso, obrigatoriamente parcial, oblíquo,
perspectivo,13 nos conduzindo, se desejamos apreendê-lo em sua raiz, à
necessidade de compreender as relações de luta e poder que lhe são subjacentes.
Nesse sentido, desaparecem quaisquer pretensões de neutralidade da ciência,
12 FOUCAULT, M. S/ ref.: 10-11. 13 Idem: 25.
13
podendo esta última, como diz Santos, ser estudada e utilizada como sistema de
produção de conhecimentos, tanto quanto de ignorância.14
Aditando-se às considerações acima, uma observação em especial se impõe,
em relação ao que nos propusemos neste trabalho: se o pensamento científico
envolve sempre algum dualismo, ou seja, um sujeito cognoscente que olha, por
assim dizer, de fora para o objeto cognoscível, então nossa posição teórica e
epistemológica, aqui, é ainda mais difícil. Ainda que se possa argumentar que a
abordagem e mesmo a definição desse objeto de cognição seja, em larga margem,
mediada pelo artifício (consciente ou não) de uma elaboração semiológica por parte
do pesquisador, ou mesmo de outrem, mas integrada ao aparelho de pensamentos
do sujeito do conhecimento – por meio da linguagem, tanto idiomática como
científica - o fato de poder ser o objeto discernível externamente ao observador,
permite a este último ver-se a si mesmo e ao objeto de sua observação como
coisas distintas e separadas. Em ciência política, principalmente ao pretendermos
lançar vistas sobre fenômenos que nos são coexistentes – e as questões relativas à
democracia, inseridas no contexto das instituições liberais e da organização liberal
da sociedade, nos envolvem no presente com força inaudita - esse lado de fora se
afigura como um signo particularmente arbitrário, um artifício ficcional, voltado
para permitir ao narrador, que vive a narrativa em primeira pessoa, escrevê-la na
terceira. O objeto observado está no mesmo ponto de observação que o seu
observador, ambos movendo-se em conjunto, não no sentido metafísico hegeliano
do espírito absoluto, mas no sentido materialista da imersão factual conjunta num
mesmo processo – notadamente numa era marcada por processos de amplitude
planetária. O velho adágio socrático do conhece-te a ti mesmo cabe aqui de forma
ampliada: fazer ciência política de objetos diretamente relacionados com sua
contemporaneidade é, para o cientista político, de algum modo como praticar
14 SANTOS, B. de S. Introdução a uma ciência pós-moderna: 139.
14
engenharia reversa de sua própria existência societal.15 Essa imersão, como diz
Antonio Negri, acaba com toda representação de critérios metodológicos em geral,
subtraindo-lhes a possibilidade de enganchar do lado de fora em alguma coisa que
fosse estável, e portanto fazer nascer a narrativa daquela estabilidade objetiva que
determina relações históricas, fixando-as e conferindo-lhes significado.16 Ainda que
estejamos nos referindo, ao longo deste trabalho, a fenômenos históricos, os
processos respectivos de modo algum cessaram, mas prosseguem sua marcha com
impensada intensidade. Na tentativa de alcançar a estabilidade objetiva a que se
refere Negri, nos reportamos à história, mas o processo a que se refere essa
história continua e nos envolve.
De tudo isso deflui, por exemplo, que a distinção proposta por Guillermo
O’Donnell entre definições realistas e prescritivas de democracia,17 de modo
semelhante à divisão feita por Norberto Bobbio entre uso descritivo e uso valorativo
do termo – as primeiras caracterizadas pela verificabilidade empírica e as segundas
pela normatividade – nem sempre é fácil de ser feita, e talvez não seja nem mesmo
possível extremá-las inteiramente uma da outra.18 Na própria crítica feita por
O’Donnell às definições de índole prescritiva, estão implícitas as dificuldades para o
estabelecimento de definições de características puramente realistas:
As definições prescritivas pouco dizem sobre dois assuntos importantes: primeiro, como se deveria caracterizar as democracias realmente existentes (inclusive se, de acordo com essas teorias, deveríamos mesmo considerá-las como democracias); e segundo, como se deveria mediar, na teoria e não
15 Além dos antecedentes e início do desenvolvimento dos processos mundializantes atualmente em curso, poderemos, por ex., verificar que algumas discussões extremamente atuais em nossa Constituição, como o grau de intangibilidade dos direitos sociais, o alcance da participação política do demos – hoje muito versada sob o binômio responsividade e accountability – não são de forma alguma novas, mas velhas de mais de duzentos anos, remontando às dramáticas alternativas do processo que ficou conhecido como Revolução Francesa – e permanecem atuais desde essa época até os dias de hoje. 16 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 90. 17 O’DONNELL, G. Teoria Democrática e Política comparada: 587. 18 BOBBIO, N. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos: 371.
15
na prática, a brecha existente entre as democracias definidas de maneira realista e as que são definidas de maneira prescritiva.19
Poderíamos ainda acrescentar que as definições não se esgotam nessas duas
categorias: entre o que existe e o que deve existir, pode-se ainda definir o que
pode existir, não em sentido normativo mas no sentido do que seja teoricamente
plausível, reunindo as condições que permitem definir a coisa como de existência
possível em tese, ainda que não tenha existência atual em concreto. Ou seja, uma
criatura do mundo das idéias, mas passível de materialização por corresponder a
condições reais para isso existentes ou que possam ser criadas. Suprimir essa
categoria significa adotar uma posição profundamente conservadora, ao considerar
a possibilidade de existência apenas daquilo que já existe e relegar o restante ao
campo do sonho abstrato.
Por outro lado, se uma definição é a caracterização do significado de um
termo ou expressão por meio de outros termos ou expressões, então estes últimos
não podem repetir elementos que estejam contidos no termo ou expressão a serem
definidos, sob pena de se fazer uma tautologia e não uma definição. Disso deflui
que uma definição implica no estabelecimento de uma referência, pela qual se
procura tornar compreensível o termo ou expressão a ser definido; dessa forma, a
construção do marco referencial é um compromisso preliminar à própria definição.
Omnis definitio periculosa est: toda definição é uma relação de compromisso. E,
por essa razão, principalmente em ciências sociais e mais ainda em ciência política,
toda definição é, em alguma medida, prescritiva. Mas, não obstante perigoso,
definir é preciso – a alternativa seria recair na esterilidade do hiperempirismo
positivista de que fala Bourdieu, do qual já fizemos menção.
Isso, por seu turno, não significa necessariamente que seja sempre possível
atingir a limpidez e a inteireza de um conceito, entendendo-se este classicamente
como termo passível de uma definição precisa, clara e exaustiva. Mesmo em um
discurso que se pretenda a um só tempo objetivo e rigoroso, como ocorre com o
19 O’DONNELL, G. Teoria Democrática e Política comparada: 587.
16
discurso dito científico, a investigação pode recair sobre fenômenos que
apresentem conjuntos distintos de características, em diferentes tempos e lugares
e em condições diversas, cuja definição será uma nomeação desses fenômenos,
segundo uma generalização resultante da sua elaboração pelo pensamento teórico.
Ou o estudo pode até mesmo se dar sobre fenômenos que não tenham denotações
explícitas na realidade empírica, mas que sejam objeto de raciocínios voltados para
a elaboração de tessituras condicionais de hipóteses, válidos na medida em que
sejam assim consciente e explicitamente assumidos. Em ambos os casos que
acabamos de mencionar, os resultados não poderiam ser chamados de conceitos,
mas antes de noções, as quais podem atingir clareza e consistência, sem, contudo,
chegar a serem inteiramente precisas, e, muito menos, exaustivas. Ainda assim,
seriam definições, agregando significado aos termos respectivos segundo os marcos
referenciais adotados. No vasto espectro de diferentes situações históricas e de
usos normativos diversos que foram até hoje compreendidos sob a denominação
democracia, variando dentro de um amplo arco que vai do empirismo mais
positivista à mais pura pedagogia política, passando por manipulações ideológicas
diversas, verificamos ser possível atribuir muitas diferentes noções a esse termo,
mas dificilmente um conceito.
O que procuramos fazer nestas primeiras laudas e faremos ainda um pouco
mais nas subseqüentes, onde discutiremos os diferentes sentidos que podem ser
associados ao termo democracia, consiste em um esforço na direção de manter
aberto o corpo dos postulados acerca da estrutura dos fenômenos políticos sobre os
quais vamos nos debruçar ao longo deste trabalho.
Variabilidade significativa
A qualificação do comando político da sociedade é uma questão complexa que pode
ser enfocada sob muitos aspectos, como em termos de quem o exerce, de que
modo o exerce, por quais meios e em que condições passa a exercê-lo ou deixa de
fazê-lo, em nome de quem e para quem o exerce, e quais os limites desse
17
exercício. Em qualquer caso, a questão fundamental é a da constituição dos meios
de comando político e da dinâmica correspondente, cuja interação é um processo
contínuo submetido permanentemente ao teste de sua prática. Essa linha de
pensamento nos remete à uma noção material de constituição, derivando-a
parcialmente do conceito desenvolvido por Ferdinand Lassalle,20 no sentido da
resultante dos fatores reais e efetivos do poder que, num determinado locus
espaço-temporal -seja ele antigo, moderno ou, como querem alguns, pós-moderno
- ordenam de fato a sociedade. Consoante esse entendimento, podemos
preliminarmente afirmar que a questão da qualificação do poder político em uma
dada sociedade – como, por exemplo, determinar se sua natureza é democrática,
oligárquica ou despótica - situa-se no plano de um problema constitucional.
Avançando um pouco mais nessa mesma linha, fundindo e adaptando as
idéias de Lassalle a algumas de Negri,21 poderemos passar dessa idéia de
constituição material ou constituição-verdade para um conceito genético do poder
constituinte.22 Este, simultaneamente pré-formador e co-extensivo ao conceito
material de constituição, reside na própria ação contraditória dos diversos fatores
reais e efetivos do poder – incluindo os valores23 sobre os quais se produz a
integração da sociedade e em torno dos quais se produz sua vida -, enquanto
processo gerador de forças expansionais. Estas, por sua vez, ou são
reciprocamente condicionadas na dinâmica de seu confronto, condensando-se numa
vontade-síntese que assim acomoda politicamente uma determinada sociedade em
um dado espaço-tempo – caracterizando-se nesse caso como um poder constituinte
socialmente estabilizado -ou atingem o desequilíbrio e a ruptura, encontrando sua
20 LASSALLE, F. A essência da constituição: 49. 21 NEGRI, A. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade: 7-24 e 422-423. 22 Ainda que Negri lhe dê, em algumas passagens, um certo sentido metafísico. 23 Ainda que puramente ideológicos, no sentido negativo desse termo, desde que tenham efetividade.
18
síntese numa vontade absoluta24 que constrói, ex novo, em seu próprio espaço e
em seu próprio tempo, a estrutura política de uma sociedade transformada – e que
seria assim um poder constituinte revolucionário. Podemos dizer que o momento
constitucional em si assinala o ponto de maior tensão entre a arquitetura do
poder25 efetivamente constituída -momento específico do ser político da sociedade
– e a permanente ação constituinte das forças sociais. Nesse incessante devir, tudo
está ao mesmo tempo constituído e por constituir: constitucionalismo, portanto, é
movimento, e o seu motor é o conflito.26 Estendendo então a relação que fizemos
no final do parágrafo anterior entre qualificação do poder político e
constitucionalismo, à passagem da constituição ao poder constituinte, que
acabamos de fazer, é possível afirmar que a natureza do poder político constituído
deriva diretamente da natureza do poder ou poderes sociais que o constituem.
Por outro lado, se nos ativermos às tipologias clássicas da teoria política
desde Aristóteles, selecionando o ângulo puramente aritmético da distribuição de
comando político na sociedade, e considerarmos o caso do governo de muitos,
24 Termo aqui utilizado não em sentido idealista ou transcendental, mas enquanto efetividade constituinte. 25 Os marxistas a chamariam de arquitetura superestrutural. 26 Negri, referindo-se ao pensamento de Maquiavel sobre a ação política como o motor da vontade aplicada ao movimento do real, afirma que a principal operação teórica levada a efeito pelo secretário florentino, na interseção do Príncipe com os Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, consistiu em fazer da mutação uma estrutura global atravessada pela ação humana, construindo uma função científica que insere a mutação na história, retirando-a ao destino, tornando-a objeto da virtù e não apenas da fortuna, transformando-a em um fator real e consciente do advento do novo. O que surge daí é uma concepção do pensamento que supera a reflexão, posto que não apenas reflete o real, mas que, penetrando no seu movimento e alterando-o conscientemente por meio da ação, o constitui: a política é a gramática do tempo, observa Negri, constituindo a potência através de um jogo temporal que percorre e reorganiza a realidade em função de finalidades normativas. Segundo Negri, em Maquiavel o herói da virtù e da fortuna é o organizador do Estado, aquele que, apossando-se do movimento do real, trabalhando-o, resolvendo-o, impõe sua vontade de potência de forma a reunir e redefinir as temporalidades dispersas num tempo de inovação que recolhe e remodela toda a tradição política, sobredeterminando o tempo histórico. O poder se define como sobredeterminação, esta como potência de inovação e a ação política, na sua tripla relação entre poder e mutação, potência e mutação, potência e poder, converte-se em tecnologia política, se resolvendo como técnica do tempo. Nessa ordem de idéias, a ação política pode ser definida como uma articulação consciente do tempo histórico, interiorizado no tempo de um projeto subjetivo concentrado. NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 64 e 68.
19
estaremos nos referindo à democracia. Mas, se atentarmos à vinculação
etimológica dessa palavra à sua origem, anterior à sistematização aristotélica,
poderemos notar que se trata do poder do povo, ou demos, na etimologia grega
original. Dentro dessa concepção originária de seu nascedouro grego, como
veremos no próximo capítulo, será esse poder exercido diretamente pelo demos,
seja através de deliberações coletivas em assembléias, seja por meio do
desempenho rotativo de todos os cargos públicos relevantes em termos de
competência decisória, a cujo acesso a totalidade dos cidadãos tinha iguais e
efetivas possibilidades. Já se o tomarmos em sua concepção moderna de
democracia de massas, o poder será exercido, na quase totalidade dos casos, pelos
representantes do povo.
Cabe sublinhar que, no que diz respeito ao povo ou demos, nos referimos
aqui, de um modo geral, à multidão situada em uma determinada ordem por um
conjunto de princípios formativos, os quais sobrepõem uma representação comum
às singularidades não representáveis que a integram, conformando-as em uma
potência política definida e mensurável.27 Conquanto essa noção, pela sua
generalidade, seja aplicável tanto a contextos antigos como modernos, não
podemos deixar de notar que a moldagem da multidão em povo assinalou um
momento fundamental da constituição do Estado-nação moderno, estando o
conceito transcendentalista de povo na base da passagem da fundamentação
teológica do patrimônio territorial para a identidade nacional desse novo Estado. Ao
herdar o corpo patrimonial do Estado monárquico, o conceito moderno de nação o
re-propôs sob a forma de uma identidade cultural e integradora, fundada numa
dimensão temporal de continuidade que envolve, ao lado da dimensão espacial de
27 Por outro lado, sempre e ao mesmo tempo aquém e além do conceito de povo, está a multidão: ela é, como diz Negri, a realidade que permanece, uma multiplicidade de singularidades irredutível a qualquer representação. Como imanência sempre em movimento e portadora de todas as energias produtivas, é uma totalidade que constrói uma potência política indefinida e incomensurável, gestante de todos os mundos possíveis. Se o povo é o elemento vivo do Estado-nação, a multidão é a sua carne. NEGRI, A. Idem: 163.
20
abrangência territorial, as relações biológicas de sangue e a comunalidade
lingüística, como assinalam Hardt e Negri.28
Souza Santos, referindo-se ao espaço-tempo da nação como base da
construção cultural desta última e como pressuposto organizativo das relações
sociais, define-o de uma forma semelhante à que dão Hardt e Negri à
corporalização moderna do Estado:
Finalmente, o espaço-tempo-nacional estatal é o espaço-tempo privilegiado da cultura enquanto conjunto de dispositivos identitários que estabelecem um regime de pertença e legitimam a normatividade que serve de referência às relações sociais confinadas no território nacional: do sistema educativo à história nacional, das cerimônias oficiais aos feriados nacionais.29
Retornando aos dois casos acima referidos por nós de formas, por assim
dizer, diretas e indiretas de exercício do poder, ou seja, pelo povo ou por seus
representantes, podemos afirmar que tanto uma como outra têm sido assimiladas à
qualificação de democracia. Isso nos mostra que não devemos ignorar os diferentes
usos lingüísticos que podem ser dados a esse termo, ou mesmo a qualquer outro
objeto. Esses usos diversos de um mesmo termo não deveriam ser omitidos de
nenhuma teoria sobre qualquer tema social, como observa Guillermo O’Donnell,30
além de indicar que uma teoria adequada da democracia, ainda segundo o mesmo
autor, deveria especificar as condições históricas do surgimento de várias situações
concretas.31 Em que pese o cabimento dessa observação, isso não impede que um
conjunto de situações históricas concretas possa ser apreciado sob uma perspectiva
comparativa a partir de uma determinada referência adotada de modo consciente e
explícito como tal. Essa referência pode, por exemplo, ser estruturada como uma
definição que seja a mais ampla possível, abstraídos seus elementos componentes
de uma situação histórica específica ou de um conjunto de situações históricas
28 HARDT & NEGRI. Império: 112-113. 29 SANTOS, B. de S. Reiventar a democracia: entre o pré-contratualismo e pós-contratualismo: 36-37. 30 O’DONNELL, G. Teoria Democrática e Política comparada: 579. 31 Ibidem.
21
selecionadas para esse fim, e reconstruídos pelo pensamento teórico. Ou pode ser
elaborada por esse mesmo pensamento como um conjunto de possibilidades
coerentemente articuladas no sentido de uma definição do que pode existir, do que
é concebido como plausível, ainda que possa não ter existência atual, uma
perspectiva da qual já falamos em nossas considerações epistemológicas.
O próprio O’Donnell nos dá um exemplo de definição na qual sintetiza bem
as características apontadas por muitos autores mais ou menos recentes e
importantes, como Robert Dahl32 e que apresenta como realista (ou descritiva, na
terminologia empregada por Bobbio), mas que incorpora larga margem de
conteúdo prescritivo (ou valorativo, ainda no dizer de Bobbio):
A democracia tem quatro características específicas que a diferenciam de todos os demais tipos de regime político: (1) eleições competitivas e institucionalizadas; (2) uma aposta includente e universalista; (3) um sistema legal que promulga e respalda, no mínimo, os direitos e liberdades incluídos na definição de um regime democrático; e (4) um sistema legal que exclui a possibilidade de que uma pessoa, papel ou instituição sejam de legibus solutus. As duas primeiras características dizem respeito ao regime e as duas últimas ao Estado e ao seu sistema legal.33
Não é difícil ver a assimilação dessa definição aos princípios liberais clássicos
de mercado, os quais buscam universalizar as relações entre aqueles que se
propõem a vender, competindo entre si pelas preferências dos compradores,
definidos juridicamente, de modo apriorístico e formal, como sujeitos livres e
iguais. As trocas comerciais estiveram desde cedo no centro do desenvolvimento
das forças produtivas do Estado moderno, e não teriam sido possíveis sem a
possibilidade de contratar; o que conduziu por sua vez à necessidade de
igualitarização de estatuto jurídico – no sentido de que os co-contratantes,
compradores e vendedores, deveriam ser juridicamente iguais, igualmente capazes
de adquirirem direitos e obrigações. Sob outra circunstância, o contrato, forma de
legitimação jurídico-política da apropriação, seria de antemão impossível; e surgia
32 DAHL, R. S/ ref. 33 BOBBIO, N. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos: 620.
22
aí o Estado fornecendo esse estatuto jurídico de igualdade formal entre os co-
contratantes. Como observa E. B. Pasukanis,
Só a contínua transferência de direitos que ocorre no mercado cria a idéia de um portador imutável destes direitos. No mercado, aquele que obriga, obriga-se simultaneamente. A todo momento, ele passa da condição de credor à de obrigado. Assim foi criada a possibilidade de abstraírem-se as diferenças concretas entre os sujeitos de direito e englobá-los sob um único conceito genético.34
Dessa forma, opera-se na definição de O’Donnell a organização do sistema
político pelos mesmos fatores de organização do sistema de mercado ou, dito de
outra forma, orientando a organização de ambos os sistemas pelo mesmo conjunto
de valores integrativos. E, uma vez que se trata de uma definição orientada por
valores, pode-se dizer que tem um conteúdo que não é meramente realista, mas
em larga medida prescritivo. Além disso, ao assimilar os fundamentos de ambos os
sistemas, cria uma possibilidade de legitimação do sistema de mercado pela sua
identidade com um sistema político alegadamente democrático.
Um outro aspecto a ressaltar na construção da definição desse autor, é sua
afirmação de que o sistema legal determina e respalda características fundamentais
da democracia.35 Essa afirmação pode ser tratada sob diferentes perspectivas, a
depender do sentido e do alcance que dermos ao termo democracia. Se, por
exemplo, dermos a este último um sentido amplo de ação do demos sobre o
sistema político, e não o contrário, essa ação pré-condicionaria de fato a própria
institucionalização do regime respectivo; nesse caso, a efetividade democrática
implica que o sistema legal será condicionado e definido por esta última, e não o
oposto. Assim, a definição proposta por O’Donnell tende a reduzir o alcance da
dimensão fundacional que a democracia pode ter. Além disso, ao situar o sistema
legal em uma posição pré-formativa e condicionadora do próprio sistema político, o
34 Jurista bolchevique, e, como sublinha o procurador da república e professor da PUC-Rio, Paulo Bessa, teórico do direito destacado no período leninista. Foi ainda Vice-Comissário do Povo para a Justiça, diretor do Instituto Jurídico de Moscou e Vice-Presidente da Academia Comunista. PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direito e o marxismo: 91. 35 O’DONNELL, G. Teoria Democrática e Política comparada: 579.
23
autor o deixa efetivamente fora ou além deste último, de alguma forma
naturalizando-o. É possível mesmo divisar uma certa semelhança entre essa
posição e as antigas teses contratualistas, como as que surgiram por ocasião da
primeira das grandes revoluções atlânticas -o processo revolucionário inglês do
século XVII, do qual trataremos no capítulo IV. Estas situavam em um misterioso e
inacessível momento anterior à fundação da sociedade civil o hipotético acordo
primordial e apriorístico que definia os direitos e obrigações fundamentais e
irrevogáveis – entre os quais costumava figurar em posição de destaque a
propriedade -a que estariam inarredavelmente sujeitos os membros respectivos.
Uma critica semelhante a que acabamos de fazer à definição de O’Donnell é
dirigida pelo filosófo político Christian Delacampagne a diversos outros autores
anglo-saxônicos atuais que se preocupam com o tema da democracia, entre os
quais John Rawls, Ronald Dworkin e Michael Walzer. Sustenta o autor francês que
todos eles fundam seu conceito de democracia apenas na observação das
democracias existentes, quando não sobre a análise do sistema americano apenas,
parecendo supor, como condição necessária, o conceito de capitalismo, ao passo
que o liame entre essas duas estruturas é somente empírico e perfeitamente
contingente.36
De um modo geral, as acepções liberais modernas do termo democracia
tendem a identificar esta última com um regime em que as ações de governo são
limitadas e têm a possibilidade de serem controladas (no mais das vezes pela via
eleitoral) pelo povo, ou, mais especificamente, pelos cidadãos. Esta, por sua vez,
seria a parcela do povo detentora do status isonômico de participação política
dentro de um determinado Estado-nação – parcela que, para que o regime
respectivo possa ser considerado pelo menos como formalmente democrático, deve
atender, no mínimo, a dois pré-requisitos: possuir (ao menos em abstrato)
condições isonômicas de participação política e corresponder a pelo menos a
36 DELACAMPAGNE, C. A filosofia política hoje: 24.
24
maioria dos habitantes do território do Estado em tela. Essa concepção contrasta,
por exemplo, com aquelas de orientação mais à esquerda, nas quais ocorre a
assimilação integral dos aspectos sócio-econômicos aos políticos e ambos à noção
de democracia, chegando, no limite, a identificá-la com a apropriação coletiva,
direta e simultânea dos meios de produção e do comando da sociedade. É o que
surge, por exemplo, da interpretação das idéias marxianas feitas por Herbert
Marcuse e Erich Fromm:
A humanidade só se torna livre quando a perpetuação material da vida é função das aptidões e da felicidade de indivíduos associados.37
Primeiro, o homem produz de forma associativa, e não competitiva; ele produz racionalmente e de maneira não-alienada, equivalendo a dizer que mantém a produção sob seu controle, em vez de ser dirigido por ela como por uma força cega. Isso claramente exclui um conceito de socialismo onde o homem seja manobrado por uma burocracia, mesmo que esta governe toda a economia do Estado, em vez de apenas a de uma grande empresa. Quer dizer que o indivíduo participa ativamente do planejamento e da execução dos planos; significa, em síntese, a concretização da democracia política e industrial.38
Podemos por outro lado dizer que é um ponto comum às acepções antigas e
modernas, em suas diversas tendências,39 alguma forma de identificação do povo
como fonte originária de poder político. É possível então afirmar, focalizando os
elementos fundamentais e comuns a essas noções às quais nos referimos, que
democracia se identifica com um regime no qual o povo -o demos -detém a
37 MARCUSE, H. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social: 269. 38 FROMM, E. Conceito marxista do homem: 63. 39 Percorrendo distintas definições que podem ser aplicadas ao termo, Bobbio afirma que, em tempos mais recentes, ainda que não haja propriamente uma ultrapassagem pela democracia das formas tradicionais representativas, pode ser identificada uma passagem da concepção que restringia a democracia a uma esfera estreitamente política, para concepções mais elásticas e abertas para a esfera social, nas quais o indivíduo é considerado... na multiplicidade de seus status, por exemplo de pai e de filho, de cônjuge, de empresário e de trabalhador, de professor e de estudante e até de pai de estudante, de médico e de doente, de oficial e de soldado , de administrador e de administrado, de produtor e de consumidor, de gestor de serviços públicos e de usuário etc.; em outras palavras, na extensão das formas de poder ascendente, que até então havia ocupado quase exclusivamente o campo da grande sociedade política (e das pequenas e muitas vezes politicamente irrelevantes associações voluntárias), ao campo da sociedade civil em suas várias articulações, da escola à fábrica. BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política: 156.
25
possibilidade de intervir, de algum modo e em alguma medida, sobre as decisões
que dizem respeito às suas condições sociais de existência. Isso pode implicar tanto
intervenção ativa constitutiva ou desconstitutiva de uma determinada situação
política, quanto aquiescência passiva a um determinado estado de coisas, aceito
como o que seria o melhor para a sociedade respectiva, dentro de uma concepção
compartilhada em um dado contexto por um conjunto majoritário de atores sociais
- mas supondo sempre, ainda no caso dessa segunda alternativa, a existência de
algum modo de se passar à primeira. Também nos permite aduzir que democracia
é um termo ao qual podemos acoplar uma noção básica de conteúdo variável.
Assim se, por exemplo, o considerarmos na medida em que o fazem O’Donnell e
Dahl, esse conteúdo expressará o mesmo conjunto de valores integrativos que
organizam o comando na sociedade liberal, tendo assim pouca ou nenhuma
relevância no sentido de produzir alterações fundamentais nas condições sociais de
existência do povo. Por outro lado, se levarmos a noção de democracia ao limite de
suas possibilidades e conseqüências potencialmente mais radicais, não seria
absurdo dizer que esse é o regime no qual a multidão poderia ultrapassar a própria
idéia política de povo, naquilo que tem de confinamento a um determinado sistema
de autoridade estatal, ou mesmo a qualquer sistema de autoridade. Todas essas
considerações também nos permitem afirmar que qualquer que seja o conteúdo
com o qual se preencha a noção de democracia, esta não será transcendental à
sociedade considerada, mas residirá em fatores que são imanentes às suas próprias
condições históricas.
Dessa maneira, se o pressuposto exordial da democracia é a existência de
seres humanos organizados em sociedade e se o seu princípio básico – condição de
sua existência, enquanto impulso que a leva da noção abstrata à vida concreta - é
axiológico, como aponta Roland Corbisier, correspondendo à exigência ou à
aspiração fundamental do ser humano de tornar-se senhor do próprio destino,40
40 CORBISIER, R. Enciclopédia Filosófica.: 176.
26
seu núcleo será o exercício social e portanto coletivo da liberdade e sua
propriedade política precípua será, como dissemos, a ação do povo41 sobre suas
condições sociais concretas de existência. A questão política primordial relacionada
com a democracia consiste então em discernir se é possível afirmar que o povo - ou
as multidões - detém de fato, e em que medida, no movimento contínuo de
constituição do poder, o poder de constituí-lo.
Por outro lado, se constitucionalismo é movimento, a democracia, na
plenitude de suas potencialidades, pode ser definida como um princípio constitutivo
ilimitado do poder político, e nesse caso como a sua res gestae absoluta. Assim
considerada, em todos os casos nos quais se intenta conter o impulso democrático,
a finalidade em última análise é limitar aquilo que é potencialmente ilimitado,
detendo seu movimento e assim impedindo a abertura total do contexto político,
que dele resultaria. Podemos então concluir este capítulo dizendo que o problema
central do poder político consistirá sempre no seu movimento e na sua localização
em algum ponto entre duas alternativas fundamentais: o controle pelo povo, ou o
controle do povo. Ou, no limite, o controle pela ou da multidão.
É o que veremos nos próximos capítulos, cujos conteúdos respectivos estão
conectados na origem das instituições políticas hoje existentes.
41 Ou, para além do povo, das multidões, no sentido dado a estas na nota 27 supra.
Capítulo 2
A democracia em sua origem:
os valores integrativos da polis e a invenção da política
O momento inaugural do nosso trabalho é o próprio momento inaugural da
democracia na história. Num singular episódio, restrito no tempo e no espaço -
principalmente à Atenas de entre três e cinco séculos antes de Cristo - foi
desenvolvida pela primeira vez a noção de democracia, e inventado o termo
respectivo. É, portanto, o caso original, o protótipo, por assim dizer, que pode nos
fornecer uma referência útil para fins comparativos com os casos que o sucederam.
Isso não significa uma eleição arbitrária de paradigma, ou a elevação dessa noção
primeira à categoria das utopias, mas apenas a utilização consciente dessa estréia
histórica como o marco a partir do qual serão analisados os momentos
subseqüentes que elegemos como objeto de estudo, atentando-se sempre às
peculiaridades de cada um.
Nessa ordem de idéias, entendemos não ser suficiente apresentar um mero
fotograma das instituições políticas das assim chamadas cidades-Estado gregas,
sempre tendo Atenas no pólo principal. Isso não apenas por se tratar precisamente
do caso original, mas principalmente porque essas instituições não representavam
apenas uma configuração específica do poder político, mas estavam inseridas em
uma concepção integral e extremamente particular do mundo humano, de uma tal
maneira que nos parecem inextricavelmente ligadas e ininteligíveis se divorciadas
uma da outra. Em sendo assim, procuraremos articular o desenho político da
democracia helênica com o desenvolvimento daquilo que, para o objeto de nosso
estudo, são os traços mais significativos daquela concepção. Por razões de concisão
e objetividade, dentro do amplíssimo âmbito do pensamento grego, iremos nos ater
apenas àquele mais diretamente relacionado com a noção e a prática originais da
democracia; não faremos, por exemplo, referências explícitas ao pensamento de
28
Platão, cuja concepção política tende a resultar em uma espécie de governo
aristocrático - ainda que seja de uma aristocracia do espírito.
O ambiente histórico
Consoante observa Jean-Pierre Vernant, quando, aproximadamente entre 900-750
a.C., após séculos de interrupção, os gregos da Europa e da Jônia retomaram suas
relações com o que, usualmente, denominar-se-ia o Oriente, redescobriram nessas
sociedades aspectos do seu próprio passado do que hoje se chama a Idade do
Bronze; porém, rejeitaram o caminho da imitação e da assimilação, tomado pelos
antigos micênios, que os haviam precedido. Ao contrário: o povo helênico descobriu
na Ásia um Outro, que lhe permitiu adquirir uma mais aguda consciência de si, de
sua vida social, de suas formas de reflexão que lhes assinalaram a própria
originalidade, inextricavelmente ligada às formas comunais que se desenvolviam.42
Desse ponto de partida, atingiriam em poucos séculos a plenitude do
desenvolvimento da polis.
O termo polis compreendia, de um modo geral, a cidade e seu território,
mas o seu sentido se tornou muito mais profundo do que indicava a mera
abrangência espacial. A sua significação suplantou a de quaisquer outras formas de
existência coletiva, e, como nota Werner Jaeger, representou um princípio novo,
ainda quando baseada total ou parcialmente em princípios aristocráticos.43 Dela se
originaram os termos política (politiké) e político (politikos),44 e no seu horizonte
histórico deu-se a alvorada da democracia, numa evolução entrelaçada de saber e
ação prática na qual foi sendo a princípio operada na Cidade a desconcentração do
poder, do rei que o envergava unitariamente, para uma hierarquia de funções
sociais especializadas. Como ocorreu com a figura do polemarca, comandante do
Exército, e a dos arcontes, com suas funções judicantes, eleitos e renovados
42 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 10-11. 43 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 106. 44 Não estamos com isso querendo dizer, obviamente, que não existisse política antes do advento da sociedade grega; mas foram os gregos os primeiros a concebê-la como tal, dando-lhe o conteúdo que legaram à posteridade.
29
periodicamente. Essas funções demarcavam, ainda que entre traços religiosos
remanescentes, uma concepção de delegação do poder, da arché, como uma
decisão humana. E a massa da população, a multidão, a princípio não muito mais
que uma clientela da velha aristocracia guerreira, começava a ser, vez por outra,
consultada em assembléia, adquirindo importância crescente na cidade, moldando-
se cada vez mais como povo.
Emblemática dessas mudanças foi a transformação, no exército, do pólo das
virtudes guerreiras. Entre aristocratas e camponeses, uma classe intermediária de
aldeões livres era abastada o bastante para adquirir as armas e equipamentos
necessários ao serviço na infantaria pesada. Foram os hoplitas, combatentes de
linha, pesadamente armados, empregados, segundo o princípio da falange, em
formação cerrada, de acordo com uma lógica cujas virtudes tinham um caráter
coletivo que se opunha ao individualismo das virtudes aristocráticas dos hippeis. A
ética guerreira, ainda que sem por de lado certas virtudes básicas como a coragem,
transformara-se profundamente. No lugar da antiga aristeia, da superioridade
pessoal no combate singular, surgiu esse hoplita, cuja força residia na unidade do
conjunto, como destaca Vernant.45
Os hippeis e os hippobotes não deixaram, no entanto, de se constituir em
uma elite militar, além de serem, também, uma aristocracia da terra; mas essa
imagem de valor no combate, assim como o berço e a riqueza de bens de raiz iriam
ceder seu lugar como fatores determinantes da participação de direito na vida
pública, da mesma forma como os privilégios religiosos dos genos. No entanto,
ocorreu algo mais: as antigas virtudes militares aristocráticas terminaram por se
incorporar, modificadas, mas não elididas, à paidéia dos homens gregos -um ideal
educacional que consistia, como observa Jaeger, na estruturação da vida individual,
baseada em princípios e sistematizada de acordo com normas absolutas como mais
45 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 67-68.
30
alto fim da polis, integradas no seu ethos político, ao longo do processo que
cimentou a unidade da polis em torno de um centro de valores comuns.46
A evolução política da cidade, como destaca Vernant, foi permeada pelo
velho espírito de agón, de combate codificado e regrado, originário das práticas e
do ethos aristocráticos, transmutado na forma de luta oratória, de embate de
argumentos, tendo como palco a Agora, espaço público de debates dos problemas
de interesse comum, e a Hestia Koiné, lar público simbólico da comunidade política,
em relação com os muitos lares domésticos, à mesma distância aproximada das
famílias que constituíam a cidade, representando-as em seu conjunto, sem
distinções.47 A polis e o seu governo surgiram como uma questão de todos, e a
arché despiu-se de qualquer caráter exclusivista ou privado; os contendores que se
batiam através do discurso despontaram como iguais, acima das antigas
hierarquias sociais. A palavra emergiu, então, como o mais preeminente
instrumento de poder, não mais em um mero rito ou fórmula estanque, mas no
debate e na discussão, tendo como fundamento o exercício do contraditório e como
conteúdo a argumentação. Péricles situou bem a nova importância da linguagem e
do discurso, naquela novidade que era a polis, ao fazer a apologia dos guerreiros
mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso:
Sabemos conciliar o gosto pelo belo com a simplicidade, e o gosto pelos estudos com a energia. Usamos a riqueza para a ação e não para uma vã ostentação de palavras. Entre nós, não é vergonhoso reconhecer a pobreza; é-o, bem mais, não tentar evitá-la. Os mesmos homens podem dedicar-se a seus negócios particulares e aos do Estado; simples artesãos podem ter bastante compreensão das questões de política. Não consideramos o homem ocioso, senão somente aquele que é inútil. É por conta própria que decidimos nossos negócios e fazemos os cálculos exatos. Para nós, não é a palavra que é nociva a ação, mas o não informar-se pela palavra antes de se lançar à ação.48
Esse domínio público definiu a polis: um núcleo de interesses comuns,
tratados segundo práticas abertas, conduzidas à luz do dia, expondo aos olhos de
46 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 114. 47 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 49-51. 48 Apud. MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 11.
31
todos e à plena crítica os conhecimentos, valores e técnicas que as informam. Entre
a política e o logos, assinala Vernant, há, assim, relação estreita, vínculo recíproco.
A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma
consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua
função política,49 um patrimônio comum a um círculo cada vez mais amplo de
cidadãos. Estes, independentemente de suas diferenças de origem, classe e função,
alcançaram certa semelhança, uma comum-unidade; uma reciprocidade substituía
as relações sociais de submissão e domínio. A cidade e o seu governo, sendo uma
questão de todos, a todos definia como hómoioi, semelhantes, primeiramente, e,
depois, como isoi, iguais. Todos, como observa Vernant, concretamente
desnivelados no plano material-social, mas concretamente nivelados no plano
político, segundo uma lei comum de equilíbrio e igualdade, expressa, no século VI
a.C., pelo conceito de isonomia, participação comum no exercício do poder
político.50 Isso não foi obtido sem que se percorresse um caminho de conturbações
e fragmentações, tendo sido atingido, em grande parte, como forma de evitar que
se transformassem em fratura, causada pelo acirramento das tensões entre os
kaloi-kagathoi, a aristocracia bem nascida que concentrava a propriedade
territorial, e o povo da periferia que a alimentava.
A vida social foi sendo reorganizada, consoante a força de aspirações
comunitárias e igualitárias, num esforço renovatório que atuou nos planos religioso
e jurídico-político, buscando sempre conter a dynamis dos gene (os impulsos
alicerçados na hereditariedade aristocrática), refreando sua ambição e desejo de
poder, sob uma norma geral cogente que fosse aplicável, indistintamente, a todos,
como sublinha Vernant.51 Esse processo, notadamente nos tempos de Sólon e
Clístenes, foi a todos colocando num plano de igualdade, sob uma lei comum, a
qual atingiu o ponto no qual de sua elaboração e aplicação todos podiam participar,
49 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 54. 50 Idem: 65. 51 Idem: 68-69 e 77-79
32
nos tribunais e na assembléia. A multidão refundia-se cada vez mais em povo,
adquirindo, como aponta a helenista francesa Claude Mossé, professora da
Universidade de Paris-VIII, crescente importância como ator político, como se
verifica já à época de Drácon (últimos anos do século VII a.C.), quando surgiram as
primeiras medidas efetivas para substituir os direitos dos gene por normas comuns
a todos.52
Com o passar do tempo, o conceito de igualdade que se ia desenvolvendo
teve enriquecido o seu significado. Essa idéia caminhou da simples igualdade dos
que não eram iguais - ou seja, dos não-nobres - perante o juiz ou a lei, passou pela
participação ativa de todos na administração da justiça, atingiu a igualdade
constitucional dos votos de todos nos assuntos da polis e chegou à participação
igualitária de todos os cidadãos nos postos de direção, inicialmente em poder da
aristocracia - e, por conseguinte, na própria produção da lei. Assim, todos tinham a
perspectiva de participar, ativamente, das três dimensões do fenômeno jurídico: da
sujeição à autoridade do direito, da aplicação do direito e, finalmente, da sua
produção. Tão grande foi a penetração desses novos princípios na vida da polis
que, ao lado das palavras que passaram a designar os delitos que até hoje
conhecemos, como o assassínio, o rapto e o furto, cunharam os gregos o termo
abstrato dikaiosyne, surgido da progressiva intensificação do sentimento da justiça
e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa arete – termo do
qual nos ocuparemos mais adiante -, como observa Jaeger,53 justiça essa sempre
relacionada com um ideal de igualdade.
Herança intelectual e pensamento político
Entremeado com o processo de formação política dos povos helênicos, aquela
primeira Grécia forneceu ao mundo uma singular concentração de pensadores, e a
vitalidade da obra que deixaram está sobejamente demonstrada pelo fato de que
52 MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 13. 53 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 133.
33
muitas das discussões atuais, na filosofia ou na ciência política, giram, direta ou
indiretamente, em torno dos mesmos temas, quando não das mesmas idéias. Ainda
que a efervescência relativamente súbita desse pensar, tão concentrada no tempo
e no espaço, não deixe de ser espantosa, ela não se deu num plano puramente
abstrato, entre homens imersos em algum distante Olimpo intelectual, desligados
do contexto social no qual se inseriam. Pelo contrário: numa era que quase só
compreendia a sujeição e submissão irrestritas de cada povo a um único senhor
terreno, em meio ao terror ante uma plêiade de divindades muitas vezes brutais,
esse alvorecer espiritual brilhou numa luz conjunta com a da uma alvorada política
sem precedentes que ocorria na polis. Consoante Jaeger, mesmo em seu período
primitivo, a cultura grega esteve entrelaçada ao alicerce unitário da vida comunal;
a própria vida campesina, como também a sociedade aristocrática, nunca chegaram
a se desligar por completo da polis, tendo persistido desse modo desde as suas
origens até os seus derradeiros estágios.54 Na polis instalou-se e permaneceu a
direção espiritual da vida, e nele teve seu centro o apogeu da evolução grega.
Essa Razão que ali se desenvolvia não era apenas renovada, era original:
arrancou-se a si mesma da antiga mentalidade religiosa, ultrapassando o mito,
numa mutação decisiva que, como diz Vernant,
lança os fundamentos do regime da Polis e assegura por essa laicização do pensamento político o advento da filosofia.55
Simultaneamente:
No lugar do Rei cuja onipotência se exerce sem controle, sem limite, no recesso de seu palácio, a vida política grega pretende
54 Idem: 106-107. 55 Embora autores como Vernant e Jaeger empreguem a palavra Estado para referir-se à polis, trata-se evidentemente de um termo que foi inventado muito posteriormente, em um contexto histórico muito diferente, ao qual está associado o conteúdo respectivo. Esse fato não impede que se vejam similitudes entre o fenômeno político ao qual nos referimos como Estado e o fenômeno político ao qual os gregos se referiam como polis, mas a precisão terminológica desejável em um trabalho acadêmico implicaria uma discussão paralela acerca da extensão e do alcance das semelhanças e das diferenças, o que refoge aos objetivos do nosso trabalho em particular; desse modo, evitaremos utilizar a terminologia mais recente, salvo nas citações diretas em que esta última apareça. VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 11.
34
ser o objeto de um debate público, em plena luz do sol, na Ágora, da parte de cidadãos definidos como iguais e de quem o Estado é a questão comum: no lugar das antigas cosmogonias associadas a rituais reais e a mitos de soberania, um pensamento novo procura estabelecer a ordem do mundo em relações de simetria, de equilíbrio, de igualdade entre os diversos elementos que compõem o cosmos.56
A existência, após a derrocada do sistema palaciano, dos pólos opostos
representados pelas comunidades aldeãs, de um lado, e de outro a aristocracia
guerreira, como havia principalmente em Esparta - dentro da qual algumas
famílias, como privilégio de genos, detinham certos monopólios religiosos – havia
conduzido a um período inicial de desordens, e mesmo de violências. Mas é essa
mesma época turbulenta que propicia, a partir do início do século VII a.C., o
alvorecer de uma certa sabedoria (sophia), tendo em Atenas o seu epicentro; um
certo saber, como frisa Vernant, com transitividade não para o universo da
natureza, da phisis, mas para o dos homens, para os elementos que o compunham,
para as forças que nele atuavam, e de que forma as divisões que criavam poderiam
ser convertidas em harmonia e unidade.57 Ou seja, como, partindo dos conflitos,
atingir uma ordem humana na cidade, de modo a que, com base em princípios de
equilíbrio e harmonia, esse caos humano pudesse ser transformado em cosmos.
Ainda que o corpo social fosse um composto de elementos heterogêneos, era
preciso operar sua mistura e fusão no universo da polis, articulando a
heterogeneidade, sem suprimi-la, através de sua integração numa vida de valores
comuns. A questão central era, portanto, como retirar, no plano social, a unidade
da multiplicidade e a multiplicidade da unidade. Essa trajetória não foi fácil e livre
de acidentes, e também não foi simples e retilínea, mas foi, desde o início, marcada
pela renovação dos termos em que antes se colocavam as questões relativas às
formas e componentes do poder, indo muito além das antigas concepções
micênicas do soberano.
56 Ibidem. 57 Idem: 43.
35
Estreitamente ligado à evolução política da cidade, há um tema cuja
natureza e persistência na história da formação grega o aponta como de especial
relevância, que é o da arete. Essa palavra encerra um ideal que Jaeger observa
remontar aos tempos mais antigos, não havendo, em nosso idioma, um termo que
lhe seja exatamente equivalente. Mas, como assinala Jaeger,
a palavra virtude, em sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega.58
Em sua evolução, esse conceito migrou dos valores guerreiros dos tempos
homéricos, cingidos à condição de virtude geral ligada à própria condição de
cidadão, para uma concepção da realização do homem político, dentro da nova
polis, um novo cosmos político-jurídico, como aquele que obedece à lei e por ela se
regula, além de também na guerra cumprir o seu dever, em plano de igualdade,
tanto subordinativa como participativa, com todos os outros cidadãos. Assim foram
englobadas e superadas as aretai anteriores, de origem aristocrática, e lançada a
base de um princípio geral de justiça na sociedade da polis, como observa Jaeger.59
A esse novo ideal político, surgido da consciência jurídica que se desenvolvia, até
mesmo a aristocracia teve que se submeter. Não mais era, portanto, a mesma
aristocracia; a dike, termo que implica a idéia de direito enquanto cumprimento da
justiça, pilar sobre o qual passou a erigir-se a vida pública, era fator de igualação
de grandes e pequenos. Desde o momento em que se julgou serem as leis escritas,
forjadas na vida comunitária da polis pelo próprio desejo de justiça que nela se
desenvolveu, um critério infalível do justo e do injusto, a nova dikayosine tornou-
se, ainda segundo Jaeger, a arete por excelência, substituindo a coragem no centro
desse elemento ético, como pólo central de todas as outras excelências que um
homem pudesse ter.60 O ideal antigo e livre da arete heróica se converteu desse
modo em rigoroso dever para com a polis, ao qual estavam sem exceção
58 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 25. 59 Idem: 137-138. 60 Idem: 139.
36
submetidos todos os cidadãos. Esses fatores se conjugaram na base da nova
Cidade e de sua constituição política, ou seja, da polis e da sua politeia.
Se a formação e a organização política da polis, como aqui referidas por nós,
aparentam estar num plano um tanto idealizado, isso se deve a que a profunda
influência por ela exercida na vida social e dos indivíduos adveio, precisamente, da
idealidade do pensamento sobre o qual foi construída. Tratava-se de uma filosofia
que não era apenas um eco abstrato em um espaço vazio, mas que estava
profundamente integrada ao contexto da cultura grega, de uma tal maneira que
uma não pode ser compreendida desligada da outra. Esse impulso racional permeia
a evolução do pensamento grego e interliga desde sua astronomia, liberada das
amarras míticas, até o cosmos humano e político da cidade.
Nesse sentido é o exemplo de Anaximandro, o qual, avançando no caminho
da abstração dissociada do experimentalismo tanto quanto do mito, aplicando a
noção do kratos, do domínio de um sobre o outro, falou do ápeiron, o princípio
universal, ilimitado, que sempre existiu, sendo arché de todas as coisas, a tudo
envolvendo (periechein) e governando (kybernan), situando o cosmos num espaço
matematizado constituído por relações puramente geométricas.61 Esse pensamento
cosmológico está pleno de concepções políticas: nele, os elementos devem ser
definidos por sua oposição recíproca, sendo, assim, necessário que estejam em
relação de igualdade uns com os outros (isázei aei tanantia), ou em igualdade de
poder (isotes tes dynámeos), substituindo a ordem antiga na qual os elementos,
nos mitos, a sustinham sob sua autoridade, por uma ordem não mais
hierarquizada, mas fundada no equilíbrio entre potências iguais, que não podem
dominar-se reciprocamente, sob pena de destruição do cosmos. Essa organização
cosmológica, construída a partir de um princípio fundamental da igualdade, vê o
universo estruturado de acordo com o jogo de múltiplas razões regidas pela
isonomia, compreendendo o cosmos como uma imagem dos poderes plurais em
61 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 131.
37
ação na polis democrática. A primazia desse princípio, que vemos no pensamento
de Anaximandro - o qual, como mostra Jaeger, foi precursor em relação a muitos
outros autores gregos importantes que o sucederam -62 funda a permanência de
uma ordem igualitária, tendo como base a reciprocidade das relações, impondo-
lhes uma lei comum. Assim, como assinala Vernant, nesse mundo
constituído por dynámeis opostas e incessantemente em conflito... as potências elementares associam-se, coordenam-se segundo uma oscilação regular, para compor, apesar de sua multiplicidade e de sua diversidade, um cosmos único.63
Dos céus, vinha também à terra a concepção de ordem isonômica entre
potências: ainda segundo Vernant, os primeiros urbanistas da Cidade, como
Hipodamo de Mileto, eram simultaneamente teóricos políticos.64 A própria
espacialização do urbano é um aspecto do esforço geral de ordenação e
racionalização do mundo humano: o kratos,a arché e a dynasteia eram situadas no
centro (es meson) desse cosmos, a igual distância de seus extremos, como um
ponto fixo de equilíbrio. A Agora, o centro físico e espiritual desse espaço comum e
público, igualitário e simétrico, define os que nela ingressam como isoi, iguais,
relacionado-se uns com os outros em reciprocidade nesse espaço laicizado, feito
para a confrontação, o debate, a argumentação.65 Tal era a surpreendente
correspondência estrutural que ia das concepções urbanísticas até as físico-
cosmológicas e entre estas e as concepções políticas dos gregos - entre suas
estruturas sociais e mentais. Sobre esse alicerce, construíram os gregos na polis,
no lugar do phobos, o temor que curva os homens à obediência, a peithó, a força
de persuasão, a ser exercida por meio da palavra e aberta igualmente a todos os
cidadãos, perante sua Assembléia.66
62 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 197-203. 63 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 133. 64 Idem: 135-136. 65 Ibidem. 66 Na esteira de sua evolução, a polis do século V a.C. viu nascer um movimento educativo que não somente o marcou, como também os séculos subseqüentes: o movimento sofístico, de caráter político-pedagógico, vinculado a necessidades profundas da Cidade criadas pelo seu próprio caminhar, e em cujo conteúdo
38
Nesse cosmos político-jurídico, a virtude dos cidadãos consistia na livre
submissão de todos, sem quaisquer distinções, à nova autoridade da lei, erigida em
ethos definitivo da Cidade e garantia universal dos princípios ideais da vida, através
da participação de todos na existência comum. A polis era a fonte de todas as
normas existenciais válidas, medindo-se o valor do homem e de sua conduta tão
somente pelo benefício ou malefício que trouxesse à Cidade. Impunha-se a seus
cidadãos vigorosa e implacavelmente, e, expressando-se através da lei -que se
converteu em rei - por meio dela centralizava as forças e impulsos divergentes, e,
mais ainda, atingia todos os aspectos da vida moral e privada. Se nesse sentido é
verdade, como aponta Fustel de Coulanges,67 que a polis exigia muito, talvez,
mesmo, tudo, também é verdade que dava muito. Como destaca Jaeger, a Cidade
havia se tornado, mais do que uma unidade política, o repositório dos mais
elevados bens da vida humana, os quais, a um só tempo, concentrava e repartia
havia um impulso de relativização geral de todas as coisas. De modo um tanto parecido com o que seria visto muito mais tarde nos utilitaristas ingleses, o racionalismo profundamente individualista e pragmático típico dos sofistas, sobressai na crua afirmação de Antifonte, segundo o qual existe apenas uma única norma natural de ação humana, representada pela utilidade e, basicamente, pelo desejo de alegria e de prazer.
A evolução da polis, conduzindo ao ingresso do demos na atividade política, fez surgirem muitos problemas novos – alguns dos quais permanecem até os dias de hoje, girando em torno da educação política dos homens, da formação dos dirigentes, e das questões da liberdade e da autoridade. Fazendo nascer a noção de democracia sobre o alicerce do debate aberto entre iguais e dilatando o poder decisório, em bases isonômicas, pelo corpo dos cidadãos, a Assembléia, que não podia mais ser vencida, deveria então ser convencida. Assim foram criadas as condições para, entre outras coisas, o surgimento da retoriké (termo derivado de retor, orador, e retoreia, eloqüência, discurso público). A técnica oratória, a percuciente construção das frases e o correto uso gramatical das palavras, constituíram a orthoepia. A questão não consistia em buscar verdades e demonstrá-las de alguma forma, mas na administração consciente das percepções do demos, o que definia então uma techné política. Górgias, no fragmento Elogio de Helena, demonstra bem essas potencialidades recém-inauguradas do discurso: A palavra é uma poderosa senhora que, embora dotada de um corpo muito pequeno e invisível, realiza as obras mais divinas; ela pode acabar com o temor, tirar a dor, suscitar a alegria e aumentar a compaixão. Quem a escuta é invadido por um calafrio de temor, por uma compaixão que arranca as lágrimas e deixa um ardente desejo de dor. Mas o fascínio divino que suscita a palavra é também gerador de prazer e pode liberar a dor. A força da sedução, acompanhada da opinião da alma, a seduz e persuade, e a transforma por meio de seu encanto. ASSMANN, S. J. As raízes do pensamento filosófico – os sofistas: s/ p. 67 COULANGES, Fustel de. S/ ref.: 248.
39
entre seus cidadãos -68 ainda que não de uma mesma maneira, já que não
chegaram a atingir a isonomia educacional plena, mas, mesmo assim,
compartilhados na concretude de sua existência política comum, indissociável de
suas existências individuais. No seu apogeu, não apenas inaugurou a experiência
política da lei e do direito, mas estruturou de modo integrado o ser do Homem e o
ser da polis, fundindo-os em uma síntese única. Educado no ethos da lei, é, como
ressalta Jaeger, uma fórmula que retratava, para o cidadão, a essência de sua
paidéia, e o próprio telos formacional da polis.69 A Cidade a todos formava.
Esses fatores foram fundamentais para o advento da democracia, através
das profundas mudanças na estrutura constitucional da polis realizadas
principalmente por Clístenes e Péricles, como veremos no próximo item deste
capítulo. Essa progressão, ainda que tenha atravessado sucessivas assimilações e
extensões da idéia de igualdade, não estava limitada, mesmo no seu primeiro
momento, à condição de um produto necessário das exigências de igualdade de
direitos e de leis escritas -as quais não são estranhas nem mesmo a regimes
oligárquicos ou monárquicos -mas caracterizou-se, em sua essência, como a
submissão da polis ao domínio não da lei, mas da massa dos cidadãos, como
sublinha Jaeger.70 No decorrer do tempo, a igualdade de todos sob e perante uma
lei comum, em cuja elaboração todos tinham a possibilidade de participar,
inaugurou e demarcou, na polis, uma condição fundamental para a emancipação
política do demos. Essa luta apaixonada pelo direito e pela obtenção da igualdade
dos indivíduos foi sintetizada por Heráclito – o povo deve lutar pela sua lei como
pelas suas muralhas –71 e encontrou, na ágora – centro físico da polis, e, por assim
dizer, templo do seu espírito político – seu maior símbolo. Assim se foi estruturando
a politeia, a qual, consoante Mossé, é o conjunto das leis e instituições que formam
68 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 146-147. 69 Idem: 142-143. 70 Idem: 136-137. 71 Ibidem.
40
a constituição de uma cidade, mas, igualmente, o Direito da cidade.72 Ou seja, era
a organização política da polis em sua totalidade.
Nesse ponto, cabe assinalar que, quando Renato Janine Ribeiro cita a
democracia como a tradição que se inicia na Grécia, passando por ser o regime dos
polloi, dos muitos e que essa multidão de pobres se mobiliza, sobretudo, pelo
desejo de ter, e o grande risco do regime em que ela prevalece é que oprima, com
seu peso, os mais ricos,73 não temos dúvidas com relação às duas primeiras
afirmações; mas, quanto a terceira, esse autor inverte os termos do problema, tal
como ele se apresentou na polis ática. A questão material da democracia grega em
sua origem, como em qualquer outra democracia, traz em seu interior uma questão
de desejos, o mesmo ocorrendo com o seu oposto, a tirania, mas não podendo, em
um e outro caso, serem reduzidas apenas a esse aspecto. Afirmar que o demos é
levado ao desejo de democracia pela sua própria hybris e que com isso, em caso de
êxito, possa oprimir os ricos é, em termos puramente ontológicos, o mesmo que
afirmar que os ricos seriam conduzidos à um regime oligárquico ou até mesmo
tirânico pela sua hybris e que com isso garantiriam condições para prosseguir
oprimindo e espoliando os mais pobres. Assim, ambos os desejos por assim dizer
se encontram e, por serem simétricos, se anulam no plano axiológico ao qual
pertencem. Dessa forma, não nos parece haver qualquer utilidade em discutir a
questão da democracia pelo ângulo motivacional do desejo, tanto por ser toda a
conduta humana baseada indistintamente nele, como porque implicaria transpor a
discussão do plano político material para o das questões metafísicas relacionadas à
natureza humana. O que havia de concreto naquela conturbada caminhada helênica
em direção à democracia, nos termos em que propõe Ribeiro, era a exploração
concreta dos polloi, dos muitos, pelos aristoi, os poucos, que encontrava sua
legitimação em mitos ancestrais e seu alicerce nas posições de proeminência
72 MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 159. 73 RIBEIRO, R. J. Democracia versus república: a questão do desejo nas lutas sociais: 13.
41
política nas quais buscavam se manter. Em face do que, encontraram os gregos
caminhos sinérgicos de ruptura, numa nova concepção do cosmos humano da polis,
e na integração isonômica de todos, polloi e aristoi, no interior da nova politeia.
O arranjo constitucional da democracia na polis
Entre os grandes legisladores gregos, Sólon, ainda que não fosse ele próprio um
democrata, já havia proposto, como sublinha Vernant, uma cidade numa
perspectiva de eunomia, de equilíbrio, um cosmos resultante da organização e do
ajuste racionais entre as forças sociais antagônicas e as atitudes humanas opostas,
inspirada na sophrosyne, a virtude do justo meio, sob uma lei comum e igual para
todos.74 Clístenes, por sua vez, foi mais além, propondo a materialização de um
ideal de isonomia mais amplo. Ao assim fazer, ainda que não tenha chegado a elidir
as diferenças materiais, criou, a partir dos últimos anos do século VI a.C.,
condições efetivas para a soberania popular, como destaca Mossé,75 de um modo
que definiu uma organização administrativa que respondia a uma vontade
deliberada de fusão, de unificação do corpo social.76
As condições para o advento da soberania popular em Atenas, criadas à
época de Clístenes, foram particularmente reforçadas pela reforma da Boulé. Esta,
como nota Mossé, viria a se tornar o órgão essencial da democracia ateniense,
passando de quatrocentos para quinhentos membros, designados pelas dez tribos
em que foram divididos os atenienses – cujos membros combatiam na guerra lado
a lado - na proporção de cinqüenta por tribo, formando um corpo
democraticamente escolhido pela sorte.77 Entre as atribuições da Boulé, contava-se
o exercício de uma superintendência sobre todos os negócios públicos, consoante
nos esclarece Wilson Accioli, professor de direito constitucional da Universidade do
74 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 90-91. 75 Estamos nos referindo, aqui, a todos os que detinham a condição de cidadãos. MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 23. 76 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 106. 77 MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 23.
42
Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Cândido Mendes,78 além do preparo das
sessões da Assembléia, a redação dos decretos e, após as reformas de Efialtes, o
desempenho das funções de mais alta corte de justiça.79
No que se refere ao desenvolvimento da estrutura normativa, as normas
eram consideradas segundo as características de sua elaboração; variavam-nas os
gregos entre leis fixas e regulamentos discricionários. A utilidade da lei derivava de
sua generalidade, embora, como observa Francis D. Wormuth, discordassem os
helênicos quanto ao resultado da clivagem virtudes/desvantagens dessa
generalidade.80 Em Atenas, segundo o mesmo autor, de um modo geral nem as leis
(nomoi) nem os decretos (psephismata) podiam se referir a indivíduos e situações
específicas, salvo em casos extraordinários.81 Isso ocorria, por exemplo, com uma
outra importante inovação, que, segundo Mossé, Aristóteles atribui a Clístenes, e
que contribuiu sobremaneira para a construção da constituição democrata: a
ostrakophoria, a lei sobre o ostracismo, segundo a qual o povo, reunido na
Assembléia, poderia aplicar uma pena de exílio por dez anos, a quem, no seu
entendimento, demonstrasse inclinação de instaurar uma tirania em seu próprio
benefício.82 Era também uma idéia central nas regulações gregas (fossem leis ou
decretos), serem elas prospectivas. Desse modo as consideravam autores tão
diferentes quanto Demóstenes, autor de violenta denúncia acerca da edição de
legislação retroativa, atribuindo-a aos interesses de oligarcas, e Platão, por pouco
que fosse afeito à democracia ateniense, para quem se tratavam de julgamentos
78 ACCIOLI, W. Instituições de direito constitucional: 46. 79 MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 23. 80 WORMUTH, F. D. The origins of modern constitucionalism: 10. 81 Ibidem. 82 Essa questão da generalidade ou não foi abordada por Aristóteles - para quem as normas legislativas deveriam ser prospectivas e gerais - em uma crítica à democracia, no sentido de que, segundo ele, nesse regime haveria uma tendência a substituição dos nomoi enquanto regulações de caráter geral por psephismata particularizados. MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 23.
43
dirigidos ao futuro. Wormuth,83 ao localizar as virtudes da generalidade legal, se
refere ao fato de que as leis são comumente identificadas, pelos que falam da
democracia, com esta última. Tiranos e oligarcas administrariam consoante seu
temperamento, ao passo que, nos Estados democráticos, a administração seria
acorde com leis estabelecidas, o elemento democrático na lei estando na eqüidade
que resulta de sua generalidade. Relativamente a esse aspecto, nós nada temos a
opor às virtudes da generalidade, mas é fato que mesmo os tiranos podem
outorgar legislações gerais, prospectivas e até mesmo igualitárias. O elemento
democrático, para nós, resulta de uma tripla comunhão: entre esses mesmos
fatores de que falamos, combinados com a natureza democrática do poder de
edição do ato normativo e também do modo de sua elaboração.
Já para Aristóteles, dentro da centralidade que conferia o estagirita à idéia
de lei em sua teoria das formas de governo, a natureza das leis seria correlata à da
respectiva constituição, de tal maneira que as formas verdadeiras seriam aquelas
situadas dentro de um escopo de leis justas, ao passo que as formas pervertidas –
que designa como tirania, oligarquia e democracia – de leis injustas. Dessa forma,
deixava evidente que a obediência às leis, por si só, não é suficiente para um bom
governo: é preciso que as leis sejam boas, no sentido de corresponderem à
constituição não pervertida da polis. Péricles, em meados do século V a.C., havia
acrescentado à essa equação jurídico-política, dentre outras coisas, um controle
rigoroso a ser exercido pela Boulé dos Quinhentos sobre os detentores das
magistraturas públicas, quando de suas investiduras assim como quando de suas
exonerações, através das prestações de contas respectivas.84
Um elemento pedagógico também foi agregado pelos gregos à sua
concepção da lei: segundo Jaeger, a lei é também uma introdução à filosofia, na
medida em que, entre os gregos, a sua criação era obra de uma personalidade
83 WORMUTH, F. D. The origins of modern constitucionalism: 11. 84 MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 38.
44
superior.85 As leis verdadeiras deveriam ser capazes de persuadir seus
destinatários. O legislador passava também a ser visto como um educador do seu
povo, muitas vezes ombreado ao poeta; às máximas da sabedoria poética, juntar-
se-iam as determinações da lei – ambas as atividades eram estritamente afins.86
Esse aspecto se soma à isonomia global dos cidadãos sob as leis, para conformar
uma noção da política como uma atividade formacional coletiva, e que nesse
sentido também supria um contentamento coletivo através das leis. Dentro dessa
concepção, o comando de um tirano, imposto pela força, não seria lei.
Essas nomoi ou leis estavam sujeitas a mudanças somente através de
revisão anual, pelos cidadãos reunidos em assembléia, na Ekklesia, a Assembléia
Geral de todos os cidadãos, a qual tinha o poder de decisão definitiva nos negócios
públicos, como nos informa Accioli,87 influindo inclusive nos aspectos legislativos.
Havia ainda os Nomothetai, os quais, como esclarece Mossé, eram magistrados
designados, a princípio excepcionalmente, para proceder à revisão das leis, tendo o
conselho de nomothetas, a partir do século IV a.C, se tornado permanente.88 Eram
então discutidas as propostas de revalidação de velhas nomoi ou a adoção de
novas, editando os nomothetas, ao final, regulação a favor de novas ou velhas leis.
Tal procedimento, como acentua Wormuth,89 sugere uma convenção de natureza
constitucional, com as nomoi sendo comparáveis, nesse contexto, as regulações
constitucionais e os psephismata à legislação estatutária. Um psephisma era
proposto pela Boulé ou Conselho dos Quinhentos; e era aprovado, com ou sem
emendas, pela assembléia de todos os cidadãos, a Ekklesia. Mas nenhum
psephisma seria considerado válido se inconsistente com um nomos. Na verdade,
dentro da centralidade da lei em sua politéia, as próprias leis deveriam conformar-
se ao conjunto das nomoi consideradas essenciais à polis. Qualquer cidadão possuía
85 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 143. 86 Ibidem. 87 ACCIOLI, W. Instituições de direito constitucional: 46. 88 MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 138. 89 WORMUTH, F. D. The origins of modern constitucionalism: 6.
45
legitimidade para proceder à argüição de defeito formal ou material de quaisquer
moções apresentadas, seja quanto a questões substanciais da nomos invocada,
seja por defeito formal, através da graphé paranomon -algo como uma proto-ação
de inconstitucionalidade - instituída, provavelmente, no século V a.C., após a época
de Sólon, como nos informa Accioli.90 Tanto Wormuth91 como o jurista grego Ilias
Arnaoutoglou, PhD em estudos clássicos pela Universidade de Glasgow,92 observam
que a graphé paranomon era também usada contra a propositura de um psephisma
inconsistente com um nomos. Além disso, era também vedada a propositura de
uma lei conflitante com outras já existentes, mesmo que estas últimas não
integrassem o conjunto das nomoi tidas como fundamentais, sem que as leis
preexistentes fossem previamente anuladas, o que, por sua vez, consoante
Arnaoutoglou, era argüível por meio da graphè nómon ne epitélion theînai.93
Por esses institutos verifica-se um cuidado com as eventuais alterações da
politéia que, de certa forma, é maior do que aqueles que encontramos nos regimes
atuais qualificados como democracias, ao exigir um duplo juízo, com uma discussão
acerca da anulação da lei já existente, preliminarmente à apreciação da proposta
de lei nova. Se isso, por um lado, pode ser enfocado segundo um viés conservador,
por outro pode também ser visto como uma forma de defesa contra eventuais
tentativas de usurpações ou detrações democráticas.94 Conforme aponta Accioli,95
90 ACCIOLI, W. Instituições de direito constitucional: 47. 91 WORMUTH, F. D. The origins of modern constitucionalism: 6-7. 92 ARNAUTOGLOU, I. Leis da Grécia Antiga: 102. 93 Ibidem. 94 Do alto grau de sedimentação das idéias e das práticas democráticas no acervo normativo da cidade-estado, podemos ver um eloqüente exemplo no seguinte nomos, datado 336 a.C.: Quando Frínico era arconte, a tribo de Leóntis liderou a nona pritania, e Queréstato, filho de Amínias, do demo de Acarnânia, era secretário; o presidente Menéstrato, do demo de Éxone submeteu esse decreto à votação; Êucrates, filho de Arstótimo, do demo do Pireu fez a proposta; Boa Fortuna do povo ateniense; os nomothétai decidiram; se alguém se revoltar com o intuito de instaurar um regime tirânico ou ajudar com esse fim ou abolir a democracia ou privar o povo ateniense de sua constituição, aquele que matar essa pessoa não precisará de purificação; e não é permitido aos membros do Areópago, enquanto a democracia em Atenas estiver suspensa, ir ao Areópago, sentar-se junto aos outros em uma sessão, tomar qualquer decisão sobre qualquer assunto; se qualquer membro do Areópago, durante o
46
com base em Hignett, além da graphé paranomon, havia ainda uma outra garantia
de índole semelhante, surgida após a revolução oligárquica de 411, como um outro
modo de prevenir a mudança constitucional, a qual consiste na cláusula do voto
parlamentar pelo qual os membros da Boulé comprometiam-se a não submeter à
votação qualquer proposição contrária às leis.
Ainda à época de Péricles, outro importante passo na direção da
consolidação democrática foi dado pela criação do misthos heliastikos, remuneração
das funções públicas que estimulava a efetiva participação do povo na vida política,
de vez que permitia aos pobres fazê-lo sem temor de deixar suas atividades
laborais; mais tarde, surgiu ainda o misthos ekklesiasticos, uma remuneração pela
presença na Assembléia, do qual dirá Aristóteles, em sua Constituição de Atenas,
que a fez transformar-se em refúgio de todos os indigentes da Cidade, interessados
apenas na pequena quantia paga, apontando ainda o estagirita que, ao tempo da
democracia ateniense, a soberania estava nas mãos dos pobres, maioria dos
presentes na Assembléia. Tucídides, o historiador, enfocando os princípios de
governo popular atribuídos a Péricles, sintetiza com bastante clareza:
Nossa politeia nada tem que invejar às leis que regem nossos vizinhos; longe de imitar os outros, damos o exemplo a seguir. Entre nós, o Estado é administrado no interesse da massa e não no de uma minoria, daí o nome que nosso regime adotou: democracia. No que concerne aos diferentes indivíduos, a igualdade é assegurada a todos pelas leis; mas, no tocante à participação na vida pública, cada um obtém o crédito em função do mérito, e a classe a que pertença importa menos que seu valor pessoal; enfim, estando em condições de prestar serviço à cidade, ninguém é cerceado pela pobreza ou pela obscuridade de sua condição social.96
período em que a democracia estiver suspensa em Atenas, for ao Areópago ou sentar-se junto aos outros em uma sessão ou tomar qualquer decisão, ele será privado dos direitos civis, ele e seus descendentes, e seus bens serão confiscados e um décimo passará a pertencer às deusas; e o secretário do conselho deverá fazer a inscrição dessa lei em duas pedras estelas para que sejam colocadas, uma à entrada do Areópago, que leva ao salão da assembléia, e a segunda na assembléia do povo. O tesoureiro pagará vinte dracmas para a inscrição das estelas, soma a ser retirada dos fundos reservados para os decretos. Idem: 87. 95 ACCIOLI, W. Instituições de direito constitucional: 47. 96 MOSSÉ, C. Atenas: a história de uma democracia: 37-38.
47
Consoante Mossé,97 sob Clístenes são ainda dignos de nota, a obrigação
imposta aos membros da Boulé, no sentido de um juramento que os levava à
condição de guardiães perpétuos da constituição, e o colégio de dez estrategos,
eleitos pela totalidade do povo, na proporção de um por tribo, os quais eram chefes
militares, inicialmente sob o comando supremo do polemarco, mas cujas funções,
desde logo, alargaram-se para incorporar um papel de crescente importância na
política ateniense em geral.
De tudo o que foi dito se verifica que o conceito abstrato de isonomia
integrou-se na realidade da cidade e forneceu a base da democracia na polis,
institucionalizando-se de modo profundo em sua estrutura política, amalgamado
com a nova experiência política da lei e do direito que ocupava o centro do
pensamento, naquela primeira Grécia. Como assinala Vernant:
Segundo um ciclo regulamentado, a soberania passa de um grupo a outro, de um indivíduo a outro, de tal maneira que comandar e obedecer, em vez de se oporem como dois absolutos, tornam-se os dois termos inseparáveis de uma mesma relação reversível. Sob a lei de isonomia, o mundo social toma a forma de um cosmos circular e centrado em que cada cidadão, por ser semelhante a todos os outros, terá que percorrer a totalidade do circuito, ocupando e cedendo sucessivamente, segundo a ordem do tempo, todas as posições simétricas que compõem o espaço cívico.98
A equação democrática da polis e seu legado histórico
Não obstante a democracia, é bem verdade que a sociedade da polis utilizava-se de
trabalho escravo; mas também possuía muitos cidadãos livres que viviam do
trabalho de suas mãos. Do mesmo modo, é verdade que dependia de um
abastecimento contínuo de gêneros, que não podia produzir por si mesma em
quantidades suficientes, fator que contribuiu para a expansão de uma política
colonial que tem pouco a ver com idéias de democracia.99 Também é verdade que
conheceu suas revoluções oligárquicas, que condenou Sócrates à cicuta, e que
97 Idem: 23-24. 98 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 107. 99 O que poderia nos conduzir a uma reflexão sobre até que ponto uma certa estabilidade material é uma condição necessária (ainda que obviamente não suficiente) para a democracia política.
48
finalmente pereceu pelas mãos de Filipe, em Queronéia. Mas também é verdade
que, pela primeira vez na história, uma sociedade teve no Homem o centro do seu
pensamento, e a comunidade cívica como centro de sua atividade – o problema
político estava no cerne de suas ações e discussões. Como também é verdade não
que tenham descoberto a Razão, mas que construíram uma, orientada não para o
conhecimento e o domínio do espaço físico, mas para a exploração do espaço
humano.
O pensamento político grego, o qual não separava o homem do cidadão,
considerando a phrónesis, a reflexão, como o privilégio dos homens livres, que
exercem sua razão correlativamente a seus direitos cívicos, proporcionou aos
cidadãos um sistema referencial único dentro do qual concebiam suas relações
recíprocas, ao mesmo tempo em que projetou seus processos sobre outros
domínios; a célebre definição de Aristóteles do homem como animal político, zoom
politikon, está em perfeito acordo com a origem e a evolução dessa concepção.
Como dissemos, suas existências se integravam indissociavelmente à da polis,a
qual em seu apogeu se tornou a bios politikos, uma outra vida na qual se
realizavam todas as vidas. Como nota Vernant, referindo-se a Aristóteles, se o
homo sapiens é a seus olhos um homo politicus, é que a própria Razão, em sua
essência, é política.100 A polis grega, como mostramos acima, foi, no auge de sua
democracia, um cosmos integrativo, o qual criava e mantinha uma comunidade na
qual a ação de todos os cidadãos conjugava-se isonomicamente como atividade
constitucional de produção e conservação do todo. Dela nasceram a concepção de
política e a primeira noção de democracia, e de uma democracia direta. Seu grande
papel histórico, por assim dizer, consistiu em inaugurar um processo de formação
ético-política dos homens, consciente e participativa, transformando o habitante ou
100 VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego: 141.
49
súdito no cidadão que a própria polis criara, definindo-se um ao outro.101 Tais eram
as qualidades que formavam e informavam a politeia.
Para Sérgio Cardoso,102 no entanto, o termo politeia é freqüentemente
tomado, nas discussões dos clássicos, na acepção de república, como um regime
determinado de governo, independentemente de ser desenhado com traços
aristocráticos ou democráticos, ocorrendo substancial alteração de seu sentido,
quando tomado não como um regime específico, mas como gênero das
constituições políticas, o que assinala como o oposto às constituições despóticas.
Cardoso busca operar uma reconstrução histórica das origens dessa discussão
quanto à determinação da qualidade ou da natureza da constituição da polis,a
partir da politeia, enquanto ordenação dos poderes dessa polis, relativamente às
magistraturas de Estado. Com base em Aristóteles, sustenta que a politeia é um
princípio de governo misto, uma integração de antagonismos, destinada à
realização dos fins da comunidade política, pela submissão dos interesses diversos
das classes constitutivas da polis aos interesses do todo. Tal seria o princípio formal
da unidade da polis que esse governo constitucional deveria realizar. Disso estaria
a defluir a necessidade da existência de uma ampla classe média, a mais apta para
as magistraturas de governo, condição da produção e reprodução desse sistema
político. A parte o problema de determinar se havia de fato um seguimento social
na polis que pudesse ser designado com propriedade como classe média, uma
terminologia de surgimento e significado modernos, os princípios de governo misto
em cuja defesa Cardoso parece inclinar-se são aparentemente mais inspirados em
Montesquieu, do qual trataremos no capítulo V, do que naquilo que existiu no
apogeu da polis ática.
101 Como destaca Jaeger, é importante não esquecer que foi criada pelos Gregos e deles provém diretamente não só a idéia da cultura geral ético-política, na qual reconhecemos a origem da nossa formação humanista, mas também a chamada formação realista, que em parte impugna e em parte compete com aquela. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego: 369. 102 CARDOSO, S. Que república? Notas sobre a tradição do governo misto: 31-48.
50
O legado que o auge da democracia na polis deixou na história, foi o
desenvolvimento de um princípio de integração isonômica que inseria a totalidade
dos cidadãos em um mesmo plano político tanto participativo quanto subordinativo.
Com isso, concordamos com o historiador das idéias políticas George Sabine, no
sentido de que os atenienses criaram meios excepcionais de promover a
responsabilidade dos magistrados e funcionários perante o conjunto dos cidadãos e
os manterem submetidos ao controle destes últimos.103 Concordamos também com
Sabine no sentido de que os atenienses articularam seus órgãos governativos como
corpos suficientemente amplos, tanto em sua configuração como na escolha de
seus membros, para que funcionassem como uma espécie de corte transversal do
corpo de cidadãos,104 constantemente atualizado por meio da brevidade dos
mandatos e da proibição de reeleição que em geral existia. Mas foram além disso,
ao criarem, com a Ekklesia, um órgão de exercício global e imediato do poder pelo
corpo dos cidadãos. Assim o fizeram porque criaram não uma constituição mista,
no sentido clássico de verticalizar distintas formas de representação política
correspondentes a diferentes seguimentos sociais, mas uma constituição horizontal,
que radicalizava o conceito de isonomia política, ao integrar a participação no poder
em um conjunto de formas cuja característica principal era a inclusividade - todas
elas pré-condicionadas ao que hoje chamaríamos de cidadania, mas nenhuma delas
condicionada aos seguimentos sociais a que pertencessem os cidadãos.
A constituição mista, articulação institucional do controle recíproco das
forças e poderes, como a vê Negri,105 foi inaugurada na história pela Roma
republicana. Essa primeira inserção do componente popular ou democrático no
interior de um equilíbrio entre forças cuja oposição é constitucionalmente
articulada, que Políbios descreve tão bem e que foi referência marcante tanto para
103 SABINE, George H.. Historia de la Teoria Política: 17. 104 Idem: 17-18. 105 NEGRI, A. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade: 95.
51
autores como para líderes influentes no curso das revoluções atlânticas dos séculos
XVII e XVIII, será o objeto do capítulo a seguir.
Capítulo 3
A república romana e a articulação institucional das
potências políticas: o nascimento da constituição mista
No capítulo anterior, falamos do que, se considerado exclusivamente pelo ângulo da
participação, poderia ser definido como uma comunidade política em duas
dimensões: a dos que participavam, todos colocados, no apogeu democrático da
polis, em um plano político único independentemente de suas condições sócio-
econômicas, e a daqueles que, ainda que possuindo diferentes status legais e
sociais, como as mulheres, os escravos e os metecos, não tinham participação
política (exceto, é claro, nos aspectos subordinativos). Entre os cidadãos, assim
considerados aqueles que detinham tal direito, a integralidade e a horizontalidade
de sua inclusão participativa compunham-lhes a noção de democracia. Ocuparemo-
nos, agora, da Roma republicana, uma sociedade onde a integração política se dava
em planos institucionais distintos, representativos de diferentes seguimentos
sociais, articulando, dentre estes, os elementos que lhe podem ser apontados como
democráticos.
O ambiente histórico
Roma, localizada no confim setentrional do Latium, a Grande Planície, fundada
pelas populações que lá habitavam, segundo indicam o Ministro do Supremo
Tribunal Federal José Carlos Moreira Alves,F
106F professor de direito romano da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de Brasília e o historiador
norte-americano Alfred Duggan,F
107F tinha as características habituais de muitas
outras cidades-estado da costa leste do Mediterrâneo. Dentre estas sobressaem, no
caso romano, a agricultura, imprescindível à sua sobrevivência, e nesse mesmo
sentido um aspecto marcadamente militar voltado para a defesa da respectiva
106 ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 7. 107 DUGGAN, A. apud ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 5.
53
população contra a ameaça sempre presente de derrota para outros povos, e sua
conseqüente redução à escravidão ou mesmo sua morte. Sendo a guerra a
atividade principal em Roma, como assinala Duggan,F
108F todos os cidadãos estavam
obrigados ao serviço militar, e freqüentemente armavam-se para formar nas fileiras
e exercitarem-se, mesmo em tempos de paz. Ainda segundo o mesmo autor, a
cidadania enquanto pertença reconhecida a essa comunidade era um dom
valioso.F
109F
Essa cidade, em cujo interior a ninguém era permitido portar armas, em
cujo pátio comum, o Fórum, ocorriam os grandes debates públicos e em cujo
coração comum ardia o fogo perpétuo mantido aceso pelas sacerdotisas de Vesta,
foi assim desde o início uma comunidade marcada pela agricultura e principalmente
pela guerra. Sendo portanto seus cidadãos principalmente agricultores, que são
também soldados constantemente chamados à batalha, as atividades práticas e a
orientação pragmática do pensamento e da sua atividade tendem a predominar
sobre atitudes mais espirituais ou predominantemente intelectuais, e o
desenvolvimento de Roma orientou-se por essa linha, não exibindo aquele brilho
próprio e característico das peculiaríssimas condições em que se desenvolveu a
polis ática. Como é cediço, a relativa sofisticação da cultura romana foi atingida em
grande parte por absorção de outros povos mediante conquista militar, como
ocorreu, por exemplo, com os etruscos, os cartagineses e os gregos; não obstante,
no momento da transição da realeza para a república, a fase de maior expansão
militar romana ainda não havia sido iniciada.
A forma de governo inicial de Roma foi a realeza, com o título de rei
outorgando o comando na guerra e muitas competências administrativas em
tempos de paz. Segundo Duggan, o último dos reis, Tarquínio, o Soberbo, foi
108 Idem: 4-6. 109 Idem: 4.
54
banido de Roma em 510 a.C.,F
110F e com ele a própria realeza, por interferências
causadas na vida de seus súditos, que se tornaram inaceitáveis para estes
últimos.F
111F O período da realeza foi então sucedido pela fase republicana.
Herança intelectual e pensamento político
Nesse particular, pouco há a ser dito de Roma em sua transição da realeza para a
república. Não há grandes teorias políticas ou grandes teóricos políticos a registrar:
os romanos procederam, por assim dizer, mediante tentativa e erro, na base da
busca de soluções práticas para problemas concretos. É sem dúvida sintomático
disso que o maior teórico de sua república não tenha sido um romano, mas um
grego, Políbios, um observador erudito que se dedicou a analisá-la, sem intervir
diretamente em seu curso. Sobre essa análise iremos nos deter mais adiante, ao
nos debruçarmos sobre o funcionamento do arranjo constitucional da Roma
republicana.
A corrente de pensamento politicamente mais relevante que podemos
mencionar em Roma é a estóica (ou neo-estóica) – ainda que não tenha se
preocupado com nenhum sistema ou estrutura de governo propriamente ditas.
Como assinala Sabine, o estoicismo fora originalmente a última grande escola de
pensamento grego, tendo suas raízes mais ou menos no início da fase de declínio
da polis, quando surgiu originalmente como um ramo do cinismo, surgida pouco
antes de 300 a.C.F
112F Num aspecto fundamental, seu desenvolvimento se deu como
o das outras filosofias pós-aristotélicas, buscando produzir a autarquia e o bem-
estar individual, delas diferindo por pregar o seu alcance através de virtudes como
a resolução, a fortaleza, a devoção ao dever e indiferença ao prazer; crendo
firmemente no poder da providência divina e na dependência humana desse poder
110 É possível, no entanto, segundo Alves, que o processo tenha sido mais lento, desenrolando-se de 510 até aproximadamente meados do século IV. Idem: 14. 111 Idem: 7. 112 SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política: 116.
55
superior.F
113F O estoicismo alternava ideais éticos entre um ascetismo individual
sobreposto aos interesses humanos comuns e a exaltação do homem de ação,
nutrindo ainda uma convicção religiosa acerca da perfeição e unicidade da natureza
e da existência de uma ordem moral, sendo o homem um ator desempenhando um
papel designado por Deus, ao qual, portanto, fosse importante ou trivial, deveria
resignar-se e desempenhá-lo bem.F
114F
Ainda consoante Sabine,F
115F em Roma o estoicismo fundamentava a escola
do direito natural, definindo uma equação de cidadania no sentido de que todos os
homens seriam de alguma forma iguais, não do ponto de vista de sua condição
material ou social, mas ao menos em uma certa medida de dignidade e respeito,
ainda que sejam apenas escravos. Implicava uma concepção ética do Estado,
segundo a qual este seria uma comunidade moral de um povo, reunido por um
acordo comum a respeito do direito e que se associam em função da utilidade,
antecipando desse modo algo tanto do contratualismo como do utilitarismo
ingleses, que apareceriam como escolas de pensamento entre os séculos XVI e
início do século XIX de nossa era. Segundo esses princípios, denominava Marco
Túlio Cícero, que além de político e jurista foi – como Sêneca depois dele – um dos
maiores próceres do estoicismo em Roma, o que hoje chamamos de Estado como
res populi ou res publica, um corpo ou possessão comum de todos os seus
cidadãos, desiguais materialmente, porém iguais daquele ponto de vista ético. A
autoridade do Estado sobre o povo, dentro dessa concepção, surge do próprio
poder coletivo deste último.F
116F
Mesmo sem atingir a profundidade e acuidade das concepções gregas acerca
da relação entre o desenvolvimento superior do homem e sua inserção política na
cidade, os estóicos romanos derivavam de suas idéias de justiça natural e
113 Idem: 118-119. 114 Ibidem. 115 Idem: 126-128. 116 Idem: 130-131.
56
comunidade universal a existência de certas normas de moral, justiça e
racionalidade de conduta igualmente válidas para todos os homens,
independentemente de promulgação por qualquer legislador humano. Tanto o
Estado como o direito, estariam submetidos à lei natural, que seria a lei moral e a
própria lei da divindade, transcendente às instituições humanas. Com isso se
configurava uma tentativa de erigir o constitucionalismo sobre fatores inatos,
intrínsecos à natureza,F
117F por sobre o que seria a lei natural, a qual,
desnecessitando de promulgação legislativa, fazia esta última haurir da primeira a
sua legitimidade. Mas o estoicismoF
118F não fazia reflexões específicas sobre a ação
ou sobre o papel político dos homens, seja enquanto indivíduos ou como
coletividades, ou sobre a ordem política, a qual era objeto de abordagem mais
como um ideal do que como organização concreta do exercício do domínio entre os
homens. A própria correlação da autoridade pública com o povo não conduz a
qualquer conseqüência que possa ser associada a noções de democracia, seja
direta ou representativa. Na verdade, não é dito nem quem deve falar em nome do
povo, nem por qual direito ou de que forma deveria fazê-lo, e nem mesmo quem,
exatamente, seria esse povo. Os valores construídos pelo pensamento estóico
configuravam, sobretudo, uma ética individual cujo horizonte era a satisfação moral
do próprio indivíduo, e o faziam de uma forma que poderia, facilmente, induzir ao
conformismo, e, no limite, até mesmo legitimar a ordem existente; não havia
117 Mais tarde, sobretudo na assim chamada Idade Média, com projeções na Idade Moderna (e até mesmo em nossos dias, em algumas correntes do direito internacional), o jusnaturalismo participou da idéia de que o direito e o governo estão enraizados no plano de direção da vida humana formulado pela divina providência.O resultado foi a concepção de um direito natural universal surgido desse governo divino e da natureza racional e social dos seres humanos, que não somente declarava a igualdade fundamental de todos – ainda que admitisse estarem concretamente desigualados em saber e em riqueza – enquanto possuidores da razão e capazes de discernir o honorável e digno, como também fazia os homens parecerem afins ao próprio Deus. Lançou, dessa forma, ao alicerces da constituição de um estado universal, o qual obrigaria de modo imutável a todos os homens e todas as nações, não podendo nenhuma legislação infringi-lo, sob pena de violar os preceitos universais de justiça contidos nessas idéias, segundo as quais ninguém, governante ou membro do povo, poderia converter o injusto em justo, assim considerados dentro da medida estabelecida pelo jusnaturalismo. 118 Assim como, antes dele, as escolas gregas do epicurismo e o cinismo.
57
sistema filosófico de origem grega que fosse mais apropriado para ser assimilado às
virtudes romanas tradicionais relacionadas ao domínio de si mesmo, à devoção ao
dever e ao espírito público.
O arranjo constitucional e a democracia
a) o desenho institucional da repúblicaF
119F
Pode-se dizer que a república romana foi organizada como uma estrutura
política voltada para impedir a concentração excessiva de poder, como a que havia
levado ao período despótico dos Tarquínios e ao fim da realeza. Foi concebida como
uma res publica, uma coisa de todos, mas construída a partir da estrutura social
preexistente em Roma, e não como uma democracia ao estilo da Agora. Não
obstante, a arquitetura constitucional era consideravelmente mais complexa em
relação àquela que havia existido na polis. Por outro lado, frente à contingência de
constituir uma nova forma de governo, os romanos -à semelhança do que mais
tarde ocorreria com os ingleses -, que tinham no apego aos usos, costumes e
tradições uma importante fonte constitucional, eram refratários à idéia de pôr
completamente de lado a forma antiga, desde que essa, ainda que com profundas
modificações, pudesse ser aproveitada. Conservaram, assim,
da constituição antiga o máximo possível: o Comício,F
120F a
graduação dos varões de acordo com suas posses – o que fazia
119 Os dados históricos constantes desta seção foram colhidos em ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 14-32, salvo quando expressamente indicados no texto outros autores. 120 Esses comícios, ou comícios por cúrias, eram uma assembléia convocada pelo rei, pelo interrex -um senador designado pelo Senado para governar, quando da vacância do cargo real, pelo prazo de cinco dias, entregando o poder, nas mesmas condições em que o recebeu, a outro senador, e assim por diante, até a escolha do novo rei -ou, ainda, pelo tribunus celerum, reunindo-se, na generalidade das vezes, no comitium, ao pé do Capitólio. É de notar que o alcance constitucional dessas assembléias era intrinsecamente limitado, não somente por não disporem da iniciativa de sua instalação, como também porque a competência que se lhes reconhecia, e dentro da qual conformavam sua ação, não era deliberativa, nem tinham disponibilidade sobre a pauta: cabia-lhes, tão somente, aprovar ou rejeitar as propostas de quem lhes presidisse. Nesses termos eram chamadas a se pronunciar sempre que, em casos concretos, se tratava de modificar a ordem legal da civitas, quanto a alteração do quadro das famílias, na derrogação da ordem legal da sucessão (testamento calatis comitis), na dispensa de pena em favor do condenado (provocatio ad populum) e na declaração de guerra, ou no rompimento de um tratado. Não há, porém, certeza quanto ao modo pelo qual aferia-se a vontade do povo; conjectura-se sobre se,
58
dos cavaleiros uma classe privilegiada -e o Senado que se reunia diariamente para pronunciar-se quanto ao andamento das questões.F
121F
Independentemente da incerteza existente sobre as magistraturas que
mediaram entre os períodos da realeza e republicano, o poder do Estado de forma
alguma se viu diminuído; foi, na verdade, multiplicado. Isso ocorreu pela
combinação de dois diferentes fatores: o primeiro, a criação de cargos públicos,
que implicou na simultânea criação das atribuições respectivas, alargando, de fato
e de direito, o campo de atuação estatal; o segundo, o processo de legitimação das
diversas magistraturas. Estas últimas se desdobraram, a princípio, em dois
cônsules, como magistrados únicos, com atribuições militares, administrativas e
judiciárias, vindo, a pouco e pouco, a surgirem outras magistraturas, com
atribuições que foram sendo retiradas do consulado, não apenas como um
desenvolvimento interno do Estado romano, mas também pela ação constituinte da
plebe, em sua luta para obter o ingresso na magistratura, inicialmente uma
prerrogativa do patriciado. Essa ação, como conseqüência da revolta de 494 a.C, na
qual a plebe deixou Roma e se dirigiu ao Monte Sagrado, para ali fundar uma nova
cidade, fez ceder o patriciado, retornando então a plebe. Esta última obteve a
criação de duas magistraturas plebéias, o tribunato (dois, a princípio, depois
quatro, cinco e dez), revestido, por lei sagrada, de inviolabilidade pessoal e sendo
competente para vetar qualquer ato dos magistrados patrícios - ainda que sendo tal
veto passível de neutralização por outro tribuno mais dócil ao patriciado, como
observa Alves –F
122F e a edilidade da plebe, responsável pela execução das ordens
dos tribunos e pela guarda do templo de Ceres, onde se encontravam os arquivos
a semelhança do que ocorria na polis, o era por aclamação, ou se somente os patrícios votavam – neste último caso, individualmente nas cúrias, apurando-se, a seguir, a maioria em cada cúria, dependendo o resultado definitivo do maior ou menor número de cúrias a favor ou contra a proposta apresentada. 121 DUGGAN, A. apud ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 8. 122 ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 16.
59
da plebe. Outras magistraturas ainda se foram criando, com atribuições igualmente
originárias do consulado.F
123F
Uma questão que merece destaque se refere ao mais relevante poder
monárquico – o comando militar, ou seja, o direito de dar ordens de combate a
qualquer cidadão, bem como de fazê-lo formar nas fileiras; enfim, o direito de
comando, consubstanciado no ius imperium. O constitucionalismo do período da
realeza não lograra harmonizar o necessário comando supremo na guerra, com a
teórica liberdade de que desfrutavam os cidadãos romanos, problema este que,
como observa Duggan, não comportava solução lógica direta.F
124F. A Roma
republicana contornou-o outorgando o poder de império simultaneamente a
cidadãos diversos, e por tempo limitado. É claro que, embora mais palatável aos
romanos e meio hábil de prevenção de abusos, a eficácia militar desse arranjo não
era seu ponto de destaque – e eficácia militar era fundamental para Roma; assim,
para as ocasiões de maior perigo, a solução era a nomeação de um Dictator, o qual
enfeixava concentradamente todo o ius imperium, sendo designado para um
mandato de seis meses. Como observa Maquiavel, em seus Comentários sobre a
primeira década de Tito Lívio, os romanos demonstraram sua sabedoria inclusive no
processo de nomeação do Dictator:
Como este cargo tinha algo de ofensivo para os cônsules (que, embora chefes do governo, deviam reconhecer, como todos os cidadãos, uma autoridade superior a sua), era de se supor que a designação de um ditador fizesse nascer o descontentamento. Decretou-se assim que a designação seria feita pelos cônsules.F
125F
Houve quem atribuísse a tirania imposta a Roma, e que lhe destruiu a
república, à instituição do Dictator, tendo sido esse o véu de legitimidade de que se
teria valido Júlio César. Mas, para Maquiavel, essa é uma posição equivocada:
123 A plebe logrou ainda obter, ao lado do acesso às magistraturas, as leis escritas, com o fito de acabar com a incerteza do direito e gerar maior segurança aos plebeus, lançando a semente do que hoje é designado como segurança jurídica. Desse movimento resultou a famosa Lei das XII Tábuas, elaborada entre 450 e 449 a.C. 124 DUGGAN, A. apud ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 8. 125 MACHIAVELLI, N. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio: 114.
60
Não foi a instituição ou o título de ditador que sujeitou Roma, mas o poder usurpado pelos cidadãos para se manter no governo. Se o título não existisse, criariam um outro: a força encontra facilmente um título, mas nenhum título cria a força.F
126F
Sustenta o pensador florentino que enquanto a ditadura se cingiu às formas
legais, não sendo usurpada por ninguém, ela foi não um perigo, mas um
sustentáculo para a república.
Para isso colaborava o curto lapso de tempo da investidura dos ditadores,
bem como a contenção da sua autoridade, a qual era absoluta nos assuntos de sua
competência, mas não ilimitada, não lhes sendo possível retirar a autoridade do
Senado ou do povo, ou atentar contra as instituições republicanas. E, abordando a
questão até hoje controvertida das concentrações eventuais de autoridade no assim
chamado poder executivo, em face das possíveis detrações dos princípios
democráticos e republicanos que isso pode representar, assim se refere Maquiavel
à importância do papel desempenhado pelo Dictator:
De todas as instituições romanas, esta é sem dúvida a que merece maior atenção. Deve-se contar a ditadura entre os meios que contribuíram para a grandeza desse vasto império; é difícil que um Estado, sem tal ordenação, possa defender-se contra fatos extraordinários. Ordinariamente o ritmo do governo numa república é muito lento. Como nenhum conselho, e nenhum magistrado, pode assumir plenamente a autoridade para atuar, há sempre necessidade de realizar consultas; e como é preciso reunir todas as vontades no momento necessário, a ação do governo é perigosamente lenta quando surge um mal inesperado, que precisa ser abordado sem demora. Por isto, é necessário que, entre as instituições das repúblicas, haja alguma análoga à ditadura.F
127F
Talvez até mesmo um tanto surpreendentemente, Maquiavel não se
equivocou ao afirmar que os ditadores não haviam sido perniciosos à república: até
o nascimento de Júlio César (100 a.C.) os poucos que existiram haviam deixado
pacificamente o poder, ao término dos respectivos mandatos. Por outro lado, esse
argumento da necessidade de um momento de decisão e eficácia políticas absolutas
seria utilizado mais tarde em outro modelos teóricos e práticos de constituição
126 Idem: 113. 127 Ibidem.
61
mista – principalmente na Constituição americana de 1787 – como justificativa para
a existência de um momento de concentração de poder.
As principais características das magistraturas republicanas eram a
temporariedade -na maior parte dos casos, as eleições eram anuais -, a
colegialidade – podendo qualquer dos magistrados de cada classe paralisar suas
contrapartes através da intercessio (veto) -, a gratuidade – não percebiam
proventos pelo desempenho de seus cargos -e a irresponsabilidade dos magistrados
– porém com sua inviolabilidade restrita ao período de exercício do cargo, podendo
ser chamados a prestar contas perante o povo, ao término de seus mandatos. A
eles eram atribuídos os poderes da potestas e do imperium.A potestas consistia na
competência do magistrado para expressar como sua própria vontade a do Estado,
gerando, para este, direitos e obrigações, ao passo que o segundo é a
personificação, no magistrado, da supremacia do Estado, em face da qual que se
exigia a obediência de todo cidadão ou súdito; era porém limitada pelos direitos
que se reconheciam ao cidadão como essenciais, ou, ainda, pelas garantias
individuais concedidas por lex publica.O imperium abrangia o poder de levantar e
comandar tropas, o direito de apresentar propostas perante os comícios, a
faculdade de deter e punir cidadãos considerados culpados e, também, a
administração da justiça nos assuntos de cunho privado. É de assinalar que,
embora tivessem todos os magistrados a potestas, nem todos dispunham do
imperium. Subdividiam-se, assim, as magistraturas em cuum imperio e sine
imperio. Entre as primeiras, situavam-se apenas o consulado, a pretura, a ditadura
– figura da qual já tratamos, através da qual o patriciado, mediante deliberação do
Senado e eleição comicial, podia re-estabelecer, pelo prazo máximo de seis meses,
o poder absoluto – e o tribunato militar consulari potestate; todas as demais
magistraturas eram sine imperio.
Como não havia vedações à reeleição, existia o risco potencial de que um
líder mais popular lograsse reeleger-se indefinidamente, na prática assenhoreando-
62
se definitivamente de sua posição; porém, como observa Duggan em seu estilo
irônico, tal coisa seria possível
(...) num Estado moderno, com partidos organizados, mas os romanos acreditavam que os cônsules em exercício estariam demasiadamente ocupados para politicar e que sem politicar não tinham chance de reeleição.F
128F
A possibilidade contrária, a de não lograr a reeleição, com a perspectiva
sempre presente de um processo judicial pelos atos questionáveis eventualmente
praticados durante o mandato findo, certamente também contribuiu para inibir a
permanência indefinida de indivíduos no poder. Mais uma vez tomando-se César
como referência-limite, e ressalvando-se algumas raras exceções, como a de Sila,
quatro vezes cônsul, aparentemente os romanos não se equivocaram.
O centro real do governo na república era, porém, o Senado, constituído, no
início, de 300, e, mais tarde, por 600, 900 e 1.000 senadores, designados pelos
cônsules até a entrada em vigor da lei Ovinia (312 a.C.), pela qual passaram a sê-
lo pelos censores, os quais os podiam escolher dentre os que tivessem
desempenhado magistraturas, sem distinção entre patrícios e plebeus; o segundo
triunvirato (Otaviano, Marco Antônio e Lépido) usurpou essa atribuição. Esse
Senado era um órgão permanente, do qual os magistrados buscavam o conselho,
de modo geral, preliminarmente às deliberações fundamentais, como forma de
resguardo contra eventuais incriminações após retornarem à qualidade de cidadãos
comuns. Dentre suas competências, duas existiam que hoje entenderíamos como
próprias do poder executivo, e que eram a direção da política externa de Roma e a
atuação em várias áreas da administração pública. A par dessas, haviam as
competências propriamente legislativas, voltadas para a ingerência na feitura das
leis (não necessariamente significando a sua confecção), no sentido da nulificação
das leis cuja votação desatendesse às formalidades legais, e exercendo controle
sobre a ação dos comícios, por meio do mecanismo da patrum auctoritas, processo
128 DUGGAN, A. apud ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 9.
63
de confirmação que abrangia a verificação das novas leis quanto a irem contra os
costumes, e, em caso positivo, quanto ao juízo de oportunidade e conveniência da
revogação destes últimos. Entretanto, após o advento da lei Publilia (339 a.C.),
esse ato se tornou a auctoritas patrum, dada pelo Senado antes mesmo da votação
comicial, em face do que se reduziu de fato a uma mera formalidade.
No tocante às manifestações do povo originalmente de efeitos políticos
constitutivos, chegaram à república, herdados do reinado, porém esvaziados de
função, os comícios por cúrias (comitia curiata); haviam, ainda, os comícios por
centúrias (comitia centuriata), por tribos (comitia tributa) e os concilia plebis
(comícios da plebe). Os comícios por centúrias surgiram, segundo a tradição
romana, da divisão do povo empreendida pelo rei Sérvio Túlio, o qual agrupou em
cinco classes os que prestavam o serviço militar e pagavam impostos, e colocou
entre os infra classim os que não dispunham de bens que lhes permitissem
sustentar esses encargos. Há indícios não confirmados acerca da elevação do
número de centúrias de 193 para 373, a partir de uma reforma ocorrida no século
III a.C., de intuito democratizante.
Os comícios por centúrias tinham as seguintes atribuições:
a) eleitorais, quanto aos magistrados maiores;
b) legislativas, votando, além das leis em geral,F
129F as relativas à declaração
de guerra, ao restabelecimento da paz e à conclusão de tratados, além da lex
censoria potestate (lei de obediência do povo aos censores);
129 Uma distinção importante em termos de produção legal ou jurídica era a que se fazia entre ius communae (direito comum) e ius singulare (direito singular), o primeiro aplicando-se às pessoas, coisas e relações jurídicas em geral, ao passo que o segundo se refere a certas categorias de pessoas, de coisas ou de relações jurídicas. Distinguia-se o ius singulare, porém, do privilegium, o qual, no antigo direito romano, significava uma norma destinada a infringir dano a determinada pessoa; este último foi proibido pela Lei das XII Tábuas – privilegia ne inroganto – proibição esta, entretanto, muitas vezes elidida, a exemplo da lex clodia de exilio Ciceronis, em 58 a.C. Já no direito clássico, privilegium passou a significar norma que atribuía determinadas vantagens a certa pessoa ou pessoas que se achavam em certa posição, em oposição à generalidade e porspecção da lei grega. No período pós-clássico, foi por diversas vezes usado como ius singulare.
64
c) judiciárias, apreciando recursos interpostos por cidadãos, da sentença de
condenação à morte.
Os comícios por tribos, integrados pelas quatro tribos urbanas e trinta e uma
rústicas (rurais), existentes em 241 a.C., possuíam atribuições nos mesmos
campos dos comícios por centúrias.
Os concilia plebis, por sua vez, apenas votavam a eleição dos tribunos e edis
da plebe, e votavam os plebiscitos (plebiscita, deliberações da plebe), os quais,
com a lei Hortênsia, de 286 a.C., passaram a ser equiparados às leis; e, por fim,
apreciavam, a título de recursal, as multas impostas por magistrados da plebe.
Uma distinção político-jurídica importante a ser mencionada aqui é a que já
começava a se delinear entre ius publicum e ius privatum. É famosa a conceituação
de Ulpiano, segundo a qual ius publicum est quod ad statem rei Romanae spectat,
privatum quod as singulorum utilitatem (direito público é o que diz respeito ao
interesse do Estado Romano; direito privado o que se refere ao interesse dos
particulares), definição onde o critério distintivo está na utilitas. Tal definição
denota o aparecimento de uma noção, e até mesmo de uma cultura, da existência
de uma esfera privada em oposição à esfera pública.F
130F
Quanto à cidadania romana, o núcleo político-jurídico do conceito de status
civitatis não era tão diverso do que modernamente se entende por esse termo,F
131F
residindo na dependência de um indivíduo a uma comunidade juridicamente
organizada.F
132F O que, no início, se confundia com a cidade de Roma, não havendo
extensão automática da cidadania às populações que, ao longo da expansão
romana, iam sendo reduzidas à sujeição. Não obstante, a partir do final da
130 Considerando, no entanto, que o que interessava ao Estado era, de uma maneira geral, do interesse dos cidadãos, e vice-versa, é possível que a definição de Ulpiano tivesse por objeto o interesse imediato das normas, e não o seu interesse mediato. 131 Ou, talvez, seja mais exato dizer que o moderno não é tão diverso do romano, quanto ao seu conteúdo. 132 ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 125.
65
república, a tendência passou a ser a de paulatina extensão da cidadania romana a
todos os súditos do Império.F
133F Assim, ao lado dos cives (cidadãos), havia os
peregrini, súditos que, embora livres, não eram cidadãos. Somente os cidadãos,
que dispunham de capacidade jurídica integral, possuíam o direito de ser votado e
votar, que eram o ius honorum e ius suffragii, respectivamente. Havia uma porção
intermediária, os latini (latinos), habitantes das cidades do Latium (Lácio) e das
colônias latinas da Itália. Cabe, no entanto, observar, como faz Bobbio,F
134F que o ius
suffragii de que falamos acima não tinha a conotação quase que puramente eletiva
que lhe damos hoje, sendo muito mais vinculado ao direito de votar nos comícios;
dentre os que estavam excluídos do voto, haviam os semilivres, chamados civis
sine suffragio. Os escravos, obviamente, não possuíam qualquer dos direitos
inerentes à cidadania romana, e os barbari (bárbaros), povos que não eram súditos
de Roma, eram considerados, pura e simplesmente, inimigos de Roma.
O que havia de natureza constitucional, na ordem normativa da Roma
republicana? Não possuía, obviamente – da mesma forma que a polis grega - um
texto fundamental que se pudesse definir como uma constituição em sentido
formal, instituindo o Estado e estabelecendo seus poderes, os modos respectivos de
aquisição e perda, e a constituição e funcionamento de seu governo, na amplitude
e profundidade modernas. O que Roma possuía seria hoje denominado de usos
constitucionais, além do instituto das leges legum. Consoante Accioli,F
135F por
exemplo, os reais poderes do Senado, incluindo a totalidade de seus membros,
patrícios e plebeus, não eram uma matéria de direito em sentido comum, mas um
uso de natureza constitucional, por cuja convenção previamente submetiam os
magistrados seus decisórios à deliberação daquela casa, notadamente nas
hipóteses de medidas de natureza legislativa, ressalvados, apenas, os assuntos
133 A diferença mais óbvia com relação ao conceito moderno de cidadania política estaria, assim, na sua extensão. 134 BOBBIO, N. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos: 373. 135 ACCIOLI, W. Instituições de direito constitucional: 47-48.
66
rotineiros. Nos casos de medidas legislativas, a apreciação do Senado se dava
mesmo antes de a proposição em pauta ser submetida à Assembléia, sendo as
matérias efetivamente debatidas e mesmo emendadas, o que pouco ocorria nas
contiones (assembléias reunidas e presididas por um magistrado). E, ainda que a
proposição não fosse vetada pelo Senado e a Assembléia a aprovasse, restava ao
primeiro uma arma; sendo o guardião dos preceitos fundamentais (de índole
constitucional), podia sempre perscrutar qualquer lei, em busca de
incompatibilidades com aqueles preceitos, e, assim, invalidar o ato legislativo. Mais
de uma vez esse órgão majoritariamente optimateF
136F logrou, nos anos da
República, examinar o que hoje chamaríamos de constitucionalidade das leis e até
dispensar de sua observância alguns cidadãos. Era, inclusive, comum a inserção
nos diplomas legais romanos, de uma ressalva no sentido de estar fora do
propósito da lei ab-rogar o que era sagrado ou constituísse direito (ius). Certas
regras, que Cícero denominava leges legum, algumas das quais disciplinando o
próprio processo legislativo, erigiram-se em verdadeiras normas constitucionais,
condicionando a atividade legislativa, incluindo a do próprio Senado.
Os romanos não possuíam institutos processuais formais de controle da
constitucionalidade como a graphé paranomon dos gregos, mas, ainda assim,
segundo Accioli,F
137F se Cícero não contribuiu diretamente para o estabelecimento do
controle judicial, lançou pelo menos algumas idéias importantes a respeito. Uma
delas, por exemplo, consiste na asserção de que o direito natural não requer
nenhum outro intérprete além do próprio indivíduo, uma noção que, algumas
vezes, se refletia nos litígios perante os tribunais e nas controvérsias dos
comentadores, e segundo a qual as leis inconstitucionais são inconstitucionais per
136 Os optimates eram o que se poderia chamar, em termos modernos, de partido aristocrático romano. Os Populares formavam o contraponto sugerido pelo nome. 137 ACCIOLI, W. Instituições de direito constitucional: 49.
67
se, e não porque qualquer tribunal, independentemente da autoridade de que
esteja revestido, assim as considere.F
138F
b) a dinâmica da constituição mista republicana
Que o arranjo político-normativo das instituições romanas republicanas tinha
caráter constitucional, já nos diz Maquiavel:
Para me explicar, direi que em Roma havia instituições que regulavam o governo, ou seja, o Estado, e leis que ajudavam os magistrados a refrear as desordens provocadas pelos cidadãos. As instituições abrangiam a autoridade do povo, do Senado, dos tribunos, dos cônsules, a maneira de eleger os magistrados, e o processo legislativo.F
139F
No que tange à natureza do arranjo constitucional republicano, Políbios,F
140F
seu cultor, nô-lo apresenta como misto, uma síntese dinâmica de contra-poderes,
cuja estabilidade global decorria de um conjunto articulado de instabilidades
parciais. Sua excelência, segundo o historiador grego originalmente trazido para
Roma como refém – mas que depois aderiu ao captor -, derivava da incorporação
ativa de todos os elementos componentes do Estado em compartimentos distintos,
porém não estanques do poder, confrontando-se e equilibrando-se reciprocamente.
Políbios partiu das idéias originais de Tucídides, Platão e Aristóteles, quanto
às vantagens de uma constituição mista que reunisse elementos das três formas
originárias, mediadas por um sistema que, na linguagem de hoje, poderia ser dito
como de freios e contrapesos institucionalizados, mas acrescentou àquelas idéias
uma nova teoria: a dos ciclos políticos recorrentes (politeion anakiklosis). Por esses
ciclos, as três formas boas de governo tenderiam inexoravelmente a degenerar em
suas variantes corrompidas, contendo já em si mesmas o germe dessa
degeneração. Uma lei inescapável de progresso e decadência uniria monarquia e
138 Accioli nos exemplifica com episódio em que Cícero, peticionando ao Senado, invoca a recta ratio contra a lex scripta. Sendo essa reta razão, como vimos, assimilada à lei natural, e sendo a lei natural anterior e superior ao próprio regramento artificial posto pela república romana, não era passível de modificação por esta última, a qual devia subordinar-se àqueles princípios, e não o contrário. A lei natural, para Cícero, estava na própria essência do ius. Ibidem. 139 MACHIAVELLI, N. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio: 75. 140 POLÍBIOS. História.
68
tirania, depois aristocracia e oligarquia, e a seguir democracia e oclocracia em uma
ordem natural (fuseon oikonomia) pela qual esses regimes se transformariam e se
transmudariam uns nos outros, até retornarem ao seu estado inicial. Sua
concepção emerge como um princípio naturalístico, e de certa forma pessimista, no
sentido de que o abuso do poder é inerente ao ser humano, ocorrendo sempre que
a memória das condições originais de crise que levaram à constituição de cada
forma de governo se perde no tempo e os detentores do poder nele se sentem
seguros. No dizer de Políbios,
esse é o ciclo pelo qual passam as constituições, o curso natural de suas transformações, de sua desaparição e de seu retorno ao ponto de partida.F
141F
A república romana, entretanto, esteve para Políbios numa posição diversa,
tendo nascido conforme a natureza, mas se desenvolvido em sentido contrário ao
que teria essa natureza requerido, através de sua constituição mista.
Especificamente sobre a democracia, afirma Políbios que ela provém da
reação do povo aos desmandos próprios do governo oligárquico:
Realmente, quando qualquer pessoa, observando o despeito e o ódio com que esses dirigentes são vistos pelos cidadãos, tem a coragem de falar ou agir contra os detentores do poder, essa pessoa verá todo o povo disposto a segui-la. Finalmente, depois de haverem massacrado ou banido os oligarcas os cidadãos não se arriscam a reinstalar um rei no poder, pois ainda relembram aterrorizados as injustiças sofridas sob os anteriores, nem se atrevem a confiar o governo a uns poucos homens de escol, pois têm poucos passos atrás de si a evidência de seu erro anterior. Portanto, a única esperança que lhes resta intacta está em si mesmos, e recorrem a ela, e transformam o governo de oligárquico em democrático, assumindo a responsabilidade da condução dos negócios públicos. Enquanto sobrevivem alguns dos cidadãos que experimentaram o abuso do poder por seus detentores, eles se mostram extremamente satisfeitos com a forma presente de governo, e atribuem o maior valor à igualdade e à liberdade de palavra.F
142F
Mas Políbios não crê, de forma alguma, que o livre exercício da palavra e a
igualdade de participação no exercício do poder possam apenas de per si conduzir a
sociedade a um rumo consistente. Pelo contrário, para ele tal governo tenderia a
141 Idem: 331. 142 Idem: 330-331.
69
evoluir para um quadro de total desagregação, à medida que as novas gerações
vão emergindo, perdendo-se a memória dos fatos que conduziram à queda dos
regimes anteriores, e a igualdade e a liberdade da palavra passam a se tornar lugar
comum. Para Políbios o surgimento de desejos de poder desenfreados que a isso se
somam terminariam por abolir a democracia,F
143F passando a ser o governo da força
e da violência em vez de uma democracia propriamente dita, e, assim, unindo
então suas forças o povo agora massacra, exila e saqueia, até regredir para a
animalidade total e achar novamente um senhor e autocrata.F
144F A solução
defendida por Políbios, seguindo a já adotada anteriormente em menor escala por
Licurgo em Esparta, é por a funcionar em uma mesma constituição o que qualifica
como as três fontes de autoridade política, as quais, consoante afirma,
desempenham tão bem seu papel na estruturação e na aplicação subseqüente da
constituição da república romana que mesmo para um cidadão romano, seria
impossível dizer com certeza se o sistema em seu conjunto era aristocrático,
democrático ou monárquico.F
145F O sistema estava muito bem sedimentado, segundo
afirma em sua História:
E tal sentimento era natural. Com efeito, a quem fixar a atenção no poder dos cônsules a constituição romana parecerá totalmente monárquica; a quem fixá-la no Senado ela mais parecerá aristocrática, e a quem a fixar no poder do povo ela parecerá claramente democrática.F
146F
Maquiavel, nos seus Comentários, ou Discorsi, como são também
conhecidos,F
147F dirá de Roma, alicerçado nas idéias de Políbios, que esta
representou o triunfo da constituição mista, aliando à monarquia consular a
aristocracia senatorial e ao elemento democrático, através da instituição tribunícia,
fazendo assim com que nascesse uma república perfeita. A fonte desta perfeição,
143 Numa linha crítica muito semelhante ao comentário de Renato Janine Ribeiro, que discutimos no capítulo anterior. 144 POLÍBIOS. História: 331. 145 Idem: 333. 146 Ibidem. 147 No original, Discorsi sulla prima deca di Tito Livio.
70
todavia, foi a desunião do povo e do Senado.F
148F. Segundo o pensador florentino,
nessa república os cônsules e o Senado haviam representado a princípio a
combinação da monarquia e da aristocracia, as quais, ainda que tendo guardado
bastante desta autoridade para manter a posição que ocupavam no Estado,F
149F
tiveram, porém, a insolência com a qual haviam passado a tratar o povo após a
morte dos Tarquínios, juntamente com as desordens e perigos resultantes de suas
disputas com o povo, refreadas pela introdução do elemento popular no governo,
notadamente através dos tribunos. Sendo os homens todos malignos, como os vê
Maquiavel, sê-lo-iam tanto mais se aos patrícios não se lhes opusesse o contrapeso
representado pela potência da plebe. Nesse sentido, referindo-se à lei agrária, a
qual limitava a extensão de terras que um cidadão poderia possuir, determinando
ao mesmo tempo a divisão pelo povo romano das terras conquistadas aos inimigos
de Roma, e que Maquiavel mesmo alinha entre as causas da destruição da
república, assim afirma o florentino:
Se bem seja verdade que a lei agrária quis escravizar Roma durante três séculos, a cidade se teria perdido antes se o povo, por meio dessa e de outras reivindicações, não houvesse conseguido refrear a ambição dos nobres.F
150F
As desordens decorrentes das disputas entre patrícios e plebeus não seriam
assim negativas, e isto porque
quem examinar bem os seus resultados (dos tumultos) não concluirá que tenham gerado exílios ou violência prejudiciais ao bem comum, mas, antes, leis e ordenamentos em benefício da liberdade pública.F
151F
A presença política ativa do elemento popular dentro do arranjo
constitucional surge como um elemento central e indispensável à contenção dos
impulsos despóticos dos privilegiados. O povo, como diz Maquiavel, é mais
prudente, menos volúvel e, num certo sentido, mais judicioso do que o príncipe,F
152F
148 MACHIAVELLI, N. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio: 27. 149 Idem: 26. 150 Idem: 123. 151 Idem: 31. 152 Idem: 181.
71
e, repetindo Cícero, mesmo quando vive mergulhado na ignorância, pode
compreender a verdade,F
153F sendo capaz de impedir o despotismo pela aplicação
prática do seu sentir. Assim, o quadro de desordem que deu origem à instituição
tribunícia, guardiã das liberdades romanas, merece encômios, pois o povo, desta
forma, assegurou participação no governo.F
154F
Maquiavel, ao traçar paralelos entre Roma e Esparta - como outro
importante Estado militar da Antigüidade aquinhoado pela sabedoria de seus
legisladores, como Licurgo -, aduz ainda que Roma não poderia ter seguido o
exemplo espartano, instituindo um rei eletivo com mandato vitalício e um Senado
pequeno. E isso porque, diferente de Esparta, a política territorial expansionista de
Roma conduzia à necessidade de uma população crescente e bem armada,
devendo-se então permitir o curso menos perigoso das desordens e dissensões
gerais, as quais somente a constituição mista romana poderia manter dentro dos
limites necessários para impedir a desunião e a desagregação total da cidade
dividida entre plebeus e patrícios.
O tumulto e a iniciativa populares, inseridos no interior do equilíbrio entre
poderes, são vistos assim como o motor do progresso das instituições e
simultaneamente defesa da liberdade, dentro do modelo romano de república
imperial, capaz de projetar seus próprios desequilíbrios internos em direção a um
exterior sempre mais vasto. Projeção essa efetuada através de suas conquistas, em
boa parte alicerçadas nas virtudes cívicas e marciais que cultivavam, e às quais o
estoicismo servia tão bem.
Mas, não obstante essa visão de Maquiavel, a própria apresentação do
arranjo institucional republicano feita por Políbios nos permite verificar que os
cônsules e o Senado, tomados em conjunto, detinham um somatório bem maior de
poderes em relação ao que tocava ao povo, como também é preciso atentar a que
153 Idem: 32. 154 Ibidem.
72
este último não tinha a disposição da iniciativa, nem mesmo nas matérias de sua
competência. Assim, dentro dessa ordem de idéias, um outro ângulo pelo qual é
possível ver a constituição mista da república romana é como a expressão política
de uma sociedade dividida em classes, mas na qual o domínio de uma sobre outra,
ou de alguma sobre as demais, não está totalmente assegurado, havendo margem
para instabilidades. Num tal contexto, a inclusão política das classes menos
abastadas de pequenos proprietários e de não-proprietários livres se dá de forma a
que possa ser representada como participação real, ao mesmo tempo em que é
limitada e contida pelas classes mais privilegiadas. Isso ocorria na república em
função do próprio desenho institucional traçado por sua constituição mista. Nesse
desenho, conforme já dissemos, o Senado, predominantemente ocupado pelos
optimates, o partido da aristocracia romana, situava-se no centro real do governo.
Já no que diz respeito aos cônsules, Políbios assim nos esclarece:
(...) as questões urgentes são levadas ao Senado por eles, que também cuidam da aplicação de todos os dispositivos de seus decretos. Da mesma forma, todos os assuntos de Estado da competência do povo são conduzidos por eles, que convocam as assembléias, propõem medidas a ser tomadas e cuidam da aplicação dos decretos do povo.F
155F (Op. cit., p. 334)
Cabe sublinhar que os cônsules, quando não ausentes da cidade em
campanha, além das competências destacadas acima, exerciam sua autoridade
sobre todos os assuntos públicos, estando todos os magistrados, a exceção dos
tribunos, a eles subordinados. No que tange aos preparativos para a guerra e à
condução geral das operações militares, seu poder é quase discricionário, pois eles
têm autoridade para fazer quaisquer requisições aos aliados, para designar tribunos
militares, recrutar soldados e selecionar os mais aptos para o serviço militar, como
Políbios nos informa. Naquilo que concerne aos usos a serem dados ao tesouro
público e à política externa - principalmente quanto ao primeiro aspecto -os
cônsules eram dependentes do Senado, e o Senado, por sua vez, do braço militar
do consulado, o que indicava a conveniência e até mesmo a necessidade prática de
155 POLÍBIOS. História: 334.
73
comporem-se politicamente entre si, resultando em uma articulação de força
política potencialmente muito superior à que remanescia nas mãos da plebe.
Esta última, por sua vez, conquanto lhe fosse permitido votar nos temas de
sua competência, não possuía disponibilidade de iniciativa, mesmo nos assuntos
que lhe eram submetidos, seja para deliberar, seja no plano da execução das
deliberações havidas. Como nos esclarece Alves,F
156F cada uma das cinco classes em
que era dividida subdividia-se em várias centúrias, em número total de 193,
constituídas, em proporções de 50%, por cidadãos de 17 a 46 anos (juniores) e de
46 a 65 anos (seniores), numa classificação realizada segundo a propriedade
imobiliária; com a censura de Ápio Cláudio, entre 312 a 308 a.C., foi introduzida a
riqueza mobiliária como critério classificatório, e a avaliação de tudo passou a ser
traduzida em dinheiro.
As votações da plebe se realizavam por centúrias dentro das classes, as
quais se manifestavam em ordem hierárquica, principiando pelas 18 centúrias de
cavaleiros que se situavam acima das centúrias da primeira classe e estavam fora
destas; a seguir, votavam as da segunda classe, e assim sucessivamente, até as da
quinta, até que se atingisse a maioria por centúrias (97 das 193). Considerando a
possibilidade de votação, num mesmo sentido, das 18 centúrias da cavalaria e das
80 da primeira classe, as demais ficavam simplesmente dispensadas de votar, por
desnecessidade. Consoante nota Alves (idem, ibidem), levando-se em conta que
essas eram as centúrias da classe integrada pelos cidadãos mais ricos de Roma, os
quais estavam geralmente de acordo em torno dos mesmos interesses, muito
dificilmente os menos favorecidos tinham a oportunidade de influir nas deliberações
desses comícios.
Como já dissemos, os romanos haviam fundado, basicamente, um regime
de proprietários rurais, grandes e pequenos, mais voltados para a ação prática do
156 ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 20.
74
que para a reflexão. Talvez seja um bom exemplo disso que a escola filosófica de
maior influência entre eles tenha sido importada da Grécia - o estoicismo,
devidamente adaptado para tornar-se funcional aos poderes políticos da cidade, e,
sob a obediência a estes, como apoio à legitimação da ação bélica de conquista e
ao mesmo tempo da disciplina militar de seus cidadãos. E, da mesma forma, que o
maior teórico de sua constituição republicana, à época respectiva, tenha sido um
grego. Quanto a esse aspecto, não é demais repetir que os romanos não somente
não produziram grandes expoentes do pensamento político (embora os tenham
produzido em quantidade e qualidade no campo jurídico), acrescentando que não
possuíam uma tradução latina para a palavra democracia, nem uma expressão
lingüística que lhe fosse equivalente. A sua res publica não significava a mesma
coisa: tratava-se de uma distribuição de comando político pelos homens não
escravos que ostentassem o status civitatis, ordenada na medida de suas
respectivas condições sociais e principalmente na de suas propriedades.
No que diz respeito a Políbios, acreditamos que estivesse profundamente
influenciado pela sua formação helênica, tendo desenvolvido uma interpretação do
regime republicano de Roma que era muito mais uma projeção da teoria das
formas de governo e de suas variantes degeneradas, como vemos notadamente em
Aristóteles, do que uma visão receptiva e desapaixonada daquilo que os romanos
de fato faziam, ou mesmo da percepção que estes últimos tinham acerca do que
estavam fazendo. Cabe notar que o critério classificatório utilizado por Aristóteles
para definir as formas de governo, ou de constituição (politeuma), como preferia
dizer, era principalmente aritmético, e não necessariamente qualitativo, chegando a
alinhar a democracia entre as formas corrompidas de governo. Para o estagirita,
seja a tirania, desvio da monarquia, seja a oligarquia, desvio da aristocracia, seja a
democracia, desvio da república (politéia), o que se visa é sempre o bem de um só,
dos homens de posses ou dos homens sem posses, mas em nenhum desses casos
o objetivo é o benefício indiscriminado de toda a comunidade; a defesa da
constituição mista como constituição democrática que se pode vislumbrar no
75
pensamento aristotélico é aquela de que nos dá conta Sérgio Cardoso, ao
determiná-la
essencialmente como o governo de todos em vista do todo político, como um governo comum de pobres e ricos, formalmente definido pela promoção da inclusão e comunicação destas partes fundamentais, irredutíveis e antagônicas da cidade.F
157F
Esse todo político significa desde logo a admissão da assimetria dessa
totalidade, que só o é (totalidade) por assimilação, já que suas partes componentes
são fundamentais, irredutíveis e antagônicas. Sua conseqüência só pode ser, na
melhor das hipóteses, a articulação dos conflitos em um patamar de equilíbrio que
não destruirá a riqueza dos ricos nem eliminará a pobreza dos pobres, sendo
apontado como democrático apenas na medida em que absorve o populus no seu
interior, mas não porque permita a este exercer o poder exponte sua.
Na polis em seu apogeu, ainda que não representando um nivelamento de
diferenças materiais, a política e o seu exercício, como vimos no capítulo anterior,
não eram escalonáveis; e a concepção que assimilava a democracia a esse
exercício direto e integral encontra o melhor argumento, a motivação mais forte,
irresistível, a razão das razões, como a viam os gregos e assinala Bobbio,F
158F precisa
e paradoxalmente com o maior dentre aqueles que, explorando suas possibilidades,
contribuíram para a sua queda. Assim nos esclarece o pensador político italiano:
Encontrará no famoso apólogo de Protágoras, que nos chegou através do homônimo diálogo platônico: encarregado de levar aos homens a arte política, Mercúrio pergunta a Júpiter como ela deve ser distribuída, se deve ser distribuída como as outras artes, entre os competentes. Júpiter responde que a arte política deve ser distribuída a todos. E de fato os atenienses, como os outros, quando se trata de competência nas construções e nas artes, acreditam que poucos sejam capazes de dar conselhos, e se toma a palavra alguém fora daqueles poucos, não o suportam; e com razão, a meu ver. Quando, ao contrário, se trata de uma deliberação política, que deve proceder pelas vias da justiça e da temperança, toleram que qualquer um fale, sendo natural que destas todos sejam partícipes, de outro modo não existiria a cidade. A diferença entre a arte política e as outras artes é que
157 CARDOSO, S. Que república? Notas sobre a tradição do “governo misto”: 45. 158 BOBBIO, N. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos: 374.
76
não se ensina, e esta não se ensina porque é patrimônio de todos, e isso explica por que todos têm o direito de participar do governo da cidade.F
159F
Nessa mesma linha, o pensamento grego naturalizou, mas sem apelo a
religião, o ponto de partida dessa forma de governo na igualdade de natureza ou de
nascimento, a isogonia, que torna todos iguais e igualmente dignos de governar.F
160F
O estoicismo, como vimos, tal como foi difundido em Roma, favorecia
sobremaneira a concepção contrária, induzindo os homens a aceitarem
naturalmente suas diferenças e resignarem-se a elas. Mas, ainda que o
pensamento estóico não tenha sido a única influência nesse sentido, o fato é que,
se dentre as formas de governo somente a democracia nasceu, em suas fontes
áticas, como termo indicativo do poder (o krátos) de um corpo coletivo, como
assinala Bobbio,F
161F na concepção e prática da república romana o corpo coletivo
passou a incluir, dentre os diferentes poderes que articulava em equilíbrio
recíproco, a democracia como poder de um corpo parcial formado pela plebe.
Dentro dessa articulação, e de acordo com a interpretação que Hardt e Negri fazem
da análise de Políbios, na monarquia, representada pelo componente consular da
constituição mista romana, estava ancorada a unidade e a continuidade do poder: é
o alicerce e a última instância da autoridade imperial.F
162F A aristocracia,
representada pelo elemento senatorial, define justiça, medida e virtude, e articula
suas redes na esfera social. Inspeciona a reprodução e circulação da autoridade
imperial.F
163F Por fim, a democracia, nos termos e limites em que a prática política
159 Ibidem. 160 Essa idéia está muito bem expressa do Menêxenos platônico, no qual Sócrates sustenta, com base na velha constituição ateniense, contrapondo-a às demais, que a pressuposição da desigualdade entre os homens, em função da qual alguns são servos e outros senhores, originara tiranias ou oligarquias, diálogo do qual Bobbio reproduz a seguinte passagem: Nós e os nossos – conclui -, nascidos irmãos da mesma mãe, não pretendemos ser entre nós servos e senhores, mas a igualdade de nascimento nos obriga a buscar também a igualdade legal e a não ceder a ninguém mais, a não ser no apreço da virtude e da inteligência. Idem: 378. 161 Idem: 377. 162 Idem: 335. 163 Ibidem.
77
romana nos permite utilizar esse termo - já que os romanos mesmos, como já
dissemos, não o empregavam - organiza a multidão segundo um esquema
representativo, de modo que o Povo possa ser submetido às normas do regime, e o
regime possa ser coagido a satisfazer as necessidades do Povo. A democracia
assegura a disciplina e a redistribuição.F
164F Naquela Roma ao mesmo tempo imperial
e republicana, o próprio conflito social, assim administrado institucionalmente, foi a
base da estabilidade do seu poder e a lógica de sua expansão, de tal modo que
Hardt e Negri definiram a cidade como um poder constituinte formado por um
conjunto de múltiplos conflitos sociais, articulados em contínuos processos
constitucionais,F
165F os quais produziram a república e a reproduziram enquanto
perduraram seus fundamentos.
Por fim, desgastados seus alicerces, sobreveio a decadência da república.
Isso não deixou de ser previsto por Políbios, para quem nem mesmo a Roma
republicana estava livre da anaciclose política. Consoante Alves,F
166F ela não resistiu
a dois conjuntos de fatores, que se conjugaram para decretar o seu fim. O primeiro
foi o conflito entre poderosas ambições políticas pessoais, explorando os eventuais
choques de interesses entre populares e optimates, levando a um ciclo de guerras
civis. O segundo foram os problemas de controle dos crescentes domínios romanos,
levando à necessidade cada vez maior de eficiência militar, a qual por sua vez
apontava na direção do comando único e centralizado, começando a se acentuar
com a reforma da organização militar realizada por Mário, visando dar a Roma um
exército em condições de manter o seu vasto império. Essa reforma deu também
aos generais o poder de recrutar suas tropas livremente, e de tomar o
compromisso destas últimas consigo e não com Roma. Isso veio a somar-se, logo
em seguida, às manobras de Pompeu, Júlio César e depois Otaviano, terminando
164 Ibidem. 165 Idem: 181. 166 ALVES, J. C. M. Direito Romano: história do direito romano, instituições de direito romano: 33-34.
78
por inviabilizar a continuidade da constituição republicana. Maquiavel, por sua vez,
atribui a derrocada da república tanto à já mencionada lei agrária, quanto à
questão militar:
Se examinarmos com cuidado os procedimentos da república romana,perceberemos que sua dissolução pode ser atribuída a duas causas: a primeiradelas foi a dissensão provocada pela lei agrária: a segunda, a prorrogação doscomandos militares. (...) Embora a prorrogação dos comandos militares nunca tenha contribuído, demodo evidente, para qualquer distúrbio, não há dúvida de que se tornou nociva àrepública, devido à autoridade que permitiu a alguns cidadãos usurpar.F
167F
Quanto ao povo, notadamente a partir da ascensão de Otaviano, foi
gradativamente despido de qualquer das poucas competências que possuía em
matéria política, até lhe restarem apenas atribuições meramente formalísticas. Dos
Césares, restou-lhe apenas esperar panis et circus, e, mais tarde, os consolos da
religião cristã. Pelos cerca de cinco séculos que se seguiram desde a extinção de
fato da república até a queda final do império romano ocidental, esse ciclo não se
interrompeu nem se reverteu. A própria história de Roma recusou-se, afinal, a dar
inteira razão a Políbios.
Não obstante, Roma deixou inaugurada na história a prática da constituição
mista - ainda que no caso romano fosse mista em um duplo sentido que lhe foi
muito particular, como uma articulação política compartimentada de poderes sociais
cujo exercício se dava tanto diretamente, pelos comitia centuriata e tributa e os
concilia plebis, como indiretamente pelo senado e outros cargos representativos. À
parte essa ressalva, numa longa linha genealógica que começa no pensamento
aristotélico, passando pela análise polibiana e depois por Maquiavel, a tradição
interpretativa desse arranjo constitucional projetou-se no pensamento político
europeu de um modo tal, que não é possível falar do processo de construção da
noção de democracia sem falar no papel da idéia de constituição mista nas
revoluções atlânticas dos séculos XVII e XVIII, a começar pelo ciclo revolucionário
inglês, objeto de nosso próximo capítulo.
167 MACHIAVELLI, N. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio: 375.
Capítulo 4
A emergência dos valores civis e a constituição mista:
o século revolucionário inglês
Como pudemos perceber, já na sua estréia romana a constituição mista não
representava uma concepção necessariamente relacionada com democracia – ao
menos em sua totalidade -, mas voltada para agregar, em um contexto de
correspondência entre atores sociais e poder político, um elemento popular que
Polibios identificava, na constituição republicana de Roma, como democrático. Se
nessa concepção constitucional se observa, como afirma Charles Pessanha, a mais
remota preocupação com a pluralidade e a diversificação da autoridade,168 seu
objetivo, em princípio, não era alterar a relação de forças entre os diversos
seguimentos sociais nela articulados, mas, ao contrário, preservar o escalonamento
relativo do poder, dentro dos critérios prevalecentes de distribuição do comando
político na sociedade respectiva. Ainda assim, posta, como foi, ao mesmo tempo
contra despotismos como o dos Tarquínios e como meio de impedir a dilaceração
social, representou uma estrutura política de coexistência, em um mesmo contexto,
entre forças diversas e distintas, como também de resistência contra as tentações
de unipolarização total do poder.
É bem verdade que esse modelo, ao permitir a participação popular e
simultaneamente limitá-la explícita e implicitamente, inibiu o seu potencial. Por
outro lado, aquilo que dele resultou - enquanto perdurou - foi um sistema de
múltiplos conflitos sociais articulados e equilibrados em uma rede de contra-
poderes, que se mostrou capaz de arremessar a conflituosidade que estava na sua
base em direção a um exterior sempre mais vasto, dentro do modelo romano de
república aberta e imperial. Essa primeira experiência de constituição mista
também antecipou muito daquilo que Pessanha situa entre as principais
168 PESSANHA, C. F. O Poder Executivo e o Processo Legislativo nas Constituições brasileiras: 141.
80
características distintivas do constitucionalismo moderno, ao dizer que este último
está diretamente associado à garantia dos direitos e ao poder plural.169
Essa idéia de um arranjo constitucional que permita expressar politicamente
interesses relevantes e desse modo proporcionar sua garantia, esteve fortemente
presente na Revolução Inglesa. Assim como ocorreu no surgimento da república em
Roma, ainda que tivesse sido produto do repúdio a um centralismo monárquico
autoritário, esse processo não foi inspirado propriamente em idéias de democracia -
termo esse que, do mesmo modo que em Roma, não integrava o vocabulário dos
protagonistas respectivos. Demarcou, por outro lado, uma singular diferença, com
relação ao modelo romano de constituição mista: o que se buscou, e afinal se
obteve, não foi uma res publica, no sentido romano de um espaço público de
articulação de valores cívicos, mas um espaço cívico de articulação de valores
privados. Ligada a isso, demarcou-se ainda uma outra importante distinção: o
balanço de poderes, por assim dizer, em torno do qual se travaram as lutas
respectivas, não era o de um equilíbrio fundado numa eqüidistância política entre
as diversas forças em presença, mas o da prevalência de umas sobre as outras,
ainda que sem suprimi-las completamente. Esse foi o rumo tomado pela revolução
inglesa, a qual não foi um evento único, mas um período revolucionário,
começando pela guerra entre o Parlamento e o Rei e as forças sociais associadas
respectivamente a um e a outro, e terminando com o que foi denominado de
Revolução Gloriosa – tendo sido também o primeiro grande movimento político
liberal.
Podemos dizer que, ao longo do que foi uma estranha mistura de Jeová,
tradição, comércio e questões fundiárias, desenvolveu-se o período revolucionário
inglês, um processo que pode ser situado como a primeira das grandes revoluções
atlânticas. Para compreendermos as instituições políticas que esse período
169 Idem: 144.
81
revolucionário produziu, é preciso antes compreender alguns fatores fundamentais
em relação ao próprio período revolucionário.
O ambiente histórico: a ascensão social e política dos valores privados
a) Ascensão social
Como aponta o cientista político Valter Duarte Ferreira Filho, professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro,
Em rigor, foi na Inglaterra, nos anos de 1688, 1689 e 1690, com a Revolução Gloriosa, o juramento da Bill of Rights por Guilherme III e a publicação das principais obras de Locke, o início da civilização. Somente a partir daqueles anos a idéia de soberania do que então se chamava de sociedade civil veio a superar a idéia de soberania real e veio a se realizar em instituições políticas voltadas para garantir aquele que seria o seu mais elevado bem público: a segurança do privado, especialmente a segurança da propriedade privada e da posse particular de dinheiro, sua mais elevada razão revolucionária, sua mais elevada razão de existir. Soberanos, os valores civis foram feitos os principais laços integrativos da Inglaterra, da sua Commonwealth, caracterizando-a como sociedade civilizada como jamais houvera outra na história.170
Como esclarece Ferreira Filho, o emprego dessa terminologia é bem mais
recente, somente tendo sido possível após o aparecimento da Sociologia, que
permitiu pensar uma sociedade de acordo com os valores nela praticados
coletivamente e que assim produzem sua integração. Isso significa dizer que no
século XVII não havia como a sociedade inglesa pudesse ser pensada em termos de
civilização - tomando esse termo como significando o predomínio dos valores civis
ou privados.171 Porque não foi pensada assim desde o seu início, foi facilitado o
aparecimento no século XIX do significado da palavra “civilização” que predomina
170 FERREIRA FILHO, V. D. Fernando Henrique e a civilização: s/ p. 171 Uma obra de 1767, citada por Bobbio, Ensaio sobre a história da sociedade civil, de Adam Ferguson, trata como história do progresso a passagem das sociedades primitivas para as assim qualificadas sociedades evoluídas. Por este processo, a humanidade teria passado e continuaria a passar do estado selvagem dos povos caçadores que não conheciam a propriedade e não possuíam Estado para, inicialmente, o estado bárbaro dos povos que se iniciam na agricultura e introduzem os primeiros embriões da propriedade, e depois para o estado civil, ou sociedade civilizada, que se caracteriza pela instituição da propriedade, do comércio e do Estado. BOBBIO, N. A Teoria das Formas de Governo.
82
até hoje e nos dificulta o entendimento dos valores políticos aos quais ela está
definitivamente ligada, como nos adverte ainda Ferreira Filho.172
Esse processo de sedimentação dos valores privados a alterações profundas
nas relações materiais na sociedade inglesa, que vinham ocorrendo desde os
séculos XIII e XIV, intensificando-se nos séculos XVI e XVII. A estrutura fundiária
da sociedade inglesa havia sido alterada, com a divisão, pela Coroa, das
propriedades fundiárias de grande extensão em unidades menores, relativamente
pequenas, por uma multidão de pequenos proprietários, como resultado de
conflitos entre o rei e a nobreza britânica e também com a igreja – os dois maiores
terratenentes ingleses. Abalaram-se dessa forma as relações de poder ligadas à
antiga estrutura fundiária da sociedade inglesa, entrando assim em crise o gothic
balance, como o chamava Harrington. A redistribuição de riqueza por pequenos
proprietários viria a adquirir um importante viés, que se tornou adverso para a
monarquia britânica: essa classe numerosa de proprietários acabaria, em algum
momento, reivindicando direitos políticos correspondentes a sua posição recém-
adquirida. A esse fator, como sublinha o historiador Almir de Andrade,173 somou-se
a concentração cada vez maior de riquezas nas mãos da nascente burguesia.
Esse último processo, o qual consistiu em uma série de fatos
interconectados, foi marcado pela passagem da servidão à produção simples de
mercadorias, com a paulatina expansão de relações capitalistas de produção pelos
interstícios do modo de produção anterior, colhendo os benefícios da decadência da
172 Pela mesma razão, também não se levava em conta o fato de que os valores da catequese cristã eram ainda os principais fatores integrativos das sociedades da Europa Ocidental - formados principalmente de acordo com os valores pelos quais a Igreja Católica Apostólica Romana pretendia difundir a cristandade como seu ideal de ordem universal, e depois, nos países que o adotaram, pelo Protestantismo - a despeito da secularização do processo de formação de diversos Estados nacionais. Observa ainda Ferreira Filho que o etnocentrismo europeu influenciou a produção de trabalhos antropológicos que muitas vezes não separavam as palavras cultura e civilização, fazendo da Europa a referência segundo a qual o maior ou menor grau de progresso de todos os demais povos deveria ser sopesado. FERREIRA FILHO, V. D. Fernando Henrique e a civilização. 173 ANDRADE, A. de. A evolução política dos parlamentos e a maturidade democrática: o exemplo modelar do Parlamento inglês: 101.
83
antiga estrutura fundiária e de suas relações de trabalho. A competição das
empresas capitalistas contra mercadorias produzidas pelos antigos modos servis
crescia, pelo ingresso em todos os mercados nos quais podiam penetrar, indo
inclusive contra os privilégios monopolistas detidos pelos empreendedores ou pelos
mercadores que lhes distribuíam a produção. Como sublinha o economista Paul
Singer, professor da Universidade de São Paulo,174 a burguesia capitalista abria
caminho contra as oligarquias monopolistas tradicionais, por meio da unificação dos
interesses excluídos ou prejudicados pela forma de dominação então praticada.
Maurice Dobb, observa, com base em Marx, que o desenvolvimento dessas
transformações seguiu dois caminhos principais. O primeiro, em que parte da
classe mercantil então existente principiou a apropriar-se diretamente da produção,
desempenhando um papel histórico como um modo de transição, porém
eventualmente erigindo-se em um obstáculo a um modo de produção realmente
capitalista e declinando com o desenvolvimento do último.175 O outro caminho é o
que Dobb assinala como sendo propriamente revolucionário, no qual parte dos
próprios produtores, já tendo acumulado capital, passou a comerciar, e, com o
correr do tempo, começou a organizar a produção em uma base capitalista, livre
das restrições artesanais das guildas.176 Consoante Singer,177 com o tempo, o
crescimento da quantidade de prejudicados pelos monopólios atingiu uma parcela
potencialmente majoritária da sociedade, e foi nessa situação que se chegou ao
limiar do período revolucionário inglês.
É claro que nem todos os rebelados contra o regime monopolista eram
empresários capitalistas, mas também artesãos, mercadores, terratenentes,
camponeses, trabalhadores assalariados e outros que trabalhavam por conta
própria. Mas a nascente burguesia capitalista já dispunha de uma vantagem
174 SINGER, P. Uma utopia militante: repensando o socialismo: 29-30. 175 DOBB, M. A evolução do capitalismo: 156. 176 Ibidem. 177 SINGER, P. Uma utopia militante: repensando o socialismo: 30.
84
fundamental, em relação aos seus oposicionistas: ela tinha uma proposta que, em
princípio, como assinala Singer, atendia os interesses de todos os contrariados. Era
a proposta da livre competição, da liberdade de iniciativa, da retirada da
intervenção estatal nos mercados,178 enfim, a da soberania dos valores privados ou
civis, que, como observa Ferreira Filho, estiveram na origem da sociedade
civilizada.179
b) Ascensão política
Questão tão urgente quanto tormentosa era a de os interesses emergentes da
produção e do comércio – como também a nova classe de pequenos e médios
proprietários rurais -se fazerem representar politicamente contra os interesses
antigos, os quais em contrapartida procuravam se perpetuar, apoiados nos poderes
tradicionais da monarquia. O resultado foram os confrontos entre o Parlamento e o
Rei, que por sobre as discussões acerca da lei, dos costumes e dos problemas de
religião na Commonwealth britânica, demarcaram o alinhamento das instituições
políticas inglesas com o novo corpo de relações materiais que então se
sedimentava. Como aponta Hill, essa divisão de base da sociedade inglesa
estiveram na origem das guerras civis respectivas do século XVII. Segundo ele,
Não se podem encontrar divisões sociais fundamentais numa Assembléia tradicional como a Câmara dos Comuns, destinada a representar a classe proprietária e escolhida segundo um sistema eleitoral que não mudava há dois séculos. As verdadeiras divisões existiam fora do Parlamento e sua natureza social é difícil de ser negada. As regiões partidárias do Parlamento eram o sul e o leste economicamente avançados; a força dos realistas residia no norte e no oeste, ainda semifeudais. Todas as grandes cidades eram parlamentares; freqüentemente, contudo, suas oligarquias privilegiadas sustentam o rei... Só uma ou duas cidades episcopais, Oxford e Chester, eram realistas. Os portos eram todos pelo Parlamento... Mesma divisão encontramos no interior dos condados; os setores industriais eram pelo Parlamento, mas os agrícolas pelo rei.180
178 Idem: 30-31. 179 FERREIRA FILHO, V. D. Fernando Henrique e a civilização. 180 Apud MODESTO, F. As revoluções burguesas: 100-101.
85
Esse Parlamento, à época das revoluções do século XVII, vinha já de uma
longa tradição, ainda que não linear, marcada que fora por avanços e retrocessos.
A Magna Carta de 1215, com os acréscimos de 1225 quanto ao direito ambulatório,
direito de mercancia e aplicação do direito de um modo geral, reativou, por assim
dizer, o Parlamento181 e sua importância, após um período de declínio de sua
influência. Eduardo I (reinou entre 1272 e 1307), sem apoio eclesiástico após o
confisco dos bens da igreja, e sem dinheiro para a guerra que travava contra a
Escócia, País de Gales e França, apelou para o grosso da população, convocando-a
181 Redigida em latim bárbaro, a Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (Carta Magna das Liberdades, ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês), não era, consoante observa Accioli com base em Boutmy, um tratado, posto que nela não se defrontavam duas soberanias legítimas ou duas nações distintas uma em presença da outra, como também não era uma lei, posto que nascida da irregularidade e da violência; ela era um pacto entre rei e barões, estes últimos figurando não propriamente como súditos, mas na posição de beligerantes que se haviam libertado da promessa original de fidelidade. ACCIOLI, W. Instituições de direito constitucional: 67. Não obstante, a relação que se estabeleceu entre as forças em confronto efetivamente estabeleceu um compromisso político de natureza constitucional, o qual realocou as competências do Parlamento e o recolocou em uma posição de representatividade que lhe permitiria adquirir importância decisiva nos assuntos governativos. Dentro dessa ordem de idéias, podemos destacar os seguintes dispositivos daquela Carta:
– Não se estabelecerá em nosso Reino auxílio nem contribuição alguma, contra os posseiros de terras enfeudadas, sem o consentimento do nosso comum Conselho do Reino, a não ser que se destinem ao resgate de nossa pessoa, ou para armar cavaleiros a nosso filho primogênito, consignação para casar uma só vez a nossa filha primogênita; e, mesmo nestes casos, o imposto ou auxílio terá de ser moderado (et ad hoc non fiet nisi rationabile auxilium).
– A mesma disposição se observará a respeito dos auxílios fornecidos pela cidade de Londres, a qual continuará em posse de suas liberdades, foros e costumes por mar e terra.
– Concedemos, além disto, a todas as cidades, distritos e aldeias, aos Barões dos cinco portos e a todos os demais o gozo dos seus privilégios, foros e costumes, e a faculdade de enviar Deputados ao Conselho comum para convir nos subsídios correspondentes a cada um, salvo nos três casos sobreditos.
– Quando se tratar da fixação de pagamentos correspondentes a cada um, no tocante à contribuição dos posseiros, convocaremos privadamente, por meios de nossas cartas, os Arcebispos, Bispos, Abades, Condes, e principais Barões do Reino.
– Do mesmo modo, convocaremos em geral, por meio de nossos Viscondes ou sheriffs e bailios, a todos que tenham recebido, diretamente, de nós, a posse de suas terras, com quarenta dias de antecipação, para que concorram ao sítio designado; e nas convocatórias expressaremos a causa ou causas que nos tenham decidido a convocar a Assembléia.
– Uma vez expedida a convocação, proceder-se-á, imediatamente, à decisão dos negócios, segundo o acordo dos presentes, ainda que não concorram todos os que foram convocados. (http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/magna.htm, consultado em 30/01/2005).
86
para um grande Parlamento, o qual foi reunido em 1295 em Westminster
(Londres). Como nota Andrade, este ficou conhecido na Inglaterra como o
Parlamento modelo, servindo de molde para todos os demais que foram
posteriormente convocados, e daí por diante,
o fundo residual de todas as lutas, anteriores e posteriores, foi-se acumulando em grau suficiente para assegurar, no futuro, maior estabilidade à instituição. (...) Cada prerrogativa ou atribuição nova, ganha pelo Parlamento, importava em outras tantas lutas com a realeza, e, depois, com a própria Aristocracia que, na Idade Média feudal, tinha sido o seu mais poderoso sustentáculo.182
Para Hill, o século XVII é decisivo na história da Inglaterra, e o período no
qual de fato a Idade Média chegou ao seu término naquele país. Os problemas
ingleses não lhe eram privativos, mas comuns à toda Europa, expressando-se em
uma série de conflitos, revoltas e guerras civis, tudo relacionado ao surgimento, no
interior da sociedade feudal, de relações capitalistas, e ao conseqüente
reagrupamento das classes sociais. Os governos tentaram, por diferentes maneiras,
182 ANDRADE, A. de. A evolução política dos parlamentos e a maturidade democrática: o exemplo modelar do Parlamento inglês: 92-93. Consoante Andrade (Idem: 93-95), esse Parlamento não era, de início, bicameral. Até o reinado de Eduardo III (1327-1377), todos se reuniam na mesma sala, com os nobres e clérigos ocupando as fileiras da frente e os comuns (todos os que não possuiam título de nobreza e pertenciam ao clero) se enfileirando na retaguarda. A estes últimos somente era permitido falar quando interpelados, e, para manifestarem-se, recorriam a algo parecido com o procedimento atual do júri: reuniam-se separadamente, decidiam que atitude tomar e elegiam um speaker, encarregado de falar por eles e transmitir-lhes os votos ao plenário da assembléia. No Parlamento de 1343, pela primeira vez agruparam-se em locais distintos – nobreza e clero em uma sala, a Câmara dos Lordes, e os comuns em outra – a Câmara dos Comuns, a câmara baixa ou popular.
Ainda sob Eduardo III o Parlamento começou a adquirir competências legislativas. Até esse período, apenas dirigia-se ao rei mediante petições, que só se convertiam em lei se a autoridade real as aprovasse e transformasse em éditos ou ordenações. A partir daí, os parlamentares passaram a defender o direito de converter tais petições em autênticas proposições ou projetos, aos quais a própria Câmara se encarregava de dar forma definitiva e de submeter à autoridade do rei como proposta dela mesma, na qualidade de corpo coletivo. Eduardo III anuiu a essa revindicação e oficializou-a por ordenação real – tal era a força política que o Parlamento já adquirira.
Nos séculos XIV e XV, ao longo das Guerras dos Cem Anos e das Rosas, o Parlamento foi chamado com bastante freqüência para autorizar as enormes despesas requeridas, no uso de uma atribuição que àquela altura lhe fora dada por tradição que já se tornara secular. A partir do início da dinastia dos Tudor (1485), com o progresso militar e econômico inglês e o início do colonialismo ultramarino, monarcas como Henrique VIII buscaram reforçar e prestigiar a autoridade do Parlamento, para conciliá-lo com seus próprios desígnios; Henrique VIII, inclusive, confirmou em caráter definitivo as imunidades parlamentares.
87
limitar, controlar ou aproveitar-se de tais modificações, com resultados
variáveis.183 No caso particular da Inglaterra, ainda segundo Hill:
É necessário mencionar em primeiro lugar os problemas políticos e constitucionais, que surgiram sobretudo do relacionamento entre o executivo (sic) e os senhores de propriedades, que se consideravam os dirigentes naturais das cidades. Ao longo do século XVI os grandes senhores feudais haviam sido desarmados e subjugados, a igreja perdera suas conexões internacionais, grande parte de suas propriedades e muitas de suas imunidades. Eram legatários dos resíduos a Coroa, a pequena nobreza rural e as oligarquias mercantis, que dirigiam os negócios locais.184
Nesse interregno e até às vésperas do período de guerras civis do século
XVII, o prestígio dos Comuns aumentara em relação aos Lordes, tanto em função
do desgaste e da desmoralização da aristocracia, especialmente com a sua derrota
na Guerra das Rosas, como pela cada vez maior concentração da riqueza do país
nas mãos da nascente burguesia e dos proprietários de terras, representados pelos
Comuns. Os valores do capitalismo nascente, que já vinham ganhando cada vez
maior consistência econômica e social, avançavam agora no caminho da
representatividade política.
Havia, ainda, a questão religiosa. Puritanos e ritualistas prosseguiam
digladiando-se pela domínio da igreja da Inglaterra, em disputas que envolviam
tanto o rei como o Parlamento, e um contra o outro. Teologia, política e fisco
achavam-se inextricavelmente misturados, como observa André Maurrois,185
formando um grande pano de fundo para as profundas questões sócio-econômicas
que agitavam a nação e repercutiam em sua arquitetura política, a qual, ao longo
do século XVII, reestruturou-se em favor do Parlamento e das forças que este
representava.
Herança intelectual e pensamento político: a ascensão intelectual dos
valores privados
183 HILL, C. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa: 13. 184 Idem: 14. 185 MAURROIS, A. História da Inglaterra: 254.
88
a) A transição para a modernidade
As alterações de fundo que se vinham processando nas relações existentes na
sociedade inglesa pré-revolucionária, das quais falamos acima, e que ao longo dos
processos revolucionários do século XVII iriam se projetar em suas instituições
políticas, ocorreram no ambiente das profundas transformações nas formas de
pensamento e nas visões de mundo que vinham ocorrendo na Europa, desde
alguns séculos antes. Uma ruptura radical, que consistiu numa descoberta
revolucionária do plano de imanência, demarcou o primeiro momento fundacional
de construção da modernidade européia, erigido sobre a negação da autoridade
divina e transcendente sobre os assuntos humanos. Essa ruptura com a cultura
medieval já se prefigurava no pensamento do final da Idade Média, anunciando a
proximidade dessa revolução à Copérnico: ecclesia est multitudo fidelium, como
sustentava Guilherme de Occam, querendo com isso dizer que a igreja não é
superior à comunidade dos cristãos e diferente desta, mas sim imanente a essa
mesma comunidade. De modo semelhante é estruturada a definição que Marsílio de
Pádua propunha para a república, na qual o poder desta última, bem como o de
suas leis, derivam não de qualquer princípio transcendente à própria república, mas
da assembléia de seus cidadãos.
A chamada era moderna surgiu a partir do restabelecimento, no plano do
pensamento, do homem como centro de si e do mundo e explicação de ambos, a
partir de si mesmo. Duns Scotus subvertera a concepção dualista do ser, que o
interconectava entre este mundo e um outro reino transcendente, afirmando a
essência singular de cada entidade (omne ens habet aliquod esse proprium), a
qual, projetando-se na singularidade do ser particular de cada homem, levou Dante
Alighieri à definí-lo como portador da energia que põe em movimento todo o poder
do intelecto possível (totam potentiam intellectus possibilis). Essa nova dignitate
hominis encontra perfeita expressão no pensamento de Carolus Bovillus (Charles de
Boveles), como sublinham Hardt e Negri:
89
Aquele que por sua natureza é meramente humano (homo) torna-se, pela rica contribuição da arte, duplamente humano, isto é, homohomo. Por meio de suas poderosas artes e práticas, a humanidade se enriquece e se duplica, ou de fato se eleva a um poder mais alto: homohomo, humanidade ao quadrado.186
Alicerçou-se assim essa nova idade histórica no princípio da subjetividade,
conduzindo ao individualismo humano e a conseqüente afirmação de sua autonomia
em agir no e pensar o mundo. Muito contribuiu para esse novo entender-se do
homem no mundo e frente a si próprio a Reforma Protestante, pela qual declinou o
monopólio da mediação institucionalizada da Igreja Católica entre sujeito e
verdade, afastando com isso os obstáculos religiosos para o início do processo de
secularização da vida. Como sintetizam Hardt e Negri, ao longo desse caminho, na
Europa de entre 1200 e 1600, seres humanos se declararam donos da própria vida,
produtores de cidades e de história e inventores de céus.187 Esse crescimento do
indivíduo projetou-se no cosmos político-jurídico e também como fundamento das
novas relações sociais sobre as quais erigiu-se a sociedade moderna, e figurou, da
mesma forma, no centro das construções constitucionais correspondentes.
b) A revolução do pensamento
A projeção dessas características da nascente modernidade européia no contexto
das transformações na sociedade inglesa, pode ser sentida já entre os ingleses do
que se poderia chamar de classe média do século XVI, os quais, como nota Hill,
foram não apenas estimulados à alfabetização, de modo que pudessem ler a Bíblia,
como também educados nas escolas que os mercadores haviam fundado para
libertar a educação do controle clerical.188 O modo de vida urbano, avançando de
186 HARDT & NEGRI. Império: 90. 187 Idem: 89. 188 HILL, C. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa: 14. Como destaca Sabine, um aspecto que ilustra o ineditismo nas lutas do século XVII, foi o aparecimento, pela primeira vez, ao longo do processo revolucionário inglês, da opinião pública como um fator relevante para a vida política, alavancada por um enorme volume de publicações polêmicas que apareciam ocasionalmente. Elas se ocupavam de idéias de diversas naturezas, teológicas, religiosas e éticas, mas já sob um viés de sua aplicação ao governo. Praticamente tudo era discutido nessas publicações, fossem abusos cometidos, aspectos constitucionais, tolerância religiosa, relações da igreja com a autoridade civil, além de debates sobre diversas formas de liberdade civil e propostas que
90
braços dados com o caráter crescentemente capitalista das relações de produção,
era, segundo Hill, pragmático, utilitário e individualista, e nele as coisas
importavam mais que as palavras, e a experiência mais que a autoridade, estando
em harmonia com as novas tendências do pensamento protestante e científico.189 O
mesmo autor destaca ainda, dentre outros conjuntos de fatores, o aparecimento da
teoria econômica, marcado pelo surgimento da assim chamada lei de Gresham, das
primeiras idéias a respeito da relação entre o tesouro nacional e o excedente ou
déficit do comércio exterior e sobre a natureza da inflação; e, num plano mais
diretamente relacionado ao poder político, a tradução dos clássicos para a língua
inglesa, colocando as idéias republicanas da Grécia e de Roma nas mãos da classe
média e inferior.190 Sobre este último fenômeno, salienta Hill que
Hobbes não foi o único a pensar que a permissão para que tais livros fossem publicamente lidos teve uma importância revolucionária quase que igual à da tradução da Bíblia.191
Nesse contexto, foi favorecido o desenvolvimento de um corpo de
pensamento político em torno da questão do absolutismo do poder dos reis, em sua
quase totalidade voltado para a respectiva contenção, e ao mesmo tempo
relacionado à afirmação política das novas forças econômicas que então cresciam
de importância. No que tange à soluções para o problema do absolutismo real, nos
informa Bobbio que o pensamento político inglês forneceu imensa contribuição, em
cuja respectiva tradição dá-se o nome específico de “constitucionalismo” ao
conjunto de movimentos que lutam contra o abuso do poder estatal.192 Dentro do
amplo alcance que pode ter a idéia de constitucionalismo, como vimos no capítulo
I, ela aqui assume uma feição voltada para a reconstrução política do Estado, a
englobaram a maior parte dos artifícios políticos que os governos ditos democráticos têm tentado desde então. Foi o primeiro uso político intensivo que se fez da imprensa, e teve sua importância na difusão de idéias e aspirações por uma parcela considerável da população inglesa. SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política: 353. 189 HILL, C. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa: 15. 190 Idem: 372. 191 Ibidem. 192 BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant: 15.
91
partir da incorporação dos poderes emergentes da nação diante dos poderes
tradicionais, inclusive os da monarquia. Esse novo balanceamento de forças
políticas, por assim dizer, somente poderia ocorrer mediante a limitação das forças
que já se encontravam institucionalmente sedimentadas, o que implicava o
estabelecimento de uma fundamentação completamente nova para o poder político,
suas fontes e para as obrigações que dele derivam. Nessa época de entrechoque
das idéias dirigidas à articulação das novas potências que avançavam na Inglaterra,
com aquelas advindas da reação que buscavam preservar da antiga ordem o que
fosse possível, as próprias idéias foram revolucionadas e revolucionárias.
Como sublinha Bobbio,193 uma importante corrente de pensamento nessa
época de novas idéias, foi a dos assim chamados monarcomaci, escritores políticos
calvinistas cuja relevância para o período revolucionário residiu na afirmação do
direito de resistência contra o monarca injusto ou ilegítimo, fundamentado na
limitação do poder do príncipe e em sua derivação do consenso popular. Os vários
autores dessa corrente filiavam-se tanto a teses vinculadas aos direitos naturais
como a outras de caráter contratualista, como ocorre com Giovanni Althusius, seu
principal expoente. Este advogava em sua Politica Methodice Digesta, de 1603, a
idéia de que o homem é um animal social que vive em vários tipos de associações,
como as famílias, corporações, províncias etc. (consociationes symbioticae), não
naturais e fundamentadas no consenso, expresso ou tácito. O Estado, como uma e
a mais elevada dessas associações, seria o resultado de dois pactos sucessivos, o
pactum societatis e o pactum subjectionis, pelos quais estabelecer-se-iam,
respectivamente, a convivência societal pacífica, sendo sujeitos desse pacto os
próprios indivíduos que assim convencionariam sair do estado de natureza e desse
modo se converteriam em populus, e as correlações de direitos e deveres entre
esse populus e a estrutura hierárquica do Estado. Este seria constituído com a
finalidade de utilizar seu poder coercitivo na preservação da vida, dos bens e das
193 Idem: 27-29.
92
pessoas, sendo sujeitos desse pacto o povo e a pessoa ou pessoas a quem esse
poder é confiado. A tese contratualista defendida por Althusius implicava ser o povo
o titular do jus majestatis, e seu exercício pelos governantes uma concessio imperii
que colocava estes últimos na posição de mandatários incumbidos da execução, por
delegação, do direito soberano do povo, e, nesses termos, os restringia aos limites
do mandato recebido, sob pena de destituição. Essa corrente se destacava, assim,
em três aspectos fundamentais: o de que o poder político deve ser limitado; de que
essa limitação significa definir condicionantes para a sua aquisição e o seu
exercício; e o de que os fundamentos da aquisição e exercício do poder pelos
governantes devem ser situados dentro da sociedade, transformando-se a
transcendência religiosa das fundamentações mais antigas em imanência social -
ainda que isso não exclua os contornos metafísicos das hipóteses contratualistas,
em face de sua anterioridade ao Estado e à própria sociedade, e de sua não
verificabilidade.
Nem todos os conjuntos de idéias significativas daquele período tiveram,
porém, o mesmo impacto no processo revolucionário. Isso ocorreu, por exemplo,
com o mais importante movimento político popular daquela época, o dos
Niveladores, os quais, saídos da parcela menos próspera da classe média de então,
muitos dos quais integrantes do exército revolucionário de Oliver Cromwell, se
tornaram a ala radical da revolução. No princípio, formados por soldados menos
graduados - pequenos comerciantes, artesãos e agricultores -, insatisfeitos com o
plano de reformas tímido e conservador formulado pelos seus oficiais, no breve
espaço de tempo compreendido entre 1647 e 1649 chegaram a formar uma
agremiação mais ou menos semelhante a um partido político. Possuíam uma idéia
particular e clara das aspirações da Revolução, ainda que sem maiores articulações
teóricas. Tolerantes do ponto de vista religioso e contrários à associação do
governo com a religião, possuíam um corpo definido de crenças políticas comuns,
segundo as quais pretendiam remodelar a constituição inglesa. Tinham uma idéia
própria de inclusividade política, extremamente horizontalizada, que pretendiam
93
distanciar o máximo possível da propriedade, sem que isso necessariamente
significasse a supressão da propriedade em si. Pregavam a igualdade abstrata
diante da lei e a igualdade de diretos políticos, inclusive quanto ao sufrágio (ainda
que restrito aos varões e com a possível exclusão dos mendigos), num sentido que
antecipava as definições de índole liberal que viriam a ser dadas à democracia.
Suas idéias derivavam de uma concepção do direito natural como fonte de direitos
inatos e inalienáveis de que são titulares os homens, e em relação aos quais as
instituições políticas e jurídicas têm por missão precípua a respectiva proteção.
Ainda que sem chegarem a desenvolver todas as implicações contratualistas
contidas na idéia, defendiam o consentimento como ato individual de cada homem
e base do Estado, e como fundamento da sociedade o benefício recíproco dos
indivíduos que a compõem, pelo que prefiguravam também algo do utilitarismo
inglês que teria seu apogeu teórico entre os séculos XVIII e XIX. Defendiam a
independência do Parlamento, não por qualquer direito próprio deste último
fundado em prerrogativas tradicionais, mas porque eram representantes do povo –
e não das corporações ou de outros direitos relacionados com a propriedade -,
sendo este último o detentor da soberania. Como observa Sabine, os Niveladores
são interessantes, não tanto pelo que se mostraram capazes de fazer, já que foram
inteiramente derrotados, mas porque suas idéias se anteciparam em vários
aspectos à ideologias e programas mais tarde associados à democracia.194
Muitos outros autores ingleses escreveram em meio ao cenário de disputas
que demarcou o avanço de novos valores econômicos, sociais e políticos por sobre
os antigos valores integrativos da nação anglo-saxônica. Poderíamos por exemplo
falar das idéias sobre a república que então surgiam; no entanto, ainda que os
Niveladores, parcela fundamental do movimento revolucionário, contassem em
suas fileiras com alguns republicanos convictos, a abolição da monarquia não era,
de modo geral, a questão principal, e o reduzido corpo de teorias republicanas que
194 SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política: 356.
94
então se formavam teve pouca importância nos acontecimentos que se
desenrolavam. Seus defensores – como John Milton e Algernon Sidney, por
exemplo, que defendiam a república com base em argumentos abstratos de direito
natural e no poder soberano do povo - não lograram organizar movimentos práticos
a partir de suas idéias, cuja natureza era heterogênea. No entanto, como sublinha
Sabine, o que Milton e Sidney entendiam como povo era ainda
uma comunidade dirigida por uma elite natural e não uma massa de indivíduos iguais dotados de direitos inatos”, de tal modo que o republicanismo do século XVII tinha um caráter fundamentalmente aristocrático, não se identificando com o programa político dos Niveladores, naquilo que este implicava uma proclamação geral dos direitos do homem.195
Em outra sede de pensamento, poderíamos também citar Francis Bacon,
cuja ênfase na razão e na experimentação contra os argumentos de autoridade e
na remoção para um distante passado da intervenção divina direta fortaleceram os
propósitos revolucionários, ou ainda sir Walter Ralegh e sir Edward Coke, dentre os
que ofereceram idéias aos homens que a partir da década de 1640 passaram da
condição de subordinação política para a de protagonistas da tomada do poder. No
entanto, dentro das limitações inerentes à extensão deste trabalho e ao recorte do
objeto respectivo, limitar-nos-emos aqui apenas a Hobbes, Harrington e Locke,
autores que não apenas estão entre os mais signficativos, relativamente às
principais questões políticas de sua época, como as soluções que para elas
articularam têm ressonâncias até mesmo em nossos dias.
Particularmente no que diz respeito a Locke, cabe registrar que este não
apenas forneceu os mais consistentes alicerces intelectuais para as instituições
políticas liberais que resultaram do processo revolucionário inglês, como influenciou
ainda os processos revolucionários americano e francês, podendo-se assim
estender a ele - ainda com mais razão - a observação feita por Hill em relação a
Bacon: sua função foi formular com clareza aquilo que outros homens procuravam,
195 Idem: 380.
95
o que é a definição de um grande personagem histórico.196 Além do alcance da
influência de Locke, o mais interessante a ser notado aqui é o fato de que, não
obstante terem escrito com finalidades diversas uns dos outros, alinhando se com
pólos diferentes dentro dos conflitos da época, e tendo produzido suas respectivas
obras em momentos diversos dos confrontos internos ingleses do século XVII, o
pensamento desses autores tem em comum o fato de que se desenvolveram em
torno de dois pontos fundamentais e simultâneos: o afastamento de quaisquer
fundamentações teológicas para o poder político – o que também surgia no
pensamento de outros importantes autores, como Althusius, Milton e Sidney - e a
relação propriedade/poder político. Isso, principalmente em relação a este último
aspecto, não significa dizer que, embora tenham pensado as mesmas questões, as
tenham pensado da mesma maneira, ou que delas tenham extraído conseqüências
idênticas, mas que, independentemente de como montaram suas equações políticas
ou do valor que deram às respectivas incógnitas, o fizeram em torno do mesmo
núcleo relacional. Isso demonstra sua centralidade no processo revolucionário
inglês, tanto do ponto de vista do declínio de alguns dos fatores tradicionais de
legitimação do poder político, como no da estruturação do seu exercício. Assim
como o fato de representarem abordagens muito diferentes dos mesmos problemas
básicos indica que as forças sociais em confronto, conquanto se entrechocassem
em diferentes direções, moviam-se a partir de um mesmo vetor, o qual adquirira
potência constituinte decisiva: a supremacia dos valores privados.
Hobbes
Desse modo, se nas idéias de Thomas Hobbes, por exemplo, encontramos
um fundo metafísico, que era comum a outros grandes teóricos do período –
inclusive os que lhe eram contrários -, a este procuravam dar preeminência sobre
os argumentos tradicionais de caráter teológico. Esses autores eram racionalistas
determinados, possuindo, como diz Ernst Cassirer, uma fé quase ilimitada no poder
196 HILL, Christopher. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa: 389.
96
da razão humana,197 e rejeitavam métodos históricos ou psicológicos em favor de
uma metodologia analítica e dedutiva. Em estilo aristotélico, derivando seus
princípios políticos daquilo que definiam como a natureza do homem e do Estado,
enunciavam por esse caminho os primeiros princípios ou primeiras causas da vida
social do homem, princípios axiomáticos, evidentes por si mesmos e insuscetíveis
de demonstração empírica ou histórica, ao mesmo tempo em que eram genéticos
da própria vida social, fazendo com que todas as propriedades desta última
pudessem ser derivadas por meio de processos estritamente dedutivos. Esses
autores eram filhos do seu tempo, o tempo da redescoberta da autonomia
subjetiva, a qual já nos referimos, e ao erigir o Estado sobre fundamentos
exclusivamente lógicos, contribuíram para libertar os homens das tiranias morais e
religiosas. Consoante assinala Cassirer, Hobbes, em particular, assim como Hugo
Grotius – o qual, na introdução do seu De jure belli et pacis, exprime a convicção
de que não é de modo algum impossível encontrar uma matemática da política -
nutria a ambição de criar uma teoria do corpo político igual em claridade, método
científico e certeza à teoria dos corpos físicos desenvolvida por Galileu.198
A hipótese hobbesiana fundamental - a qual, de modo semelhante aos
primeiros elementos de um objeto geométrico, é passível de reconstrução por meio
de um processo sintético de pensamento - é o contrato. O Estado, ou
Commonwealth, está alicerçado em um contrato primordial, pressupondo o livre
assentimento das partes contratantes, perfeitamente cônscias do sentido e
conseqüências dessa avença. Esse Estado-contrato (ou Commonwealth-contrato) é
o paradigma de uma ordem social e legal constituída de atos individuais livres, de
uma esfera de indivíduos autônomos – pois que se não o fossem não poderiam
contratar – mantidos unidos e protegidos contra perigos externos e internos
(principalmente contra eventuais descumprimentos contratuais) por esse mesmo
Estado (ou Commonwealth), que tem nessa dupla proteção sua única razão de ser.
197 CASSIRER, E. O mito do Estado: 198. 198 Ibidem.
97
Esse pacto original é um pacto de submissão, supressor da liberdade irrestrita
atribuída por Hobbes aos homens quando no estado de natureza. E é também o
momento que simultaneamente define e legitima o poder político: a supressão
tanto é voluntária como pressuposto necessário do ingresso na sociedade civil ou
política, através do qual é, por assim dizer, incorporada a vontade social no
governante do Estado, o Leviatã, homem artificial formado por todos os integrantes
da sociedade - e que só pode assim ser vivido por representação - implicando uma
transferência não apenas de alguns direitos, mas na transferência ao Leviatã do
comando sobre o somatório da força de cada um dos integrantes da sociedade civil,
tornando-o desse modo o detentor do poder soberano. Desaparecem então
quaisquer outros poderes acima ou mesmo equivalentes ao do Leviatã, passando
dessa maneira o Estado a transcender a própia sociedade civil, de cuja fundação
teria sido a finalidade. Associação e subjugação são simultaneamente afirmadas e
legitimadas pela concepção apriorística do contrato primordial, implícito e anterior a
qualquer ação social e sempre aparentemente democrático em sua origem
voluntária, mas nunca o sendo em relação ao exercício atual do poder, de vez que
o momento contratual original é sempre um momento passado, relativamente a
esse exercício. Por seu turno, a projeção dos desejos e necessidades isoladas no
soberano, que ao mesmo tempo representa os indivíduos e os transcende, aliena
no Leviatã todo a potência política do povo e o poder autônomo da multidão.
A indivisibilidade da soberania é ínsita a esse sistema. Nos capítulos 17, 19,
20, 26 e 29 do Leviatã (mais particularmente neste último), Hobbes ataca a
tipologia constitucional polibiana e a constituição mista romana, interpretando-a
consoante a descrição que dela faz Políbios, ainda que sem mencioná-lo. Dentro do
pensamento hobbesiano, um desenho constitucional do tipo checks and balances
conduziria, como nota Negri,199 a uma situação não apenas estática mas até
mesmo regressiva – à temática de Hobbes é estranho o problema básico abordado
199 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 164.
98
por Políbios, que era o do nascimento e da corrupção da república. Dividir poderes
no organismo do Estado200 é enfraquecê-lo, é um prelúdio para a instauração da
desordem. É uma ameaça a paz qualquer dicotomização entre um homem (ou uma
assembléia) que faça as leis, outro que detenha o poder de cuidar de sua execução
e um terceiro que esteja investido do poder de julgar. Pondo-se esses três entes de
acordo, seu poder será semelhante ao de uma única pessoa, sendo, portanto,
preferível que estejam reunidos em uma única pessoa. Estando em desacordo
aqueles entes, degenerará o Estado em desordem.201
Não obstante, essa questão da autoridade supostamente absoluta do
soberano é geralmente mal compreendida em Hobbes. Para ele, as leis naturais
vedam já o furto, o homicídio, e outros delitos, competindo à lei civil, a ser baixada
pelo soberano, explicitar o conteúdo desses comandos e as penalidades
respectivas. O limite a essa leis civis é, tão somente, a própria lei natural, que não
pode ser contrariada, sob pena de subtrair-se ao desígnio divino que Hobbes
identificava na natureza. Uma outra fronteira havia ainda que ser respeitada pelo
detentor do poder soberano: este detinha poder absoluto de mando, mas destinado
ao atendimento dos fins da criação da sociedade civil, ou seja, a segurança física
dos súditos e de suas propriedades, ao qual corresponde o dever do súdito de
obedecer sem reservas, para que esses fins possam ser alcançados. Assim, o
discurso hobbesiano busca ao mesmo tempo remover os obstáculos surgidos ao
exercício monocrático e concentrado do poder soberano, e estabelecer vinculações
recíprocas entre este último e a sociedade civil. Essas vinculações, se de um lado
concentram no Leviatã toda a autoridade, por outro estabelecem de fato limites ao
exercício do poder político. Podemos dessa maneira afirmar, um tanto
200 A guerra civil na Inglaterra fora deflagrada a partir das disputas entre o rei e o parlamento, com conotações religiosas também entre anglicanos e puritanos. 201 Como destaca o professor João Virgilio Tagliavini: O que fariam, então, os profissionais da Justiça nesse Estado? Há espaço para que eles ajudem o soberano a resolver as questões entre os indivíduos, julgando de acordo com a vontade do soberano. Jamais poderão julgar contra o soberano. Isso seria contraditório, pois se o poder é soberano, todo poder tem sua origem nele. TAGLIAVINI, J. V. O Leviatã de Thomas Hobbes: s/ p.
99
paradoxalmente, que o poder soberano do Leviatã é absoluto, mas não ilimitado;
ou que é absoluto apenas dentro de suas finalidades. Deve-se atentar aqui para o
momento histórico no qual Hobbes escreveu: uma casa legislativa tentava afirmar o
primado das leis que em nome do povo elaborava, sobre a própria autoridade do
monarca, cujos princípios legitimadores, postos a prova, levaram seu país a uma
guerra civil. Nesse contexto, o Leviatã foi a solução de compromisso construída por
Hobbes para os conflitos entre a monarquia e os poderes emergentes na sociedade
inglesa, à época em que escreveu sua obra. Assim, se o sistema hobbesiano implica
total supressão de qualquer instância coletiva diferente do Leviatã, é preciso
observar com Tagliavini que, de um modo coerente com o contexto histórico no
qual se insere, em Hobbes o
Estado civil não nasce para salvar a liberdade do indivíduo, mas para salvar o indivíduo da liberdade, já que esta o conduz à ruína, à guerra.202
Somando-se a tudo isso sua concepção do poder político inteiramente
fundada em fatores imanentes às relações humanas, é possível notar que o
pensamento hobbesiano não somente admite a violência como elemento integrante
da sociedade, como considera sua existência um pressuposto da própria criação da
comunidade política. Dentro desse quadro, concordamos com o cientista político
inglês R. B. J. Walker, professor das Universidades de Vicotoria (Canadá), de Keele
(Grã-Bretanha), do Instituto de Relações Internacionais e da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, no sentido de que essa comunidade política é, assim,
um espaço jurídico de legitimação e organização da violência, que define os termos
em que esta última é necessária para a criação e a manutenção de tal
comunidade.203 Desse modo, se o principal vetor da construção política hobbesiana
é a segurança do privado, o seu núcleo é o medo -certamente instilado pela
violência do processo revolucionário e pelo ciclo de guerras externas do qual vinha
a Inglaterra –, o medo dos súditos por suas propriedades, uns em relação aos
202 Idem. 203 WALKER, R. B. J. A violência é constituinte da modernidade.
100
outros e em relação aos inimigos externos do país, e do rei em relação a uns e a
outros; o medo transformado em motor da constituição contratual da sociedade
civil e do Estado.
Podemos enfim dizer, com Negri,204 que Hobbes produz uma síntese política
determinada pelo elemento espacial - a propriedade - e pelo elemento temporal -
arranjo constitucional e jurídico - da mesma forma que o faz, mas com uma
interpretação muito diversa da sua estruturação, James Harrington.
Harrington
Este último publicou sua principal obra, The Commonwealth of Oceana, em
1656, em plena Revolução. Harrington era aristocrata de nascimento, mas
republicano por convicção, defendendo a república não por qualquer fator jurídico
ou naturalístico, mas como o regime que segundo ele melhor se amoldaria às
relações materiais de propriedade. Equivocou-se, é verdade, quanto à inviabilidade
da monarquia, mas não quanto ao deslocamento operado nas realidades do poder
econômico e suas implicações políticas, as quais não mais poderiam ser ignoradas
pelos governos britânicos.
Dentre os observadores da revolução puritana, Harrington tem uma
apreciação muito própria de suas causas sociais. Sua argumentação não exibe o
mesmo brilho lógico hobbesiano, mas supera-o na percepção da importância
política dos fatos sociais. Foi o primeiro autor a falar de estrutura e superestrutura,
aquela como a base social e econômica que determina a construção e o
funcionamento desta última, que é o governo formal. Como sua teoria é alicerçada
na idéia de que uma forma de governo estável em qualquer país depende da
distribuição da propriedade, particularmente da terra - a propriedade que para ele
tem realmente importância política -, devendo corresponder às suas respectivas
proporções, Harrington não se preocupa em discutir os vícios monárquicos ou
parlamentares ingleses, nem se deixa arrastar pelos rancores entre partidos e
204 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 164.
101
seitas religiosas, mas dedica-se a apresentar uma teoria econômico-histórica da
guerra civil pela qual as causas principais das revoluções residem nas
desigualdades de propriedade. O fundamental é o número de proprietários: se a
terra está nas mãos da nobreza, o Estado é dela dependente; se a terra passa a
muitas mãos, o poder da nobreza deve ser reduzido na mesma proporção. A
propriedade em Harrington é uma instituição jurídica despida de qualquer
componente jusnaturalista, sendo possível por meios jurídicos perpetuar uma
distribuição favorável à forma de governo desejada. Mas, não obstante sua
concepção realista da relação entre poder político e poder econômico, Harrington
focalizou-a de modo excessivamente concentrado na propriedade fundiária,
subestimando outros aspectos que viriam a se tornar fundamentais, como a
produção manufatureira, o comércio e as finanças. Passou-lhe despercebida a
crescente influência das mudanças nos modos de produção e nas práticas
comerciais que já estavam em curso na sua época, talvez por seu ponto de vista
ter estado vinculado ao de uma classe terratenente.
Quanto aos meios para atingir a estabilidade da balança entre poder político
e propriedade, a por assim dizer estrutura da superestrutura republicana, o
principal fator é a lei agrária, voltada não para impedir alguma injustiça
abstratamente considerada, mas para evitar os perigos sociais representados por
mudanças drásticas na distribuição da propriedade da terra. E, no que concerne a
república, para evitar sua concentração nas mãos de poucas pessoas. No entanto, é
interessante notar que a concepção harringtoniana da função deliberativa ou de
formulação de políticas é aristocrática, estando correlacionada à experiência e
prática de algumas poucas pessoas. Aristocrática, aqui, porém, não significa dizer
autocrática: a aceitação ou a negativa dessas deliberações ou formulações é uma
atribuição popular a ser exercida por um grande corpo, eleito especificamente para
esse fim, sem competência deliberativa. Essa era a forma de equilíbrio entre as
representações políticas; Harrington não se ocupa da questão da independência do
judiciário.
102
A essa lei agrária juntar-se-iam outras três medidas: a eletividade e a
rotatividade nos cargos, a serem ocupados por períodos breves, sem reeleição
imediata; o sufrágio secreto para permitir a livre escolha pelo eleitor; e a separação
de poderes, esta última estando mais próxima da que existira na república romana
do que do modelo proposto depois por Montesquieu, sobre o qual falaremos no
próximo capítulo. Por outro lado, a idéia de um instrumento escrito de governo,
elaborado por uma assembléia legislativa extraordinária, implica uma distinção
entre legislação ordinária e legislação constitucional, assim que sem esses nomes.
Negri sustenta ser possível assimilar diversos aspectos do pensamento de
Harrington à idéias de democracia. Para este autor, que vincula fortemente a obra
de Harrington à inspiração maquiaveliana que segundo ele a orientou, no
pensamento harringtoniano o conceito de corrupção alcança um estatuto lógico
explícito.205 Este último já não era mais apenas o de Maquiavel, mas havia evoluído
para um conceito econômico-político. Tendo por base as idéias maquiavelianas das
armas como fundamento da cidade e do povo como potência constituinte, haveria
corrupção sempre que o povo não esteja em armas fazendo da virtù o fundamento
da liberdade contra a fortuna, contra a riqueza dos poderosos. Aplicando essa idéia
à visão que tinha das realidades econômicas da Inglaterra do seu tempo, o
fundamento das armas, em Harrington, seria a propriedade da terra, o que de
imediato explicaria a vinculação desse autor com as posições mais radicais da
Revolução, representadas pelos free-holders-in-arms, os quais preconizavam uma
redistribuição de caráter socialista daquela propriedade. A imposição de uma nova
lei agrária seria, então, não apenas uma medida jurídica ordinária, mas o
banimento constituinte do mundo medieval e de suas relações jurídicas. A
propriedade, por essa lei de características tão radicais, e com ela o poder político,
seriam transferidos em benefício dos plebeus, construindo assim a democracia
porque lhe construiria a própria base – ela é o contrapoder em ato contra o gothic
205 Idem: 169.
103
balance, contra a velha constituição, como a define Negri.206 Para esse autor, o
conceito de propriedade esposado por Harrington nada tinha de antigo, remontando
ao século anterior (o XVI), quando
já se percebera que a virtù, as armas, a transferência progressiva de propriedade eram fenômenos conexos entre si, inseridos no novo processo de redistribuição do poder.207
A aplicação do princípio maquiaveliano da política define aqui os grandes
confrontos de classe em sua luta pela apropriação, como o motor da produção do
direito e do Estado, nascendo dessa mesma luta o próprio princípio constituinte,
que nela busca a expressão máxima de sua virtù – legislar continua a ser a arte
quase divina de imprimir forma à matéria, diz Harrington em The Art of Lawgiving,
publicado em 1659, pouco depois da morte de Cromwell.208 Ao invés de fundar a
possibilidade de liberdade em uma fonte transcendental, como faz Hobbes,
Harrington funda materialmente a lei e as possibilidades de liberdade na lei agrária,
que surge assim como uma autêntica norma constitucional que não apenas a
garante juridicamente, mas reforça e reproduz a própria ordem da constituição
material da sociedade. Os seguintes trechos de Oceana, citados por Negri, mostram
o desenvolvimento que Harrington faz da relação entre estrutura e superestrutura,
bem como a incorporação e simultânea limitação da aristocracia em sua
Commonwealth:
Uma república igual... é aquela que, a um só tempo, é igual no equilíbrio [da distribuição da propriedade}, ou fundação, e na superestrutura, ou seja, na lei agrária e na lei da rotatividade. Uma lei agrária igual é aquela que estabelece e preserva o equilíbrio das propriedades através de uma distribuição pela qual nenhum homem ou grupo de homens possa, no círculo dos poucos ou aristocracia, subjugar todo o povo com suas propriedades territoriais. Assim como a lei agrária corresponde ao fundamento, a rotatividade corresponde à superestrutura.209
206 Idem: 170. 207 Idem: 171. 208 Idem: 174. 209 Idem: 177.
104
A Commonwealth harringtoniana pode ser entendida como um modelo
revisado e atualizado da antiga república romana e de sua constituição mista,
incorporando o novo balanço social da propriedade na divisão dos poderes entre o
senado, o povo e a magistratura executiva. Essa atualização consistia não apenas
na incorporação política desse balanço, mas numa ampliação do papel popular –
proprietário de no mínimo a metade do território de um país onde o poder político
seria fundado na estrutura da propriedade da terra -, consolidado não apenas como
poder constituinte, mas como contra-poder efetivo, posto como limitação aos usos
aristocráticos ou absolutistas da constituição mista. O equilíbrio resultante não teria
qualquer relação com conceitos jusnaturalistas, assim como não seria estático, ou
seja, um elemento interno da própria estrutura das coisas: ele seria um produto
dinâmico do novo balanço sócio-político. Nesse sentido, é possível dizer que, não
obstante a forma fantástica da apresentação de suas propostas, seu Oceana é
menos utópico do que propositivo.
As possibilidades que poderiam eventualmente relacionar-se à noções de
democracia – como também os seus limites, que apareciam na proposta
harringtoniana na medida em que o povo, sempre entendido por ele como o
conjunto dos pequenos proprietários, não seria o autor das deliberações, embora
fosse seu juiz – são fundadas naquele desenvolvimento contraditório do Estado, e
com isso Harrington distanciou-se profundamente de Hobbes. O resultado é o
desenho de um regime no qual o contingente de pequenos proprietários exerce
simultaneamente o papel de um poder de contenção e de um poder de legitimação,
original nas conexões que estabelece entre o princípio da apropriação e a divisão
dos poderes, como também no que se refere à eleição, rotatividade e
funcionamento dos poderes do Estado, definindo e relacionando os conceitos de
representação e de responsabilidade. Podemos enfim dizer que se trata de um
105
sistema projetado para o equilíbrio210 e duração no tempo, fundando sua
estabilidade na instabilidade controlada de seus antagonismos, permitindo a
expressão política dos interesses materiais reais, ao mesmo tempo em que busca
impedir que se tornem destrutivos.
Como dissemos, esse projeto foi derrotado: com a morte de Cromwell, em
1658, sobreveio o término do processo revolucionário, e a retomada da constituição
tradicional, com Carlos II sendo coroado em 1661. A burguesia passou a
concentrar-se em restaurar as condições constitucionais de que necessitava para
retomar o processo de acumulação primitiva. Terminou a aliança entre a gentry e
os yeomanry, e da restauração de 1661 à Revolução Gloriosa foi estabelecido um
compromisso político entre a gentry e a burguesia industrial e financeira, não
deixando condições para a materialização do discurso constituinte de Harrington.
Num breve espaço de tempo, sua teoria da propriedade tornou-se uma ideologia
reacionária frente às novas condições da apropriação capitalista que então
prosperavam.
Locke
Nesse contexto, John Locke veio a representar a ordem e o elemento
fundamental da restauração: a passagem das teorias polibianas às teorias do
contrato, que já começara em Hobbes. Em relação a este último, chega a ser
pequena a contradição do pensamento lockeano, se comparada com a que existe
entre este e o de Harrington. Essas teorias contratualistas resultavam numa
concepção de política despida de elementos antagonísticos, neutralizados, como já
vimos, pela sua expulsão para um hipotético momento anterior à constituição da
sociedade civil, fundada sobre um também hipotético consenso voluntário. Assim,
como observa Bobbio, ao mostrar a diferença entre o governante de uma sociedade
política, um pai de família e um capitão de galera, com a qual começa o Segundo
210 Equilíbrio não significa necessariamente igualdade, assim como igualdade não significa necessariamente democracia (embora seja um pressuposto dessa última, uma condição necessária, mas não suficiente).
106
tratado sobre o governo, Locke legitima a obrigação para com o primeiro por meio
do consenso, diferentemente da segunda obrigação, que seria natural, e da
terceira, que seria um apenamento.211 Desse modo reporta-se às três fontes
clássicas das obrigações: ex contractu, ex natura e ex delictu, distinguindo-se de
Hobbes quanto à definição do estado de natureza como uma situação de liberdade
de disposição dos próprios bens e pessoa, isenta de vínculos exteriores ao
indivíduo, e não como um estado mutuamente ferino. Porém, não obstante sua
hipotética origem consensual, e portanto como um ato de constituição originado na
vontade, a socialização do homem, a sua transformação de indivíduo zoológico em
cidadão, se dá através do aprisionamento do poder constituinte dentro de um
quadro de divisões e de limites que o reduz a um poder residual, a um direito
residual de resistência.
Os Two Treatises of Government de Locke foram publicados em 1690 com o
indisfarçado propósito de defender a Revolução de 1688-90. O primeiro desses dois
ensaios, uma refutação às posições de Sir Robert Filmer, não tem importância
permanente,212 mas o segundo é mais do que uma publicação episódica derivada
das circunstâncias do momento. Liga-se ao período das guerras civis e, indo além
delas, entrelaça-se através da Ecclesiastical Polity de Hooker com a ampla tradição
do pensamento político medieval desde Santo Tomás de Aquino, na qual eram
axiomáticas a realidade das restrições morais ao poder, a responsabilidade dos
governantes para com as comunidades por eles regidas e a subordinação do
governo ao direito, como sublinha Sabine.213 Isso não significa que Locke seja
211 BOBBIO, N. A Teoria das Formas de Governo: 143. 212 Filmer pretendera justificar o poder absoluto dos monarcas, afirmando que a soberania absoluta de Adão legitimava a soberania absoluta dos reis, que seriam herdeiros daquele. Como os homens nascem sob o controle de seus pais, em suas famílias, vêm assim ao mundo em um estado de submissão política, e, sendo o reino uma reunião das famílias, e o soberano o seu patriarca, estariam os súditos submetidos a este, como estão aos seus pais. Locke contraditou dizendo que as Escrituras não conferem tal poder absoluto aos pais sobre seus filhos, não podendo, portanto, o governo total do rei ser justificado com base nessa comparação ou paradigma. 213 SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política: 386.
107
efetivamente tradicionalista, ou que se destaque por uma lógica cristalina e livre de
ambigüidades ou lacunas, ou ainda pela profundidade de sua erudição. Sua
característica mais marcante consiste em reunir o corpo das convicções principais
de sua época em sede filosófica, política e educacional, desenvolvidas à luz da
experiência do passado pelo pensamento de sua geração, incluindo os elementos
permanentes da tradição medieval tomística tomados através de Hooker,
rearticulados em face dos acontecimentos ocorridos no século que mediou ente ele
próprio e este último autor.
A passagem abaixo do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, põe em
evidência alguns elementos centrais da concepção política lockeana:
Considero, portanto, poder político o direito de fazer leis com pena de morte e, conseqüentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comunidade de dano exterior; e tudo isso tão-só em prol do bem público.214
A segurança do privado surge como a principal finalidade da Commonwealth,
o núcleo do poder aparece como sendo a atividade legislativa e, à semelhança do
pensamento hobbesiano, há ainda um componente militar, situado no emprego da
força da comunidade e em sua defesa. A questão do privado deve ser entendida em
Locke a partir da identificação feita por ele da lei natural – que seria a lei de Deus
na natureza – com a lei da razão, desta última defluindo a noção de propriedade,
que derivaria do trabalho. Por este, anexa o homem à coisa algo de si que não
estava originariamente na natureza, desse modo excluindo essa coisa do direito
comum aos demais homens. Assim, a propriedade está assentada sobre o trabalho;
mas é ainda um dado de direito natural, antecedendo, portanto, a sociedade
política, a qual terá por fim precípuo a sua proteção. Mas, conquanto o limite
natural da propriedade fosse fixado pela extensão do trabalho a ela adicionado, a
criação de um valor abstrato de troca – o dinheiro – passou a permitir o acúmulo
quantitativo superior ao relacionado diretamente com o trabalho adicionado à coisa
214 LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil: 40.
108
pelo seu detentor. Os homens teriam admitido essa desigualdade de posses fora da
própria sociedade, pela concordância tácita com o uso do dinheiro, e por essa
simultânea explicação e legitimação da apropriação privada e desigual das coisas,
Locke operava a conversão linear dos fatos brutos da sociedade em direito.
Em Locke assim como em Hobbes, não obstante as diferentes expressões de
cada um quanto ao homem em estado de natureza, as ameaças inerentes aos
próprios homens, uns em relação aos outros, quando no estado natural, exigem um
poder na Terra que lhes seja superior e capaz de impor a todos o viver em respeito
à razão, a qual, identificada com a lei natural, identifica-se, em última análise, com
a lei divina. Esta última, como vimos, sanciona o direito de propriedade, colocando-
se este no vértice da constituição da sociedade civil. O processo dessa constituição
é em Locke construído de modo semelhante ao que se vê em Hobbes, no sentido
de uma origem racional, de natureza contratualista, não passível de verificação
empírica ou mesmo de qualquer cronologia,215 assentando em um duplo momento:
um mútuo consentimento entre os homens no sentido de saírem do estado de
natureza e ingressarem na sociedade civil, e o livre pacto de transferência do poder
necessário à consecução dos fins dessa sociedade. Porém, a partir daqui, não é o
Leviatã que toma forma, mas, constituída a sociedade civil ou política, é esta livre
para escolher a forma de governo que entender mais conveniente, bem como fica a
maioria autorizada a deliberar por todos, com o que prenuncia Locke a sua idéia do
exercício do poder pela assembléia de representantes eleitos dessa sociedade civil.
215 A base da sociedade civil lockeana não assenta sobre uma verdade historicamente comprovável, mas sobre um presunção. O próprio Locke se apercebe das dificuldades ontológicas dessa tese, apontando, já de per si, duas objeções a ela, que seriam, exatamente, a ausência de evidências históricas a respeito e o fato de que, como todos os homens nascem submetidos a um governo, não têm liberdade de constituir um outro. E Locke mesmo as responde, alegando, de uma lado, que, como os governos precedem a história, e a própria escrita, inexistiriam os registros correspondentes, e, de outro lado, que os inconvenientes de semelhante condição (a de natureza), e o amor e o desejo de sociedade, logo trouxeram alguns deles juntos, que de fato se uniram e incorporaram, se pretendiam continuar juntos. Da sua sociedade civil, portanto, (como também da de Hobbes), pode-se dizer que é alicerçada sobre uma suposição bem construída. Idem: 78.
109
O objetivo principal da delegação contratual pelos homens de sua autoridade
é, sempre, a preservação da propriedade, como o próprio Locke enfatiza
textualmente.216 Mas não tem essa delegação a extensão que lhe dava Hobbes:
como neste, é estabelecido um compromisso das instituições políticas com os fins
para as quais são criadas, mas também é estabelecido um limite objetivo para essa
autoridade. Esse limite é traçado por normas elaboradas para tanto, considerando
tirania sua substituição pelo arbítrio individual do príncipe, o que, em última
instância, destruiria o pacto lastreador da sociedade política. Deslegitimado o
príncipe, entrado dessa maneira em estado de guerra contra aquela sociedade,
poderia estar autorizada a derrubada do primeiro por esta última. Assim, há uma
delegação limitada de poderes, limitada porque tem fim definido – basicamente, a
segurança do privado – e porque não admite que esse fim seja modificado ou que
se governe além dele, consignando medidas objetivas para o seu saneamento. Na
verdade, Locke afasta-se ainda mais da posição de Hobbes, ao limitar o próprio ato
delegatório, e, a partir dessa limitação fundamental, a margem de
discricionariedade dos governantes, elidindo o totalitarismo na origem, ao torná-lo
incompatível com a fundação da sociedade civil. Locke, referindo-se ao poder
leigslativo, que para ele é o poder supremo, dele diz que:
(...) sendo ele simplesmente o poder em conjunto de todos os membros da sociedade, cedido à pessoa ou grupo de pessoas que é o legislador, não poderá ser mais do que essas pessoas tinham no estado de natureza antes de entrarem em sociedade e o cederem à comunidade; porque ninguém pode transferir a outrem mais poder do que possui, e ninguém tem poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre outrem, para destruir a própria vida ou tirar a vida ou a propriedade de outrem.217
O Segundo Tratado, ao apontar os possíveis malefícios que podem advir do
poder monárquico absoluto, já fala em contrabalançar o poder do governo
entregando partes diversas dele à mãos diferentes,218 como também, mais adiante:
quando os poderes executivo e legislativo estiverem em mãos diversas – como se
216 Idem: 88 e 127. 217 Idem: 93. 218 Idem: 81.
110
acham em todas as monarquias moderadas e governos bem constituídos (...).219
Isso, no entanto, não significa que sejam completamente estanques entre si, e
Locke admite uma certa permeabilidade entre os poderes, como o exercício parcial
do poder legislativo pelo executivo, em casos nos quais se faria necessário um
momento de decisão e eficácia absolutas, e uma certa ingerência de ambos no
judiciário, mas sempre para a manutenção da integridade do próprio sistema.
Locke antecipa, assim, o sistema de freios e contrapesos que Montesquieu
sistematizará no século seguinte.
Devendo a sociedade ser governada com base em leis fixas, estabelecidas e
conhecidas, recebidas e aceitas mediante consentimento comum, às quais nem ao
príncipe é dado subtrair-se, mas, ao contrário, devendo conformar seus atos a elas,
Locke consigna ao poder de fazer leis a posição de poder supremo. Isso porque, ao
legislativo, nessa condição, caberia prescrever tudo o que os demais poderes, que
se lhes considera inferiores, deveriam fazer.
Entretanto, esse poder legislativo, que passa a ser o detentor, por
delegação, do direito de estabelecer como será utilizada a força da comunidade,
estando nas mãos de um só ou de uma assembléia, conquanto supremo, não é
arbitrário, tem limites definidos à sua autonomia. Locke, não pretendendo substituir
a possível tirania dos reis pela eventual tirania dos legisladores, busca fazer do
legislativo um instrumento eficaz dos fins que atribui à sociedade civil. O principal
desses fins é, como vimos, a preservação da propriedade, um direito natural
porque derivado da razão, a razão sendo a própria lei natural e essa por sua vez a
lei de Deus revelada na natureza, e, por conseguinte, anterior e superior à própria
sociedade civil; derivada assim diretamente de Deus, que dá a vida, que é
componente da propriedade (vida, liberdade e posses). Dessa forma entende Locke
que essa atividade legisferante não tem outro propósito senão o de explicitar os
219 Idem: 104.
111
comandos da lei natural, bem como fixar penalidades para os infratores, ficando o
próprio Parlamento obrigado pela sua própria legislação.
De modo coerente com essa proposta, o legislativo também está contido em
sua ação pela necessidade de proporcionar certa estabilidade à legislação que
promulga, o que, combinado à vedação quanto a privar qualquer indivíduo da sua
propriedade, salvo com a anuência respectiva, completa a estrutura política de
legitimação, estabilização e proteção dos direitos relacionados à propriedade. Como
arremate, Locke articula o fechamento dessa estrutura: a esse órgão é conferido
um estatuto de intangibilidade que, se por um lado o afirma como sede única do
poder de editar leis, por outro lhe veda a delegação de suas atribuições, sob o
fundamento de que é delegado do povo, e ao delegado não é lícito delegar. Assim,
é prevenido o eventual deslocamento da mais importante tarefa política para
qualquer outra instância, que não aquela diretamente representativa dos interesses
das forças sociais mais expressivas. Por representativo aqui não se deve,
outrossim, entender um mandato do tipo imperativo, mas uma delegação da
comunidade que priva o povo de qualquer forma de exercício direto do poder, seja
por si mesmo ou por meio de representantes limitados à condição de seus
procuradores – salvo, no primeiro caso, nas hipóteses em que Locke considera
legítimo o direito de resistência.220
O Parlamento, em Locke, dotado do poder supremo porque ordena todo o
resto através de suas leis - cujo fim, como vimos, é o de explicitar para a sociedade
civil os comandos contidos nas leis naturais -, principalmente no que diz respeito à
propriedade, torna-se um importante instrumento de representação política
burguesa, classe que poderia, assim, ver suas aspirações serem convertidas em lei,
a todos obrigando, combinado com a já antiga faculdade desse órgão de discutir (e
220 A exceção ao poder legisferante do Parlamento fica por conta da abertura de um debate que até hoje permanece inconcluso: a possibilidade da edição, pelo executivo, de normas dotadas de força legal, em situações de urgência e em suprimento de eventuais lacunas na lei – mas sempre dentro da finalidade precípua da constituição do Estado.
112
até mesmo rejeitar) os tributos pretendidos pelo monarca. Tanto o poder legislativo
como o executivo, na sua missão comum de proteger a propriedade, não são mais
do que o poder natural inerente a cada homem posto nas mãos da Commonwealth,
e se justificam apenas porque constituem um meio mais adequado de proteger os
direitos naturais. Para Locke, a pressuposição do consenso voluntário que estaria
na base do pacto original mediante o qual toda pessoa concorda com as demais em
constituir um corpo político, as obriga a submeterem-se à regra da maioria. A
ficção do consentimento unânime completa a ficção do pacto originário ou contrato
social, e daí deriva a regra da maioria, definindo uma regra de comando político
puramente aritmética. Isso é coerente com a defesa que Locke fazia da Revolução
como um esforço necessário para fazer com que o governo servisse às
necessidades da sociedade, mas supondo em relação a esta apenas a coleção dos
indivíduos e de seus interesses privados.
O destino político e intelectual das idéias de Hobbes, Harrington e Locke
Das diversas correntes de pensamento surgidas ao longo do século XVII na
Inglaterra, podemos de uma maneira geral dizer, concordando com C. B.
Macpherson, que nenhuma delas chegou a ser efetivamente democrática do ponto
de vista político, não tendo reivindicado plena soberania popular, ou plenos
privilégios democráticos.221 Em todos os casos, as questões estavam de uma ou de
outra maneira voltadas para a representação política dos interesses, então em
jogo, dos proprietários de terra e dos possuidores de excedentes monetários. O
pensamento político de Hobbes, o qual evidentemente não está voltado para idéias
de democracia, tinha um acentuado caráter acadêmico, e malgrado a intenção de
influir nos acontecimentos, teve muito pouco êxito nesse sentido. Tanto ele como
Locke sofreram a influencia de Aristóteles, e a visão que tinham das formas de
governo vinculava-se ao pensamento do estagirita, quanto à noção aritmética de
distribuição de comando.
221 MACPHERSON, C. B. A democracia liberal: origens e evolução: 21.
113
No caso particular de Hobbes, possuidor de uma profunda cultura clássica
grega, e primeiro tradutor de Tucídides para o idioma inglês, sobressai sua
preocupação com a unidade dos ingleses voltada para a eficiência militar, dentro do
viés crítico esposado pelo historiador das guerras do Peloponeso em relação à
democracia, naquilo que ela poderia induzir à fragmentação da liderança e à
correspondente dispersão de recursos e potencial enfraquecimento do ponto de
vista bélico. As idéias de Hobbes tiveram maior relevância como exposição do
egoísmo ilustrado, como o qualifica Sabine,222 fundamentando um liberalismo mais
radical do que qualquer outra coisa surgida das práticas polítcas do século XVII.
Nesse sentido, é possível dizer que tanto o profundo individualismo hobbesiano
como a idéia correspondente de que a existência das instituições sociais e políticas
somente se justifica pela finalidade de dar segurança às relações materiais na
Commnwealth (inclusive segurança física), foram reflexos intelectuais da ascenção
dos valores civis ou privados como valores integrativos da sociedade britânica,
decorrentes por sua vez das circunstâncias econômicas, sociais, políticas e
religiosas, as quais se amalgamaram nas guerras civis inglesas daquele período.
Por outro lado, mesmo não tendo a equação política hobbesiana prevalecido, o
individualismo liberal, a idéia de que o Estado se legitima pela garantia de uma
ambiente jurídico-político adequado ao livre curso das relações materiais privadas
no interior da sociedade civil, e de que esse mesmo Estado deve deter o monopólio
da organização social do emprego da força física, estão presentes não apenas no
interior da equação política lockeana (ressalvado o direito de resistência), como
atravessaram os séculos, chegando até nós como elementos centrais das
concepções neoliberais contemporâneas. Do mesmo modo, a definição do poder
soberano como transcendência e representação, assim como sua derivação de uma
criação contratual, consciente e voluntária (já que não há contrato se as partes não
conhecem as condições e a elas livremente não se submetem), re-inaugurando o
recurso ao assentimento dos governados como instrumento de legitimação do
222 SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política.: 353.
114
exercício do poder, tem ressonâncias que ultrapassam o absolutismo monárquico,
consistindo em um problema presente em toda a questão moderna do poder
político, até mesmo em relação aos regimes que vêm sendo referidos como
democracias.
Com relação à observação de Macpherson, nem mesmo Harrington, como já
vimos, chegava tão longe em termos de propostas democratizantes. Ele propunha
modificações no modelo de constituição mista romana, no sentido de lhe dar maior
eficácia e estabilidade, em face da visão que esposava acerca das condições
materiais e políticas peculiares do seu país e de sua época. Foi, de fato, original na
correlação que fez entre forças materiais e poder político, podendo-se dizer que
esteve na vanguarda do pensamento em seu tempo, quanto a esse aspecto. Isso se
deu não apenas pela sua originalidade, como também, inspirado no pensamento de
Maquiavel, pela maior amplitude que preconizava para a participação popular no
seu esquema combinado, no seu balanço. Contudo, como já tivemos oportunidade
de assinalar, essa participação, em Harrington, estava limitada a um
compartimento bem definido do poder. Por outro lado, a derrota do projeto da virtù
harringtoniana pela fortuna de então, representada pelos interesses vitoriosos da
burguesia, não significou o desaparecimento das idéias correspondentes. Sem falar
da relação estrutura/superestrutura, a eletividade, a rotatividade e a
temporariedade da ocupação dos cargos políticos, o sufrágio secreto, a separação
de poderes – dentro dos limites e parâmetros em que Harrington a concebe – e a
distinção entre normas de caráter constitucional e legislação ordinária, converter-
se-iam mais tarde em cânones das versões liberais da democracia, como observa
Sabine.223 A esse respeito destaca Negri que
embora Hobbes acabe sendo o apologista do seu mundo (the best writer in this day in the world, ironiza Harrington), a problemática de Harrington estará presente em todos os momentos cruciais da modernidade e do desenvolvimento do Estado moderno.224
223 Idem: 375. 224 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 179. Dentre suas idéias originais, aquela correlação pioneira que fez entre forças materias e poder político,
115
O pensamento de Locke, por sua vez, esteve em grande voga na primeira
parte do século XVIII, movido em parte pela aparente simplicidade de sua
exposição – que lhe escondia as ambigüidades subjacentes – a qual favorecia a
receptividade pelo senso comum. Muito de suas idéias teve continuação no
pensamento que sobreveio à Revolução, mais tarde denominado de liberal,
particularmente quanto a tolerância religiosa, não obstante os católicos e os não
conformistas permanecerem alijados do cenário político. Mais importante: a
supremacia do Parlamento deixara de ocupar o centro das polêmicas, assim como
declinaram de importância as questões acerca das diferenças de poder do Rei. A
inviolabilidade e a inalterabilidade dos poderes de governo, repartidos pelos órgãos
aos quais foram atribuídos, permitiu que perdurasse, até o fim do século XVIII, a
idéia de um exercício compartimentado de tarefas políticas, inserido no interior da
concepção de que o governo é, fundamentalmente, um equilíbrio entre as
diferentes fontes principais de interesse do país, ou seja, a coroa, a aristocracia
terratenente e as corporações. Isso, no entanto, continha menos da teoria dos
direitos individuais de Locke e da importância da propriedade em geral - cabe
sublinhar que o pensamento de Locke, nesse particular, não estava cingido apenas
à propriedade da terra - e mais daquilo que Ireton (genro de Cromwell e seu braço-
direito no New Model Army,o exército do Parlamento que derrotara as tropas reais),
na sua polêmica com os Niveladores, considerava como interesses fixos e
permanentes do reino, voltados para o monopólio do poder exercido pelos
terratenentes.
Porém, o sistema de governo inglês que emergiu do período revolucionário
do século XVII e de sua consolidação no século XVIII, servia bem aos interesses
antecipando, na medida de sua abordagem, a discussão das relações entre estrutura e superestrutura - ainda que sem utilizar essa terminologia -, reapareceria e teria seu pleno desenvolvimento no século XIX, através do pensamento marxiano. De fato, Harrington foi além de Maquiavel, seu principal mentor intelectual, no discernimento dessas relações. Mas, não obstante, assim como Hobbes antes dele, não atentou a uma outra lição maquiaveliana fundamental, dentro da relação entre virtù e fortuna: a de que as idéias políticas somente têm viabilidade real quando correspondem a condições políticas reais.
116
das classes que nele conseguiam expressar-se politicamente, de tal modo que o
sistema jusnaturalista lockeano passou a não mais ser imprescindível, do ponto de
vista da articulação prática desses interesses. Assim sendo, passou a haver espaço
político para outros conjuntos de idéias, e no curso do século XVIII o sistema de
direito natural que estava no alicerçe do pensamento político de Locke, foi
gradativamente sendo erodido por desenvolvimentos que consignavam explicações
psicológicas para a conduta humana, fundamentando-a na busca do prazer e na
fuga à dor como seus verdadeiros móveis.225 O padrão racional de bem intrínseco
que era perseguido pela teoria jusnaturalista viu-se transformado em uma teoria
utilitarista de todos os valores, fossem eles morais, políticos ou materiais. No
limite, tais desenvolvimentos permitiam prescindir por inteiro da teoria do direito
natural. Não obstante, a maior parte dos propósitos práticos do pensamento
político de Locke passaram a esse novo ponto de vista, cujo programa incorporou a
idealização dos direitos individuais – ainda que sem naturalizar sua origem -, a
mesma crença no liberalismo como panacéia para os males políticos, a mesma
priorização dos direitos de propriedade e a mesma concepção dos interesses
públicos em termos do bem-estar privado.
As teorias de Locke tiveram uma mais profunda aplicação no pensamento
político da América do Norte e da França, o qual culminou com as duas grandes
revoluções dos fins do século XVIII, realizando plenamente as idéias de liberdade
individual, consentimento e livre aquisição e desfrute da propriedade, ainda que o
pensamento lockeano não tenha sido a única influência nesse sentido. Há de se
notar que esses princípios não tinham aplicação universal em nenhuma daquelas
duas sociedades, as quais mantinham o instituto da escravidão, a americana no
próprio país e a francesa em suas colônias. Mas também não se pode deixar de
levar em conta que as idéias de Locke acerca da separação de poderes e da
225 Como Antifonte já havia prefigurado, ao expressar o individualismo e o pragmatismo típicos dos sofistas gregos (vide nota 66, pg. 37), e seria no século XIX mais amplamente desenvolvido por autores como Jeremias Bentham e James Mill.
117
sensatez das decisões da maioria, integraram-se ao acervo do pensamento político
liberal.
O arranjo constitucional e a democracia: os redesenhos revolucionários da
arquitetura institucional226
Assumindo como mista a constituição inglesa, mesmo no início do processo
revolucionário, com a sua tripartição entre os elementos monárquico, aristocrático
e democrático – na medida em que é possível qualificar desse modo uma
representação de interesses que não eram necessariamente gerais, mas,
essencialmente, de determinados setores em expansão - representados,
respectivamente, pelo rei, pela Câmara dos Lordes e pela Câmara dos Comuns,
sendo esses órgãos diferenciados entre si e estando em concorrência recíproca, a
equação definida por esse arranjo constitucional não mais tinha como resultante
nenhum perfeito equilíbrio entre os diferentes poderes nela incluídos. E isso porque
a concorrência agora se dava entre poderes que se desigualavam cada vez mais no
plano material, desigualdade essa não refletida por aquela equação política,
projetada como função de um conjunto de valores integrativos da sociedade inglesa
que se vinham transformando rapidamente. Como resultado, o equilíbrio entre
agências e funções de governo, característico da idéia de separação de poderes
dentro da concepção de constituição mista, deu lugar a um desequilíbrio entre as
forças que avançavam e as que reagiam a esse avanço.
O processo revolucionário atingiu o nível de disputa constitucional decisiva a
partir do momento em que Carlos I tentou governar sem o Parlamento, isolando-se
dessa instância de contato com a sociedade e com as novas forças que nela se
desenvolviam, representadas pelos Comuns. Não obstante, a firme aplicação de
suas prerrogativas monárquicas restou insuficiente para garantir ao rei sua posição
monocrática. Compelido por urgentes necessidades financeiras em face dos
226 Os dados históricos constantes desta seção foram colhidos em MAURROIS, A. História da Inglaterra: 251-312, salvo quando expressamente indicados no texto outros autores.
118
conflitos externos em que se engajara, viu-se obrigado a recorrer ao Parlamento, o
qual, mostrando-se hostil às reivindicações da Coroa, foi por esta dispensado após
ter funcionado apenas entre abril e maio de 1640 - foi o assim chamado Curto
Parlamento. Não obstante, ainda nesse mesmo ano, a continuidade dos problemas
fiscais e militares forçou o rei a reconvocar o Parlamento, dessa vez eleito dentre
puritanos de firme convicção anti-absolutista. Ainda assim, sem serem hostis à
monarquia em si, desejavam por fim ao conflito que pesava sobre a Inglaterra,
desde a ascenção ao trono dos Stuarts. Foi o começo do Longo Parlamento.227
Dando prosseguimento aos confrontos com a monarquia,228 o Parlamento
investiu nas principais frentes daquele momento: editou ato com o qual pretendia
subtrair-se à sua fragilidade fundamental, que era a possibilidade de ser dissolvido
pelo monarca, estabelecendo sua convocação regular em períodos pré-
estabelecidos, com possibilidade do suprimento de uma eventual omissão real
nesse sentido. Em outro ato, realçando uma já antiga e decisiva competência,
tornou defeso ao Rei perceber impostos sem o voto do Parlamento; e, num terceiro
ato, suprimiu as cortes de prerrogativas, particularmente as eclesiásticas de Alta
Comissão, alargando a competência das cortes da lei comum.
As posições assumidas pela monarquia e pelo Parlamento mostraram-se
irreconciliáveis, ao que se somava a ausência de qualquer mecanismo
constitucional que instituisse algum tipo de mediação eficaz, ou que delimitasse
com precisão os contornos do poder e a distribuição das respectivas tarefas
políticas. Dos debates parlamentares passaram-se então às batalhas campais.
227 O Longo Parlamento, ou Rump Parliament, recebeu essa alcunha, em função do dilatado período no qual permaneceu em funcionamento – desde sua convocação por Carlos I, em 1640, até sua dissolução pelo então Lord-general Cromwell, em 1653. 228 Na arena religiosa desse confronto, os parlamentares, protestantes, nutriam receio da Igreja de Roma (os papistas) – e o rei é devotado à sua esposa francesa (e suscetível à sua influência), católica – mas dividiam-se entre os que se opunham aos bispos que, segundo entendiam, os pretendiam levar de volta ao ritualismo, e outros apegados às velhas hierarquias. Já entre a população, ao passo que nos condados eram maioria os adeptos da igreja anglicana episcopal, em Londres prevaleciam os presbiterianos.
119
Eclodiu a guerra civil, confronto vencido militarmente pelo Parlamento. Mas a
nação, conquanto em boa parte apoiando este último, não deixara ainda de ser em
grande medida monarquista, e a derrota real não significava que o Parlamento
estivesse legitimado a substituir-se ao rei no exercício concentrado e unitário de
todas as tarefas de governo. Não obstante, a protração no tempo da permanência
exclusiva dos Comuns no pólo central do poder, em um país que, como se disse,
era falto de uma organização política mais bem definida, tendia a transformá-los
em uma autocracia coletiva. No rastro disso, açulavam-se os conflitos e
perseguições religiosas, e no exército revoltoso vencedor -que não passou infenso
às disputas teológicas - surgiam manifestações229 no sentido de que a fonte de todo
o poder seria o povo, o governo portanto devendo residir em uma assembléia que
não fosse oligárquica, mas eleita.
Voltou ainda a carga o rei, apenas para ser nova, rápida e completamente
derrotado. No processo que se seguiu, restou evidenciada a propensão a se
considerar o Estado como submetido a um arranjo jurídico fundamental e
apriorístico, e portanto constitucional, em cuja construção e manutenção o
Parlamento teria participação decisiva.230 Este último procurava sustentar sua
posição sob o argumento de que os Comuns, nele reunidos, eleitos pelo sufrágio
popular como representantes do povo, seriam o poder supremo, de maneira que
229 Particularmente dos Niveladores. 230 A condenação do monarca se deu sob a acusação de que, tendo recebido poder limitado de governar pelas leis do reino e apenas de acordo com elas, tornara-se culpado da guerra que movera contra o Parlamento e de todos os horrores perpetrados no curso respectivo. No cadafalso, poucos instantes antes de o verdugo cumprir seu dever, Carlos proclamou, pela derradeira vez, o catecismo político da monarquia vencida: Quanto ao povo, eu desejo a sua liberdade tanto como quem quer que seja, mas devo dizer vos que essa liberdade consiste em ter um governo e leis graças às quais a vida do povo e os seus bens possam ser considerados seus. Ela não consiste para o povo em governar por si mesmo. Isso não lhe compete de modo algum. Um súdito e um soberano são dois seres claramente distintos. Apud MAURROIS, A. História da Inglaterra: 277. Mesmo nesse momento extremo, ficava clara a centralidade da questão da propriedade, com um tratamento que tanto poderia ser ligado à vetusta doutrina do direito divino dos reis, como ao Leiviatã hobbesiano – não é demais lembrar que Hobbes, ao retornar da França, em 1637, tomou desde logo o partido do rei, sem fazer disso qualquer segredo, e muito possivelmente sem sequer supor o desenlace que teriam os acontecimentos de pouco tempo depois.
120
tudo aquilo por eles feito teria força de lei, desnecessitando do consentimento dos
Lordes (a Câmara Alta) ou mesmo do rei. Mas sua legitimidade já estava então
comprometida. Eles estavam lá, a essa altura, não mais porque haviam sido
eleitos, mas porque o exército os mantivera; o povo, por sua vez, odiava o
exército, que, por seu turno, desprezava o Parlamento. Coerentemente com o que
sustentava, este último aboliu a Câmara dos Lordes e o ofício de rei, considerando-
os inúteis, pesados e perigosos para aquilo que os Comuns afirmavam ser a
liberdade do povo.
Como resultado dos antagonismos entre facções diversas ativas no seu
interior, o governo degenerou de fato em uma ditadura militar, antítese dos
princípios que invocavam, com Cromwell e a facção denominada Independentes se
dizendo eleitos pelo Senhor, e assim tentando se justificar pela Bíblia como tutores
da república nascitura. O exército, em cujas fileiras estavam os Niveladores, o
grupo mais radical dentre os protagonistas da Revolução Puritana, e que entendeu
ter realizado uma revolução popular, frustrou-se ao perceber que colocara no poder
uma oligarquia, a qual se mostrava na prática contrária à constituição republicana
(eleições, sufrágio amplo, liberdade de consciência, etc.) que havia formulado.231
Assim, naquela Inglaterra de índole legalista mas despida de autoridade
legal e recém-desprovida da monarquia, permanecia o Parlamento que decapitara o
rei em nome do povo que representava, mas que não o elegera, um exército que,
se dizendo republicano, mantinha de fato uma ditadura militar, e que escolhera os
parlamentares, lhes dava sustentação e simultaneamente os desprezava, e um
povo que odiava o exército. Nessa estranha república potencial cheia de resíduos
monárquicos, o Longo Parlamento, desprovido da sustentação que lhe poderia ser
dada pela legitimidade popular que não possuía, e em inteiro desfavor do exército
231 O documento respectivo restou ignorado totalmente pelo Parlamento, malgrado as mesuras com que foi por este recebido de seus redatores armados.
121
que de fato o mantinha, viu encerrarem-se seus dias pelas mãos do Lord-general
Cromwell,232 seguindo-se discussões sobre a forma a ser dada ao novo governo.233
Numa tentativa de dar uma estrutura ao Estado e ao governo, os chefes do
exército redigiram uma nova constituição, a que chamaram de instrumento de
governo. A estrutura governativa constava do que batizaram de Lord Protetor (algo
como um Chefe do Poder Executivo), um Conselho e um Parlamento, inicialmente
unicameral, ao qual pouco depois acrescentara-se uma câmara alta (Câmara dos
Lordes). As disposições votadas pelo Parlamento tornar-se-iam legais, sobrepondo-
se, mesmo, ao veto do Protetor, salvo em caso de contrariarem as leis
fundamentais dessa república nascitura. Mas isso de forma alguma elidiu os
conflitos entre Cromwell e os Comuns, cuja gravidade assemelhava-se aos havidos
entre o rei Carlos e o seu Parlamento. Á diferença daquele confronto, no entanto,
Cromwell tinha um bom exército, e o Parlamento, exército nenhum. Num ponto,
porém, estavam de acordo: ambos queriam ordem, e a restauração de muito
daquilo que estava associado a Inglaterra tradicional. Mas divergiam em outros
pontos essenciais: Cromwell não aceitava ver discutidos pelos parlamentares os
aspectos fundamentais do instrumento de governo, ao passo que estes últimos
resistiam à imposição manu militari da constituição; Cromwell defendia alguma
tolerância religiosa, inobstante seu puritanismo, ao passo que o Parlamento
simultaneamente se opunha a essa tolerância e ao despotismo militar. Mais uma
vez, venceu a espada e, entre outras coisas, a severidade puritana foi sendo
imposta ao país.
Cromwell dominou o Parlamento e o Conselho de Estado, e, a partir de
1653, assumiu em caráter vitalício e hereditário o título de Lord Protetor. No plano
232 O Longo Parlamento dissipara-se, diz uma testemunha, tão suavemente como um sonho. MAURROIS, A. História da Inglaterra: 281. 233 A solução inicial, típica de Cromwell, foi tentar um governo de santos, solicitando às igrejas independentes que indicassem homens sensatos. Constituiu-se, então, um Parlamento de cento e cinqüenta membros vindos do nada, dos quais Cromwell logo se cansou, mas ao qual pouparam do inconveniente de ter de mandá-los embora, se auto-dissolvendo.
122
material, deixou de atender às reivindicações de direito às terras dos Niveladores,
que o haviam apoiado quando da guerra civil contra o rei Carlos I. Nessa república,
ou commonwealth, os interesses da burguesia e da gentry passaram a prevalecer,
eliminando-se as estruturas feudais ainda subsistentes, de modo a desobstruir o
livre desenvolvimento do capital. Nesse sentido, a utilização na produção para o
mercado dos campos agora cercados após a legalização da propriedade das terras,
resultou na expulsão de muitos camponenes das áreas rurais, muitos dos quais se
transformaram em mão-de-obra assalariada.
Cromwell faleceu em 1658, e a ele não sobreviveu sua obra. A Restauração
que se seguiu, a partir de 1660, levando Carlos II ao Trono, não significou
entretanto um retorno ao ghotic balance: a autoridade do Parlamento em face do
monarca foi reafirmada pelos novos membros para ele eleitos,234 quando de sua
convocação pelo rei, em 1661. Este último teve restringida sua liberdade de
movimentos em dois aspectos curiais: foi-lhe negado pelos Comuns exército
permanente e recursos suficientes que lhe permitssem prescindir do Parlamento,
bem como, à semelhança do que haviam feito os Parlamentos da guerra civil,
tribunais de prerrogativas; as responsabilidades somente seriam argüíveis,
portanto, perante tribunais da lei comum (feita pelo Parlamento). O rei, por sua
vez, tendo sempre presente o destino de seu pai, não transpôs esses limites –
adotando ainda a prática de dispensar seus ministros, sempre que sua popularidade
se esvaía.235
Não mais haviam contestações à força do Parlamento, que impôs assim ao
rei, pelo direito que lhe era atribuído de fazê-lo, limites de fato ao poder respectivo.
Em 1679, após um intervalo de dezessete anos, convocou o rei eleições para o
234 Ainda que fossem profundamente realistas, anglicanos e dedicados à propriedade imobiliária e à igreja estabelecida. Porém, mesmo esse Parlamento – que funcionou durante dezoito anos - de forte índole realista, trazia na bagagem (apesar da juventude de seus membros) o lastro da experiência anterior. 235 É interessante notar que não havia, ainda, nenhum freio definido de natureza propriamente constitucional à autoridade da monarquia.
123
Parlamento, que inauguraram as disputas públicas pela preferência dos eleitores,
dando a vitória aos Whigs.236 Mas o jogo político ainda evoluiria para uma posição
mais conservadora, quando Carlos II, que já não necessitava do Parlamento
dominado pelos Whigs (os quais não mais gozavam, então, da mesma simpatia
popular) para a obtenção de subsídios (posto que nessa época os recebia de Luis
XIV da França), dissolveu-o e convocou novas eleições, dessa vez vencidas pelos
Tories, os quais pregavam a não-resistência ao soberano.237
Com a morte de Carlos II, seu irmão assumiu o trono com o título de Jaime
II, encontrando-o numa situação de poder despótico e quase sem contestação, com
a igreja estabelecida pregando novamente a doutrina do direito divino dos reis e o
Parlamento, dominado pelos Tories, propenso a conceder ao monarca impostos
vitalícios. Mas as turbulências religiosas e políticas geradas por Jaime II, naquela
Inglaterra cujas forças sociais já se encontravam irreversivelmente transformadas e
cientes de sua potência, não o deixaram no Trono por muito tempo, levando-o à
fuga para a França, em 1688. A Revolução Gloriosa de 1688/9, tão repentina
quanto isenta de sangue, foi o último acontecimento político de relevo na Inglaterra
do século XVII. Os esforços de Jaime II na direção do catolicismo haviam açulado
as sólidas opiniões protestantes inglesas, mas a rapidez e a facilidade com que essa
revolução foi levada a termo pôs em evidência que havia mais em jogo do que
apenas a questão do protestantismo. Sepultou de modo definitivo os últimos
resíduos de aspirações republicanas, e consolidou uma monarquia controlada pelo
Parlamento, segundo linhas que se haviam definido pelos resultados das guerras
civis daquele século, ainda que sem as reformas de representação que em 1650
236 Dois outros fenômenos notáveis dessa época foram a célebre lei de Habeas Corpus, dificultando prisões arbitrárias, e os embriões de partidos que se vinham formando desde a Restauração: os Tories, partidários do Rei, ligados à igreja anglicana e à propriedade territorial, e os contrários ao Rei, os Whigs, abreviatura de whigamores, grupo de camponeses puritanos do oeste da Escócia, agremiação política que estava ligada aos dissidentes religiosos e aos mercadores de Londres. 237 É a época em que Filmer publica seu Patriarca, transformando o Rei no grande pai de todos os súditos, e os eventuais revoltosos em parricidas.
124
pareciam inevitáveis. Ainda assim, era representativa das forças estruturais da
sociedade inglesa. Quanto a estas últimas, apontava no final do século XVII Richard
Baxter que os proprietários e os comerciantes constituem o esteio da religião e da
ordem social no país.238
Nesse sentido, como já foi dito, desde antes da ascenção de Carlos I
importantes alterações se vinham efetuando nos modos de produção, circunstância
essa de especial pertinência quanto aos acontecimentos políticos da Inglaterra no
século XVII, onde vemos todos os sinais da revolução burguesa clássica, como
assinala Dobb.239 Com o advento da Revolução de 1688/9, o poder real passou a
ser legal e efetivamente limitado pelo do Parlamento, que a partir daí concentrou,
através dos Tories e dos Whigs, a representação das classes detentoras do capital,
divididas respectivamente, como já vimos, entre a grande propriedade imobiliária e
a burguesia citadina ascendente, afirmando-se como o palco político de suas
disputas e instrumento de exercício efetivo do poder.
A afirmação do poder representativo do Parlamento por sobre o da Coroa
consolidou-se durante o século XVIII. Isso ocorreu a partir do novo princípio
incorporado ao direito público inglês segundo o qual, na hipótese de conflito com o
Parlamento, os ministros que deixassem de lhe merecer a confiança ficavam
sujeitos a processo de responsabilidade, com a acusação cabendo à Câmara dos
Comuns e o julgamento à Câmara dos Lordes.240 Além da deposição do último
Stuart pela aristocracia,241 da nova dinastia originada no consentimento e na
própria autoridade parlamentar, na utilização da necessidade de aprovação do
238 Apud HILL, C. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa: 14. 239 DOBB, M. A evolução do capitalismo. 240 Essa regra constitucional foi posta a prova pela primeira vez em 1782, quando Lord North, então primeiro-ministro, depositário da plena confiança do rei Jorge III, ao sofrer intensa oposição parlamentar que lhe rendeu duas moções de censura e desconfiança, se demitiu do exercício de suas funções, antes que a ameaça de impeachment se conusamasse. 241 Embora até a metade do século XVIII houvesse uma ameaça real de restauração dessa disnatia, trazendo o risco de uma monarquia hereditária sob influência francesa – o que foi mais uma razão para a afirmação do poder do Parlamento.
125
Parlamento para as pretensões tributárias dos reis, dentre outras coisas, essa
consolidação do poder parlamentar foi também favorecida pelo desgaste causado à
Coroa pela conduta dos reis de origem alemã da dinastia de Hannover (1714-
1837). Chegou-se desse modo, consoante Andrade, ao gabinete escolhido pelo rei,
dirigido pelo primeiro-ministro,242 mas responsável perante o Parlamento, de cujos
votos favoráveis necessitava para sua permanência nos cargos. A etapa seguinte
consistiu no deslocamento da atribuição de escolher os ministros, do rei para o
primeiro-ministro. Por outro lado, o poder de veto às resoluções parlamentares,
com o qual ainda emergira provida a monarquia após a Revolução de 1688/9,
tornou-se passível de reapreciação pelo Parlamento. O que, somando-se ao fato de
que a dissolução deste último pelo rei, se ainda lhe constituia uma faculdade, o era
apenas e tão somente para a subseqüente convocação de novas eleições para o
mesmo, caracteriza a total relativização da autoridade real, frente a do Parlamento.
Em 1765, Sir William Blackstone expressou a força desse poder parlamentar
valendo-se da figura da participação do povo – a qual, não obstante, só poderia ser
concebida como vivida por representação -, ao afirmar que as leis inglesas não se
promulgam porque se concebe que todo inglês está presente no parlamento.243
Blackstone concebia a constituição inglesa do século XVIII dentro de um figurino
misto formado por um conjunto de órgãos em funções de apoio e regulação
recíprocos. Esse modelo era diverso daquele da república romana, no sentido de
242 Consoante Andrade, a figura do primeiro-ministro surgiu da dificuldade com a língua inglesa que tinham os reis de origem germânica da casa de Hannover, necessitando de intérpretes nas reuniões para acompanhar os debates dos seus ministros sobre os problemas de governo. Com o tempo, os monarcas deixaram de comparecer às reuniões, encarregando um de seus ministros de representá-los e de, posteriormente, informá-los das opiniões e das conclusões. A partir daí, surgiu o primeiro-ministro ou chefe do gabinete, que passou a constituir, desde Jorge I, uma outra característica do regime parlamentarista. O primeiro primeiro-ministro na Inglaterra, como também na história constitucional da Europa, foi o chefe do gabinete desse rei, Robert Walpole. ANDRADE, A. de. A evolução política dos parlamentos e a maturidade democrática: o exemplo modelar do Parlamento inglês: 108. 243 Apud SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política: 160. Lembrando a idéia do ser artifical vivido por representação dos homens reais, que havia no Leviatã de Hobbes, em que pese o Leviatã ser resultante de uma suposta delegação contratual que necessariamente antecederia sua existência e o Parlamento de eleições reais – mas que não deixam de ser um modo de delegação.
126
que tanto a aristocracia como o elemento popular compareciam mediante
representação por meio das Câmaras dos Comuns e dos Lordes, inexistindo a
hipótese do exercício direto do poder político, como ocorria, ainda que com as
limitações de que falamos no capítulo III, com a plebe em Roma, ou como ocorrera
muito mais ampla e efetivamente antes dela, na democracia ateniense. No que se
refere ao equilíbrio resultante das inclinações opostas dessa representação
bicameral, mais uma vez observamos uma adaptação do modelo clássico polibiano
quanto ao papel da monarquia, mantendo-se o todo artificalmente unido pela
natureza mista da coroa, que é parte do legislativo e único magistrado
executivo.244 Não obstante referir-se Blackstone, de modo indiscriminado, a todos
os ingleses, esse sistema dava de fato plena representatividade apenas à
aristocracia e à burguesia então ascendente,245 cuja base material do poder
respectivo já então se consolidava, e ao mesmo tempo legitimava o poder político
dessas classes, poder esse que assim se firmava na Inglaterra com um caráter que
era, de fato, predominantemente oligárquico.
No processo revolucionário inglês, como antes ocorrera em Roma, o tumulto
das multidões fora um elemento de defesa da liberdade, nesta se refletindo o
progresso das instituições; mas ainda assim inscrita dentro do governo misto, sob a
salvaguarda de um equilíbrio entre poderes do qual as multidões participavam
ainda menos do que tinham participado na Roma republicana. Se, nos movimentos
revolucionários ingleses, as multidões integraram enquanto povo as forças
constituintes – as quais, atuando em profundidade, criaram funções ordenadoras
para a ação desse povo, como foi o caso do exército do Parlamento – o fato é que
244 Blackstone, apud ibidem. Bentham, no século XIX, acusaria Blackstone de ter levado a efeito uma explicação do direito inglês de caráter meramente expositório. Ou, pior ainda, de ter realizado uma apologia do status quo travestida de exposição. 245 Como sublinha Andrade, o sufrágio ainda estava muito longe de se tornar universal, prevalecendo critérios censitários que vinculavam o direito de voto à uma certa medida mínima de propriedade, além de diversos vícios antigos presentes no processo eleitoral inglês, os quais somente foram sendo efetivamente eliminados, ou pelo menos grandemente reduzidos, a partir do século XIX. ANDRADE, A. de. A evolução política dos parlamentos e a maturidade democrática: o exemplo modelar do Parlamento inglês: 109-112.
127
não chegaram, elas próprias, a configurar uma potência constituinte de per si,
tornando-se um sujeito coletivo.246 De fato, o processo revolucionário inglês pode
trer sido tudo, menos conduzido em nome de alguma noção definida de
democracia. Essa palavra não foi sequer utilizada, tanto por aqueles que o
pensaram do ponto de vista teórico, como pelos que lutaram ao lado de quaisquer
das forças que se entrechocavam na Inglaterra do século XVII. Mesmo entre os
Niveladores, a facção menos ligada ao poder econômico e com uma proposta que
era a mais próxima existente de uma inclusividade política ampla e horizontalizada,
não se faziam alusões explícitas à democracia. A principal relação conflituosa não
era entre as multidões e os detentores do poder político, nem mesmo por uma
constituição aberta que promovesse a convergência de todos os segmentos da
sociedade rumo aos fins do Estado, mas entre a arquitetura constituída do poder
político estabelecido pelo ghotic balance e a potência constituinte das novas
relações de propriedade e produção que emergiam na sociedade inglesa. Atingido o
ponto de máxima tensão, seguiu-se a crise, no seu sentido de ponto de inflexão do
real em direção ao novo, e finalmente a ruptura revolucionária com a velha ordem
e o advento da nova. A qual, não obstante, em comparação com o restante da
Europa à mesma época, oferecia de fato um certo conjunto de liberdades civis e as
primeiras garantias efetivas contra decisões políticas autocráticas e unilaterais.247
246 Essa lacuna do processo revolucionário inglês nos mostra a insuficiência da noção que Negri retira de Espinosa, da representação do tema da democracia como multidão em movimento; para representar esse mesmo tema de modo mais conseqüente, seria necessário referi-lo a partir do que não ocorreu naquele processo – seria preciso defini-lo como a multidão que se movimenta a si mesma. NEGRI, A. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade: 208. 247 Das instituições políticas inglesas desse período, poderíamos dizer com mais precisão, usando a linguagem de hoje, que eram mais responsivas aos desejos de prosperidade material das classes sociais predominantes, do que, por assim dizer, linearmente representativas da população inglesa, o que era acentuado por três fatores. O primeiro deles eram os critérios censitários que informavam as regras dos sufrágios, aos quais já aludimos na nota 245, ao qual se junta o segundo fator, que eram os vícios eleitorais de que falamos na nota citada. Esses defeitos eleitorais, como nota Bernard Bailyn, professor de história americana antiga da Universidade de Harvard, levaram diversos autores ingleses da época a argumentar a favor de um amplo sufrágio da população masculina adulta; da substituição do sistema de burgos podres (rotten boroughs) por unidades regulares de representação, sistematicamente relacionadas à
128
Mas oferecia principalmente às classes que detinham o controle das condições
materiais no país, e que de fato possuíam consciência política, possibilidade de
representação efetiva no exercício do poder. Essa foi a solução dada pela Revolução
Inglesa à crise social e política que a originou.
Diversa foi a situação que antecedeu a revolução americana: desde o início,
o sentido de igualitarismo e a idéia de governo comunal, esse fecundo germe das
instituições livres, como o define Toqueville,248 presidiu a formação da sociedade
nas colônias do que hoje são os Estados Unidos da América. Essa foi uma das
condições que, nesse segundo dos grandes processos que ficaram conhecidos como
revoluções atlânticas, levaram à reentrada, na cena histórica, do tema da
democracia, o qual foi em seguida articulado no interior de uma nova forma de
constituição mista.
distribuição da população; da vinculação dos representantes aos seus respectivos distritos eleitorais, tanto por meio de instruções destes últimos como de exigências residenciais; de modificações na definição do que seria um libelo sedicioso, com a finalidade de permitir total liberdade para as críticas da imprensa ao governo; e da retirada total do controle do governo sobre as práticas religiosas. BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana: 62. Mas havia ainda um outro fator, que tornava o governo ainda mais potencialmente autocrático, não obstante os objetivos proclamados da Revolução Gloriosa, ainda que não menos responsivo aos elementos predominantes da estrutura material da sociedade inglesa: a usurpação ministerial e a corrupção política. Bolingbroke, em críticas ácidas que eram perfilhadas por outros autores, criou uma terminologia nova descrever esse novo perigo: a Robinocracia, forma depreciativa de referência à administração do primeiro-ministro Robert Walpole. Essa robinocracia seria uma forma de governo na qual o primeiro-ministro monopolizava de fato o poder governamental, mediante formas diversas de cooptação e corrupção, embora mantendo uma fachada de procedimentos constitucionais. Idem: 64. 248 TOQUEVILLE, A. de. A democracia na América: 30-31.
Capítulo 5
A consolidação dos valores privados e o controle das multidões:
o desenho contra-revolucionário americano da constituição mista
A constituição mista da Inglaterra, que emergiu após o período revolucionário,
articulava em seu interior a expressão política de poderes sociais emergentes em
face de outros mais antigos e tradicionais; já a constituição escrita dos Estados
Unidos, surgida em 1787, absorvia idéias relativas à limitação, diversificação e
pluralização da autoridade num contexto em que não existiam forças que pudessem
ser qualificadas como tradicionais, mas poderes sociais que haviam surgido e
crescido juntamente com as próprias Colônias.
Se a constituição mista inglesa, diferentemente daquela da Roma
republicana, não incorporava diretamente nenhum elemento popular, o
constitucionalismo americano havia partido exatamente da premissa oposta, tendo
surgido nos Artigos da Confederação formulados em 1776 - assim como nas
constituições próprias das ex-Colônias agora erigidas em Estados -de uma ampla
participação daquele elemento, que atingira seu ápice em condições historicamente
inéditas através da Revolução Americana.
O ambiente histórico: o impulso ao igualitarismo e à liberdade e a luta
interna pelo poder
Desde o início, o sentido de igualitarismo presidiu a formação da sociedade. Muito
embora os imigrantes que foram chegando à América do Norte fossem diferentes
entre si em diversos aspectos, tenham tido diferentes objetivos e formas diversas
de governo, tinham também traços comuns e viviam uma situação parecida. Como
nota Alexis de Toqueville, que desenha um quadro singularmente expressivo das
origens da Revolução no processo colonizador americano,
todos os imigrantes falavam a mesma língua; eram todos filhos de um mesmo povo.249
249 TOQUEVILLE, A. de. A democracia na América: 30.
130
Tendo em vista a similitude de difíceis condições que os levaram a imigrar, os
imigrantes não trouxeram consigo nenhuma noção de superioridade aristocrática de
uns sobre os outros, e mesmo os grandes senhores que, em virtude de questões
políticas e religiosas, se viram forçados a trocar o Velho pelo Novo Mundo, não
demoraram a perceber que os desafios daquela terra virgem não eram favoráveis à
aristocracia nobiliárquica e muito menos à territorial. Nos Estados da Nova
Inglaterra, nos quais se foram primeiro combinando as principais idéias sociais que
mais tarde se espalharam por todo o país, não haviam distinções entre grandes
senhores e povo, nem diferenciações muito evidentes entre pobres ou ricos, sendo
dessa forma uma sociedade bastante homogênea. O puritanismo teve também sua
influência, naquilo que representava como idéias que iam além da religião,
passando pela sua ética ascética do trabalho e ingressando na esfera política com
as teorias democráticas e republicanas absolutas, de tal modo que
o princípio do governo representativo e as formas exteriores da liberdade política foram introduzidos em todas as colônias quase desde o seu nascimento. Esses princípios tinham recebido ao norte desenvolvimentos maiores que no sul, mas existiam em toda parte.250
Mesmo quando alguns que haviam sido grandes senhores em seu país de origem se
viam forçados, por querelas religiosas ou políticas, a se transferirem para as
Colônias, e nestas tentavam estabelecer regulações destinadas a assegurar
hierarquias sociais, viam-se na contingência de trabalhar penosamente eles
próprios aquele solo novo, que não lhes dava retorno suficiente para o
enriquecimento. A tendência predominante – à parte as plantations que se foram
desenvolvendo no sul – foi a fragmentação da propriedade da terra em pequenos
domínios, cultivados pessoalmente pelo proprietário.
Mesmo enquanto ainda reconhecia a supremacia da metrópole, a república
já vivia no interior das comunas, as quais nomeavam de per si seus magistrados,
fixavam e recolhiam seus impostos e davam destinos às receitas respectivas. O
250 Idem: 37.
131
espírito de religião e o espírito de liberdade predominavam, de tal maneira que,
como nota Toqueville, se
no mundo moral, tudo é classificado, coordenado, previsto, decidido de antemão, no mundo político, tudo é agitado, contestado, incerto; num, a obediência passiva, ainda que voluntária; noutro, a independência que desdenha a experiência e inveja toda autoridade.251
Assim é que o princípio político originário nas colônias inglesas na América
foi o da autonomia do povo, não como uma idéia abstrata fruto de elaboração
intelectual teórica, mas como uma realidade prática, ainda que obrigada, no início,
a ocultar-se no seio das assembléias provinciais e, principalmente, das comunas.
Isso ocorria não apenas em face da obediência ainda devida pelas colônias à
metrópole, mas de outros fatores que, mesmo sem nunca lograrem eliminá-lo ou
impedirem a sua relativamente silenciosa propagação, tiveram um certo efeito
inibitório sobre a expansão desse princípio em todas as suas conseqüências:
O saber, na Nova Inglaterra, as riquezas, ao sul do Hudson, exerceram por muito tempo (...) uma espécie de influência aristocrática, que tendia a encerrar em poucas mãos o exercício dos poderes sociais. Por essa época, longe estavam todos os funcionários públicos de ser eleitos, e eleitores todos os cidadãos. O direito eleitoral era por toda parte encerrado dentro de certos limites e subordinado ao preenchimento de certas condições. Essas condições eram pouco rigorosas ao norte, mais consideráveis ao sul.252
Burke ressaltou a originalidade e a magnitude desse contexto norte-
americano na moção de conciliação com as Colônias que apresentou a 22 de março
de 1775, em um discurso no qual procurou demonstrar que os desmandos do
governo inglês, tanto quanto a vocação para a liberdade, impulsionava o avanço
dos americanos pelas vastidões bravias dos seus territórios. Segundo Burke, essa
combinação de imensos espaços abertos e do impulso de liberdade transformaria os
americanos, lá na imensidão de suas campinas, em tártaros,
mas tártaros ingleses, que irrompem com uma cavalaria intrépida e irresistível.253
251 Idem: 42. 252 Idem: 51. 253 Burke apud NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 211.
132
Essa moção de Burke terminou por ser rejeitada, mas pôs em evidência as
características vigorosamente expansionais da sociedade que se formava do outro
lado do Atlântico. Burke chamava a atenção para o fato de que os valores que
fundamentavam a organização política da própria sociedade inglesa, ali se
apresentavam simultaneamente alterados e potencializados pela dinâmica
americana de poder e espaço, e ao mesmo tempo punha em evidência a
incompreensão do impulso para a liberdade que surgia nessa sociedade em
construção:
Destas seis fontes fundamentais: a origem; a forma [popular] de governo; a religião nas províncias setentrionais; os costumes nas províncias meridionais; a educação; e a distância física da sede do governo [imperial] – de todas estas fontes foi brotando um vigoroso espírito de liberdade, que cresceu ainda mais com o aumento da riqueza.254
Todos esses fatores estiveram presentes no processo que ficou conhecido
como Revolução Americana, a qual não foi apenas um conjunto de eventos que
começou com a revolta contra a Lei do Selo e outros impostos e regulamentações
alfandegárias, que o Parlamento britânico pretendeu impor aos colonos da América
do Norte, e que culminou com a Declaração de Independência das Treze Colônias
em relação à Inglaterra quase vinte anos depois, em 1776. Tampouco foi apenas
um conflito entre americanos e ingleses, entre Colônia e Metrópole; foi também,
como sublinha Isaac Kramnick, uma luta entre americanos, para ver quem
governaria internamente.255
À parte a Declaração de Independência e sua consolidação em 1781 nos
campos de batalha, essa última luta teve seu ápice em dois momentos políticos
profundamente distintos e antagônicos, não obstante sua proximidade no tempo:
os já citados Artigos da Confederação, e a Constituição dos Estados Unidos de
1787. No primeiro, a potência constituinte das antigas multidões de colonos, já
agora convertidas em povo americano, se fez sentir em um irresistível movimento
254 Idem: 212. 255 KRAMNICK, I. Apresentação: 6.
133
expansional que tinha um sentido fortemente igualitário; no segundo, a potência
popular foi cuidadosamente rearticulada em um regime de múltiplas contenções. A
Constituição criou um governo central poderoso, que reduziu enormemente o peso
do localismo até então prevalecente, e que poderia ser visto, como de fato muitos
opositores o viram já à época, precisamente como o tipo de poder que a Revolução
pretendera destruir, em seu repúdio tanto às elites metropolitanas, que haviam
dominado a vida colonial, como às formas coloniais tradicionais de governo. Os
ideais igualitários que dominaram o período dos Artigos da Confederação, sem
dúvida assimiláveis à uma noção mais radical de democracia, e que, apoiados nos
legislativos estaduais, levaram ao poder novos homens, muito humildes em
diversos casos, foram suplantados pela reação consolidada na Constituição de
1787.
Herança intelectual e pensamento político (I): a concepção constitucional
da Revolução
Consoante nos esclarece Bailyn,
a teoria política que surge a partir da literatura política dos anos pré-revolucionários fundamenta-se na crença de que aquilo que está por trás de toda cena política, a explicação última de toda controvérsia política, é a distribuição do poder.256
Como nos informa o mesmo autor, homens como James Otis ou John Adams,
dentre outros colonos proeminentes, não tinham dúvidas quanto à natureza
específica do poder político, de dominação de alguns homens sobre outros, o
controle humano da vida humana em sociedade como força última e compulsão.257
A discussão centrava-se em uma distinta característica do poder político: a
agressividade de sua tendência expansiva. Como tal, a preservação da liberdade do
povo apoiar-se-ia em sua habilidade e capacidade de efetivamente manter controle
sobre os detentores do poder político, o que, em última análise, implica na
vigilância e na capacidade de resistência do povo – ou, ainda, no exercício direto do
256 BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana: 69. 257 Idem: 69-70.
134
poder político, ou pelo menos na influência direta do povo nas decisões a serem
tomadas. Isso não significa que os colonos tivessem desde logo a idéia de articular
tais concepções em uma constituição escrita formal: no início das controvérsias que
deram lugar à Revolução, a visão constitucional dos colonos era caracteristicamente
tradicional, identificando-se com a de seus contemporâneos na Inglaterra, no
sentido de que por constituição entendiam uma ordem de instituições
governamentais, leis e costumes em conjunto com os princípios e objetivos que as
animariam. Ou seja, um sistema adequado de leis e instituições que deveriam
expressar um conjunto de essências e fundamentos. No caso particular da
constituição britânica, como vimos, a razão do seu êxito pós-revolucionário
consistia em sua capacidade de simultaneamente expressar, equilibrar e refrear as
forças sociais básicas. Não obstante, as dificuldades que já surgiam em explicar
precisamente como se dava a expressão e a mútua contraposição de forças sociais
no governo inglês para o benefício mútuo de todos, agravavam-se ainda mais
quando a unidade considerada era não a comunidade única da Grã-Bretanha, mas o
império de comunidades com seus agrupamentos sociais distintos e instituições
locais próprias.
Segundo Bailyn,
os colonos acreditavam que viam emergir do tumulto dos eventos durante a década após a Lei do Selo um desígnio cujo sentido era inconfundível.258
O objetivo oficial dessa lei tributária era obviamente aumentar as receitas da
metrópole, mas, em que pese as quantias envolvidas serem de pequena monta,
haviam aqueles que argumentavam no sentido de que isso abriria um perigoso
precedente, permitindo pela submissão tácita das colônias que a Inglaterra viesse
depois a impor outros deveres e tributos mais onerosos. Outros ainda entendiam se
tratar de um plano manifesto que forjava a ligação entre o despotismo eclesiástico
(havia tentativas inglesas de impor um episcopado às colônias americanas) e civil,
258 Idem: 102.
135
negando aquilo que hoje seria considerado um elemento indissociável de qualquer
noção de democracia - o direito à informação. Nesse sentido, Arthur Lee advertia os
colonos de que essa legislação tenderia a privá-los
em grande escala dos meios de conhecimento, onerando a imprensa, as faculdades, e mesmo um almanaque e um periódico com restrições e taxas.259
Havia também referências aos desvios políticos na metrópole, apontando
para um problema que imediatamente nos chama a atenção pelas possíveis
analogias contemporâneas, asseverando Adams que assim como a influência do
dinheiro e dos postos geralmente consegue para o ministro uma maioria no
Parlamento, do mesmo modo uma tributação desenfreada abriria as portas para
uma total corrupção do governo na América do Norte, disso resultando que as
colônias
experimentariam o destino do povo romano nos tempos deploráveis da escravidão.260
Eram, aliás, extremamente comuns as referências entre os norte-
americanos daquele período à antigüidade clássica, colocando-se assim os colonos
dentro daquele exotismo político que, como aponta Althusser; domina o
pensamento a partir do século XVI, e no qual
a história conhecida, a Grécia e Roma, se torna esse outro mundo em que o mundo presente procura a sua própria imagem.261
Pululavam as alusões a muitos autores notáveis, gregos e romanos; no
entanto, como destaca Bailyn, o que é basicamente importante na leitura que os
norte-americanos faziam dos antigos é a alta seletividade de seus reais interesses e
o limitado alcance de seu conhecimento efetivo -262 ressalvados os artífices
principais da re-constitucionalização de 1787, como James Madison e Alexander
Hamilton, cujos escritos e atuação não deixam dúvidas quanto a um conhecimento
259 Idem: 107. 260 Ibidem. 261 ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 20. 262 BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana: 43.
136
bem mais profundo e exato a esse respeito. O que despertava mais a atenção dos
colonos e informava a visão que tinham do conjunto do mundo antigo, era a
história política de Roma, no período que vai do início do primeiro século a.C.,
época das conquistas no Oriente e das guerras civis que levaram ao fim da
república, até o estabelecimento do Império sobre as ruínas desta última, ao final
do segundo século d.C. Autores como Plutarco, Tito Lívio, Cícero, Salústio e Tácito,
os quais viveram ou nos dias em que a república estava ameaçada ou quando sua
glória já desaparecera, e com ela suas alegadas virtudes morais e políticas, haviam
odiado e temido as tendências que enxergavam no seu presente, contrastadas com
um passado melhor, no qual viam qualidades ausentes de sua própria era venal,
cínica e opressiva. Nisso, como observa Baylin, os colonos divisavam uma
constrangedora analogia com suas próprias virtudes coloniais - rústicas, vigorosas e
eficazes – colocadas em cheque pela corrupção no centro do poder e pela ameaça
de tirania a qual se percebiam expostos.263
Esse desiderato transpirava das medidas adotadas pelo governo britânico e
das ações de seus oficiais nas colônias, e era cotejado pela herança peculiar do
pensamento dos colonos juntamente com as tendências que conheciam, tanto do
passado como do presente estado de coisas político na metrópole inglesa.264
Vislumbravam eles claramente ao seu redor, não meramente medidas equivocadas
ou simplesmente más, mas indícios de uma espécie de conspiração contra a
liberdade que não abrangia apenas a América do Norte, a qual seria somente uma
pequena parte, imediatamente visível, de um todo maior cujo ápice consistiria na
destruição da constituição inglesa, com todos os direitos e privilégios nela contidos.
Essa crença deu um outro sentido a luta dos colonos, funcionando como um
acelerador interno do movimento de oposição, como nota Bailyn:
Era isso – a evidência esmagadora, conforme a viam, de que estavam cara a cara com conspiradores contra a liberdade
263 Idem: 44. 264 Vide nota 247.
137
determinados a todo custo a conseguir objetivos que suas palavras dissimulavam – que era sinalizado aos colonos após 1763, e era isso, acima de todo o resto, que ao final os impeliu à Revolução.265
Com a promulgação da Lei do Chá e a resistência dos colonos na baía de
Boston, em dezembro de 1773, acreditava-se que o poder imperial da metrópole
inglesa avançaria em suas pretensões sem mais nenhuma máscara de legalidade.
E, de fato, o Parlamento adotou diversas medidas de represália, na primavera de
1774, consistentes em uma série de ações coercitivas e intoleráveis para os
colonos: a Lei do Porto de Boston, voltada, segundo lhes parecia, para a extinção
da vida econômica da capital de Massachussetts, a Lei da Administração da Justiça,
transferindo para a Inglaterra o julgamento de crimes cometidas naquela colônia, a
Lei do Governo de Massachussetts, que negava ao povo respectivo a proteção da
constituição britânica, a Lei do Aquartelamento, etc. Essas leis foram promulgadas
entre toda uma série de outras medidas que ou eram diretamente repressivas ou
buscavam retirar aos colonos qualquer possibilidade de autonomia em sua própria
administração. Precipitou-se a partir daí o momento decisivo, que ao mesmo tempo
expressou e consolidou tanto a rebelião contra a metrópole como os valores
políticos desenvolvidos desde o início nas comunas da América do Norte. Toqueville
pinta em cores expressivas essa esquina da história:
Estalou a Revolução Americana. O dogma da soberania popular saiu da comuna e apoderou-se do governo; todas as classes comprometeram-se pela sua causa; travaram-se batalhas e alcançaram-se vitórias em seu nome; e ele se transformou em lei das leis. (...) No momento em que esse efeito das leis e da Revolução começou a revelar-se a todos os olhos, já se havia pronunciado a vitória, irrevogavelmente, em favor da democracia. O poder achava-se, de fato, nas suas mãos. Já nem sequer era permitido lutar contra ela. As classes elevadas submeteram-se por isso mesmo, sem murmurações e sem combate, a um mal desde então inevitável. (...) Como já não era mais possível arrebatar a força das mãos do povo (...) não se pensou mais do que em ganhar a todo preço a sua benevolência. Assim, foram votadas as mais democráticas das leis, malgrado os próprios homens cujos maiores interesses elas contrariavam.266
265 BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana: 102. 266 TOQUEVILLE, A. de. A democracia na América: 51.
138
Irrompida e subseqüentemente vitoriosa a Revolução, no processo de
transformação do tártaro em cidadão a liberdade configurou-se como uma fronteira
que continuou a impor mediações ao comando político, mesmo quando o processo
revolucionário foi posto sob controle, após o período de 1775 a 1776. A grande
questão passou a ser como interpretar e organizar essa liberdade,
constitucionalizando-a. Importava não perder de vista sua incidência sobre o
imaginário da abstração nacional e a radicalidade do ato fundador, que enquanto
tal destrói a memória, cria novas ordens e organizações, constrói mitos
fundacionais, como diz Negri.267 A revolução tinha um sentido liberal radical,
acreditando-se que a sociedade teria capacidade para regular-se a si mesma, desde
que não fosse submetida a leis estranhas aos princípios que a alicerçavam. Tal
seria, portanto, a tarefa constitucional: constituir em república esse Estado, por
assim dizer de natureza. Nesse caminho, como sublinha Negri sintetizando o
pensamento de Thomas Jefferson,
é o tártaro quem funda a liberdade na experiência do próprio direito.268
O poder constituinte se expressa então em um conjunto de direitos
anteriores à própria constituição; é a Declaração de Direitos, que antecede também
a Declaração de Independência:
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas: que todos os homens foram criados iguais; que foram dotados, pelo Criador, de certos direitos inalienáveis; que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que, para assegurar estes direitos, governos foram instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, fundando-o em tais princípios e organizando seus poderes do modo que lhes pareça mais inclinado para assegurar sua segurança e sua felicidade.269
Em síntese, eram consagrados como as fundações sobre as quais seria
erguido o novo edifício constitucional, os direitos à vida, ao governo consentido, à
267 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 220. 268 Idem: 221. 269 Idem: 222.
139
resistência e à revolução e ao exercício do poder constituinte; e, onde o liberalismo
britânico falava do direito de propriedade, aqui se afirmava o âmbito diferente e
muito mais amplo da busca da felicidade.270 Já a Declaração de Independência, na
sua segunda parte, entre outros aspectos, estabelece – mesmo antes de sua
constitucionalização formal – as condições gerais mediante as quais será
concretizado o direito à liberdade: instituição de um judiciário independente, a ser
implantado pelo povo e exercido por júris livres no território da nação, controle
popular da administração pública, subordinação do poder militar ao poder civil, e o
governo consentido por meio do exercício do direito de representação nas
assembléias legislativas.
No que diz respeito às assembléias, os colonos americanos vinham, como
assinala Bailyn,271 desde os anos iniciais de suas comunas, de uma recriação
parcial, não teórica mas fática, de um modo de representação que existira na
Inglaterra medieval, mas que perdera substância até ser finalmente substituída por
outra ao longo dos séculos XV e XVI. Naquela forma original e medieval, a
representação eleitoral no Parlamento estava intimamente ligada a aspectos
localistas, assemelhando-se a uma procuração outorgada pelos eleitores para a
estrita defesa dos interesses destes últimos junto ao organismo parlamentar, em
troca do comprometimento daqueles no sentido de prestar ajuda financeira. Os
representantes dos comuns tinham suas obrigações atreladas de todos os modos
aos interesses para cuja defesa eram eleitos, incluindo os requisitos necessários
para sua elegibilidade, controle rigoroso das remunerações pagas pelos serviços
oficiais prestados, minuciosa instrução pelos eleitores acerca dos poderes de
representação que eram outorgados aos eleitos, inclusive quanto aos limites das
concessões admissíveis, e estrita responsabilidade dos eleitos pelas ações
praticadas em nome dos eleitores. Assim, os representantes dos comuns cumpriam
270 Mais tarde, Bentham construiria teoricamente a associação do liberalismo com a busca da felicidade. 271 BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana: 159.
140
mandatos que eram, em linguagem de hoje, imperativos. Esse tipo de mandato foi
substituído por uma delegação genérica de todos os comuns, que na linguagem
atual poderíamos qualificar como mandatos virtuais, caracterizando uma noção de
representação que Burke definia, rousseaunianamente, não como
(...) um congresso de embaixadores com interesses diferentes e hostis, que cada um deve defender, como um agente ou um advogado contra outros agentes e advogados; mas, o Parlamento é uma assembléia deliberativa de uma nação com um interesse, o do conjunto, onde não propósitos locais, não preconceitos locais devem servir de guia, mas o bem geral, resultando da razão geral do todo.272
Disso decorre que as instruções eventualmente transmitidas pelos eleitores
particulares aos membros do Parlamento teriam um caráter de mera informação,
conselho ou recomendação, de modo algum sendo impositivas sobre o voto e a
atuação parlamentar. Ocorria, no entanto, que as cidades e condados coloniais,
amplamente autônomos, tinham poucas razões para identificar seus interesses
próprios com os do governo central, no que recriaram em significativa medida,
nesse particular, condições semelhantes aos de seus contrapontos medievais
ingleses. Porém, mais do que isso, contribuía para a tendência imperativa dos
mandatos o ambiente social no qual haviam se desenvolvido aquelas localidades a
partir das comunas originárias, o qual fora desde o início fortemente igualitário e
participativo. De qualquer modo, uma vez que se entenda não haver identidade
natural de interesses entre os representantes e o povo, a idéia de representação
virtual perde muito de sua força política, e a concepção desenvolvida entre os
colonos, que naquele momento se tornara dominante, era de que os representantes
seriam criaturas de seus eleitores, e uma assembléia representativa deveria
portanto ser uma reprodução exata, em miniatura, do povo em geral. Isso não
apenas implica que os representantes seriam estritamente responsáveis pelo uso
dos poderes que lhes fossem delegados pelos representados, mas, como nota
Bailyn, aponta na direção de uma idéia de governo baseado em um consentimento
272 Idem: 160.
141
ativo e contínuo por parte dos governados.273 Invertia-se desse modo nas colônias
a concepção clássica de Blackstone, o qual colocava no Parlamento a autoridade
suprema, irresistível, absoluta e incontrolável que existe ou deve existir em todas
as formas de governo.274 Na nova concepção desenvolvida entre os colonos, os
direitos da soberania, os jura summi imperii aos quais se referia Blackstone, eram
redirecionados dos representantes aos representados - ou melhor, restituídos a
estes últimos, sua fonte originária.
A Declaração de Independência foi um marco fundacional do poder
constituinte das agora ex-colônias, expressando através do seu discurso de direitos
fundamentais um novo imaginário, a ser efetivado pelo compromisso contratual
válido tanto para tempos de paz como de guerra, que estabeleciam entre si os
Estados declarados independentes. Esse ato constituinte primordial era assim um
ato formal de proclamação dos fundamentos da nova sociedade, dentre os quais se
destacava a busca autônoma da felicidade, afirmada já na Declaração de Direitos.
Aquele mesmo imaginário estava repleto dos valores tártaros a que já aludimos, os
quais se manifestavam não somente pelo vigor com que era apresentada a idéia de
autonomia, mas também pelo impulso à construção e à expansividade que
consignava, ao tratar do rompimento com a metrópole inglesa:
Devemos, pois, reconhecer a necessidade que determina nossa separação e considerá-los como consideramos o resto da humanidade: inimigos na guerra, amigos na paz. Poderíamos ter constituído com eles um povo grande e livre; mas esta grandeza e esta liberdade não parecem ser dignas deles. Que seja então como eles quiseram: o caminho para a felicidade e a glória está aberto; nós o percorreremos sem eles, e nos submeteremos à necessidade que exige nossa perpétua separação.275
A ação constituinte se afirmava como um contra-poder oposto à metrópole,
e não se construía apenas sobre uma compartimentação da propriedade existente,
como queria Harrington, mas sobre o desejo e a livre busca da apropriação como
273 Idem: 167. 274 Commentaries apud idem: 191. 275 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 224.
142
produto direto do trabalho, projetada em direção à fronteira e mesmo além dela.
Espacializava-se assim indefinidamente a radicalidade absoluta desse poder,
emanado de uma sociedade que, se já apresentava em seu início traços burgueses,
ao mesmo tempo ineditamente inaugurava-se a si mesma, não tendo saído de
qualquer sistema feudal preexistente e não sendo distorcida ou falseada por
qualquer herança histórica. Sociedade essa a cujos interesses desde o início
subordinou-se um Estado despido de quaisquer fins autônomos, e na qual os
antagonismos surgidos não passaram de momentos transitórios. Um poder que,
numa simbiose entre os impulsos dessa sociedade para a autonomia e a liberdade e
os valores burgueses que nela se desenvolviam, procurava subtrair-se às
seqüências cíclicas que Políbios considerava inevitáveis.
Representação e consentimento, o significado da soberania, das
constituições e dos direitos, tudo isso foi alterado e re-fundado pela concepção das
assembléias legislativas como espelhos da sociedade e suas vozes como um eco fiel
do povo; pela presunção e ação baseadas no pressuposto de que há um núcleo de
direitos fundamentais, que não somente têm existência concreta, mas que existem
acima da lei e são a medida da validade da lei; e de que as constituições não são
ideais abstratos contra os quais o real seria avaliado, mas planos concretos, fixos e
permanentes de governo, um conjunto de regras básicas que governa aqueles que
governarão, e que não podem ser alteradas, acrescidas ou suprimidas por nenhum
poder exceto aquele que as exarou.276 Pode-se até mesmo dizer que o direito
fundado na dinâmica característica de relações sociais dos revolucionários norte-
americanos era anterior à própria constitucionalização, uma forma formante, como
o chama Negri,277 a qual para este último não demandaria a rigor nem mesmo
tornar-se constituição formal. Mas tornou-se uma – ou, na verdade, duas
276 Obadiah Hulme, escrevendo em 1771, advertia que os homens incumbidos da formação de constituições civis deveriam lembrar que estão compondo para a eternidade: que o menor defeito ou redundância no sistema que formam pode provocar a destruição de milhões. Apud BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana: 176. 277 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 230.
143
sucessivas, da primeira das quais podendo-se dizer que foi o ápice do processo
revolucionário, e da segunda que o encerrou.
O arranjo constitucional
a) A primeira constitucionalização
O primeiro documento constitucional das agora ex-colônias, os Artigos da
Confederação, formulados em 1776, aprovados pelo Congresso Continental em
1777 e adotados por todos os recém-independentes Estados, correspondendo a
uma primeira fase de constitucionalização formal, foi um produto direto e imediato
da revolução e de suas circunstâncias. Partia tanto de um alto coeficiente de
autonomia e mesmo de independência dos Estados entre si – cada um deles com a
sua própria constituição - e em relação ao governo central, como dos valores
populares igualitários e ativamente participativos de que falamos.
Entre os colonos norte-americanos havia sido cultivada uma admiração pelo
governo misto da Inglaterra, no qual eram articulados em equilíbrio nas instituições
governamentais os principais elementos constitutivos da sociedade respectiva; as
categorias políticas que lhes serviam de referência eram heranças da Antigüidade
clássica grega e romana, notadamente a Roma republicana, reformuladas pelo
pensamento revolucionário inglês do século XVII. Mas as pressuposições acerca das
forças sociais básicas que agiam na Grã-Bretanha eram obviamente inaplicáveis à
sociedade da qual haviam emergido os revolucionários norte-americanos. Era
impensável, nos recém-independentes Estados, concebidos e construídos no
espírito da igualdade de direitos e privilégios resultante de uma tradição fortemente
igualitária que lhes vinha desde suas origens, a criação de qualquer ordem
particularmente privilegiada em relação ao restante da sociedade. Os líderes
revolucionários norte-americanos eram radicais, mas radicais de sua própria época
e lugar, e sua principal preocupação não era com o peso de injustiças acumuladas
ao longo dos tempos em uma sociedade estratificada ou remodelar a ordem social.
Ao contrário: a questão consistia em expressar adequadamente os princípios que
144
informavam essa ordem, purificando sua constituição da corrupção que viam na
constituição inglesa e repelindo qualquer possível crescimento de poderes
prerrogativos. A conseqüência de tudo isso foram Estados nos quais reproduziu-se
a íntima associação que os já agora ex-colonos faziam entre as palavras república e
democracia, as quais freqüentemente eram usadas como sinônimos, como observa
Bailyn,278 e cuja forma de governo, sendo expressão de direitos iguais e comuns,
expressava então predominantemente a vontade democrática. Como Alexander
Hamilton expressou com clareza no seu discurso à Convenção de ratificação de
Nova York à segunda Constituição, que sucedera os Artigos em 1787, aludindo às
usurpações praticadas pelo governo inglês contra os colonos e à desconfiança geral
da autoridade gerada nestes últimos,
resistir àquelas usurpações e alimentar esse espírito era o grande objetivo de todas as nossas instituições, públicas e privadas.279
Duas eram as características principais da política norte-americana sob os
Artigos - cujas disposições somente poderiam ser modificadas com a aprovação de
todos os Estados. A primeira, consignada no artigo II daquela primeira constituição
formal, o qual dispunha que cada Estado conserva sua soberania, liberdade e
independência, era que o poder não estava efetivamente no governo central, mas
nos Estados – entre 1776 e 1787, a Confederação era apenas uma aliança pouco
rígida entre as agora ex-colônias, cada uma com sua própria história, cultura e
tradições e todas com sua pouca experiência de unidade entre si, ressalvado o
período de luta comum contra a antiga metrópole. A segunda era que, nos Estados,
o poder estava concentrado nos legislativos populares, em detrimento de quaisquer
idéias relacionadas à separação de poderes. Os líderes revolucionários conheciam e
concordavam com a teoria republicana tradicional, quanto ao que esta preconizava
no sentido de estarem as melhores possibilidades de florescimento da liberdade em
Estados pequenos, e desse modo entenderam que os direitos inalienáveis à
278 BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana: 257. 279 KRAMNICK, I. Apresentação: 7.
145
liberdade e à busca da felicidade, solenemente proclamados quando de sua
independência, seriam melhor resguardados pelos governos estaduais, menores e
locais. Assim, as constituições estaduais, formuladas depois dos Artigos, refletiam o
medo dos revolucionários em relação aos governantes, e em relação à autoridade
dos magistrados de um modo geral, de tal maneira que a política de liberdade foi
expressa nesses documentos pela clara dominância dos respectivos braços
legislativos. A figura do governador, que havia desempenhado importante papel no
período colonial, foi simplesmente suprimida em duas das treze constituições (da
Pensilvânia e de New Hampshire); em oito outras constituições o legislativo era
competente para sua escolha; doze delas eliminaram completamente qualquer
ingerência do governador no processo legislativo, vedando também assento nesse
poder aos secretários do governo (a exceção era a constituição da Carolina do Sul);
e todas reservaram para o poder legisferante a aprovação final das nomeações
políticas, em seis delas já quase inteiramente reservadas para o legislativo.
Não obstante, com exceção da de Pensilvânia, todas as constituições
estaduais definiram legislativos bicamerais, muito embora os senados, em que pese
serem casas revisoras, tendessem a ter uma posição secundária e consultiva em
relação às câmaras baixas. Não eram, no entanto, senados hereditários de qualquer
modo semelhantes à Câmara dos Lordes inglesa, não sendo tampouco designados
por corpos intermediários, mas praticamente todos eleitos pelo povo. Ainda que
não aristocrática em sentido tradicional, era de aceitação corrente a necessidade da
câmara alta, como assinala Kramnick:
A maior parte dos americanos continuava convencida da necessidade de uma câmara que representasse o talento e a sabedoria superiores, onde os mais contemplativos e instruídos da comunidade poderiam rever as ações mais precipitadas do povo. Nesse sentido, muitos concordavam com Thomas Jefferson em sua crença tanto na integridade e no bom senso do homem comum como na existência de uma aristocracia natural, como a chamava, em contraposição à aristocracia artificial – criada pela Coroa, que devia seus cargos e posições a relações e influências, não ao mérito e ao talento.280
280 Idem: 13.
146
De modo coerente com o pressuposto então dominante de que um governo
livre é definido pelo governo do legislativo do povo e de que o único controle
adequado sobre o legislativo é o do próprio povo, durante o período em que
vigoraram os Artigos, paraticamente a totalidade das constituições estaduais
definiam eleições anuais para o legislativo, impondo ainda esquemas estritos de
rotatividade em todos os cargos. A isso se soma a expansão da base eleitoral entre
1776 e 1789: na maioria dos Estados, foram reduzidas as exigências de
propriedade e de recursos como pré-requisitos para a ocupação de cargos, de 70%
a 90% de todos os adultos do sexo masculino tornaram-se elegíveis, foram
abolidos os juramentos religiosos e a participação, na maioria dos pleitos, cresceu
dos cerca de 40% comuns antes da revolução para 65%. Nessa mesma ordem de
idéias, não apenas o governador - quando existia - encarnando o mando do
magistrado, era esvaziado da maior parte do seu poder, como o próprio judiciário
foi posto sob a autoridade dos legislativos, que passaram a controlar decisões
judiciais, prazos de mandato, salários e emolumentos e até mesmo assumindo
diretamente, em alguns casos, tarefas judicantes (como, por ex., decidindo sobre
heranças, propriedade de terras, contratos e dívidas).
Os próprios legislativos, não obstante sua incontestável supremacia sob a
política de liberdade à época dos Artigos, eram vistos sob suspeita e temor. Os
representantes eleitos do povo eram objeto de uma censura generalizada; para
muitos democratas radicais, a soberania do povo não era de modo algum um
principio abstrato de legitimação, de tal maneira que a titularidade efetiva, e
mesmo a única titularidade do poder de fazer leis, seria do povo, em comitês
distritais, convenções ou até mesmo, na mais radical postulação democrática, como
multidões. Em muitos Estados, passou a ser exigida aprovação popular, em
convenções ou por delegados eleitos direta e exclusivamente para esse fim, de
qualquer alteração das respectivas constituições. Na mais radical das constituições,
a da Pensilvânia, o legislativo unicameral funcionava de fato como câmara alta, o
povo sendo o detentor do poder fundamental de legislar – os projetos somente
147
seriam convertidos em lei depois que sofressem uma primeira leitura no legislativo,
em seguida publicados em todo o Estado, depois discutidos e aprovados em
convenções locais e afinal novamente votados na próxima sessão legislativa. Desse
modo, as fontes constituintes originárias constituiam-se substantivamente a si
mesmas como único poder normativo.
Nenhum braço executivo foi estabelecido para a única instituição central
integradora, o Congresso Continental, o qual, na linha do pensamento e do sentir
de 1776, avessos a qualquer segunda câmara aristocrática, consistia tão somente
em um legislativo unicameral. Cada um dos Estados tinha um voto,
independentemente do tamanho de sua população, bem como o direito de decidir
como designar de um mínimo de dois a um máximo de sete deputados para
representá-los, todos com mandato de um ano. A administração desse governo
central era incumbência de um comitê do Congresso, presidido por um deputado
pelo prazo máximo de um ano a cada três anos. Nas ocasiões em que não estivesse
reunido, o Congresso era representado por um comitê representativo dos Estados.
Também não havia um poder judiciário central, e mesmo o legislativo possuia
relativamente poucos poderes: O Congresso Continental era competente para toda
a política externa incluindo o poder de declarar guerra, mas não dispunha de
atribuições para regulação do comércio ou criação de impostos; suas receitas
provinham de requisições feitas aos Estados para esse fim, um tanto
irregularmente atendidas por estes. Nessa falta de poder no centro residia a maior
fragilidade dos Artigos, e seria precisamente essa marca da luta da Revolução
contra a autoridade, contra o poder e contra os reis, que seria invocada
decisivamente a partir de meados da década de 1780 pelos que exigiam a reforma
dos Artigos.
b) A reação e a re-constitucionalização
O triunfo do poder popular, expresso, sob os Artigos, nos legislativos estaduais,
implicou uma importante alteração destes últimos, em relação aos legislativos
148
coloniais: as representações vinham passando a ser integradas por um número
crescente de pequenos e médios agricultores e homens que não eram em geral
possuidores de grandes recursos. Essa presença de novos tipos de homens no
exercício direto das principais tarefas políticas não passara desapercebida aos
líderes tradicionais, os quais, como nota Kramnick,
tinham aguda consciência de que a luta revolucionária estimulara a ambição social, assim como politizara o homem comum.281
Nesse mesmo período, um fenômeno ainda mais marcante que o dilatado poder dos
legislativos estaduais, considerados abstratamente, era o conteúdo material da
legislação por eles aprovada, a qual se mostrava ameaçadora a interesses
econômicos e direitos privados, dentre os quais o de propriedade, muito dela
possuindo um caráter redistributivo alarmante para os críticos dos Artigos naquilo
que foi a Convenção Constitucional, destinada originalmente apenas à sua revisão.
Havia um grande número de endividados, particularmente agricultores, em débito
para com banqueiros, lojistas e comerciantes, e em um número crescente de
Estados, os homens novos daqueles legislativos aprovaram não apenas atos
monetários fornecendo dinheiro a baixo custo como leis que perdoavam devedores,
outras que revogavam contratos, leis que suspendiam as formas comuns de
cobrança de dívidas e até mesmo leis que confiscavam a propriedade.
Os setenta e quatro delegados dos Estados282 à Convenção a ser realizada
em Filadélfia a partir de maio de 1787, cuja convocação foi acordada em 14 de
setembro de 1786 pelas delegações estaduais reunidas em Annapolis, Maryland,
para discussão de todos os problemas financeiros, comerciais e políticos então
enfrentados pelo país, e autorizada pelo Congresso Continental em 21 de fevereiro
de 1787 tão somente para a finalidade limitada de recomendar revisões nos
Artigos, fizeram muito mais do que isso: transmudando-se de fato em comitê
constituinte, operaram uma total reversão de 1776. O famoso Federalista, do qual
281 Idem: 15. 282 Dos quais somente cinqüenta e cinco compareceram.
149
afirmou em 1825 o mais significativo dentre os seus autores, James Madison, que
pode ser visto muito bem como a mais autêntica exposição do texto da Constituição
de 1787, tal como compreendido pelo Corpo que a preparou e a autoridade que a
aceitou,283 registra em seu número 10 o temor pelos direitos privados, o qual
ecoava de um extremo ao outro do continente.284 Os delegados à Convenção, no
seu trabalho de elidir esses temores, deter e controlar a violência e o facciosismo, e
assim conter a força superior de uma maioria interessada e despótica em seu furor
por papel-moeda, por uma anulação de dívidas, por uma divisão igual da
propriedade, ou por algum outro projeto impróprio ou perverso,285 assegurando a
vitória do governo, da autoridade e do poder central sobre a política de liberdade
definida pelos Artigos, operaram de maio a setembro de 1787. Não foi feito
qualquer registro oficial acerca do voto a favor ou contra de cada um em cada
questão discutida, evitando-se assim possíveis constrangimentos dos delegados em
face de eventuais mudanças de idéias sobre o destino constitucional da América do
Norte. Até o término dos trabalhos, nenhum relatório circulou fora das paredes
dentro das quais se realizava a Convenção, proporcionando às sessões diárias o
total sigilo com o qual se isolou os delegados das pressões populares, assegurando-
lhes a tranqüilidade necessária às aludidas mudanças de idéias. Para reforçar ainda
mais essa possibilidade e permitir conciliação e negociações, que seriam
dificultadas ou mesmo impossibilitadas em caso de serem rígidos e imutáveis os
votos dados em cada matéria a ser decidida, era permitido a qualquer delegado
reconsiderar qualquer voto previamente dado em qualquer questão. Nada disso, no
entanto, os impediu de substituir o Preâmbulo dos Artigos da Confederação, o qual
começava anunciando que a todos os que estes documentos possam chegar, nós,
os abaixo-assinados, delegados dos Estados anexos aos nossos nomes, enviamos
nossas saudações, por um outro na Constituição, que iniciava com as palavras nós,
283 Apud KRAMNICK, I. Apresentação: 82. 284 HAMILTON; MADISON & JAY. Os Artigos Federalistas: 133. 285 Ibidem.
150
o povo dos Estados Unidos... Kramnick reproduz a seguinte passagem de Patrick
Henry, apontado como o maior orador dentre os críticos da Constituição, durante a
convenção de ratificação da Virgínia:
Que direito tinham eles de dizer: Nós o povo? Deixando de lado minha ansiosa solicitude pelo bem-estar público, minha curiosidade me leva a perguntar: quem os autorizou a falar a linguagem do nós, o povo, em vez de nós, os Estados?.286
Como resultado de sua atuação, os delegados à Convenção de Filadélfia
elaboraram um documento que alterou sensivelmente a conformação institucional
que emergira da Revolução Americana, mas cuja surpreendente concisão é
inversamente proporcional à extensão e à profundidade das transformações que
produziu. Possuia ele apenas sete artigos: o primeiro estabelece um legislativo
bicameral, definindo-lhe os poderes; o segundo cria um executivo de âmbito
nacional com um presidente, elencando-lhe as correspondentes competências e
fixando o respectivo tempo de mandato; o terceiro estabelece um judiciário de
âmbito igualmente nacional, com uma Corte Suprema; o quarto define as relações
entre os Estados; o quinto estabelece o processo mediante o qual futuras emendas
poderiam ser feitas à Constituição; o sexto trata ao mesmo tempo da supremacia
da Constituição e da avocação de dívidas estaduais contraídas antes desta última; e
o sétimo descreve o processo mediante o qual se daria a ratificação da nova
Constituição.
Madison expressa claramente, em sua notas preparatórias à da Convenção
de Filadélfia, o fio condutor dos trabalhos respectivos - cuja conseqüência foi um
triunfo, por assim dizer, do centro sobre a periferia, acrescido do afastamento do
princípio da supremacia legislativa em favor do princípio dos equilíbrios e controles:
Deixemos que o governo nacional seja armado com uma autoridade positiva e completa em todos os casos em que medidas uniformes são necessárias. Deixemos que tenha poder de veto em todos os casos, não importa quis sejam, sobre os atos legislativos dos Estados, como o rei da Grã-Bretanha teve até hoje. Deixemos
286 KRAMNICK, I. Apresentação: 24.
151
que essa supremacia nacional estenda-se também ao poder judiciário.287
Essa Convenção teve uma agenda previamente definida pelo que ficou
conhecido como Plano da Virgínia, Estado do qual provinham os líderes da
condução dos delegados à Filadélfia. O ímpeto nacionalista estava configurado em
uma frase-chave desse plano, a qual proclamava que deve ser estabelecido um
governo nacional formado por um Legislativo, um Executivo e um Judiciário
supremos. A superlativização da autoridade central em detrimento da dos Estados,
não obstante disfarçada sob a intenção declarada de apenas corrigir e ampliar os
Artigos, ficava evidente na resolução de n° 6 do Plano, pela qual o legislativo
nacional seria investido da autoridade de vetar quaisquer leis aprovadas por
qualquer Estado que contraditassem, na opinião do Legislativo Nacional, os artigos
da União; e de convocar a Força da União contra todo membro que descumpra seu
dever sob estes Artigos. Esse legislativo seria bicameral, composto de uma câmara
baixa integrada pelas delegações estaduais, cujos tamanhos seriam calculados com
base no tamanho das respectivas populações. Aqui, uma conciliação entre os
Estados do norte e do sul inseriu na Constituição uma contradição fundamental da
sociedade americana, que os Artigos não haviam ousado mencionar: estabeleceu-
se que seriam contados três quintos dos escravos. Nessa conciliação de
contradições, como notam Hardt e Negri,
escravos afro-americanos não puderam ser completamente incluídos nem completamente excluídos. A escravidão negra foi, paradoxalmente, uma exceção à Constituição e um dos seus fundamentos.288
Quanto à câmara alta ou Senado, nesta os Estados seriam representados
cada um por dois senadores, independentemente do tamanho de suas populações.
As regras de composição das duas câmaras definiram um campo de batalha na
Convenção Constitucional, no qual travou-se uma grande luta, não tanto sobre a
questão do estabelecimento de um governo nacional forte, em relação ao qual
287 Idem: 12. 288 HARDT & NEGRI, Antonio. Império: 190.
152
havia amplo consenso entre os delegados, mas em torno da representação dos
Estados nesse governo central. Em alinho com a perspectiva centralizadora da
Convenção, foram poucos os debates quanto ao poder em si a ser conferido ao
novo Congresso nacional: a essa entidade legislativa seriam atribuídos os poderes
de instituir e arrecadar impostos, de regular o comércio e de convocar e suprir um
exército. Esses poderes, que haviam sido resolutamente negados ao governo
central após a ruptura com a Inglaterra, agora se tornavam a chave da vitória do
centro.
No que toca ao executivo nacional, à sua frente passaria a estar o novo
primeiro-magistrado, o presidente, do qual Kramnick fala do espantoso poder que
lhe foi dado pela nova Constituição, que dele fazia a encarnação do ideal de
autoridade, governo e poder.289 O chefe do executivo nacional partilhava do poder
legislativo, detendo poder de veto sobre as leis congressuais, passível de ser
vencido nesses casos apenas por dois terços dos votos do Congresso; era o chefe
militar máximo, detendo o comando total das forças armadas; era o magistrado
supremo, detendo a faculdade de perdoar crimes contra a nação e o poder de
nomear todos os juízes federais; detinha ainda o poder de celebrar todos os
tratados, mediante oitiva e aprovação do Senado.
Já o poder judiciário adquiria autonomia e passava a ser a grande
articulação do devir institucional, como o define Negri,290 posto como elemento de
regulação da coexistência entre os poderes, reequilibrando-os sistematicamente em
função das normas fundamentais da constituição, da qual assumia o encargo de
guardá-la. Ainda nessa condição, passava também o judiciário a ser um garante
dos direitos individuais.
Por outro lado, o firme desiderato de escandir o poder dos legislativos
populares estaduais, bem como a presumível má-vontade que estes teriam para
289 KRAMNICK, I. Apresentação: 27. 290 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 254.
153
com um documento alicerçado precisamente em sua alegada perversidade, levou a
Convenção a desbordá-los na decisão do destino da Constituição: no seu artigo 7,
seus elaboradores estabeleceram que o processo de ratificação respectivo ocorreria
nos Estados em convenções convocadas especialmente para esse fim. Em um outro
movimento praticado pelos defensores da Constituição de 1787, estes se
apropriaram do termo federalistas, pelo qual haviam sido designados, durante
algum tempo, os que preconizavam a soberania independente de cada um dos
Estados, opondo-se a todas as tendências de consolidações centralistas e de um
governo nacional forte que se sobrepusesse ao dos Estados. Os que advogavam a
posição contrária eram conhecidos geralmente como nacionalistas. O nome de
federalistas foi adotado ao longo dos debates de ratificação, particularmente por
Nova York e outros Estados do norte, pelos que se apresentavam como favoráveis
ao governo nacional, ou federal, que a nova Constituição propunha. Esta última foi
assinada pelos delegados à Convenção em 17 de setembro de 1787, e em 28 de
maio de 1790 encontrava-se aprovada por todos os treze Estados. A Revolução
Americana acabara.
Herança intelectual e pensamento político (II): a concepção constitucional
da reação
Um ponto fundamental das divisões entre federalistas e antifederalistas era o
compromisso dos primeiros com aquilo que eles qualificavam como governo
republicano, em face das noções de democracia participativa, esposadas pelos
segundos. Da forma como ambas as noções entraram na polêmica que envolveu os
dois lados, isso representava uma inversão do entendimento sob o qual esses
termos eram definidos à época: até a década que viu os Artigos serem substituídos
pela Constituição, republicanismo estava associado a uma rejeição radical ao status
quo político, como ocorria na Inglaterra, e à idéias de governo mais orientado por
princípios democráticos. Mesmo assim, o termo não era usado até então em
documentos políticos na América do Norte: os treze Estados americanos adotaram
154
um total de dezoito constituições formais entre 1776 e 1778, e em nenhuma delas
consta a palavra república. Já a Constituição federal de 1787 ineditamente
empregou o termo, mas ainda assim somente no artigo quarto, no qual é
assegurada a forma republicana de governo, mas sem explicar o que seria isso.
Como assinala Kramnick,
A brilhante façanha de Madison foi a apropriação de uma palavra com inequívocas conotações políticas para uma estrutura governamental que, embora baseada na aprovação popular, envolvia grave redução da participação popular.291
Como se pode ver, essa era uma segunda apropriação terminológica com
inversão de significado, efetuada pelos adeptos da nova Constituição. Para os que
passaram a ser conhecidos como federalistas, governo republicano, que Madison
diz no Federalista nº 10 que é mais apto a abranger maior número de cidadãos e
maior extensão de país, seria governo por servidores representativos, em
contraposição ao exercício direto do poder político pelo povo. Essa forma de
governo inclui um aspecto que para eles era fundamental, e que se tornou o ponto
nodal de sua defesa do republicanismo: o efeito de filtragens sucessivas que seriam
aplicadas às manifestações da vontade popular, e que seria possibilitado pelo
deslocamento do poder para o pólo central, com a criação de um legislativo
nacional fundado em grandes e diversas unidades representativas. Esse governo
republicano, como Madison esclarece no mesmo Federalista 10, iria
depurar e ampliar as opiniões do povo, que são filtradas por uma assembléia escolhida de cidadãos, cuja sabedoria pode melhor discernir o verdadeiro interesse de seu país e cujo patriotismo e amor à justiça serão menos propensos a sacrificá-lo a considerações temporárias ou parciais. Sob tal regulação, é bem provável que a voz pública, manifestada pelos representantes do povo, seja mais consoante com o bem público do que se manifestada pelo próprio povo, convocado para esse fim.292
Entre os antifederalistas proeminentes surgiram desde logo críticas a essas
propostas, alegando que se processaria de fato uma transferência de poder de
muitos para poucos, e de que a criação de grandes unidades eleitorais que
291 KRAMNICK, I. Apresentação: 35. 292 HAMILTON; MADISON & JAY. Os Artigos Federalistas: 137.
155
votariam o preenchimento de uma pequena assembléia legislativa teria como
resultado não somente a produção de um governo com caráter impessoal, mas
também que reduziria grandemente as possibilidades de eleição de homens
comuns, em favor daquilo que em linguagem de hoje chamaríamos de elites
(fossem elas militares ou civis). Isso não incomodava os defensores da
Constituição, cuja posição a esse respeito Alexander Hamilton deixou clara no
Federalista nº 35, ao qualificar como totalmente visionária a idéia de uma
representação autêntica de todas as classes populares que lhes expressassem de
modo imediato e direto os interesses e sentimentos, defendendo a idéia de que no
legislativo nacional deveriam ter assento tão somente proprietários rurais,
comerciantes e os que exercessem profissões de nível superior. Para Hamilton, os
interesses das pessoas comuns não deveriam ser veiculados por elas próprias ou
por homens saídos diretamente do seu meio, mas somente por homens
provenientes daquelas três condições que apontava.
Na mesma ordem de idéias, enquanto os antifederalistas defendiam desde
os Artigos a convicção de que os representantes deveriam ser diretamente
responsáveis perante aqueles que representavam, e, na hipótese de não honrarem
a confiança destes últimos, sujeitos a mecanismos de fácil remoção, a noção de
filtragem advogada pelos federalistas trazia em si uma negação implícita de
qualquer traço de imperatividade dos mandatos. Assim, os próceres da defesa da
Constituição de 1787 rejeitavam a idéia de uma freqüência muito grande para as
eleições, conectada ao ideal antifederalista que definia a natureza do papel do
legislador como a de um delegado do povo que o elegeu. No Federalista de nº 37,
Madison admite que a liberdade de fato requer eleições freqüentes, mas afasta essa
solução em favor da energia e estabilidade que entendia necessárias à forma de
governo que pretendia estabelecer, e fornece argumentos adicionais no Federalista
de nº 52 e no de nº 53. No 52, onde trata da câmara dos deputados, admite
preliminarmente que a definição do direito de sufrágio é muito justamente
156
considerada como elemento fundamental do governo republicano,293 mas restringe
em seguida o exercício do poder de regulamentação eleitoral, dele elidindo
taxativamente a participação dos legislativos estaduais. Admite também que
eleições freqüentes constituem, sem dúvida, o único meio pelo qual294 pode a
Câmara ficar dependente do povo e gozar da sua simpatia, mas enumera uma série
de razões, com apoio especialmente na evolução constitucional inglesa do período
revolucionário, em favor de um intervalo de tempo mais longo entre as eleições. No
53, prossegue em sua argumentação, agora centrada na necessidade de adequada
aquisição dos conhecimentos necessários ao exercício dos mandatos. Porém, como
destaca Kramnick, talvez mais surpreendente seja a índole burkeana de sua
argumentação no Federalista nº 49, no qual adverte contra apelos freqüentes
demais ao povo, os quais privariam em grande medida o governo daquela
veneração que o tempo confere a todas as coisas.295
Uma outra área de discórdia entre federalistas e antifederalistas, dizia
respeito às idéias de separação de poderes e de governo misto. A Constituição de
1787 enfraqueceu e de certa forma diluiu a função legislativa, articulando-a de
modo diverso entre diferentes instâncias do governo central. Isso ocorreu mediante
o fortalecimento das funções executiva e judiciária, e também ao tornar o
legislativo, unitário sob os Artigos e as constituições estaduais da época respectiva,
em duas câmaras. O paradigma de liberdade invocado pelos mentores da
Constituição materializava-se no princípio abstrato da separação de poderes,
conforme proposto por Locke e Montesquieu, este último tendo sido citado por
Hamilton no Federalista nº 78 e por Madison no 47. Tal princípio estava longe de
resumir-se a uma separação pura e simples, e a uma definição estanque dos
poderes de uns em relação aos dos demais. No Federalista nº 47, Madison aponta o
desconhecimento dessa importante particularidade pelos opositores da
293 HAMILTON; MADISON & JAY. O Federalista: 423. 294 Idem: 424. 295 KRAMNICK, I. Apresentação: 41.
157
Constituição, os quais, segundo ele, entendiam nela não ter sido dada nenhuma
importância a essa precaução em prol da liberdade, e temiam que isso viesse a
expor algumas partes do edifício ao perigo de serem esmagadas pelo peso
desproporcional das outras.296 Quanto a Montesquieu, Madison afirma que ele não
quis dizer que os poderes executivo, legislativo e judiciário deveriam ser
completamente estanques uns em relação aos outros, ou seja, completamente
separados, mas
que quando todo o poder de um braço é exercido pelas mesmas mãos que possuem todo o poder de outro, os princípios fundamentais de uma constituição livre estão subvertidos.297
Madison se refere ao teórico francês como o oráculo sempre consultado e
citado a esse respeito,298 mas faz as idéias respectivas aparentarem uma
simplicidade e evidência cristalina que de fato não possuíam. Efetivamente,
Montesquieu, como Locke antes dele, não defendia propriamente uma separação de
poderes, mas uma certa combinação destes; é comum a ambos dar ao executivo
participação no legislativo e admitir um papel judicial para a câmara alta, e está
também presente nas idéias de ambos – mais expressivamente nas de Montesquieu
- equilibrar um seguimento do poder contra o outro.
De Locke, já tratamos, no contexto do processo revolucionário inglês; mas o
que realmente disse Montesquieu, o oráculo a que se refere Madison? Dada sua
importância no pensamento contra-revolucionário norte-americano – e mesmo mais
além, como veremos no próximo capítulo, ao tratarmos da Revolução Francesa -,
vale a pena tentar entendê-lo. Para isso, é necessário contextualizá-lo no interior
da situação histórica dentro da qual e em função da qual Montesquieu construiu
suas idéias. Faremos então a seguir um por assim dizer ligeiro parêntese, tão breve
quanto permita a compreensão dos aspectos de sua teoria com os quais se
relacionam de perto alguns dos mais importantes postulados federalistas.
296 HAMILTON; MADISON & JAY. O Federalista: 331. 297 Idem: 333. 298 Idem: 332.
158
a) Separação de poderes e constituição mista em Monstesquieu: a gênese
liberal francesa na crise do ancien régime
Como aponta Sabine,299 um longo regime de autocracia pessoal e burocrática havia
se estabelecido na França com Henrique IV e se desenvolvido, passando pela época
de Richelieu e Mazzarin, atingindo seu ápice com a monarquia de Luís XIV, cujo
regime autocrático tinha uma única expressão que com ele se alinhava, expressa
por Bossuet, no sentido de que o trono francês não pertencia a um homem, mas ao
próprio Deus. Tratava-se da antiga teoria do direito divino dos reis, reforçada pela
parcela da argumentação hobbesiana relativa a inviabilidade da existência de
situações intermediárias entre a anarquia e o absolutismo, mas dispensando os
aspectos contratualistas do pensamento de Hobbes, descabidos e inteiramente
supérfluos naquele contexto político. As últimas três décadas desse longo reinado,
de 1685 até o falecimento de Luís XIV em 1715, foi caracterizada pelo malogro dos
planos ambiciosos de conquista de Luís XIV, os quais, após um breve período de
glórias, não somente não se materializaram, como atiraram sobre o país todo peso
do custo dessas campanhas militares – sem nenhum ganho que o compensasse.
Isso se tornou ainda mais grave em função dos impostos opressivos e desiguais
com que se procurou salvar da bancarrota o tesouro real, à conta da miséria que
espalhavam.300
Em meio a essa crise financeira, e não obstante o início do desenvolvimento
de relações capitalistas, a sociedade francesa abrigava um amálgama de vários
conjuntos de privilégios, que tornava a separação entre as diversas classes ainda
maior e mais real do que era na Inglaterra. O clero possuía algo em torno de um
quinto do solo fancês, contava com vultosos ingressos de dinheiro, além de
isenções e outros privilégios; a nobreza, por sua vez, detinha também seus
privilégios, mas não tinha poder político; a agricultura francesa não oferecia
299 SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política.: 400-401. 300 Outro fator que contribiu para o empobrecimento do país foi a perseguição, até mesmo fisicamente violenta, aos protestantes.
159
oportunidades de desenvolvimento capitalista semelhantes às existentes do outro
lado do Canal da Mancha, e muito menos o ambiente político na França oferecia
qualquer perspectiva de participação por parte dos proprietários de terra (e muitos
agricultores franceses o eram), como ocorreu com os terratenentes ingleses. O
clero e a nobreza eram vistos pela classe média francesa como parasitas
sustentados por privilégios sociais, os quais incluíam isenções importantes de
cargas tributárias que eram impositivas para outras classes da sociedade. Essa
classe média era uma típica burguesia urbana, proprietária de grande parte de seu
próprio capital e principal credora do Estado, costumeiramente insolvente – com
Luís XIV procurando colocar-se como representante desse que era o estrato social
efetivamente produtor de dinheiro. Esse peculiar conjunto de seguimentos sociais
produziu no pensamento político francês sentidos de exploração e de consciência de
classe, em geral mais agudos do que os surgidos no pensamento inglês.
A decadência do sistema de governo autocrático levou a um ressurgimento
da teoria política e social, a partir principalmente dos últimos anos do século XVII,
com um acentuado aumento na quantidade de obras a respeito desses temas na
primeira metade do século XVIII. Muitas dessa obras eram descritivas de outros
governos europeus, notadamente do inglês, livros de viagens com descrições de
instituições de outros povos com referência indireta à França, teorias filosóficas
sobre os fins e justificações do governo, etc. O ápice ocorreu entre 1750 e a
Revolução Francesa, período ao longo do qual todos os ramos da literatura se
tornaram meios de discussão social.
Isso não significa que a crítica ao governo de Luís XIV fosse, desde logo,
embasada em teorias políticas; elas foram simplesmente reações às conseqüências
de um governo que não se havia bem. Não obstante, o acirramento dessas críticas
resultou na necessidade urgente de um corpo de idéias que permitisse não
simplesmente um retorno a antiga constituição, mas uma ruptura radical com as
raízes da tradicional cultura constitucional francesa, e a Revolução inglesa era a
160
fonte mais próxima e acessível para essas idéias. A residências de Voltaire e a de
Montesquieu na Inglaterra contribuíram para converter o pensamento de Locke no
fundamento e o governo inglês na referência para o pensamento liberal francês.
Esse se desenvolveu, então, especialmente sobre os princípios contidos nos Dois
tratados sobre o governo civil. Os princípios gerais adotados pelos autores
franceses desse período eram fundamentalmente os mesmos que haviam em
Locke, mas essas teorizações, em face das diferenças acentuadas existentes entre
os ambientes sociais e políticos respectivos,301 assumiram feições ainda mais
apriorísticas, dogmáticas e radicais, consideravelmente distintas daquelas
construídas na Inglaterra.
Dentro desse contexto, muito embora Montesquieu pretendesse que as
idéias contidas no seu O Espírito das Leis, publicado pela primeira vez em 1748,
tivessem aplicação à maior diversidade possível de lugares e circunstâncias, foram
concebidas voltadas para o estado de coisas na França, ainda que sob a influência,
principlamente, do pensamento de Locke e Newton. Deste último, trouxera o
conceito de raiz aristotélica da verdade como uma razão única, válida em todos os
tempos e lugares, reforçado pela descoberta newtoniana de Deus na ordem natural,
acessível racionalmente pelo homem. Contudo, ainda que sem abandonar o aparato
racionalista, deixou de lado a idéia contratualista do pacto social, de modo coerente
com a rejeição que também fazia tanto de explicações teológicas como morais, ou
de qualquer modo situadas fora da história e das necessidades que a governam.
Isso, consoante Althusser, caracteriza o objeto e o método que Montesquieu define
na ciência que pretende estar praticando, e que simultaneamente o distingüe de
301 Sabine nos fornece um panorama elucidativo do ambiente político em que esse pensamento se desenvolveu: Embora seja uma doutrina de liberdade, foi elaborada debaixo de um despotismo, e em sua maior parte por homens que não tinham experiência de governo nem possibilidade prática de adquiri-la. Fora das filas da administração pública, não havia em França quem tivesse experiência e, se excetuarmos Turgot, os burocratas escreveram pouco sobre filosofia política. A autocracia havia feito do governo um mistério que se desenrolava em segredo, e não divulgava nunca, mesmo que a tivesse, a informação, financeira ou de outra classe, que pudesse permitir que se formasse um juízo inteligente sobre a política. SABINE, G. H. Historia de la Teoria Política.: 404.
161
outros autores que o precederam, como Hobbes, Spinoza e Grotius.302 Por outro
lado, rejeitando ao mesmo tempo as teses contratualistas e jusnaturalistas,
afastava conscientemente, juntamente com estas últimas, os alicerces da ordem
feudal.
Montesquieu busca, com sua principal obra, formular algo como uma teoria
sociológica do direito e do governo, tentando demonstrar que sua estrutura e
funcionamento, seu equilíbrio e estabilidade estão sempre a depender das
circunstâncias nas quais vive cada povo, nestas compreendidas as condições físicas
do local, estado das artes, do comércio, dos modos de produção, costumes e
hábitos do povo, forma de constituição política, etc. A necessidade de adaptação
das leis e dos regimes às diferentes circunstâncias, inclusive ao caráter do povo e
ao clima, já havia sido exposta por Aristóteles em sua Política, assim como a idéia
de que um bom governo é bom em sentido relativo, em face dessas condições. A
inovação, aqui, é a escala em que Montesquieu tenciona aplicar esse entendimento
– o estagirita contempla apenas as cidades gregas, ao passo que o pensador
francês pretende abarcar o mundo.
Da mesma forma, a classificação tripartite das formas de governo, que
segundo Montesquieu foram reveladas pelo estudo da história antiga e moderna,
tem antecedentes verificáveis na mesma obra aristotélica que citamos, dentre os
muitos matizes entre democracia e oligarquia que haviam existido nas cidades-
estado. A diferença de amplitude entre as avaliações de Aristóteles e a de
Montesquieu deveria ter motivado este último a um aprofundamento muito maior
em suas comparações das formas de governo; isso, entretanto, não ocorre, e não
há explicações do porque adotou em parte a classificação tradicional. Assim,
afastando-se das considerações puramente aritméticas de distribuição de comando,
efetuou Montesquieu sua classificação dos governos em repúblicas, baseadas na
302 ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 21-24. Embora Althusser tenha aqui omitido Maquiavel, como portador de uma originalidade semelhante (e anterior), no sentido de reconhecer a esfera política como campo autônomo de conhecimento e ação.
162
virtude, fundindo aqui democracia e aristocracia; monarquias, baseadas no
princípío da honra; e despotismos, baseados no princípio do medo. Althusser
aponta aqui uma outra inovação que segundo ele teria sido trazida por
Montesquieu, ao unificar a natureza dos governos (conceito formal de direito
constitucional) com os princípios que os fazem agir (condição concreta de sua
eficácia), numa totalidade natureza-princípio,303 única forma efetivamente
concebível, já que uma natureza sem princípio seria apenas uma abstração
desprovida de existência real. Desse modo os Estados podem ser considerados
como totalidades reais nos quais o conjunto de sua legislação, de suas instituições
e de seus costumes, que são ao mesmo tempo o efeito e a expressão necessária de
sua unidade interna,304 integram-se em um todo coerente, submetidos a uma
lógica profunda que os remete a um centro único.305
A partir dessa compreensão, não mais é possível validamente tomar em
separado elementos individualizados de Estados concretamente existentes, na
tentativa de descobrir-lhes princípios particulares, isolando-os da lógica global de
sua constituição. Esse modus operandi analítico remete para além da superfície dos
princípios imediatos que Montesquieu associa à sua tripartição classificatória,
atingindo a corrrespondência entre duas totalidades natureza-princípio distintas,
mas intrinsecamente ligadas: a do Estado e a da lógica organizacional da própria
sociedade. Dessa maneira, por exemplo, se a sociedade se organiza em torno do
mercado, sua natureza é capitalista e seu princípio é uma combinação da liberdade
de contratação com a livre circulação da propriedade; o Estado correspondente
tenderá então a ter uma natureza republicana306 cujo princípio de virtude será por
303 Idem: 62. 304 Idem: 63. 305 Ou, dito em outros termos, estaríamos diante da correspondência entre estrutura e superestrutura, relação que seria mais tarde estudada em profundidade por Marx, mas que já se encontrava prefigurada em Harrington, como vimos no capítulo III, e espelhada em sua proposta de lei agrária. 306 Ainda que formalmente possa ser uma monarquia, como ocorre com a Inglaterra.
163
vez sua definido segundo princípios liberais de autonomia individual e respeito aos
contratos e à propriedade. Toda a constituição do Estado tenderá, assim, a ser
informada por essa lógica, em função da qual buscar-se-á remover ou neutralizar
os fatores que de alguma forma a antagonizem. Esse dinâmica em especial pode
ser observada no processo da reação re-constitucinalizante norte-americana de
1787.
Por outro lado, Montesquieu temia que o prolongado regime autocrático
houvesse minado a tal ponto a constituição francesa que qualquer aspiração de
liberdade se houvesse inviabilizado definitivamente. Assim, animado por sua
admiração pela república antiga, tal como a que encontrara em Maquiavel, Milton e
Harrington – ou antes pela idealização que delas fez Montesquieu, não tendo de
fato qualquer relação com as repúblicas modernas -, desenvolveu sua teoria da
comumente (e em grande parte equivocadamente) chamada separação de poderes,
como condição constitucional de restauração e preservação das antigas liberdades
dos franceses. Defendia, como os antigos romanos, a virtude ou espírito público
como condição prévia para essa forma de governo, mas, tendo em vista suas
observações do que ocorria nas repúblicas existentes, como a Itália e a Holanda,
combinado com sua vivência na Inglaterra, seu pensamento apontou para a idéia
de que, ao invés de uma moralidade cívica superior, uma adequada organização do
Estado poderia ser o meio mais eficiente de preservação das liberdades. Não
obstante, e ainda dentro da linha da república antiga e do governo inglês, sua
concepção crítica do despotismo, que identificava o direito à vontade do monarca,
não apontava, como solução para os males da autocracia, a alocação no povo da
titularidade exclusiva da soberania do Estado, mas, antes, via os incovenientes da
autocracia na eliminação de todos os poderes intermediários entre o rei e o povo.
Entre esses poderes, estava a representação da aristocracia rural, à qual o próprio
Montesquieu pertencia, de tal modo que a diversidade político-administrativa por
ele pregada poderia contribuir para assegurar os direitos respectivos. Nessa ordem
de idéias, em um claro intento normativo, e não apenas descritivo, como ocorre em
164
relação aos princípios que lastreiam sua classificação das formas de governo, a
diferença entre governos moderados e absolutos estaria para ele no grau de
liberdade que deixe aos cidadãos e aos corpos intermediários.
A contraposição dinâmica entre esses corpos, ou entre essas potências,
como as define o próprio Montesquieu (1987), ao fazer como que cada uma resista
às demais, para ele preservá-las-ias todas. Ou seja, transpondo do plano abstrato
da exposição para o concreto da realidade francesa daquela época, tal arranjo
permitiria que a burguesia fosse representada politicamente, assim como a nobreza
rural, impedindo ao mesmo tempo sua aniquilação recíproca. Dessa forma, duas
eram as ameaças temidas por Montesquieu, e que este pretendia, quanto a
primeira, já existente, vê-la expungida da França, e a segunda, um risco potencial,
contida dentro de limites adequados: o despotismo que Richelieu e Luís XIV haviam
implantado, com sua ameaça aos privilégios dos governos locais, dos parlements e
da nobreza, e o avanço político da burguesia – classe que, como já dissemos, era a
efetiva produtora de dinheiro -, oprimida pela expoliação tributária e por esses
mesmos privilégios, e cujo desejo de influir ativamente nos destinos do país era
crescente. A constituição mista, aparentada ao estilo romano e com o que vira
Montesquieu na Inglaterra, se apresentava então como a solução mais próxima do
ideal, com relação aos interesses em confronto.
No que tange à soberania popular, Montesquieu a declara como princípio
fundamental de liberdade, mas num plano individualista, quando afirma que
num Estado livre, todo homem reputado ter alma livre dever ser governado por si mesmo. Por isso precisaria que o Povo, no seu todo, tivesse o Poder Legislativo.307
Mas, após afirmar o princípio, nega-o como possibilidade prática:
como porém isso é impossível nos Estados grandes e está sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, precisa que o Povo faça, por seus representantes, tudo que não pode fazer por si.308
307 MONTESQUIEU, C. L. de S. O Espírito das Leis: 169. 308 Ibidem.
165
Com isso principia sua teoria do exercício do poder político como uma
representação, com um duplo significado: no sentido de ser exercida indiretamente
por representantes dos seus titulares formais, e no de, assim exercida,
representar-se como democrática. Montesquieu não deixa quaisquer dúvidas de
que a sua recomendação quanto às dificuldades da democracia direta não se
prende apenas a aspectos operacionais ligados ao tamanho físico dos Estados e de
suas populações:
a grande vantagem dos representantes é serem capazes de discutir os negócios. O Povo não está apto para isso, o que constitui um dos grandes inconvenientes da Democracia.309
A idéia de lliberdade para Montesquieu, portanto, não necessariamente
implica uma idéia de democracia: como diz o próprio Montesquieu em suas
Voyages,
nada há no mundo de mais insolente que as repúblicas (...) A plebe é o tirano mais insolente que pode existir.310
Ao lado de sua insistência quanto a esse ponto, Montesquieu, assim como
Burke, ainda desvincula o mandato dos representantes de qualquer imperatividade
relativa à vontade direta de seus eleitores, deixando-o num plano de
representatividade geral. Dessa forma, o povo é trazido à legitimação do sistema
político através da câmara baixa legislativa, sendo sua presença no Estado
representada por essa participação, mas ao mesmo tempo é duplamente afastado
do exercício efetivo do poder: fica adstrito à eleição de representantes, cujos
mandatos têm caráter não imperativo. Assim, a democracia que é discutida no
capítulo II do Livro Segundo do Espírito das Leis, admitida apenas como
representação e ainda assim por mandatos não imperativos e dentro de uma
distinção do povo em dois povos, um de notáveis que seriam elegíveis e outro da
massa restante a qual apenas restaria eleger os que a governariam, assimila de
fato a noção de democracia à uma aristocracia eletiva:
309 Ibidem. 310 Apud ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 90.
166
a maioria dos cidadãos tem bastante competência para eleger, mas não para ser eleita. Pois assim também o Povo, que tem bastante capacidade para fazer lhe prestem contas da gestão dos outros, não é capaz de gerir ele próprio.311
Como que completando esse entendimento, e mesmo antes de tratar do
aspecto mais famoso de sua obra, ou seja, a divisão de poderes-, Montesquieu
preconiza a divisão do povo, dizendo que no Estado popular, o Povo é dividido em
certas Classes, a isso aditando que
na maneira de fazer essa divisão é que se distinguiram os grandes legisladores; e é dela que sempre dependeu a duração da Democracia e a sua prosperidade.312
E não deixa dúvidas quanto ao caráter restritivo dessa sua democracia, ao
destacar a divisão do povo de Roma em centúrias, feita pelo rei Sérvio Túlio,
jogando os mais ricos nas primeiras centúrias e na última toda a multidão de
indigentes; assim,
como cada centúria não tinha senão um voto, então eram as posses e as riquezas que davam o sufrágio, e não as pessoas.313
Althusser não têm dúvidas: após transcrever passagem do mesmo capítulo
na qual Montesquieu afirma que o voto público é uma lei fundamental da
democracia, porque é preciso que a plebe seja esclarecida pelos poderosos e
travada pela gravidade de certos personagens, assinala:
o segredo do voto é privilégio dos senhores da aristocracia pela simples razão de que eles são os senhores de si próprios! Não há dúvida: o meio mais seguro para manter uma disposição tão natural, é produzí-la.314
Existe ainda em Montesquieu a câmara alta, um meio de representação no
Estado dos interesses das pessoas eminentes pelo nascimento, pelas riquezas ou
pelas honras,315 um corpo de nobres que deveria ter caráter hereditário. Sua
finalidade confessada seria a de evitar prejuízos derivados de decisões populares
que, como o próprio Montesquieu admitia, a prevalecer um legislativo unicameral
311 MONTESQUIEU, C. L. de S. O Espírito das Leis: 86. 312 Idem: 87. 313 Ibidem. 314 ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 91. 315 Idem: 171.
167
que apenas representasse o povo em geral, tenderiam a serem tomadas contra os
interesses da nobreza. Não é difícil perceber a intenção de refrear a burguesia, que
estaria representada na câmara baixa,316 permitindo a veiculação dos seus
interesses sem o risco da destruição dos privilégios da nobreza. Como corolário
desse desiderato, se à câmara alta não é sempre deferido o poder de elaborar de
per si a legislação, ela detinha o poder de veto quanto às deliberações da câmara
baixa, sendo assim a legislação a ser efetivamente editada uma composição
resultante da ação e da reação entre as câmaras baixa e alta. Essa câmara alta
reflete o papel que Montesquieu designa para a nobreza, entre os poderes
intermediários, subordinados e independentes,317 necessários a uma monarquia
que se não pretenda despótica. Esta última é o regime onde um sozinho deve
governar por meio de leis fundamentais, porque se no Estado não há senão a
vontade momentânea e caprichosa de um só, nada pode ser fixo, e por conseguinte
316 Montesquieu não aborda esse ponto, mas o poder econômico da burguesia certamente a levaria, por meio de diversos expedientes, a obter a primazia na representação na Câmara Baixa, inobstante ser menor em número do que a massa geral de maltrapilhos que constituía a maior parte da população urbana e rural da França. Uma passagem do Espírito das Leis, que alguns intérpretes atuais, atualizando demasiadamente o texto, vêem como alusiva apenas às limitações contemporâneas de idade e cumprimento de pena criminal, a nosso ver permitem supor ter sido deixada em aberto a possibilidade da instituição de vedações de natureza diversa: todos os cidadãos, nos diversos distritos, devem ter direito de cotar para escolher o representante. Exceto os que se encontrem tão rebaixados que se reputem não ter vontade própria. MONTESQUIEU, C. L. de S. O Espírito das Leis: 170. De qualquer forma, as disputas principais que então se delineavam, e que mais a frente desaguariam na Revolução Francesa, eram entre a burguesia e a nobreza, e entre essas duas e a monarquia despótica, e não há dúvida de que o Espírito das Leis foi escrito frente a esse duplo conflito. Em relação especificamente à burguesia citadina francesa, numa obra anterior, as Cartas Persas, primeiro trabalho seu a ser publicado, o aristocrata rural Montesquieu já lhe havia feito uma crítica, ao considerar as cidades como lugares de incoerência teórico-prática, e de comportamentos bizarros. Uma outra possibilidade seria a de diluir a força da representação burguesa, nivelando-a a do povo em geral; acreditamos, porém, não ter sido essa a intenção do autor, posto que, como já dissemos, e Montesquieu não ignorava - em que pese não ter atingido o mesmo discernimento de Harrington quanto às relações entre propriedade e poder político -, a burguesia representava o pólo capitalista da sociedade francesa, de crescente importância material para o país, de modo que escandir-lhe a possibilidade de se fazer representar politicamente significaria impedir a institucionalização de suas demandas, e, conseqüentemente, de seu controle. A questão central em Montesquieu nos parece ter sido a preservação do poder e privilégios da nobreza, em face tanto da monarquia quanto da burguesia. 317 ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 93.
168
nenhuma lei fundamental –318 estas últimas, portanto, como destaca Althusser,
definem a fixidez e constância de um regime,319 ou seja, compõem sua constituição
formal. Tais leis fundamentais supõem necessariamente canais intermédios por
onde circula o poder,320 como assinala Montesquieu, sendo a nobreza o poder
intermediário mais natural.321 Assim estabelece o Senhor de la Brède a necessidade
de uma nobreza, dando-lhe ao mesmo tempo um papel central entre a suprema
magistratura executiva e a esfera representativa do povo: um príncipe protegido
dos seus excessos por ordens privilegiadas. Ordens protegidas do príncipe pela sua
própria honra. Um príncipe protegido do povo e um povo protegido do povo por
estas mesmas ordens – assim Althusser caracteriza o posicionamento político da
nobreza. Nada poderia estar mais próximo das conveniências da monarquia e
principalmente da nobreza francesas de sua época, e simultaneamente e por esse
mesmo motivo mais distante da generalidade que pretendia Montesquieu ter dado à
sua obra.322
A definição bastante difundida da teoria de Montesquieu, como de separação
entre poderes, muitas vezes entendida de modo estanque e estático, não permite
por si só entrever com clareza sua idéia central de equilíbrio dinâmico entre as
forças políticas em presença umas das outras. Assim, está prevista a ação do
executivo sobre o legislativo, estabelecendo aquele a época e a duração das
legislaturas, de acordo com as circunstâncias dele conhecidas,323 e, ainda mais
importante, pelo poder de veto. O legislativo, no entanto, não é despido de ação
sobre o executivo, sendo-lhe atribuída a aferição da responsabilidade deste último
na execução das leis. Aqui começam, por outro lado, os casos de ação judicante
318 Idem: 92-93. 319 Idem: 95. 320 Ibidem. 321 Ibidem. 322 Cuja base factual compreendia apenas suas pesquisas e idealizações sobre a antigüidade clássica greco-romana, excursões limitadas pela Europa ocidental e alguns livros de viagens. 323 MONTESQUIEU, C. L. de S. O Espírito das Leis: 174.
169
pelo legislativo, dividida entre as duas câmaras segundo a mesma lógica
operacional estabelecida para as suas respectivas tarefas legisferantes: acusação
pela câmara baixa, julgamento pela câmara alta. Os nobres, por seu turno, devem
ser julgados por seus pares na câmara alta; e há, ainda, o julgamento pelo
legislativo dos casos de anistia. O judiciário, por sua vez, não surge propriamente
como um poder, ou, para usarmos as palavras de Montesquieu, torna-se, por assim
dizer, invisível e nulo.324 O juiz não tem aqui outra função ou significado a não ser,
como assinala Althusser, o de um homem cuja função consiste exclusivamente em
ler e em dizer a lei.325 Naquelas matérias em que o juiz corre o risco de ser outra
coisa que não um código animado,326 ou seja, nas questões em que o julgamento
envolve questões relacionadas com a articulação constitucional do balanço do
poder, as garantias não são mais jurídicas, mas políticas, como se vê na definição
da competência para o julgamento dos nobres e dos integrantes do poder
executivo.
É possível então dizer que a solução de Montesquieu para o governo
moderado não implica, como assinala Althusser, nem uma
estrita separação dos poderes nem a preocupação e o respeito jurídico da legalidade [mas uma] divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o rei, a nobreza, o povo.327
Assim, se, como sustenta Bobbio, distinguindo entre forças políticas e
tarefas do Estado, o que se divide com base na teoria do governo misto são as
classes, ou se quisermos, os poderes, o que se divide segundo a teoria da divisão
dos órgãos são as funções,328 o que se tem em Montesquieu é uma imbricação dos
poderes com as funções, ou das forças políticas com as tarefas do Estado, na qual
se fundem e se articulam ambos os princípios. Esse sistema opera uma dupla
garantia implícita: a da posição social, privilégios e distinções da nobreza tanto
324 Idem: 167. 325 ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 133. 326 Ibidem. 327 Idem: 134-135, grifos originais. 328 BOBBIO, N. A Teoria das Formas de Governo: 287.
170
contra violências do rei como do povo, e do rei contra revoluções populares, pela
própria posição intermediária da nobreza – o que mais uma vez realça a
importância e a necessidade desta última. Ao mesmo tempo reconhecia a potência
da burguesia – referida genericamente no interior da denominação de povo -,
abrindo-lhe um espaço de participação política, ainda que contida. Em síntese, o
conteúdo da proposta de Montesquieu – porque se trata de fato de uma proposta,
pretensamente legitimada pela alegada universalidade factual de sua pesquisa –
pode ser definido com uma atualização do balanço feudal do poder, baseado na
garantia da posição relativa de corpos intermediários entre o rei e o povo, em
função do câmbio histórico das realidades sociais, econômicas e políticas que então
se operava na França. Entenda-se bem: Charles Louis de Secondat, Barão de Brède
e de Montesquieu, senhor de terras e filho de uma linhagem nobre de trezentos e
cinqüenta anos, não é de forma alguma um arauto do avanço burguês em face dos
poderes antigos; ele é, ao contrário, um arauto do antigo poder da nobreza em face
do poder atual do rei que se absolutizara e em face do poder possível da burguesia
que se desenvolvia. Esse é o oráculo ao qual recorrem os federalistas, adaptando
estes últimos sua proposta original para o seu próprio contexto de afirmação do
poder da burguesia em face do poder popular.
Por outro lado, a observação do governo inglês, feita por Montesquieu, lhe
havia mostrado que as controvérsias havidas entre a coroa e os tribunais da
common law, assim como entre a coroa e o parlamento, realçavam a importância
da separação entre poderes, que Harrington considerara como essencial a um
governo livre, e a qual Locke dera menor importância, em seu regime de
supremacia parlamentar. A forma mista de governo não havia tido nunca um
significado perfeitamente definido, e o que lhe acresceu Montesquieu foi converter
o sistema de freios e contrapesos entre os poderes, ou mais precisamente entre os
interesses das diversas classes sociais, em uma organização constitucional de
poderes jurídicos, que teria como resultante o império de uma legislação construída
de forma a atender a burguesia na medida em que não prejudicasse os interesses
171
da nobreza. A não interferência dos poderes executivo e judiciário sobre o poder
legislativo significa que não haveria interferência política sobre o resultado final das
deliberações deste último, e, em conseqüência, se para Montesquieu a liberdade é
o direito de fazer tudo o que as leis permitem,329 então liberdade seria somente
aquilo que atendesse a composição de interesses entre a burguesia e a nobreza,
levada a efeito no poder legislativo.
Não há como determinar até que ponto Montesquieu pensava ser possível
imitar na França o governo inglês, mas não há dúvida de que a parte mais famosa
do Espírito das Leis, na qual, falando da constituição da Inglaterra, atribuía a
possibilidade de liberdade à distribuição delimitada de tarefas políticas entre os
poderes executivo, legislativo e judiciário, e ao respectivo sistema de freios e
contrapesos, elevou essas doutrinas a um posto de grande destaque no
constitucionalismo liberal. Conjuntamente com o princípio do governo moderado,
fundamentaram a interpretação moderna da teoria clássica do governo misto. A
influência de Montesquieu, sob esses aspectos, é indiscutível, tendo sido suas idéias
efetivamente aplicadas nas primeiras constituições escritas, que foram também as
primeiras constituições escritas do liberalismo moderno, como foi o caso da norte-
americana – mas, aqui, com uma importante inversão, da qual falaremos ainda
neste capítulo – e da constituição de 1791, produto da Revolução Francesa, última
das grandes revoluções atlânticas, à qual dedicaremos o próximo capítulo.
b) Separação de poderes e constituição mista nos federalistas: a gênese
liberal na crise da revolução americana
A classificação aritmética das formas de governo, feita por Aristóteles em função da
distribuição de poder político, como democracia, aristocracia e tirania (governo de
muitos, de poucos ou de um só), juntamente com as suas correspondentes formas
puras ou corrompidas, passando pela sua combinação em uma única estrutura
governativa em que estão presentes e articulados simultaneamente os três
329 MONTESQUIEU, C. L. de S. O Espírito das Leis: 163.
172
elementos da classificação aristotélica, como via Políbios na Roma republicana e foi
proclamado pelos apologistas da constituição britânica, sua expressão na idéia de
constituição mista em Locke e principalmente em Montesquieu, toda essa herança
estava fortemente presente no acervo intelectual dos idealizadores da Constituição
norte-americana. Desse modo, a teoria política em que se baseavam fundia as
idéias que associavam as noções de tirania e liberdade à concentração ou não das
funções de governo nas mesmas mãos, às idéias que afastavam um governo de
posições extremas pela combinação constitucional das forças sociais. No desenho
das instituições centrais do Estado norte-americano, os federalistas aplicaram essa
fusão das duas teorias, e com isso, como sublinha Kramnick, transformaram as três
áreas funcionais do governo em arenas para o domínio de forças sociais
particulares,330 equilibrando-se uma contra a outra através da partilha e mescla do
poder.331 Como Madison expõe no Federalista nº 51,
a ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais.332
Essa articulação de forças sociais contrapostas no interior da repartição das
atribuições entre os diferentes poderes é imaginada
de modo que as diferentes partes constituintes possam, através de suas mútuas relações, ser os meios de conservar cada uma em seu devido lugar.333
Não se trata de uma dinâmica projetada exclusivamente para as instituições
governativas, mas da subsunção tanto da sociedade quanto do governo a uma
mesma lógica relacional:
esta política de jogar com interesses opostos e rivais, à míngua de melhores recursos, pode ser identificada ao longo de todo o sistema das relações humanas, tanto públicas como privadas.334
330 KRAMNICK, Isaac. Apresentação: 44. 331 Ibidem. 332 HAMILTON; MADISON & JAY. O Federalista: 418. 333 Idem: 417, grifo nosso. 334 Ibidem.
173
Opera-se então a redução ao indivíduo da dimensão coletiva dos interesses
políticos, de tal modo que
o interesse privado de cada indivíduo [passa a ser] uma sentinela dos direitos públicos.335
A questão da conservação das partes componentes do governo no lugar de
cada uma deve ser entendida em consonância com uma outra passagem do mesmo
Federalista nº 51.
Madison apresenta o governo como a mais veemente crítica à natureza
humana, aduzindo que
se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governo. Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os controles internos e externos. Ao constituir-se um governo – integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens – a grande dificuldade está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo.336
De um lado, verifica-se que, como os poderes de governo correspondem a
determinadas forças sociais, a alocação destas na estrutura de poder não deve
sofrer alterações, de tal modo que as potências populares devem ser mantidas no
seu lugar, ou seja, no limite das possibilidades da representação respectiva. De
outro lado, a idéia de controle entre governantes e governados não é recíproca, já
que aqueles devem controlar estes últimos, não cabendo porém a estes o controle
daqueles: o governo deve controlar os governados, e deve controlar-se a si
mesmo. O predomínio necessário da autoridade legislativa – onde estaria enfeixada
a representação popular, tão forte sob os Artigos da Confederação -é visto como
um inconveniente, para o qual é apresentado como solução
repartir essa autoridade entre diferentes ramos e torná-los, utilizando maneiras diferenciadas de eleição e distintos princípios de ação, tão pouco interligados quanto for permitido por suas funções comuns e dependência da mesma comunidade.337
335 Ibidem. 336 Ibidem. 337 Idem: 419.
174
Essa repartição da autoridade na fase de re-constitucionalização foi marcada
pela articulação de uma linha condutora central de mediação política capaz de
filtrar, equilibrar, controlar e coordenar os interesses daquela sociedade em
processo de construção. Nenhum interesse estava, por assim dizer, pré-constituído,
como ocorria nas sociedades européias que haviam adotado a constituição mista.
Não estavam, portanto, ligados de per si a formas específicas de representação. A
própria constitucionalização em si representava o desenvolvimento de um conceito
cuja aplicação remete à vontade geral rousseauniana – de importância ainda maior
no contexto da Revolução Francesa, de que falaremos no próximo capítulo -ao
mesmo tempo em que se pretendia evitar a prevalência absoluta de qualquer
interesse em particular. Não havendo como suprimir as contradições entre os
interesses diversos e contraditórios, estes foram assumidos no exercício
constitucional, conduzindo, como assinala Negri, à idéia de uma representação
múltipla, de uma trama difusa de interesses particulares,338 dentro da qual a União
é posicionada como um instrumento de salvaguarda interna contra as facções e
eventuais rebeliões. Tendo partido a Revolução Americana de uma noção ou de um
sentimento de liberdade e democracia incondicionadas, estas haviam sido
absorvidas e tornadas funcionais dentro de um sistema de poder: passavam agora
a serem administradas.
O temor da supremacia legislativa não controlada estava na raiz desse
projeto. No Federalista nº 48, Madison preconiza logo de início que os poderes
sejam vinculados e misturados o suficiente para que cada um tenha um controle
constitucional sobre o outro, e pouco mais adiante adverte:
em toda parte, o legislativo estende a esfera de sua atividade e suga todo poder para seu vórtice impetuoso.339
Fazia-se imperioso para Madison, como para os demais federalistas, conter
as usurpações legislativas, que para eles eram as principais ameaças à liberdade na
338 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 235. 339 HAMILTON; MADISON & JAY. O Federalista: 338.
175
América do Norte. Assim, teciam loas à separação abstrata de poderes, mas sob
esse elogio defendiam de fato uma redução do poder legislativo, pelo expediente de
partilhar o poder de legislar com outras instâncias do governo. Sua preocupação
principal na Convenção de Filadélfia não era tanto com as funções de governo
propriamente, mas com as forças sociais e sua projeção na estrutura do Estado
central, e disso decorria seu empenho na divisão em dois do legislativo nacional.
Gouverneur Morris, transcrito por Kramnick, foi claro quanto a que o
estabelecimento de um Senado era necessário
(...) para controlar a precipitação, a mutabilidade e os excessos da primeira câmara. Todo homem observador viu, nas câmaras democráticas dos legislativos estaduais, precipitação; no Congresso, mutabilidade; e em todos os setores, excessos contra a liberdade pessoal, a propriedade privada e a segurança pessoal.340
Ainda segundo Kramnick,
Hamilton descreveu o Senado como conscientemente moldado segundo a Câmara dos Lordes, um equilíbrio entre os muitos e o singular.341
Esse Senado, cuja eleição dar-se-ia absoluta e exclusivamente pelos
legislativos estaduais, como nos informa Madison no Federalista nº 45, seria uma
barreira não apenas contra os excessos dos comuns, mas até mesmo do executivo,
na hipótese de este último tornar-se excessivamente amigo dos interesses da
maioria. Assim, dentro do sistema de controles recíprocos, no qual se buscou dar
supremacia ao controle federal, surgiu o Senado como epítome da centralização
respectiva. Nele reunificou-se a representação das aristocracias estaduais, numa
tentativa de criar um órgão de contenção da força popular. Uma solução centralista
exacerbada, o Termidor constitucional da Revolução Americana, como o define
Negri,342 que a guerra de secessão afinal demonstraria ser insustentável na
amplitude que lhe quiseram dar os arquitetos da Constituição.
340 KRAMNICK, I. Apresentação: 46. 341 Ibidem. 342 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 251.
176
O poder executivo, por sua vez, é apresentado nos termos do que
tradicionalmente se propunha no âmbito de uma constituição mista: advogava-se a
necessidade de estabilidade, de ação eficaz proporcionada pelo senso de
oportunidade, independência frente às facções, proteção da comunidade contra
agressões externas, proteção da propriedade. No Federalista nº 51 o Executivo é
reforçado como meio de controle da autoridade do Legislativo, e a Constituição
deferiu àquele uma parcela do poder legislativo, ou mais precisamente o exercício
de um meio de controle deste último, através do poder de veto. Seguindo essa
linha, de modo coerente com a lógica que estruturava a articulação das forças
sociais na diversificação das funções de governo, a qual presidiu a construção
constitucional, os delegados em Filadélfia se preocuparam em definir
cuidadosamente uma base social separada e distinta para o poder executivo e o seu
presidente: este seria escolhido não pelo povo diretamente, mas por eleitores
designados pelos legislativos estaduais, como Madison expõe no Federalista nº 45.
O executivo na Constituição norte-americana demarca aquilo que Negri qualifica
como um momento de centralização e de garantia absoluta, um momento de
decisão e eficácia absolutas343 que completa a obra constitucional de centralização,
estreitando ainda mais os espaços residuais de poder deixados às potências
populares.
Urgia também para os federalistas a restauração da separação e
independência do judiciário frente ao legislativo, e, mais ainda, demarcando uma
sensível diferença relativamente à posição de Montesquieu, a sua colocação como
meio de controle sobre as forças sociais, principalmente das maiorias populares.
Isso fica claro no Federalista nº 78, ao situar Hamilton os tribunais como
intermediários entre o povo e o legislativo, com o declarado objetivo de impedir
este último de extravasar os limites que lhe foram traçados. No Federalista nº 51,
Madison defende a independência do Judiciário, tanto em relação aos demais ramos
343 Idem: 252.
177
do poder como em relação ao próprio povo, sustentando-a no tripé composto pela
qualificação específica, pela vitaliciedade dos mandatos – a qual deve, em pouco
tempo, destruir qualquer laço de dependência em relação à autoridade responsável
pela nomeação –344 e pela máxima independência possível no que se refere aos
próprios emolumentos. Este último aspecto é valorizado no Federalista nº 51 por
igual para os três poderes uns em relação aos outros, mas o exemplo utilizado por
Madison mais uma vez remete à independência, relativamente à esfera
representativa do poder popular, das instâncias destinadas ao seu controle:
se o magistrado executivo ou os juízes não forem independentes do Legislativo neste particular, a independência sob qualquer outro aspecto será meramente nominal.345
Podemos dizer, quanto ao poder judiciário, que a lógica do centralismo
constitucional percorre da mesma forma a concepção de sua independência total,
enquanto guardião da Constituição e da própria balança do equilíbrio entre os
poderes, de acordo com as determinações constitucionais, erigindo-se dessa
maneira como um outro meio de controle do legislativo. O Federalista nº 78 é
enfático ao proclamar a supremacia das leis constitucionais sobre as leis ordinárias,
e o correspondente dever dos juízes de restaurar a primazia das primeiras, nos
casos em que seja posta em cheque por estas últimas. Surge assim um poder que
tem como um dos seus focos principais o uso do poder da Constituição,
apresentada como expressão da vontade do povo, para conter o legislativo.
Serviam-se desse modo os federalistas da figura popular para produzir uma
representação legitimadora do centralismo constitucional – apresentado como
expressão da soberania do povo, embora simultaneamente a alienasse deste
último. Esse judiciário estava concebido também para intervir como garantidor dos
direitos individuais contra comportamentos facciosos de cidadãos ou grupos,
prevenindo eventuais tendências de tiranização das minorias pelas maiorias –
somando-se nesse particular à seguimentação social e política, apresentada pelo
344 HAMILTON; MADISON & JAY. O Federalista: 338. 345 Ibidem.
178
Federalista nº 51 como garantia nesse sentido. Mais ainda: trata-se de um poder
que, na continuidade da produção jurisprudencial dos tribunais, constrói e acumula
um saber que se traduz de fato em uma orientação política na resolução dinâmica
das ambigüidades surgidas em função da rigidez da máquina constitucional, que é
ao mesmo tempo a própria garantia desta última. Embora não seja ele próprio o
poder constituinte, o judiciário, ao dar por sua conta solução aos problemas dos
poderes implícitos do governo federal na Constituição, aos conflitos entre Estados e
entre indivíduos e Estado, e exercer controle sobre as leis destinadas à aplicação
material das normas constitucionais, está destinado a por em evidência, como
observa Negri, a força política geral da Constituição.346
A decisão sobre o uso da força, por sua vez, que a Revolução Americana
havia demarcado na milícia popular e voluntária como uma prerrogativa não
delegável do povo, é apropriada pelo processo de re-constitucionalização e
remetida ao poder central. Este passava dessa maneira a deter o monopólio do uso
legítimo da força física, reduzindo ainda mais o alcance da democracia americana e
remetendo à definição tradicional da soberania. Nesse sentido, Hamilton, em tom
hobbesiano, já define o Estado no Federalista nº 15 como um instrumento
coercitivo, e no nº 16 ressalta que a autoridade nacional, em sua majestade, não
pode ter sua ação dificultada por corpos intermediários, mas deve levar sua ação
diretamente até as pessoas dos cidadãos. No que diz respeito aos objetivos gerais
da Constituição, Madison e Hamilton, seus principais articuladores, concordavam
quanto à necessidade do estabelecimento de um governo nacional, centralizado e
eficaz, necessário à eliminação e prevenção das graves ameaças aos direitos de
propriedade, produzidas pelos legislativos estaduais sob os Artigos; e também
quanto à necessidade de prover a estrutura política adequada ao desenvolvimento
346 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 255. Isso ocorre tanto porque é a aplicação desta última o fim primeiro de sua atividade, como porque se trata de um poder de Estado formalmente instituído por ela. Ao mesmo tempo, explicitando a impossibilidade de imobilização do poder constituinte na rigidez da Constituição, exerce-o exponte sua, adaptando a interpretação e a aplicação do sistema normativo vigente às exigências decorrentes das contingências mutáveis ao longo da história.
179
do comércio, por meio da criação de um mercado de âmbito nacional, moeda única,
crédito público e proteção aos contratos. As discordâncias ficavam por conta da
visão hamiltoniana de um Estado nacional dotado de metas próprias, voltadas para
a busca do poder num sistema internacional composto por diversos Estados, todos
com idêntico objetivo, ao passo que para Madison o Estado não teria metas
próprias, sendo sua função precípua apenas assegurar a estrutura política
necessária ao desenvolvimento das relações de comércio – um espaço público de
competição entre os negócios privados e interesses livres de indivíduos e grupos. A
tarefa principal do governo teria, por assim dizer, uma dupla face: de um lado seria
negativa, um não-fazer, no sentido de não aprovar leis que interferissem nos
direitos privados, e de outro lado seria positiva, mas indo pouco além da
administração de conflitos em uma ordem social que seria basicamente auto-
reguladora.
Como acentua Kramnick,
os federalistas pareciam se ufanar de uma América individualista e competitiva, preocupada com direitos privados e autonomia pessoal.347
A multiplicidade e a heterogeneidade de interesses era para Madison, como
ele expressa no Federalista nº 10, um elemento de garantia da liberdade e da
justiça americanas. Essa justiça, para os federalistas, tem o mesmo sentido que lhe
dá Locke, como direito dos homens à apropriação do produto de seu trabalho.
Desse modo, os interesses principais, referidos no mesmo texto com viés lockeano,
e cuja proteção ocupa lugar especial entre as finalidades do governo, eram os
interesses privados:
A diversidade das aptidões humanas, que está na origem dos direitos de propriedade (...) A proteção dessas aptidões é a primeira finalidade do governo. (...) A fonte mais comum e duradoura de facções, porém, tem sido a distribuição diversa e desigual da propriedade. Os que têm bens e os que carecem deles sempre formaram interesses distintos na sociedade. Credores e devedores recaem numa distinção semelhante. Um interesse fundiário, um interesse mercantil, um interesse pecuniário, ao lado
347 KRAMNICK, I. Apresentação: 50-51.
180
de muitos interesses menores, surgem necessariamente nas nações civilizadas e as dividem em diferentes classes, movidas por diferentes atitudes e concepções. A regulação desses interesses diversos e concorrentes constitui a principal tarefa da legislação moderna.348
Assim, o Preâmbulo da Constituição de 1787, onde se declara que esta tem
por missão estabelecer a justiça, significa que sua missão é a proteção dos direitos
privados, conectados à realização do objetivo seguinte, posto um tanto
hobbesianamente como sendo o de assegurar a tranqüilidade interna. O mesmo
Madison se encarrega de eliminar quaisquer dúvidas a respeito, ao replicar, durante
a convenção, a uma sugestão de Roger Sherman no sentido de que a União tinha
como finalidades tão somente o estabelecimento das melhores relações com nações
estrangeiras e a prevenção de disputas e conflitos entre os Estados. À curta lista de
Sherman, insistiu Madison que fosse acrescentada...
(...) a necessidade de prover mais efetivamente a segurança dos direitos privados e a constante administração da justiça. Interferências nisso eram males que, talvez mais do que qualquer outra coisa, tornaram necessária essa Constituição.349
A democracia na equação política de 1787
Como vimos, o republicanismo contra-revolucionário, em seu centralismo decisório
-incluindo o uso da força física -, empreendia um retorno à concepção absolutista
do Estado. Nesse sentido, se é afirmada a idéia da dualidade de ordenamentos
constitucionais entre a Federação e os Estados Federados, dentro do sistema de
controle recíproco das diferentes autonomias, é reafirmada a supremacia da
Federação como instância decisora de todos os conflitos. A defesa das minorias, por
seu turno, se é operada pela oposição da sociedade ao governo como contra-poder,
não o é de forma direta, mas articulada através do pluralismo político de instâncias
representativas do pluralismo social. A liberdade originária, desenvolvida a partir da
vivência dos colonos nas comunas e nos espaços abertos primordiais, é transposta
para a liberdade organizada e regulada dos espaços constitucionais. O homo
348 HAMILTON; MADISON & JAY. O Federalista: 134-135. 349 Apud KRAMNICK, I. Apresentação: 53.
181
mercator que surgiu dos impulsos burgueses dessa sociedade emancipava-se
politicamente no espaço formal das instâncias representativas, o corpo político
passava a ser o lugar de exercício e também de delimitação de sua liberdade,
articulada em um conjunto de compromissos hierarquicamente ordenados na
Constituição e nela garantidos por um sistema de cheks and balances. As ameaças
à liberdade são invocadas para legitimar a própria restrição à liberdade, e as
possibilidades políticas do poder representativo são rigorosamente contidas pela
supremacia constitucional. Esta é a realização em ato das potências que dominaram
o poder constituinte, constituindo ao mesmo tempo o liberalismo como sentido e
totalidade, fundação e limite para a comunidade humana.350 Limite este que
aparece a serviço de uma ordem que, entre outras coisas, era fundada na
escravidão, afastando ou até mesmo suprimindo essa questão ao situar seus
conceitos de liberdade e de igualdade no nível dos proprietários.351 Mas, mesmo
considerando a igualdade dos que eram assimilados constitucionalmente como
iguais, o arranjo resultante da estrutura constitucional norte-americana parece
mais próximo de justificar o pessimismo de Toqueville, para quem o sistema norte-
americano facilitava o próprio despotismo, do que o ufanismo federalista:
parece que, se o despotismo viesse a se estabelecer nas nações democráticas de hoje, teria outras características: seria mais amplo e mais brando, e degradaria os homens sem atormentá-los.352
Sob os Artigos, a Confederação nutrira-se do ideal de pequenas repúblicas
simples e virtuosas, baseadas em noções de democracia que implicavam ou
exercício direto do poder legislativo pelo povo ou mandatos representativos de
acentuado cunho imperativo; sob a Constituição, esse ideal foi suplantado pela
construção de uma república centralizada, forte, complexa e acima de tudo
350 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 248. 351 As contradições dessa discriminação cromática explodiriam mais tarde na guerra de secessão, por sobre o conflito entre modos e relações de produção antagônicas, como também na crise dos direitos civis da década de 60 do século passado. 352 TOQUEVILLE, A. de. A democracia na América: 530.
182
comercial. Extinguira-se a base de confiança ínsita à pequena comunidade moral na
qual os homens partilhavam opiniões, paixões e interesses semelhantes, e em seu
lugar ficava o Estado liberal moderno, pondo em prática as propostas de Locke e de
Montesquieu - dentro das quais a propriedade, o comércio e a crematística
funcionam de fato como substitutos dos valores integrativos comunitários. Se a
democracia, como a entendiam os politai gregos, supõe enquanto regime
propriamente político, ou seja, universal, uma verdadeira conversão do homem
privado no homem público,353 a reação de 1787 define em relação ao regime dos
Artigos o processo inverso, ou seja, a conversão do homem público no homem
privado.
Por outro lado, alguns antifederalistas chamavam a atenção para
implicações aristocráticas da Constituição relacionadas à dificuldade que teriam
pessoas da massa do povo em se elegerem para a Câmara dos Representantes, o
que demarcaria ainda mais o afastamento do governo central não somente em
relação aos antigos valores comunitários, como também e principalmente em
relação ao povo em geral. Dado o alto nível do cargo, e com 65 representantes
sendo escolhidos por eleitorados de 30 mil para cada um, tenderiam a ter muito
melhores chances de eleição os detentores de fortuna e influência nos Estados.
Como escreveu John Quincy Adams, transcrito por Kramnick, a Constituição
foi deliberadamente planejada para aumentar a influência, o poder e a fortuna daqueles que já os possuíam.354
Mas o que na realidade ocorria, consoante nota Negri, é que a máquina
constitucional americana se apropriava de todos os espaços nos quais o homo
politicus poderia inovar diretamente.355 A emancipação política da burguesia
americana encampou e absorveu a construção constitucional, congelando-a numa
rigidez que paradoxalmente era apresentada como garantia da liberdade:
353 ALTHUSSER, L. Montesquieu, a política e a história: 87-88. 354 KRAMNICK, I. Apresentação: 60. 355 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 255.
183
nada restou do caráter social e universalista da política que encontrara expressão no movimento revolucionário. A centralização exacerbada da Constituição produz uma totalidade exclusiva na qual não há lugar para o poder constituinte.356
A democracia, se legitima o poder em sua origem, passa por sua vez a ser
organizada pelo poder. O espaço e a universalidade que haviam estado na origem
da Revolução Americana são destruídos, e a multidão fracionada em um conjunto
de singularidades solitárias. As tensões e as contradições são contidas e
administradas, e os conflitos potenciais são ao mesmo tempo hipostasiados,
sublimados e finalmente absorvidos pela supremacia desse novo Leviatã abstrato,
impessoal e juridicizado: a Constituição. Esse poder imenso eleva-se, assim, acima
dos cidadãos, assumindo uma característica tutelar sobre o que Toqueville
caracteriza como a
multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos.357
Essa massa de indivíduos, como observa ainda sombriamente o autor
francês, vive à sobra de um poder absoluto, minucioso, regular, previdente e
brando,358 que se exerce cotidianamente por meio de pequenas regras
complicadas, minuciosas e uniformes.359 Esse poder
não esmaga as vontades, mas as enfraquece (...); raramente força a agir, mas constantemente opõe resistência à ação; nunca destrói, mas impede de nascer; nunca tiraniza, mas comprime, enfraquece, prejudica, extingue. 360
E, contudo, como Marx notou em A Questão Judaica,361 esse Estado é o
mesmo que tentou despolitizar e anular as diferenças de nascimento, de status
356 Idem: 256. 357 TOQUEVILLE, A. de. A democracia na América: 531. 358 Ibidem. 359 Idem: 532. 360 Ibidem. 361 Cuja perspectiva sob a qual vê a sociedade e o Estado norte-americanos é, evidentemente, muito diversa da de Toqueville.
184
social, cultura e ocupação, ao proclamar todos os membros do povo co-
participantes da soberania popular em base de igualdade.362
A generalidade desse Estado, em que pese seu repúdio à desigualdade de
estatutos jurídicos, somente se efetiva em contraposição às diferenças de fato que
a propriedade privada, a cultura e a ocupação produzem na sociedade. Como Marx
faz ver, o individualismo radical subjacente à formação política norte-americana
sobrepunha um véu ideológico ao fato de que o homem não é um ser abstrato ou
isolado, ele é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade.363 Subsumidos os
conflitos no centralismo constitucional, e simultaneamente insulados os homens nas
suas próprias individualidades, essa sociedade foi levada a se desenvolver à sobra
do poder concentrado naquele Estado tutelar ao qual Toqueville se refere, e que é
definido por Cornelius Castoriadis como uma pirâmide burocrática povoada de
subpotentados privilegiados.364 Como observa ainda o mesmo Castoriadis, ainda
que permaneça tal Estado democrático no sentido toquevilleano, legalista e
igualitário, o resultado é
simplesmente o que temos a nosso redor: uma oligarquia liberal, não uma democracia.365
A aplicação federalista do princípio da constituição mista definiu uma ordem
republicana na qual as forças sociais são reunidas e articuladas no interior de uma
rede de contra-poderes. Essa ordem, na configuração com que emergiu da
Constituição de 1787, se re-introduz o Estado como força central absoluta, ao
mesmo tempo, ao defini-lo e organizá-lo como produto da dinâmica social interna,
completa e reafirma a obra dos Artigos no sentido de retirá-o da dimensão
transcendentalista, na qual o situam as teorias medievais ou pré-modernas e
mesmo o pensamento de fundo materialista de Hobbes, e ao inseri-lo
definitivamente no plano da imanência. O Estado, ainda que possa ter o caráter
362 MARX, K. A questão judaica: 22. 363 Idem: 85. 364 CASTORIADIS, C. Figuras do pensável: 204. 365 Ibidem.
185
tutelar que nele vê Toqueville, não é superior à sociedade, mas uma organização
particular do poder político produzida como resultado da articulação em processos
constituintes do conjunto de múltiplos conflitos sociais, a que aludem Hardt e
Negri.366 Isso define a aplicação de dois princípios próprios de um outro
componente da herança intelectual dos federalistas, o republicanismo
maquiaveliano: o de que o poder é sempre poder constituinte,e o de que aquilo que
este último constitui é o tecido político de expressão da dinâmica social interna - e,
como tal, sempre imanente à sociedade. Por outro lado, se a autoridade é alocada
na ordem republicana da Constituição de 1787 de forma plural e diversificada, isso,
como vimos, de fato não significa equivalência recíproca entre as forças em
presença, disso resultando um equilíbrio assimétrico entre os contra-poderes
constitucionalmente estabelecidos.
Sob os Artigos e as constituições estaduais correspondentes, a configuração
do poder político havia sido consciente e explicitamente desenhada a favor das
potências populares; sob a Constituição, essa configuração passava a ser
desenhada para simultaneamente incluir e conter essas mesmas potências, em
favor da expansão da expressão política de outras forças. É possível dizer que a
passagem dos Artigos à Constituição foi de certo modo uma demonstração da
anaciclose de que falava Políbios, como também que a estrutura constitucional de
1787 assinalou uma tentativa maquiaveliana de simultaneamente permitir a
expansão e mesmo a supremacia da expressão política de determinadas forças
sociais, sem, contudo, suprimir ou anular inteiramente as possibilidades de
expressão das demais. Nesse processo, ao fundir criativamente as teorias da
separação de poderes e da constituição mista, os federalistas se aproximaram
daquele ideal que Políbios equivocadamente pensara ter sido atingido pela Roma
republicana: deter a recorrência dos ciclos políticos, sem fechar a sociedade sob um
366 HARDT & NEGRI, Antonio. Império: 181.
186
regime totalitário e sem a prevalência absoluta de um único seguimento social
sobre todos os demais.367
Quanto ao equilíbrio constitucional norte-americano de contra-poderes, as
experiências de constituição mista sempre haviam demarcado contextos de
assimetria. A única experiência histórica inteiramente horizontal e não assimétrica,
de que tratamos no capítulo II, foi efetivamente a da democracia ateniense,
ressalvando-se sempre os seus limites – ou seja, a exclusão das mulheres, dos
escravos e dos metecos.
A primeira experiência histórica de constituição mista, a da república
romana, teve como objetivo o de preservar na distribuição de comando político o
escalonamento relativo de forças existente entre os diversos seguimentos sociais.
Isso significa dizer que não havia perfeita igualdade na expressão política
respectiva, como demonstramos no capítulo III, e se o elemento popular ou
democrático, como o qualificava Políbios, estava inserido naquele arranjo
constitucional, o era apenas muito limitadamente, de tal maneira que o termo
democracia, se aplicado a tal contexto, não poderia designar o governo como um
todo, mas apenas a limitada inserção do elemento popular em uma estrutura
predominantemente oligárquica.
Na experiência resultante do processo revolucionário inglês, da qual
tratamos no capítulo IV, o que se buscava não era propriamente a inserção política
do elemento popular, mas a afirmação constitucional, através da Câmara dos
Comuns, de uma nova classe social, a nascente burguesia capitalista e os pequenos
proprietários de terras, frente às classes que tradicionalmente dominavam o
governo britânico, a aristocracia nobiliárquica e terratenente. A inserção popular,
assim mesmo relacionada com questões ligadas à propriedade, foi objeto apenas de
duas diferentes propostas, a dos Niveladores e a de Harrington, ambas radicais
367 Um antigo adágio de origem latina lhes exprime bem a atuação: suaviter in modo, fortiter in re.
187
naquele contexto e ambas derrotadas. O termo democracia sequer era empregado
por qualquer das partes em confronto.
Já na América do Norte, os Artigos e as constituições estaduais
correspondentes demarcaram, como dissemos, uma assimetria em relação à forma
de governo colonial, no sentido de uma inclusão política ampla e participativa do
elemento popular, porém cederam rapidamente seu lugar à Constituição de 1787.
Esta, por sua vez, criou uma assimetria própria e inédita na história da constituição
mista, inclusive em relação às idéias de dois dos seus principais inspiradores, Locke
e Montesquieu. Locke pensara, no contexto da Revolução Gloriosa, a afirmação
política das novas classes sociais inglesas frente à aristocracia; Montesquieu, no
contexto da decadência do ancien régime e do crescimento do peso econômico e
social da burguesia francesa, pensara a possibilidade de reafirmação do status quo
da aristocracia nobiliárquica e fundiária em face de uma inclusão política controlada
daquela burguesia. Se os Artigos da Confederação, ineditamente desde a velha
Atenas, haviam definido um caráter marcadamente horizontal para o poder político,
no qual sobressaía a supremacia do poder popular, a Constituição de 1787,
também ineditamente na história, submetera as potências populares em expansão
ao controle da burguesia em ascensão.
A Revolução Francesa, objeto do último capítulo deste trabalho, demarcou,
na movimentação de forças sociais nela desencadeada, uma outra originalidade
histórica. Ali, um movimento expansional inicial da burguesia, que buscou no povo
o apoio de que necessitava para romper um tempo histórico fortemente fechado, foi
engolfado pela potência constituinte das multidões que ele próprio havia
mobilizado.
Capítulo 6
A emancipação burguesa e a potência constituinte
das multidões: a revolução francesa
A última das grandes revoluções atlânticas situadas entre os marcos fundacionais
das instituições políticas modernas, foi a Revolução Francesa.368
O ambiente histórico e sua transformação revolucionária
a) O caráter da revolução
Alguns a chamam de Revolução Francesa de 1789, mas nós rejeitaremos o uso do
ano de deflagração da seqüência de eventos respectiva, precisamente por se tratar
de um processo - 1789 assinala de fato essa deflagração, mas de modo algum seu
término, ou mesmo o período de manifestação de todo o seu conteúdo
revolucionário. Aliás, se é possível assinalar seu início no tempo, delimitar o
instante preciso em que a Revolução foi terminada se afigura muito mais
problemático. Pode-se, por exemplo, ver no período napoleônico não seu fim, mas
sua continuação, com o afastamento das ameaças ao desenvolvimento das
condições de produção, comércio e finanças, enfim, aos interesses econômicos
burgueses, tão fundamentais no processo revolucionário. Isso tanto no caso das
ameaças internas, prevenindo coisas do gênero do jacobinismo de Robespierre e
Saint-Just ou do protocomunismo de Babeuf e Maréchal,369 como no caso dos
368 Giza Eric Hobsbawn que a própria idéia de revolução social tem nesse marco histórico seus antecedentes; segundo esse autor, a Revolução Francesa foi, de fato, um conjunto de acontecimentos suficientemente poderoso e suficientemente universal em seu impacto para ter transformado o mundo permanentemente em importantes aspectos e para introduzir, ou pelo menos nomear, as forças que continuam a transformá-lo. HOBSBAWN, E. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa: 81 e 124. 369 Sylvain Maréchal fora o poeta e François-Noël Babeuf - mais tarde auto-cognominado Graco Babeuf - o líder da Conspiração dos Iguais, movimento inspirado por idéias radicalmente coletivistas e igualitárias, que rejeitava, como pregava Maréchal em seu Manifeste des Ègaux, a idéia de que a igualdade fosse uma quimera ou uma fantasia insuscetível de realização efetiva, e de que sua única expressão possível fosse aquela alcançada de modo geral e abstrato perante a lei. Para eles, que haviam levantado a bandeira de sua causa num momento de arrefecimento revolucionário e de reação contra as possibilidades mais democráticas da Revolução Francesa (o período do Diretório), esta última
189
perigos situados para além das fronteiras da França. Em relação às ameaças
internas, pelo expediente de eliminar qualquer possibilidade de liberdade política ou
de participação no governo (inclusive da própria burguesia); e, no que diz respeito
aos perigos além-fronteiras, pela erradicação manu militari dos remanescentes das
instituições feudais, de modo a proporcionar à burguesia francesa um ambiente
adequado e atual no continente europeu, como define Marx.370 Pode-se estender
ainda mais esse raciocínio, para nele incluir o movimento de 1848-51, onde a
teria sido apenas um prelúdio de um movimento maior, mais solene e final com o qual sonhavam, e cujo destino seria trazer a igualdade de fato para a humanidade. Conscientes da apatia das massas, resultado de sua exaustão após as lutas políticas dos anos anteriores, os babovistas, como ficaram conhecidos, planejaram um putsch por conta própria, a ser levado a efeito em 08 de maio de 1796, na expectativa da adesão popular subseqüente. Não chegaram, contudo, a executá-lo: o Diretório tinha espiões infiltrados no movimento, desbaratando-o antes que eclodisse. Babeuf e o seu companheiro Augustin Darthé foram condenados à guilhotina, ao passo que os demais membros do movimento foram absolvidos ou condenados ao degredo na Guiana Francesa, fazendo companhia a diversos ex-jacobinos que lá já se encontravam. O povo francês foi, à época, mantido na ignorância acerca desse movimento; na verdade, somente veio a saber de sua existência mais de trinta anos depois, quando Filippo Buonarroti, um antigo babovista, escreveu e publicou seu livro Conspiration pour l'egalité dite de Babeuf. Embora derrotado o movimento, alguns traços das suas características poderão, mais tarde, serem observados na concepção da vanguarda do proletariado, de Lênin, ou no foquismo revolucionário defendido por Ernesto “Che” Guevara, como a idéia de que um grupo de homens de ação pode se outorgar o direito de agir em substituição às massas apáticas, atuando como lugares-tenentes da sua vontade paralisada e emudecida, tornando realidade aquilo que a população, no interior dos seus anseios,desejaria que fosse feito. O programa que Babeuf mandara imprimir e que pretendia adotar, na hipótese de sucesso do seu movimento, estava sintetizado da seguinte forma: 1- A natureza deu a todo homem o direito de usufruir de todos os seus bens. 2- O propósito da sociedade é defender essa igualdade, tão costumeiramente atacada pelos maus e pelos mais fortes, e incrementar, por meio da cooperação universal, o usufruto em comum dos benefícios da natureza. 3- A natureza impôs a todos a obrigação de trabalhar, ninguém pode esquivar-se dessa tarefa sem que com isso esteja cometendo um crime. 4- Todo o trabalho e o gozo dos seus frutos deve ser em comum. 5- A opressão existe quando uma pessoa se exaure no trabalho da terra carente de tudo, enquanto outra nada na abundância sem que tenha feito nenhum esforço para isso. 6- Ninguém pode apropriar-se dos frutos da terra ou da industria exclusivamente para si sem com isso cometer um crime. 7- Numa verdadeira sociedade não pode haver pobres nem ricos. 8- Aqueles homens ricos que não desejam renunciar aos seus excessos de bens em favor dos indigentes são inimigos do povo. 9- Ninguém pela acumulação de todos os recursos da educação, pode privar um outro da instrução necessária. 10- O objetivo da revolução é destruir a desigualdade e restabelecer o bem-estar coletivo. 11-A revolução não acabou porque os ricos absorveram todas as riquezas, colocando-as exclusivamente sob o seu comando, fazendo com que os pobres fossem colocados em estado de virtual escravidão, definhando na miséria e não sendo nada no Estado. 12- A Constituição de 1793 é a verdadeira lei dos franceses, em razão do povo tê-la solenemente aceitado. SCHILLING, V. A Revolução Francesa de 1789: s/ p. 370 MARX, K. O 18 brumário: 22.
190
combinação de uma burguesia vacilante, mas desejosa de garantir-se, com um
proletariado valente, porém mal direcionado, abriu caminho para a aventura
política do Bonaparte do segundo 18 Brumário. Do mesmo modo, pode-se também
incluir aquela outra aventura, dessa vez popular, que foi a comuna de Paris de
1871. Pode-se até mesmo chegar à Revolução Russa de 1917 e anos seguintes,
cheia de referências à França revolucionária por parte de muitos de seus próceres
dotados de senso histórico, como nota Hosbawm:
A Revolução Francesa dominou a história, a própria linguagem e o simbolismo da política ocidental desde sua irrupção até o período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial - incluindo a política daquelas elites no que hoje é chamado de Terceiro Mundo, que viram que as esperanças de seus povos estavam em algum tipo de modernização, ou seja, em seguir o exemplo dos mais avançados Estados europeus.371
Embora, ainda segundo Hobsbawn, em décadas recentes tenha havido uma
certa tendência revisionista quanto ao caráter burguês da Revolução de 1789,372
alguns fatos são inegáveis.373 Se tomarmos os acontecimentos de 1789 em diante
pela sua base - tendo presente que podemos indicar o início de qualquer revolução,
enquanto processo, na emergência de suas causas mais do que nos eventos
revolucionários em si mesmos -, podemos divisar, ao longo do século XVIII,
aqueles fatores mesmos que levaram Montesquieu a escrever o Espírito das Leis.
Assim, como vimos já no capítulo anterior, a realeza estava em relativo
desprestígio e em estado continuamente falimentar, buscando a todo transe
impedir sua débâcle financeira, pelo expediente de transferir a maior parte da conta
para a única classe efetivamente produtora de dinheiro, ou seja, a burguesia, num
ambiente econômico que Richelieu e Mazzarin, diante do avanço material dos
países protestantes, já haviam predisposto ao capitalismo. O Estado francês,
complexo, mal entrosado e muitas vezes contraditório, como o qualifica o
371 HOBSBAWN, E. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa: 47. 372 Idem: 22. 373 Independentemente do fato de que os primeiros estudiosos da história da Revolução Francesa, homens que foram seus contemporâneos, a viam exatamente desse modo, como sublinha Hobsbawn. Ibidem.
191
historiador francês André Ribard,374 protegia o balanço feudal do poder - que ainda
repousava sobre a propriedade territorial, o rei sendo o maior proprietário do país -
por sobre os lucros da burguesia, com a monarquia ora parecendo apoiá-la, ora
apenas explorando-a, aparecendo assim como sucessivamente inovadora e
reacionária.375 Socialmente acima da burguesia até então desprovida de qualquer
instrumento efetivo de representação política dos seus interesses, duas outras
classes se mantinham: uma aristocracia coberta pelos privilégios com os quais
emergira do balanço medieval do poder para o Estado unitário dinástico; e o clero,
também assentado em vastos privilégios e ostentando o peso muito considerável
de que dispunha naquele Estado não laico. Ainda consoante Ribard, muito embora a
realeza tenha governado a França entre 1614 e 1789 sem reunir os Estados Gerais,
a majestade da autoridade real dissimilou, na realidade, a autoridade muito mais
eficaz do clero e da nobreza, classes dirigentes que o rei representava e das quais
dependia.376 Por fim, política e materialmente abaixo da monarquia e de todas as
outras classes, estavam as multidões.
Como nota o professor da UNB Zevedei Barbu,377 até mesmo Toqueville,
ainda que preocupado em divisar continuidades por entre as rupturas ocorridas na
passagem do antigo regime ao regime revolucionário, vê no período pré-
revolucionário as disfuncionalidades crescentes dos principais seguimentos
componentes da estrutura social francesa. Segundo Barbu, essas disfuncionalidades
vinham se agravando desde meados do século XVIII, gerando uma crise de
identidade social, para a qual contribuíam, além do peso econômico da burguesia
desacompanhado de peso político que lhe correspondesse, dois outros fatores que,
não obstante suas diferenças, eram partes do mesmo processo de crescente
374 RIBARD, A. História do povo francês: 120. 375 Ibidem. 376 Idem: 117. 377 BARBU, Zevedei. Apresentação: 14-15.
192
desarticulação social.378 O primeiro deles foi o estabelecimento de grande parte da
nobreza proprietária de terras na capital, abandonando assim suas obrigações, sua
raison d’être como proprietários, desse modo mantendo seu status mas não o seu
poder e com isso produzindo uma contradição entre o seu papel tradicional e o
atual.379 O segundo foi a elevação de grande parte do campesinato à condição de
pequenos proprietários de terras, passando assim de uma situação de total
dependência, de ascripti glebae, para a de livres agentes no mercado, dessa
maneira também gerando uma incongruência entre a sua posição material real e a
sua posição social convencional.380
Porém, o velho regime, tão fortemente institucionalizado quanto enraizado
no imaginário das representações do povo francês, ainda buscava, com vinha
fazendo há séculos, manter fechado o tempo histórico. Mas, como nem os homens
nem as instituições por eles criadas são inteiramente racionais - caso contrário,
seria presumivelmente possível dar a estas últimas o estatuto da eternidade -, as
instituições dependem sempre da eficácia dos seus processos criadores de sentidos
e da sanção social das significações que criam. Dessa forma, como assinala
Castoriadis,
nenhuma sociedade é possível (duravelmente) se não fabrica uma adesão mínima do essencial da população a suas instituições e as suas significações imaginárias.381
Erodia-se na França, às vésperas da eclosão revolucionária, a legitimidade
das velhas instituições; era, pois, preciso produzir outras novas, e também
legitimá-las, de modo a assegurar sua re-produção.
Caminhando por essa direção, se entendermos a história e a política em
sentido maquiaveliano como processos de mutação, a criação como o momento
propriamente histórico e a política em particular, no seu sentido mais forte, como
378 Idem: 15-16. 379 Ibidem. 380 Ibidem. 381 CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do pensável: 236.
193
uma atividade de instituição a um só tempo consciente e global da sociedade, esta
surge então como abertura e adensamento simultâneos do tempo histórico - cujos
portões se comprimiam na França sob o peso das contradições que então se
acumulavam. Essa radicalidade estava presente na ação dos revolucionários
franceses, como antes deles estivera na dos politai gregos, ao expressaram e
buscaram, tanto uns como outros, a realização de um projeto de autonomia por
meio do qual, rompendo com a aceitação cega e passiva de tudo o que estava
instituído, tudo colocaram em questão, fossem a velha constituição, as leis ou as
verdades até então aceitas e os valores sobre os quais haviam sido construídas;
enfim, a própria estrutura da sociedade e as representações dominantes do mundo
que procuravam legitimá-la. Em síntese, é possível afirmar que os revolucionários
franceses definiram o conteúdo da acepção moderna do termo revolução: um
projeto político radical que engloba e se apodera de toda a realidade social.
Mas qual era o conteúdo daquele projeto específico? Havia de fato um
projeto específico? Acreditamos poder responder a ambas as perguntas dizendo que
havia, no mínimo, uma enorme demanda de condução autonômica, livre e
desimpedida de seus negócios, de sua produção e das condições de sua produção
(o que inclui as condições de sua re-produção) por parte dos burgueses – os quais,
como já foi dito, eram os efetivos produtores de dinheiro -, implicando a
necessidade de que fossem criadas as condições políticas apropriadas a essas
pretensões. Pode-se discutir acerca do grau de consciência que tinham de si
mesmos como classe e dos antagonismos de classe existentes em relação à
aristocracia e ao clero, isso para não falar em relação ao resto da população que
tinham de empregar como mão-de-obra. Porém, nem este último conjunto de
relações havia ainda atingido um patamar de conflituosidade que lhe desse
relevância política, nem as massas maltrapilhas haviam ainda adquirido de si
mesmas uma noção de conjunto. Mas, quanto à burguesia, é inegável que possuía
tanto o desejo como a consciência da necessidade dessa autonomia. Althusser não
manifesta nenhuma dúvida quanto ao caráter da revolução e o desiderato dos
194
revolucionários, destacando que a Revolução Francesa teve como objetivo e
resultado, além da destruição e renovação dos antigos aparelhos repressivos e
ideológicos do Estado, a transferência do poder do Estado da aristocracia feudal
para a burguesia capitalista-comercial.382 Quanto à possibilidade de entender-se de
outra forma, sublinha Colin Lucas que
(...) temos, nesse caso, que decidir por que, em 1788-1789, grupos que podem ser identificados como não-nobres combatiam grupos que podem ser identificados como nobres, com isso construindo as fundações do sistema político da burguesia do século XIX; e por que eles atacaram e destruíram os privilégios em 1789, com isso destruindo a organização formal da sociedade francesa do século XVIII e preparando a estrutura dentro da qual o desenvolvimento econômico do século XIX poderia florescer.383
b) Os momentos da revolução: os movimentos dentro do movimento384
No que se refere ao projeto específico, em termos de modelo político, cremos ser
mais preciso afirmar que ao longo do período mais denso do processo que ficou
conhecido como Revolução Francesa, existiram. projetos diversos em momentos
distintos, como a monarquia constitucional desenhada pelo Terceiro Estado auto-
transformado em Assembléia Nacional, o malogro dessa fórmula e sua substituição
pela república em 1792, a radicalização desta última sob a forma do jacobinismo
em 1792-94,385 a fase termidoriana, e depois desta a napoleônica, consoante
382 ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: 76. 383 Apud HOBSBAWN, E. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa: 24. 384 Os dados históricos constantes desta seção foram colhidos em SCHILLING, V. A Revolução Francesa de 1789, salvo quando expressamente indicados no texto outros autores. 385 Com a irrupção das multidões no Palácio das Tulherias, a suspensão do rei pelos deputados da Assembléia Nacional, em 10 de agosto de 1789, e a formação da Convenção Nacional, afirmaram-se também como tendência entre os revolucionários, além dos jacobinos, os girondinos, da Gironda, uma área próspera localizada na costa atlântica francesa. Esse grupo representava os interesses comerciais e a visão de mundo do que poderíamos chamar de burguesia ilustrada, a qual havia oscilado entre a monarquia constitucional e a república. A invasão da França e a descoberta de documentos que revelaram o comprometimento do rei com as potências dinásticas européias invasoras, inviabilizou a posição adotada pelos girondinos a favor da conciliação com a monarquia. As expressões gauche – esquerda – e droite – direita -, aplicadas à época da Assembléia Nacional, respectivamente, aos pró-republicanos e aos democratas radicais, de um lado, e aos defensores da monarquia, de outro, passaram a ser utilizadas para referir, nas mesmas posições, jacobinos e girondinos.
195
elenca Hobsbawn -386 considerando esta última ainda como um desdobramento do
processo revolucionário. Exceção feita ao jacobinismo, enquanto movimento
representante dos sans-culottes e de parte considerável da classe média formada
por jornalistas, advogados e pequenos profissionais, e que era composto pelos mais
ardentes democratas e pelos revolucionários mais radicais, as demais fases tinham
em comum o anseio pela criação e estabilização de um ambiente sócio-político
adequado à expansão material burguesa.387 Por mais complexo e menos unilinear
que tenha sido, esse processo trouxe como clímax a longa ascensão da classe
média e substituiu a antiga sociedade por uma nova, como salienta Hobsbawm,388
o qual, destacando o predomínio da interpretação burguesa da Revolução entre os
comentaristas mais próximos da época respectiva, assim observa:
A interpretação burguesa da Revolução Francesa tornou-se a interpretação dominante, não apenas entre liberais franceses mas também entre os liberais de todos os países nos quais o comércio e o liberalismo, ou seja, a sociedade burguesa, não haviam ainda triunfado do modo como os liberais acreditavam que estavam destinados a triunfar em toda parte. Os únicos países onde, até então, a sociedade burguesa já havia triunfado, pensava Thierry em 1817, eram a França, a Inglaterra e a Holanda. A afinidade entre esses países nos quais a sociedade burguesa tornara-se dominante parecia tão estreita que, em 1814, Saint-Simon, o profeta do industrialismo e inventor do termo, imaginava realmente um Parlamento único anglo-francês, o qual seria o núcleo de um conjunto único de instituições pan-européias, em uma monarquia constitucional pan-européia, quando o novo sistema fosse universalmente triunfante.389
386 HOBSBAWN, E. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa: 18-19. 387 A 27 de julho de 1794, ou 9 Termidor do Ano II, pelo novo calendário republicano, a Convenção, no que ficou conhecido como o golpe do 9 Termidor, derrubou e remeteu à guilhotina não apenas Robespierre e seus seguidores, com eles sepultando a fase chamada de Terror, como também afastou as próprias perspectivas maisprofundamente democráticas da Revolução. À fase mais radical da Revolução, a República de 1793-4, seguiu-se o período de calmaria do regime de moderado liberalismo e corrupção do Diretório, encerrado com o famoso golpe do 18 Brumário de 1799 pelo jovem general e ex-radical Napoleão Bonaparte. Idem: 19. 388 Idem: 30. 389 Idem: 33. A sociedade norte-americana poderia ter sido incluída aqui, já que foi em grande parte construída com base na propriedade e na fronteira da apropriação. Por outro lado, em nossa era neoliberal, observa-se o desenvolvimento, em moldes atualizados, das instituições políticas pan-européias já então vislumbradas. Com efeito, se associarmos política à ordem e a organização da sociedade e ao comando e controle respectivos, sua atual univocidade no continente europeu favorece sobremaneira a criação de
196
A burguesia saiu da passividade para assumir as rédeas da história, mas não
podia fazê-lo apenas de per si; como disse Marx no início do 18 Brumário,
os homens fazem sua história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente.390
Essas circunstâncias foram, logo de começo, as que assinalaram a
convocação pelo rei dos Estados Gerais – coisa que não era feita desde 1614 –
numa tentativa extrema de salvar o país do caos que se avizinhava, em decorrência
das combalidas finanças francesas. Os Estados Gerais, criados por Felipe IV, o Belo,
em 1302, dividiam-se em Primeiro, que representava a aristocracia, com toda a sua
carga de privilégios; o Segundo, representante do clero igualmente privilegiado, e o
Terceiro Estado, que representava o resto, ou seja, a burguesia e o povo em geral.
Pois bem: duzentos e noventa e um deputados representavam os cerca de
cento e vinte mil integrantes do clero, duzentos e oitenta e cinco representavam os
aproximadamente trezentos e cinqüenta mil membros da nobreza togada e de
sangue e quinhentos e setenta e oito deputados representavam algo em torno de
vinte e cinco milhões de franceses que não pertenciam às outras duas classes.
Além disso, não obstante dispor a representação do Terceiro Estado de dois
deputados a mais do que a soma das duas outras representações, as votações se
davam por ordens, e não por maioria numérica de deputados, de tal sorte que não
seria de modo algum difícil uma composição entre o clero e a nobreza,391 contra os
interesses do restante. Era preciso alterar profundamente esse balanço de poder
que supervalorizava de forma desproporcional as minorias, era preciso invertê-lo
para adequá-lo às relações materiais reais da sociedade francesa, era preciso dar
representatividade efetiva às suas estruturas econômico-sociais; mas essa inversão
instituições políticas formais comuns aos diversos países. As redes e o próprio Estado-rede de que fala, por exemplo, Manuel Castells, têm como condição de possibilidade precisamente essa univocidade organizacional fundamental, e portanto política, entre as diversas sociedades. CASTELLS, M. Para o Estado-Rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação. 390 MARX, K. O 18 brumário: 21. 391 De resto já irmanados na intenção comum de obter do rei a restauração de outras antigas regalias.
197
da ordem até então existente não poderia ocorrer a partir do seu interior. Para
alterá-la, era preciso rompê-la. A burguesia precisava das multidões.
A partir daí, principiando com o afloramento da irresignação manifestada
pelos representantes do Terceiro Estado em relação à intenção da monarquia de
manter o estado de coisas do antigo regime, até a explosão revolucionária
propriamente dita, a ação segue num crescendo inexorável, o seu movimento se
alarga, se aprofunda e se intensifica: o tempo que nele se acelera e se comprime
faz a ação política descer sobre a história como uma guilhotina,392 produzindo um
corte abrupto e profundo que separa tempos distintos. A miséria dos sans-culottes,
a sua revolta, assim como a sua imaginação, afiam o gume dessa lâmina que abre
a história para nela inserir as massas, numa voragem implacável que arrasta a
própria burguesia no seu turbilhão. O tempo da Revolução é um absoluto – o
absoluto maquiaveliano de uma vontade de potência que se constrói originalmente,
como diz Negri.393 E que, ao se desenvolver como uma experiência de crítica radical
da sociedade, ao submetê-la à reorganização política e social, se configura
materialmente como um poder constituinte irresistível.
Não demoraram a surgir os alertas quanto a essa radicalidade democrática,
disparados pelos contra-revolucionários e pelos moderados, e, como observa Negri,
até mesmo por minorias extremistas e utópicas, como também, é claro, pelos
burgueses.394 Para Negri, se a interpretação da Revolução Francesa do ponto de
vista da luta de classes oferece dificuldades, a Revolução, em seu desenvolvimento,
moldou os novos sujeitos políticos da luta de classes, a burguesia e o proletariado,
de tal maneira que se essa luta específica não está na sua origem, ela é seu
resultado. Sem pretendermos por em discussão a visão negriana, assumimos como
contexto histórico do qual emergiu a burguesia como classe, em face da monarquia
e dos dois primeiros Estados, não a apenas a Revolução de per si, mas o processo
392 A qual será depois um dos instrumentos e símbolos do jacobinismo. 393 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 279. 394 Idem: 280.
198
total da luta pela afirmação de suas possibilidades contra os interesses antigos que
a sufocavam,395 processo esse do qual a Revolução pode ser vista como um ponto
culminante. A parte a burguesia, que se não fez propriamente surgir como classe,
sem dúvida contribuiu sobremaneira para a sua afirmação como tal, a Revolução
certamente teve como um dos seus mais espetaculares efeitos fazer surgir na cena
histórica o proletariado como um novo ator político. Desse ponto em diante,
bifurcou-se a influência do pensamento de Rousseau94
,396 ampla e sutilmente
disseminado: para as massas, a vontade geral assumiu um caráter concreto de
soberania popular, fundamentado não em termos de princípio, mas como prática,
um poder democrático; já para a burguesia, a mesma vontade geral seria um
fundamento abstrato da soberania, situando o povo apenas genericamente como
sujeito do poder. Assim como entre os norte-americanos a influência de
Montesquieu foi decisiva no pensamento dos federalistas, o pensamento de
Rousseau foi fundamental no processo revolucionário francês, mas apropriado de
modo diverso pelas diferentes correntes em confronto. Desse modo, torna-se aqui
ainda mais importante indagar, do que foi em relação a Montesquieu: o que
propunha Rousseau, esse homem do iluminismo francês?
Herança intelectual e o pensamento da Revolução
a) O Iluminismo
De certo modo, pode-se dizer que a Revolução Francesa foi uma das conseqüências
relativamente tardias do fim da Idade Média, no sentido de que as idéias que
permitiram estruturá-la no plano do pensamento foram desdobramentos da
liberação da razão e da expansão do princípio da subjetividade, que estiveram na
origem da Idade Moderna, e de que falamos no início do capítulo III. Essas idéias
estão também inseridas no corpo do assim chamado Iluminismo, o qual, como
395 Montesquieu escreveu O Espírito das Leis no contexto desse mesmo processo, certamente antevendo a possível inevitabilidade dos seus desdobramentos. 396 O qual, como vimos, possuía uma ambigüidade intrínseca que permitia essa bifurcação.
199
tendência intelectual, foi por assim dizer herdeiro da tradição renascentista. Não se
tratava de um fenômeno apenas francês, podendo-se por exemplo elencar, ao lado
de nomes como os de Montesquieu, Voltaire e Diderot - presentes na famosa
Encyclopédie, cujos últimos volumes foram publicados em 1772 - o do próprio
Locke como um dos autores respectivos. Como é cediço, sua proposta central, da
qual lhe advém o nome, é a liberação do potencial da razão humana e da
autonomia subjetiva, para além de quaisquer dogmatismos ou imposições externas.
Essa autonomia do homem no plano do pensamento traz em si um potencial de
autonomização social e mesmo política, e se de um lado pode ser vista como uma
alavanca das concepções políticas liberais (e das versões liberais ou individualistas
da democracia), de outro é um poderoso motor da erradicação das concepções
políticas feudais ou monárquico-absolutistas, uma vez que tende a deslegitimar
qualquer forma de dominação baseada apenas na tradição ou na religião397 e a
admitir mobilidade social entre classes. O Iluminismo criou, no ambiente intelectual
francês, condições propícias à Revolução, nele encontrando os burgueses do final
do século XVIII o arcabouço de idéias que lhes permitiria lançarem-se ao combate
contra as forças que lhes dificultavam a expansão política e econômica,
legitimando-se em nome da liberdade humana.
Como sintetiza Ribard, referindo-se ao significado do pensamento iluminista,
na confluência das suas várias tendências contra o conteúdo feudal do Ancien
Régime:
Mas estas diversas filosofias, traduzindo toda a multiplicidade dos interesses que se aproximam e cedo vão encontrar-se, terminam todas pela proclamação de uma modificação necessária na condição social dos homens. A unanimidade é absoluta na luta contra estas sobrevivências legais de um passado que o progresso transpôs.398
Essa confluência gerou também tensões crescentes entre as estruturas
políticas conservadoras e os pensadores iluministas. Entre estes está Rousseau,
397 Vários autores tiveram suas obras relacionadas no Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica, como os próprios Locke e Kant. 398 RIBARD, A. História do povo francês: 151.
200
autor de imenso relevo político para a Revolução – ao lado de Locke e
principalmente de Montesquieu -, em torno de cujas idéias travou-se, entre as
forças populares ou do trabalho e as da burguesia ou do capital, um confronto pela
apropriação e interpretação respectiva.
b) Rousseau e a sociedade hipostasiada na vontade geral
O homem nasceu livre, e não obstante, está acorrentado em toda a parte. Julga-se senhor dos demais seres sem deixar de ser tão escravo como eles. Como se tem realizado esta mutação? Ignoro-o. Que pode legitimá-la? Creio poder responder a esta questão.399
Assim começa Jean-Jaques Rousseau o Capítulo I do Livro Primeiro do
Contrato Social, e nesse início já é possível vislumbrar a enorme diferença entre o
pensamento mais original da Ilustração francesa e o de seus contemporâneos,
inclusive Montesquieu. Rousseau projetou as contradições e desajustes de sua
própria e complexa personalidade sobre a sociedade em que vivia. Seu pensamento
político começa pelo engrandecimento dos sentimentos morais em face da razão,
fazendo o contraste entre o natural e esta última, como era comum nas apelações
à razão, mas no seu caso para atacá-la. Fez girar ao redor dos sentimentos comuns
todos os valores morais. Os afetos familiares, o gozo e a beleza da maternidade,
satisfações familiares como as recordações, o sentimento religioso universal e,
principalmente, o sentido de que todos estão unidos por uma sorte comum e pela
participação na vida comum, cercada pelas realidades cotidianas. Frente a tudo
isso, a ciência seria apenas fruto de curiosidade ociosa, a filosofia, uma farsa
intelectual e a civilidade da vida social, uma ilusão. O caráter da sociedade, para
Rousseau, seria um amálgama de veneração, fé e intuição moral, passíveis de
serem destruídas, respectivamente, pela inteligência, pela ciência e pela razão.
Tal pensamento poderia tomar caminhos diversos, mas todos as possíveis
direções de seu desenvolvimento teriam em comum a oposição ao liberalismo
tradicional, seja o da via jusnaturalista, seja o da via utilitarista, não havendo lugar
para a afirmação do egoísmo ilustrado ou racional como uma justificação da
399 ROUSSEAU, J. J. O contrato social: princípios de direito político: 25-26.
201
sociedade. Poderia levar a uma noção de igualdade mais radical, mas sem implicar
necessariamente um grau elevado de liberdade individual, toldada pela ética do
sentimento que excluiria qualquer autonomia de juízo privado, que assim assumiria
um caráter burkeano em face da veneração à tradição e ao costume. A moralidade
do homem comum não seria comum a todos os homens, mas sim a do tempo e do
lugar respectivos; e nada garantiria que essa primazia consuetudinária resultasse
ser democrática. Da mesma forma, as virtudes de lealdade e patriotismo, que
Rousseau admirava juntamente com a perspectiva de encontrar a felicidade
individual no bem-estar do grupo, mais uma vez não necessariamente significam
que o regime político correspondente seria democrático.
Rousseau procurou ainda desligar-se do individualismo sistemático atribuído
naquela época a Locke, e que Rousseau corretamente atribuía também a Hobbes. À
comunidade essencialmente utilitarista, desprovida em si mesma de qualquer valor,
onde a cooperação existe apenas e na medida do interesse ditado pelo egoísmo,
ainda que ilustrado, e pelo cálculo das vantagens individuais, e cuja finalidade
principal é a garantia do direito de possuir propriedade e dela gozar, Rousseau
opunha a idéia de que a comunidade seria o principal instrumento de construção
moral da existência humana, sendo ela própria um valor moral intrínseco, e o mais
alto. A sujeição política seria, dessa forma, de caráter fundamentalmente ético, e
apenas secundariamente uma questão de direito e de poder. Rousseau buscou em
Platão e em sua concepção da cidade-estado a inspiração para definir, como
principal categoria moral, o cidadão, e não o homem de per si. Os indivíduos, com
todas as capacidades de que possam dispor, tomados aprioristicamente pelas
escolas de pensamento do egoísmo ilustrado como entes completamente formados,
com seus interesses e desejos de felicidade, a idéia de propriedade, a comunicação,
o comércio e a possibilidade de livremente pactuarem entre si, nada são e nada
têm fora da sociedade. Dentro dela e somente por ela os homens poderiam obter
todas essas coisas, e desenvolver suas faculdades e aptidões. Até mesmo o
egoísmo, o individualismo e a liberdade podem existir dentro da sociedade, ao
202
passo que fora dela não pode haver nenhuma idéia moral. Para Rousseau, como
para Platão antes dele, somente a existência societal faz humanos os homens.
Não obstante, essa mesma inspiração advinda da idealização que fazia da
antiga cidade-estado, precisamente por ser idealizada e porque não se conectava à
escala do Estado nacional, dificultou a articulação consistente do pensamento
rousseauniano com a realidade política do seu tempo. Suas idéias sobre o
sentimento e a reverência que despertava a cidadania na cidade-estado deram
margem à extensão, em sentido emotivo, à cidadania no Estado nacional. Por outro
lado, sua rejeição ao cosmopolitismo implícito no jusnaturalismo, considerado por
ele um pretexto à fuga dos deveres inerentes ao cidadão, também contribuiu nesse
sentido, assim como sua afirmação do patriotismo como virtude suprema e fonte de
todas as demais. Seu pensamento serviu assim de inspiração ao nacionalismo – de
múltiplos usos, podendo tanto significar a democracia e os direitos do homem,
como ocorreria em certas fundamentações da Revolução Francesa, como uma
aliança entre a aristocracia rural e a burguesia urbana ascendente - sem que o
próprio Rousseau fosse de qualquer forma nacionalista.
No seu ataque ao jusnaturalismo, Rousseau negava como sendo uma
quimera a hipótese de uma sociedade comum de toda a espécie humana. Uma
espécie não cria uma sociedade como uma união real apenas em face da
semelhança entre os seres, mas porque surge entre esses seres um vínculo real
que os une como membros de uma comunidade, e por isso esta última é uma
pessoa moral. Para tanto, é preciso que existam coisas em comum, como, por
exemplo, o idioma, os interesses e um sentimento de bem-estar, que não se
traduzem em um conjunto de bens privados, mas que constituem a própria fonte
de tais bens; a espécie humana como um todo não tem essas coisas em comum. É
inteiramente falso que os homens possam encontrar sua união por meio apenas da
razão, se estes se ocuparem, como pretendia a teoria mais aceita, apenas de sua
felicidade individual; esse argumento seria fictício, porque todas as idéias, inclusive
203
as egoístas, são produzidas a partir das comunidades onde vivem os homens,
sendo tão inatas ou naturais como as demais necessidades sociais que os unem
nessas comunidades. Se fosse possível alguma idéia de uma família humana geral,
sua fonte seriam as pequenas comunidades nas quais os homens vivem pelo seu
impulso gregário, e dessa forma uma comunidade internacional da humanidade
seria em verdade o fim, e não o começo, como queriam os adeptos do direito
natural.
Dentro desse escopo geral se insere o ataque feito por Rousseau à
desigualdade promovida pela propriedade privada, ainda que não fosse muito claro
quanto à posição que deveria ter a propriedade dentro da comunidade. Esse
posicionamento, como tudo mais, seria dependente da natureza da sociedade na
qual está inserido o indivíduo, dentro da idéia geral de que todos os direitos - os de
propriedade inclusive - seriam sempre direitos produzidos no interior da
comunidade e não contra ela. A sociedade ideal, para Rousseau, seria um meio-
termo entre a indolência que atribuía ao homem primitivo e o egoísmo civilizado,
algo que impedisse que a miséria de uma classe sustentasse o luxo parasitário de
outra; enfim, que evitasse a exploração econômica dos homens uns pelos outros, e
o que considerava seu resultado natural, o despotismo político.
Como todas essas coisas são, porém, produtos da vida em sociedade, isso
de alguma forma se choca com a idéia de que a sociedade é a única força
moralizadora. Far-se-ia, desse modo, necessário identificar as condições nas quais
uma sociedade se traduz em uma força humanizadora, e em quais circunstâncias
ela se torna pervertida; mas Rousseau não avança seu pensamento até esse ponto.
Dessa forma, sem chegar a produzir conseqüências definidas, suas idéias se abrem
tanto para conclusões radicais, como para conclusões conservadoras.
O mesmo pode ser dito de sua teoria da vontade geral do corpo social, que
seria algo como sua personalidade coletiva, regulando a conduta dos seus membros
e fixando as pautas éticas válidas desse corpo, das quais o governo seria apenas
204
um mero agente. A idéia de contrato social aparece aqui um tanto paradoxalmente,
já que Rousseau rejeitava as teses contratualistas. Esse contrato nada tem a ver
com direitos ou poderes do governo, uma vez que este é tão somente um órgão do
povo, despido de qualquer poder independente, não podendo dessa maneira ser
objeto de contrato. Por outro lado, o suposto ato que deu origem à sociedade não
pode guardar qualquer semelhança a um contrato, já que os direitos e liberdades
necessários aos homens para celebrá-lo não existem senão na medida em que os
homens formam suas comunidades.
Estes últimos não as criam, já que as comunidades surgem dos impulsos
gregários naturais dos homens; e, como não o fazem, tampouco têm direitos contra
elas. As comunidades são associações e não coleções de indivíduos isolados,
possuindo uma personalidade moral e coletiva. E precisamente porque permitem
aos homens desenvolverem e realizarem seus potenciais, os homens ganham
também individualmente mais ao integrá-las do que se permanecessem delas
exilados. Se as comunidades chegam a ser más, e impõem o jugo sobre seus
membros, o fazem assim não por serem comunidades, mas por serem más, da
mesma forma como poderiam, se fossem boas, constituírem espaços de liberdade.
Isso, no entanto, implicaria uma comparação de comunidades entre si para
estabelecer as razões de uma ou de outra tendência, e não apenas, como faz
Rousseau, uma comparação entre comunidade e ausência de comunidade,
absolutamente abstrata e irreal, já que, nos próprios termos rousseaunianos, fora
da sociedade não poderia haver nenhuma escala de valores que permitisse o
julgamento dos níveis de bem-estar humanos.
A vontade geral seria um bem coletivo distinto do interesse privado dos seus
membros, possuindo uma vontade própria, derivada de sua personalidade moral,
com uma vida e um destino próprios. Os direitos que os jusnaturalistas atribuíam à
condição do homem enquanto tal, como a liberdade, a igualdade e a propriedade,
Rousseau faz derivar de sua condição de cidadãos, existindo por convenção e por
205
direito, em contraposição ainda às idéias hobbesianas que alicerçavam a igualdade
numa suposta equivalência substancial de força física entre os homens. Essa
questão de convenção e direito significa também que a alegação de qualquer direito
exige reconhecimento social e somente pode ser validamente defendida em termos
do bem geral da comunidade, não permitindo nenhuma definição a priori, senão
apenas a do corpo social pontual a que se estiver aludindo. A partir do princípio da
supremacia da comunidade, o pensamento rousseauniano se encaminha para uma
idéia de supremacia da vontade geral que guarda uma curiosa semelhança com as
finalidades básicas do Leviatã, como se vê nesta passagem do Contrato Social:
Se o Estado é uma pessoa moral cuja vida consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o da sua própria conservação, deve existir uma força universal compulsiva para mover e dispor cada uma das partes da maneira mais conveniente ao todo. Como a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e este poder é aquele que, dirigido pela vontade geral, leva, como já disse, o nome de soberania.400
Não obstante, Rousseau tenta legitimar esse poder de coação no sentido de
que na sociedade jamais se produz uma coação verdadeira, mas apenas aparente,
já que o desejo individual dessemelhante ao querer da ordem social é
simplesmente um capricho. Em decorrência desse princípio, nas situações concretas
a vontade geral, que tem sempre razão, e que dessa maneira traz em si as pautas
da justiça, teria que estar referenciada às opiniões majoritárias reais, ou seja, a
algum conjunto de cânones de aceitação generalizada. Se levadas às últimas
conseqüências, essas idéias poderiam significar simplesmente que qualquer homem
estaria validamente obrigado a proceder de acordo com a opinião da massa -ou
com o desejo do partido mais forte -,401 sob pena de eliminarem-se os caprichosos
da sociedade. Gerar-se-ia, assim, uma tirania potencial da maioria sobre as
minorias, ou mesmo o despotismo de um único indivíduo que logre se apresentar
400 Idem: 47. 401 Como mais tarde fez Robespierre em relação aos jacobinos, ao identificar a vontade destes com a vontade geral.
206
como intérprete aceito da vontade geral. E é esse justamente um outro problema
que surge: o de indicar quem deveria ser o oráculo dessa vontade geral, dizendo o
que é justo, um dos aspectos não resolvidos em Rousseau. Este pretendia que sua
teoria da vontade geral reduzisse a importância do governo, situado como um mero
órgão dotado de poderes delegados pela soberania, pertencente unicamente ao
povo como corpo. Em sendo assim, tais poderes poderiam ser retirados ou
modificados pelos seus titulares, nutrindo Rousseau a convicção de que o
verdadeiro governo não poderia ser representativo, mas exercido diretamente pelos
titulares da cidadania. Mas considerando a eventual impossibilidade prática de
aplicar essa concepção, o resultado seria que os inevitáveis delegados do povo e
respectivos partidos teriam a possibilidade de verem enormemente reforçados seus
poderes, dentro desse sistema de soberania corporativa da vontade geral, na qual
sublimar-se-iam e alienar-se-iam as vontades individuais.
O contrato social rousseauniano se encontra, afinal, com o contrato
primordial hobbesiano: ambos se resolvem, por assim dizer, numa única cláusula,
mediante a qual cada contratante aliena-se totalmente e a todos os seus direitos,
seja para o Leviatã, seja para a comunidade, mas sempre para um poder único e
transcendente. De qualquer forma, é possível afirmar que, ao contrário do que
pretendiam os postulados individualistas, o pensamento de Rousseau priorizava o
grupo, o coletivo, e as satisfações derivadas da participação. Poderia, como se
disse, embasar diversas utilizações políticas contrastantes, desde a democracia
radical, até usos radicalmente não-democráticos; de qualquer forma, para
Rousseau a democracia, na sua mais límpida acepção, seria um regime
perfeitamente adequado para um povo de deuses, mas não seria realizável entre
seres humanos.
Por outro lado, no que se refere às teses propriamente contratualistas,
podemos também dizer que nenhuma das tensões e antinomias criadas pela
imersão na sociedade civil e no Estado moderno são resolúveis no âmbito do
207
pressuposto contratual subjacente à essa passagem: o núcleo das condições de
sociabilidade assim geradas assentam em interações autônomas de caráter
contratual entre sujeitos formalmente proclamados como livres e iguais, mas essa
proclamação exclui ao mesmo tempo suas interações coletivas e a dimensão fática
dos homens concretos. Essa dupla exclusão adensou ainda mais a fronteira liberal
entre a esfera pública e a vida cotidiana. Como os interesses passíveis de
expressão na sociedade civil são tão somente aqueles que podem ser objeto de
contrato, a vida privada, os interesses pessoais de que é feita a intimidade e o
espaço doméstico,402 estando situados fora do contrato, estão igualmente fora da
comunidade. Essa dimensão comunal de formação da sociabilidade é trazida de
volta ao palco político por Rousseau, mas sua hipóstase na abstração da vontade
geral, embora fornecendo uma base diferente de legitimação do poder em relação
às teses contratualistas clássicas, pode também ocultar a dimensão factual dos
indivíduos concretos e das interações concretas entre os indivíduos tanto quanto
estas últimas.
Podemos ainda dizer, com Boaventura de Souza Santos, que, sem pretender
afastar as profundas diferenças entre Hobbes, Locke e Rousseau, há três aspectos
fundamentais e interconectados que são comuns aos três. O primeiro é a
radicalidade e a irreversibilidade da opção de abandonar o estado de natureza para
constituir a sociedade civil e o Estado, assim entendido na acepção que este veio
tomando após o fim do medievo, ou seja, o Estado moderno. O segundo aspecto é
que essa modernidade é problemática e plena de antinomias – entre coerção e
consentimento, igualdade e liberdade, soberano e cidadão, direito natural e direito
civil;403 e, ligado a este, o terceiro aspecto prende-se a que todas essas
contradições devem ser resolvidas no seu próprio interior e com os seus próprios
402 SANTOS, B. de S. Reiventar a democracia: entre o pré-contratualismo e pós-contratualismo. 403 Idem: 34.
208
recursos, sem apelos a argumentos pré-modernos ou que de alguma forma se
coloquem contra a modernidade em si.
c) A luta pela produção de sentidos
Assim, ora foi dado à vontade geral caráter transcendente, até mesmo metafísico,
como intentava a burguesia, aproveitando-a como elemento de legitimação de suas
instituições políticas, mas sem compromissos com um exercício concreto e direto da
vontade popular - um instrumento que poderíamos definir como ideológico,
portanto - ora vestiu-se a mesma vontade geral com a materialidade constituinte
das potências populares, como pretendiam os democratas radicais.
A princípio, o exercício constituinte das massas assumiu concretude histórica
com a Declaração de Direitos de 1793 reconhecendo o direito à insurreição, nos
termos em que pouco mais adiante veremos, um direito público subjetivo
decorrente da inalienabilidade da soberania popular. Mas a interpretação do sentido
real dessa soberania de modo algum se pacificou: seguiu-se o conflito pelo seu
enunciado, que opôs girondinos e montanheses de um lado e sans-culottes de
outro. Os primeiros, integrantes daquilo que hoje chamaríamos de classe política,
sustentavam o caráter puramente metafísico da expressão da soberania do povo
em sua vontade geral, a qual exigiria sua manifestação através de um soberano
uno e indivisível; e os segundos pretendiam uma soberania exercida direta e
materialmente pelo povo, a partir das assembléias de suas seções. Girondinos e
montanheses, a droite, ressuscitaram a distinção escolástica entre título e exercício
da soberania, negada pelos sans-culottes. Estes, em seu movimento expansional,
por um algum tempo pelo menos, por um breve instante na história, redefiniram o
espaço político de representação como espaço político de exercício direto do seu
poder, amalgamando e tornando indistintos os espaços social e político e fazendo
ambos convergirem num mesmo processo de reorganização da sociedade. A luta,
no entanto, acirrava-se, e nesse processo em que as massas se descobriam e se
209
definiam como sujeitos, constituindo o seu próprio poder constituinte, ocorria
também, consoante Negri, que:
Como exercício de poder, aos poucos ele descobre e enfrenta o projeto do adversário: o projeto de codificar em formas abstratas a superação de uma ordem constitucional inadequada à sustentação do desenvolvimento da burguesia, o projeto de destruir o Ancien Régime e definir constitucionalmente a organização social do trabalho.404
A luta contra ou pela desigualdade social se reflete na luta contra ou pela
definição da política como representação e transcendência. Criando através desses
dois fatores a aparente separação entre os espaços político e social, sobrepondo o
primeiro ao segundo, subordinando este àquele e transpondo a vontade geral para
a sua dimensão abstrata, a segunda tese implica no que Marx observa sobre o
Estado político, o qual passa a conduzir-se
em relação à sociedade civil de modo tão espiritualista como o céu em relação à terra.405
Nesse Estado, o homem passa a ser considerado como um ser genérico,
despe-se de sua materialidade de carne, osso e sangue, e se torna
o membro imaginário de uma soberania imaginária, acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de uma generalidade irreal.406
No processo de abstração da vontade geral, realiza-se a construção da
política como abstração, que Negri já vislumbra em Rousseau como um
deslocamento transcendental da vontade de singularidades cada vez mais isoladas.407
Ao invés da organização da sociedade pelo trabalho, através da potência
constituinte das massas, o resultado é a organização social do trabalho pela
alienação constitucional das massas:
para o homem, como bourgeois, a vida política é só aparência ou exceção momentânea (...) O bourgeois, (...) só permanece na vida política por um sofisma [que é] a sofística do próprio Estado
404 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 283. 405 MARX, K. O 18 brumário: 23. 406 Ibidem. 407 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 289.
210
político [no qual] a diferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o comerciante e o cidadão, entre o latifundiário e o cidadão, entre o indivíduo vivendo e o cidadão.408
O apoio das multidões era essencial à luta contra a aristocracia, contra o
Antigo Regime e a contra-revolução; mas a burguesia, como nota Hobsbawn,409 era
uma classe média ou intermediária também no sentido de que era
simultaneamente oposta, dos pontos de vista social e político, à aristocracia que
estava acima dela e ao povo que lhe estava abaixo. Nessa ambígua posição dos
burgueses entre a necessidade das massas e o temor de uma revolução social cuja
profundidade avançasse para além do que pretendiam e necessitavam – o que, por
um breve lapso de tempo, entre 1793 e 1794, pareceu de fato estar ocorrendo – os
construtores da nova ordem, ansiosos por se protegerem contra os velhos perigos e
também contra os novos, aprenderam, como nota Hobsbawm,
a se reconhecer como uma classe média, e a reconhecer a Revolução como uma luta de classes tanto contra a aristocracia quanto contra os pobres.410
A questão posta para a burguesia, então, era organizar o trabalho a seu
próprio favor, o que significava codificá-lo e restringir ou mesmo eliminar suas
implicações democráticas. Dada a influência das idéias de Rousseau na Revolução,
isso implicava interditar às massas o uso do pensamento desse autor, como
destaca Negri,411 o que somente poderia se tornar possível pela transposição da
vontade geral para um corpo soberano que representasse a sociedade em abstrato,
sem subsumir-se a ela em concreto. Surge assim a Nação, ou a República, como o
elemento central da nova ordem, sua vontade representando essa vontade geral
imaterial, indefinida e despersonalizada, e não a democracia.
d) Sieyès e a vontade geral representativa
408 MARX, K. O 18 brumário: 24 (grifos originais) 409 HOBSBAWM, E. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa. 410 Idem: 39. 411 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 292.
211
Nessa linha da disputa pela produção de sentidos se situa Emmanuel Joseph
Sieyès. Tendo em vista o estado de coisas vigente na França pré-revolucionária,
pode parecer a princípio um tanto estranho que o vigário-geral da diocese de
Chartres figure nas hostes do Terceiro Estado; porém, ele não era o único, dentre
os que formulavam as propostas políticas deste, que era proveniente de certos
seguimentos menos favorecidos das ordens privilegiadas (ou que, por outros
motivos, viam-se pessoalmente desfavorecidos, como ocorria por exemplo com o
Marquês de Mirabeau) – a recíproca, de modo coerente com o quadro político
francês de então, não sendo verdadeira, já que nos Primeiro e Segundo Estados
ninguém havia que não pertencesse à nobreza ou ao clero. Haviam deputados do
Terceiro Estado originários do clero paroquial e do que Bastos chama de baixa
nobreza, notando ainda o mesmo autor que não era incomum ver-se entre estes
últimos os seus articuladores intelectuais, os quais desempenharam assim o papel
de suprir lacunas burguesas nesse aspecto.412 O próprio Sieyés atribui o que
qualifica como lentidão do Terceiro Estado ao
hábito do silêncio e o medo do oprimido, o que dá mais uma prova da realidade da opressão.413
Enveredando por esse caminho, o abade Sieyés principia sua obra central,
Qu’est-ce que lê Tiers État, editada originalmente em fevereiro de 1789, situando a
posição do Terceiro Estado naquele instante. Este último é então tudo, mas na
ordem política, até aquele momento, não havia sido nada; seu pedido, portanto,
era para que passasse a ser alguma coisa.414 A palavra tudo, aqui, significa uma
totalidade que se define como uma nação completa. Esta, por sua vez, é assim
definida por englobar, no seu interior, a organização e o peso da execução de todo
o trabalho socialmente útil. Assim, diz Sieyès,
O que é o Terceiro Estado? Tudo, mas um tudo entravado e oprimido. O que seria ele sem as ordens de privilégios? Tudo, mas
412 SIEYÈS, E. J. A constituinte burguesa (Q’est-ce que le Tiers État?): xxix. 413 Idem: 32. 414 Idem: ii.
212
um tudo livre e florescente. Nada pode funcionar sem ele, as coisas iriam infinitamente melhor sem os outros.415
Isso significa definir a idéia de nação como um núcleo de força material
atual à qual necessariamente corresponde uma potência política que aspira
transformar-se em ato, e assentar essa definição em critérios exclusivamente, ou
pelo menos predominantemente, econômicos. Falando em outros termos, a nação
em Sieyès é uma estrutura produtiva que não deve ser regulada por princípios que
lhe sejam estranhos; a essa estrutura deve, pois, corresponder uma superestrutura
que lhe seja adequada, que a regule a partir de si mesma. Sendo essa uma
estrutura de caráter burguês, alicerçada portanto no comércio, na produção para o
comércio e no capital, a regulação adequada seria pois a que melhor favorecesse a
propriedade, a livre circulação da propriedade e a acumulação do capital. José
Ribas Vieira,416 prefaciando a edição brasileira de 2001 da principal obra de Sieyès,
afirma que este último procurou atualizar para a realidade francesa as concepções
liberais de Adam Smith.417 Vieira cita a esse respeito o pensamento de Roberto
Zapperi, para o qual
Sieyès tinha interesse somente de direcionar à Teoria de Smith na medida em que esta pudesse harmonizar com o ensinamento de Condillac418 ao qual ele sempre esteve vinculado. Não é por acaso que Sieyès ao introduzir a brochura sobre o Terceiro Estado com base na análise da sociedade francesa, ele a apresentou como um conjunto laborioso, unido e compacto, do qual o único entrave era a contradição entre o trabalho e as funções públicas.419
Sieyès não articula suas propostas como um processo de luta de classes,
mas esta lhes é inerente, na medida em que a idéia de nação que desenvolve como
415 Idem: 4. 416 Professor-Adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da PUC/RJ. 417 Idem: xvi. 418 Étienne Bonnot de Condillac (1715-80), filósofo empirista francês, muito influenciado por Locke e por sua epistemologia baseada nas relações entre os juízos e as sensações, da qual deriva uma construção do conhecimento baseada inteiramente em reflexões feitas sobre sensações privadas, interiores, e também na produção de linguagens específicas e adequadas aos respectivos objetos. HAMLYN, D. W. Uma história da filosofia ocidental: s/ p. 419 SIEYÈS, E. J. A constituinte burguesa (Q’est-ce que le Tiers État?): xvi-xvii.
213
totalidade integradora e base de legitimação do poder político é alicerçada na
divisão do trabalho e no conteúdo econômico correspondente. Como nota Negri,
esse conteúdo econômico conforma todos os conceitos políticos desenvolvidos por
Sieyès: a nação, a representação, o poder constituinte e o poder constituído.420
Disso decorre a necessidade da abolição de todas as antigas formas de dominação,
e, como a existência de idéias revolucionárias em qualquer época pressupõe já a
existência de uma classe revolucionária, como aponta Marx em A ideologia
alemã,421 isso exige da classe aspirante ao domínio que conquiste antes de tudo
o poder político para conseguir apresentar o seu interesse próprio como sendo o interesse universal.422
Se o Terceiro Estado, mais do que apenas representar, é apresentado como
sendo em si mesmo a própria nação, a monopolização das funções públicas pela
aristocracia configura-se como uma usurpação
que seja dado um pouco de poder a quem é tudo do ponto de vista social. Que seja dada representação ao trabalho.423.
Cabe, portanto, alterar esse contexto: deve-se transformar a capacidade
política potencial em força política atual, é mister tranformar a potência constituinte
do Terceiro Estado em ação constituinte, impende fazer do Terceiro Estado - ao
qual já havia sido assimilada a nação - o próprio Estado. Cumpre, enfim, fazer a
Revolução.
Em 17 de junho de 1789, os representantes do Terceiro Estado, em face dos
conflitos insolúveis com as demais ordens, declararam sua legitimidade para se
auto-instituirem em Assembléia Nacional, com ou sem a participação dos
representantes dos Primeiro e Segundo Estados; a 4 de agosto, essa Assembléia
decretou a igualdade fiscal, abolindo a um só tempo todos os direitos tributários de
natureza feudal; e a 26 de agosto promulgou a Declaração dos Direitos do Homem
420 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 306. 421 MARX, K. A ideologia alemã: 57. 422 Idem: 40. 423 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 308.
214
e do Cidadão (a primeira de uma série, das quais falaremos no próximo item).
Diante da negativa de Luís XVI em sancionar tais posicionamentos, prevalece, mais
uma vez, como assinala Vieira,
a tese de Sieyès de que à Nação cabe uma autoridade anterior de estabelecer a ordem jurídica. Em conseqüência, tal proposição traduz-se na idéia de um Poder Constituinte originário por parte da nação.424
a nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. A nação se forma unicamente pelo direito natural. O governo, ao contrário, só se regula pelo direito positivo.425
Aqui irão se somar três distinções fundamentais: a nação como
representação ideológica integradora em face da sociedade real, em relação à qual
sublima e em conseqüência tende a suprimir os conflitos reais no seu interior; do
corpo de representantes em face dos representados; e do poder constituinte em
face do poder comitente.
Com a primeira distinção, cria-se uma ficção igualitária que abrange em
plano idêntico dentro de um mesmo corpo os detentores do capital e os
trabalhadores. É interessante notar aqui que Sieyès busca uma fundamentação
para a sociedade política baseada em pressupostos articulados de forma lógica,
mas situados em momentos anteriores hipotéticos e não verificáveis, dos quais
busca haurir a legitimação de suas propostas. Ao assim fazer, Sieyès aproxima-se
do racionalismo teórico de Hobbes e Locke, e se distancia da pretensão científica de
verificabilidade empírica exibida por Montesquieu. Por outro lado, observa-se nessa
fundamentação, a qual envolve uma explicação da formação da sociedade política
em três épocas, uma combinação de aspectos contratualistas com algo da vontade
geral rousseauniana, os primeiros resultando na formação da segunda. Na primeira
época,
concebe-se um número mais ou menos considerável de indivíduos isolados que querem reunir-se.426
424 SIEYÈS, E. J. A constituinte burguesa (Q’est-ce que le Tiers État?): xxi. 425 Idem: 48-49. 426 Idem: 46.
215
Isso já é para o nosso autor o suficiente para formar uma nação, com todos
os direitos correspondentes, caracterizando-se esta primeira época pelo jogo das
vontades individuais, cujo resultado é a associação, sendo a origem do poder.427 Na
segunda época começa a ação da vontade comum, tendo em vista que os
associados, buscando dar consistência à sua união, acordam entre si sobre os bens
públicos e os meios de obtê-los;428 o poder passa a pertencer ao público, em cuja
origem estão as vontades individuais, mas cujo poder, se considerado
separadamente, é nulo. O poder existe apenas no conjunto. Aqui já se perfaz a
junção do contrato original com a vontade geral: faz falta, diz Sieyès,
à comunidade uma vontade comum; sem a unidade de vontade ela não chegaria ser um todo capaz de querer e agir. Mas é certo também que este todo não tem nenhum direito que não pertença à vontade comum.429.
A terceira época é já a das grandes unidades político-territoriais, e aqui a
vontade comum passa a ser vontade nacional.
Aqui emerge a segunda distinção, pela qual a soberania uti universi
postulada por Rousseau, e no caminho da qual parecia se encaminhar Sieyès, por
meio de um artifício de prestidigitação política cede lugar a uma representação uti
singuli, esboçando, diante do perigo das classes populares conquistarem a
igualdade eleitoral, a distinção entre cidadania ativa e passiva, como sublinha
Vieira,430 pela qual mesmo aqueles enquadrados no nível da cidadania passiva,
estariam representados pelos cidadãos ativos porque estes corporificam uma idéia
de totalidade através da nação,431 numa abstração formal que encobre as
diferenciações concretas entre os representados. Nesse sentido, Sieyès, como
Burke, fornece uma fundamentação da mediação política através da representação
por mandatos não imperativos (além de outros critérios restritivos na formação do
427 Ibidem. 428 Ibidem. 429 Idem: 46-47. 430 Idem: xxi. 431 Ibidem.
216
corpo eleitoral e da representação), num governo exercido por procuração. De
modo coerente com essa concepção, referindo-se ao que chama de classes
disponíveis do Terceiro Estado, Sieyès afirma que estas são
aquelas que, pelos seus modos e bem-estar, permitem que seus homens recebam uma educação liberal, cultivem sua razão e, enfim, podem interessar-se pelos assuntos públicos. Essas classes têm o mesmo interesse que o resto do povo.432
Da mesma forma, ao criticar as propostas de imitação da constituição
inglesa e dentro dela a tripartição do poder legislativo, porque,
se os senhores e o rei não são representantes da nação, também não são nada no poder legislativo, pois somente a nação pode querer e, conseqüentemente, criar leis para si mesma.433
Não obstante, o corpo de representantes expressa apenas o que seria uma
vontade comum representativa, sujeita ainda à uma vontade nacional que seria
anterior à toda legalidade e origem desta. Sieyès limita o princípio da
representação, sem, contudo, limitar a sua ação, e, nessa linha, autoriza ainda a
terceira distinção de que falamos, entre o poder comitente e o poder constituinte;
este último, exercendo a vontade comum em comissão, seria, então,
(...) Um corpo de representantes extraordinários supre a assembléia desta nação. Ele não tem, sem dúvida, necessidade de se encarregar da plenitude da vontade nacional; basta-lhe um poder especial, e em casos raros; mas ele substitui a nação independente de toda espécie de formas constitucionais.434
O poder constituinte é a expressão imediata da vontade da nação, e como
tal é a fonte produtora de leis e governo, ativando pela constituição os corpos
respectivos, e simultaneamente contendo sua ação a serviço da vontade nacional:
Sente-se, assim, a dupla necessidade de se submeter o governo a formas certas – interiores ou exteriores – que garantam sua aptidão para alcançar os seus próprios fins e sua impotência para separar-se deles.435
432 Idem: 20. 433 Idem: 41. 434 Idem: 53. 435 Idem: 48.
217
Como afirma R. Zapperi, mencionado agora por Negri,436 a combinação de
representação e governo feita por Sieyès permite alicerçar o poder de uma
assembléia de notáveis, à qual, excluindo a participação das massas, seria atribuída
a soberania absoluta que defluia da vontade geral rousseauniana. Como assinala
Negri,
O enigma rousseauniano é hipostasiado, pressuposto como tal: ou seja, é preventivamente liberado da tentação de converter a igualdade política em igualdade social e exaltado nesta sua opacidade teórica.437
Sieyés não tem como preocupação principal discutir aprofundadamente a
constituição mista ou outras formas particulares de governo, ressalvado o princípio
geral representativo, pelo qual o antigo caráter de simplicidade e imediatismo das
relações políticas, sobre os quais foi originalmente construída a noção de
democracia, é substituído pelo concurso da mediação de um poder constituído a
partir da ação de um poder constituinte que o antecede e é dele distinto, sendo por
sua vez também distinto do poder comitente que o origina e legitima – uma dupla
mediação, portanto. Sieyés é assim muito mais um teórico do poder constituinte, e
ao derivá-lo direta e imediatamente da idéia de nação e ao construir esta última
sobre o Terceiro Estado, nos permite dizer que, no limite, articula teoricamente o
monopólio do poder constituinte pelo Terceiro Estado – ou seja, pela burguesia.
Sieyés, como diz Negri, faz do trabalho o centro do debate e da construção
constitucional,438 de tal modo que, eliminados os privilégios das ordens, resta a luta
em torno da imposição de mediações entre o social e o político – ponto no qual o
pensamento de Sieyés se identifica com o próprio caráter arquetípico da Revolução
Francesa -, ou, dizendo em outros termos, para fazer a constituição do trabalho ou
pelo trabalho.
436 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 313. 437 Idem: 308. 438 Idem: 316.
218
Nesse processo, leva Sieyés a vontade geral à resultante de toda a
concepção moderna de representação, na qual a soberania democrática e a idéia de
poder constituinte são usadas para legitimar as formas de governo limitado e
dividido. A decorrência direta disso é que se o espaço político se define como a
organização temporalmente determinada de uma determinada organização dos
modos de produção – e é assim que esse espaço surge do pensamento de Sieyès -,
a tarefa da imaginação constitucional é articular constitucionalmente as estruturas
sócio-econômicas vigentes sem agredi-las -ou seja, reproduzir constitucionalmente
a hegemonia existente dentro da divisão social do trabalho. Em conseqüência, o
poder constituinte tem por missão estabelecer, antes de mais nada, limites para si
mesmo. A luta, no interior do processo revolucionário, contra ou a favor desses
limites pode ser observada na seqüência dos instrumentos pré-condicionantes que
foram as Declarações de Direitos, objeto do nosso próximo item.
A pré-formação dos arranjos constitucionais revolucionários: as
Declarações de Direitos e a democracia
Na Revolução Francesa, mais do que na Revolução Americana, ocupa lugar de
destaque a Declaração de Direitos – ou antes, no caso francês, as Declarações,
sendo possível perceber as alternativas do movimento nas que se sucederam, em
1789, 1793 e 1795. Como no caso norte-americano, proclamam um conjunto de
regras pré-constitucionais, já que precedem e conformam estas últimas,
organizando hierarquicamente o conjunto dos principais compromissos políticos e
sociais. Porém, como dissemos, na França foram várias as Declarações, o conteúdo
de cada uma espelhando o conteúdo de cada diferente fase da Revolução. Tendo
em vista esse significado fundamental e pré-formativo, no caso francês tão ou mais
eloqüente que as próprias constituições em si, e o reflexo direto das alternativas
revolucionárias nas diversas Declarações que se sucederam, procuraremos, através
das nuances entre elas, destacar as nuances relativas à democracia ao longo das
fases que antecederam o período napoleônico.
219
Nessas variações, é possível percorrer o trajeto dos princípios da liberdade,
segurança e propriedade, como também o esvaziamento da vontade geral, reduzida
à condição de suporte de direitos individuais, verificando-se uma
sobredeterminação do conteúdo burguês dessa vontade geral em relação ao poder
constituinte, e até mesmo em relação a definição do sujeito do poder constituinte.
A primeira Declaração, de 1789, consigna em seu art. II que:
A finalidade de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
A segunda Declaração, de 1793, mantinha a propriedade nesse corpo de
direitos, mas introduzia entre eles, e em primeiro lugar, a igualdade. A resistência à
opressão passou a ter um tratamento e um sentido diferente, que veremos mais
adiante. Seu art. III assim reza:
Estes direitos são a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade.
Nesse aspecto, a terceira Declaração, de 1795, não é muito diferente:
Os Direitos do Homem em sociedade são a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade.
Quanto à identificação da vontade geral, encontramos uma variação de
matiz, começando pela Declaração de 1789, art. VI:
A lei é a expressão da vontade geral; todos os cidadãos têm o direito de participar pessoalmente, ou por intermédio de seus representantes, na sua formulação; ela deve ser a mesma para todos, quer ao proteger, quer ao punir. Por serem todos os cidadãos iguais aos seus olhos, todos têm igualmente acesso a todas as honrarias, funções e cargos públicos, segundo sua aptidão e sem qualquer distinção que não seja a de suas virtudes e de seus talentos.
Evidentemente, a dramática necessidade de escandir quaisquer privilégios
de natureza nobiliárquica explica a ênfase particular desse dispositivo, redigido
naqueles primeiros momentos revolucionários, nos quais definia-se a expressão dos
princípios formativos da nova ordem. Esses princípios do art. VI da Declaração de
1789 passam a ser sintetizados da seguinte forma, no art. IV da Declaração de
1793:
220
A lei é a expressão livre e solene da vontade geral; ela é a mesma para todos, quer ao proteger, quer ao punir. Ela somente pode prescrever o que é justo e útil à sociedade; ela somente pode proibir o que lhe é nocivo.
E, na Declaração de 1795, a vontade geral é pura e simplesmente
identificada com a lei, como se vê no seu art. VI:
A lei á a vontade geral, expressa pela maioria dos cidadãos ou de seus representantes.
A articulação da definição de igualdade, de sua materialidade inicial até a
não necessária coincidência entre igualação política e desigualação social, segue um
caminho em direção à abstração da primeira em relação à segunda, entre homens
políticos e homens concretos, vivendo sua vida social concreta. A Declaração de
1789 estabelece, ou, antes proclama, em seu art. inaugural:
Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais somente podem ser fundadas na utilidade comum.
A Declaração de 1793 não se restringe a definir igualdade em termos gerais,
operacionalizando-a não apenas política, mas também socialmente, ultrapassando
os limites da ambigüidade rousseauniana, dentro dos quais se havia mantido a de
1789. Assim é tratada a questão em 1793:
Art. III – Todos os homens são iguais por natureza e diante da lei. Art. V – Todos os cidadãos têm igual acesso aos cargos públicos. Os povos livres não reconhecem, em suas escolhas, nenhum critério de precedência [entre seus cidadãos] exceto as virtudes e os talentos [individuais]. Art. XVIII – Todo homem pode compromissar seus serviços, seu tempo; mas ele não se pode vender ou ser vendido; sua pessoa não é uma propriedade alienável. A lei não reconhece qualquer servidão; entre o homem que trabalha e aquele que o emprega, somente pode existir um compromisso de dedicação e de compensação. Art. XXI – A assistência social é uma dívida sagrada. A sociedade deve aos cidadãos desafortunados a garantia de sua subsistência, seja oferecendo-lhes trabalho, seja garantindo meios de sobrevivência aos que não têm como trabalhar. Art. XXII – A instrução é necessidade de todos. A sociedade deve favorecer o progresso da razão pública com todos os meios ao seu dispor e deve colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos. Art. XXIII – A segurança social consiste na ação de todos para garantir a cada um o desfrute e a preservação de seus direitos; esta garantia repousa na soberania nacional. Art. XXIX – Cada cidadão tem o mesmo direito de participar na formulação das leis e na nomeação de seus mandatários ou de seus agentes. Art. XXX – As funções públicas são essencialmente temporárias; elas não podem ser
221
consideradas como distinções nem como recompensas, mas, antes, como deveres.
A Declaração de 1793 reconhecia a indistinção dos espaços da política e da
sociedade, afirmando o poder constituinte como potência social e a igualdade como
um caminho a ser percorrido pela transformação dessa potência em ato; a
sociedade se transforma ela própria num direito que completa e aperfeiçoa o direito
de liberdade.439 A opressão de uma única pessoa torna-se negação dessa liberdade
concebida ao mesmo tempo como um bem e como um produto da ação coletiva:
Art. XXXIV – O corpo social sofre opressão quando mesmo um de seus membros é oprimido. Cada membro sobre opressão quando o corpo social é oprimido.
Já na Declaração de 1795, o conteúdo e a força constituinte do princípio da
igualdade são alterados, limitando o projeto de 1793 e redirecionando o âmbito
abstrato da vontade geral para a instituição da propriedade e direitos correlatos,
assumindo ainda o direito de propriedade um viés lockeano. Há assim um
deslocamento do sentido do concurso de todos para assegurar os direitos de cada
um, previsto no art. IV da Declaração de 1795, ainda que prosseguisse garantindo
a inalienabilidade da pessoa em seu art. XV – embora a própria posição, no início
da Declaração de 1795, dos dispositivos que negam os privilégios nobiliárquicos e
que afirmam o instituto da propriedade, lhe traia a ordem real de prioridades:
Art. III – A igualdade consiste em que a lei é a mesma para todos, quer aoproteger, quer ao punir. A igualdade não admite nenhuma distinção de nascença,nenhuma hereditariedade de poderes.Art. V – A propriedade é o direito de gozar e dispor de seus bens, de suasrendas, do fruto de seu trabalho e de sua operosidade.
No que toca à expressão da soberania como poder constituinte, mais uma
vez é visível, na sucessão das Declarações, tanto a influência de Rousseau como a
disputa em torno da apropriação e legitimação de sentidos determinados da
vontade geral, começando na de 1789 com uma certa transcendentalização a partir
da noção abstrata de nação, como se vê em seu art. III:
439 Idem: 296.
222
O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação. Nenhuma instituição ou indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.
A Declaração subseqüente, de 1793, reafirma o princípio sem, porém,
derivá-lo da nação propriamente dita, mas do seu conteúdo humano – ainda que
este último esteja inevitavelmente ligado àquela – ao mesmo tempo em que
possibilita sua simultânea operacionalização e sua limitação na própria
operacionalidade que institui:440
Art. XXV – A soberania reside no povo; ela é una e indivisível, imprescritível e inalienável. Art. XXVI – Nenhuma parte do povo pode exercer o poder do povo inteiro; mas cada seção da assembléia soberana deve gozar do direito de exprimir a sua vontade com integral liberdade.
A terceira Declaração, de 1795, consigna a reação, caminhando na direção
da contenção institucional da força constituinte das massas. Primeiramente, o faz
através de um sutil, mas decisivo afastamento das possibilidades de exercício
popular direto e concreto do poder, obtido por meio de uma dupla mediação:
estruturando esse exercício dentro do mecanismo político da transformação,
delimitação e fixação do ordenamento da sociedade na forma legal, e ao mesmo
tempo possibilitando a mediatização da participação popular na formação desse
ordenamento. O cidadão é potencialmente distanciado da participação política, no
momento em que esta se torna um direito, mera faculdade nivelada enquanto tal a
qualquer das demais.441 O passo subseqüente é a contenção das possibilidades, o
qual, à semelhança da reação constitucional norte-americana de 1787 – ainda que
sem a profundidade da articulação entre os princípios da separação de poderes e da
constituição mista dos federalistas -, muito deve ao constitucionalismo inglês e a
Montesquieu, criando as condições políticas adequadas à reconstrução social da
440 E preserva as características de unidade e indivisibilidade que em Hobbes, contribuindo para fundamentar o aspecto transcendental do poder político do Estado, haviam participado da formação do seu Leviatã. 441 Como estas, pode ou não ser exercida, sendo-o tão menos quanto mais profunda for a percepção de afastamento que os cidadãos tenham em relação à dimensão política da vida social, assim como em relação às suas possibilidades de intervenção eficaz nas condições da sua própria existência. A disseminação dessa dupla impressão viria, com o passar do tempo, a se tornar um importante fator de alienação política nas sociedades liberais.
223
desigualdade, como observa Negri.442 Assim, dos homens do Termidor pode-se
dizer que, embora obrigados a atravessar o novo, para responder a ele refugiam-se
no antigo,443 legitimado e dissimulado ao ser combinado com outras inovações
políticas menos perigosas trazidas pela Revolução. A disputa em torno da produção
de sentidos transmuda agora o locus da vontade geral daquele no qual o havia
situado, como vimos, a Declaração de 1793, ou seja, o povo, para a totalidade dos
cidadãos, o que, evidentemente, não é a mesma coisa. Ao admitir implicitamente a
divisão dos cidadãos, admite com isso que há outras classes que não estariam
compreendidas na idéia que se tinha de povo; essa certamente teria sido a
intenção dos homens de 1795, os quais vinham da reação contra o radicalismo
democrático de 1793. As multidões ou os burgueses: a vontade geral, que poderia
não ser geral, posto que não seria idêntica para uns e outros, é colocada à distância
como produto abstratamente unificado de uma totalidade que só pode ser total por
representação, já que é composta por parcelas materialmente distintas e
intrinsecamente conflituosas. Assim reza a Declaração de 1795:
Art. XVII – A soberania reside, essencialmente, na totalidade dos cidadãos. Art. XVIII – Nenhum indivíduo, nenhum conjunto parcial de cidadãos podem atribuir-se a soberania. Art. XIX – A ninguém é dado exercer qualquer autoridade ou ocupar qualquer função pública sem que haja uma delegação legal. Art. XX – Todo cidadão possui igual direito de participar, imediata ou mediatamente, na formulação da lei, na nomeação dos representantes do povo e dos funcionários públicos. Art. XXI – As funções públicas não podem tornar-se em propriedade daqueles que as exercem. Art. XXII – A segurança social não pode existir se não houver a divisão dos poderes, se seus limites não estiverem estabelecidos e se a responsabilidade dos funcionários públicos não estiver garantida.
Ainda que a participação na administração pública ou no seu controle possa
assinalar mais uma articulação entre a igualdade e a manutenção da liberdade, é
preciso não perder de vista os sentidos que são dados a uma e a outra, já que a
relação entre a arquitetura a ser definida para a administração púbica e o conteúdo
concreto de sua atuação inscreve-se no âmbito dessa outra relação, que é entre a
442 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 298. 443 Idem: 298 e 299.
224
arquitetura política da liberdade e da igualdade e seu conteúdo social concreto. Há,
porém, outro grupo de diferenças entre essas Declarações, que diz respeito à
subjetividade do poder constituinte, sua temporalidade e sua produtividade
constitucional. Em 1793, encena-se a assimilação da construção política ao
movimento das multidões como reconstrução contínua, que quer se
constitucionalizar tornando-se permanente, não apenas como uma norma, mas
como o próprio motor constitucional. A Declaração de 1789 não adentra a questão,
permanecendo no nível do entusiasmo geral; já a de 1793 começa por colocar a
liberdade sob a gestão genérica da lei, mas a tensão do movimento não cabe nesse
estreito limite, e repentina e repetidamente cresce e salta até explodir em toda a
sua potência revolucionária:
Art. IX – A lei protegerá a liberdade pública e individual contra a opressão dos que governam. Art. XI – É arbitrário e tirânico todo ato praticado contra um homem fora dos casos e das formas determinadas em lei; aquele contra quem se intente praticar semelhante ato mediante o uso da violência tem o direito de rechaçá-lo pela força. Art. XII – Aqueles que solicitarem, expedirem, assinarem, executarem ou fizerem executar atos arbitrários serão culpados e deverão ser punidos. Art. XXVII – Todo indivíduo que usurpe a soberania será imediatamente morto pelos homens livres. Art. XXXI – Os delitos dos dirigentes do povo e de seus agentes não deverão ficar impunes. Ninguém possui o direito de declarar-se mais inviolável que os demais cidadãos. Art. XXXII – O direito de apresentar petições aos depositários da autoridade pública não será, sob qualquer circunstância, vedado, suspenso ou limitado. Art XXXIV – O corpo social sofre opressão quando mesmo um de seus membros é oprimido. Cada membro sofre opressão quando o corpo social é oprimido. Art XXXV – A resistência à opressão é conseqüência dos demais Direitos do Homem. Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição do povo e de cada seção do povo é o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres.
Mas a Declaração de 1793 não se detém nesse ponto: nela a liberdade
transita, em sua caminhada ascendente como princípio, do sentido negativo do
direito de resistência e de insurreição para o sentido positivo da produtividade
constitucional, implantada no interior e a partir da igualdade, e articulada na
capacidade constituinte contínua do sujeito coletivo que ela reconhece como tal.
Simultaneamente, pretende abrir e manter abertos os portões da história, ao
225
também reconhecer que esse sujeito está em permanente movimento através do
tempo:
Art. XXVIII – Um povo tem sempre o direito de revisar, de reformar e de alterar sua Constituição. Uma geração não pode sujeitar as gerações futuras às suas leis.
Essa renovação constituinte é calcada numa condição de constituição
ontologicamente revolucionária, na qual o conceito moderno de poder constituinte
abre-se plena e irrevogavelmente. Às alegações de que essa radicalidade já estava
presente na Constituição da Pensilvânia, ou nos ideólogos das Luzes
(especificamente em Condorcet), Negri opõe que a Declaração de 1793 foi tão
radical e significativa porque foi entendida como tal.444 A Declaração de 1795 se
move em direção oposta, no terreno da negação das possibilidades da democracia
revolucionária. O inimigo real era o princípio de que a vontade popular está sobre
todas as pessoas e todas as instituições superiores, como aponta Hobsbawm,
citando Henry Reeve.445 O exercício da potência constituinte é amortecido e
paralisado no tempo, afastado das massas pelas mediações que lhe são impostas.
A questão deixa de ser o do desenvolvimento da dinâmica do poder
constituinte popular e é invertida então para o seu oposto, ou seja, o da dinâmica
da sua contenção.446 É preciso deslocar as massas do terreno da faculdade
constituinte para o da obrigação política, afastando do povo o direito de resistência.
Esse é o tom dominante em 1795, o temor das multidões e a obsessão com o seu
controle transpirando em muitos dispositivos da Declaração respectiva com igual
veemência, além dos que já citamos:
Art. III – As obrigações de cada um para com a sociedade consistem em defendê-la, servi-la, viver sob a lei e respeitar seus agentes.Art. IV – Não se pode ser bom cidadão sem ser bom filho, bom pai, bom irmão,bom amigo e bom esposo.Art. V – Não se pode ser um homem de bem sem cumprir honesta e religiosamente a lei.Art. VI – Aquele que viola abertamente a lei
444 Idem: 301. 445 HOBSBAWM, E. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa: 86. 446 Vide subitem Sieyès e a vontade geral representativa deste capítulo.
226
declara-se em estado de guerra com a sociedade.Art. VII – Aquele que, sem transgredir abertamente a lei, contorna-a mediante ardil ou artifício, fere os interesses de todos; ele se torna indigno da benevolência e da estima alheias.
O espaço social é extremado do espaço político, deixando de organizar este
último para ser por ele organizado, socializando-se politicamente os interesses
afinal vitoriosos, os quais exigem das multidões não somente a aceitação passiva
dos termos contra-revolucionários, como até mesmo o seu empenho por eles:
Art. VIII – O cultivo das terras, toda a produção, todo meio de trabalho e toda ordem social repousam sobre a preservação das propriedades. Art. IX – Todo cidadão deve seus serviços à pátria e à preservação da liberdade,da igualdade e da propriedade, sempre que a lei o chamar a defendê-las.
A inversão é total: ao organizar a reação política, o conservadorismo social
opera a substituição da criatividade constituinte das massas pela obediência
constituída destas. Como destaca Negri,
o quebra-cabeça rousseauniano resolve-se na imagem fria de uma universalidade impotente.447
No entanto, dentre as alternativas da Revolução, uma permaneceu como o
pivô em torno do qual passaram a girar as portas da história: o poder constituinte,
o poder de constituir, a vontade geral que os sans-culottes, por um momento,
fizeram descer da abstração e da transcendência para a materialidade da ação
social, inaugurando a dialética entre as tensões utópicas e as correspondentes
reações e repressões, que viriam a moldar as grandes linhas das lutas políticas dos
tempos que se seguiriam. Como sustenta Negri, os jacobinos, em sua pureza,
probidade e idealidade moral - que a certa altura os distanciaram tanto dos
girondinos como da vida concreta das massas -,448 podem não ter se dado conta de
que não havia a linearidade e a unicidade naturais e imediatas com que viam a
igualdade e a liberdade, os direitos políticos e os direitos sociais, uma unidade
447 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 303. 448 Para Hobsbawm, eles eram realistas nos moldes de Maquiavel, e não sonhadores abstratos. De fato, eram realistas, mas no sentido de que propunham programas concretos para aplicação à mudança da realidade, tal como percebiam esta última. HOBSBAWM, E. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa: 125.
227
orgânica subjacente que para eles a Revolução apenas restaurara;449 escapou-lhes
à percepção que essa unicidade tem que ser criada e continuamente recriada na
solução prática de antagonismos políticos e sociais em permanente moldagem
através do tempo.450 Mas, ainda assim, na radicalidade que por um instante na
história foi impressa à potência constituinte da multidão, os jacobinos contribuíram
para que essa potencialidade passasse a tudo definir, inclusive para os seus
adversários, não apenas precedendo como até mesmo demarcando a moldagem da
própria reação. A Revolução fez o Ancien Régime ficar, de fato, antigo. A
radicalidade autoritária do tempo napoleônico que se seguiu foi um produto e um
reflexo negativo da radicalidade do próprio princípio.
A ascensão constituinte das multidões, no processo da Revolução Francesa,
foi por assim dizer incidental, diferentemente do que ocorrera na polis ateniense,
na qual a democracia foi desde logo um princípio político horizontal voltado para a
inclusão da totalidade.451 Na polis, a derrocada da democracia demarcou a
derrocada do projeto democrático como um todo, enquanto que ao longo do
processo da Revolução Francesa a inclusividade popular, depois de se mostrar
inevitável em um primeiro momento, não foi simplesmente abandonada, mas, em
seguida à derrota jacobina, foi absorvida e tornada funcional ao projeto político
burguês, passando a ser contida e administrada no interior deste último. Isso é
muito mais próximo do que ocorrera na reação norte-americana aos Artigos da
Confederação, que teve também de lidar com a potência popular em expansão – a
qual havia sido um componente intrínseco do processo revolucionário americano
desde os seus primórdios, e não um fator incidental da revolução, como se dera na
França - do que ao realizado na Roma republicana e na Inglaterra revolucionária.
449 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 304-305. 450 Cumprindo evitar precisamente a indiferença política a que, segundo Hobsbawm, fora por fim levado o povo pelo governo arbitrário e terrorista de Robespierre (e que facilitou sua queda). Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa: 72. 451 Como sempre, ressalvando-se que só se aplicava aos isoi, os iguais, o que significava os cidadãos da polis pobres ou ricos, mas com exclusão das mulheres, dos escravos e dos metecos.
228
Na república romana, criara-se no interior de uma constituição mista - na qual não
se pretendia mais do que articular politicamente uma reprodução do escalonamento
social preexistente - um espaço delimitado de inclusão controlada do elemento
popular ou democrático, se quisermos aceitar a designação aritmética de origem
aristotélica que Políbios incorpora à sua análise. Na Inglaterra, ao longo das
convulsões do século XVII, a questão colocada era oposta a de Roma: articular
politicamente uma equação social que se modificara, alterando o antigo arranjo
constitucional relacionado à equação social preexistente. Em nenhum momento ali,
o elemento popular alcançou uma autonomia que o caracterizasse como uma força
política de per si. A questão central era entre os novos poderes econômicos que se
desenvolviam e os poderes tradicionais. Essa, como vimos, era também a questão
central na França pré-revolucionária, à qual vieram a se somar, no período
propriamente revolucionário, os sans-culottes.
Considerações finais
O núcleo de nosso objeto é a democracia, termo hoje tão instrumentalizado como
pouco definido. Fomos procurá-la, não nos regimes atuais, mas nos instantes da
história em que podemos localizar sua origem. Nosso pressuposto foi o de que a
polis grega, particularmente a ateniense nos seus períodos conhecidos como
democráticos, a república romana e as grandes revoluções atlânticas dos séculos
XVII e XVIII são marcos fundamentais e mesmo, em larga margem, momentos
fundacionais das instituições políticas modernas.
A re-fundação da sociedade
A maior parte das principais categorias políticas com as quais lidamos hoje ou
encontra diretamente suas raízes em elementos surgidos nesses processos
históricos, ou a eles estão relacionadas suas noções contemporâneas, como ocorre
com as idéias de representação legislativa e representatividade, multicameralidade,
funções ou tarefas do Estado, sufrágio, partidos políticos, estruturação formal e
hierarquizada do conjunto dos principais compromissos políticos e da organização
do governo (declarações de direitos e constituições escritas).
Poderíamos estabelecer muitas correlações entre as idéias, princípios e
práticas políticas ocorridas ao longo dessas etapas vitais de construção das
sociedades ocidentais hoje existentes (e das orientais ocidentalizadas); dentre as
alternativas possíveis, elegemos como nosso fio condutor, como dissemos na
introdução, a democracia. Com a finalidade de definir um sentido básico para esse
termo, de modo a criar um mesmo fundamento de intelegibilidade que pudesse ser
aplicado a todos os cinco compartimentos de nossa análise, e assim proporcionar
um critério de intercomparabilidade entre estes, procuramos, no capítulo I, nos
esgueirando pela jangal semântica relacionada com a palavra democracia, dentro
de um conjunto de noções e definições de democracia, à esquerda e a direita,
prescritivas e realistas, sintetizar um aspecto político que lhes seja comum e
decisivo. Procuramos também mostrar, ainda no capítulo I, que nas ciências sociais
230
em geral, e particularmente em ciência política, é possível alimentar até certo
ponto uma perspectiva de objetividade, mas muito dificilmente de neutralidade.
Isso posto, procurando tornar nossa síntese o menos arbitrária possível, chegamos
ao que seria a propriedade política fundamental da democracia: a ação concreta e
eficaz do povo sobre suas condições sociais de existência. Essa propriedade,
tomada por nós a partir da idéia de constituição material como a dinâmica dos
fatores que ordenam de fato a sociedade e parametrizam a conduta social dos
homens, e dentro da proposta negriana do poder constituinte como dispositivo
genealógico geral das determinações sóciopolíticas que formam o horizonte da
história do homem,452 implica definir, no movimento contínuo de constituição do
poder, o poder do povo de constituí-lo. A partir daí, procuramos verificar em que
medida e por quais meios ocorreu a inclusão ou a exclusão de uma maior ou menor
quantidade de camadas dos povos respectivos no processo decisional a que
chamamos de política, em cada um dos seus grandes momentos de transformação
por nós percorridos, e assim tentar verificar se e em que medida a questão da
democracia participou desses marcos fundacionais das instituições políticas que
hoje existem em grande parte do mundo.
Quais as grandes linhas de contato que podemos apontar entre esses
marcos fundacionais?
Os marcos históricos de que tratamos podem ser definidos como revoluções,
no sentido de que processos revolucionários são rupturas que introduzem uma
separação entre diferentes tempos históricos - ou, mais precisamente, constroem e
inauguram a própria diferença entre eles. Revoluções são, assim, antes de tudo,
atividades de criação, desenvolvidas a partir de um projeto social e político global.
Por essa razão, os marcos históricos aqui abordados podem ser definidos como
revoluções. A única exceção é a Roma republicana, na qual a inserção
constitucional das forças sociais em presença seguiu um caminho que não foi de
452 NEGRI, A. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade: 54.
231
ruptura com alguma ordem que lhe fosse anterior, mas de rearticulação política da
ordem social preexistente, de modo não a alterar, mas a preservar na
superestrutura do poder a estrutura da sociedade. Ainda assim, pela aplicação do
mesmo princípio básico à recomposição constitucional de suas estruturas sociais
modificadas, forneceu ao acervo das revoluções atlânticas um primeiro conceito de
constituição mista, o qual foi plasmado às características próprias de cada um
daqueles movimentos.
A atividade criadora na democracia grega e nas revoluções atlânticas
representou a expressão de projetos que, se foram diferentes em diversos aspectos
próprios de cada um, foram, contudo, semelhantes no sentido de que expressavam
e buscavam realizar concretamente um determinado sentido de autonomização
social e inclusividade política. Partiram da recusa à aceitação cega e passiva daquilo
que era ou que já estava constituído, colocando em questão as representações
coletivas dominantes no mundo, a sociedade ou a verdade ou os valores,453 assim
como as respectivas estruturas políticas. Tanto no caso da polis como no das
revoluções atlânticas, podemos parafrasear a afirmação de Gilberto Dupas relativa
às sociedades liberais do ocidente, no sentido de que o seu desenvolvimento fez-se
por meio de uma dialética de oposições concretas às deferentes características –
inclusive e principalmente as políticas - das sociedades que as precederam.454
Nesse sentido, ambos os projetos, o da polis e o liberal das revoluções atlânticas,
se encontram na perspectiva de que trazem em si concepções integrais do mundo e
da vida, em função das quais -ainda que muito diversas e até mesmo opostas em
vários aspectos – buscaram legitimar a reestruturação integral da sociedade.
Nesse sentido, como aponta Castoriadis, a Grécia, entre os séculos VIII e V
a.C., e a Europa Ocidental (nós particularizaríamos a Inglaterra e a França) e
453 CASTORIADIS, C. Figuras do pensável. 454 DUPAS, G. Tensões contemporâneas entre o público e o privado: 24.
232
Estados Unidos, no período compreendido entre os séculos XVII e XVIII d.C.,
assemelham-se na singularidade histórica de terem sido
as únicas sociedades que criaram a política no sentido de uma atividade coletiva visando explicitamente à instituição global da sociedade, esforçando-se abertamente para mudá-la e, em larga medida, conseguindo fazê-lo.455
A essa lista, cremos que não seria fora de propósito acrescentar também a
Roma republicana. Ali, se a sociedade não chegou a ser propriamente instituída
com a globalidade a que se refere Castoriadis, foi, no entanto, reorganizada no
sentido de que as diferentes forças sociais nela operantes foram integral e
reciprocamente reconhecidas.
Da mesma forma, tanto no caso dos politai gregos como no dos burgueses
europeus e norte-americanos, as instituições não foram modificadas apenas como
uma demonstração de capacidade, mas com o objetivo consciente e deliberado de
criar, através de uma atividade intensa e lúcida de remodelação política, uma nova
situação que lhes permitissem realizar de fato os projetos de autonomização das
novas forças sociais que então se projetavam. Esses processos históricos se
caracterizaram, no momento de sua realização, por uma inédita inversão da
equação tradicional da autoridade política: ao invés de partirem do Estado (ou, no
caso grego, do órgão político equivalente na polis) para a sociedade, partiram da
sociedade para o Estado, englobando-o e recriando-o no movimento constituinte
das classes que se tornaram hegemônicas no interior das sociedades respectivas
(ou da peculiar hegemonia coletiva grega supra-classes). Essa nova forma de
projeção direta no Estado da realização política das hegemonias sociais se deu no
sentido definido por Althusser:
O Estado (e sua existência em seu aparelho) só tem sentido em função do poder de Estado. Toda luta política das classes gira em torno do Estado. Entendamos: em torno da posse, isto é, da tomada e manutenção do poder de Estado por uma certa classe ou por uma aliança de classes ou frações de classes.456
455 CASTORIADIS, C. Figuras do pensável: 178 (grifos originais). 456 ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: 65.
233
Também igualmente no caso grego como no europeu e norte-americano, a
ação transformadora concreta foi precedida e também acompanhada por profunda
articulação teórica, vital tanto na fundamentação da ação prática em si mesma,
como na luta pela produção de significações e sentidos voltados para fazer com que
as novas instituições se tornassem social e politicamente vivas e efetivamente
vividas pela sociedade.457
Isso é válido para as três grandes revoluções atlânticas dos séculos XVII e
XVIII. É possível identificar um objetivo central comum a esses grandes
movimentos do Ocidente, que cada um deles procurou realizar a sua maneira e
dentro das suas peculiaridades – no caso inglês, com a Revolução Gloriosa de
1688-9, no caso norte-americano, com a reação constitucional-nacionalista aos
Artigos da Confederação, e no caso francês, principalmente a partir da reação
termidoriana. Acreditamos que esse objetivo comum possa ser sintetizado numa
única frase, por extensão do que diz Negri, reportando-se ao pensamento de
Sieyès: criar a sociedade moderna, distinguindo-a da antiga como uma sociedade
comercial estabelecida sobre uma base social adequada,458 estruturando, ao
mesmo tempo, as necessárias articulações políticas decorrentes da organização da
divisão do trabalho nas sociedades comerciais complexas. Essas articulações foram
obtidas principalmente por meio das diferentes arranjos políticos da idéia básica de
constituição mista, que analisamos ao longo deste trabalho.
Mas o que se buscava autonomizar, no caso grego de um lado, e na
república romana e as revoluções atlânticas de outro, era, como já vimos, muito
diverso. Então, sendo nosso trabalho conduzido pela análise da inserção do povo na
457 Particularmente nos casos europeu e norte-americano – ainda que tendo começado na Grécia com os sofistas (ver nota 66) - insere-se aqui o aspecto ideológico da luta política, tal como definido por Althusser como a luta pela produção socialmente eficaz de representações imaginárias das relações dos indivíduos e dos grupos sociais com suas condições concretas de existência. Idem: 81-107. 458 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 312.
234
constituição e no exercício do poder político, o que podemos generalizar, quanto a
esse aspecto?
O controle político da potência constituinte das multidões459
Como vimos ao longo do texto, a expressão política da realização da
soberania dos valores privados, que teve seu primeiro grande impulso no processo
revolucionário inglês,460 manifestou-se no movimento nacionalista no interior da
Revolução Americana que resultou na Constituição de 1787 e na derrota dos
jacobinos na Revolução Francesa. Essa expressividade política teve de lidar com as
multidões, após uma inserção destas últimas ao mesmo tempo decisiva e
potencialmente ameaçadora para muitos interesses poderosos que se pretendiam
afirmar – principalmente nos casos americano e francês. Isso também é verdade,
ainda que em menor grau, no caso romano, onde, não podendo ser totalmente
ignorado, o peso das massas populares foi administrado pelo expediente político de
sua inserção controlada na constituição mista respectiva. No caso inglês, o
elemento popular se fez presente no apoio ao Parlamento, principalmente
combatendo ao longo das guerras entre este último e a realeza. Nos casos norte-
americano e francês, ainda que por vias próprias e distintas, esse elemento popular
ou democrático desempenhou o papel de legitimar o poder em sua origem e em
processo de constituição, fornecendo também o suporte físico necessário às lutas
pelas mudanças institucionais – na América do Norte contra os ingleses nas guerras
de independência, e na França contra as forças reacionárias que se opunham à
revolução. Mas, em todos esses casos, após a vitória das forças que se tornaram
afinal hegemônicas, a participação no poder desse elemento popular passou a ser
organizada e administrada – e, portanto, limitada - pelo poder constituído.
459 Empregamos aqui o termo multidões no sentido referido na nota 27. 460 Esses valores, mesmo antes das convulsões do século XVII, já vinham se impondo como princípio organizativo da sociedade inglesa, e estiveram, como vimos, na base do processo revolucionário.
235
Em termos político-institucionais, isso se tornou basicamente possível a
partir da conformação das multidões em povo, de que falamos no capítulo I, assim
demarcando a base humana de subordinação ao poder de um Estado nacional,
somada a um conjunto de seis outros fatores, que se interligam na produção de
distanciamento do poder político em relação à sua fonte constituinte originária – ou
seja, o próprio povo.461 Os quatro primeiros fatores são diretamente inerentes à
superestrutura política liberal, tal como emergiu das revoluções atlânticas –
ressalvando-se que o terceiro está mais vinculado às revoluções norte-americana e
francesa do que à revolução inglesa. Os dois últimos fatores são decorrentes dos
valores integrativos que organizam a estrutura liberal-capitalista da sociedade, e
conseqüentemente informam e conformam a ação do Estado na manutenção e
defesa desta última. O primeiro fator é o predomínio do próprio Estado-nação como
máxima instância decisora no âmbito espacial e humano do exercício de sua
autoridade; o segundo fator é a inserção popular no poder dentro de um sistema de
compartimentos em regime de controles recíprocos; o terceiro é a juridicização
constitucional; o quarto fator é a mediação da participação política popular através
do mecanismo da representação; o quinto consiste no isolamento aparente do
político em relação ao social, obtido pela distinção das esferas pública e privada; e
o sexto reside na despersonalização e aparente despolitização de instrumentos
efetivos de comando sobre os homens socialmente organizados.
O primeiro fator diz respeito ao fato de que as grandes revoluções atlânticas
se definiram, como dissemos, no horizonte espacial e temporal do moderno Estado
soberano. Esse horizonte estabeleceu um campo de percepção das expectativas da
população, e o poder político assumiu uma dupla dimensão: uma externa, frente
aos interesses dos demais Estados, e uma interna, como poder disciplinar,
exercendo-a por meio das diversas operações de sua máquina governativa, através
das quais deve alcançar, continuamente e em grande escala, como dizem Michael
461 Ou, para além do povo, as multidões, tal qual definidas na nota 27.
236
Hardt e Antonio Negri,462 o milagre da subordinação de singularidades à totalidade,
da vontade de todos à vontade geral. Essas operações políticas e burocráticas, de
ordem normativa e institucional,463 abrangem também, de forma não menos
importante, o aparato simbólico no vértice do qual foi situado o Estado como o
elemento de máxima integração das expectativas e da representação de unicidade
ligados às noções de nação e de nacionalidade.464 Dentro desses dois últimos
significados, criou-se o sentido da legitimidade do exercício da autoridade pelo
Estado, o qual é continuamente reforçado pelos atores políticos em ação na
sociedade, na medida em que sejam quais forem os sentidos sociais que esses
atores negociem ou ofereçam – inclusive os não-liberais -, o Estado, assumindo a
posição de transcendência em relação à sociedade civil já visualizável no
pensamento de Hobbes, passou a se apresentar como o máximo horizonte comum
de suas possibilidades de realização. Dessa forma, as contestações de qualquer
natureza ao conteúdo das ações praticadas sob a autoridade do Estado, sejam elas
omissivas ou comissivas,465 o são apenas em relação a esse conteúdo, e não à
autoridade do Estado como tal. Em sendo assim, a autoridade estatal se viu em si
mesma reforçada ainda pelos que se opõem às ações respectivas, garantindo-lhe
um núcleo mínimo, apriorístico e genérico de legitimação, enquanto maior pólo de
poder sobre sua respectiva e exclusiva jurisdição territorial. O Estado assumiu
desse modo a posição de fonte máxima de autoridade no interior do espaço físico e
humano respectivo.
462 HARDT & NEGRI. Império: 105. 463 Através das quais o Estado colocou-se também na centralidade da socialização da economia, como observa Santos, regulando-a, mediando os conflitos e, no limite, praticando a repressão física. SANTOS, B. de S. Reiventar a democracia: entre o pré-contratualismo e pós-contratualismo: 38. 464 Como destaca Jürgen Habermas, referindo-se ao Estado-nação moderno, hoje, todos vivemos em sociedadesnacionais que devem sua identidade à unidade organizacional desse tipo de Estado. HABERMAS, J. Realizações e limites do Estado nacional europeu: 298. 465 Porque abster-se de agir ainda é agir, uma vez que implica a possibilidade de opção.
237
A participação do povo, ou de parcelas do povo, no exercício do poder
político - e esse é o segundo fator – foi articulada institucionalmente, na república
romana e ao cabo de todas as três grandes revoluções atlânticas, dentro de
diferentes esquemas de constituição mista, dos quais tratamos ao longo deste
trabalho. Isso significa dizer que em nenhuma delas (ressalvadas, no limite de suas
características particulares, as fases dos Artigos da Confederação, na América do
Norte, e do jacobinismo, na Revolução Francesa), o povo teve plenamente
transformada em ato a sua potência constituinte, ou assumiu irrestritamente no
Estado o controle do poder constituído, tendo sido sempre inserido no interior do
controle recíproco das forças e poderes, o qual segundo Negri, já mencionado por
nós no final do capítulo II, caracteriza a constituição mista,466 elemento comum,
dentro das variações que abordamos nos capítulos respectivos, a esses três
grandes movimentos.
À concentração do poder decisório máximo no Estado e à inserção
constitucional do elemento popular no interior deste último em um sistema de
compartimentação do poder em regime de controles recíprocos, se junta o terceiro
fator, o qual opera no âmbito da construção da política como transcendência da
multidão e contenção das suas possibilidades de plena expressão como potência
constituinte. Desta feita, isso ocorre limitando essa potência por meio da sua
detenção, do seu confinamento e da sua rotinização em um sistema normativo
hierarquizado, o qual busca internalizar e disciplinar o poder constituinte dentro do
poder constituído e limitar sua expansividade às normas de produção jurídica. Esta,
por sua vez, através da sua retórica de autonomia, neutralidade e universalidade,
cria uma impressão de necessidade lógica sugerida pela forma, a qual tende a
contaminar o conteúdo, como sublinha Bourdieu.467 A própria categoria de poder
constituinte está excluída do âmbito das categorias jurídicas, a não ser, como
466 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 312. 467 BOURDIEU, P. O poder simbólico: 225.
238
observa Negri, na condição de um a priori cuja onipotência é proclamada apenas
com a finalidade de
opô-la ao ordenamento, de tal forma que, onde uma estiver, a outra não poderá estar.468
E recebe afinal o
mesmo tratamento dado ao trabalho: aceita-se que precondicione a ordem jurídica apenas para que seja possível ordená-lo integralmente.469
Dessa maneira, o poder constituinte acaba se tornando, ele próprio, um
produto do poder constituído, tornando-se um poder de exceção: seu exercício
passa a ser um fato extraordinário, sendo conduzido por um pequeno corpo de
supostos representantes da vontade geral, mas que de fato atuam em sujeição a
um conjunto de compromissos previamente estabelecidos e hierarquizados por
determinados grupos de pessoas. Esse poder constituinte, que se tornou distinto do
poder comitente, tem como primeira missão estabelecer limites, e os mais urgentes
deles para si mesmo:
a fera deve ser dominada, domesticada ou destruída, superada ou sublimada.470
Conexos a esses três primeiros fatores está o quarto, o qual consiste em
estabelecer uma mediação entre o elemento popular e o exercício do poder político
através da representação.
Esta é sempre em princípio justificável sob o mais formidável argumento
contra o exercício direto do poder pelas massas, o qual Robert Michels tira da
impossibilidade mecânica e técnica de sua realização. Há poucas dúvidas quanto ao
mérito desse argumento, ao menos em relação a grandes unidades populacionais e
territoriais.471 Não obstante, isso de modo algum elide a plêiade de aspectos
relacionados ao distanciamento que esse processo de mediação tem o potencial de
468 Idem: 332. 469 Ibidem. 470 NEGRI, A. Cinco lições sobre o Império: 448. 471 Embora o avanço das tecnologias informacionais em nossa era nos permita entrever a sua possível falência num futuro talvez não muito distante.
239
introduzir entre o povo e o exercício do poder político, notadamente na vinculação
às instâncias partidárias, inauguradas pelos ingleses na segunda metade do século
XVII com os Tories e os Whigs. Em nosso trabalho, falamos de aspectos
relacionados à transformação dos mandatos imperativos em virtuais, e dos diversos
controles que foram estabelecidos constitucionalmente sobre os poderes da
representação popular legislativa. Muito mais ainda poderia ser dito, como faz o
próprio Michels, por exemplo, ao tratar em detalhe de muitos aspectos ligados à
formação e ao funcionamento dos partidos políticos. Mas isso está além dos limites
deste trabalho.472
Passando pelos quatro mecanismos precedentes, que se referem à
construção do exercício do poder, chega-se ao quinto fator, que é o âmbito desse
exercício, o qual reside na vida comum do corpo político. Esta, que era o centro da
democracia grega, passa a ser uma exceção à assim chamada vida privada, a qual
se torna o centro da vida cotidiana, como se pudesse de fato haver uma separação
entre o comando e a organização da sociedade, de um lado, e a vida social
organizada, de outro. Na relação entre o indivíduo e a estrutura social em que ele
vive e atua, a direção que nos seus momentos de origem tomaram as instituições
políticas modernas abriu caminho para uma aparente dicotomia, relacionada ao
472 Apenas para ilustrar este ponto, fiquemos com um trio de observações de Castoriadis. A primeira, no que diz respeito ao fato de que os representantes são parlamentares que, em sua maioria e na maioria dos casos, fazem aquilo que o líder (ou a direção) de seu partido diz que faça (CASTORIADIS, C. Figuras do pensável: 218). Desse modo, os partidos, particularmente os majoritários, tendem a se tornar instâncias extra-parlamentares efetivamente detentoras do poder político nominalmente exercido nos parlamentos. A segunda observação consiste em que esses partidos majoritários não raro ocupam simultaneamente os poderes legislativo e executivo (seja o partido majoritário em si ou a coalizão majoritária), o que destrói qualquer ilusão de separação entre esses poderes. Considerando que a essência dos atos de qualquer governo consiste, precisamente, em que eles são atos de governo, e que o assim chamado Poder Executivo, enquanto poder de Estado, não executa nada, ele decide e governa (idem: 217), agindo no quadro das leis e não simplesmente as aplicando, o que não é a mesma coisa - são os oficiais de justiça e os datilógrafos que “executam”, sublinha Castoriadis (ibidem) -, o governo tenderá a ser de fato exercido pelas cúpulas partidárias. A terceira observação concerne à questão dos financiamentos particulares dos partidos e campanhas respectivas, concedidos pelas pessoas que têm ao mesmo tempo dinheiro e razões para dá-lo; o dinheiro será então dado por aqueles que têm àqueles que votam bem” (ide: 216), implicando assim uma forma de colonização privada indireta dos espaços de governo supostamente públicos.
240
liberalismo: de um lado, o que parece ser um antagonismo entre o assim chamado
interesse público e o interesse privado do indivíduo ou de grupos de indivíduos, e
de outro lado a esfera pública estruturada como âmbito de realização política dos
valores privados. Para essa ambigüidade em relação ao indivíduo e a coletividade,
contribuiu a própria conquista liberal de um estatuto jurídico de igualdade e de
afirmação do indivíduo em face do poder, em função precisamente da criação de
conjuntos de direitos defensivos frente ao Estado, combinado ao princípio
individualista da cidadania - na versão do liberalismo, ligado desse modo aos
valores ínsitos a este último. Nesse sentido, se, como sublinha Dupas, é preciso
distinguir entre a ação do indivíduo e a estrutura coletiva na qual essa ação se
inscreve,473 é preciso também não olvidar que a ação do indivíduo se desenvolve a
partir dessa estrutura coletiva e no seu interior, onde, como Rousseau já havia
mostrado, se situam os quadros de referência que fornecem o significado e definem
o sentido dessa ação. Mas como a organização da sociedade se dá em torno da
propriedade e dos correspondentes valores privados, ela se constrói, como assinala
Marx, em torno
do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade.474
A sociedade enquanto totalidade e vida genérica, passa a ser um marco
exterior aos indivíduos.475 No entanto, a dicotomia desaparece quando atentamos a
que o antagonismo entre público e privado é mais aparente do que real, na medida
em que essa segregação de esferas é contraditoriamente apresentada como sendo
do interesse geral. E também pelo fato de que a esfera dita privada não é
realmente privada (exceto naquilo que os gregos chamavam de oikos, os negócios
estritamente pessoais), porque nela se realiza o próprio núcleo estruturante da
sociedade burguesa, que são as relações de propriedade.
473 DUPAS, G. Tensões contemporâneas entre o público e o privado: 24. 474 MARX, K. A ideologia alemã: 37. 475 Ibidem.
241
Todo o conjunto de fatores interligados no afastamento das fontes
constituintes populares do processo de constituição e exercício do poder, dos quais
falamos até agora, agem no contexto do sexto e último fator que abordaremos, o
qual se desenvolve à sombra da mesma dicotomia aparente a que nos referimos no
parágrafo anterior. As revoluções atlânticas se consolidaram, como já dissemos,
por sobre o predomínio dos valores civis ou privados como valores integrativos das
sociedades respectivas; isso significa dizer que nelas deixaram de ser reconhecidas
as formas tradicionais de hegemonia aristocrática, passando a predominar, como
também já dissemos, um estatuto apriorístico de igualdade jurídica. Em sendo
assim, a organização da sociedade pelas formas feudais de autoridade e de
relacionamento cederam lugar à uma aparente despersonalização do comando
sobre os homens organizados socialmente, que age por meio da monetarização das
relações sociais de troca combinada com a possibilidade de acúmulo de excedentes
monetários. Criou-se assim um outro véu, sob o qual permanece oculto o caráter
absolutamente público e político das relações econômicas privadas. Como destaca
Castoriadis:
Toda decisão de imputação é uma decisão política, pois é ao mesmo tempo e ipso facto uma decisão de atribuição. A decisão política que serve de base para a economia capitalista, nunca formulada explicitamente, tem como conteúdo essencial a reprodução grosso modo da estrutura existente de repartição dos recursos e das rendas (embora não exatamente os beneficiários individuais desta repartição). Em uma sociedade democrática, as decisões fundamentais de imputação e de atribuição deveriam ser tomadas explicitamente e com conhecimento de causa.476
A Agora, como local de tomada coletiva das principais decisões, era o centro
físico da democracia ateniense, e, como tal, pode ser vista como um símbolo
daquilo que, ao criar a bios politikos, a vida comum na qual se realizavam todas as
vidas, esteve mais próximo de um princípio constitutivo absoluto e ilimitado do
poder político. Derivando-o da síntese que fizemos nos dois últimos parágrafos do
capítulo I, o fim último da democracia em termos políticos é a plena realização em
ato da potência constituinte total das multidões; nesse sentido, somente a
476 CASTORIADIS, C. Figuras do pensável: 234 (grifos originais).
242
democracia pode ser plenamente política, porque somente ela pode ser realmente
universal. Como também somente a democracia poderia, no limite, levar ao que
Giuseppe Cocco e Adriano Pilatti definem como a produção e a fruição de um
mundo povoado não pelas criaturas, mas pelos criadores.477 Mas, como vimos, nem
mesmo em seu berço na polis a democracia chegou a ser desenvolvida na plenitude
de suas possibilidades. Em todos os momentos históricos que abordamos, houve
uma remodelação política surgida de um impulso social à libertação de antigas
amarras, e essa liberdade surgiu como uma crise. Em primeiro lugar, uma crise das
formas de dominação anteriores, ou seja, entre o poder político constituído e a
potência constituinte das forças sociais emergentes. Em segundo lugar,
principalmente nas revoluções norte-americana e francesa, uma crise do próprio
impulso à liberdade, no entrechoque entre a potência constituinte das multidões
fundidas em povo e a das classes organizadoras do trabalho deste último.
À semelhança da Roma republicana, as grandes revoluções atlânticas dos
séculos XVII e XVIII – particularmente a norte-americana e a francesa -, ao
envolverem o conjunto das sociedades respectivas no processo de sua reconstrução
política, ampliaram e aprofundaram a idéia respectiva, na medida em que a
transformaram numa questão geral da sociedade – e, nesse sentido, a
democratizaram. Porém, democratizar a política enquanto questão não é o mesmo
que democratizar a política enquanto conteúdo, no sentido da participação irrestrita
e isonômica do conjunto da sociedade; assim, ao verem ampliado o horizonte da
participação política por diferentes camadas do povo, essas revoluções, como uma
vez antes delas fizera Roma, simultaneamente a limitaram e construíram
mecanismos que a pusessem sob controle das forças que então despontavam como
hegemônicas. Ao assim fazerem, desenvolveram a clivagem entre controle do povo
e controle pelo povo, da qual falamos no final do capítulo I, demarcando a
477 COCCO & PILATTI. Desejo e liberação: a potência constituinte da multidão: viii.
243
democracia simultaneamente como processo e como crise -e criaram as condições
nas quais é travada, até nossos dias, a luta contra a Agora.
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