democracia, burocracia, cidadania e contratualização do estado

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Artigo para discussão – Última Versão em 16 de novembro de 2013 DEMOCRACIA, BUROCRACIA, CIDADANIA E A CONTRATUALIZAÇÃO DO ESTADO DANILO DE MORAIS VERAS 1 RESUMO: Em tempos de convulsões sociais, questionamentos políticos e incoerências jurídicas, a revisão dos institutos basilares do Estado serve ao propósito de contribuir, positivamente, para eventuais rearranjos arquitetônicos necessários à consecução dos interesses públicos. Por isso, a doutrina recente tem questionado fortemente alguns institutos tidos como positivos (ou ao menos, desejáveis), como a democracia, e buscado fortemente o combate a institutos negativos (indesejáveis), cuja existência pressupunha-se inevitável, como a burocracia. Nesse contexto, apresenta-se a cidadania, como instituto basilar da relação entre o Estado e a condição humana, que não pode ser atingida por meio de expedientes autoritários e excludentes. A alternativa 1 Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós- graduado em Gestão de Negócios e Finanças pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, advogado com experiência em modelagem, regulação e implementação de empreendimentos de infraestrutura.

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Em tempos de convulsões sociais, questionamentos políticos e incoerências jurídicas, a revisão dos institutos basilares do Estado serve ao propósito de contribuir, positivamente, para eventuais rearranjos arquitetônicos necessários à consecução dos interesses públicos. Por isso, a doutrina recente tem questionado fortemente alguns institutos tidos como positivos (ou ao menos, desejáveis), como a democracia, e buscado fortemente o combate a institutos negativos (indesejáveis), cuja existência pressupunha-se inevitável, como a burocracia. Nesse contexto, apresenta-se a cidadania, como instituto basilar da relação entre o Estado e a condição humana, que não pode ser atingida por meio de expedientes autoritários e excludentes. A alternativa apresentada, dentre as inúmeras possíveis, é a contratualização do Estado, como forma de promoção dos direitos individuais, do incentivo à distribuição de renda de forma mais eficiente e da maior participação pública, regionalizada, nas discussões para a implantação de sistemas de infraestrutura.

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Page 1: Democracia, Burocracia, Cidadania e Contratualização do Estado

Artigo para discussão – Última Versão em 16 de novembro de 2013

DEMOCRACIA, BUROCRACIA, CIDADANIA

E A CONTRATUALIZAÇÃO DO ESTADO

DANILO DE MORAIS VERAS1

RESUMO: Em tempos de convulsões sociais, questionamentos políticos e incoerências

jurídicas, a revisão dos institutos basilares do Estado serve ao propósito de contribuir,

positivamente, para eventuais rearranjos arquitetônicos necessários à consecução dos

interesses públicos. Por isso, a doutrina recente tem questionado fortemente alguns institutos

tidos como positivos (ou ao menos, desejáveis), como a democracia, e buscado fortemente o

combate a institutos negativos (indesejáveis), cuja existência pressupunha-se inevitável, como

a burocracia. Nesse contexto, apresenta-se a cidadania, como instituto basilar da relação entre

o Estado e a condição humana, que não pode ser atingida por meio de expedientes autoritários

e excludentes. A alternativa apresentada, dentre as inúmeras possíveis, é a contratualização do

Estado, como forma de promoção dos direitos individuais, do incentivo à distribuição de

renda de forma mais eficiente e da maior participação pública, regionalizada, nas discussões

para a implantação de sistemas de infraestrutura.

Palavras chaves: Democracia. Burocracia. Cidadania. Contratualização. Voto. Vontade

popular. Liberdades individuais.

1 Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduado em Gestão de Negócios e Finanças pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, advogado com experiência em modelagem, regulação e implementação de empreendimentos de infraestrutura.

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1. INTRODUÇÃO

O recente panorama de movimentações sociais provocou o questionamento de inúmeras

características inerentes ao modelo político sob o qual se apoia a atual arquitetura estatal. A

chamada “crise de representatividade”, em verdade, se revelou bem mais profunda do que

simplesmente uma discussão acerca de um determinado grupo ou determinado instituto, mas

uma revisão necessária em toda a sistemática de acesso à titularidade do poder público, por

meio dos sistemas até então oferecidos. O que existiu, de fato, foi uma “avocação do Poder”,

titularizado por quem de fato o possui, ou seja, a população foi às ruas, exercendo democracia

direta, o que foi, imediatamente, rechaçado pelo governo em exercício.

Como poderia um governo não obedecer o povo que o elegeu? Se uma parcela relevante

da sociedade sai às ruas bradando e exigindo a observância de procedimentos garantidos pelo

Direito, não haveria espaço para que os titulares do poder tergiversassem e apresentassem

qualquer outra alternativa legítima que não a pronta obediência ao clamor popular. A

desconexão entre o entendimento público, perfeitamente legítimo, e o exibido pelo governo

trouxe à luz algumas características que, até então, restavam escondidas dos holofotes da

transparência.

O presente artigo aborda o assunto em 5 seções, questionando as bases que parecem

perpetuarem-se no tempo, sendo, esta introdução, a primeira delas.

A segunda seção oferece uma análise da democracia e questiona a religiosidade em

torno do conceito. A ideia recorrentemente apresentada como “crise de falta de democracia” é

exposta como uma característica normal do fenômeno democrático, tal como imposto a uma

sociedade extremamente plural e caracterizada, nos dizeres de Madison, por facções distintas

e, na maior parte das vezes, excludentes entre si. A seção termina por demonstrar as

similitudes existentes entre a arquitetura dos regimes flagrantemente totalitários com a

democracia, expondo ainda se tratar de um regime de governo de uma minoria sobre uma

maioria.

A terceira seção registra uma reflexão sobre a burocracia. De Max Webber à Escola de

Chicago, muito se descobriu sobre tal fenômeno, o qual serviu, por exemplo, para o

perpetramento de crueldades inimagináveis na história humana como o nazismo. Nesse

sentido, expõem-se as características da burocracia que a tornam sufocadora da população e

permitem que o indivíduo se anule na impessoalidade a ponto de perder a empatia por seu

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semelhante. Nesta seção, entende-se que a mudança de um regime totalitário para um regime

de maior participação popular passa, necessariamente, pela retração do fenômeno burocrático.

A quarta seção analisa a cidadania como alternativa às falácias estabelecidas para a

defesa da democracia em seu atual formato e da burocracia como única forma de gestão

pública possível. Nesse ponto, são analisadas as características que promovem o

reconhecimento de outro indivíduo como cidadão e promovem a discussão colaborativa sobre

a evolução social. O desrespeito às esferas individuais sob a desculpa do “interesse público”

serve, dessa forma, ao inchamento da democracia em detrimento da cidadania dos indivíduos.

A quinta seção apresenta a Contratualização do Estado como uma das alternativas

possíveis à promoção do diálogo público na aplicação de alternativas para satisfação de

necessidades primárias. Nesse sentido, contrapõem-se as vantagens dos contratos públicos

face à execução direta pelo Estado, o que acarreta, no mínimo, uma maior eficiência no uso

do dinheiro público.

Por fim, a sexta seção apresenta as conclusões.

2. DEMOCRACIA COMO OBJETIVO SOCIAL

A experiência democrática mundial é algo relativamente novo na história e, talvez por

ainda representar um florescer ideológico oriundo de um passado de flagrante opressão, seja

tratada como um dogma. No entanto, a democracia como axioma começa a apresentar

rachaduras, uma vez que não é capaz de cumprir com os objetivos para os quais se

desenvolveu. A sociedade ainda carece de efetiva participação no sistema político, o governo

ainda é uma utopia para grande parte da população e a distância entre o Estado e o Cidadão é

tão crescente, que tende ao rompimento em convulsões sociais. Por algum motivo ainda

desconhecido, é possível afirmar que a direção que se segue não aponta para o destino

desejado. A democracia, como meta de uma longa caminhada, parece esvair-se como uma

miragem, como uma utopia ou, ainda, como uma mentira conveniente.

No Brasil não é diferente. Embora a história nacional registre dois períodos nos quais a

sociedade teria, supostamente, se aproximado do Governo após regência de sistemas

autoritários, o que convencionou-se chamar Primeira (1889-1930) e Segunda (1985 –

atualmente) Repúblicas, fato é que, em relação à primeira, inexistem dúvidas quanto à

ausência de uma democracia e, ao observar a segunda, se a quantidade e qualidade daquela

democracia eram razoáveis para que se considerasse o modelo como “última solução”, o

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“Objetivo Social” colimado, ou se é, como acreditam os mais esperançosos, uma forma

transitória de um modelo ainda mais efetivo. As recentes comoções sociais havidas por todo o

país colocam novamente em cheque a legitimidade da democracia, apontando energicamente

para a necessidade de modificações.

Como dito, tais questionamento avolumam-se por todo o globo. Ecoam pelas

democracias do planeta e reverberam nos institutos criados para proteger os mitos que se

revelam, paulatinamente, falsos. A democracia como religião (KARSTEN e BECKMAN,

2013) é retirada de seu altar e colocada, novamente, no biotério para análise de seu

comportamento diante dos incentivos que se apresentam no mundo real. Aqui, passa-se à

análise de algumas das principais características da democracia e aduz-se alguns dos

prováveis motivos para a sua ineficiência.

2.1. O VOTO

A democracia tem como premissa a existência de um corpo eleitoral periodicamente

renovado e de um eleitorado composto por aqueles que têm direito de votar. Via de regra, é

dito que “não existe representação política sem a eleição”, sendo tal instituto tão intrínseco ao

regime democrático, que pouco se ataca a sua eficiência. No entanto, há de se questionar se

sua existência é útil ou, ao menos, se tal instituto cumpre com sua finalidade de forma

suficientemente relevante. Se existe um Deus, como chegar a Ele?

É sempre dito durante as campanhas eleitorais pelo mundo que “o seu voto realmente

faz a diferença”. De certo modo, é verdade. No entanto, quanto de diferença, do ponto de vista

pragmático? Se o universo de brasileiros que votaram em 2012, segundo o Tribunal Superior

Eleitoral2, é de algo em torno de 140.646.446 (cento e quarenta milhões, seiscentos e quarenta

e seis mil, quatrocentos e quarenta e seis), o fato é que a influência do voto de um único

indivíduo é dado pela fração 1/140.646.446 (um, cento e quarenta milhões, seiscentos e

quarenta e seis mil, quatrocentos e quarenta e seis avos), uma escala microscópica, uma

pulverização tão esmagadora que, em verdade, distancia o indivíduo do centro do Poder, ao

invés de aproximá-lo.

2 Tribunal Superior Eleitoral, Eleições/Estatísticas/Estatísticas Eleições 2012, disponível em http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleicoes-2012, acessado em 29 de outubro de 2013.

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Além da ínfima importância, o voto no atual formato brasileiro (dois turnos 3) não é

inclusivo. Na prática, o que existe é a escolha de um determinado político, realizada por uma

já reduzida parcela votante da população4, a qual é subdividida entre as opções existentes. Ou

seja, um político brasileiro é eleito com base na opinião de 20 (vinte) ou 30 (trinta) por cento

do total da população5, o que, apesar de reduzir a importância do voto individual, permite que

determinado candidato seja escolhido por uma minoria organizada, que utiliza esta

característica do modelo para usurpar do poder de dirigir a nação. A escolha quantitativa

permite tal configuração.

Dessa forma, o voto em sua atual configuração é ilusão de influência, em troca da perda

da liberdade6.

2.2. A OBEDIÊNCIA À “VONTADE POPULAR”

Como visto, o voto não confere um direito real de influência aos seus votantes.

Qualquer grupo com mais destaque, seja por aspectos econômicos ou supremacia da força,

poderá compelir uma pequena parcela da população a eleger determinado candidato,

conforme seus interesses. O ponto subsequente é: existe, de fato, uma “Vontade Popular”?

Como dito por um comediante holandês “democracia é a vontade do povo. Toda manhã eu

fico surpreso em ler no jornal aquilo que desejo!” (Idem, 2013).

Para permitir uma certa governabilidade é necessário assumir que “vontade popular” é

semelhante à vontade da maioria. Aparentemente, o mundo fático não permite colocar as

minorias dentro do mesmo vocábulo, excluindo-a do conceito de “povo”. Se o indivíduo se

localiza dentro de determinada minoria, vencida em eleições, o mesmo deverá comportar-se

conforme as prescrições estabelecidas pelo grupo no poder. Tal característica é ainda mais

agravada pela natureza “indireta” da maioria das democracias pelo globo, justificada

principalmente por (i) ser impraticável organizar referendos diretos para todos os assuntos de

3 Pergunta-se se outros métodos não seriam mais eficazes na inclusão de grupos invisíveis no processo eleitoral. O chamado “Método de Condorcet”, de autoria do matemático do século XVIII, Marie Jean Antoine Nicolas Caritat, o Marquês de Condorcet.4 A população brasileira, segundo o censo de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, já era de 190.732.496 (cento e noventa milhões, setecentos e trinta e dois mil, quatrocentos e noventa e seis) pessoas.5 É o que ocorreu nas eleições para Presidente realizadas em 2010. A candidata Dilma Vana Rousseff sagrou-se vencedora contabilizando 55.752.529 votos, o que representa 29,23% do total da população brasileira para o mesmo ano.6 Embora o presente artigo não permita o exaurimento da questão, uma das alternativas possíveis é a adoção do método de Condorcet nas votações, o que trocaria uma abordagem quantitativa por uma qualitativa.

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governo e (ii) por julgar-se que a “vontade popular” direta não detém a expertise necessária

para decidir sobre todos os tipos de casos complexos.

Assim, não é exatamente a “vontade popular” que se materializa na maior parte das

decisões políticas, tampouco a vontade da maioria, mas a vontade dos políticos, promovidos

por grupos de interesse específicos. Assumir como verdadeiras as duas premissas retrocitadas,

não deveria servir ao afastamento da iniciativa pública do diálogo político, mas para revelar,

peremptoriamente, que o investimento mais urgente em qualquer democracia é aquele

realizado na educação para a cidadania, a fim de que (i) os eleitores exerçam e demandem o

direito de participar nas decisões públicas diretamente e (ii) estejam preparados para exercer

os seus direitos de forma consciente.

2.3. A VONTADE POPULAR CORRESPONDE À VONTADE DA MAIORIA

Talvez a mais complexa premissa da democracia seja a correspondência entre vontade

popular e vontade da maioria, principalmente quando tal assunção é submetida a critérios

suprajurídicos como “certo” ou “errado”. Embora não se queira exaurir tal questão nas poucas

linhas disponíveis, basta admitir que, nem sempre, aquilo que é suportado pela maioria

corresponde ao certo, ou ao verdadeiro. O pior exemplo desta conexão foi o perpetramento

dos horrores do Shoah, durante a Segunda Guerra Mundial, que expuseram o potencial

destrutivo desta assunção.

Inúmeros outros massacres igualmente injustos são perpetrados diariamente por todas as

democracias do mundo. A adoção de um critério quantitativo em detrimento de um

entendimento harmônico ou, ao menos, qualitativo, serve de motor para a fabricação dos

horrores da famigerada “ditadura da maioria”. A lógica vil da democracia foi melhor exposta

pelo político britânico e escritor Auberon Hebert, ao dizer que:

“Cinco homens numa sala. Porque três deles tomam uma visão e os outros dois, outra, os três primeiros têm qualquer poder moral para forçar seu ponto de vista sobre os outros dois? Qual poder mágico apodera-se dos três homens por serem maioria, que logo tornam-se possuidores da mentes e dos corpos dos outros? Se existissem apenas dois e dois, supor-se-ia cada homem dono de sua própria mente e corpo, mas a partir do momento em que outro homem, sabe-se se lá por quais motivos, se junta a um dos lados, este lado passa a ser possuidor das almas e corpos dos demais? Existiria ali alguma degradante e indefensável superstição? Não é esta a descendência de antigas superstições havidas sobre imperadores e altos padres e sua autoridade sobre as almas e os corpos dos homens?” (Idem, 2013)

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2.4. NEUTRALIDADE POLÍTICA DA DEMOCRACIA

Existe uma assunção de que a democracia é compatível com qualquer direção política,

uma vez que as preferências políticas são determinadas pelos partidos no poder, os quais

foram eleitos por meio do voto. Assim, o sistema por si mesmo deveria transcender as

diferenças políticas e admitir, ainda que teoricamente, a inclinação à Direita ou à Esquerda,

conforme o entendimento daquele determinado povo, naquele determinado lugar e tempo. É

como parece.

Acontece que esta é, na melhor das hipóteses, uma meia verdade. democracia é, por

definição, uma ideia coletiva, movida pelo primado de que todos, conjuntamente, deveriam

decidir quais caminhos tomar diante de fatos da vida. Isso corresponde a dizer que, para a

democracia, tudo pode ser matéria pública, inexistindo, fundamentalmente, limites para a

coletivização da esfera individual. Em última instância, se a maioria realmente existir e quiser

impor uma decisão, a mesma será, em algum grau, imposta. Nenhuma liberdade individual é,

por si, sagrada. Isso deixa a porta aberta para uma crescente intervenção governamental em

assuntos particulares.

Não se sustenta, aqui, que o coletivismo para a construção de um bem comum e a

limitação de direitos individuais a fim de evitar abusos não seja, de fato, algo desejável. No

entanto, é testemunhado nos últimos tempos a crescente corrida legislativa para tratar dos

mais diversos temas da esfera individual, o que é feito pelo mesmo grupo de políticos

escolhidos por voto e que representam, em última instância, uma suposta vontade popular. A

democracia, como tem se desenvolvido, tem servido à publicização de interesses privados,

titularizados por grupos que se destacam na eficiência de chagada ao Poder.

Nesse sentido, levada ao estremo, a democracia é, em essência, uma ideologia

totalitária, o que ficou demasiadamente claro durante o regime Nazista.

2.5. A NATUREZA DISTRIBUTIVA DA DEMOCRACIA

Uma das principais expectativas com a democracia é a sua natureza distributiva.

Políticos com frequência sustentam conceitos como solidariedade e justa distribuição de

renda, sem no entanto, determinar a exata forma pela qual se dará tal divisão. De início, antes

de ser dividida, tal renda deve ser produzida. Subsídios governamentais não são de graça,

apesar de nem sempre tal característica ser claramente considerada. No Brasil, a carga

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tributária, em 30 anos subiu de 22,39% (vinte e dois e trinta e nove décimos por cento) para

36,02% (trinta e seis e dois décimos por cento) do Produto Interno Bruto7.

Ou seja, o ganho de escala e apropriação de ganhos de custo marginal não se revela

viável em uma estrutura estatal, a qual produz, a cada ano, com menos eficiência do que no

ano anterior. O resultado de tal equação é a necessidade do aumento da arrecadação e da

apropriação do patrimônio privado a fim de se fazer quitar as obrigações públicas eivadas por

ineficiências. Com isso, a tendência é de majoração de impostos, penalização das camadas

economicamente posicionadas ao centro, as quais arcarão com a justa distribuição da renda e

com o preço do custo da burocracia estatal, enquanto as posicionadas mais abaixo serão

beneficiadas por aquilo que for possível prover e as camadas mais acima serão beneficiadas

por isenções e deduções graças à sua proximidade do centro tomada de decisão no governo.

2.6. A DEMOCRACIA COMO REDUTO DA TOLERÂNCIA E DA LIBERDADE

Outro ponto que parece legitimar a democracia é a sua suposta propensão à promoção

da tolerância e da liberdade, o que merece maior reflexão. Ocorre que, apesar de tudo, se

todos seguissem suas próprias vontades, não seria possível viver em paz, e por aí segue a

sustentação de tal característica da atual democracia.

Para decisões menos importantes da vida talvez tal fato seja verdade. A maior parte das

decisões que são tomadas no dia-a-dia do cidadão, no entanto, não são democráticas. Na

verdade, a tendência de democratização da esfera privada promove o debate daquilo que,

habitualmente, não se manifestaria na esfera pública. Forçar o cidadão a tomar decisões

públicas em assuntos que dizem respeito exclusivamente à sua esfera privada é uma tendência

em todas os regimes democráticos, que continuamente expedem legislações, normas, modelos

a serem seguidos. A tolerância, dessa forma, não é promovida pela democracia, mas imposta

por ela, devendo ser titularizada, normalmente, pelo sujeito mais fraco da relação: as

minorias. Tal assertiva é, por si só, uma contradição.

Por exemplo, é decidido “democraticamente” o que as crianças devem ser ensinadas nas

escolas, o quanto deve ser investido em planos de previdência, se o fumo em bares é

permitido, se o casamento entre pessoas do mesmo sexo é algo juridicamente legítimo, quais

drogas são permitidas ao consumo humano. Todas essas decisões criam muito mais conflito e

7 Conforme estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação disponível em https://www.ibpt.org.br/img/uploads/novelty/estudo/1238/ESTUDOIMPOSTOMETROR1TRILHAO270820132.pdf, acessado em 29 de outubro de 2013.

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custo social do que benefício, ficando de lado decisões relativas a quais doenças deverão ser

atacadas por pesquisas desenvolvidas pelo Estado, quais estações de televisão deveriam

receber subsídios do governo por meio de custeio de publicidade. A discussão sobre o

tamanho e os limites da esfera privada talvez seja mais interessante do que as constantes

discussões acerca da paulatina redução de seus limites.

2.7. DEMOCRACIA PROMOVE A PAZ E O COMBATE À CORRUPÇÃO

O que ocorre internamente encontra eco externamente. As maiores democracias do

mundo são os atores principais das maiores e mais cruéis guerras ao redor do mundo. Os

Estados Unidos da América, reconhecidamente o país que mais alardeia seu caráter

democrático, inicia inúmeras guerras e promove, indiretamente, tantas outras, retirando

governantes de outros países, apoiando ditaduras (inclusive a brasileira) e bombardeando,

com armamento atômico, civis inocentes.

Não se deve esquecer também que os tão lembrados

campos de concentração nazistas foram, em verdade,

inventados pela Inglaterra, a qual também foi a primeira a

reprimir oposição política nas suas colônias utilizando

bombardeio aéreo, destruindo vilas inteiras no Iraque,

durante os anos 20. O império britânico suprimiu inúmeras

revoltas por independência, tais quais as intentadas no

Afeganistão, Índia e Quênia. A Europa ainda pôde observar a intolerância dos Países Baixos,

que logo após a liberação pelo regime nazista, ingressou em guerra contra a Indonésia,

tentando reprimir os movimentos pela independência, da França e da Bélgica, que

massacraram inúmeros movimentos libertários na África, além de tantos outros que não

caberiam neste artigo.

Outro ponto recorrentemente sustentado por democratas é que este regime promove

maior transparência em relação a outros, ou seja, é um veículo de higidez procedimental e

promoção da moral e da ética. Não é o que se testemunha.

Ocorre que a dinâmica política não promove o sujeito mais competente para a execução

do serviço, mas o mais competente para o convencimento público ou a realização de

promessas. Condensar ambos os perfis em um único sujeito é raro, sendo possível afirmar que

normalmente o segundo perfil, manifestado isoladamente, é mais comum do que o primeiro.

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Fonte: Karsten e Beckman, 2013

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Assim, a habilidade de prometer, sem o compromisso de executar, é mais frequente nos

candidatos vitoriosos nas urnas. A questão é ainda mais complexa quando considerados os

altos custos de uma campanha política no país, que incentivam os candidatos a circularem na

alta sociedade e aproximarem-se de empresas no intuito de transigir para custeio da

visibilidade necessária.

Por isso, o dever de transparência é automaticamente mitigado pela dinâmica de acesso

ao poder. O exercício da titularidade do governo não é permitido, na prática, ao grande

público, principalmente pelo seu caráter elitista, registrado pela demanda financeira inerente à

empreitada pelas urnas. Isto, aliado à habitual incompetência, fazem com que o candidato se

transforme em marionete na mão de seus patrocinadores e não objetive o interesse público,

mas a proteção de interesses nitidamente privados.

2.8. DEMOCRACIA COMO OPORTUNIDADE PARA O POVO

Outra característica promovida pelo senso comum em relação à democracia é a de que

somente por ela os indivíduos conseguem o que almejam. Em outras palavras, o que a maioria

quer. Para os crentes no regime democrático, reclamar da democracia é um problema de

esquizofrenia, uma vez que tudo o que foi conquistado seria, em última instância, escolhido

pela “vontade popular”. A assertiva soa bem, mas a realidade, por todas as características

anteriores, é bem diferente.

Exemplo marcante desta falha do sistema é a recente manifestação pelo aumento dos

salários dos professores no Rio de Janeiro, que falhou miseravelmente em seus objetivos e

garantiu apenas o espaço para que o Governo demonstrasse seu distanciamento institucional

daquela demanda popular, aparentemente unânime. Como isso acontece? Não parece ter sido

por falta de democracia, ao contrário, o espaço democrático foi respeitado em seus

procedimentos e tradições.

No entanto a democracia permanece carregando consigo o regime organizacional

inerente à regimes totalitários. A famigerada “burocracia”, deixa claro que as decisões

políticas em qualquer campo são ditadas de cima para baixo e não ao contrário. Isso

corresponde a afirmar que o papel dos professores, estudantes, pais de alunos, é minimizado

ao máximo, sendo certo que sua participação, ainda que promovida por encontros, consultas e

audiências não possui caráter vinculante. O Ministério da Educação elaborará os planos,

regras, requisitos e participará diretamente na discussão de Leis e Regulamentos com um

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papel muito mais forte e independente do que aquele titularizado pelas demais partes

envolvidas na questão. Nesse sentido, o próprio livre mercado parece, por vezes, mais

“democrático”, uma vez que apenas fora do governo as decisões permitem que as partes se

organizem e promovam um diálogo em pé de igualdade.

2.9. A UNIVERSALIDADE DE DEMOCRACIA

Ponto interessante é a impressão geral de que a democracia, como se encontra, é um

modelo ótimo, que entrega o que é legitimamente desejado pelo povo e, por isso, unânime e

imune à críticas. Como questionar o melhor modelo de que dispõe-se? Esta não parece, no

entanto, ser a melhor análise. Ocorre que, em analogia, ao ver alguém na rua andando de

cadeira de rodas, ninguém assume que o faz por ser uma preferência pessoal, mas certamente

por ser a única alternativa à disposição. Para que seja conferido uma preferência pessoal,

necessário é que existam alternativas, ou seja, que a pessoa seja capaz de andar, por exemplo,

e utilize-se da cadeira de rodas por opção8.

O mesmo é aplicável à democracia. A democracia é compulsória, não opcional. Todos

são forçados a dela participar. Indivíduos, bairros, cidades, estados, países, todos devem

permanecer filiados ao ideário democrático, que atualmente se assemelha muito ao ideário

religioso, por basear-se mais em fé do que, essencialmente, em manifestações palpáveis de

sua efetividade. Um sujeito dentro de uma democracia que afirme ser a favor do ideário

democrático soa como um cubano, em território de Fidel, que afirme ter escolhido fumar

charutos nacionais.

Por fim, muitos julgam-se à favor da democracia por inexistir um modelo melhor.

2.10. INEXISTÊNCIA DE UM MODELO MELHOR

Ao afirmar que a democracia é um modelo defeituoso, muitas vezes os interlocutores

demonstram certo desconforto, por intuir, erradamente, se tratar de mais um discurso sobre os

supostos benefícios da Ditadura ou qualquer regime autoritário. Obviamente o que se sustenta

não é a regressão à qualquer modelo autoritarismo exacerbado ou a dominância de um

8 Embora inusitado, o arquiteto Uwe Grahl costuma percorrer as obras que projetou, após prontas, em cadeiras de rodas, a fim de testar sua funcionalidade para pessoas com limitações de mobilidade. Tal prática pode ser observada no vídeo “Cadeira de Rodas – Arquitetura Inclusiva”, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=hKGAyQqBBKo, acessado em 29 de outubro de 2013.

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determinado grupo de supostos escolhidos, cuja moral atávica seja suficientemente torpe para

permitir que submetam seus semelhantes, convictos serem portadores da verdade e da luz. Ao

contrário. A crítica aqui registrada funciona justamente para opor as características da

democracia que se aproximam de tais modelos, deixando clara a falência da alternativa

democrática face ao passado sombrio registrado, por exemplo, no Brasil. Conforme

entendimento de Winston Churchill, sustentando que a democracia é a pior forma de governo,

exceto por todas as outras já tentadas.

Embora não se tenha o mesmo entendimento de Francis Fukuyama (FUKUYAMA,

2006), para quem a forma final de governo será a democracia liberal, é possível tal modelo se

configure em um objetivo a ser atingido para um estágio ainda posterior, que poderá levar a

humanidade, por exemplo, à desnecessidade de um governo. Assim, o passo iniciado com a

Revolução Francesa nunca fora, de fato, alcançado. Tampouco é sustentado que a sociedade,

no atual estágio de evolução no qual se encontra, permitiria um convívio minimamente

saudável, caso viesse a ser suprimido subitamente o governo. A promoção contínua do bem

estar comum, a diminuição dos abismos sociais e a promoção dos Direitos Humanos passa a

ser, em última instância, a razão de existir do Estado e seu governo.

3. BUROCRACIA

A visão da democracia como modelo autoritário de governo passa a ser nítida quando

observados os sistemas pelo qual se relaciona com o cidadão. Em linhas gerais, o núcleo da

democracia não é excludente, todos podem servir-se de sua fonte, no entanto, a realidade

revela não se tratar de um oásis público, mas de uma fonte sigilosa, bem guardada, cujo

acesso é concedido apenas sob certas circunstâncias e condições especiais. A democracia é

circundada por muros muito bem estudados sendo, o mais alto deles, aquele conhecido por

burocracia.

O estudo da democracia iniciou-se por um viés sociológico (WEBER, 2004)

estabelecendo as características fisiológicas da sociologia como manifestação de Estados não

democráticos. Em linhas gerais, o burocrata é formado por uma relação na qual é pago para

comportar-se de determinada maneira. Tal maneira leva em consideração uma maior

eficiência das relações organizacionais dentro do Estado e, por isso, segundo o autor, está

fulcrada nas seguintes características:

a) Legalidade das normas e regulamentos;

12

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b) Formalidade das comunicações;

c) Racionalidade da divisão do trabalho;

d) Impessoalidade nas relações;

e) Hierarquia da autoridade;

f) Competência técnica e meritocracia;

g) Profissionalização/Especialização dos Participantes;

h) Previsibilidade do Funcionamento.

Obviamente, a análise mais acurada revela disfunções da burocracia. Por anular as

interferências pessoais dos personagens envolvidos no processo de desenvolvimento de suas

funções, acaba por permitir e legitimar abusos perpetrados pelos representantes do Poder, os

quais, impregnados dos vícios já abordados sobre o modelo Democrático, acabam por exercer

interesses de uma parcela específica da sociedade e não de uma “vontade popular”. O maior

exemplo desta disfunção foi o genocídio perpetrado na Alemanha Nazista. O estudo de caso

de Adolf Eichmann, registrado por J.P. Stonehouse (STONEHOUSE, 2012), deixa clara a

função opressora da burocracia levada às suas últimas consequências.

Rapidamente foi percebido que a burocracia carregou consigo problemas crônicos dos

governos nos quais se baseou. As suas características iniciais, desenhadas com a finalidade de

garantir a eficiência, logo se deparou com consequências imprevistas que subverteram

completamente o seu propósito e a aproximaram do que genuinamente representa. Dentre as

principais consequências emergidas, cite-se (i) o formalismo exacerbado, (ii) resistência à

mudanças, (iii) despersonalização do relacionamento com o público, (iv) categorização

hierárquica para alocação de capacidade decisória, (v) autoritarismo.

Foi o autor William A. Niskanen (NISKANEN, 2007), que acrescentou outras

características e análises sobre o fenômeno da burocracia, apoiando-se em conceitos jurídico-

econômicos para estabelecer regras do comportamento de seus escritórios (Bureaus). Para o

autor, os escritórios burocráticos são organizações não lucrativas, financiadas, pelo menos em

parte, pela apropriação de quantias ou ajudas financeiras9. No entanto, a máxima da

impessoalidade não é de todo verdadeira. Ocorre que, quando aplicada à figura do

patrocinador (sponsor), torna-se falaciosa: por mais independência que um Ministro ou

9 Para a construção dessa sentença, o autor parte de duas principais assertivas, quais sejam (i) tratam-se de organizações não lucrativas financiadas, pelo menos em parte, pela apropriação de quantias ou ajudas financeiras e (ii) não apropriação de qualquer parte de lucros como forma de remuneração ou bonificação pessoal (NISKANEN, 2008, posição 2625)

13

Page 14: Democracia, Burocracia, Cidadania e Contratualização do Estado

Secretário detenha sob o ponto de vista técnico, fato é que não poderá tomar decisões que

desagradem o Chefe do Executivo. O Estado, é sim, interessado naquilo que produz.

Nesse sentido, a burocracia incorpora uma série de problemas do modelo Democrático,

atendendo ao mesmo como mecanismo de expropriação pública para o serviço à interesses

privados. O ponto a ser defendido é que, nem sempre, a intervenção pública em determinado

segmento vai propiciar uma maior igualdade, ao contrário, poderá servir de modelo

institucional de apoderamento da esfera privada. No entanto, a burocracia também goza de

certo status religioso, dogmático. É aduzido ser um modelo inevitável, falho, como qualquer

modelo humano, mas o mais próximo possível da perfeição. Não é verdade. É possível

afirmar que os problemas apresentados pela burocracia são humanos e atacáveis com medidas

racionalmente desenvolvidas. Abaixo, são listados alguns deles.

3.1. TENDÊNCIA DE AUMENTO DOS ORÇAMENTOS

Como visto no item 1, muitas promessas são feitas durante a campanha, as quais

deverão ser, no momento seguinte à vitória nas urnas, atendidas pelos “titulares” do governo.

Assim, o candidato que se comprometeu com a construção de casas, tenderá a fazer o maior

número de casas possíveis (independentemente da qualidade delas), o que prometeu

saneamento básico, tenderá a firmar contratos para atender o maior número possível de

pessoas (independentemente de efetividade do atendimento). Como o apelo é quantitativo

(“Mais de 20.000 casas construídas”) e não qualitativo (“Todas elas de acordo com regras

básicas debatidas com a população atendida”), o estímulo do titular do orçamento não é a

preocupação com o atendimento de expectativas dos demais participantes da relação, mas o

atendimento, ainda que virtual, das promessas de campanha realizadas com a finalidade de

ganhar as eleições (e nenhum comprometimento com sua viabilidade financeira).

Outro fator que faz com que os agentes públicos, inseridos em um escritório

burocrático, tendam a expandir seus orçamentos, é o fato de que, inicialmente dizem o quanto

vão gastar para, só posteriormente, realizar o gasto. Como inexiste qualquer vantagem,

premiação, ou mesmo apropriação de parte do valor mais eficientemente empregado, o

funcionário público enxerga o risco de errar o orçamento de forma maximizada. A

inexistência de liame direto entre o valor cobrado e o gasto, faz com que o funcionário

público receba um incentivo a posicionar-se de forma conservadora, inchando o seu

14

Page 15: Democracia, Burocracia, Cidadania e Contratualização do Estado

orçamento no maior limite possível, a fim de não ser penalizado por eventual inexistência de

fundos para o atendimento dos Chefes em exercício.

3.2. MAIOR CUSTO DOS INSUMOS

Além da dificuldade de determinar o preço justo para seus insumos, a burocracia possui

em si mesmo um custo de transação (COASE, 1960). Tal custo parte de pressupostos

extremamente desfavoráveis para a iniciativa privada. Ocorre que, principalmente no Brasil, a

burocracia estatal goza de prerrogativas que aumentam a discrepância de risco do negócio em

face, por exemplo, da possibilidade de inadimplência (sistemática dos precatórios), ou o maior

custo transacional relacionado com as exigências burocráticas - o que torna o processo de

contratação mais moroso (custo de tempo), a possibilidade de alteração unilateral dos

contratos - sob a égide de uma pretensa “vontade popular”, eivada de vícios herdados do

modelo democrático (instabilidade política), enfim, ao alargar suas fronteiras, a presença do

Governo leva consigo todos os vícios e custos inerentes ao modelo pelo qual se desenvolve.

3.3. MAIOR CUSTO PELO SERVIÇO PRESTADO

Justamente por configurar-se, na maior parte das vezes, em serviços de natureza

exclusiva, monopolizada, as arquiteturas governamentais baseadas em burocracias (empresas

públicas, sociedades de economia mista, agências, autarquias, etc.) tendem a repassar os altos

custos que promovem para o destinatário final de maneira direta (preço público) ou indiretas

(tributos). Dessa forma, inexiste uma preocupação com a quantificação do serviço, os índices

de eficiência na sua prestação, uma vez que, ao final, o usuário e o cidadão serão compelidos

a complementar eventuais déficits havidos.

Nesse sentido, uma das grandes dificuldades em se discutir o “preço justo” por ativos

públicos eventualmente privatizados é, logo no início da análise, descobrir qual parcela do

custo é realmente inerente à atividade e qual é relativa à compensação pela ineficiência e

riscos. Não sendo possível determinar custos, outras análises também ficam prejudicadas, tais

quais as de aferição de margens e outras. Nesse sentido, é possível perceber que o incremento

no custo final é relevante quando comparado com a solução prestada pela iniciativa privada

(telefonia, por exemplo), que no Brasil, apesar de ainda merecer atenção, é

incomparavelmente melhor do que o serviço prestado no período de estatização de tal serviço.

15

Page 16: Democracia, Burocracia, Cidadania e Contratualização do Estado

3.4. MENOR INCENTIVO À FISCALIZAÇÃO DE SEUS AGENTES

É possível entender que o incentivo para que os órgãos burocráticos de fiscalização

procedam a análise detida das operações de seus colegas do corpo governamental é quase

nula. Qual incentivo um Tribunal de Contas tem em proceder uma fiscalização mais rígida em

uma empresa pública cujo dirigente foi escolhido pelo candidato vencedor de eleições,

vinculado a um partido com o qual, certamente, o Ministro possui relações pessoais? Afinal,

não se deve esquecer que a escolha dos integrantes dos Tribunais de Conta são escolhidos

pelo Chefe do Executivo ou pelos integrantes do Legislativo, ou seja, de forma a deixar, ainda

que no plano pessoal, um vínculo de controle.

Nesse ponto, julgar que a independência ou vitaliciedade poderão desvincular o

fiscalizador e garantir a sua autonomia intelectual em meio ao mesmo ambiente no qual

permanecerá socialmente inserido parece, no mínimo, inocência. É óbvio que os vínculos

pessoais havidos antes (e durante) o processo de escolha permanecerão após a concretização

da mesma. Raros serão os casos em que inexistam vínculos pessoais com os candidatos, o que

se justificaria pela quase “obrigatoriedade” da escolha do candidato face ao reconhecimento

público de sua superioridade frente a outros10.

Ainda nos órgãos que não possuem, em tese, tal vínculo, é possível ver tal desinteresse.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, sempre tão atuante na fiscalização de

crimes perpetrados pela sociedade civil, teve uma participação tímida no combate aos crimes

perpetrados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tal ponto não se deve à uma

“incompetência” ou a um suposto “interesse pessoal” (o que não se descarta”, mas por medo.

Existem influências políticas que podem prejudicar profissionalmente os integrantes do

Ministério Públicos que porventura viessem a se rebelar contra os excessos das instituições

públicas ali envolvidas.

A solução, dessa forma, foi oferecida pela Ordem dos Advogados do Brasil, cujos

integrantes possuem liberdade de concordar com os atos dos órgãos públicos ou ir para as ruas

defender os cidadãos. Felizmente, optaram pela segunda hipótese.

10 É o que parece ter acontecido no caso da escolha do Ministro Luis Roberto Barroso, para o Supremo Tribunal Federal, em 2013.

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Page 17: Democracia, Burocracia, Cidadania e Contratualização do Estado

3.5. INCENTIVO DO AGENTE PÚBLICO EM CHEFIA PARA A

MEDIOCRIDADE

Outra característica econômica da burocracia, gerada com base na sua característica

sociológica da suposta “impessoalidade”, é a tendência do Chefe em exercício em não se

envolver pessoalmente com a entidade. Diferentemente da iniciativa privada, se o referido

agente tiver uma gestão medíocre, mediana, ou mesmo ruim, desde que não ruim o suficiente

para comprometer a eleição ou os negócios de seu patrocinador, seguirá cotado para próximas

eleições ou mesmo futuras chefias de entidades públicas. A assunção de riscos não

representará, em caso de sucesso, benefício direto. Esperar que o espírito altruístico invada os

corações dos gestores públicos para que o mesmo tome riscos, sem qualquer contrapartida

econômica, não parece uma alternativa razoável.

4. CIDADANIA

O movimento constitucionalista é algo recente na história mundial. Apenas nos últimos

300 (trezentos) anos, após as revoluções inglesa (1688), americana (1776) e francesa (1789),

as sociedades trocaram a soberania de seus monarcas pelo liberalismo assegurado pelas

constituições. No Brasil, o mais recente movimento constitucionalista (1988) rompeu com

todas os procedimentos usualmente implementados em tomadas de decisão. Foi um momento

de profundo debate, em todas as camadas sociais, que a democracia e a burocracia não foram

capazes de conduzir para interesses específicos. O povo, após 25 (vinte e cinco) anos de

mordaça, precisava falar. O palco público para o debate foi ampliado pela negativa do projeto

de constituição inicialmente apresentado. O povo sentava-se à mesa de negociações e queria

uma “Constituição Cidadã”.

Talvez por isso, a Constituição de 1988, embora constitua a República Federativa do

Brasil em “Estado Democrático de Direito”, logo apresenta, em seus inciso II, a “cidadania”

como um de seus fundamentos, ao lado da (i) soberania, da (ii) dignidade da pessoa humana,

dos (iii) valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do (iv) pluralismo político. Embora

devam ser reconhecidos todos os demais valores, é a cidadania que parece carecer de maior

atenção, face aos ataques procedidos pelas vicissitudes da democracia e da burocracia.

Cumpre então verificar a carga semântica dessa tal “cidadania”.

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Alguns estudiosos iniciaram o caminho da discussão para a descoberta das fronteiras

que identificam a cidadania, com algumas contribuições valiosas. É o caso do modelo

marshalliano, que identifica a cidadania como uma manifestação que pressupõe a existência

da efetiva capacidade de participação do povo no exercício do poder político, o que se traduz

na existência de um processo eleitoral autêntico, supervisionado por instituições judiciárias

independentes, que garantam a correspondência entre o resultado das eleições e a vontade

eleitoral da maioria social e, de outro lado, a existência de governantes que de fato governem,

o que supõe a presença de um Parlamento forte, efetivamente participante na tomada das

grandes nacionais. Como já visto, o procedimento eleitoral razoável, a independência das

instituições fiscalizadoras e a existência de governantes que de fato governem são requisitos

poucos razoáveis dentro de uma democracia. No entanto, é válido o registro de que a

cidadania é algo a ser titularizado pelo povo e não pelo político no poder.

Outro autor, Décio Azevedo Marques (MARQUES, 2001), identifica a cidadania

“propriamente política” como um desdobramento secundário e contingente da forma-sujeito

de direito na sociedade capitalista11. Assim, a aquisição da cidadania é construída por meio

das liberdades civis configuradas, no plano econômico, pela capacidade de celebração de

contratos de trabalho e a contribuição para o florescimento de um mercado de trabalho e, no

plano político, pela legitimação do Estado capitalista, ainda que se baseie em mecanismos

pré-democráticos como, por exemplo, a burocracia. Essa definição, no entanto, é fulminada

pelo mesmo destino do modelo marshalliano, por basear-se em uma estrutura não “pré-

democrática”, como julga Marques, mas “anti-popular”, já foi exposto anteriormente.

Importa, no entanto, o entendimento de que a cidadania é observada como um núcleo baseado

no que se entende pela “forma-sujeito de direito”.

Nesse sentido, parece razoável o entendimento que configura a cidadania como um

núcleo, o qual permite identificar o indivíduo como destinatário de proteções e direitos de

todo um Estado e que, por espelhamento, o faz seguidor de regras e deveres que permitam, ao

máximo, a expansão do círculo de direitos dos seus concidadãos. Assim sendo, o

entendimento desse núcleo é ultrajurídico e extraeconômico, uma vez que é garantido, a todo

cidadão, independentemente de sua posição socioeconômica, contribuir para a construção de

um Estado legítimo e opor-se, quando necessário a este fim, à ordens manifestadamente

11 Para o referido autor, a forma-sujeito de direito implica a corporificação de liberdades que são reais, ainda que sejam desigualmente distribuídas entre as classes sociais (liberdades ou prerrogativas essas que correspondem ao aspecto concreto da cidadania civil), a qual ecoa em um efeito ideológico de cidadania, ou seja, que a concessão de tais prerrogativas igualiza todos os indivíduos, o que aumenta no plano social o próprio ideal de igualdade.

18

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ilegais, ainda que emanadas de autoridades públicas12. Nessa perspectiva, a obediência aos

preceitos constitucionais emanados de uma Carta com participação direta de inúmeros grupos

heterogêneos, dá um grau de legitimidade maior do que qualquer outra norma que venha a ser,

posteriormente, imposta pelo Estado.

Dessa forma, o que se testemunha como suposta crise por pouca democracia é, de fato,

uma crise de pouca cidadania. É este âmbito nuclear, que promove o reconhecimento mútuo

entre os cidadãos, que tem sofrido constantes minorações, sob o discurso retórico e falacioso

de que “falta democracia”, promovendo distanciamentos cada vez maiores entre os mais

diversos segmentos da sociedade, justamente por agravar os males perpetrados pela

burocracia que lhe é inerente.

5. CONTRATUALIZAÇÃO DO ESTADO

No início dos anos 80, tendo por pano de fundo toda a discussão anteriormente

registrada, o mundo ingressou em uma série de debates sobre a função e extensão do Estado

Democrático. No Brasil, o tema ganhou relevância peculiar, pelo histórico de recorrentes

regimes totalitários (alguns Democráticos) que promoveram uma enorme invasão nas esferas

individuais, atuando, inclusive, como agentes econômicos. Tal interferência, aumentou as

fronteiras da burocracia de forma exacerbada, carregando consigo todas as suas

peculiaridades e ineficiências, obliterando a maior parte das iniciativas privadas de caráter

verdadeiramente empreendedoras do Brasil.

Tal aumento ensejou, em meados dos anos 90, uma enorme crise fiscal e o esgotamento

da estratégia estatizante, desafiando os gestores públicos (altos burocratas) a rever seu

posicionamento: valeria indispor-se com os patrocinadores, ou o caminho levaria ao total

esgotamento financeiro do país? Para isso, conforme registrado no Plano Diretor da Reforma

do Aparelho do Estado (“PDRAE”), foi necessário enfrentar peremptoriamente (i) o

ajustamento fiscal duradouro, (ii) reformas econômicas orientadas par o mercado, (iii)

reformas previdenciárias, (iv) renovação/inovação dos instrumentos de política social

(promovendo aumento qualitativo da prestação) e, por fim, (v) a efetiva reforma do aparelho

do Estado.

12 Conforme entendimento registrado pelo voto do Ministro Maurício Corrêa, em sede do Habeas Corpus n. 73.454, julgado em 22 de abril de 1996, na Segunda Turma, cujo acórdão fora publicado no Diário Oficial da União de 07 de junho de 1996, para quem “Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito”.

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Ao analisar as propostas, verificou-se que a única alternativa viável era a redução do

tamanho da burocracia, a fim de se atacar os problemas inerentes à sua presença ostensiva

prolongados no tempo. Nessa perspectiva, o recuo estatal não poderia representar a

desassistência sob sua obrigação. Buscou-se, dessa forma, o fortalecimento das funções de

regulação e de coordenação do Estado, particularmente no nível federal, e a progressiva

descentralização vertical, para os níveis estadual e municipal, das funções executivas no

campo da prestação de serviços sociais e de infraestrutura.

A Administração Patrimonialista, que evoluiu/transfigurou-se em Administração

Burocrática, perde espaço para a Administração Consensual-Gerencial, a qual por algumas

características que lhe são peculiares, tem o condão de anular/minorar as configurações

nocivas da democracia e da burocracia, principalmente por atrair, para si, os holofotes da

opinião pública e da fiscalização pelo Estado, que deixa de se colocar em conflito entre sua

carreira e suas obrigações.

A seguir, algumas dessas características são analisadas.

5.1. DEFINIÇÃO PRECISA E COMPROMETIMENTO COM OBJETIVOS

Diferentemente do que se procede com o mandato popular, os contratos com a

Administração, principalmente quando versam sobre interesses inegavelmente públicos, não

transferem ao particular uma “carta em branco” para que faça “o seu melhor”, em semelhança

ao mandato político. Existe um esforço em se racionalizar a relação, transformando-a em

objetivos claros, possíveis e interessantes para a população, os quais deverão ser forçosamente

atingidos, sob pena de efetiva agressão ao patrimônio público do particular. A simples

discussão de tais objetivos, ponto a ponto, já traz em si uma inovação frente ao que se pratica

em sede do mandato público, onde o projeto de governo não promove qualquer vinculação do

candidato à sua posterior performance.

Com isso, caso determinado contrato deixe de ser cumprido, por má-fé ou

incompetência, a reação imediata da fiscalização e da população é a exigência imediata dos

valores pagos13 e o acionamento de eventuais multas e garantias. Inexiste, no entanto, a

penalização da incompetência no âmbito político, sendo certo que o Administrador nada pode

13 É óbvio que a burocracia permeia tanto o sistema público que, ao resolvê-la em um setor, outro passa a ser fator limitante para a consecução dos objetivos. Embora a população e órgãos sérios busquem a restituição de valores, fato é que a morosidade do sistema burocráticos judiciário inviabiliza qualquer eficácia das soluções previstas em lei.

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sofrer quando é revelado inapto ao mandato popular para o qual foi designado pela

sistemática de votos. Em harmonia com este entendimento, por exemplo, a legislação de

parcerias público-privadas, Lei 11.079/04, foi bastante clara em prever no §1ºdo seu art. 6º, a

possibilidade de pagamento proporcional ao parceiro privado, correspondente ao seu

desempenho, ou seja, à sua eficiência e eficácia.

5.2. VÍNCULO IMEDIATO ENTRE EXECUÇÃO E PAGAMENTO

Como já abordado anteriormente, uma das características da orçamentação burocrática é

a assunção de uma postura extremamente conservadora frente aos desafios assumidos pelo

escritório. Esta característica, em conjunto com a inexistência de qualquer incentivo imediato

à tomada de risco (apropriação financeira da eficiência, por exemplo), fazem com que exista

uma diferença considerável entre o que é estimado pelo Administrador e o que é possível de

ser executado pelo parceiro privado.

Além disso, a lógica é invertida. Enquanto, na Administração, o burocrata (i) apresenta

o orçamento e consegue a aprovação, (ii) recebe o dinheiro e (iii) executa, a iniciativa privada

(i) orça e submete o orçamento à aprovação, (ii) executa e, só após comprovar a execução,

(iii) recebe o dinheiro. A inversão das fases do processo garante o incentivo necessário à

adequação do orçamento à execução, bem como a utilização eficiente dos recursos que,

quando feita de maneira ótima, garante o máximo de lucratividade.

5.3. COMPETITIVIDADE E FISCALIZAÇÃO

Embora seja passível de inúmeras críticas, o processo licitatório, e seus critérios

baseados na capacidade de execução de determinada atividade, faz com que a análise dos

participantes se dê de acordo com uma abordagem qualitativa. Assim o fez a Lei 8.666/93,

quando requereu a apresentação de atestados técnicos e a comprovação de capacidade

econômica, dentre outros requisitos, para a escolha de um parceiro privado para a realização

de determinado contrato. O intuito, ao que parece, foi preservar a imparcialidade da decisão

sem, no entanto, prejudicar a escolha do mais hábil para a tarefa.

A competitividade é, assim, um traço desejável ao procedimento de contratação. Como

a dinâmica não está fulcrada em uma relação que reconhece como legítima a troca de favores

(como ocorre na política), a competição econômica por contratos da Administração tende a

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arranjos arquitetônicos que visem, principalmente, a otimização de capital. Quando tal

característica é corrompida, ainda existe o benefício de tal traço ser facilmente detectável pelo

fiscalizador (ainda que seja o próprio público), pois a clareza dos requisitos permite, mais

rapidamente, verificar a conformidade na execução do certame.

5.4. EXTROVERSÃO VERSUS GESTÃO COOPERATIVA, ALOCAÇÃO DE

RISCOS

Característica marcante do Estado, por meio das suas instituições, é a capacidade de

instituir obrigações de forma unilateral para terceiros, extravasando riscos que não deseja, ou

não sabe, tomar, alocando ineficientemente as questões de forma a, em maior parte das vezes,

tender ao extravasamento dos seus próprios limites. Cabe ao Direito Constitucional e ao

Direito Administrativo, como ferramentas jurídicas, cujo approach econômico se faz

necessário para que se garanta efetividade, ditar os caminhos e os limites para que tal

atividade se desenvolva.

Dessa forma, a correta alocação de riscos e obrigações, de acordo com capacidade de

gestão e aptidão de execução, não permite uma amarração jurídica excessiva, devendo abrir

espaço para a negociação feita com vias a defender o dinheiro público da maneira

economicamente eficiente e com a aplicação com a maior eficácia são atendimento do bem

comum.

É nesse processo que surgem soluções desejáveis como, por exemplo, as concessões e

as parcerias público-privadas. Ao contrário do que algumas linhas jurídicas, às quais se filiam

juristas do quilate de Celso Antônio Bandeira de Mello (MELLO, 2013), pretendem afirmar, a

cooperatividade não é uma forma de subversão do interesse público, tampouco uma

demonstração de fraqueza. Trata-se de uma posição extremamente autoritária o entendimento

de que o interesse público só pode ser alcançado por meio da imposição unilateral de

vontades, o que representa, em última instância, a legitimação do autoritarismo democrático,

ou seja, a legitimação da característica da democracia que se visa combater.

6. CONCLUSÃO

A verificação de que a democracia, como hoje construída, possui similitudes perigosas

com os sistemas mais flagrantemente autoritários, não deve conduzir à conclusão de que

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qualquer esfera de autoritarismo é a solução. Ao contrário, o autoritarismo foi, é, e será

sempre um problema a ser combatido, permanecendo presente, com frequência, tanto no

discurso apaixonado dos que se refugiam no Estado como solução ótima, quanto nos que

julgam que o liberalismo na sua mais pura forma exercerá sempre o equilíbrio (Ditadura

Econômica). A história e a experiência humana desenham panoramas catastróficos em

quaisquer cenários.

Dessa forma, a discussão não leva, em qualquer ponto, ao entendimento de que a

solução passa por distanciar o povo do centro de poder, mas o oposto. Urge o convite ao

diálogo popular, aproximado entre os burocratas e políticos do seu público eleitor,

concedendo e respeitando cada vez mais as liberdades, incentivando a livre associação e

investindo, no indivíduo, como matriz que integrará o governo, quando partir da esfera social

para integrar um corpo burocrático, o qual necessariamente paira sobre certa altura da

realidade das ruas.

Alguns estudos indicam que nem sempre o político age de forma tão moralmente falida

e economicamente ótima (FARBER e FRICKEY, 1991). E, neste ponto específico, tal

característica não se dá pela sua incompetência. De fato existe o político honesto e o burocrata

sensível para o problema do cidadão, no entanto, tais perfis não são a praxe e não

representam, dentro ou fora do governo, uma parcela relevante da população. O que ocorre

com os modelos políticos, quaisquer que sejam, é que os mesmos não extrapolam as virtudes

nas sociedades nas quais se inserem. Como a matriz humana por detrás dos institutos provém

do povo, é deste as características que serão replicadas em escala macro.

Com isso, não se nega a importância da participação do Estado, enquanto abstração da

força pública, na realização de investimentos públicos em infraestrutura básica, que garantam

um mínimo existencial com dignidade. Todavia, importa perceber que tais dispêndios,

necessários e urgentes, garantirão apenas o insumo bruto da população, sendo a educação, em

todo o seu espectro de possibilidades, a real garantia de efetiva lapidação dessa matriz

humana que servirá de enchimento para a arquitetura política do sistema. Dessa forma, não se

sustente que a “sociedade não está preparada para a democracia”, mas que a “democracia só

será superada como sistema quando inserida em uma sociedade apta a desenvolver um

modelo mais eficiente”. É a sociedade, como dona de seu caminho, que prepara a democracia

que deseja.

7. REFERÊNCIAS

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Page 24: Democracia, Burocracia, Cidadania e Contratualização do Estado

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