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Manual do Candidato Política Internacional

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Page 1: Demétrio Magnoli - Politica Internacional

Manual do Candidato

Política Internacional

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Presidente Thereza Maria Machado Quintella

Diretor Álvaro da Costa Franco

Diretor Heloísa Vilhena de Araújo

A Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério dasRelações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e aspectos dapauta diplomática brasileira.

Com a missão de promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e paraa política externa brasileira, a Funag promove atividades de natureza cultural e acadêmica que visam a divulgação e aampliação do debate acerca das relações internacionais contemporâneas e dos desafios da inserção do Brasil no contextomundial.

Fomentando a realização de estudos e pesquisas, organizando foros de discussão e reflexão, promovendo exposições,mantendo um programa editorial voltado para a divulgação dos problemas atinentes às relações internacionais e àpolítica externa brasileira, estimulando a publicação de obras relevantes para o conhecimento da histórica diplomáticado Brasil, a Funag coloca-se em contato direto com os diferentes setores da sociedade, atendendo ao compromisso com ademocracia e com a transparência que orienta a ação do Itamaraty.

Ministério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo70170-900 Brasília – DFTelefones: (61) 411 6033/6034/6847Fax: (61) 322 2931, 322 2188

Palácio ItamaratyAvenida Marechal Floriano, 196Centro – 20080-002 Rio de Janeiro – RJTelefax: (21) 233 2318/2079

Informações adicionais sobre a Funag e suas publicações podem ser obtidas no sítio eletrônico: www.funag.gov.bre-mail: [email protected]

FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO

CENTRO DE HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DIPLOMÁTICA

INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

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IRBr – Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata

Manual do Candidato

Política Internacional

Demétrio Magnoli

3ª ediçãoatualizada e revisada

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M 198 Magnoli, Demétrio, 1958 –Manual do Candidato: Política Internacional / Demétrio Magnoli.

– 3. ed. atual. e rev. – Brasília : Funag, 2004. 380p. ;

ISBN 85-87480-06-5

1. Instituto Rio Branco (IRBr) – Concurso de Admissão à Carreira Diplomática2. Serviço Público – Brasil – Concursos. 3. Política Internacional. I. Fundação Alexandrede Gusmão. II. Título.

CDD-354.81003

Copyright (©) 2004 Demétrio Magnoli

Direitos de publicação reservados à

Fundação Alexandre de Gusmão (Funag)Ministério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo70170-900 Brasília – DFTelefones: (61) 411 6033/6034/6847/6028Fax: (61) 322 2931, 322 2188Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

Palácio ItamaratyAvenida Marechal Floriano, 196Centro – 20080-002 Rio de Janeiro – RJTelefax: (21) 233 2318/2079Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

Impresso no Brasil 2004

Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacionalconforme Decreto n° 1.825 de 20.12.1907

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Apresentação

A Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) oferece aos candidatos aoConcurso de Admissão à Carreira de Diplomata, do Instituto Rio Branco (IRBr),do Ministério das Relações Exteriores, a série Manuais do Candidato, com novevolumes: Português, Política Internacional, História do Brasil, História Mundial,Geografia, Direito, Economia, Inglês e Francês1.

Os Manuais do Candidato constituem marco de referência conceitual,analítica e bibliográfica das matérias indicadas. O Concurso de Admissão, porser de âmbito nacional, pode, em alguns centros de inscrição, encontrarcandidatos com dificuldade de acesso a bibliografia credenciada ou a professoresespecializados. Dada a sua condição de guias, os manuais não devem ser encaradoscomo apostilas que por si só habilitem o candidato à aprovação.

A Funag convidou representantes do meio acadêmico com reconhecidosaber para elaborarem os Manuais do Candidato. As opiniões expressas nos textossão de responsabilidade exclusiva de seus autores.

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SUMÁRIO

Unidade I – O sistema internacional de Estados:história e conceitos ............................................................. 9

1 – Os diplomatas, o Estado e a sociedade .........................................112 – O estudo de Relações Internacionais ............................................173 – O sistema multipolar europeu do século XIX...............................294 – As guerras do século XX e as origens da Guerra Fria ....................515 – O sistema bipolar e universal da Guerra Fria ...............................676 – Bibliografia recomendada .............................................................87

Unidade II – A Ordem Internacional pós-Guerra Fria:tendências ..........................................................................89

1 – Globalização e Estado-Nação .......................................................912 – “Pax americana”? ........................................................................... 1003 – Europa e Sistema Internacional ..................................................1104 – Potências emergentes: Japão e Alemanha ...................................1295 – Rússia na encruzilhada ...............................................................1386 – Evolução política e econômica da China ....................................1527 – A ONU diante da “nova Roma”..................................................1638 – Globalização, regionalização e multilateralismo ........................1719 – Islã e Ocidente .............................................................................18110 – Indostão nuclearizado ...............................................................19211 – Bibliografia recomendada .........................................................196

Unidade III – As américas: política e economia .................. 201

1 – Estados Unidos e América Latina ...............................................2032 – Democracia política e reformas econômicas ..............................2203 – Cone Sul e Mercosul ....................................................................2444 – Questão cubana...........................................................................2715 – Narcotráfico e relações internacionais ........................................2786 – Bibliografia recomendada ...........................................................284

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Unidade IV – política externa brasileira:condicionantes e delineamento ........................................ 286

1 – Molduras histórica e econômica .................................................2892 – Brasil e ordem econômica mundial .............................................3043 – Reforma da ONU e questão norte-sul ........................................3214 – Cenário americano, Mercosul e Alca ..........................................3325 – Soberania e diplomacia: a questão ambiental ............................3436 – Soberania e diplomacia: a questão nuclear .................................3577 – Bibliografia recomendada ...........................................................375

Siglas das Intituições e Organismos Internacionais .........................379

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UNIDADE I

O SISTEMA INTERNACIONAL DE ESTADOS:HISTÓRIA E CONCEITOS

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O SISTEMA INTERNACIONAL DE ESTADOS: HISTÓRIA E CONCEITOS

1 – OS DIPLOMATAS, O ESTADO E A SOCIEDADE

Na Grécia Antiga, embaixadores eram enviados em missõesespeciais para as diferentes cidades-Estado, a fim de entregar mensagens,intercambiar oferendas e sustentar os pontos de vista de seu povo diantedos governantes. Nessas práticas esporádicas se encontra a origem dadiplomacia. Já naquele tempo, o diplomata personificava a existência deuma entidade política e, portanto, a distinção entre o público e o privado.

A diplomacia renascentista italiana lançou as bases da modernaatividade diplomática. As condições de anarquia reinantes no sistemadas cidades-Estado italianas e o agudo sentido de insegurança dasunidades políticas formaram o terreno histórico tanto para as intermináveisguerras de conquista quanto para a generalização de códigos e práticasdiplomáticas que ainda sobrevivem. Foi naquele período que se consolidouo uso de embaixadores permanentes, constituíram-se as chancelariasestáveis, formularam-se as garantias de imunidades diplomáticas e osprivilégios de trânsito e acesso a informações, estabeleceu-se o conceitode extraterritorialidade das missões estrangeiras.

O moderno sistema de Estados, que emergiu na Europa setecentista,foi o ambiente no qual se definiu a missão do diplomata – a defesa dointeresse nacional na arena internacional. Desde aquela época, apresença de corpos diplomáticos estrangeiros nas capitais políticastornou-se sinal da existência de uma “sociedade de Estados”, cujascaracterísticas e regras constituem o cenário no qual se formulam asestratégias nacionais. Assim, se o diplomata representa os interesses deum Estado particular, a diplomacia simboliza a consciência geral deque há uma sociedade internacional.1

Hedley Bull identifica, além dessa função simbólica, outras quatrofunções da diplomacia no interior do sistema internacional:

1 “...in the global international system in which states are more numerous, more deeply divided and lessunambiguously participants in a common culture, the symbolic role of the diplomatic mechanism may for thisreason be more important. The remarkable willingness of states of all regions, cultures, persuasions and stagesof development to embrace often strange and archaic diplomatic procedures that arose in Europe in another ageis today one of the few visible indications of universal acceptance of the idea of international society.” (HedleyBull, The Anarchical Society: A Study of World Politics. London: The Macmillan Press, 1977, p. 183).

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1. Facilitar a comunicação entre os líderes políticos dos Estados. A essepapel de mensageiros, desempenhado pelos diplomatas, estáassociado o privilégio da imunidade e o direito de trânsito.

2. Negociar acordos entre os Estados. Esse papel de mediação epersuasão se baseia no interesse nacional mas exige a identificaçãodos interesses compartilhados pelas unidades políticas. Ele nãopode se realizar sem o reconhecimento da legitimidade dos interessesdas demais unidades políticas e, portanto, distingue a atividadediplomática da busca, moral ou religiosa, da imposição de umaautoridade universal.

3. Reunir informações relevantes sobre as demais unidades políticas.Essa atividade de inteligência se realiza num duplo sentido: aomesmo tempo que obtém acesso a informações vitais sobre os Estadosestrangeiros, o diplomata busca preservar na obscuridade asinformações percebidas como vitais por seu próprio Estado. Adimensão de inteligência da diplomacia é aceita e reconhecida comolegítima no sistema internacional, ao menos enquanto as fronteirasque a separam da espionagem permanecem nitidamente discerníveis.

4. Minimizar as fricções no relacionamento entre Estados. A existênciade fricções é inerente ao sistema internacional e reflete não só apresença de interesses nacionais diferentes como também adiversidade de culturas, valores e atitudes. A função de redução dasfricções está associada à utilização das convenções diplomáticas,que são instrumentos para o estabelecimento de uma linguagemcomum que enfatiza regras, princípios e direitos, reduzindo oscampos do exercício do orgulho e da vaidade nacionais.

A segunda das funções identificadas por Bull merece atenção especial,pois por ela emerge a distinção entre a política externa em tempos normaise a política externa revolucionária. No moderno sistema internacional,esta última é encarada como patologia, e os períodos nos quais prevalece,como transições turbulentas que provocam a suspensão, ou o congelamento,dos padrões reconhecidos de relacionamento entre os Estados.

Em tempos normais, a política externa baseia-se no reconhecimentoda legitimidade dos interesses nacionais estrangeiros. Mas a política

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externa revolucionária nada reconhece a não ser o conjunto de princípiosem torno dos quais o mundo deve ser transformado.

Esse foi o caso da política de Napoleão, voltada para a transformaçãorevolucionária da Europa, cuja meta não se restringia a derrotar osEstados inimigos mas ambicionava “reinventá-los”, suprimindo em todasas partes as dinastias e as instituições do Antigo Regime.2 Emcircunstâncias diferentes, a União Soviética de Lenin e Trotsky, entre1918 e 1921, e a Alemanha de Hitler se engajaram na “reinvenção domundo”, rompendo as regras reconhecidas da política externa.

O interesse nacional

Na formulação clássica de Aron, em seu Paz e Guerra entre as Nações,os objetivos dos Estados definem-se por uma série tríplice de conceitos:a segurança, a potência e a glória. O primeiro referencia-se na defesae na expansão do território, o segundo na submissão dos homens, oterceiro no triunfo das idéias ou das causas.

Mas o valor relativo e o significado de cada um desses objetivosestão sujeitos às circunstâncias históricas. Cada coletividade política,no seu tempo e em função da sua cultura, confere concretude a tais conceitos,formulando a seu modo o interesse nacional. A política externa é a arteda tradução do interesse nacional nas linguagens da estratégia e da tática.A diplomacia é um dos instrumentos da política externa; o outro, é a guerra.3

2 Henry Kissinger explica, no seu A World Restored: Castlereagh, Metternich and the Restoration of Peace,1812-1822, o sentido profundo da noção de restauração do Congresso de Viena. Não se tratavaunicamente de restaurar os regimes “legítimos” suprimidos por Napoleão mas, no curso dessa empresa,de restaurar a normalidade do sistema internacional como um todo, reinstalando o princípio dalegitimidade dos interesses nacionais.

3 A famosa fórmula de Clausewitz, “a guerra não é apenas um ato político, mas um instrumento realda política, uma busca de relações políticas, uma realização de relacionamento político por outrosmeios, não é absolutamente a manifestação de uma filosofia belicista, mas a simples constatação deuma evidência: a guerra não é um fim em si mesma, a vitória não é por si um objetivo. O intercâmbioentre as nações não cessa no momento em que as armas tomam a palavra: o período belicosoinscreve-se numa continuidade de relações que é sempre comandada pelas intenções mútuas dascoletividades.” (Raymond Aron, Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: UnB, 1986, p. 71). Essaposição clássica está, contudo, sujeita à crítica: “Na verdade, Clausewitz parecia perceber a políticacomo uma atividade autônoma, o local de encontro das formas racionais e forças emocionais, naqual razão e sentimento são determinantes, mas onde a cultura – o grande carregamento de crenças,valores, associações, mitos, tabus, imperativos, costumes, tradições, maneiras e modos de pensar,discurso e expressão artística que lastreia toda sociedade – não desempenha um papel determinante.”(John Keegan, Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 64).

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O modo como se formula o interesse nacional reflete o tipo deorganização das coletividades políticas. Os regimes autocráticos nãopodem formulá-lo do mesmo modo que as oligarquias, as teocracias ouas democracias, para fazer referência apenas aos tipos “puros” deregimes.4 Em conseqüência, suas políticas externas serão orientadas pormetas, estratégias e táticas diferentes. É, aliás, esse o fundamento datese, muito discutida, segundo a qual a guerra entre democracias é umevento improvável.5

Além disso, o interesse nacional reflete a identidade nacional. Afoma como as nações percebem o seu próprio passado e como o narram,a consciência do seu “lugar no mundo”, os valores e as ambições queprojetam no futuro – em outros termos, a sua identidade – são as fontesdas quais deriva o interesse nacional. É por essa razão que a políticaexterna constitui dimensão profunda e bastante perene da vidanacional. As suas oscilações periódicas, associadas à mudança degovernos, normalmente não chegam a afetar o rumo subjacente, queo diplomata deve ser capaz de discernir em meio às urgências domomento.

Há apenas um século, a função econômica do Estadopraticamente se circunscrevia à defesa da “santidade da moeda”. Aprojeção do interesse nacional aparecia como empresa separada domundo dos negócios, ainda que, com certa freqüência, as potênciasocidentais mobilizassem esquadras para implementar, pela “diplomaciadas canhoneiras”, as políticas de portos abertos que correspondiam aosinteresses das corporações industriais.

Ao longo do século XX, e em particular no pós-guerra, essepanorama mudou radicalmente. A Grande Depressão e o keynesianismo

4 S. E. Finer. The History of Government (New York: Oxford University Press, 1997, vol. I, p. 34-58),apresenta uma tipologia de regimes e propõe denominar esses tipos “puros” como Palácio, Nobiliarquia,Igreja e Fórum.

5 Para uma defesa dessa tese, veja-se o ensaio de Strobe Talbott, “Democracy and the NationalInterest” (Foreign Affairs, November/December, 1996) e, com ênfase ainda maior, a obra de SpencerR. Weart, Never at War: why democracies will not fight one another. New Haven: Yale UniversityPress, 1998. Para uma crítica de Talbott, a resenha de John L. Harper, “The Dream of DemocraticPeace” (Foreign Affairs, May/June, 1997), e de Weart, a resenha de Stephen M. Walt, “Never SayNever” (Foreign Affairs, January/February, 1999).

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reorganizaram as agendas dos Estados, transformando-os,definitivamente, em indutores ou reguladores da economia. Asinstituições de Bretton Woods e as agências da ONU ligadas aodesenvolvimento formaram a moldura para a negociação internacionalde temas econômicos. A integração crescente dos mercados, a aceleraçãodos fluxos de capitais e a criação de blocos econômicos regionaisacentuou extraordinariamente a importância do mundo dos negóciosna formulação da política externa.

Nos anos 60, o presidente francês Charles De Gaulle recusou-se areceber um primeiro-ministro japonês cuja comitiva era integrada porindustriais, sob o argumento de que o chefe de governo estrangeiro nãopassava de um “vendedor de transistores”. Esses tempos já vão longe:George Bush visitou o Japão acompanhado pelos altos executivos das“Três Grandes” de Detroit, Bill Clinton atribuiu funções diplomáticasdestacadas aos representantes do Departamento de Comércio dosEstados Unidos e Jacques Chirac, o herdeiro do general De Gaulle, aderiuao hábito de incluir os líderes empresariais nas suas comitivas oficiais.

A chancelaria

Os diplomatas renascentistas, avaliados segundo padrõescontemporâneos, seriam considerados especialmente corruptos eimorais. As suas práticas, contudo, inscreviam-se numa época anteriorà consolidação do Estado-nação e à nítida separação entre as esferaspública e privada. Esse último processo correspondeu, no âmbito daorganização das chancelarias, à profissionalização dos corposdiplomáticos e, portanto, à criação de métodos de recrutamento e regrasde carreira baseados no mérito.

Historicamente, as políticas de profissionalização dos corposdiplomáticos só foram deflagradas, nos países pioneiros, na segundametade do século XIX. Antes disso, os diplomatas eram recrutados nocírculo restrito das elites que gravitavam em torno das cortes e dosgovernos. Naquelas condições, a carreira desenvolvia-se de acordocom regras informais, dependentes muitas vezes de laços pessoais oufamiliares. A herança dessa época sobrevive em hábitos e atitudesde solidariedade entre diplomatas de diferentes países e em certa

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cultura aristocrática que se dissolve aos poucos, sob o impacto daprofissionalização.6

Nas Américas, a organização das chancelarias contemporâneastem raízes nas reformas empreendidas no entreguerras. Nos EstadosUnidos, o grande marco é o Rogers Act, de 1924, que unificou os serviçosdiplomático e consular num único corpo, cujas regras de recrutamentoe carreira deveriam estar baseadas no mérito. A finalidade explícita dareforma consistia em assegurar a autonomia da chancelaria frente àsdisputas políticas e à concorrência partidária no Congresso. O diplomatatornava-se um profissional a serviço do Estado nacional.7

No Brasil, a organização racional e burocrática da chancelariaacompanhou a modernização do próprio Estado, na década de 1930.As reformas Mello Franco, de 1931, e Oswaldo Aranha, de 1938,unificaram o serviço diplomático e estabeleceram as regras de carreirabaseadas no mérito. A criação, em 1945, do Instituto Rio Branco (IRBr),destinado à seleção e à formação de diplomatas, pode ser vista como aculminância do período de reformas.8

Nas últimas décadas, no mundo inteiro, as chancelariasexperimentaram as repercussões da crescente burocratizaçãoinstitucional dos Estados. A competição entre os Poderes Executivo eLegislativo e a concorrência entre órgãos diversos da administraçãotendem a minar a autonomia dos serviços diplomáticos e a dissolver oseu monopólio sobre a própria condução da diplomacia.

6 “The solidarity of the diplomatic profession has declined since the mid-nineteenth century, when diplomatistsof different countries were united by a common aristocratic culture, and often by ties of blood and marriage,when the number of states was fewer and all the significant ones European, and when diplomacy took placeagainst the background of “the international of monarchs” and the intimate acquaintance of leading figuresthrough the habit of congregating at spas.” (Hedley Bull, op. cit. p. 182-183).

7 “To this end, the service was to be largely self-administered. Those charged with running it would be seniorcareer officials of the service itself or the State Department (...); ultimate authority was to rest with thesecretary of state. The members of the new service, in other words, were to be held to many of the samestandards of honor, discipline and dedication as commissioned officers of the armed forces, and theirnonpolitical status, it was assumed, would be entitled to equal respect on the part of the government andpublic.” (George F. Kennan, “Diplomacy Without Diplomats”, Foreign Affairs, September/October,1997, p. 200).

8 Para breve análise da história institucional da chancelaria brasileira e da carreira diplomática, veja“A formação do diplomata e o processo de institucionalização do Itamaraty: uma perspectiva históricae organizacional” (Zairo Borges Cheibub, Leituras Especiais, nº 25, 1º semestre de 1994, IRBr).

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Esse processo é acompanhado, em muitos casos, pela difusão daautoridade típica das sociedades democráticas de massas. A extensãocada vez maior da opinião pública e a sua estruturação institucionaltendem a gerar múltiplos focos nacionais de poder e influência. Aformação de grupos de pressão que atuam nos diferentes órgãos daadministração e se articulam com as forças partidárias coloca em riscoo princípio tradicional do primado da política externa, ameaçando torná-la refém das disputas domésticas.

O resultado é o aparecimento de uma “diplomacia fragmentária”,na expressão cunhada por George F. Kennan, no interior da qual achancelaria concorre com outras agências.9 Esse estado de coisas provocainterpretações diferentes e, às vezes, divergentes do significado dointeresse nacional e das políticas que, em cada caso concreto,representam a sua materialização.

2 – O ESTUDO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O Estado é uma criação recente da história humana. Embora essetermo seja comumente usado para fazer referência a inúmeras formasde articulação do poder em sociedade antigas e medievais, ele só ganhasentido e conteúdo no Renascimento europeu. A Europa pós-medievalinventou o Estado, sob a forma das monarquias absolutas.

Com o Estado, surgiram as teorias políticas sobre ele. NicolauMaquiavel (1469-1527), autor de O Príncipe, funcionário do governodos Medici de Florença, postulou a separação entre a moral e apolítica como fundamento da razão de Estado. A política constituiuma esfera autônoma e uma arte, que condensa o interesse nacional. OEstado deve afirmar sua soberania contra os interesses particularistas.As idéias de Maquiavel, profundamente influenciadas pela divisão danação italiana, representaram um dos pilares do absolutismo.

Thomas Hobbes (1588-1679), autor do Leviatã, foi o principalteórico do absolutismo. O Estado nasce do interior da sociedade mas se

9 Uma evidência disso aparece na composição do pessoal das missões diplomáticas norte-americanasno exterior: apenas cerca de 30% são funcionários regulares do Departamento de Estado; os demais70% provêm de outras agências. George F. Kennan, op. cit., p. 206.

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eleva acima dela. Antes do seu advento, imperava o “estado de natureza”,a guerra de todos contra todos. Ele surge como manifestação da evoluçãohumana, cujo sinal é a consciência da necessidade de um poder superior,absoluto e despótico, voltado para a defesa da sociedade. Essa consciênciaorigina um contrato, pelo qual os homens abdicam da sua liberdadeanárquica em favor do Estado, a fim de evitar o caos. A figura bíblicado Leviatã representa o Estado: um monstro cruel que, no entanto,impede que os peixes pequenos sejam devorados pelos maiores.

A transição do absolutismo para o liberalismo processou-se porvias diferentes e contrastantes. Na Inglaterra, resultou da progressiva egradual limitação do poder monárquico pela afirmação do Parlamento.Na França, da irrupção revolucionária de 1789, que destruiu osfundamentos do poder real e instaurou a soberania popular. As teoriassobre o Estado refrataram essa transição.

John Locke (1632-1704), autor de Dois tratados sobre o governo civil,retomou as idéias do “estado de natureza” e do contrato de Hobbes,revisando-as para defender a limitação do poder real. A liberdadeoriginal dos homens não se perde na instituição do Estado, mas subsistecomo contraponto do poder do soberano. No limite, é essa liberdadeoriginal que prevalece, por meio do direito à insurreição. Em Locke,fica estabelecida a separação entre a sociedade civil e a política, ouseja, entre a esfera privada e a pública. O poder, circunscrito à esferapública, não pode ser transmitido por herança ou proceder dapropriedade territorial – só pode ser gerado por consentimento político.

O Barão de Montesquieu (1689-1755), autor de O Espírito das Leis,desenvolveu a teoria da separação dos poderes, cujos fundamentosse encontram em Locke. O Estado liberal assenta-se sobre o equilíbriodos poderes de produção das leis (Legislativo), execução das leis (Executivo)e controle da sua aplicação (Judiciário). Essa estrutura terrena do Estadodeveria substituir o poder divino dos reis, a fim de defender os interessese a liberdade dos homens. O contrato político ganhava assim seudetalhamento, sob a forma da democracia representativa.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo do grupoenciclopedista e autor da obra Do contrato sócial, inverteu a noçãohobbesiana do “estado de natureza”. Onde Hobbes enxergou a guerra

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e a anarquia, Rousseau encontrou a felicidade e a harmonia da vidaselvagem. O advento da propriedade privada rompe o equilíbrio eintroduz a violência e a escravidão. Superar essa situação é superar oabsolutismo, substituindo-o por um contrato legítimo fundado nasoberania popular. A assembléia dos cidadãos, a democracia direta –esse é o único Estado legítimo e um reflexo do caráter superior e livre doser humano. Nessa linha, Rousseau investia não apenas contra oabsolutismo mas também contra a democracia representativa e adelegação de poderes, elevando-se à condição de precursor das utopiascomunistas.

O Estado territorial nasceu com as monarquias absolutistas, queinvestiram contra os interesses particularistas e as prerrogativasaristocráticas do feudalismo. Essa primeira forma do Estadocontemporâneo gerou corpos estáveis de funcionários burocráticose exércitos regulares e centralizados, unificando o poder político.O poder político medieval, fragmentado em mosaicos de soberaniasentrelaçadas, era dissolvido sob os golpes centralistas da realeza. Novopoder político emergia, baseado em fronteiras geográficas definidase cobrança generalizada de impostos. Como conseqüência,apareciam capitais permanentes, materializadas em cidades que setornavam sede dos órgãos do Estado.

O Estado-nação surgiu da decadência do absolutismo e da suasubstituição pelo liberalismo. Essa segunda forma do Estadocontemporâneo gerou a soberania nacional, expressa na eleição dosgovernantes e na limitação do Poder Executivo por representantestambém eleitos. A soberania deslizou da figura do monarca para oconceito de nação. O poder despersonificou-se, identificando-se com opovo. O poder divino deu lugar ao consenso popular.

A noção de consenso já aparecia em Maquiavel, que postulava anecessidade de o soberano conseguir o apoio popular. Contudo, oconsenso maquiavélico dependia da virtude do príncipe e da orientaçãoda sua ação política. Locke e Montesquieu fizeram do consenso a basedo Estado e a razão de ser das suas engrenagens de poder. Rousseaulevou a idéia até seu limite, assentando o consenso na participação ativae permanente dos cidadãos. A nação tornava-se a fonte do poder, e aesfera da política passava a refletir o consenso geral.

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As teorias políticas clássicas concentraram seu interesse sobre asrelações internas aos Estados, estabelecidas entre os governantes e asociedade em geral. O estudo das relações internacionais, ou seja, dasrelações estabelecidas entre os Estados, é muito mais recente e só ganhouo estatuto de disciplina acadêmica no século XX. A preocupação com osistema internacional de Estados foi estimulada pela constituiçãoprogressiva de uma economia integrada, de âmbito mundial. Astransformações na produção e na circulação de mercadorias típicas dosséculos XVIII e XIX – a época da Revolução Industrial – aumentaram arelevância dos estudos de relações internacionais. A própria análise doEstado foi cada vez mais influenciada pelas considerações relacionais,ou seja, pela investigação da posição ocupada e do papel desempenhadopelo Estado no sistema geral e nos subsistemas particulares em queestá inserido.

O vasto campo de estudo das relações internacionais não é definidode forma consensual. Diferentes autores encaram de modo divergente– e muitas vezes conflitante – o objeto das relações internacionais.Agrosso modo, é possível identificar três tradições divergentes queinformam a produção acadêmica de teorias sobre as relaçõesinternacionais.

A escola idealista

A primeira, oriunda do pensamento iluminista, enfatiza acomunidade de normas, regras e idéias que sustenta o sistema deEstados. A sua fonte é a noção do direito natural que, aplicada aosistema internacional, implica a definição da justiça como arcabouçodas relações entre os Estados.10 De certa forma, os ecos da visãorousseauniana do contrato social ressurgem, aqui, em contexto

10 A tradição idealista tem suas raízes no pensamento de Hugo Grotius (1583-1645), autor de TheRights of War and Peace Including the Law of Nature and of Nations, obra que forneceu as bases para ajurisprudência internacional no sistema europeu de Estados. Na mesma linha de pensamento, ojurista suíço Emmerich de Vattel (1714-1767), autor de The Law of Nations, condensa o conceitocrucial dessa tradição: “All nations are...under a strict obligation to cultivate justice towards each other, toobserve it scrupulously, and carefully to abstain from every thing that may violate it”. No pensamentoidealista, o uso eventual da força pelos Estados encontra justificativa apenas quando orientado pelodesígnio de eliminar a força do interior do sistema, resguardando a justiça internacional das agressõesde atores que não compartilham as regras consensuais.

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específico. Essa tradição, que se desenvolveu e reforçou no mundo anglo-saxão sob a forma de reação moral aos horrores da Primeira GuerraMundial (1914-1918), forneceu os parâmetros para a escola idealista.

Ainda hoje, a escola idealista assenta-se sobre a idéia iluministaancestral da possibilidade de uma sociedade perfeita. Essa meta moralcondiciona o caráter francamente reformista dos autores idealistas, quese preocupam em adaptar o sistema internacional às exigências dodireito e da justiça.

Os célebres “Quatorze Pontos” do presidente americano WoodrowWilson, bem como os princípios fundadores da Liga das Nações,inscrevem-se como exemplos da influência idealista na diplomacia doséculo XX. Até certo ponto, a “política do apaziguamento” deChamberlain e Daladier foi tributária dessa corrente de idéias. A difusãodesse estilo de pensamento nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha foiamplamente compreendida, sob uma perspectiva crítica típica da escolarealista, como reflexo da condição geopolítica insular de ambos.11

A escola realista

A segunda tradição, que informa a escola realista, enfatiza nãoa comunidade ideológica do sistema internacional mas o seu potencialconflitivo. As raízes desse estilo se encontram essencialmente emMaquiavel e Hobbes.

Maquiavel sublinhou a importância da força na prática políticaliberta dos constrangimentos morais e conferiu legitimidade aosinteresses do soberano. No seu pensamento, os fins condicionam osmeios. O inglês Hobbes, como o italiano Maquiavel, nutria profundopessimismo em relação à natureza humana. Seus comentários sobre osistema internacional traçam um paralelo entre as relações estabelecidaspelos Estados e as estabelecidas pelas pessoas na ausência do Leviatã.Por essa via, ele realça uma idéia que se tornou a fonte da argumentação

11 “Enjoying the luxury of relative security provided by the English Channel in one case and the AtlanticOcean in the other, British and American thinkers coulf offer prescriptions for reform of the internationalsystem that were perhaps less compelling for states surrounded by potential enemies” (Phil Williams eoutros, Classic Readings of International Relations. Belmont: Wadsworth, 1993, p. 7).

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básica da escola realista: a ausência de um poder soberano eimperativo nas relações internacionais.

No plano acadêmico, a escola realista desenvolveu-se comoreação aos melancólicos e trágicos fracassos da “política doapaziguamento” conduzida na Europa do entreguerras. HansMorgenthau, autor de Politics Among Nations, é considerado o fundadordo pensamento realista contemporâneo. Substituindo a meta moral dareforma do sistema internacional pela análise das condições objetivasque determinam o comportamento dos Estados, os pensadores realistasancoraram sua argumentação nas noções da anarquia inerente aosistema e da tendência ao equilíbrio de poder como contraponto aessa anarquia.

As divergências entre os autores realistas a respeito doscondicionantes do comportamento dos Estados originaram a correnteneo-realista, também conhecida como realismo estrutural. Contrariamentea Morgenthau, que se contentou em definir o comportamento dosEstados pela ânsia de poder, os neo-realistas preferiram identificar abusca da segurança como causa última da prática política no sistemainternacional. Esse enfoque realçou a problemática da estrutura dosistema, que define as formas e os graus da insegurança experimentadospor um ator isoladamente.

No pós-guerra, o desenvolvimento de uma densa rede deinstituições internacionais – como a União Européia, a OCSE, a Otan, oFMI, o Banco Mundial e a OMC – conduziu uma corrente de autores arever a noção de anarquia inerente ao sistema internacional. Essesautores, dentre os quais se destacam Robert Keohane, Joseph Nye eStanley Hoffmann, estabeleceram, no interior do campo realista, umacorrente institucionalista.

Os institucionalistas acentuaram a abrangência crescente dodireito internacional, corporificado em instituições que balizam aatuação dos Estados. O impacto da existência da rede de instituiçõesinternacionais sobre a percepção de segurança e as estratégias estatais,principalmente no cenário europeu, tem sido o tema de investigaçãodessa corrente. Seu argumento central consiste em destacar a limitação

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da soberania e a paralela redução da insegurança decorrentes doscompromissos institucionais.12

A escola radical

A terceira tradição tem raízes mais recentes, situadas nopensamento marxista. Karl Marx não produziu uma teoria do sistemainternacional, mas da História e da revolução social. Ao contrário dastradições citadas, não é a cooperação ou o conflito entre Estados o seuobjeto, mas o conflito entre as classes sociais. O Estado é umelemento marginal no pensamento marxista, e o comportamento dosEstados, quando enfocado, surge apenas como veículo para interesseseconômicos, políticos ou ideológicos de outros atores (classes socio-econômicas, corporações industriais e financeiras etc.). Contudo,principalmente por intermédio de Lenin, a tradição marxista forjou umpensamento sobre as relações internacionais, classificado como escolaradical ou neo-marxista.

O ambiente internacional das últimas décadas do século XIX e doinício do século XX, marcado pela expansão neocolonial das potênciaseuropéias na Ásia e na África e pelas políticas semicoloniais dos EstadosUnidos no Caribe e no Extremo Oriente e do Japão nas áreas insularese costeiras da Ásia oriental e do Sudeste, condicionou a teorizaçãoleninista sobre o imperialismo.

Apoiando-se na obra Imperialism: a Study, do britânico não-marxista John Hobson, Lenin adaptou o conceito de imperialismo àteoria ou à linguagem marxista.13 Em sua obra Imperialism: A Special

12 Nessa linha, os institucionalistas sublinham uma importante mudança de atitude das potências:“Realist thinkers emphasize that states seek to attain purposes through the exercise of power. Internationalorganizations and regimes are potential sources of leverage for ambitious governments; thus we shouldexpect, in a period of rapid change, to seem them used as arenas for the exercise of influence.” (RobertKeohane, Joseph Nye e Stanley Hoffmann (Ed.), After the Cold War: international institutions and statestrategies in Europe, 1989-1991, Harvard University Press, 1994, p. 395).

13 Muitos críticos observaram que o enfoque de Lenin – que transpõe da esfera das classes para a dosEstados as noções de exploração e dominação – representou uma derivação pouco consistente coma metodologia marxista. O geógrafo brasileiro José William Vesentini, em um ensaio sintético,sublinha o sentido nacionalista da teoria de Lenin: “Não pode haver... dentro da lógica dos textos deMarx e Engels, uma exploração entre países ou entre regiões; o que há é tão-somente a exploração declasses...Nesses termos, libertação nacional ou luta por um princípio abstrato de autodeterminaçãodas nações não é algo necessariamente progressista ou sequer parte do ideário básico do proletariado.

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Stage of Capitalism, o líder revolucionário russo estabeleceu interessantesconexões entre a economia política do capitalismo, a luta pela divisãode mercados e o imperialismo neocolonial. O argumento original deLenin, entretanto, consistiu na ligação entre a prática imperialista e aguerra entre potências.

A noção de imperialismo jamais foi nitidamente definida entre osautores da escola radical.14 Contudo, a preocupação com as relações desubordinação econômica entre países em estágios desiguais dedesenvolvimentos industrial e tecnológico veio a formar o arcabouçodas análises radicais ou neomarxistas do sistema internacional. Estasabordagens, sob o ponto de vista metodológico, contribuem para lançarluz sobre os atores do sistema internacional que não são Estados: gruposeconômicos e corporações transnacionais, igrejas, instituições privadasmultilaterais, organizações sindicais, ambientais e não-governamentaisem geral.

Immanuel Wallerstein, um dos mais importantes autoresneomarxistas, forneceu as bases conceituais para uma teoria dos sistemasmundiais.15 O foco dessa teoria está nos padrões de dominação e narede de relações econômicas entre as sociedades, não na estrutura dosistema internacional de Estados enfatizada pelos realistas. Ela traça a

Por esse motivo, ao se inserir uma teoria do imperialismo no corpo teórico do marxismo, dificilmentese consegue evitar a ambigüidade, a coexistência conflitante de premissas antitéticas...E a ‘resolução’disso, com o abandono definitivo da ótica de classes em favor de uma certa ideologianacionalista...encontra-se nas idéias stalinistas sobre o ‘socialismo num só país’ e a União Soviéticacomo ‘pátria’ do movimento socialista mundial e ‘baluarte contra o imperialismo’.” (Imperialismo eGeopolítica Global, Campinas : Papirus, 1987, p. 27-28).

14 O rótulo imperialismo é utilizado em diferentes contextos, designando às vezes qualquer império,outras vezes apenas os impérios neocoloniais dos séculos XIX e XX. Entre os marxistas não fica clarose o termo designa a “etapa superior do capitalismo” a que se refere Lenin ou um sem-número derelações econômicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

15 “The modern world-system originated in the sixteenth century (...). This was the period in wich wascreated a European world-economy whose structure was unlike any that the world had known before. Thesingular feature of this world-economy was the discontinuity between economic and political institutions.(...) World economies had existed before in history – that is, vast arenas within wich a sophisticated divisonof labor existed based on a network of trade (...). But wherever such a world-economy had evolvedpreviously, sooner or later na imperium expanded to fill the geographical space of this economy (...). Theimperial framework established political constraints which prevented the effective growth of capitalism, setlimits on economic growth and sowed the seeds of stagnation and/or disintegration. By a series of historicalaccidents too complex to develop here, the nascent European world-economy of the sixteenth century knew nosuch imperium. The only serious attempt to create one – that of Charles V and the Habsburgs – was afailure. The failure of Charles V was the succes of Europe.” (Immanuel Wallerstein, The Capitalist WorldEconomy. New York: Cambridge University Press, 1979, p. 37-38).

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evolução do sistema capitalista, distinguindo áreas centrais e periféricase procurando as raízes do desenvolvimento e do subdesenvolvimento.Esse tipo de enfoque, retomado por outros autores, adquire especialinteresse na abordagem dos fenômenos contemporâneos daglobalização: fluxos de capitais e mercadorias, mercados financeiros,mundialização das corporações industriais, configuração de blocoseconômicos macrorregionais.

Texto Comentado

A POLÍTICA DE EQUILÍBRIO, Raymond Aron(In: Paz e Guerra entre as Nações, Brasília: UnB, 1986, p.189-194)

O texto selecionado inscreve-se na corrente realista e constitui umaformulação clássica da noção crucial de equilíbrio de poder (balanceof power).

O autor introduz a problemática destacando o alcance geral danoção: “A política externa é intrinsecamente power politics, uma políticade poder. O conceito de equilíbrio – balance – aplica-se, pois, a todos ossistemas internacionais, inclusive a nossa era atômica”.16

Embora a formulação usual da noção de balance referencie-se nopoder, Aron prefere a formulação de equilíbrio de forças, “porque asforças são mais mensuráveis do que o poder ou a potência”.17 Na mesmalinha, a expressão política de poder designa o núcleo essencial docomportamento dos Estados, que não estão sujeitos a qualquer lei outribunal superior e atuam em um sistema anárquico por meio dacapacidade de exercer pressão ou coação sobre os demais.

A política de equilíbrio

No pequeno ensaio de David Hume intitulado On the Balance ofPower, a teoria abstrata do equilíbrio está exposta com simplicidadeconvincente.

16 Op. cit. p.189.

17 Idem, p.189.

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Hume toma como ponto de partida a questão: a idéia de equilíbrioé moderna ou só é moderna sua formulação, conforme a conhecemos(e a idéia em si é tão antiga quanto o mundo)? O segundo termo daalternativa é verdadeiro:

In all the politics of Greece, the anxiety with regard to the balanceof poqer is apparent, and is expressly pointed out to us, even by anciente

historians. Thucydides represents the league which was formed agaisnt

Athens, and which produced the Peloponesian war, as entirely owing tothis principe. And after the decline of athens, when the Thebans and

Lacedemonians disputed for sovereignty, we finde that the Athenians (as

well as many other Republics) always threw themselves intro the lighterscale, and endeavoured to preserve the balance.

O Império Persa agia do mesmo modo: “The Persian monarch wasreally, in his force, a petty prince, compared to the Graecian republics; and,therefore, it behoved him, from views of safety more than from emulations, tointerest himself in their quarrels, and to support the weaker side in everycontest”. Os sucessores de Alexandre seguiram a mesma linha: “Theyshowed great jealousy of the balance of power; a jealousy founded on truepolitics and prudence, and which preserved distinct for several ages the partitionmade after the death of that famous conqueror”. Pertencem ao sistema aspopulações que podem intervir na guerra. “As the Eastern princes consideredthe Greeks and Macedonians as the only real military force whith whom theyhad any intercourse, they kept always a watchful eye that part of the world.”

Se os antigos passaram por haver ignorado a política do equilíbriode forças, isso se deveu à espantosa história do Império Romano. Defato, Roma pôde subjugar, um após o outro, todos os seus adversários,sem que estes tivessem sido capazes de concluir as alianças que os teriampreservado. Filipe da Macedônia permaneceu na neutralidade até omomento das vitórias de Aníbal, para então concluir com o vencedor,imprudentemente, uma aliança cujas cláusulas eram mais imprudentesainda. As repúblicas de Rodes e dos aqueus, cuja sabedoria foi celebradapelos antigos historiadores, prestaram assistência aos romanos nas suasguerras contra Filipe e Antíoco. “Massinissa, Attalus, Prusias, in gratifyingthe private passions, were all of them the instruments of the Roman greatness,and never seem to have suspected that they were forging their own chains,

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when they advanced the conquests of their ally”. Hiero, rei de Siracusa, foio único príncipe que parece ter compreendido o princípio do equilíbriode forças, durante a história romana: “Nor ought such a force ever to betrown into one hand as to incapacitate the neighbouring states from defendingtheir rights against it”. Essa é a fórmula mais simples do equilíbrio: nenhumEstado deve possuir uma força tal que os Estados vizinhos sejamincapazes de defender, contra ele, seus direitos. Uma fórmula fundadasobre o common sense and obvious reasoning, simples demais para haverescapado à percepção dos antigos.

Em função do mesmo princípio, David Hume analisa em seguidao sistema europeu e a rivalidade entre a França e a Inglaterra.

A new power succeded, more formidable to the liberties of Europe,

possessing all the advantages of the former, and labouring under none of

its defects, expect a share of that spirit of bigotry and persecution, with

which the house of Austria was so long, and still is, so much infatuated.

Contra a monarquia francesa, vitoriosa em quatro guerras dentrecinco, que, contudo, não ampliou grandemente seu domínio nemadquiriu hegemonia total na Europa (total ascendant over Europe), aInglaterra se manteve no primeiro lugar. Hoje, não se lê sem divertimentoa crítica feita por Hume à política inglesa. Diz ele: “…we seem to havebeen more possessed with the ancient Greek spirit of jealous emulation thanactuated by the prudent views of modern politics”. A Inglaterra continuou,sem vantagem, guerras começadas com justa razão (e talvez pornecessidade), mas que teria podido concluir mais cedo nas mesmascondições. A hostilidade da Inglaterra contra a França passou por certa,em qualquer circunstância, e os aliados contaram com as forças inglesascomo com suas próprias forças, demonstrando intransigência extrema:a Inglaterra devia sempre assumi o ônus das hostilidades. Finalmente,“…we are such true combatants that, when once engaged, we lose all concernfor ourselves and our posterity, and consider only how we may best annoy the enemy”.

Os excessos de ardor belicoso parecem a Hume inconvenientes,devido aos sacrifícios econômicos que comportam; parecem temíveissobretudo porque contêm o risco de levar algum dia a Inglaterra aoextremo oposto,

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...rendering us totally carelles and supine with regard to the fate of Europe.

The Athenians, from the most bustling, intriguing, warlike people of Greece,

finding their error in thrusting themselves into every quarrel, abandoned

all attention to foreign affairs; and in no contest ever took part, except by

their flatteries and complaisance to the victor.

Hume é favorável à política do equilíbrio porque é hostil aosimpérios extensos: “Enormous monarchies are probably destructive to humannature in their progress, in their continuance, and even in their downfall, whichnever can be very distant from their establishment”. Levanta-se, comoobjeção, o Império Romano? Hume responde que, se os romanos tiveramalgumas vantagens, isso se deveu ao fato de que “...mankind were generallyin a very disorderly, uncivilized condition before its establishment”.

A expansão indefinida de uma monarquia (e Hume tem em mentea dos Bourbons) cria por si obstáculos à elevação da natureza humana(thus human nature checks itself in its airy elevation). Não se deve simplificaro pensamento de Hume formulando uma antítese da política de equilíbrioe da monarquia universal. Como esta última não parece menos funesta aHume do que a de Montesquieu, já que o Estado perderia fatalmentesuas qualidades com a expansão territorial, a política de equilíbrioimpõe-se razoavelmente em função da experiência histórica e dos valoresmorais.

Montesquieu dizia que a decadência de Roma havia começadoquando a imensidade do Império fez que se tornasse impossível ofuncionamento da República. Se a monarquia dos Buorbons seestendesse exageradamente, os nobres mais distantes, na Hungria e naLituânia, se recusariam a prestar serviços ao monarca, “...forgot at courtand sacrificed to the intrigues of every minion or mistress who approaches tehprince”. O rei precisaria, então, de mercenários – “…and the melancholyfate of the Roman emperors, from the same cause, is renewed over and overagain, till the final dissolution of the monarchy”.

A política de equilíbrio obedece a uma regra de bom-senso e derivada prudência necessária aos Estados desejosos de preservar suaindependência, de não estar à mercê de outro Estado que disponha demeios incontrastáveis. Parece condenável aos olhos dos estadistas ou

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dos políticos doutrinários que interpretam o uso da força, aberto ouclandestino, como a marca e a expressão da maldade humana. Essescensores devem assim conceber um substituto, jurídico ou espiritual,para o equilíbrio; será considerada moral, ou será pelo menos justificadahistoricamente, pelos que temem a monarquia universal e almejam asobrevivência dos Estados independentes; será considerada senão imoral,pelo menos anárquica, pelos que, ao contrário, num espaço dado e nummomento determinado, preferem a unidade de um império, pois não éprovável que a dimensão ótima do território dos Estados (ótima paraquem? para quê?) seja a mesma em todas as épocas.

No nível mais elevado de abstração, a política de equilíbrio se reduzà manobra destinada a impedir que um Estado acumule forças superioresàs de seus rivais coligados. Todo Estado, se quiser salvaguardar oequilíbrio, tomará posição contra o Estado ou a coalizão que pareçacapaz de manter tal superioridade. Essa é uma regra válida para todosos sistemas internacionais. Contudo, se procurarmos elaborar as regrasda política de equilíbrio, será preciso postular modelos de sistemas,segundo a configuração da relação de forças.

Os dois modelos mais típicos são o pluripolar e o bipolar. Ou osatores principais são relativamente numerosos ou, pelo contrário, doisatores dominam seus rivais de tal modo que cada um deles se torna ocentro de uma coalizão, constrangendo os atores secundários a sesituarem com relação aos dois “blocos”, aderindo a um deles – a menosque tenham a possibilidade de abster-se. É possível a existência demodelos intermediários, de acordo com o número dos atores principaise o grau de igualdade ou desigualdade das forças dos atores principais.

3 – O SISTEMA MULTIPOLAR EUROPEU DO SÉCULO XIX

Roma dominou a Europa ocidental e o Mediterrâneo por seisséculos, entre 146 a.C. (destruição de Cartago) e 476 d.C. (queda doImpério do Ocidente). Depois disso, o mito de Roma perdurou parasempre, sob a forma do sonho do império universal.

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O projeto da “monarquia universal católica” percorreu toda a IdadeMédia européia. A coroação de Carlos Magno pelo papa Leão III, no ano800, e a coroação de Oto I no Sacro Império, em 962, tinham conservadoacesa a chama simbólica da restauração de Roma. Na Idade Moderna,essa chama animou o empreendimento imperial da Casa de Habsburgo.

No início do século XVII, o “anel de ferro” dos Habsburgo fechava-se em torno da França. Erguidos sobre uma teia de laços dinásticos, osdomínios dos Habsburgo espanhóis e austríacos estendiam-se pelointerior do Sacro Império, na Hungria, na Boêmia, na Silésia, na Baviera,em Flandres e em Milão. Fora do Sacro Império, abrangiam ainda osreinos de Nápoles e da Sicília. A prata da América, que jorravaabundante, servia para financiar as guerras contra a Holanda e aInglaterra e, no Mediterrâneo, assegurava a resistência às ameaças doImpério Otomano.

Na França, a grande rival dos Habsburgo, a luta contra ahegemonia espanhola aparecia como uma batalha de vida ou morte.Essa batalha, que devia ser travada em nome da Igreja e de toda acristandade, tinha por finalidade assegurar o equilíbrio entre aspotências.18

A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi o longo ciclo de guerrasentre os Habsburgo e as outras potências européias que terminarampor exaurir a Espanha e destruíram o sonho da “monarquia universalcatólica”. No fim da Grande Guerra, configurou-se o sistema de Estadosda Idade Moderna.

Os Tratados da Westfália, em 1648, encerraram a Guerra dosTrinta Anos. A Paz de Munster encerrou as hostilidades entre a Espanhae a Holanda. O conflito entre a França e a Espanha prosseguiu até quea intervenção inglesa provocasse a derrota espanhola. A Paz dos Pireneus,firmada em 1659, assinalou o início da derrocada final dos Habsburgoespanhóis.

18 Como escreveu Richelieu, o chefe dos ministros de Luís XIII, nas suas Memórias: “(...) porque amonarquia universal, à qual aspira o rei da Espanha, é muito prejudicial à cristandade, à Igreja e aopapa, a razão e a experiência nos mostram que, para o bem da Igreja, deve haver equilíbrio entre ospríncipes temporais, de forma que, sobre essa igualdade, a Igreja possa sobreviver e conservar as suasfunções e o seu esplendor...” (Apud Klaus Matettke em “Le concept de sécurité collective de Richelieu etles traités de paix de Westphalie”, L’Europe des traités de Westphalie. Paris: PUF, 2000, p. 56).

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Na Westfália se encontra a origem do sistema de Estados da IdadeModerna. Dos Tratados, emergiu um sistema pluripolar de Estadoseuropeus que referenciavam as suas políticas externas no interessenacional, não em valores religiosos universalistas.

Os Tratados representaram, antes de tudo, a confirmação dafragmentação alemã. Na Westfália, proclamou-se a igualdade entrecatólicos e protestantes e estendeu-se a liberdade de consciência aoscalvinistas. Aos príncipes foi concedida autoridade suprema em matériade religião. As “liberdades germânicas” destruíram os últimos vestígiosde poder do imperador.

A derrota dos Habsburgo de Viena repercutiu duradouramentena política alemã. A Áustria, que antes da guerra surgia como potênciadominante no Sacro Império, teve sua influência limitada às áreascatólicas do sul do Império. Enquanto isso, a dinastia de Hohenzollern,baseada na Prússia e em Brandenburgo, recebeu novos territórios nonorte do Império, começando a erguer-se como rival da Áustria no espaçofragmentado alemão.

A França, mesmo esgotada pela guerra, emergiu como a principalpotência continental. Os Tratados asseguraram-lhe o controle sobre aAlsácia e a posse dos territórios do alto Reno. Depois da Paz dosPireneus, com Luís XIV, a monarquia absoluta francesa conheceriaseu período áureo.

Munster e Osnabruck, onde foram negociados durante cinco anosos Tratados da Westfália, receberam delegados de 16 Estados europeus,140 Estados do Sacro Império e 38 principados e cidades observadores.Desse concerto de potências grandes e pequenas, só não participaramrepresentantes da Inglaterra, da Rússia e da Turquia.

A Inglaterra, atormentada pela crise da realeza e, depois, pelasguerras civis, praticamente não teve participação na Guerra dos TrintaAnos. Contudo, o prolongado conflito europeu e os tratados de pazbeneficiaram, diretamente, os ingleses. O estatuto de neutralidade desvioupara a Inglaterra o comércio europeu. A frota inglesa transportou amaior parte das mercadorias destinadas aos beligerantes. As condiçõesda paz e, sobretudo, o prosseguimento da guerra franco-espanholaprotegeram a ilha da ameaça de uma invasão católica.

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Os Tratados da Westfália ocupam, por motivos distintos econtrastantes, um lugar fundador para as duas escolas tradicionais dopensamento em relações internacionais. A escola idealista interpretou-os sob o ponto de vista do nascimento da ordem jurídica internacional.A escola realista, como a origem do sistema de equilíbrio europeu.

As guerras napoleônicas

A França napoleônica foi o primeiro Estado-nação a empreendera tentativa de unificação européia. A coroação de Napoleão, em 1804,renovou o simbolismo do império universal e assinalou o surgimento deuma “Nova Roma”.

O Império Carolíngio medieval durou menos de um século, de768 (coroação de Carlos Magno) a 843 (Tratado de Verdun), masrepresentou o estabelecimento do poder compartilhado da dinastia edo papado sobre as terras da Europa centro-ocidental. As conquistasnapoleônicas iriam recompor e ampliar o domínio territorial carolíngio.

O Império Napoleônico durou menos de duas décadas mas, no seuzênite, colocou sob hegemonia francesa quase toda a Europa continental.Apenas cinco anos antes de Waterloo (1815), o poder de Paris estendia-se pelas penínsulas Ibérica e Itálica e através da Europa Central.

O expansionismo napoleônico colocou em confronto o poderiocontinental francês e o marítimo britânico.19 A Grã-Bretanha foi o centroorganizador das seis coligações de potências – que envolverameventualmente a Prússia, a Áustria e a Rússia – formadas contra a Françaimperial. Por meio das coligações, a potência marítima lideravamonarquias continentais contra a maior potência continental.

Esse prolongado conflito – uma típica disputa entre o Urso e aBaleia, ou seja, entre poderes incontrastáveis no seu próprio elemento –desenrolou-se sobre a base do Sistema Continental de Napoleão e da

19 Em termos geopolíticos, uma interessante abordagem desse conflito é a que recorre à dicotomiaentre o Poder Marítimo e o Poder Continental, no sentido proposto pelo almirante americano AlfredThayer Mahan. Essa forma de encarar o problema – aplicável, de resto, a uma série de configuraçõeshistóricas diferentes do sistema internacional – sujeita-se, naturalmente, à crítica, em virtude do altograu de abstração do seu instrumental de análise. Entretanto, pode ser útil para caracterizar determinadasregularidades e permanências que se renovam em épocas muito distintas.

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reação britânica posta em prática pelo bloqueio marítimo. Por visar aoestrangulamento do comércio britânico, Napoleão procurou fechar osportos europeus para os navios ingleses. A Grã-Bretanha, por sua vez,investiu contra os domínios franceses de além-mar, cortando as rotasoceânicas e as bases coloniais do inimigo. A derrota definitiva das forçasespanholas na América Latina, a retirada da família real portuguesapara o Brasil e a penetração britânica no Caribe foram conseqüênciasdessa disputa européia.

O impasse permaneceu enquanto cada um dos contendorescontinuou absoluto no seu elemento. As tentativas francesas de criaçãode uma esquadra poderosa e de invasão das Ilhas Britânicasfracassaram. A derrota napoleônica foi prefigurada na demorada edesgastante campanha contra a resistência espanhola e na catastróficaretirada da Rússia. Um ano depois do fracasso na Rússia, a SextaColigação batia a França em Leipzig, na Batalha das Nações (1813).

As guerras napoleônicas iluminam o papel duradouro que aGrã-Bretanha viria a cumprir, de sentinela vigilante do equilíbriocontinental de poder. Rainha dos mares e sede de um império mundial,a Grã-Bretanha temia a emergência de uma potência capaz de ameaçarseus interesses internacionais. Sua segurança repousava no equilíbrioentre os Estados do continente: essa situação fazia que as várias ameaçashipotéticas se anulassem mutuamente.

Napoleão representou um desafio para esse equilíbrio quesustentava a liberdade de ação britânica nos oceanos e nas bases coloniaisde além-mar. A erradicação dessa ameaça abriu caminho para aafirmação das hegemonias política e econômica britânica, no século daRevolução Industrial.

O Congresso de Viena e o Sistema de Metternich

O século XIX assinalou a estabilização do sistema europeu deEstados, sob o arcabouço de um equilíbrio multipolar (ou pluripolar)dinâmico. A derrota da França napoleônica deu origem a uma geometriapentagonal, baseada no poderio da Grã-Bretanha, da França, da Prússia(depois da Alemanha), da Áustria-Hungria e da Rússia.

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Essa estrutura multipolar forneceu as bases do funcionamento deum sistema basicamente circunscrito ao espaço europeu. No final doséculo, a emergência de novas potências marítimas no Ocidente (EstadosUnidos) e no Extremo Oriente (Japão) gerou novos tipos de conflito eforte tendência de globalização do sistema internacional de Estados.

O equilíbrio geopolítico europeu do século XIX foi a moldura paraa expansão e a consolidação da economia industrial e para odelineamento de um mercado mundial. No centro desse processo,encontrava-se a Grã-Bretanha, potência econômica maior até a últimadécada do século. A estabilidade dinâmica da cena européia, perturbadapor conflitos que não chegavam a ameaçar o sistema no seu conjunto,garantiu ambiente favorável para a constituição do Império britânico ea imposição da “Pax Britânica” nos territórios de além-mar.20

O equilíbrio pentagonal europeu sofreu flutuações durante todoo século, mas apenas uma grande mudança – a unificação alemã de1871. Esse evento crucial dividiu o século em dois períodos distintos:depois dele, o crescimento da influência da Alemanha iria corroerlentamente a estabilidade européia, até precipitar o continente naPrimeira Guerra Mundial.

20 É possível argumentar contra a natureza multipolar do sistema europeu dessa época postulando aidéia de uma hegemonia britânica. Entretanto, a supremacia flagrante da Grã-Bretanha nos domíniosindustrial, tecnológico e comercial não chegou a ter correspondência direta no plano estratégico:“... a crescente força industrial da Grã-Bretanha não se organizou, nas décadas posteriores a 1815, demodo a dar ao Estado um acesso rápido ao equipamento militar e aos contingentes humanos como,digamos, ocorria nos domínios de Wallenstein na década de 1630, ou como a economia nazista faria.Pelo contrário, a ideologia da economia política do laissez-faire, que floresceu juntamente com essecomeço de industrialização, pregava as causas da paz eterna, dos reduzidos gastos governamentais(especialmente com a defesa) e da redução dos controles estatais sobre a economia e o indivíduo.Talvez fosse necessário, como Adam Smith havia admitido em A riqueza das nações (1776), tolerara manutenção de um exército e de uma marinha, a fim de proteger a sociedade britânica ‘da violênciae da invasão de outras sociedades independentes’; mas como as forças armadas per si eram‘improdutivas’ e não contribuíam para a riqueza nacional da mesma maneira que ou uma fábricauma fazenda, deveriam ser reduzidas ao menor nível possível, adequado à segurança nacional.” (PaulKennedy, Ascenção e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Campus, p. 151-152). Do ponto devista militar, o poderio britânico só não era nitidamente inferior aos das demais potências européiasem virtude dos recursos proporcionados pela União Indiana: “The Empire also helped to maintainBritain as a military power on na equal footing with the great Continental powers of France, Germany andRussia. This was chiefly because the Indian Army could be shipped all over the world to fight wars onBritain’s behalf (...). This meant that for most of of the history of British involvement and rule in India,troops raised in the subcontinent and paid for largely by the people of the sub-continent maintained Britain’sglobal military status and at the same time enabled British politicians to steer clear of the potentiallyunpopular conscription of young British males.” (Denis Judd, Empire: the British imperial experience from1765 to the present, New York: HarperCollins, 1997, p. 4).

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O Congresso de Viena (1814-1815) redesenhou as fronteiraspolíticas da Europa e reorganizou os Estados, visando suprimirdefinitivamente o espectro de Napoleão. A velha Europa passava umaborracha no passado recente, procurando recriar o fio de continuidadeque tinha sido violentamente rompido.

O princípio da legitimidade foi uma das bases do projetoeuropeu articulado em Viena, gerando a política da restauração. Osgovernos oriundos da hegemonia napoleônica, alguns dos quais lideradospor familiares do imperador francês, foram eliminados. Foramrestauradas as antigas casas reais de Bourbon na Espanha e Bragançaem Portugal. Na França, a restauração conduziu Luís XVIII, irmão deLuís XVI, ao trono.

O legitimismo seria defendido por uma articulação diplomáticaeuropéia, surgida por iniciativa do chanceler austríaco, príncipeMetternich, e do czar Alexandre I, da Rússia. Essa articulação – a SantaAliança – proclamou-se a guardiã da “Europa das dinastias”.

Contudo, essa tentativa de barrar o caminho às idéias francesasde 1789 não duraria muito. Na década de 1820, eclodiram revoltasliberais na Espanha, em Portugal, em Nápoles, em Piemonte e na Grécia.Os congressos de Troppau (1820) e Laibach (1821), promovidos noquadro da Santa Aliança, manifestaram o apoio das potências àrepressão austríaca na Itália. Contudo, em 1822, no Congresso deVerona, a Grã-Bretanha recusava-se a intervir na guerra espanhola entreliberais e realistas. A recusa britânica representou golpe mortal no sistemade congressos das potências legitimistas.

Em 1830 uma insurreição em Paris suprimiu o absolutismo,originando a monarquia constitucional de Luís Felipe. A Revolução de1830 repercutiu em toda a Europa, possibilitando a independência daBélgica e disseminando as idéias liberais nas regiões italianas e alemãs etambém na Polônia, que se encontrava sob domínio russo. O legitimismode Viena fracassaria definitivamente em 1848 – o ano da “primaverados povos” – quando as revoluções liberais pipocaram por todo ocontinente, desde a França até a Alemanha e a Áustria.

Ao lado do legitimismo, o princípio do equilíbrio europeunorteou as decisões de Viena. Sob o pretexto da restauração das

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fronteiras políticas anteriores a Napoleão, procedeu-se a uma partilhaterritorial destinada a favorecer as quatro potências vitoriosas. A Grã-Bretanha apossou-se de importantes territórios coloniais, ampliandoseus domínios de além-mar. A Rússia estabeleceu seu domínio sobre amaior parte da Polônia, cristalizando sua posição de potênciahegemônica no mundo eslavo. A Áustria anexou os estados italianos doNorte, de maneira que o velho império decadente ganhou prolongadasobrevida. A Prússia incorporou a Renânia e parte da Polônia, emergindocomo grande potência européia.

O sistema de equilíbrio europeu conservou a fragmentação alemã.Entretanto, no lugar do Sacro Império, destruído por Napoleão, surgiaa Confederação Germânica. O reino da Prússia controlava a maior partedos territórios setentrionais da Confederação, ao passo que os territóriosmeridionais faziam parte do império da Áustria. No centro e no norte,sob o princípio da restauração, foram constituídos reinos, principados educados reminiscentes do feudalismo. Mas os cerca de trezentos Estadospré-napoleônicos consolidaram-se em aproximadamente trinta unidadespolíticas.

No centro da arquitetura do equilíbrio europeu, estava alimitação do poderio francês. A Suíça recobrava sua independênciae, por disposição do Congresso de Viena, tinha garantida sua“neutralidade perpétua”. No flanco sudeste da França, constituía-se oReino do Piemonte-Sardenha, que viria a ser o vértice da unidade italiana.No flanco nordeste, constituía-se o Reino dos Países Baixos, que maistarde originaria a Holanda e a Bélgica atuais.

Do ponto de vista geopolítico, os acordos do Congresso de Vienaresultaram, antes de tudo, das propostas britânicas que haviam sidoorganizadas no chamado Plano Pitt. Londres direcionou os estadistasde Viena para um acordo geral baseado no princípio do equilíbrio depoder. Assim, aquilo que estava subjacente ao pensamento estratégicode Richelieu tornava-se, dois séculos mais tarde, um programa depolítica externa.

A Grã-Bretanha desprezava o sentido místico da Santa Aliança, asua referência a valores religiosos universalistas e o seu apego às velhasdinastias. O primeiro-ministro Castlereagh estava pragmaticamente

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interessado no princípio do equilíbrio europeu e, para sustentá-lo,articulou a Quádrupla Aliança, composta por Grã-Bretanha, Áustria,Prússia e Rússia. A França, que foi representada em Viena por Talleyrand,acabou sendo reintegrada ao concerto de potências européias em 1818,vindo a participar da Quíntupla Aliança. Dessa forma, o equilíbriopentagonal do continente ganhava expressão diplomática adequada.

O austríaco Metternich desempenhou o papel de elo entre aestratégia britânica e a cruzada legitimista russa. O príncipe sabia quea Santa Aliança lhe proporcionava a oportunidade de exercer influênciasobre a política do czar, moderando seus excessos e vinculando-a aoConcerto Europeu. Ao mesmo tempo, tinha plena consciência do papelindispensável da Grã-Bretanha na estabilização da Europa de Viena.

O Sistema de Metternich, como ficou conhecido o Concerto daEuropa de Viena, cristalizava a estabilização de um equilíbrio depotências soberanas que zelavam em conjunto pela manutenção daordem continental. A ordem européia passava a se estruturar sobre umarcabouço de geometria irregular: uma potência marítima que sediavaum império mundial (Grã-Bretanha), uma potência do OcidenteEuropeu restringida pela derrota militar (França), duas potências centro-européias rivais (Prússia e Áustria), uma potência conservadora doOriente Europeu (Rússia).

O Concerto de Viena representou a moldura para o máximoflorescimento da realpolitik. O sentido e o conteúdo da política externadessa época se desvincularam notavelmente das referências a valoresmorais ou princípios universais. O equilíbrio de poder deixou deconstituir, apenas, resultado eventual da correlação de forças entre osEstados para se tornar a meta explícita da diplomacia européia.

A unificação alemã e a Ordem de Bismarck

O foco de instabilidade principal do sistema foi, desde o início, arivalidade entre a Prússia e a Áustria. Ao distribuir regiões daConfederação Germânica para os dois competidores, mantendo reinosneutros entre eles, o Congresso de Viena tinha acendido um pavio quecontinuaria a queimar através do século. A disputa pela hegemonia sobrea Alemanha desaguaria na guerra direta entre os contendores. A unidade

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da Alemanha, realizada sob liderança prussiana, modificariaprofundamente o equilíbrio de poder em todo o continente.

A marcha para a unificação começou em 1834, com a criação doZollverein, a união alfandegária dos Estados alemães, que tinha por eixoa Prússia e excluía a Áustria. Em 1862, a nomeação de Otto von Bismarckpara chanceler da Prússia inaugurou a fase militar da unificação. Emaliança com a Áustria, a Prússia derrotou a Dinamarca na Guerra dosDucados (1864). Em seguida, a Prússia empreendeu a guerra contra aÁustria (Guerra Austro-Prussiana de 1866) e constituiu a ConfederaçãoGermânica do Norte. Em 1870, eclodia a Guerra Franco-Prussiana, pelaqual Bismarck obrigou os Estados germânicos do sul a se colocarem sobsua proteção.

A guerra franco-prussiana foi o coroamento da unidade alemã. Onovo Estado, organizado sob o poder da Prússia, nasceu à sombra daderrota e da humilhação francesas. O coroamento do imperadorGuilherme I e a proclamação do Segundo Reich alemão, em 1871, noSalão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, dilacerou por muito tempoo orgulho nacional francês. As indenizações e as reparações de guerra e,principalmente, a anexação da Alsácia e da Lorena fertilizaram orevanchismo e pavimentaram o terreno para as guerras futuras.

A guerra franco-prussiana foi desejada e preparada pelos doislados. A Prússia desenvolvia a escalada militar da unificação, quefertilizava o nacionalismo alemão. A França tentava evitar a unidadealemã para conservar o equilíbrio de poder que ruía lentamente.

O surgimento da Alemanha como potência unificada representoua desestabilização definitiva do velho Sistema de Metternich. A trajetóriainiciada em 1871 desembocaria, décadas depois, na Primeira GuerraMundial e no colapso da convivência multipolar européia. Essas décadasde transição, tensas e decisivas, transcorreram sob o signo de outraorganização dos poderes no continente: a ordem européia de Bismarck.

No centro da nova ordem se encontrava a Alemanha, que atravessavaum surto industrial sem precedentes. Em poucas décadas, ela sobrepujariaa Grã-Bretanha, tornando-se a maior economia européia. A potênciaemergente, situada no coração da Europa, funcionava como elo entre o

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oeste e o leste do continente. Nos dois lados, seu poderio crescente geravatemor e insegurança.

A ordem de Bismarck excluiu a Áustria de qualquer participaçãona nação alemã. O Império austro-húngaro, envenenado pelosnacionalismos internos, ingressava na sua crise terminal. A unificaçãoitaliana (1861-1871) o tinha privado dos estados do nordeste da Itália ecrescia a instabilidade no norte da Península Balcânica. Por outro lado,essa ordem se assentava na humilhação da França, onde germinava orevanchismo escorado na idéia de retomada da Alsácia e da Lorena.

A política externa de Bismarck estava consciente dos riscosembutidos na humilhação da França. Por isso, sua meta principal era oisolamento da França, evitando a constituição de alianças antigermânicas.Manobrando nessa direção, o chanceler prussiano costurou o Acordodos Três Imperadores, firmado em 1873, envolvendo a Alemanha, aÁustria-Hungria e a Rússia.

O Acordo dos Três Imperadores não podia durar muito, já que seaprofundavam os atritos entre russos e austríacos. Em 1879, foi firmadauma aliança secreta austro-alemã, explicitamente orientada para adefesa comum contra eventuais ameaças militares russas. Quase aomesmo tempo, Bismarck firmava o Pacto Russo-Alemão, que durouaté 1890. Assim, a Alemanha realizava arriscado mas indispensável jogoduplo, associando-se às duas potências rivais do Leste Europeu.

Até 1870, a França tinha se aproveitado das diferenças entre osestados alemães para atuar contra a unidade da Alemanha. Feita aunidade, a França derrotada teria que buscar segurança fora daAlemanha e, obviamente, contra a Alemanha. Na última década doséculo, a França conseguiu romper o isolamento imposto por Bismarcke firmar a aliança com a Rússia.

A aliança franco-russa de 1894 foi conseqüência lógica do temor,sentido nos dois lados do continente, do poderio alemão.21 A aliança

21 O sentido lógico da aliança franco-russa não suprime a polêmica sobre o caráter necessário, ou não,dessa evolução. O célebre analista e diplomata americano George Frost Kennan – em um cuidadosoestudo do entrechoque de perspectivas de política externa na Rússia do final do século XIX – revela aimportância das opções subjetivas, do fortuito e do acaso na decisão finalmente adotada do alinhamentocom a França. Ver George F. Kennan, O Declínio da Ordem Européia de Bismarck. Brasília: UnB, 1985.

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tinha base em ambições territoriais antigermânicas: a França visavarecuperar a Alsácia e a Lorena; a Rússia pretendia conservar a Polônia,que era alvo do interesse alemão. Entretanto, o pacto antigermânico foiretardado pela hábil diplomacia de Bismarck. Ele só se concretizouquando as disputas entre a Rússia e a Áustria demoliram o jogo duplodos alemães.

A rivalidade entre russos e austríacos foi ativada pela confusasituação dos Bálcãs. Lá, a Sérvia recebia o apoio russo nas suas pretensõesde unificação nacional dos eslavos do Sul. O projeto da Grande Sérviaameaçava o flanco sul do Império Austro-Húngaro, onde se localizavamas províncias da Eslovênia e da Croácia e partes da Bósnia-Herzegovina.

O apoio diplomático da Rússia aos sérvios era fruto não só dacomunhão cultural eslava e ortodoxa entre os dois povos como tambémdo antigo interesse russo por uma ponte na direção do Mediterrâneo.Os atritos periódicos com a Turquia – que dominava as saídas doMediterrâneo oriental e os estreitos de Bósforo e Dardanelos –aprofundavam o fosso que separava a Rússia da Áustria e aproximavamainda mais os russos dos sérvios.

Quando a aliança austro-alemã se tornou pública, em 1890, aRússia afastou-se da Alemanha. Em 1894 foi concluída a aliança franco-russa, que cercava de hostilidade os alemães e os seus aliados austríacos.Delineava-se a geometria de alianças da Primeira Guerra Mundial.

Texto Comentado

A POLÍTICA DE EQUILÍBRIO PLURIPOLAR, Raymond Aron(In: Paz e guerra entre as nações, op.cit., p.194-203)

A noção de equilíbrio de poder não tem eficácia analítica por simesma. Ela só ganha conteúdo concreto quando referenciada àscaracterísticas do sistema de Estados. A principal característica dequalquer sistema internacional é sua estrutura. Por estrutura entendem-se tanto as dimensões do sistema quanto a sua configuraçãogeopolítica.

O sistema europeu do século XIX foi, essencialmente, limitado àEuropa, e isso não porque a sua dinâmica fosse incapaz de repercutir

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sobre o mundo todo, mas pelo fato de que todos os atores nacionaisprincipais eram Estados do Velho Mundo. Apenas na passagem para oséculo XX esses limites se tornaram questionáveis, em função do aumentodas influências norte-americana e japonesa na cena internacional.Mesmo assim, um verdadeiro sistema universal só se consolidou nosegundo pós-guerra.

Esse sistema europeu se configurou como um condomínio de cincopotências dotadas de forças comparáveis. No início do século XX, aemergência da Itália como potência de primeira linha tendeu a substituira configuração pentagonal por uma outra, hexagonal. No textoselecionado, Aron reflete sobre o funcionamento teórico de um sistemapluripolar, examinando as regras propostas por Kaplan.

A política de equilíbrio pluripolar

Imaginemos um sistema internacional definido pela pluralidadede Estados rivais, cujos recursos, sem serem iguais, não chegam a umadisparidade fundamental. Por exemplo: França, Alemanha, Rússia,Inglaterra; Áustria-Hungria e Itália em 1910. Se esses Estados queremmanter o equilíbrio, devem aplicar certas regras que decorrem da rejeiçãoda monarquia universal.

Como o inimigo é, por definição, o Estado que ameaça dominaros outros, o vencedor de uma guerra (quem ganhou mais com ele) torna-se imediatamente suspeito aos olhos dos seus antigos aliados. Em outraspalavras, alianças e inimizades são essencialmente temporárias edeterminadas pela relação de forças. Em função do mesmo raciocínio,o Estado que amplia suas forças deve esperar dissidência de algunsaliados, que passarão para o campo contrário a fim de manter o equilíbriode forças. Por serem previsíveis tais reações defensivas, o Estado de forçacrescente deverá prudentemente limitar suas ambições, a não ser queaspire à hegemonia ou ao império. Nesse último caso, deverá esperar ahostilidade natural que sentem todos os Estados conservadores contraquem perturba o equilíbrio do sistema.

Convém refletir se é possível ultrapassar essas generalidades(que são também banalidades) e indicar as regras que se imporiamracionalmente aos atores de um sistema pluripolar (uma vez mais,

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trata-se de uma racionalidade hipotética, condicionada à premissa deque os atores desejam a manutenção do sistema). Um autor norte-americano, Morton A. Kaplan, propôs seis regras necessárias e suficientespara o funcionamento de um sistema esquemático, que ele denominoude balance of power (equilíbrio de poder), o qual parece corresponder aoque estamos descrevendo aqui.

Essas seis regras são as seguintes: (1) cada ator deve agir de modoa aumentar suas capacidades (capabilities), mas deve preferir anegociação à luta; (2) deve lutar para não deixar de utilizar umaoportunidade de aumentar sua capacidade; (3) deve abandonar a lutapara não eliminar um “ator nacional principal”; (4) deve agir de modo ase opor a qualquer coalizão ou ator individual que tenda a assumirposição de predominância com relação ao resto do sistema; (5) deveagir de modo a obrigar (constrain) os atores que aceitem um princípiosupranacional de organização; (6) deve permitir aos atores nacionais,vencidos ou “obrigados”, que participem do sistema como sóciosaceitáveis ou que um ator até então não essencial ingresse na categoriade ator essencial. Todos os atores essenciais devem ser tratados comosócios aceitáveis.

Dessas seis regras, uma deve ser abandonada imediatamente – aquarta, que é a simples expressão do princípio de equilíbrio (que jáencontramos no ensaio de David Hume), válido para todos os sistemasinternacionais. Interpretadas literalmente, as outras regras não seimpõem de forma evidente, de modo genérico.

A primeira vale para todo sistema definido pela luta de todoscontra todos. Como cada um dos membros de um sistema deste tipo sópode contar consigo, qualquer acréscimo de recursos é, em si, bem-vindo,desde que tudo o mais permaneça igual. Ora, raramente um Estadoaumenta seus recursos sem que haja qualquer alteração nos recursosde seus aliados ou rivais, ou na atitude de uns e de outros. Que anegociação seja preferível à luta pode passar por um postulado de políticarazoável, comparável ao que propõe o menor esforço possível para umrendimento econômico dado (em termos de produção ou de renda).Este postulado exige que se abstraia o amor-próprio ou o desejo de glóriados atores.

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Já a regra de lutar para não perder oportunidade de acrescentar a“capacidade” não é razoável ou mesmo racional. É verdade que, de modoabstrato, se tudo o mais permanece igual, os atores que aparecem nocenário internacional visam obter a capacidade máxima. Contudo, sequisermos determinar as circunstâncias precisas em que é racional queum Estado combata, ficaremos reduzidos a fórmulas quase despidasde significação concreta, do tipo o Estado deve tomar a iniciativa daluta se as vantagens que conta obter com a vitória forem maiores doque o custo provável do combate – a diferença entre as vantagens e ocusto deve ser tão grande quanto o risco da não-vitória, ou da derrota.Qualquer que seja a fórmula exata admitida, a possibilidade de aumentara capacidade do Estado não justificará, por si, o recurso às armas.

Os autores clássicos só admitiam como motivo razoável e legítimopara tomar a iniciativa das hostilidades a ameaça de hegemoniasuscitada pelo crescimento de um rival. Se bem que não chegue a serimoral, é imprudente contemplar passivamente a ascensão de um Estadorumo a posição de tal superioridade que os vizinhos fiquem à sua mercê.

A terceira e a sexta regras tendem a se contradizer ou, quandomenos, ilustram diversas eventualidades possíveis. Num sistema deequilíbrio pluripolar, o estadista prudente hesita em eliminar um dosatores principais. Ele não irá até o fundo da sua vitória se, ao entrar emcombate, temer a destruição de um inimigo temporário, necessário parao equilíbrio do sistema. Mas, se a eliminação de um dos atores principaislevar, direta ou indiretamente, à entrada em cena de novo ator de forçaequivalente, ele se perguntará qual dos atores – se o antigo ou o novo –é mais favorável a seus próprios interesses.

A quinta regra corresponde ao princípio de que num tal sistematodo Estado que obedece a uma idelologia supranacional, ou age deacordo com uma concepção desse tipo, é inimigo. Este princípio nãoestá implícito rigorosamente no modelo ideal de equilíbrio pluripolar.De fato, como este tipo de equilíbrio se manifesta normalmente porrivalidade entre Estados, cada um dos quais se mantém em posiçãosolitária, cuidando exclusivamente do seu interesse, o Estado que recrutaseguidores além das suas fronteiras (porque defende uma doutrinauniversal) constitui ameaça para os demais. Contudo, a inimizade

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inevitável entre os Estados nacionais e o que defende idéiastransnacionais não significa que os primeiros devem fazer a guerra aeste último. Tudo vai depender da relação de forças e da probilidade dereduzir pelas armas o atrativo da idéia transnacional.

De modo mais geral, todas essas regras supõem implicitamenteque as salvaguardas do equilíbrio e do sistema sejam o objetivo únicoou, pelo menos, a preocupação predominante dos Estados, o que nãoacontece. O único Estado que já agiu de acordo com essa hipótese, maisou menos conscientemente, foi a Inglaterra, que de fato não tinha outrointeresse a não ser a defesa do próprio sistema e o enfraquecimento doEstado mais forte, que poderia aspirar à hegemonia. Nenhum dosEstados europeus continentais poderia se desinteressar de tal modo pelasmodalidades de equilíbrio, ainda que não aspirasse ao domínio. A possede praças fortes e de províncias, o traçado das fronteiras, a distribuiçãodos recursos – estes eram os objetivos dos conflitos que os Estadoscontinentais queriam resolver em seu benefício. Não seria irracional que,para atingir tais objetivos, estivessem prontos a eliminar um atorprincipal, em caso de necessidade – desde que restassem outros atoresem número suficiente para reconstituir o sistema. A eliminação daAlemanha como ator principal, com a divisão daquele país, não era umato irracional do ponto de vista da política francesa, que via assimreforçada sua posição, sem reduzir perigosamente o número dos atoresprincipais do sistema.

A política puramente nacional dos Estados europeus só cobriu umperíodo curto, entre as guerras de Religião e as de Revolução. O fim dasguerras de Religião não se deveu à sua “ilegalização”, ou à derrotairremediável de Estados que sustentassem uma idéia transnacional, masà proclamação do primado do Estado sobre o indivíduo. O Estado passoua determinar a Igreja à qual os cidadãos deveriam aderir, tolerando osdissidentes sob a condição de que sua escolha religiosa fosse assuntoestritamente privado. A paz européia do século XVII foi alcançada poruma diplomacia complexa que restabeleceu o equilíbrio dos Estados eimpediu que as disputas das Igrejas e as crenças dos governantes,prejudicassem esse equilíbrio. Os soberanos passaram da conjunturada “guerra ideológica” à da Santa Aliança: qualquer rebelião contra ospoderes estabelecidos era incômoda, sendo, portanto,condenada –

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mesmo pelos Estados rivais. A estabilidade das grandes potências eracolocada acima do enfraquecimento de um Estado potencialmenteinimigo por dissidências internas ou rebeliões.

É possível que o autor cujas teses estamos discutindo aceitasse asobservações precedentes. Suas seis regras seriam seguidas por atoresperfeitamente racionais, dentro de um sistema pluripolar (balance ofpower) ideal. Contudo, mesmo admitindo que essas regras só se aplicama um tipo ideal, não estou pronto a subscrevê-las. A conduta do diplomatapuro não pode e não deve ser interpretada tendo por referência apenaso equilíbrio, definido pela rejeição da monarquia universal e pelapluralidade dos atores principais. O comportamento dos sujeitoseconômicos, num mercado ideal típico, é determinado, porque todosbuscam maximizar suas vantagens. Mas num sistema de equilíbriopluripolar, o comportamento dos atores diplomáticos não tem umobjetivo unívoco: em igualdade de condições, todos almejam o máximode recursos, mas, se o incremento desses recursos passa a exigir a guerra,ou provoca a reversão de alianças, os Estados hesitarão em assumir osriscos correspondentes.

A manutenção de um sistema dado está condicionada à salvaguardados atores principais, mas nenhum destes está racionalmente obrigadoa colocar a manutenção do sistema acima dos seus próprios objetivosnacionais. Admitir implicitamente que os Estados objetivem asalvaguarda ou o funcionamento do sistema é voltar a cometer, de outromodo, o erro de alguns defensores da política de poder, confundindo ocálculo dos meios ou o contexto da decisão com ela própria.

Não é possível prever os acontecimentos diplomáticos a partir daanálise de um sistema típico – como não é possível ditar aos príncipesuma conduta determinada em função do tipo de sistema. O modelo deequilíbrio pluripolar ajuda a compreender os sistemas históricos, reais,e as regras de Kaplan que examinamos indicam as circunstâncias quesão favoráveis à sobrevivência de tal sistema.

Os Estados estritamente “nacionais” não se consideram inimigosde morte, mas simplesmente rivais. Seus governantes não se considerampessoalmente ameaçados pelos governantes dos Estados vizinhos. TodoEstado é, aos olhos de qualquer outro Estado, um possível aliado; o

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inimigo de hoje é poupado porque poderá ser o aliado de amanhã eporque é indispensável ao equilíbrio do sistema. Nessas circunstâncias,a diplomacia é realista, às vezes mesmo cínica, e é também moderada erazoável. Quando os danos causados por outro tipo de diplomacia setornam evidentes, essa sabedoria despida de ilusões pareceretrospectivamente não só um tipo ideal, mas mero ideal.

A diplomacia “realista”, gerada pelo sistema de equilíbriopluripolar, não se ajusta às exigências mais elevadas dos filósofos. OEstado que muda de campo após a vitória provoca o ressentimento dosseus aliados, que podem ter tido uma quota maior do sacrifícionecessário para alcançar a vitória comum. Uma diplomacia de equilíbriopura ignora (e deve ignorar) os sentimentos; não concebe os Estadoscomo amigos ou inimigos. Não considera estes últimos piores do que osprimeiros e não condena a guerra em si. Admite o egoísmo e, se quiser,a corrupção moral (a aspiração à potência e à glória), mas esta corrupçãoque calcula parece, no final das contas, menos imprevisível e perigosado que as paixões – manifestações talvez idealistas, porém cegas.

Até 1945, a diplomacia norte-americana situava-se no pontoantípoda dessa imoralidade tradicional e prudente. Os Estados Unidostinham guardada a lembrança das duas grandes guerras da sua história;a luta contra os índios e a Guerra Civil da Secessão. Nos dois casos, o inimigonão era aceito como um Estado, com o qual se poderia manter coexistênciapacífica, uma vez terminadas as hostilidades. Os norte-americanos nãoviam as relações diplomáticas, as alianças e os conflitos como inseparáveisdo curso normal da vida dos Estados: a guerra era uma infeliznecessidade, à qual se devia atender; uma tarefa circunstacial que deviaser executada da melhor maneira e o mais depressa possível; não eraum episódio de uma linha histórica contínua, como na Europa. A opiniãopública norte-americana considerava a guerra imaginando o passado eo futuro: o inimigo era o culpado, que merecia ser punido – o malvadocujo comportamento devia ser corrigido, após o que reinaria a paz.

Obrigados, a partir de 1945, a uma inversão de alianças, os norte-americanos foram tentados (como o general MacArthur) a proclamarque tinham distribuído mal os papéis e os méritos: a China passarapara o campo dos “maus”, e o Japão, para o campo dos “bons”. Se o

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inimigo é a encarnação do mal e se as inversões de alianças são às vezesinevitáveis, chega-se à conclusão de que o bem e o mal podem mudarde corpo. Maquiavel pensava que a virtú passava de um povo a outro,no curso da história. De acordo com a diplomacia moralizante, é a virtude(conceito bem diferente da virtú maquiavélica) que migra.

Odiosa ou admirável, funesta ou preciosa, a diplomacia doequilíbrio não resulta de escolha deliberada dos estadistas, mas decircunstâncias várias.

O cenário geográfico, a organização dos Estados e a técnica militardevem impedir a concentração da força em um ou dois Estados apenas.Uma pluralidade de unidades políticas, dispondo de recursoscomparáveis, caracteriza o caráter estrutural do sistema pluripolar. NaGrécia como na Europa, a geografia não contrariava a independênciadas cidades e dos reinos. Enquanto a unidade política era a cidade, amultiplicidade dos centros autônomos de decisão vinha como resultadonecessário. Para usar as palavras de Hume, “…if we consider, indeed, thesmall number of inhabitants in any one republic compared to the whole, thegreat difficulty of forming siegs in those times, and the extraordinary braveryand discipline of every freeman among the noble people”, chegaremos àconclusão de que era relativamente fácil manter o equilíbrio e difícilimpor um império. Na Europa, depois da fase de soberania difusa, naIdade Média, a Grã-Bretanha e logo depois a Rússia erigiram umobstáculo insuperável no caminho da monarquia universal. O princípiode legitimidade dos Estados, dinásticos ou nacionais, não justificavaambições ilimitadas. Entre os séculos XVI e XX, os exércitos europeusnão estavam equipados para vastas conquistas: os soldados de Napoleão,por exemplo, deslocaram-se a pé da fronteira francesa até Moscou. Coma distância, as tropas se enfraqueciam mais ainda do que os soldadosde Alexandre.

A preocupação com o equilíbrio inspira a diplomacia na mesmamedida em que os homens – governantes e governados – se apegam àindependência da sua unidade política. Os cidadãos gregos nãodistinguiam sua própria liberdade da independência da cidade a quepertenciam. Tinham defendido em conjunto a civilização dos homenslivres contra o Império Persa, que a seus olhos se fundamentava no

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despotismo de um só governante. Mas lutavam entre si para defendera autonomia das suas cidades. A primeira monarquia francesa defendeuapaixonadamente sua independência total, rejeitando com paixãosubmeter-se ao domínio de um império. Os povos quiseram aindependência, manifestada no Estado nacional. Esta vontade deindependência e de soberania absoluta compensa a tendência àdiplomacia ideológica, mantendo uma espécie de homogeneidadeinterestatal, acima dos conflitos de fé ou de idéias. Contribui para“interiorizar” as regras de equilíbrio, que deixam de parecer conselhosde prudência para se transformarem em imperativos morais oucostumeiros. A salvaguarda do equilíbrio é admitida como dever comumdos homens de Estado. O Concerto Europeu transforma-se em órgãode arbitragem, de deliberação comum, talvez mesmo de decisão coletiva.

Mas é preciso que essas transformações não sejam rápidas demais,no quadro da relação de forças. Qualquer que seja o grau de passividadeou indiferença das massas, é melhor que as inversões de aliança nãoocorram de um dia para outro. Por maior que seja a inteligência dosestadistas, é preferível que os deslocamentos de recursos não falsifiqueminteiramente os cálculos feitos ontem. O sistema funciona melhorquando os atores são conhecidos e quando a relação de forças érelativamente estável. Contudo, nenhuma dessas condições, consideradasindependentemente, basta para garantir a manutenção do sistemapluripolar. A vontade de independência termina sendo neutralizada porpaixões transnacionais violentas. O interesse em um sistema comumnão resiste a uma heterogeneidade muito pronunciada. Os atoresinternacionais deixam de ser sócios aceitáveis se os seus povos estãoseparados por lembranças penosas que não querem esquecer, ou pelador de feridas que permanecem abertas. Depois de 1871, por exemplo,a França não poderia ser aliada da Alemanha ainda que o cálculo racionaldo equilíbrio aconselhasse tal aliança.

Mesmo antes de 1914, o crescimento do Reich e a oposiçãoirredutível entre a Alemanha e a França tinham contribuído paratransformar o sistema: as alianças tendiam a ser permanentes, a secristalizar em “blocos”. Entre as duas guerras, ideologias transnacionais(o comunismo e depois o fascismo) fizeram que o sistema se tornasse a

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tal ponto heterogêneo que desapareceu de todo a consciência do interessecomum que havia em manter o sistema. As inimizades ideológicasinternas agravavam a hostilidade entre os Estados. A revolução datécnica militar, provocada pelo desenvolvimento do motor de combustãointerna, parecia abrir caminho às grandes conquistas. Foi quando ostécnicos do sistema começaram a lembrar nostalgicamente a diplomaciade Richelieu, de Mazarin, de Talleyrand.

O sistema de equilíbrio pluripolar, tal como funcionava na belleépoque, era um meio-termo entre o estado natural e o império da lei: estadonatural porque o mais forte é o inimigo, por ser o mais forte; em últimaanálise, cada ator é o juiz exclusivo da sua conduta e goza o direito deescolha entre a paz e a guerra. Mas esse estado da natureza não é a lutade todos contra todos, sem regras ou limites. Os Estados reconhecemreciprocamente o direito que têm à própria existência; querem mantero equilíbrio do sistema e sabem disso, podendo também apresentar certasolidariedade com relação ao mundo exterior. As cidades gregas nãoignoravam seu parentesco profundo, por oposição ao caráter“estrangeiro” dos bárbaros.

Para os asiáticos, os conquistadores europeus davam sempre aimpressão de estarem reunidos num único “bloco agressivo”, semparecerem concorrentes.

Essa solução intermediária entre estado natural e império da lei(entre a “lei da selva” e a monarquia universal) é essencialmente precária.Em teoria, ela deixa aos soberanos a liberdade das iniciativas belicosas,se estas parecem indispensáveis para impedir a ascensão de um rivaltemido. O equilíbrio é imperativo da prudência, mais do que o bemcomum do sistema. Ora, se é freqüente a guerra destinada a debilitaros mais fortes, o sistema se torna estéril, custoso, detestável. O risco éainda maior porquanto é dificil distinguir entre “debilitar os mais fortes”e “humilhar os orgulhosos”. As cidades helênicas se combatiam movidaspelo desejo de segurança ou pelo orgulho do domínio? A diplomacia deLuís XIV estava animada pela preocupação com a segurança ou peloamor à glória? Houve época em que a diplomacia dos gabinetes (emrelação à qual os realistas teóricos de hoje mostram tanta indulgência)era julgada com severidade, porque os historiadores atribuíam aos reis

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as guerras de prestígio. O sistema de equilíbrio europeu talvez tenhalimitado, em certas épocas, a violência das guerras, mas nunca chegoua reduzir sua freqüência.

Meio-termo precário, o sistema tende permanentemente a sealterar, seja na direção de um retorno à “lei da selva”, seja no sentido do“império universal”, seja de “ordem jurídica”. A dupla consciência deuma civilização comum e de uma rivalidade permanente é, no fundo,contraditória. Se predominar o senso de rivalidade, a guerra não podeser expiada, e a diplomacia se desfaz. Se predominar o sentido da culturacomum, a tentação da unificação política ou da paz organizada setornará irresistível. Por que razão os gregos não uniam suas forças paraabater o Império Persa, em lugar de usá-las para se combatermutuamente? Por que motivo os europeus não dominavam em conjuntoa África e a Ásia, em vez de se arruinarem em lutas fratricidas?

É preciso notar que essas perguntas foram feitas, historicamente,expost facto – depois dos acontecimentos aos quais se referem. Filipe eAlexandre alcançaram, com a perda de autonomia das cidades, agrandeza que a Grécia seria capaz de atingir, se unida. Foi Valéry, depoisde 1918, que constatou que a política européia parecia ter como objetivoconfiar o governo do Velho Continente a uma comissão norte-americana. Com efeito, os europeus sempre reservaram o grosso dassuas forças às guerras disputadas entre si. Se os franceses enviaramgrandes exércitos além-mar, isso aconteceu na época em quedisputavam em vão, os nacionalismos, suas últimas possessões.

É explicável que esta suposta aberração só seja considerada assima posteriori. Os Estados temem seus rivais, e os povos temem seus vizinhos;uns e outros querem dominar seu próximo bem mais do que desejamdominar terras longínquas ou populações estranhas. Os vastos impériosdos espanhóis e dos ingleses foram conquistados devido à excepcionalsuperioridade militar dos conquistadores – estivessem estes motivadospelo espírito de aventura, pelo gosto pelo ouro, pela procura do lucro oupelo poder. Quando não há tal superioridade, as guerras se desenrolamdentro da mesma esfera de civilização. Os chineses e os japoneses, damesma forma que os europeus, guerrearam principalmente entre si.

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Talvez seja explicável, do ponto de vista psicológico, a nostalgiada diplomacia do equilíbrio, amoral e comedida; mas ela é vã eessencialmente retrospectiva. Os que têm saudade do tempo em que osdiplomatas eram indiferentes às idéias vivem evidentemente numsistema heterogêneo, numa idade de conflitos ideológicos. Os queadmiram a combinação sutil de egoísmo nacional e respeito peloequilíbrio são contemporâneos das lutas entre postulantes ao império,entre crenças temporais e espirituais, inseparáveis dos Estados que sedefrontam. Os que se maravilham com as combinações sutis que apluralidade de atores torna possíveis são os que vivem num campodiplomático ocupado por blocos rígidos.

Os homens (inclusive os estadistas) não têm a liberdade dedeterminar a distribuição de forças, o caráter ideológico ou o neutro dadiplomacia. Mas vale compreender a diversidade dos mundos existentesdo que sonhar com um mundo que não existe mais, porque a realidadenão é agradável.

4 – AS GUERRAS DO SÉCULO XX E AS ORIGENS DAGUERRA FRIA

A ordem européia de Bismarck entrou em dissolução aceleradaapós a Aliança Franco-Russa. No lugar de um sistema de poder emequilíbrio dinâmico, formavam-se arcos de alianças antagônicas,prenunciando a guerra. A estabilidade multipolar com raízes na derrotanapoleônica, que durou cerca de um século, desmanchava-sedefinitivamente.

A queda de Bismarck, em 1890, deu impulso suplementar aoexpansionismo alemão. Nos altos círculos do Estado, cimentava-se umavisão de mundo baseada na geopolítica do espaço vital (Lebensraum) enos germanismos cultural e racial (Kulturkampf). A geopolítica alemã,inspirada em Ratzel, associava o progresso social à afirmação territorialdo Estado, estimulando as idéias expansionistas. A Kulturkampfincentivava o nacionalismo alemão, difundindo idéias de superioridaderacial e destino histórico. Em 1893 era fundada a Liga Pangermânica,

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círculo político e intelectual que propugnava o expansionismo alemãona Europa central, em regiões habitadas por minorias étnicas de origemgermânica. As noções expansionistas substituíam a idéia de equilíbriode poder dos tempos de Bismarck, configurando a agressiva políticaexterna da virada do século (Weltpolitik).

O jogo de alianças enrijeceu-se velozmente. Em 1904 a Françaconcluía a Entente Cordial com a Grã-Bretanha. Em 1907, formava-se aTríplice Entente, envolvendo britânicos, franceses e russos. Isolada, aAlemanha aprofundava a sua aliança com a decadente monarquia dualaustro-húngara, emprestando-lhe apoio no cenário complexo dos Bálcãs.

O pavio que acendeu o barril de pólvora europeu foi a crisesérvia. Liderando os movimentos nacionalistas nos Bálcãs, os sérviosdesafiaram a hegemonia austro-húngara na região. A crise desaguouno atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, quando jovensmilitantes sérvios assassinaram o arquiduque Francisco Ferdinando,herdeiro do trono de Viena.

O mecanismo cego das alianças entrou em funcionamento. Emjulho, a Áustria atacou a Sérvia, e a Rússia movimentou as suas tropasem defesa do aliado balcânico. Em agosto a Alemanha declarou guerraà Rússia, e a França se mobilizou. A Alemanha invadiu a Bélgica eameaçou a França. A Grã-Bretanha interveio ao lado da França e daRússia, declarando guerra à Alemanha.

A Primeira Guerra Mundial

A Primeira Guerra foi um conflito europeu, não uma guerramundial. De certo modo, representou a continuação e a expansão daGuerra Franco-Prussiana de 1871, pois o eixo do confronto foi a disputacontinental entre a Alemanha e a França. A Rússia, aliada da França, ea Áustria-Hungria, aliada da Alemanha, participaram comocoadjuvantes no conflito principal.

A Grã-Bretanha foi um caso à parte. No fundo, a motivação quea arrastava ao conflito era a manutenção do equilíbrio de podercontinental, pano de fundo indispensável da sua política mundial.Assim, os britânicos mantinham excepcional coerência histórica,

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repetindo a atitude adotada cem anos antes contra Napoleão.Novamente, tratava-se de derrotar a potência continental candidata àhegemonia européia, desta vez materializada na Alemanha.

Entretanto, a Grã-Bretanha revelou-se incapaz de cumprir essafunção. Após as grandes batalhas de Verdun e do Somme, de 1916, ficoupatente o equilíbrio de forças militares e a impotência da Tríplice Ententepara derrotar a Alemanha. Apenas com a entrada dos Estados Unidosno conflito, em 1917, o panorama bélico foi dramaticamente modificado,e a Alemanha entrou em colapso.

Os Estados Unidos praticavam, desde a Doutrina Monroe (1823),uma política externa direcionada primordialmente para a América. Oisolacionismo, em relação à intrincada diplomacia dos Estadoseuropeus, constituía uma orientação estrutural de Washington, ancoradaem modos de enxergar o mundo derivados da própria formação nacionaldos Estados Unidos.22

No final do século, a constituição de poderosa esquadra e oalargamento da influência norte-americana para o Caribe e o Pacíficotinham consolidado a sensação de ilhamento da potência norte-americana em relação ao Velho Continente. Entretanto, esse isolamentoauto-imposto tinha como pano de fundo a situação de equilíbrio depoder na Europa. Nela residia a garantia norte-americana contraeventuais tentativas de interferência nos assuntos hemisféricos.

Por isso, o expansionismo geopolítico dos Estados Unidos nohemisfério ocidental realizava-se à sombra das disputas européias.Enquanto não emergisse uma potência européia hegemônica (isto é,com poder suficiente para interferir nas questões das Américas), asegurança dos Estados Unidos estaria assegurada. No fundo, a ativa

22 A transição da política externa americana do seu tradicional isolacionismo frente à Europa para aatitude de engajamento incondicional típica do segundo pós-guerra é, com justiça, apresentada comoexemplo de ruptura de fundo na forma de perceber o sistema internacional em Washington.Entretanto, atrás dessa ruptura esconde-se uma permanência ainda mais notável: a continuidade daretórica moralizante e do espírito de cruzada que formam o estilo nacional americano. Sobre oassunto, ver Raymond Aron, República imperial (Rio de Janeiro: Zahar, 1975); John Spanier, Lapolitica exterior norteamericana a partir de la segunda guerra mundial (Buenos Aires, Grupo EditorLatinoamericano, 1991), capítulos I e XIII; Henry Kissinger, Diplomacia (Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1997), capítulos 2, 9 e 15.

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diplomacia britânica voltada para conservar o equilíbrio europeuformava o biombo atrás do qual se escondia o isolacionismo americano.

A entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra decorreu daimpotência britânica para conservar o equilíbrio, derrotando a Alemanha.Assim, após dois anos de apoio material indireto à Tríplice Entente,Washington declarou guerra à Alemanha em abril de 1917. O engajamentoamericano não representou, portanto, a ruptura do seu tradicionalisolacionismo, mas o contrário: a única forma de recriar as condiçõesanteriores, propícias ao ilhamento. Essa postura seria confirmada apóso fim da guerra, com a retirada militar norte-americana do VelhoContinente e a recusa em participar da Liga das Nações.

A Primeira Guerra alterou profundamente o mapa político europeu.A desagregação do Império Russo (substituído pela União Soviética apósa Revolução Bolchevique), a dissolução da Áustria-Hungria e do ImpérioTurco deram origem aos novos Estados da Europa centro-oriental ebalcânica. A derrota alemã acarretou a devolução da Alsácia e da Lorenaà França e também a criação do “corredor polonês”, isolando a Prússiaoriental. Todo o sistema de Estados do século XIX foi demolido.

O Tratado de Versalhes (1919) e as outras disposições diplomáticasque reorganizaram as fronteiras européias (Tratado de Brest-Litovskde 1918, Tratado de Saint-Germain e Tratado de Neuilly de 1919,Tratado de Trianon e Tratado de Sèvres de 1920, Tratado de Lausannede 1923, Tratado de Locarno de 1925) não foram orientados para aconstituição de um sistema equilibrado de poderes. Ao contrário doCongresso de Viena de 1815, os tratados que encerraram a PrimeiraGuerra se pautaram quase que unicamente pelo revanchismo, aplicadocontra as potências derrotadas. Longe de produzirem uma arquiteturaestável no conjunto do continente, multiplicaram as zonas de tensão eos focos de atrito.

O Tratado de Versalhes representou a humilhação nacional daAlemanha. Ela foi responsabilizada pela guerra e obrigada a pagarindenizações financeiras e materiais. A França recebeu de volta a Alsáciae a Lorena e adquiriu direitos de exploração do carvão do Sarre porquinze anos. As Forças Armadas alemãs foram quase dissolvidas, e afronteira franco-germânica foi desmilitarizada, sob supervisão francesa.

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Foi consolidada a independência polonesa e vastos territórios habitadospor alemães transferiram-se para a Polônia. Finalmente, a Alemanhaperdeu as possessões coloniais, que se tornaram mandatos administradospelas potências vencedoras, em nome da Liga das Nações.

Em Versalhes se encontraram as raízes da ascensão do nazismo,em meio ao ambiente de dissolução moral e desordem econômica daAlemanha de Weimar. O nacionalismo alemão fertilizou-se sob ahumilhação imposta pelos vencedores. A geopolítica do espaço vitalressurgiu fortalecida, reclamando as terras povoadas por alemães naPolônia, na Tchecoslováquia e na Ucrânia. A ascensão fulminante deHitler, em 1933, a destruição da frágil ordem republicana e aproclamação do Terceiro Reich anunciavam o novo conflito.

O “apaziguamento” e a Segunda Guerra Mundial

Inicialmente, a política de Hitler combinou em doses apropriadasa ousadia e a prudência. A Alemanha retirou-se da Liga das Nações em1933 mas assinou um acordo de não-agressão com a Polônia poucosmeses depois. Em 1935 Hitler anunciava a retomada do treinamentomilitar e um ano depois remilitarizava a Renânia, desobedecendo aoTratado de Locarno. A passividade das potências do Ocidente estimulou-o a ir mais longe. O Eixo Berlim-Roma foi formado em 1936, e os Estadosnazi-fascistas coligados passaram a apoiar os rebeldes de FranciscoFranco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Em 1937, Chamberlain tornava-se primeiro-ministro britânico.Com o francês Daladier, ele articulou a política do apaziguamento,destinada a evitar um conflito com a Alemanha, cedendo posições aonazismo. Essa política franco-britânica se expressou em 1938 napassividade diante da anexação alemã da Áustria (Anschluss) e,principalmente, no vergonhoso episódio da Conferência de Munique,quando a Tchecoslováquia foi despedaçada com a entrega dos Sudetosà Alemanha e dos territórios eslovacos à Hungria.

O apaziguamento correspondeu a um projeto, que fracassoucompletamente, de edificação de um sistema de dissuasão mútua entrea Alemanha nazista e a União Soviética bolchevique. A Grã-Bretanha ea França acreditavam que o fortalecimento de Hitler representaria um

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seguro contra a União Soviética e, para isso, sacrificavam a Áustria e aTchecoslováquia.23

As vãs esperanças de Chamberlain e Daladier serviram apenaspara aplainar o terreno no qual Hitler manobrava. Em março de 1939,tropas alemãs invadiam a Boêmia e a Morávia tchecas. Em agosto, oschanceleres alemão e soviético firmavam um tratado de não-agressão,com cláusulas secretas de divisão da Polônia e dos Estados Bálticos (PactoMolotov-Ribbentrop). Em setembro, o Exército alemão invadia a Polônia,deflagrando a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

A Segunda Guerra representou a renovação da tentativa de unira Europa pela força. Quase um século e meio depois, Hitler seguia atrilha de Napoleão, conduzindo o projeto de edificação de um impériocontinental. A nova guerra, cujos horrores suplantaram os de todas asanteriores, colocou um ponto final na história do equilíbrio europeude poder. Essa longa experiência, nascida da derrota francesa de 1815,esgotou-se completamente com a ofensiva alemã de 1939.

Texto Comentado

A ORIENTAÇÃO NORTE -AMERICANA DA POLÍTICA EXTERNA,John Spanier(In: La Politica Exterior Norteamericana a partir de la Segunda GuerraMundial, Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1991, p.18-26)

O comportamento dos atores do sistema internacional estácondicionado à percepção própria de cada um do sentido da política

23 As evidências desse projeto são, entretanto, contestáveis: “Ahora puede preguntarse, desde la ventajosaperspectiva retrospectiva, sí ha sido más sabio por parte de los hombres de Estado occidentales haber configuradosus políticas de tal manera que hubieran embrollado a las potencias totalitarias entre sí, a fin de que seagotaran entre ellas y la seguridad de las democracias occidentales se mantuviera firme. Por cierto, esto esprecisamente lo que la propaganda soviética ha acusado de hacer a los hombres de Estado occidentalesdurante los años treinta y, por cierto, algunas de sus acciones eran tan ambiguas y mal aconsejadas queparecían darle pie a la acusación. De hecho, sería halagador para el vigor y el carácter incisivo de la políticaoccidental, en aquellos infelices años de fines de la década del treinta, que hubiéramos creer que era capaz desemejantes empresas desesperadas y maquiavélicas. Personalmente, no puedo encontrar prueba alguna deque cualquier cuerpo de opinión responsable, en alguno de los países occidentales, realmente quisiera laguerra en esa época, siquiera una entre Rusia y Alemania. Era claro que una guerra entre los nazis y loscomunistas rusos sólo podía tener lugar sobre los cuerpos postrados de los pequeños Estados de EuropaOriental y, a pesar de la tragedia de Munich, la extinción de la independencia de estos Estados de EuropaOriental era algo que nadie quería. Si faltara otra evidencia uno contaba con el crudo hecho de que, despuésde todo, el tema de la independencia de Polonia fue el motivo por el cual los franceses y los británicosfinalmente fueran a la guerra en 1939” (George F. Kennan, “La Segunda Guerra Mundial”, In: Las Fuentesde la Conducta Soviética y otros escritos. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1991).

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externa. Essa percepção, ancorada profundamente na cultura políticae na história nacional, configura um estilo. O texto selecionado investigaas diretrizes fundamentais do estilo nacional americano, que contrastavivamente com o estilo das nações européias.

O estilo americano, ao menos aparentemente, configura negaçãoda primazia do interesse nacional e, portanto, da política de poder –na orientação da política externa. Hans Morgenthau assumiu umaatitude crítica diante da formulação da política exterior norte-americana, reprovando seu apego à ideologia, seu sentido moralista esua retórica internacionalista. Henry Kissinger, adepto declarado dapolítica de poder, insistiu na importância das considerações relativas aoequilíbrio, que continuariam válidas no contexto bipolar da GuerraFria. A política externa que conduziu, como Conselheiro para SegurançaNacional e, depois, Secretário de Estado, do presidente Richard Nixon,no início da década de 1970, é apontada como exemplo de apego àsconsiderações geopolíticas e à realpolitik.

Por outro lado, é argumentável que o estilo americano, confrontadoàs realidades da política de poder vigentes na cena internacional, realizou-se unicamente no plano da retórica, como justificativa moralizante paraopções que, efetivamente, correspondiam ao interesse nacional. Essalinha de análise permite enxergar sob luz mais clara as orientaçõessubjacentes a diretrizes tão distanciadas no tempo como a DoutrinaMonroe (1823) e a Doutrina Truman (1947). Nos dois casos, a orientaçãonorte-americana definiu objetivos adequados ao interesse nacional,envolvendo-os em justificativas morais adaptadas à história e à culturapolítica singulares da nação.

A orientação norte-americana da política externa

La habilidad de Estados Unidos para vivir aislado durante el sigloXIX y la primera década del siglo XX no puede atribuirse solamente a ladistancia de la nación respecto de Europa o a la preocupación de Europapor la industrialización y el conflicto de clases en el frente interno y lacolonización en el externo, o al poderío de la Armada Real. Tambiéndebe tomarse en consideración la naturaleza de la democracia. EstadosUnidos se veía a sí mismo como algo más que simplemente la primera

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“nueva nación” del mundo; también era la primera democracia delmundo y, en tanto que tal, el primer país en la historia con el deseo deque se desarrollara y alcanzara mejores condiciones una gran cantidadde gente común, de poder asegurarles la oportunidad de enriquecer yennoblecer sus vidas. (“Dadme vuestras masas cansadas, pobres yamontonadas que claman por respirar en libertad”, dice la inscripciónde la Estatua de la Libertad.) La unión más perfecta era ser una sociedadigualitaria. Los conceptos europeos de jerarquía social, nobleza y títulos,y las amargas luchas de clases no se instalarían en este suelo democrático.

Desde el comienzo mismo de su vida nacional, los norteamericanosprofesaron una fuerte creencia en lo que consideraban su destino:extender, por el ejemplo, la libertad y la justicia social para todos y apartara la humanidad del mal camino, conduciéndola hacia la Nueva Jerusalénterrestre. La inmigracíon masiva del siglo XIX – especialmente despuésde 1865 – vendría a reforzar este sentido de destino. “El repudio deEuropa”, dijo John Dos Passos “es, después de todo, la principal excusaque tiene Estados Unidos para existir”. Europa representaba la guerra,la pobreza y la explotación; América, la paz, las oportunidades y lademocracia. Pero Estados Unidos no sólo sería el faro de una manera devivir internamente en forma democráticamente superior. Sería tambiénejemplo de un modelo de comportamiento internacional democráticomoralmente superior. Estados Unidos rechazaría voluntariamente lapolítica de la fuerza para la conducción de su política exterior. La teoríademocrática plantea que los pueblos son racionales y morales y que lasdiferencias entre ellos pueden arreglarse por medio de la persuasiónracional y la exhortación moral. Por cierto, garantizada esta presunción,las únicas diferencias que podían surgir serían sólo malas interpretacionesy, desde que los pueblos están dotados de razón y de sentido moral,¿qué entredichos no podrían arreglarse dada la necesaria buenavoluntad? Se consideraba que la paz – el resultado de la armonía entrelos pueblos – era el estado natural o normal.

Por el contrario, se consideraba al conflicto una desviaciónprimordialmente causada por líderes perversos, cuya moralidad y razónhabían sido corrompidos por el ejercicio de un poder descontrolado. Lapolítica de la fuerza era el instrumento de los conductores autocráticosy egoístas – es decir, líderes no sometidos al control de la opinión pública

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democrática –, que gustaban esgrimirla para su ventaja personal. Paraellos, la guerra era un juego grandioso. Ellos podían permanecer en suspalacios, comiendo bien y disfrutando de los lujos de la vida. No sufríanninguna de las privaciones de la guerra. Estas recaían en la gente común,que tenia que dejar a su familia para luchar, soportar impuestos másaltos para pagar la guerra y, seguramente, ver cómo se destruían sushogares y sus familias. La conclusión era clara: los Estados nodemocráticos tenían una tendencia a la guerra y al mal; las nacionesdemocráticas, en las cuales el pueblo controlaba a sus líderes yperiódicamente los cambiaba, eran pacíficas y morales.

La experiencia norteamericana parecía abonar esta conclusión:Estados Unidos era una democracia y estaba en paz. Más aún, la pazparecía ser el estado habitual de las cosas. Era lógico que se entendieraa la democracia y al comportamiento y intenciones pacíficas comosinónimos. Los norteamericanos nunca se preguntaban si la democraciaera responsable por la paz que disfrutaban o si la paz era producto deotras fuerzas. Las constantes guerras europeas parecían dar la respuesta:la política europea era la política de la fuerza y ello era así la raíz de lanaturaleza no democrática de los regímenes europeos. Los norteamericanosse habían separado de Europa y de sus conflictos de clase y política defuerza después de la guerra revolucionaria. América tenía quesalvaguardar su pureza democrática y abstenerse de involucrarse enlos asuntos de Europa, a menos que quisiera rebajarse y corromperse.La no alienación o el aislacionismo, en consecuencia, era la políticamoralmente correcta, porque le permitía a Estados Unidos mantenerseaislado de las estructuras sociales jerárquicas y de los hábitosinternacionales inmorales propios de Europa.

Al confundir los resultados de la geografía y de la atención prestadapor Europa a Asia, el Medio Oriente y Africa con las virtudes de lademocracia norteamericana, los norteamericanos podían disfrutarpresuntuosamente de su autoconferida superioridad moral comoprimera democracia del mundo. La Doctrina Monroe, proclamada en1823, la primera que subrayó, oficialmente y de manera explícita, estadiferencia ideológica entre el Nuevo Mundo y el Viejo Mundo, declarabade forma específica que el sistema político norteamericano era“esencialmente diferente” del europeo, cuyas naciones estaban

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constantemente envueltas en guerras. La consecuencia era muy clara:el gobierno democrático equivale a la paz y el gobierno aristocrático –al que se identificaba con el despotismo – significa guerra.

Pero esta asociación de la paz con la democracia no era la únicarazón del desprecio por la política de la fuerza. Otra razón era queEstados Unidos era mayoritariamente una sociedad de una sola clase,en la cual la mayoría compartía la creencia en un conjunto común devalores de clase media, capitalistas y democráticos. América era únicaen este aspecto entre las naciones. Los países europeos eran, porcontraste, sociedades de tres clases sociales. Además de la clase media,contenían en su cuerpo político una clase aristocrática, cuyas energíasestaban consagradas, ya a mantenerse en el poder, ya a recuperar elpoder y volver a los gloriosos días de su pasado feudal. Además, laurbanización europea y la industrialización ocurridas durante el sigloXIX habían dado origen a un proletariado el cual, por sentir que norecibía una porción justa del ingreso nacional, se había convertido enuna clase revolucionaria. Las naciones del Viejo Mundo eran uncompuesto de estos tres elementos: una aristocracia reaccionaria, unaclase media democrática y un proletariado revolucionario. Estas nacionestenían, tanto en sentido intelectual como político, una derecha, un centroy una izquierda.

Estados Unidos sólo tenía un centro, tanto intelectual comopolíticamente. Nunca había experimentado un pasado feudal y, enconsecuencia, no tenía una amplia y poderosa clase aristocráticaocupando la derecha. Como era, en todo sentido, una sociedadigualitaria, también carecía de un genuino movimiento de protesta deizquierda, tal como el socialismo o el comunismo. Norteamérica, comolo había dicho Alexis de Tocqueville, había “nacido libre” como unasociedad de clase media, individualista, capitalista y democrática. Noestaba dividida por el tipo de profundos conflictos ideológicos que enFrancia, por ejemplo, enfrentaron a una clase con la otra. Ninguna clasele había tenido jamás tanto miedo a la otra, como para preferir la derrotanacional a la revolución interna, como ocurrió en Francia a fines de ladécada de 1930, cuando la haute bourgeoisie era tan medrosa de unarebelión proletaria que su slogan se convirtió en “Mejor Hitler que Blum”(León Blum, el líder socialista francés).

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Este abrumador acuerdo acerca de los valores fundamentalespropios de la sociedad norteamericana y las intensas luchas sociales deEuropa reforzaron la mala interpretación norteamericana de lanaturaleza y funciones de la fuerza en la vida internacional. Los gruposinsatisfechos nunca desarrollaban una ideología revolucionaria porquela creciente prosperidad los alcanzaba antes de la fuerza en un sentidointernacional. Los grupos insatisfechos nunca desarrollaban una ideologíarevolucionaria porque la creciente prosperidad los alcanzaba antes deque pudieran convertir en acción política sus quejas contra elcapitalismo. (Los negros norteamericanos eran la excepción, porquenunca compartieron esta riqueza o este poder político.) Con la excepciónde la guerra civil, Estados Unidos – políticamente seguro, socialmentecohesionado y económicamente próspero – era capaz de resolver lamayoría de sus diferencias pacificamente. Al vivir en el aislamiento, elpaís podía creer en un proceso histórico evolutivo, democrático yeconomicamente próspero; la revolución y la radicalización seconsideraban malas. En agudo contraste, debido a sus luchas internasde clase y a los conflictos externos entre ellas, las naciones de Europacomprendían plenamente que los conflictos sociales son naturales yque la fuerza juega un papel en su solución.

En el pasado, los norteamericanos habían estado hasta tal puntode acuerdo sobre los valores básicos, que cada vez que la nación habíasufrido alguna amenaza externa, también se había temido algún tipode deslealtad interna. Una de las grandes ironías de la sociedadnorteamericana es que, mientras los norteamericanos tienen esta unidadde creencias compartidas en un grado mucho mayor que cualquier otropueblo, sus temores respecto de un peligro externo repetidamente loshan llevado, primero, a insistir en una reafirmación general, en ciertaforma dogmática, de lealtad a la “forma de vida norteamericana” y, selos etiquetaba de “peligrosos para la seguridad y de lealtad dudosa”.Quizás sólo una sociedad tan abrumadoramente comprometida conun conjunto de valores podría haber sido tan sensible a la subversión ytan temerosa de la traición interna. Quizás sólo una sociedad en la cualdos o más ideologías han aprendido a convivir desde hace bastantetiempo pueda genuinamente tolerar opiniones diversas. ¿Quién haoído jamás hablar de actividades “antibritánicas” o “antifrancesas”?

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A menudo se ha llamado a Estados Unidos un “crisol” debido a losdiversos grupos nacionales que comprende, pero, antes de que cadageneración de inmigrantes hubiera sido plenamente aceptada en lasociedad norteamericana, tuvo que “americanizarse”. Pocosnorteamericanos han aceptado alguna vez la diversidad como un valor.La sociedad norteamericana, en efecto, se ha sentido muy orgullosa dedestruir la diversidad por medio de la asimilación.

En ningún caso la política les ha parecido demasiado importantea los norteamericanos. Estados Unidos maduró durante el siglo XIX, laépoca del capitalismo de laissez-faire, cuya presunción básica es que laspersonas están económicamente motivadas. El interés propio gobernabael comportamiento. Se lo puede denominar “interés propio ilustrado”,pero sigue siendo interés propio. Los individuos, buscando llevar almáximo su riqueza, respondían a la demanda del mercado libre. En unesfuerzo por aumentar los beneficios, producían lo que querían losconsumidores. Las leyes de oferta y demanda, en consecuencia,transformaban al egoísmo económico de cada persona en resultadossocialmente beneficiosos. De esta manera, toda la sociedad prosperaría.El mercado libre se consideraba la institución central que suministraba“el mayor bien para la mayor cantidad”. La política importaba poco eneste sistema económico que se ajustaba a sí mismo, basado en losindividuos cuyos esfuerzos combinados derivaban en un bienestargeneral. El mejor gobierno era aquel que menos gobernaba. Lainterferencia arbitraria de la política con las leyes económicas delmercado sólo afectaba negativamente los resultados que estas leyes sesuponía que producirían. La propiedad privada, los beneficioseconómicos y el mercado libre eran las claves para asegurar la felicidaddel pueblo, al hacerlo vivir en la abundancia. El capitalismo, en resumen,reflejaba el materialismo de la era de la industrialización.

Para plantear el tema de manera más cruda: la economía era buenay la política mala. Esta simple dicotomía se le planteaba naturalmentea la clase media capitalista. Los beneficios de la libertad económica ¿acasono eran tan “evidentes por sí mismos” como las verdades establecidasen la Declaración de la Independencia? ¿Y acaso esta libertad económicano se había ganado tras una larga y amarga lucha de la clase mediaeuropea tendiente a reducir la autoridad del poderoso Estado

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monárquico y finalmente derrocarlo a través de una revolución enFrancia? La clase media, en la medida en que se había vuelto máspróspera y numerosa, se había tornado cada vez más remisa a pagarlos impuestos de los cuales la aristocracia, por lo general, estaba exenta,a las restricciones impuestas en el comercio y la industria, a la ausenciade instituciones en las cuales estuvieran representados los intereseseconómicos y políticos de la clase media, a las barreras de clase que,respecto del status social, implicaban carreras como el ejército y laburocracia y a la falta general de libertad de pensamiento y expresión.Como la clase media identificaba el poder del Estado con su propiafalta de libertad, su meta era limitar este poder. Sólo imponiendorestricciones sobre la autoridad del Estado podía ganar la libertadindividual y, sobre todo, el derecho a la empresa privada al que aspiraba.La filosofía democrática planteaba estos reclamos en términos de los“derechos naturales” del individuo. El ejercicio de la autoridad políticase equiparaba con el abuso de dicha autoridad y la supresión de laslibertades personales. El poder del Estado debía limitarse al mínimopara asegurar el máximo de libertad política y económica del individuo.Fue con ese propósito en mente que la constitución Norteamericanadividió la autoridad entre los estados y el gobierno federal y, dentro deeste último, entre la rama ejecutiva, legislativa y judicial. El federalismoy la separación de los poderes se diseñaron deliberadamente paramantener débiles a todos los gobiernos, en especial al gobierno nacional.Los problemas seculares se resolverían, no por medio de acciones políticasdel Estado, sino por las acciones económicas de los mismos individuosdentro de la sociedad en tiempo de paz.

La experiencia norteamericana reflejaba esta filosofía; millonesde personas venían a Estados Unidos desde otras tierras en busca deuna vida mejor. Norteamérica era el paraíso terrenal donde cada unopodía ganar lo suficiente para llevar una vida respetable. Tierra virgen,América presentaba magnificas oportunidades para la empresaindividual. Primero, había la frontera del Oeste, con sus ricas tierras;después, durante la Revolución Industrial, los generosos recursosnaturales del país, El entorno, la tecnología, la empresa individual y laspolíticas gubernamentales favorables le permitían al pueblonorteamericano convertirse en un “pueblo de abundancia”. Pero ganar

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dinero no sólo era económicamente necesario para alcanzar un estándar

de vida cómodo, también era psicológicamente necesario a fin de obtener

status social y ganarse el respeto de los compatriotas.

Se deduce lógicamente que, si las ganancias materiales confieren

respeto y posición social, todos se lanzarían a buscar el “dólar

todopoderoso”. Si las personas, en una sociedad igualitaria, son juzgadas

primordialmente por sus logros económicos, se concentrarán en salir

adelante. No es sorprendente, en consecuencia, que el dinero se haya

convertido, en Estados Unidos, en un parámetro común de valor más

que en cualquier otro país. El dinero es el símbolo del poder y del prestigio,

es el signo de éxito, tanto como el fracaso en ganar dinero es una muestra

del malogro personal. Se ha dicho, no sin cierta justicia, que los varones

norteamericanos prefieren tener dos autos antes que dos amantes.

No es sorprendente, entonces, que en estas circunstancias la

solución para los problemas internacionales se considerara un asunto

económico más que político. La economía se identificaba con la armonía

social y con el bienestar de todos los pueblos; la política se equiparaba

al conflicto, A la guerra y la muerte. Tanto como la “buena sociedad”

sería producto de la libre competencia, la sociedad internacional pacífica

se crearía a partir del comercio libre. Una política de laissez-faire

internacional beneficiaría a todos los Estados, tanto como una política

nacional de laissez-faire beneficiaba a todos los individuos. En

consecuencia, los pueblos de todo el mundo tenían un interés creado en

la paz, a fin de llevar adelante sus relaciones económicas. El comercio

dependía de la mutua prosperidad (los pobres no hacen demasiados

intercambios comerciales entre sí). La guerra empobrece y destruye y

crea mala voluntad entre las naciones. El comercio beneficia a todos los

Estados participantes; a mayor cantidad de comercio, mayor es el

número de intereses individuales implicados. El comercio determinaba

un interés creado en la paz; la guerra era poco provechosa económicamente

y, en consecuencia, obsoleta. El comercio libre y la paz, en resumen,

eran una y la misma causa.

Un resultado de este desprecio norteamericano por la política de

la fuerza fue que, historicamente, Estados Unidos ha delineado una

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tajante distinción entre la guerra y la paz en su enfoque de la políticaexterior. La paz se caracterizó como un estado de armonía entre las

naciones; la política de la fuerza, por el otro lado, se consideró anormal

y la guerra un crimen. En tiempos de paz, uno debía prestar muy poca

atención o ninguna a los problemas exteriores; por cierto, hacerlo hubiera

distraído a la gente de sus preocupaciones individualistas y materialistas

y afectado a la escala de valores sociales. El efecto de esta actitud fue

claro: los norteamericanos prestaban atención al mundo exterior con

una actitud remisa y por lo general sólo cuando se los provocaba, es

decir, cuando la amenaza exterior se había convertido en algo tan claro

que no podía seguir siendo ignorada. O, para decirlo de una manera

diferente, en política Estados Unidos rara vez tomaba la iniciativa; los

estímulos responsables por la formulación de la política exterior

norteamericana venían del otro lado de las fronteras del país.

Una vez que se provocaba a los norteamericanos y que Estados

Unidos tenía que recurrir a la fuerza, el empleo de esta fuerza se

justificaba en términos de los principios morales con los cuales Estados

Unidos, como país democrático, se identificaba. Sólo se podía justificar

la guerra presuponiendo propósitos nobles y destruyendo

completamente al enemigo inmoral que amenazaba la integridad, sino

la existencia de estos principios. El poder norteamericano tenía que ser

un poder “justo”; sólo su pleno ejercicio podía asegurar la salvación o la

absolución del pecado. Un segundo resultado del desprecio por la política

de la fuerza era, en consecuencia, que la aversión nacional hacia la

violencia se convirtió, en ocasiones, en una glorificación nacional de la

violencia y las guerras se convirtieron en cruzadas ideológicas tendientes

a destruir al Estado enemigo y enviar a su pueblo a un reformatorio

democrático. Hacer que el mundo fuera seguro para la democracia – el

objetivo planteado durante la Primera Guerra Mundial – era realizar-

se democratizando al populacho de la nación agresora, haciendo que

sus nuevos conductores fueran responsables del pueblo al que

gobernaban y así convirtiendo al Estado anteriormente autoritario o

totalitario en un pacífico Estado democrático y prohibiendo para

siempre la política de la fuerza. Una vez que se había alcanzado dicho

objetivo, Estados Unidos nuevamente podía replegarse en sí mismo,

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con la conciencia tranquila porque el trabajo norteamericanonuevamente había demostrado ser un “buen trabajo”. En este contexto,los asuntos exteriores eran una desagradable distracción apenastemporaria porque se aplicaba la máxima fuerza al agresor como castigoy como una lección de que la agresión era inmoral y no recibiría premioalguno. Como resultado, las guerras norteamericanas eran guerrastotales a fin de acabar con la guerra misma, pero cuando terminabanEstados Unidos nuevamente se replegaba en la política internacional.Una vez que se había restablecido la normalidad, el péndulo volvía a sulugar originario.

Este es el modelo de la política exterior norteamericana: delaislamiento al intervencionismo, del repliegue a la cruzada y vuelta alprincipio. En su carácter de país política y moralmente autoproclamadosuperior, Estados Unidos podía permanecer incontaminado sóloabsteniéndose de involucrarse en un mundo corrupto o, si el mundo nolo podía dejar en paz, destruyendo la fuente del mal. En resumen, tantolos impulsos hacia el aislacionismo como hacia la cruzada surgían delmismo moralismo. estas oscilaciones tendían, además, a estaracompañadas por radicales cambios de humor: de un estado deoptimismo, que surgía de la creencia en que Norteamérica iba a reformaral mundo, a la desilusión en la medida en que los grandiosos objetivosque Estados Unidos se había planteado para sí demostraban estar másallá de su alcance. Al sentirse demasiado buena para este mundo, elcual claramente no quería ser reformado sino que prefería sus viejoshábitos corruptos, la nación se replegaba en el aislacionismo paraperfeccionar y proteger su modo de vida. Al haber esperado demasiadode su utilización del poder, Estados Unidos también tendía a sentirseculpable y avergonzado por haber utilizado dicho poder.

El tercer resultado del desprecio por la política de la fuerza erala separación entre la fuerza y la diplomacia. En tiempo de paz, sesuponia que sin el apoyo de la fuerza la diplomacia preservaría laarmonía ente los Estados. Pero, en tiempos de guerra, las consideracionespolíticas se subordinaban a la fuerza. Una vez que los diplomáticoshabían fracasado en su tarea de mantener la paz, apelando a la moraly la razón, las consideraciones militares se tornaban primordiales y serecurria al soldado.

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Estados Unidos tradicionalmente ha rechazado el concepto dela guerra como instrumento político y la definición de Carl vonClausewitz de la guerra como continuación de la política por otrosmedios. Por el contrario, ha considerado a la guerra como una operaciónpoliticamente neutral que debía conducirse por medio de sus propiasreglas profesionales y sus imperativos. El oficial era un hombre apolíticoque conducía su campaña de manera estrictamente militar y tecnicamenteeficiente.

5 – O SISTEMA BIPOLAR E UNIVERSAL DA GUERRA FRIA

A ordem da Guerra Fria presidiu as relações internacionais nasdécadas do pós-guerra, entre 1947 e 1989. Em 1947, as rivalidades entreos vencedores da Segunda Guerra Mundial precipitaram a formulaçãoda Doutrina Truman e o subseqüente lançamento do Plano Marshall.Com essas medidas, os Estados Unidos engajavam-se na montagem deuma área de influência na Europa ocidental, organizando a contençãoda influência continental soviética. A confrontação entre blocosgeopolíticos subordinados às superpotências nucleares, delineada já nasconferências de paz de 1945, tornava-se o vetor principal das relaçõesinternacionais.

A desativação do Muro de Berlim, em novembro de 1989, assinalouo encerramento do período histórico da Guerra Fria. Marco dadecomposição do conjunto do bloco soviético da Europa oriental e doprocesso de reunificação alemã, esse fato separou nitidamente duasépocas. A Guerra Fria assentava-se na bipartição do espaço europeu,cuja manifestação crucial foi a divisão da Alemanha. A “nova ordem”internacional assistiu à reconstituição de um espaço europeu autônomo,que tem por vértice a Alemanha reunificada.

Os quarenta e três anos de Guerra Fria constituíram um períodosingular na história. O sistema internacional de Estados adquiriu umageometria bipolar e uma dimensão universal.

A bipolaridade de poder distingue a Guerra Fria de todo o períodoprecedente da história moderna e da contemporânea. Desde o

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surgimento dos Estados nacionais, na Europa pós-feudal, o podergeopolítico distribuiu-se de maneira multipolar.

As crises do entreguerras – a depressão econômica aberta em 1929,a emergência do fascismo e a do nazismo na Europa – solaparam asbases da convivência internacional multipolar, convulsionada desde ofim do século XIX pelas repercussões da unificação alemã. A SegundaGuerra Mundial assestou um golpe de morte nas tradicionais potênciaseuropéias e o fim do conflito revelou um cenário mundial dominadopelas novas superpotências do pós-guerra: os Estados Unidos e a UniãoSoviética.

Em princípio, os sistemas multipolares apresentam maiorestabilidade e segurança que os sistemas bipolares. A distribuição dopoder entre diversas potências gera possibilidades variadas de alianças,que se modificam e evoluem no sentido da manutenção de um equilíbriodinâmico de forças. Essa situação de equilíbrio de poder diminui osentimento de insegurança das potências, formando as bases de períodosmais ou menos prolongados de paz.

Nos sistemas bipolares, pelo contrário, toda e qualquer iniciativatomada por uma das potências, visando ampliar a sua margem desegurança e o seu poder, é encarada pela potência rival como ameaçadireta e vital, que exige resposta simétrica. Assim, a insegurançatransforma-se em fator decisivo das relações internacionais, originandoum movimento contínuo de cada um dos antagonistas tendente areforçar seu próprio poder. O exemplo clássico dessa dinâmica circulartípica da bipolaridade foi a corrida armamentista na qual se engajaramas superpotências da Guerra Fria.

Entretanto, paradoxalmente, o sistema bipolar da Guerra Friacoincidiu com longo período de quatro décadas de paz e estabilidade defronteiras no espaço euroasiático. Nessa área, foco principal daconfrontação entre soviéticos e americanos, a acumulação inédita dearmas convencionais e nucleares gerou o equilíbrio do terror,prevenindo e impedindo a explosão de um conflito militar devastadorque não pouparia nenhum dos envolvidos. O equilíbrio do terror,materializado na capacidade de aniquilação planetária disponível nosarsenais das superpotências, foi forma singular de equilíbrio de poder

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que fez da Guerra Fria a mais duradoura época de paz armada até hojeconhecida.24

A Guerra Fria assinalou a decadência geopolítica da Europa. Aspotências européias tradicionais controlaram a política internacionalcontemporânea até a Primeira Guerra. Os efeitos desse conflitodevastador, que continuaram a repercutir no entreguerras,representaram golpe definitivo nas potências européias. A SegundaGuerra marcou sua substituição pelas superpotências da Guerra Fria.Então, o espaço europeu foi bipartido em zonas de influência submetidasaos Estados Unidos e à União Soviética. Geograficamente, a GuerraFria foi o período da hegemonia dos pólos de poder exteriores, localizadosa ocidente e a oriente do continente europeu.

A decadência geopolítica da Europa repercutiu fora do continente,nas áreas coloniais da África e da Ásia: o período da Guerra Fria foitambém o da descolonização. No pós-guerra, o crescimento dosmovimentos de libertação nacional africanos e asiáticos provocaram aindependência de praticamente todas as antigas colônias européias. Esseprocesso assinalou a dissolução da influência mundial de potências comoa Grã-Bretanha e a França, que tinham constituído vastos impérios noséculo XIX. Assinalou ainda o fim dos sonhos imperiais de Estados quehá muito tinham deixado de ser potências, mas conservavam domínioscoloniais no além-mar, como era o caso de Portugal.

O processo de descolonização ampliou o âmbito geográfico dosistema internacional de Estados. Antes da Segunda Guerra, o sistemade Estados restringia-se ao norte da Eurásia, à América e à Oceania. Nopós-guerra, a Ásia meridional e a África passaram a abrigar dezenas denovos Estados politicamente soberanos. Assim, o sistema de Estadostornou-se, pela primeira vez, um sistema universal.

A universalidade do sistema de Estados, expressa na AssembléiaGeral da ONU, é outro traço marcante da Guerra Fria. Entretanto, essa

24 Contudo, os efeitos do poderio nuclear sobre a estabilidade do sistema são objeto de polêmica:“There are diametrically opposed views about about the impact of the spread of nuclear capabilities to moreand more states – what was known in the 1960s as the Nth power problem. One view of nuclear proliferationis that it is likely to enhance stability, by turning each state wich possesses nuclear weapons into an inviolablesanctuary. The other, and more common, view is that the more states that have nuclear weapons the greater thepotential for miscalculation, accident, or even deliberate use” (Phil Williams e outros, op. cit., p. 60).

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universalidade se combinou com uma nítida hierarquia de poder políticoe econômico. Politicamente, a desigualdade de poder foi formalizadano Conselho de Segurança da ONU, no qual os cinco membrospermanentes (Estados Unidos, União Soviética, Grã-Bretanha, Françae China) exercem direito de veto sobre as decisões do organismo.Economicamente, a desigualdade de poder materializou-se em relaçõesde dependências tecnológica e financeira que subordinaram as naçõeslatino-americanas, asiáticas e africanas às potências industriais.

A Europa dividida

As conferências de Yalta e Potsdam, realizadas em 1945, reuniramos vencedores da Segunda Guerra e redefiniram a organizaçãogeopolítica do continente europeu. Os “Três Grandes” (Estados Unidos,União Soviética e Grã-Bretanha) começaram a delinear nesses encontrosa bipartição do espaço europeu em zonas de influência antagônicas.

A Conferência de Yalta realizou-se em fevereiro, poucas semanasantes da rendição alemã. Nesse encontro se reorganizaram as fronteirassoviéticas e foram estabelecidas as bases dos novos regimes políticos aserem implantados na Europa oriental.

O território soviético foi ampliado, com a inclusão de áreaspertencentes à Romênia e à Polônia. Sob protestos dos representantesocidentais, a URSS de Stalin confirmou a anexação dos Estados Bálticos(Lituânia, Estônia e Letônia), realizada em 1939. Dessa forma, o territóriosoviético passava a coincidir, quase exatamente, com o território doImpério Russo às vésperas da Primeira Guerra. Stalin, o czar vermelho,reafirmava a vocação imperial da Grande Rússia.

Na Europa oriental, as tropas nazistas tinham sido substituídaspelo Exército soviético. Em Yalta, o mapa militar do final da guerraforneceu as bases para a organização dos novos regimes políticos que seinstalariam na região. Um acordo inicial entre os participantes previa aformação de governos de união nacional na Polônia, na Tchecoslováquia,na Hungria, na Romênia, na Bulgária, na Iugoslávia e na Albânia. Taisgovernos contariam com representantes de todos os partidosantifascistas mas seriam dirigidos pelos partidos comunistas. Nessas

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condições, Yalta assinalava a constituição de uma área de influênciasoviética no Leste Europeu.

A Conferência de Potsdam realizou-se em julho, nos arredoresde Berlim, cidade ocupada pelas tropas soviéticas. O centro dasdiscussões foi a organização da administração da Alemanha derrotada.Aí se delineou a futura partição geopolítica do território alemão.

Decidiu-se a divisão provisória da Alemanha em quatro zonas deocupação militar, administradas pelas potências vencedoras (EstadosUnidos, Grã-Bretanha, França e União Soviética). Os ocupantes deveriamcumprir um programa de erradicação completa das estruturas nazistase realizar reformas voltadas para a democratização da sociedade alemã.As medidas concernentes ao conjunto do território seriam tomadas emcomum acordo.

Berlim, situada na zona de ocupação soviética, na parte orientalda Alemanha, foi subdividida em quatro setores administrativos,subordinados a comandantes militares das potências vencedoras. Aadministração do conjunto da área da cidade estaria a cargo de umConselho de Controle Interaliado, no qual teriam assento os quatroocupantes.

Nos meses seguintes às conferências, as relações entre as potênciasocidentais e a URSS deterioraram-se progressivamente. A constituiçãodos governos de união nacional na Europa oriental acirrou as divergênciasem torno do grau de influência soviética sobre os novos regimes políticos.Na Alemanha ocupada, as políticas soviéticas voltadas para reformassociais e econômicas na zona oriental agudizaram os conflitos combritânicos e americanos. Descia-se o plano inclinado que conduzia àGuerra Fria.

Em fevereiro de 1947, ao anunciar verbas destinadas aos regimespró-ocidentais da Grécia e da Turquia, o presidente americano HarryTruman formulava os princípios da doutrina que levaria o seu nome. ADoutrina Truman, marco inicial da Guerra Fria, fundava-se no conceitode que a União Soviética se movia segundo uma lógica expansionista,que necessitava ser contida. Os Estados Unidos assumiam aresponsabilidade de organizar a “contenção”, aplicando uma estratégia

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de sustentação política, econômica e militar dos Estados europeuscapitalistas.25

À Doutrina Truman seguiu-se o lançamento do Plano Marshall,com a liberação de vultosos créditos financeiros dirigidos à reconstruçãodas economias capitalistas européias, devastadas pela guerra. Tratava-se de iniciativa de fundo político, destinada a materializar a estratégiada “contenção”. A força do dólar e o dinamismo da economia norte-americana passariam a alicerçar o espaço geopolítico da Europaocidental.

Reagindo às iniciativas norte-americanas, a União Soviética voltou-se para a consolidação da sua área de influência no Leste Eeuropeu.Entre 1947 e 1949, foram dissolvidos os precários governos de uniãonacional desenhados em Yalta. Os partidos comunistas, controladosdiretamente por Moscou, formaram regimes monolíticos nos países daEuropa oriental e as estruturas econômicas da Zona foram adaptadasao modelo vigente na URSS. O sistema unipartidário e a estatizaçãogeral dos meios de produção transformaram a área de influência numbloco de países satélites, estruturado à sombra do poder de Moscou.

Em 1948-1949, a aplicação do Plano Marshall nas zonas deocupação ocidentais da Alemanha e de Berlim, visando reconstituir opoderio industrial do país, provocou a crise do Bloqueio de Berlim. Asuspensão do bloqueio soviético resultou na divisão da Alemanha emdois Estados. Surgiam a RFA (República Federal da Alemanha) e a RDA(República Democrática Alemã).

Assim, o território alemão sintetizava e resumia a bipartiçãogeopolítica do espaço europeu. A “cortina de ferro” passava a dividir acidade de Berlim ao meio. Doze anos mais tarde, seria erguido o Muro

25 A noção da contenção (containment) foi formulada originalmente pelo conselheiro George FrostKennan, em notas diplomáticas enviadas da embaixada em Moscou, que se transformaram emcélebre artigo, assinado como Mr. X e publicado em Foreign Affairs em 1946: “The sources of sovietconduct”. Lá se pode ler: “Está claro que o principal elemento da política norte-americana em relaçãoà União Soviética deve ser a contenção a longo prazo, paciente porém firme e vigilante, das tendênciasexpansionistas russas”. Ironicamente, Kennan tornou-se, desde a década de 1950, um crítico dapolítica externa americana, sublinhando a sua oposição à ênfase militar conferida à contenção econtestando a paternidade que lhe foi atribuída da Doutrina Truman. Raymond Aron polemizoucom Kennan desde aquela época, deplorando o que lhe parecia ser um recuo moralizante e umabandono dos argumentos realistas. Sobre essa polêmica, veja-se “O isolacionismo de George Kennan”,In: Os últimos anos do século, Raymond Aron. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

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de Berlim, conferindo sombria materialidade à mais célebre fronteiraentre os blocos geopolíticos antagônicos.

O cisma sino-soviético e a distensão

A Revolução Chinesa de 1949 gerou um Estado socialistaautônomo diante da União Soviética. O poderio geopolítico desse Estado– expresso na demografia, na extensão territorial e na base de recursoseconômicos – representou um desafio estratégico para Moscou. Arivalidade potencial entre Moscou e Pequim permaneceu oculta durantea primeira década do poder de Mao Tsetung, mas eclodiu quando aChina tomou a decisão de desenvolver um programa nuclear nacional.

O cisma sino-soviético tornou-se público em julho de 1960, quandoa União Soviética rompeu o programa de cooperação militar bilateral,suspendendo a assistência financeira e retirando todos os assessorestécnicos que trabalhavam na China. A reação de Pequim consistiu nofechamento da fronteira chinesa com a União Soviética. A rupturaexpressava o temor de Moscou em relação a uma China que agregavaa modernização militar a seu potencial demográfico, alterando dessemodo o cenário estratégico asiático.

A China explodiu sua primeira bomba atômica em 1964. Doisanos mais tarde, iniciou a Revolução Cultural, radicalizando suasexperiências coletivistas e afastando-se ainda mais da União Soviética.Em agosto de 1969, pouco depois da abertura das negociações de pazdo Vietnã, estalaram conflitos armados ao longo do Rio Ussuri, nafronteira sino-soviética. Naquele momento, a China e a União Soviéticaficaram perigosamente próximas da guerra total e a profundidade docisma tornou-se patente até para os mais céticos.

A reorientação da política externa americana empreendida porNixon e Kissinger a partir de 1969 tomou como pontos de partida asevidências de que a estratégia da contenção na Ásia tinha entrado emcolapso e já não correspondia às tendências dinâmicas do sistemainternacional. A retirada do Vietnã, uma necessidade política prementeem função da oposição doméstica à guerra, significava a virtual supressãodo “cordão sanitário” de alianças asiáticas que rodeavam as duaspotências comunistas.

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O cisma sino-soviético, cujas causas não se relacionavam com apolítica americana, apresentava a oportunidade de reconfigurarpositivamente a contenção da União Soviética. A estratégia conduzidapor Nixon e Kissinger girou em torno de três eixos, que se reforçavam eapoiavam uns aos outros: a “retirada honrosa” do Vietnã, a aproximaçãoe a cooperação com a China, a distensão das relações com a União Soviética.

A abertura para a China constituiu o aspecto mais sensacional edramático da nova política externa de Washington. Em tese, essapossibilidade existia desde o início dos atritos entre Moscou e Pequim –e tanto o alemão Konrad Adenauer, em 1957, quanto o francês CharlesDe Gaulle, no início dos anos 60, apontaram a inadequação da idéia decontenção da China. Mas, nas palavras de Kissinger, “...durante muitotempo, os elaboradores americanos de políticas, cegos por preocupaçõesideológicas, foram incapazes de apreciar que a ruptura sino-soviéticarepresentava uma oportunidade estratégica para o Ocidente”.26

A aproximação sino-americana realizou-se sob a forma sensacionalda viagem do presidente americano à capital de um Estado quepermanecia sem relações diplomáticas com os Estados Unidos. Nixonvisitou a China entre 21 e 27 de fevereiro de 1972, entabulando longasconversações com Mao Tsetung e Chou En Lai, o número dois nahierarquia chinesa. A visita não produziu qualquer acordo diplomáticoformal – nem era essa a sua pretensão. Contudo, o Comunicado de Xangai,declaração conjunta final, sugeriu, em linguagem apropriadamentehiperbólica, uma aliança tácita destinada a se opor a eventuais tentativassoviéticas de dominação da Ásia.

O acordo tácito sino-americano tinha conseqüências estratégicaspara a União Soviética. Daquele momento em diante, Moscou deveriatrabalhar com o cenário complexo de duas frentes de combate: a Otan,na Europa, e a China, na Ásia. O arsenal nuclear chinês, emboraincomparavelmente menor que o soviético, proporcionava dissuasãolimitada. A promessa implícita de apoio americano no caso de umaagressão à China reduzia o espaço de manobra soviético.

26 Diplomacia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997, p. 858.

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A diplomacia triangular, tal como caracterizada por Kissinger,substituía a contenção rígida – expressa no “cordão sanitário” – poruma dinâmica de equilíbrio de poder no espaço asiático. A dinâmicadessa política exigia que Washington conservasse sempre a iniciativa,fornecendo estímulos para a cooperação bilateral tanto com Moscouquanto com Pequim. No esquema do triângulo, a posição negociadoraamericana seria mais favorável enquanto os Estados Unidos estivessemmais próximos de cada uma das potências comunistas do que estasestivessem entre si.

A política da distensão exprimiu-se em várias frentes mas, antesde tudo, na esfera dos tratados de limitação de armamentos nucleares.Ao longo da década de l970, a partir da administração Nixon, ergueram-se os pilares do edifício de tratados que regularam o equilíbrio do terror.O primeiro pilar foi o Tratado de Limitação de Armas Estratégicas(SALT-1) firmado em 1972 por Nixon e pelo líder soviético LeonidBrejnev. No núcleo do SALT-1, encontrava-se o acordo sobre mísseisantibalísticos (ABM), que limitou as defesas contra mísseis estratégicosa apenas duas cidades e duzentos vetores para cada lado. Seu significadoera o de virtualmente impedir a defesa da população diante de um ataquenuclear. A lógica que o orientava se baseava na manutenção da eficáciada represália devastadora, eliminando os incentivos de um sistema dedefesa nacional antimísseis para um primeiro ataque de surpresa.

O segundo pilar foram os acordos de limitação de armas ofensivasestipulados pelo SALT-1 e, depois, pelo SALT-2, assinado em 1979 porJimmy Carter e Brejnev. Nos dois casos, fixaram-se tetos máximos,extremamente elevados, de vetores e ogivas. Os limites definidos nessestratados não se destinavam a reduzir os arsenais nucleares, mas a ordenara corrida armamentista de modo a conservar a paridade estratégicaassimétrica.

A política da distensão atingiu seu ponto mais alto depois doencerramento da administração Nixon, antecipado pelosdesdobramentos do escândalo de Watergate. Em 1975, reuniu-se emHelsinque – com a participação dos Estados Unidos, da União Soviética,do Canadá e dos Estados europeus – a Conferência sobre a Segurança ea Cooperação Européia (CSCE). A Ata de Helsinque, que encerrou a

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Cúpula, legitimava a ordem emanada do fim da Segunda GuerraMundial e da divisão da Europa em blocos geopolíticos antagônicos. ACSCE tornou-se um fórum de segurança de primeira ordem, abrangendoas superpotências e as suas alianças militares, a Otan e o Pacto deVarsóvia. Mais tarde, com o fim da Guerra Fria, se transformaria numorganismo de caráter permanente: a atual Organização de Segurança eCooperação Européia (OSCE).

O Terceiro Mundo

O vasto movimento de descolonização que reorganizou o mapapolítico da Ásia e o da África trouxe ao sistema internacional dezenasde novos Estados. Uma das suas conseqüências mais importantes foi aemergência de nova realidade: o Terceiro Mundo.

Em 1955 – quando os movimentos de libertação avançavamrapidamente na Ásia e davam sinais de força na África – reuniu-se emBandung (Indonésia) uma Conferência Afro-Asiática. Pela primeira vez,os novos Estados independentes articulavam-se politicamente, lançandoum documento de dez pontos (a Carta de Bandung) orientados pelasreivindicações de autodeterminação nacional e pela crítica ao colonialismoe ao racismo. Dentre os 29 países participantes, destacavam-se aIndonésia, a Índia, o Paquistão, a China Popular e o Egito.

A partir da reunião pioneira de Bandung, os líderes da Iugoslávia(Josip Broz Tito), do Egito (Gamal Abdel Nasser) e da Índia (JawaharlalNehru) passaram a organizar a criação de um movimento de Estadosdesvinculados dos blocos geopolíticos da Guerra Fria. Em 1961, com aavalanche de independências no continente africano, reuniram-se ascondições para a instalação do novo movimento. Uma conferênciarealizada em Belgrado (Iugoslávia) originou o Movimento dos PaísesNão-Alinhados.

Em torno do conceito de uma neutralidade ativa, procurava-seorganizar um pólo de poder externo à bipolaridade da Guerra Fria. Osnão-alinhados rejeitavam o conflito Leste-Oeste, destacando a pobrezados novos países independentes e a necessidade de revisão das relaçõesNorte-Sul. Assim, afirmavam a existência do Terceiro Mundo,

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contraposto tanto às potências industriais capitalistas (o “PrimeiroMundo”) quanto à URSS e à sua área de influência no Leste Europeu (o“Segundo Mundo).27

O Terceiro Mundo e o terceiro-mundismo constituíram umconceito e uma postura intelectual com várias e diversificadas dimensões.No plano geopolítico, o terceiro-mundismo representou uma estratégiade intervenção de Estados e partidos políticos que procuravam operarnum espaço distinto do comunismo oficial subordinado a Moscou. Aruptura entre a China Popular e a União Soviética, a partir de 1960,transformou o terceiro-mundismo em bandeira de Pequim, quepostulava liderança entre os novos Estados afro-asiáticos independentes.Na América Latina, a Revolução Cubana de 1959 e a conseqüenteaglutinação de agrupamentos guerrilheiros em torno da liderança deFidel Castro e Che Guevara disseminaram o discurso terceiro-mundistae a idéia de um processo revolucionário baseado nas populações rurais.

No plano universitário, um grupo de geógrafos franceses reunidosem torno de Pierre George e Yves Lacoste elaborou uma definição sociale econômica desse conjunto de países. As realidades heterogêneas daAmérica Latina, da África e da Ásia Meridional eram agrupadas emfunção de uma série de características comuns demográficas (como oelevado crescimento vegetativo e o predomínio das populações no meiorural), econômicas (a fraca industrialização, o peso determinante dasatividades agrominerais, a dependência de capitais e tecnologiasestrangeiros) e sociais (a disseminação da pobreza, da subnutrição, doanalfabetismo e as elevadas taxas de mortalidade infantil).

27 “For most Third World states...the Cold War was an irrelevance. Indeed, security for them was not aboutmilitary security from external threats so much as lhe enhancement of political of political legitimacyinternally in ways wich would contain threats to the integrity of the states. Perhaps even more fundamentalfor many states in the Third World, however, was what might be termed economic security – the provision ofbasic needs such as food, healh and welfare even at very rudimentary levels. This, of course, placed apremium on economic development” (Phil Williams e outros, op. cit. p.389). A polaridade Norte-Sul,enfatizada pelo Movimento dos Não-Alinhados, representava uma maneira diferente de focalizar aagenda internacional, comumente circunscrita às tensões próprias à lógica do conflito Leste-Oeste.

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Texto Comentado

A ESTABILIDADE EM UM MUNDO BIPOLAR, Kenneth N. Waltz(In: Classic Readings of International Relations, organizado por PhilWilliams, Donald M.Goldstein e Jay M.Shafritz, Belmont: Wadsworth,1993, p. 62 et seq.)

Kenneth Waltz notabilizou-se como pensador de proa no interiorda escola neo-realista. No texto selecionado, discute o polêmico temada estabilidade do sistema internacional de Estados.

A polêmica, classicamente, concentrou-se na problemática dascondições para a estabilidade – isto é, para a permanência do sistemaatravés do tempo. Contrariamente aos analistas que sustentam a teseda maior estabilidade dos sistemas pluripolares, Waltz defende o caráteraltamente estável dos sistemas bipolares.28

O sistema bipolar da Guerra Fria fornece ilustração apropriadapara esta tese. Efetivamente, a prolongada confrontação dassuperpotências termonucleares coincidiu com uma era de pazduradoura. A paz da Guerra Fria – que não suprimiu mas, pelo contrário,assentou-se sobre a multiplicação de confrontos indiretos na periferiado sistema – foi explicada, freqüentemente, em termos do “equilíbriodo terror”. O autor sustenta que, mais que essa circunstância histórica,é a própria estrutura bipolar do sistema a condicionante essencial dasua estabilidade.

O desenvolvimento da argumentação de Waltz toca também noproblema das características das alianças nos sistemas bipolares. Ahegemonia dos atores principais sobre seus coligados é avaliadapositivamente, em termos da eficácia e da durabilidade das alianças. AOtan e o Pacto de Varsóvia forneceram exemplos das tensões específicasde alianças dessa natureza e também de diferentes métodos de gestãodessas tensões.

28 A tese da maior estabilidade dos sistemas pluripolares foi sustentada, notadamente, por autoresque introduziram a análise quantitativa ao estudo do sistema internacional de Estados. Em essência,o argumento prende-se no maior número de relações entre os atores principais proporcionadopelos sistemas pluripolares, o que sedimentaria uma teia densa de interesses compartilhados. Essabase inercial, cuja ruptura ocasionaria múltiplos prejuízos, forneceria uma âncora sólida para osistema.

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Contestada pela China, desde o cisma sino-soviético de 1960, aliderança de Moscou no interior do Pacto de Varsóvia afirmou-sebrutalmente nos episódios da Hungria (1954), da Tchecoslováquia (1968)e, sob forma atenuada, da Polônia (1980-l981). Já a liderança norte-americana, que se exerceu em ambiente político diferente, levou emconta as particularidades da política interna dos parceiros atlânticos edesenvolveu o hábito da negociação, mas mesmo assim não se viu livredo desafio representado pelo nacionalismo francês do general De Gaulle,na década de 1960.

The Stability of a Bipolar World

There is a conventional wisdom, accumulated over the centuries, uponwhich statesmen and students often draw as they face problems in internationalpolitics. One part of the conventional wisdom is now often forgotten. Many inEurope, and some in America, have come to regard an alliance as unsatisfactoryif the members of it are grossly unequal in power. “Real partnership”, onehears said in a variety of ways, “is possible only between equals”. If this istrue, an addendum should read: only unreal partnerships among states havelasted beyond the moment of pressing danger. Where states in associationhave been near equals, some have voluntarily abdicated the leadership to other,or the alliances have become paralyzed by stalemate and indecision, or it hassimply dissolved. One may observe that those who are less than equal areoften dissatisfied without thereby concluding that equality in all things isgood. As Machiavelli and Bismarck well knew, an alliance requires an allianceleader; and leadership can be most easily maintained where the leader issuperior in power. Some may think of these two exemplars as unworthy; evenso, where the unworthy were wise, their wisdom should be revived.

A second theorem of the conventional wisdom is still widely accepted. Itreads: A world of many powers is more stable than a bipolar world, withstability measured by the peacefulness of adjustment within the internationalsystem and by the durability of the system itself. While the first element of theconventional wisdom might well be revived, the second should be radicallyrevised.

Pessimism about the possibility of achieving stability in a two-powerworld was reinforced after the war by contemplation of the character of the

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two major contenders. The Soviet Union, led by a possibly psychotic Stalin,and the United States, flaccid, isolationist by tradition, and untutored in theways of international relations, might well have been thought unsuited to thetask of finding a route to survival. How could either reconcile itself to coexistencewhen ideological differences were great and antithetical interests providedconstant occasion for conflict? Yet the bipolar world of the postwar period hasshown a remarkable stability. Measuring time from the termination of war,1964 corresponds to 1937. Despite all of the changes in the nineteen yearssince 1945 that might have shaken the world into another great war, 1964somehow looks and feels safer than 1937. Is this true terror only because wenow know that 1937 preceded the holocaust by just two years? Or is it theterror of nuclear weapons that has kept the world from major war? Or is thestability of the postwar world intimately related to its bipolar pattern?

Stability within a bipolar system

Within a bipolar world, four factors conjoined encourage the limitationof violence in the relations of states. First, with only two world powers thereare no peripheries. The United States is the obsessing danger for the SovietUnion, and the Soviet Union for us, since each can damage the other to andextent that no other state can match. Any event in the world that involves thefortunes of the Soviet Union or the United States automatically elicits theinterest of the other. Truman, at the time of the Korean invasion, could notvery well echo Camberlain’s words in the Czechoslovakian crisis and claimthat the Koreans were a people far away in the east of Asia of whom americansknew nothing. We had to know about them or quickly find out. In the 1930’s,France lay beetween England and Germany. England could believe, and wecould too, that their frontier and ours lay on the Rhine. After World War II, nothird power could lie between the United States and the Soviet Union, fornone existed. The statement that peace is indivisible was controversial, indeeduntrue, when it was made by Litvinov in the 1930’s. It became a truism in the1950’s any possibility of maintaining a general peace required a willingnessto fight small wars. With the competition both serious and intense, a loss toone could easily appear as a gain to the other, a conclusion that follows fromthe very condition of a two-power competition. Political action has correspondedto this assumption. Communist guerrillas operating in Greece prompted theTruman doctrine. The tightening of Soviet control over the states of Eastern

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Europe led to the Marshall Plan and the Atlantic Defense Treaty, and these inturn gave rise to the Cominform and the Warsaw Pact. The plan to form aWest German government produced the Berlin blockade. Our response in atwopower world was geared to Soviet action, and theirs to ours, which producedan increasingly solid bipolar balance.

Not only are there no peripheries in a bipolar world but also, as a secondconsideration, the range of factors included in the competition is extended asthe intensity of the competition increases. Increased intensity is expressed in areluctance to accept small territorial losses, as in Korea, the Formosa Strait,and Indo-China. Extension of range is apparent wherever one looks. VicePresident Nixon hailed the Supreme Court’s desegragation decision as ourgreatest victory in the cold war. When it became increasingly clear that theSoviet economy was growing at a rate that far exceeded our own, many beganto worry that falling behind in the economic race would lead to our losing thecold war without a shot being fired. Disarmament negotiations have mostoften been taken as an opportunity for propaganda. As contrasted with the1930’s, there is now constant and effective concern lest military preparationfall below the level necessitated by the military efforts of the major antagonist.Changes between the wars affected diferent states differently, with adjustmentto the varying ambitions and abilities of States dependent on cumbrousmechanisms of compensation and realignment. In a multipower balance, whois a danger to whom is often a most obscure matter: the incentive to regard alldisequilibrating changes with whatever effort may be required is consequentlyweakened. In our present world changes may affect each of the two powersdifferently, and this means all the more that few changes in the national realmor in the world at large are likely to be thought irrelevant. Policy proceeds byimitation, with occasional attempts to outflank.

The third distinguishing factor in the bipolar balance, as we have thusfar known it, is the nearly constant presence of pressure and the recurrence ofcrises. It woud be folly to assert that repeated threats and recurring crisesnecessarily decrease danger and promote stability. It may be equally wrong toassert the opposite, as Khrushchev seems to appreciate. “They frighten uswith war”, he told the Bulgarians in May of 1962, “and we frighten themback bit by bit. They threaten us with nuclear arms and we tell them: “Listen,now only fools can do this, because we have them too, and they are not smaller

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than yours but, we think, even better than yours, So why do you do foolishthings and frighten us? This is the situation to be good”. Crises, born of acondition in which interests and ambitions convlict, are produced by thedetermination of one state to effect a change that another state chooses toresist. With the Berlin blocade, for example, as with Russia’s emplacement ofmissiles in Cuba, the United States decided that to resist the change the SovietUnion sought to bring about was worth the cost of turning its action into acrisis. If the condition of conflict remains, the absence of crises becomes moredisturbing than their recurrence. Rather a large crisis now than a small warlater is an axiom that should precede the statement, often made, that to fightsmall wars in the present may be the means of avoiding large wars later.

Admittedly, crises also occur in a multipower world, but the dangers aredifused, responsibilities unclear, and definition of vital interests easily obscured.The skillful foreign policy, where many states are in balance, is designed togain an advantage over one state without antagonizing others and frighteningthem into united action. Often in modern Europe, possible gains have seemedgreater than likely losses, Statesmen could thus hope in crises to push an issueto the limit without causing all the potential opponents to unite. When possibleenemies are several in number, unity of action among states is difficult tosecure. One could therefore think -or hope desperately, as did BethmannHollweg and Adolph Hitler – that no united opposition would form.

In a bipolar world, on the other hand, attention is focused on crises bothof the major competitors, and especially by the defensive state, to movepiecemeal and reap gains serially is difficult, for within a world in confusionthere is one great certainty, namely, the knowledge of who will oppose whom.One’s motto may still be, “push to the limit”, but limit must be emphasized asheavily as push. Caution, moderation, and the management of crises come tobe of treat and obvious importance.

Many argue, nevertheless, that caution in crises, and resulting bipolarstability, is accounted for by the existence of nuclear weapons, with the numberof states involved comparatively inconsequent. That this is a doubtful deductioncan be indicated by a consideration of how weapons may affect reactions tocrises. In the postwar world, bipolarity preceded the construction of twoopposing atomic weapons systems. The United States, with some success,substituted techonological superiority for expenditure on a conventional

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military system as a deterrent to the Soviet Union during the years when wehad first an atomic monopoly and then a decisive edge in quantity and qualityof weapons. American military policy was not a matter of necessity but ofpreferences based on a calculation of advantage, some increase in expenditureand a different allocation of money would have enabled the United States todeter the Soviet Union by posing credibly the threat that any Soviet attempt,say, to overwhelm West Germany would bring the United States into a large-scale conventional war. For the Soviet Union, war against separate europeanstates would have promised large gains; given the bipolar balance, no suchwar could be undertaken without the clear prospect of American entry. TheRussian’s appreciation of the situation is perhaps best illustrated by thestructure of their military forces. The Soviet Union has concentrated heavilyon medium-range bombers and missiles and, to our surprise, has built relativelyfew intercontinental weapons. The country of possibly aggressive intent hasassumed a posture of passive deterrence vis à-vis her major adversary, whomshe quite sensibly does not want to fight. Against European and other lesserstates, the Soviet Union has a considerable offensive capability. Hence nuclearcapabilities merely reinforce a condition that would exist in their absence:without nuclear techonology both the United States and the Soviet Unionhave the ability to develop weapons of considerable destructive power. Evenhad the atom never been split, each would lose heavily if it was to engage in amajor war against the other.

If number of states is less important than the existence of nuclear power,then one must ask whether the world balance would continue to be stablewhen three or more states are able to raise themselves to comparable levels ofnuclear potency. For many reasons one doubt that the equilibrium would be sosecure. Worries about accidents and triggering are widespread, but a still greaterdanger might well arise. The existence of a number of nuclear states wouldincrease the temptation for the more virile of them to maneuver, with defensivestates paralyzed by the possession of military forces the use of which wouldbe back in the 1930’s, with the addition of a new dimension of strength whichwould increase the pressures upon status quo powers to make piecemealconcessions.

Because bipolarity preceded a two-power nuclear competition, becausein the absence of nuclear weapons destructive power would sitll be great, becausethe existence of a number of nuclear states would increase the range of difficult

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political choices, and finally, as will be discussed below, because nuclearweapons must first be seen as a product of great national capabilities ratherthan as their cause, one is led to the conclusion that nuclear weapons cannotby themselves be used to explain the stability – or the instability – ofinternational systems.

Taken together, these three factors – the absence of peripheries, the rangeand intensity of competition, and the persistence of pressure and crises – areamong the most important characteristics of the period since World War II.The first three points combine to produce an intense competition in a widearena with a great variety of means employed. The constancy of effort of thetwo major contenders, combined with a fourth factor, their preponderant power,have made for a remarkable ability to comprehend and absorb within thebipolar balance the revolutionary political, military and economic changesthat have occurred.

The effects of American-Soviet preponderance are complex. Its likelycontinuation and even its present existence are subjects of controversy. Thestability of a system has to be defined in terms of its durability, as well as ofthe peacefulness or adjustment within it.

Some dissenting opinions

The fact remains that many students of international relations havecontinued to judge bipolarity unstable as compared to the probable stabilityof a multipower world. Why have they been so confident that the existence ofa number of powers, moving in response to constantly recurring variations innational power and purpose, would promote the desired stability? Accordingto Professor Morgenthau and Kaplan, the uncertainty that results fromflexibility of alignment generates a healthy caution in the foreign policy ofevery country. Concomitantly, Professor Morgenthau believes that in the presentbipolar world, “the flexibility of the balance of power and, with it, its restraininginfluence upon the power aspirations of the main protagonists on theinternational scene have disappeared”. One may agree with his conclusionand yet draw from his analysis another one unstated by him: “The inflexibilityof a bipolar world, with the appetite for power of each major competitor atonce whetted and checked by the other, may promote a greater stability thanflexible balances of power among a larger number of states”.

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What are the grounds for coming to a diametrically different conclusion?

The presumed double instability of a bipolar world, that it easily erodes orexplodes, is to a great extent based upon its assumed bloc character. A blocimproperly managed may indeed fall apart. The leader of each bloc must beconcerned at once with alliance management, for the defection of an alliedstate might be fatal to its partners, and with the aims and capabilities of theopposing bloc. The system is more complex than is a multipower balance,which in part accounts for its fragility. The situation preceding World War Iprovides a striking example. The dissolution of the Austro-Hungarian Empirewould have left Germany alone in the center of Europe. The approximateequality of alliance partners, or their relation of true interdependence, plus thecloseness of competition between the two camps, meant that while any countrycould commit its associates, no one country on either side could exercise control.By contrast, in 1956 the United States could dissociate itself from the Suezadventure of its two principal allies and even subject them to pressure. GreatBritain, like Austria in 1914, tried to commit, or at least immobilize, its alliancepartner by presenting him with a fait accompli. Enjoying a position ofpredominance, the United States could, as Germany could not, focus itsattention on the major adversary while disciplining its ally. The situations arein other respects different, but the ability of the United States, in contrast toGermany, to pay a price measured in intraalliance terms is striking.

It is important, then, to distinguish sharply a bipolarity of blocs from abipolarity of countries. Fénelon thought that of all conditions of balance theopposition of two states was the happiest. Morgenthau dismisses this judgmentwith the comment that the benefits Fénelon had hoped for had not occurred inour world since the war, which depends, one might think, on that benefits hadotherwise been expected.

The conclusion that a multipower balance is relatively stable is reachedby overestimating the system’s flexibility, and then dwelling too fondly uponits effects. A constant shuffling of alliances would be as dangerous as anunwillingness to make new combinations. Neither too slow nor too fast: thepoint is a fine one, made finer still by observing that the rules shoud be followednot merely out of an immediate interest of the state but also for the sake ofpreserving the international system. The old balance-of-power system herelooks suspiciously like the new collective-security system of the League ofNations and the United Nations. Either system depends for its maintenance

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and functioning upon a “neutrality of alignment” at the moment of seriousthreat. To preserve the system, the powerful states must overcome the constraintsof previous ties and the pressures of both ideological preferences and conflictingpresent interests in order to confront the state that threatens the system.

In the history of the modern state system, flexibility of alignment hasbeen conspicuously absent just when, in the interest of stability, it was mosthighly desirable. A comparison of flexibility within a multipower world withthe ability of the two present superpowers to compensate for changes by theirinternal efforts is requisite, for comparison changes the balance of optimismand pessimism as customarily applied to the two different systems. In theworld of the 1930’s, with an European grouping of three, the Westerndemocracies, out of lassitude, political inhibition, and ideological distaste,refrained from acting or from combining with others at the advantegeousmoment. War provided the pressure that forced the world’s states into twoopposing coalitions. In peacetime the bipolar world displays a clarity of relationsthat is ordinarily found only in war. Raymond Aron has pointed out that theinternational “système depend de ce que sont, concrètement, les deux pôles,non pas seulement du fait qu’ils sont deux”. Modifying Aron’s judgment andreversing that of many others, we would say that in a bipolar world, as comparedto one of many powers, the international system is more likely to dominate.External pressures, if clear and great enough, force the external combinationor the internal effort that interest requires. The political character of the alliancepartner is then most easily overlooked and the extent to which foreign policy isdetermined by ideology is decreased.

The number of great states in the world has always been so limited thattwo acting in concert or, more common historically, one state driving forhegemony could reasonably conclude that the balance would be altered bytheir actions. In the relations of states since the Treaty of Westphalia, therehave never been more than eight great powers, the number that existed, if oneis generous in admiting doubtful members to the club, on the eve of the FirstWorld War. Given paucity of members, states cannot rely on an equilibratingtendency of the system. Each state must instead look to its own means, gaugethe likelihood of encountering opposition, and estimate the chances of sucessfulcooperation. The advantages of an international system with more than twomembers can at best be small. a careful evaluation of the factors elaboratedabove indicates that the disadvantages far outweigh them.

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6 – BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

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O SISTEMA INTERNACIONAL DE ESTADOS: HISTÓRIA E CONCEITOS

UNIDADE II

A ORDEM INTERNACIONAL

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1 – GLOBALIZAÇÃO E ESTADO-NAÇÃO

O fundamento clássico das relações internacionais reside no papelcentral desempenhado pelo Estado. O sistema internacional de Estadosé o cenário no qual se desenrola a política externa. Mesmo os pensadoresinstitucionalistas desenvolvem sua argumentação no interior desseparadigma.

Contudo, recentemente, vasta corrente de analistas do fenômenoda globalização recuperou a tese do enfraquecimento ou da dissoluçãodo Estado-nação, apresentando-a sob novas roupagens. Na sua formamais divulgada, a tese apresenta o Estado como herança de um passadohistórico em vias de desaparecimento, sob o impacto da integração dosmercados e dos fluxos mundiais de capitais.1

Na sua formulação essencial, a tese não representa novidade – elaapenas retoma e reformula um argumento original de John H. Herz,expresso no célebre artigo “Rise and Demise of the Territorial State”, queapareceu na World Politics em 1957. Escrevendo no auge da Guerra Fria,sob o impacto da crise do Canal de Suez e da invasão da Hungria pelasforças do Pacto de Varsóvia, Herz focalizava os limites da soberania dosEstados e sua submissão às alianças político-militares supranacionais.

Seguindo as tendências da época, o autor construiu o raciocínioem termos estratégicos e militares, acentuando a permeabilidade dasfronteiras nacionais às poderosas tecnologias bélicas da era nuclear. OEstado, incapaz de proteger seu território da ameaça materializada nosmísseis balísticos, não teria alternativa senão ceder sua soberania,aninhando-se na proteção oferecida pela Otan ou subordinando-se aoPacto de Varsóvia. Despido da soberania, o poder estatal perdia suaalma e sua razão de ser, caminhando para um inevitável desfalecimento.

1 The Economist sintetizou, ironicamente, essa linha de raciocínio: “O Estado-nação não é mais o quecostumava ser. Ignorado pelos mercados globais de capital, transigente com as corporaçõesmultinacionais, à mercê dos mísseis intercontinentais, a pobre coisa pode apenas olhar para o passado,nostálgica dos seus dias de gloria, um século atrás, quando todos sabiam o significado de John Bull eMarianne e Germania e Tio Sam. Parece inconcebível que tão diminuída criatura possa por muitotempo continuar sendo a unidade básica das relações internacionais, a entidade que firma tratados,participa de alianças, desafia inimigos, vai à guerra. Não estará, seguramente, o Estado-Nação acaminho de se dissolver em algo maior, mais poderoso, mais capaz de encarar as consequências datecnologia moderna: alguma coisa que será a nova e poderosa unidade básica do mundo de amanhã?”(December 23rd 1995, p. 15).

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A tese de Herz não era apenas reação teórica à brutal submissãoda Hungria pela União Soviética, mas também argumento direcionadopara justificar o aprofundamento da aliança desigual entre os EstadosUnidos e os aliados europeus, no momento em que, sob o influxo dacooperação franco-germânica, começava a girar a roda da ComunidadeEuropéia. Herz estava dizendo aos europeus que não havia alternativapara a proteção oferecida pelos Estados Unidos.

Contudo, foi justamente a França que forneceu desmentido diretoda tese, menos de uma década mais tarde, quando o general De Gaullecolocou em funcionamento o dispositivo nuclear nacional e retirou opaís do comando militar unificado da Otan. Naquele momento, onacionalismo francês reafirmava a prioridade da segurança nacional,atestando o apego do Estado aos preceitos da soberania. O presidenteDe Gaulle estava dizendo para os americanos que a França continuavaa ser um ator independente na política mundial.

O próprio Herz empreendeu uma revisão radical do seuargumento, no final da década de 1960, reinstalando o Estado na posiçãode principal ator das relações internacionais.2

Naquela época, a China realizava movimento simétrico ao daFrança, aprofundando sua ruptura com Moscou para tentar estabelecerinfluência própria no espaço asiático. O cisma sino-soviético comprovavaque, acima da suposta comunidade ideológica, estavam os interessesdo Estado chinês. Não por acaso, Pequim também desenvolvia seuarsenal nuclear nacional, tornando muito mais complicada a equaçãoestratégica e militar da Guerra Fria. Mas nada disso impediu areemergência da antiga tese e a multiplicação das vozes que profetizama morte do Estado-nação.

De Fukuyama a Huntington

Analistas de relações internacionais, economistas, historiadores,sociólogos e geógrafos têm se dedicado a construir cenários do futuro,nos quais o Estado-nação ocupa lugar apenas marginal na política

2 “Despite the conspicuous rise of international organization and supranational agencies in the postwarworld and despite the continuing impact on international affairs of subnational agents such as businessorganizations (...), the states remain the primary actors in international relations.” (“The TerritorialState Revisited: Reflections on the Future of the Nation State”, Polity, nº 1, Fall 1968, p. 11).

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internacional. É curioso paradoxo que isso ocorra precisamente quandoo nacionalismo, sob as mais variadas formas, retoma impulso e energiaque pareciam perdidos, reafirmando seu papel crucial na cena mundial.

Na antiga Iugoslávia, sob a bandeira dos direitos étnicos, osnacionalismos sérvio e croata ergueram seus próprios Estados edestruíram a Bósnia multiétnica. Na Rússia, a política pós-comunistase reorganizou em torno do antigo nacionalismo grão-russo e líderesdas diferentes facções prometeram reconstituir a força e a grandeza doImpério dos czares brancos e vermelhos. No Canadá, os tambores donacionalismo insistiram na separação do Quebec francófono, instalandoduradouro impasse institucional. Até mesmo no núcleo da UniãoEuropéia, retomou impulso o nacionalismo valão, lançando uma sombrasobre o futuro da Bélgica.

De certo modo, o pioneiro da nova onda foi Francis Fukuyama,cientista político americano que, com grande estardalhaço, proclamounada menos que o “fim da história”.3

No embalo da queda do Muro de Berlim e da desmoralização dosregimes comunistas da União Soviética e do Leste Europeu, Fukuyamacomemorava a suposta vitória final da ordem liberal do Ocidente e oconseqüente encerramento do conflito ideológico que, desde a RevoluçãoRussa de 1917, parecia condicionar a hostilidade entre as potências.Sob essa perspectiva, o pós-Guerra Fria estaria isento de disputasgeopolíticas e, em geral, da rivalidade dos Estados: sobraria lugar apenaspara a concorrência econômica entre empresas.

O “otimismo” de Fukuyama sofreu logo a crítica do “pessimista”Samuel Huntington, que enxergou no futuro o pesadelo do “confrontode civilizações”.4 Para ele, o mundo do pós-Guerra Fria estaria prestes ase fragmentar em zonas culturais hostis umas às outras, cada uma delasfechada no casulo das suas certezas absolutas e avessa ao diálogo.

A Europa ortodoxa assumiria o espaço abandonado pelo blocosoviético, agudizando a oposição histórica que a separa, desde o Cisma

3 Veja O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro: Rocco, 1992. O livro desenvolve a idéiaapresentada originalmente na revista National Interest, em 1989.

4 Veja O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

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do Oriente de 1054, da Europa ocidental, protestante ou católica, fonteda tradição liberal. O confucionismo desenharia um círculo de “valoresmorais” baseados nos laços familiares e no respeito às tradições e àsautoridades, isolando a Ásia do Ocidente. O islamismo fundamentalista,subordinando a política à religião e atiçando ressentimentos antigos,traçaria outro círculo, em volta de um mundo árabe-muçulmano aindamais inacessível.

Onde Fukuyama viu branco, Huntington viu preto, mas nenhumdos dois enxergou um lugar destacado para o Estado: na tese do primeiro,ele se dissolveria no liberalismo globalista triunfante; na do segundo,nos blocos de culturas supranacionais. Um e outro deslocaram o focode atenção dos interesses nacionais, sugerindo outras abordagens e outrosparadigmas para a compreensão do complexo panorama que emergiuapós a queda do Muro de Berlim.

Na Guerra Fria, a espessa cortina de fumaça ideológica mascarava,sob a aparência de conflito entre sistemas político-econômicosantagônicos, as realidades do equilíbrio de poder e as considerações desegurança dos Estados. Mas, de um lado e de outro da “cortina de ferro”,abundavam os indícios dos verdadeiros interesses em jogo.

O ditador soviético Joseph Stalin, desde 1920, tinha proclamadoa defesa da “pátria socialista” como o eixo estrutural da política externade Moscou. O cisma sino-soviético, a rivalidade sino-vietnamita e oconflito, no final da década de 1970, entre o Vietnã pró-soviético e oCamboja pró-chinês dissolveram toda crença razoável na existência deum movimento comunista internacional.

Por outro lado, a hostilidade dos Estados Unidos contra o regimecastrista cubano associava-se muito mais à tradição do CorolárioRoosevelt que a qualquer motivação ideológica. Afinal, desde o séculoXIX, a ideologia do Destino Manifesto enxergou em Cuba um apêndicemarítimo do território dos Estados Unidos.

No pós-Guerra Fria, foi precisamente a prioridade do interessenacional que impediu a transposição das afinidades culturais profundaspara o plano da política internacional. O projeto da unidade árabe teveseu zênite no final da década de 1950, quando, sob a liderança de Gamal

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Abdel Nasser, o Egito e a Síria chegaram a formar uma efêmeraRepública Árabe Unida. De lá para cá, o sonho nasserista desfez-se emfumaça. A divisão entre Estados inconciliáveis manifestou-se noalinhamento de forças da Guerra do Golfo, na rivalidade entre a Síria eo Egito e entre o Iraque e a Arábia Saudita, no isolamento da Líbia, naevolução divergente dos países do Magreb.

No leste e no sudeste da Ásia, as tradições culturais compartilhadasmanifestaram-se apenas como ruído de fundo quase inaudível, abafadopelos temores do ressurgimento de um Japão imperial, pelas ambiçõesexpansionistas da China Popular e pela teia de desconfianças entre oJapão e as Coréias, a China e o Japão, a China e as Filipinas, o Vietnã ea China, a Tailândia e o Vietnã. O crescimento dos investimentos e docomércio intra-regional caminhou lado a lado com uma corridaarmamentista que envolveu quase todos os Estados asiáticos. Nessascondições, a presença militar dos Estados Unidos, com suas bases e tropasestacionadas no Japão e na Coréia do Sul, funcionou como pilar daestabilidade geopolítica macrorregional.

Economia e tecnologia

A mesma partitura é tocada com outra letra pelos que sepreocupam com a globalização econômica. A antiga tese de Herzreaparece, sob nova forma, na crença segundo a qual os fluxoseconômicos substituem os mísseis balísticos. O argumento, nesse caso,consiste em focalizar a fragilidade do Estado-nação diante das novasrealidades financeiras, monetárias, comerciais e tecnológicas que tendema integrar os mercados e restringir o poder de comando dos governos.

O economista e sociólogo Giovanni Arrighi encara as empresastransnacionais como pontas de lança da globalização, capazes desubmeter ao seu comando “...todo e qualquer membro do sistemainterestatal, inclusive os Estados Unidos”.5

O geógrafo Arjun Appadurai anuncia “grave crise” do “Estado-nação moderno”, entendido “...como uma organização compacta eisomórfica de território, etnia e aparato governamental”. Ele avança o

5 Consultar o capítulo 4 de O longo século XX, Contraponto, Rio de Janeiro, São Paulo, Unesp: 1996.

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conceito de “translocalidades” para discutir “...a emergência de formaçõessociais não-nacionais e mesmo pós-nacionais”. E propõe a busca de umacartografia de lealdades não-territoriais.6 Essa linha de argumentaçãoaparece, com freqüência, associada às análises da revolução dainformação.7

Nos Estados Unidos, Robert Reich, secretário do Trabalho naadministração Clinton, insistiu nas “forças centrífugas da economiaglobal”, que estariam desestruturando as economias nacionais. PaulKennedy, que ganhou notoriedade escrevendo sobre a ascensão e a quedadas grandes potências, passou a acreditar que o Estado é o “tipo errado”de unidade para lidar com os desafios do futuro: “Para alguns problemas,ele é grande demais para funcionar com eficiência; para outros, é pequenodemais”.8

Os fluxos de mercadorias e capitais, os mercados financeirosglobais, as estratégias mundiais das corporações – tudo isso,potencializado pela revolução da informática, estaria dissolvendo asfronteiras econômicas do Estado e destruindo a noção clássica desoberania nacional. A configuração de blocos econômicos supranacionais– e especialmente a união econômica e monetária européia – parecemilustrar decisivamente a tese de que o velho Estado-nação sofre desenilidade avançada.

A globalização econômica é uma realidade. Mas, ao contrário doque sugerem as aparências, cada um dos progressos na direção daintegração dos mercados é fruto de decisão política dos Estados.

Foi assim com a desregulamentação dos mercados financeiros, nadécada passada, sob o influxo das políticas liberais de Reagan e Thatcher.Foi assim com o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta),estruturado por iniciativa de Washington. Foi assim também com a

6 Consultar o ensaio “Soberania sem Territorialidade: notas para uma geografia pós-nacional”, RevistaNovos Estudos, nº 49, Cebrap, novembro de 1999.

7 “...prophets such as Peter Drucker, Alvin and Heidi Toffler, and Esther Dyson argue that today’s informationrevolution is ending hierarchical bureaucracies and leading to a new electronic feudalism with overlappingcommunities and jurisdictions laying claim to multiple layers of citizen’s identities and loyalties.” (RobertKeohane e Joseph Nye, “Power and Interdependence in the Information Age”, Foreign Affairs, September/October 1998, p. 81).

8 Veja o Preparando-se para o século XXI, Rio de Janeiro: Campus, 1993.

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redução generalizada das barreiras alfandegárias promovida no quadrodas negociações multilaterais do Gatt, que culminaram com a criaçãoda Organização Mundial de Comércio (OMC).

Todo o longo processo que conduziu à formação do mercadounificado e da UEM na Europa centro-ocidental atesta o papel decisivodos Estados e a prioridade das motivações estratégicas na construçãodo bloco europeu. A resistência da Grã-Bretanha à fusão de soberaniasinerente ao projeto europeu, reposta sempre em novos patamares, revelacom nitidez que os limites da integração econômica dependem do modocomo cada Estado interpreta seu interesse nacional. Os Estados fazema globalização – e podem desfazê-la.

Soberania e globalização

As monarquias renascentistas inventaram a soberania no seusentido contemporâneo: o exercício do poder político sobre um espaçogeográfico delimitado por fronteiras. No Estado territorial renascentista,a soberania confundia-se ainda com a propriedade. O mundo medieval,que continuava funcionando como alicerce das novas monarquias,retardava a separação entre o poder e o pertencer. A esfera pública e aprivada permaneciam integradas na pessoa do soberano, e Luís XIVpodia proclamar sua identidade com o Estado: L’État c’est moi. Por isso,o casamento aparecia como estratégia diplomática, abrindo caminhopara a expansão do território, da força e do prestígio das dinastias.9

As esferas pública e privada separaram-se apenas com o adventodo Estado-nação. Na Inglaterra, esse foi um lento processo desubordinação do monarca à vontade dos cidadãos, expressa peloParlamento. Na França, foi uma erupção revolucionária que implodiu amonarquia e decapitou o monarca, instalando a República (res publica).Mas, privilégio do monarca ou expressão do interesse nacional, a

9 “O supremo estratagema da diplomacia era, assim, o casamento – espelho pacífico da guerra, quetantas vezes a provocou. Menos dispendiosa como acesso para a expansão territorial que a agressãoarmada, a manobra matrimonial proporcionava resultados imediatos menores (em geral, apenasapós uma geração) e estava sujeita, por conseguinte, aos acasos imprevisíveis da mortalidade, nointervalo entre a consumação de um pacto nupcial e a sua fruição política. Em vista disso, a longavariante do casamento muitas vezes levava diretamente ao curto atalho da guerra.” (Perry Anderson,Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 39).

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soberania foi, por muito tempo, limitada apenas pelo exercício diretoda força de um antagonista mais poderoso.

A Guerra Fria condicionou uma revisão do conceito de soberania.A emergência das superpotências globais e a configuração de esferas deinfluência evidenciaram os limites do poder dos Estados. As armasnucleares e os mísseis intercontinentais, com seu potencial de destruiçãoem massa, evidenciaram a vulnerabilidade dos territórios e a fragilidadedo invólucro fronteiriço. Mas nenhuma dessas novidades eliminou oapego dos Estados a seus direitos soberanos.

As tendências globalizadoras da economia contemporâneacolocam novos desafios para o Estado-nação. A resposta a tais desafiosevidencia não suposta fraqueza dos Estados mas sua força e suavitalidade. Ao exercer a soberania, o Estado nacional posiciona-se nointerior da economia mundial e escolhe políticas capazes de moldar opróprio processo de globalização.

A constituição do Nafta representou uma estratégia de Washingtonespecialmente voltada para a hipótese de fracasso da Rodada Uruguaido Gatt. O “federalismo europeu” da Alemanha reunificada procurouinstrumentalizar a unificação continental da maneira mais favorável àprojeção da influência nacional sobre a Europa central. O projeto doMercosul respondeu tanto à política de superação das rivalidadeshistóricas entre o Brasil e a Argentina como à estratégia de inserção dasduas economias nacionais no mercado mundial. As negociaçõescomerciais simultâneas conduzidas pelo Mercosul com a União Européiae os Estados Unidos refletiram a política brasileira de contrabalançaras pressões exercidas por Washington e ampliar a margem de manobrado Brasil.

O movimento de globalização certamente modifica as relaçõesentre os Estados e as economias nacionais. Os arautos do “desfalecimento”do Estado-nação enxergam indícios de corrosão da soberania norebaixamento ou na supressão de taxas alfandegárias, na ampliaçãoda liberdade de movimentos dos capitais internacionais, na privatizaçãode setores econômicos controlados pelo poder público. Interpretam amudança das funções econômicas dos Estados como sinal da suainevitável dissolução.

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Trata-se de argumento de fraco alcance histórico. O Estadoconheceu transformações anteriores, que repercutiram sobre ascondições do exercício da soberania. Na Europa do século XIX, quandoa soberania parecia não ter limites, os Estados virtualmente nãodesempenhavam funções econômicas, exceto a de zelar pela estabilidadeda moeda. Naquela época, a doutrina do laissez-faire expressava aatitude econômica do Estado liberal.

A Grande Depressão determinou profunda modificação nasrelações entre o Estado e o mercado. O intervencionismo econômico,sob diferentes formas e graus de intensidade, tornou-se a norma, tantonas economias desenvolvidas como nos países que davam os primeirospassos no rumo da industrialização.

O keynesianismo tomou o lugar do laissez-faire, e o poder públicopassou a exercer influência direta na regulação do mercado. O controledo mercado nacional foi, então, encarado como dimensão crucial doexercício da soberania.

A globalização implica nova reformulação das relações entre opoder público e o mercado. O Estado abandonou uma série de funçõesque tinha assumido desde a década de 1930 e se reorganiza paradesempenhar papéis econômicos essencialmente normativos.10 Emconseqüência, a noção de soberania é submetida a mais uma revisão.

A globalização tem, certamente, forte impacto sobre o sistema deEstados. Ela gera nova agenda política internacional, impondo aosestadistas e aos diplomatas a consideração de temas conflitivos que nãoexistiam há poucas décadas. Também produz novo ambiente econômico,que modifica as condições de exercício da autoridade política. Finalmente,acentua a tendência de incoporação de atores não-governamentais às

10 Robert Kehoane e Joseph Nye enfatizam a relevância do poder normativo dos Estados na esfera darevolução da informação: “Prophets of a new cyberworld, like modernists before them, often overlook howmuch the new world overlaps and rests on the traditional world in which power depends on geographicallybased institutions. In 1998, 100 million people use the Internet. Even if this number reaches a billion in 2005,as some experts predict, a large portion of the world’s people will not participate. Moreover, globalization isfar from universal. Three-quartes of the world’s population does not own a telephone, much less a modem andcomputer. Rules will be necessary to govern cyberspace, not only protecting lawful users from criminals butensuring intellectual property rights. Rules require authority, wether in the form of the public government orprivate or community governance. Classic issues of politics – who governs and on what terms – are as relevantto cyberspace as to the real world.” (Op. cit., Foreign Affairs, September/October 1998, p. 82-83).

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relações internacionais. Nada disso, porém, se confunde com um“desfalecimento” do Estado-nação, que representa a única instânciacapaz de conduzir o próprio processo de globalização.

2 – “PAX AMERICANA”?

O Muro de Berlim foi, por quase três décadas, símbolosingularmente apropriado do sistema da Guerra Fria. Ele materializoua linha de demarcação erguida no centro da Europa entre os blocosgeopolíticos antagônicos e assinalou o principal foco nervoso de tensões,situado no coração da Alemanha dividida. Simultaneamente, representoua incompatibilidade mútua dos regimes sócio-políticos vigentes naEuropa e a dimensão coercitiva essencial da bipartição da nação alemã.

A queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, constituiupor isso marco adequado para o encerramento da Guerra Fria. Antesdesse evento singular, os levantes populares revolucionários que varriama Europa oriental provocavam a decomposição dos regimes totalitáriosinstalados nos anos do imediato pós-guerra, desmontando o blocosoviético.11 Dessa forma, 9 de novembro de 1989 constituiu algo comoa conclusão de um processo, cujas raízes se encontram nas reformasdeflagradas por Mikhail Gorbachev a partir de 1985.

Dentre as conseqüências diretas da queda do Muro de Berlim,figura a reunificação alemã, que se consumou no ano seguinte. Comela, o conjunto da geometria do espaço europeu da Guerra Fria foiradicalmente alterado, e as fronteiras geopolíticas desenhadas em Yaltae Potsdam perderam seu significado.

11 O sentido “revolucionário” dos movimentos que se verificaram durante o ano de 1989 no LesteEuropeu foi agudamente sublinhado pelo historiador Timothy G. Ash, que escreveu ainda no calordos acontecimentos: “Tal como observou Ralf Dahrendorf, Karl Marx jogou com a ambiguidade daexpressão alemã burgerliche Gesellschaft, que tanto podia ser traduzida como sociedade civil quantocomo sociedade burguesa. Marx, diz Dahrendorf, nivelou deliberadamente as duas ‘cidades’ damodernidade, os frutos das Revoluções Industrial e Francesa, o burguês e o cidadão. (...) O que amaior parte dos movimentos de oposição por toda a Europa central e grande parte do ‘povo’ que osapóia está realmente dizendo é: sim, Marx tem razão, as duas coisas estão intimamente ligadas – enós queremos as duas! Direitos civis e direitos de propriedade, liberdade econômica e liberdadepolítica, independência financeira e independência intelectual, cada um desses termos apóia o outro.”(Nós, o povo, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 158).

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Em dezembro de 1991, como epitáfio do meio século de GuerraFria, a desintegração da União Soviética, precipitada pelo fracassadogolpe burocrático de agosto, suprimiu o pólo oriental do sistemainternacional do pós-guerra. Esse fato, que surpreendeu a quase totalidadedos observadores, focalizou as discussões sobre a estrutura do sistemaque sucede ao da Guerra Fria. Em particular, instigou os debates relativosao papel dos Estados Unidos no mundo do pós-Guerra Fria.

A Guerra Fria moldou uma etapa especial da história dahumanidade, na qual o sistema internacional se organizou em torno dedois pólos de poder de âmbito planetário. As superpotênciastermonucleares estabeleceram um conflito que repercutiu em todos osplanos: os modelos econômicos, as instituições políticas, a diplomacia, aideologia e a propaganda, os dispositivos militares... De certa forma, oconflito foi também uma cooperação: os contendores respeitaramescrupulosamente as linhas demarcatórias das respectivas esferas deinfluência. Irmãos-inimigos, os Estados Unidos e a União Soviéticaconflitavam cooperando.12

A presença de um Terceiro Mundo, politicamente refletida noMovimento dos Países Não-Alinhados, nunca impugnou a naturezabipolar do sistema da Guerra Fria. Paradoxalmente, a ideologia do não-alinhamento confirmava a bipolaridade do sistema, pois tinha comoreferência precisamente a rivalidade entre os dois contendores. De fato,não existe sequer sentido lógico na afirmação de um não-alinhamentoem sistemas de poder multipolares.

A bipolaridade da Guerra Fria apoiou-se sobre inédita acumulaçãoe aperfeiçoamento de meios de destruição em massa. Os arsenaisnucleares, formados por ogivas e lançadores, tinham por finalidade nãoa preparação da guerra, mas a sua prevenção. No tempo em que oembate militar prometia apenas a devastação mútua, excluindo a

12 A expressão irmãos-inimigos é de Raymond Aron: “A afirmativa de que as duas superpotênciasdominantes do sistema internacional são irmãs, além de inimigas, devia ser considerado um dadobanal e não um paradoxo. Por definição, se uma delas não existisse, a outra reinaria só; ora, oscandidatos a um mesmo trono têm sempre algo em comum. As unidades de um sistema internacionalpertencem a uma mesma zona de civilização. É inevitável, portanto, que os “grandes” adotem emparte os mesmos princípios e que mantenham um diálogo enquanto se combatem.” (Paz e Guerraentre as Nações, Brasília: UnB, p. 657).

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hipótese da vitória, a acumulação de arsenais sempre maiorestransformou-se num fim autônomo. Esses arsenais crescentes visavamnão à alteração mas à manutenção do equilíbrio de poder existente.

Nessas condições, a força militar tornou-se sinônimo de poder,marginalizando outras referências tradicionais do poderio dos Estados,como principalmente a produtividade e a eficiência da economianacional. Assim, países como a Alemanha e o Japão – potênciaseconômicas excluídas politicamente do clube nuclear – permaneceramà margem dos centros fundamentais de poder e decisão do sistemainternacional.

Unipolaridade ou multipolaridade?

O fim da Guerra Fria e a subseqüente desaparição da União Soviéticadeixaram aos Estados Unidos a condição de única superpotência quereúne, simultaneamente, a força militar e a hegemonia estratégica global.Em princípio, a bipolaridade cedeu lugar a uma distribuição unipolardo poder: a nova “Pax Americana”, isto é, o império sem contraste dosEstados Unidos.

Essa forma de encarar a geometria do sistema internacional queemergiu das ruínas da Guerra Fria originou a expressão “Nova OrdemMundial”, cunhada pelo presidente americano George Bush às vésperasda desintegração da União Soviética. A primeira Guerra do Golfo –deflagrada na seqüência imediata do drama soviético e encerrada comimpressionante demonstração de capacidade estratégica e poder militarde Washington – contribuiu para difundir e conferir intensa forçapersuasiva à nova imagem do mundo emanada dessas percepções.13

As inúmeras crises localizadas que se seguiram à Guerra do Golfo,a par de cristalizarem a imagem de uma realidade internacional maisinstável que a das décadas do pós-guerra, ressaltaram a liderançaestratégica dos Estados Unidos. As crises da Somália (1992-1994), daBósnia-Herzegovina (1993-1995), do Haiti (1994) e de Kosovo (1999),apesar das peculiaridades de cada uma, reforçaram o papel-chave de

13 As percepções que emergiram daquela série de eventos foram teorizadas em célebre ensaio deCharles Krauthammer: “The Unipolar Moment”, Foreign Affairs, January/February 1991, p. 23-33.

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Washington na formulação das decisões adotadas no quadro doConselho de Segurança da ONU. Entrementes, a expansão da Otan nadireção da Europa centro-oriental e a evolução das propostas francesasligadas ao problema da defesa européia reafirmaram a influênciadeterminante dos Estados Unidos na manutenção dos equilíbriosestratégicos básicos no teatro europeu.

As atitudes de Washington diante das transformações radicais dosistema internacional oscilaram entre o superengajamento, expresso nadisponibilidade intervencionista dos presidentes George H. Bush e BillClinton, e uma forma particular de neo-isolacionismo, expressa nasprioridades domésticas e na valorização da diplomacia comercialproclamadas no primeiro mandato de Clinton e assumidas por umainfluente corrente bipartidária no Capitólio. Em um caso como no outro,contudo, a política externa americana deixou transparecer penosaimpressão de carência de paradigmas e acentuado empirismo.

Nos Bálcãs, as duas intervenções da Otan recolocaram, sob novasformas, o antigo dilema entre o espírito cruzadista da política externaamericana e as necessidades realistas de segurança e influência. Obombardeio das tropas sérvias na Bósnia foi justificado em termoshumanitários, mas o Acordo de Dayton, de 1995, fundamentou-se nanoção de divisão de esferas de influência entre a pró-ocidental Croáciae a pró-russa Sérvia. O sucesso na Bósnia contribuiu, decisivamente,para a deflagração da campanha aérea contra a Sérvia, no momentoda crise de Kosovo. Essa campanha, apesar do seu resultado, tendeu aenfraquecer os argumentos cruzadistas para intervenções externas.

Em Kosovo, as metas estratégicas mais ou menos evidentes – aprevenção da extensão do conflito para a Macedônia e do envolvimentoda Grécia e da Turquia – ficaram encobertas pela barragem de justificativashumanitárias oficiais. Mas essas justificativas experimentaram umaprova difícil, quando os bombardeios aceleraram a catástrofe que sepretendia evitar e as fronteiras da Albânia e da Macedônia cobriram-sede campos de refugiados kosovares. O protetorado militar internacionalestabelecido na província sérvia, que se soma ao protetorado bósnio eimplica o comprometimento duradouro de forças da Otan, não solucionaa intrincada questão balcânica e pode até mesmo torná-la mais grave.

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O fim da Guerra Fria não se limitou a modificar a distribuiçãodo poder, mas, em certa medida, alterou a própria natureza do podergeopolítico. Durante as décadas da Guerra Fria, armas e poder tornaram-se quase sinônimos. A ordem internacional que se desenhou depois daqueda do Muro de Berlim desmanchou essa identidade, desvinculandoparcialmente o poder geopolítico dos arsenais militares. Outrasdimensões de poder, quase esquecidas, reapareceram no centro da cena.A força do dinheiro, em especial, lançou um cone de sombra na direçãoda força das armas.

Nas décadas do pós-guerra, a reconstrução da economia capitalistamundial produziu uma redistribuição geográfica da riqueza. Ahegemonia incontestável dos Estados Unidos – que concentravam umariqueza bastante superior à das demais potências capitalistas juntas,no final da guerra – foi sofrendo erosão contínua. Ainda em 1960, o PIBamericano representava 40% do PIB mundial; em 2000, representavajá menos de 25%. Simultaneamente, a Europa ocidental e o Japãoadquiriram nova capacidade industrial, comercial e financeira.

Tais realidades estão na base das teses que postulam o declínio dainfluência e do poderio dos Estados Unidos. O mais célebre dos analistas“declinistas”, o schollar britânico Paul Kennedy, ancorou suas observaçõesem uma interpretação histórica de larga escala sobre a ascensão e odeclínio das potências imperiais. Seu argumento crucial destaca o pesodo fardo representado pelos interesses e pelos engajamentosinternacionais das potências nas fases de redução do seu dinamismoeconômico.14

As teses “declinistas” contavam, a seu favor, no momento em queforam formuladas, com sólidos argumentos macroeconômicos. O déficit

14 “Embora os Estados Unidos ocupem atualmente ainda uma posição especial, própria, econômicae talvez mesmo militarmente, não podem deixar de enfrentar duas grandes provas que desafiam alongevidade de toda grande potência que ocupa a posição de ‘número um’ nos assuntos mundiais: acapacidade de preservar, no setor estratégico-militar, um razoável equilíbrio entre as necessidadesdefensivas do país e os meios de que dispõe para atender a elas; e a capacidade de preservar, comoponto estreitamente ligado à primeira, as bases tecnológicas e econômicas de seu poder contra aerosão relativa, frente aos padrões sempre cambiantes da produção global total. Essa prova dacapacidade americana será ainda maior porque os Estados Unidos, como a Espanha imperial de cercade 1600 ou o Império Britânico de cerca de 1900, são os herdeiros de uma vasta série de compromissosestratégicos feitos décadas antes, quando a capacidade política, econômica e militar que tinham deinfluenciar as questões mundiais parecia muito mais assegurada.” (Ascensão e Queda das GrandesPotências, Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 488).

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público americano, que escapou a qualquer controle ao longo da décadade 1980, tinha tornado o financiamento governamental dependente dosfluxos financeiros internacionais e da credibilidade dos papéis oficiaispostos à venda no mercado. O déficit comercial, que se manteve emníveis muito elevados, resistiu às flutuações do dólar frente à divisajaponesa e refletiu a perda relativa de competitividade externa deimportantes setores da economia americana.15

A tese do declínio entrou, ela própria, em decadência durante olongo ciclo ascendente da economia americana, na década de 1990. Obrilho econômico renovado ganhou cores vivas pelo fato de derivar daliderança das empresas do país nos setores glamurosos de alta tecnologiae por contrastar tanto com a demorada recessão japonesa quanto coma estagnação européia na travessia da União Econômica e Monetária.Contudo, não passaram despercebidas aos analistas mais sofisticadosas fragilidades do crescimento recente, apoiado muito mais sobre oconsumo que sobre a elevação da produtividade e fortementedependente da riqueza criada no mercado de ações.

Não é preciso adotar a tese do declínio para constatar a emergênciade pólos de poder exteriores à América do Norte. A emergência dessespólos de poder permitem esboçar o desenho de um sistema internacionalque tende à multipolaridade econômica. Essa tendência, que não suprimea liderança estratégica dos Estados Unidos, reflete-se na importânciacrescente da diplomacia comercial, de instituições multilaterais como aOMC e o FMI e dos blocos econômicos regionais. Ao mesmo tempo,explica o complexo jogo de ações unilaterais, pressões, composições deinteresses e compromissos que viabiliza o exercício da liderançaamericana.

15 Contudo, mesmo no terreno das análises sobre os grandes equilíbrios econômicos internacionais,desenvolveu-se desde o início uma contestação ativa das teses “declinistas”. Joseph S. Nye, schollar deHarvard, argumentou que a fase de declínio relativo da economia americana circunscreve-se àsdécadas de 1950 e 1960, justamente quando o brilho do poder estratégico de Washington era maisintenso do que nunca (“Understanding U.S. Strength”, Foreign Policy, nº 72, 1988). Henry R. Nau,professor de ciência política e assuntos internacionais e integrante do Conselho de Segurança Nacionalda Casa Branca no início da “era Reagan” sustentou, em O Mito da Decadência dos Estados Unidos (Riode Janeiro: Jorge Zahar, 1992), que a década de 1980 assinalou o início de nova fase de afirmação daliderança estratégica e do poderio econômico dos Estados Unidos, abalados pelos impasses e pelaindecisão típicos do período anterior, marcado pela retirada do Vietnã, o “caso Watergate”, a revoluçãoiraniana e a vitória sandinista na Nicarágua.

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A noção da “Pax Americana” descreve apenas parcialmente ascaracterísticas do sistema internacional. Isoladamente, ela não é capazde dar conta das complexas reacomodações geopolíticas que envolvema consolidação dos blocos econômicos regionais ou do exercício de podere influência por parte de potências como a China, a Rússia, o Japão, aFrança e a Alemanha.

A estrutura do sistema de Estados talvez possa ser melhorcompreendida pela análise das suas duas “camadas” superpostas. Aprimeira, a do poder das armas, afigura-se nitidamente unipolar econvida a raciocinar nos termos da “Pax Americana”. Os momentos deaguda tensão geopolítica e os conflitos militares tendem a enfatizaressa dimensão do sistema interestatal. A segunda, a do poder do dinheiro,afigura-se multipolar e assimétrica, revelando a formação de blocosgeoeconômicos macrorregionais.

Samuel Huntington sintetizou as dificuldades para a descriçãoda estrutura do atual sistema de Estados e ofereceu uma proposiçãoconceitual: a noção de um sistema uni-multipolar no qual a únicahiperpotência tem seu poder limitado por diversas potências e pela redede instituições multilaterais. Essa proposição tem a vantagem dereconhecer, simultaneamente, a hegemonia americana nos planospolítico, estratégico e militar e a presença de outras potências e blocosregionais capazes de interferir significativamente na dinâmica centraldo sistema internacional.16

16 Huntington observou que a ordem emanada da queda do Muro de Berlim não pode ser facilmenteclassificada e singulariza-se tanto frente ao sistema multipolar do século XIX quanto ao sistemabipolar da Guerra Fria: “There is now only one superpower. But that does not mean that the world isunipolar. A unipolar system would have one superpower, no significant major powers, and many minorpowers. As a result, the superpower could effectively resolve important international issues alone, and nocombination of other states would have the power to prevent it from doing so. For several centuries theclassical world under Rome (...) aproximated this model. A bipolar system like the Cold War has twosuperpowers, and the relations between them are central to international politics. (...) A multipolar systemhas several major powers of comparable strenght that cooperate and compete with each other in shiftingpatterns. (...) Contemporary international politics does not fit any of these three models. It is instead astrange hybrid, a uni-multipolar system with one superpower and several major powers. The settlement ofkey international issues requires action by the single superpower but always with some combination of othermajor states; the single superpower can, however, veto action on key issues by combinations of other states.”(“The Lonely Superpower”, Foreign Affairs, March/April 1999, p. 35-36).

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Doutrina Bush e “visão neo-imperial”

A Doutrina Truman esvaziou-se de significado mas não foisubstituída por nova orientação geral de política externa durante aprimeira década do pós-Guerra Fria. Contudo, essa nova orientaçãosurgiu, subitamente, como reação aos atentados terroristas de 11 desetembro de 2001, que destruíram as torres gêmeas do World Trade Center,em Nova Iorque, e uma das alas do Pentágono, em Washington. Otrauma nacional provocado pelos ataques, conduzidos pela Al-Qaeda,do líder terrorista saudita Osama Bin Laden, catapultou osneoconservadores republicanos para o centro das decisões daadministração George W. Bush e abriu caminho para a declaração da“guerra ao terror”.

A guerra é o confronto entre as forças em armas de Estadosbeligerantes. Os ataques de 11 de setembro não foram “atos de guerra”,mas atentados terroristas – ou seja, ações políticas cometidas pororganizações ou indivíduos contra alvos civis ou militares desarmados.A sua identificação com atos de guerra exigiu a construção de umdiscurso baseado na tese do “sistema terrorista internacional”. A tesesustenta que as organizações do terror participam de um sistemainternacional mais amplo, cujos pilares são Estados hostis ao Ocidente.Esses Estados, além de fornecer apoio financeiro e logístico para o terror,desempenhariam funções cruciais na formulação estratégica e nacoordenação das campanhas de atentados.

A campanha militar do Afeganistão, liderada pelos Estados Unidose apoiada por uma coalizão internacional, figurou como primeiraresposta aos atentados de setembro. Entre o final de 2001 e o início de2002, as forças da coalizão derrubaram o regime fundamentalista doTaleban, que dava abrigo à Al-Qaeda, e destruíram quasecompletamente a rede terrorista em território afegão. A vitória ficouincompleta, pois Osama Bin Laden e o principal líder do Taleban nãoforam capturados. Mas isso não impediu Bush de anunciar uma segundafase da “guerra ao terror”, voltada contra os Estados do chamado “eixodo mal”: Iraque, Irã e Coréia do Norte.

No “eixo do mal”, não figuravam Estados associados aorganizações terroristas de alcance mundial. A acusação principal aos

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três Estados envolvia os programas de produção de armas de destruiçãoem massa. Segundo Washington, a existência desses programasrepresenta ameaça à segurança nacional americana, pois as armas dedestruição em massa poderiam ser utilizadas, diretamente ou por meiode organizações terroristas, contra os Estados Unidos ou os seus aliados.O Iraque destacava-se, no interior do “eixo do mal”, como o alvoprincipal e o foco de nova campanha militar destinada a eliminar oregime de Saddam Hussein.

A Doutrina Bush emanou da tese do “sistema terroristainternacional”. Na “guerra ao terror”, o inimigo não tem rosto, masuma infinidade de máscaras, definidas periodicamente pelos EstadosUnidos. Nessa moldura, o Afeganistão do Taleban e de Osama BinLaden, o Iraque de Saddam Hussein, o “eixo do mal” constituem etapasde uma única guerra, que pode se estender por décadas.

A revisão da estratégia militar americana completou o dispositivoconceitual da Doutrina Bush. Seu aspecto crucial consistiu na proclamaçãodo direito à “guerra preventiva”. Rompendo os princípios consagradospela ONU e a própria tradição da política externa americana, quedefinem o direito de guerra no quadro estrito da reação a uma agressãoconsumada, Bush proclamou o suposto direito de atacar primeiro parasuprimir ameaças potenciais. Evidentemente, o princípio da “guerrapreventiva”, se aplicado generalizadamente, teria o condão de cortar osfios tênues que sustentam a ordem internacional.

A visão de um mundo sombrio, hostil e ameaçador é o alicerce daDoutrina Bush. Os inimigos, difusos e ubíquos, não poderiam serenfrentados de modo convencional. As novas ameaças do “sistema doterror” exigiriam o recurso a instrumentos extremos, que não estãodisponíveis normalmente na democracia – como departamentos eagências devotadas à segurança interna, tribunais militares de exceçãoe prisões preventivas sem acusação formal. A “guerra ao terror” congela,parcialmente, alguns princípios basilares da república democráticaamericana.

À primeira vista, a Doutrina Bush representa nítida opçãointernacionalista e ruptura com os gestos isolacionistas quecaracterizaram os primeiros meses da administração de George W. Bush.

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Entretanto, a atitude fundamental da hiperpotência é isolacionista. Esseisolacionismo profundo se manifestou pelo desprezo em relação àsinstituições multilaterais.

A Doutrina Bush assinalou o deslizamento do isolacionismo parao unilateralismo. Na campanha do Afeganistão, a Otan foi solenementeignorada – mesmo depois de ter invocado, pela primeira vez na suahistória, o mecanismo de defesa coletiva previsto na Carta do Atlântico.À ONU foi reservado um papel menor e quase decorativo, de articulaçãodiplomática do governo provisório afegão, depois de concluídas asprincipais operações militares. Bush explicitou, desde o início, que osEstados Unidos exerceriam a liderança da “guerra ao terror” e contavamcom a adesão irrestrita de seus aliados.

“Meu trabalho não consiste em estabelecer nuances. Meu trabalhoé o de dizer o que penso. Eu penso que a pureza moral é importante.”Essas palavras, com as quais Bush explicou certa vez o unilateralismoda sua política externa, revelam as raízes profundas da orientaçãoestratégica definida depois do 11 de setembro. A Doutrina Bush não éum raio no céu azul, mas a retomada e a reinterpretação do espíritocruzadista que informa, desde o início, a política externa dos EstadosUnidos. G. John Ikenberry interpretou a nova doutrina e, em particular,o proclamado direito à “guerra preventiva” como uma “visão neo-imperial”.17

A segunda Guerra do Golfo, em 2003, evidenciou o impacto da“visão neo-imperial” sobre as instituições multilaterais. O prolongado edesgastante impasse no Conselho de Segurança da ONU refletiu aresistência da França, da Rússia e da China, acompanhadas de forapela Alemanha, à decisão unilateral de Washington de remover o regimede Saddam Hussein e estabelecer um protetorado militar no Iraque. A

17 “In the shadows of the Bush administration’s war on terrorism, sweeping new ideas are circulating aboutU.S. grand strategy and the restructuring of today’s unipolar world. They call for American unilateral andpreemptive, even preventive, use of force, facilitated if possible by coalitions of the willing – but ultimatelyunconstrained by the rules and norms of the international community. At the extreme, these notions form aneoimperial vision in which the United States arrogates to itself the global role of setting standards,determining threats, using force and meting out justice. It is a vision in which sovereignty becomes moreabsolute for America even as it becomes more conditional for countries that challenge Washington’s standardsof internal and external behavior.” (“America’s Imperial Ambition”, Foreign Affairs, September/October2002, p. 44).

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guerra de ocupação, empreendida sem o aval da ONU, atingiu osalicerces do sistema de segurança coletiva erguido em 1945. Esse sistemanão ruiu, mas sua fragilidade é o reverso da moeda do desequilíbrio depoder no sistema internacional de Estados contemporâneo.

3 – EUROPA E SISTEMA INTERNACIONAL

A profunda crise que devastava a economia européia no imediatopós-guerra estava ancorada num círculo vicioso. As estruturasprodutivas destruídas só poderiam ser reconstituídas medianteimportações. Contudo, não havia meios de financiar essas importações,a não ser reativando a produção e, portanto, as exportações. A criseconsistia, então, em aguda carência de divisas.

A tormenta afetava a estabilidade dos regimes democráticosreinstalados. O desemprego e a corrosão dos salários agitavam o meiosindical. Os partidos de esquerda – socialistas e comunistas – ampliavamsuas bases sociais e eleitorais.

A resposta à crise, condicionada pelo ambiente da Guerra Fria, foio lançamento do Plano Marshall. Baseado na idéia de transferência debilhões de dólares dos Estados Unidos para a Europa, ele fornecia achave para a reativação das economias nacionais, sob a base de planose controles multilaterais. Anunciado em junho de 1947 como propostapara toda a Europa (inclusive para a União Soviética), ele representavaum instrumento da Doutrina Truman. Visava a reconstituir economiasde mercado saudáveis no Ocidente e bloquear o processo de fechamentodas economias do Leste, onde o poder dos partidos comunistas se tornavarapidamente asfixiante. A retirada da União Soviética e dos países dasua área de influência das negociações do Plano reduziu sua abrangênciaà parte oeste do continente. Em abril de 1948, foram assinados osprotocolos finais, envolvendo fundos e créditos destinados a dezesseispaíses. Em junho, uma reforma monetária aplicada sem o aval soviéticonas zonas ocidentais da Alemanha assinalou a extensão do Plano à maiorparte da potência ocupada.18

18 Uma excelente história diplomática, em estilo jornalístico, do Plano Marshall aparece em CharlesL. Mee Jr., The Marshall Plan: the launching of the Pax Americana, New York: Simon and Schuster, 1984.

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A injeção de dólares propiciada pelos Estados Unidos teve efeitosimediatos. No ambiente de otimismo e reconstrução que se formava,reduziam-se as tensões sociais e se fortaleciam os partidos conservadores.Na Alemanha, em meio ao drama do bloqueio de Berlim, surgia aRepública Federal, integrada estrategicamente à Europa ocidental.

O nascimento da RFA recolocou em cena, sob nova forma, a velha“questão alemã”. A França – que inutilmente tentara perpetuar afragmentação do território germânico em quatro zonas sujeitas acontrole internacional – encarava com temor o reaparecimento de umEstado alemão.19

Em maio de 1949, foi aprovada a Lei Fundamental de Bonn epoucos meses depois era eleito um governo, chefiado por KonradAdenauer. A região metalúrgica do Sarre, que a França sonhavaincorporar ao seu território, foi confirmada como parte da Alemanha.O governo de Bonn solicitava o direito de ampliar sua produção decarvão e aço da Bacia do Ruhr, colocada sob controle internacional.

A lógica do conflito franco-alemão parecia se repetir, refazendo oimpasse dos anos que seguiram a Primeira Guerra Mundial. A França,atolada no seu complexo de inferioridade, procurava retardar oinevitável reerguimento alemão. Na Alemanha, o ressentimentoprovocado pelas restrições internacionais gerava os primeiros sintomasdo ressurgimento do nacionalismo. A tensão entre a França e a RepúblicaFederal ameaçava transformar-se em uma fissura irreversível no blocoocidental, que se constituía sob a tutela dos Estados Unidos e no quadroda recém-criada Otan.

Origens da Comunidade Européia

Foi nessa atmosfera carregada que surgiu a saída para oimpasse. Nos primeiros dias de maio de 1950, era formulada a proposta

19 “Os alemães devem renascer como homens associados ao esforço comum da humanidade por suareconstrução e, especialmente, ao esforço comum da Europa, mas nunca mais devem reencontrar osmeios de voltar a ser uma ameaça. Para que a Alemanha não volte a ser uma ameaça, a França propõeum meio prático, provado pela História e correspondente à natureza das coisas: a Alemanha nãodeve voltar a ser o Reich, isto é, uma potência unificada, centralizada em torno de uma força enecessariamente voltada para a expansão por todos os meios. Não queremos um Reich.” (Charles deGaulle, em entrevista à imprensa a 12 de novembro de 1947, citada por Raymond Aron, Memórias,Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 276).

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que ficaria conhecida como Plano Schuman. Em 9 de maio, em nomedo Governo francês, o ministro das Relações Exteriores Robert Schumantornava público o projeto de integração das siderurgias francesa e alemãsob controle de uma autoridade comum, aberta a outros países europeus.Essa proposta, articulada com o primeiro-ministro Adenauer, constituiuo alicerce da Ceca e a fonte original do processo de integração européia.

O autor intelectual do Plano tinha sido Jean Monnet, notáveldiplomata e assessor do Governo francês nas duas guerras do século.Esse homem, que se tornaria o símbolo da União Européia, enxergava aquestão sob seu aspecto geopolítico.20

O Plano Schuman visava a estabelecer uma trajetória de fusãodas soberanias francesa e alemã, rompendo a lógica de conflito nacionalque prevalecera até então. A reunião dos recursos, sob controle comum,introduzia a noção de soberania compartilhada, atenuando osnacionalismos. Em junho de 1950, o Plano Schuman tinha a adesão deItália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O mundo político britânicodividiu-se entre opositores e entusiastas do projeto. Entretanto, oGoverno de Londres retirou-se já nas primeiras trocas de informação,alegando que o projeto envolvia a submissão da soberania britânica aórgãos internacionais.

A Ceca, que entrou em funcionamento em 1952, demarcava novabase no relacionamento entre os Estados. A alta autoridade, instaladana sede de Luxemburgo, materializava o enfraquecimento do princípioda soberania. Para a França, essa moldura funcionava como meio deenquadrar a RFA e bloquear o ressurgimento da ameaça alemã. Para aAlemanha Ocidental, era a oportunidade de recuperar parcialmente oestatuto de igualdade com os demais Estados europeus.

20 “A riqueza conjunta era em primeiro lugar a do carvão e a do aço cujas bacias naturais inscritas emum triângulo geográfico que as fronteiras históricas cortavam artificialmente eram repartidas demaneira desigual, mas complementar, pela França e pela Alemanha. Essas fronteiras casuais tinhamse tornado na era industrial, cujo surgimento coincidiu com o das doutrinas nacionalistas, obstáculosàs trocas e depois linhas de confrontação. Nenhum dos dois povos se sentiu mais seguro porque nãopossuía sozinho todo o recurso, isto é, todo o território. A rivalidade era decidida pela guerra que sóresolvia o problema por certo tempo – o tempo de preparar a desforra. Ora, o carvão e o aço eramao mesmo tempo a chave da potência econômica e a do arsenal onde se forjavam as armas da guerra.Esse duplo poder lhes dava então uma enorme significação simbólica que esquecemos, semelhante àde que se reveste a energia nuclear hoje em dia. Fundi-los acima das fronteiras seria retirar-lhes seuprestígio maléfico e os transformaria, ao contrário, em garantia de paz.” (Jean Monnet, Memórias: AConstrução da Unidade Européia, Brasília: Unb, 1986, p. 259-260).

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A idéia da Comunidade Européia surgiu no interior da Ceca,presidida então por Jean Monnet. O tratado histórico foi assinado emRoma, a 24 de março de 1957. Bruxelas foi escolhida como sede daEuropa comunitária que acabava de nascer. A opção por Bruxelas foipequena mas significativa derrota conceitual da equipe de Jean Monnet,que defendia a transformação de Luxemburgo em “distrito europeu”.A proposta do “distrito europeu” procurava edificar um símbolocomunitário e federalista: a Europa representaria uma entidade definida,detentora de soberanias compartilhadas.

A escolha de Bruxelas manifestava outra disposição de espírito:dispersando as sedes dos órgãos comunitários, afirmava-se o Estadonacional como detentor básico de soberanias e a Europa apareciaunicamente como produto de acordos específicos entre os Estados. Nãoé casual que as duas “capitais européias” – Bruxelas e Luxemburgo –ficassem situadas fora dos territórios francês e alemão, em pequenospaíses localizados na zona de fronteira das duas potências continentais.

Grã-Bretanha e Europa

No pós-guerra, a política externa britânica organizava-se em tornode três conjuntos: o Império, que lentamente se transformava emComunidade Britânica; a Aliança Atlântica com Washington; a Europaocidental. Na ordem de prioridades de Londres, a Europa ocupava apenasa terceira posição. A Grã-Bretanha estava pronta para estabeleceracordos clássicos entre Estados mas sequer sonhava conformar-se àposição de parceiro num conjunto europeu.

A resposta britânica à Comunidade Européia foi a constituição,em 1959, de outra organização – a Associação Européia de LivreComércio (Aelc). A Aelc não tinha as ambições da Comunidade, queenvolviam a criação de instituições supranacionais, circunscrevendo-seà condição de típico acordo entre Estados para a diminuição de certastarifas alfandegárias e a consecução de acordos bilaterais de comércio.

Entretanto, a posição britânica evoluía lentamente, sob o impactodos acontecimentos mundiais. Em 1960, a nova administração americanade John Kennedy rompia a inércia do governo Eisenhower frente àComunidade Européia. De Washington, crescia a pressão para o ingresso

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britânico na Comunidade, a fim de aprofundar os laços entre acomponente européia e a componente americana do Ocidente.Simultaneamente, Londres dobrava-se à evidência de que seriaimpossível sustentar o que restava do Império Britânico. Depois daindependência das antigas colônias asiáticas, soava a hora das colôniasafricanas: a esfera de influência britânica restringia-se cada vez mais,enquanto crescia na mesma proporção o poder de atração da Europa.

Em agosto de 1961, finalmente, a Grã-Bretanha formulava umpedido oficial de adesão. Em janeiro de 1963, contudo, o general CharlesDe Gaulle, no seu estilo intempestivo, concedeu entrevista coletiva naqual remeteu o ingresso britânico para um futuro indeterminado e ocondicionou a substantiva mudança na atitude diplomática tradicionalde Londres. Em conseqüência, por uma década inteira, a Grã-Bretanhacontinuaria afastada da Europa.

“A Europa unida, do Atlântico aos Urais” – com essa fórmulacélebre, De Gaulle ergueu uma barreira contra a unidade européia. Aoposição do general à entrada da Grã-Bretanha refletia uma oposiçãomais profunda: ele não aceitava, e sequer compreendia, a noção desoberanias compartilhadas. O Estado-nação, essa era a única fontelegítima da soberania: De Gaulle se opunha ao ingresso britânico porquese opunha à própria Comunidade Européia.

A “Europa unida” de que falava De Gaulle era outra Europa, quesó existia na sua imaginação nostálgica. Era a “Europa das Pátrias”,baseada nas relações multilaterais de cooperação estabelecidas entreEstados. “Do Atlântico aos Urais” – a abrangência geográfica da Europado general – queria dizer: uma Europa sem “cortina de ferro”, sem UniãoSoviética e sem Pacto de Varsóvia, sem ... Estados Unidos e Otan.

Atrás da oposição do general à Comunidade, entrevia-se suaoposição ao mundo bipolar da Guerra Fria e à divisão da Europa emesferas de influência das superpotências nucleares. De Gaulle sonhavacom um passado perdido – o tempo do equilíbrio multipolar europeu,quando os Estados Unidos se mantinham isolados da Europa e, no lugarda União Soviética, existia a velha Rússia.

De Gaulle foi um nacionalista clássico. A política externa gaullistajamais desafiou os fundamentos da arquitetura estratégica da Europa

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ocidental, mas caracterizou-se pela tentativa de alçar a França à condiçãode liderança européia, contraposta à dupla hegemonia das superpotências.A Comunidade Européia – construída à sombra da “cortina de ferro” einscrita na lógica da esfera de influência americana – surgia aos olhosdo general como uma camisa de força que tolhia a liberdade francesa.

O alargamento da Comunidade realizou-se sobre a lógicageográfica da Guerra Fria. Na segunda metade da década de 1980, oslimites da “Europa dos Doze” praticamente coincidiam com os da zonaeuropéia coberta pela Otan. Excluída a Turquia, sobravam apenas doisintegrantes europeus da Aliança Atlântica fora do conjunto comunitário:a Islândia e a Noruega. Os países neutros de economia de mercado –Suécia, Finlândia, Suíça e Áustria – não participavam de nenhuma dasduas estruturas básicas da Europa ocidental.

A identificação quase completa dos mapas europeus da Otan eda CE não era casual. Ela revelava a natureza íntima da Comunidade –sua condição de pilar europeu do Ocidente construído pela Guerra Fria.Lastreada desde o início pelo eixo franco-alemão, a Comunidade soldavaa aliança entre as potências que tinham atrás de si uma história deconflitos e rivalidade nacionalista. Assim, criava o arcabouçoindispensável para a hegemonia dos Estados Unidos sobre a Europaocidental, num cenário internacional definido pela bipolaridade de poder.

União Européia no pós-Guerra Fria

A reunião do Conselho Europeu, de dezembro de 1991, na cidadeholandesa de Maastricht, definiu a estratégia comunitária diante dofim da Guerra Fria. Pouco mais de um ano antes, em outubro de 1990,tinha se consumado a reunificação alemã. O Tratado de Maastricht,assinado em fevereiro de 1992, substituiu juridicamente o Tratado deRoma como documento de base da CE e delineou novas metas para oaprofundamento da integração européia.

O núcleo das decisões de Maastricht residia na União Econômicae Monetária (UEM). Mas o Tratado de Maastricht não se limitou àeconomia. Pela primeira vez na história da Comunidade, e porinsistência da França, foi prevista a definição de políticas externa e desegurança comuns, o que conferiria à Comunidade (que passava a se

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denominar União Européia) o estatuto de ator do sistema diplomáticointernacional.21

Teoricamente, a meta da defesa comum entrou em conflito coma Otan, que materializou desde 1949 uma estrutura militar integradasob a liderança dos Estados Unidos. O projeto de criação de umaestrutura militar européia, acalentado pela França desde a época dogeneral De Gaulle, corresponderia à redução da influência estratégicade Washington na Europa. Por isso, sob pressão britânica e holandesa, aFrança foi levada a aceitar uma solução de compromisso: Maastrichtestabeleceu que as estruturas de defesa européias estariam subordinadasà Otan.

O Tratado de Maastricht foi, antes de tudo, uma resposta àreunificação alemã. Essa resposta atualizou o método empregado porMonnet na década de l950.

Se o rearmamento alemão tinha exigido a fusão de soberanias nodomínio crucial da siderurgia, o ressurgimento de uma potência alemãunificada na década de 1990 exigia a fusão de soberanias nos domíniosvitais da moeda e da política externa. Ou seja, a Alemanha sacrificavao seu precioso marco e o privilégio de uma afirmação autônoma nacena mundial no altar da aliança estratégica que a vinculava à França.22

O lançamento do euro, em 1999, foi acompanhado por animadapolêmica sobre os riscos do projeto comunitário. Alguns analistaschamaram a atenção para o choque potencial entre os interessesparticulares dos Estados nacionais e as orientações comuns do Banco

21 Contudo, segundo os acordos, os princípios da política externa e de defesa comuns ficam a cargodo Conselho Europeu e só podem ser adotados por unanimidade. A exigência da regra da unanimidadeé evidente reafirmação da soberania dos Estados nesse terreno crucial.

22 “Of course, there are economic arguments for monetary union. But monetary union was conceived as aneconomic means to a political end. It is the continuation of the functionalist approach adopted by the Frenchand German founding fathers of the EEC: political integration through economic integration. But there wasa more specific political reason for the decision to make this the central goal of European integration in the1990s. As so often before, the key lies in a compromise between French and German national interests. In1990, there was at the very least an implicit linkage made between Miterrand’s reluctant support forGerman unification and Kohl’s decisive push towards European monetary union. ‘The whole of Deutschlandfor Kohl, half the deutsche mark for Miterrand’, some wits put it. Leading German politicians willacknowledge privately that monetary union is the price paid for German unification.” (Timothy GartonAsh, “Europe’s Endangered Liberal Order”, Foreign Affairs, March/April 1998, p. 57-58).

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Central Europeu, que poderia provocar o colapso da Europaunificada.23

Outros criticaram a falta de transparência da nova autoridademonetária européia e a carência de controles democráticos sobre a duplaburocracia de Bruxelas e Frankfurt. Outros ainda assinalaram que aUEM modificava as bases do relacionamento transatlântico eexaminaram o potencial de conflito entre a “Europa do euro” e osEstados Unidos no campo do comércio internacional, sugerindo estreitacooperação para limitar as flutuações cambiais entre as duassupermoedas.24

No interior da União Européia, a Grã-Bretanha apareceu comoprincipal voz dissonante já na reunião do Conselho Europeu quepreparou o Tratado. Argumentando na defesa da soberania nacional,Londres conseguiu incluir nos acordos uma cláusula especial que lheconferia o direito de decidir mais tarde sobre a sua participação na UEM.Assim, os britânicos revelavam, mais uma vez, a sua tradicionaldesconfiança à noção da “união cada vez mais estreita” que, desde ostempos de Monnet, constituiu a divisa da integração européia.

A desconfiança cresceu em 1990, quando a reunificação alemãatualizou o espectro de uma “Europa germânica” – expressão que chegoua ser empregada em público, imprudentemente, por assessores diretosda então primeira-ministra Margaret Thatcher. A ambigüidade sobreo projeto da UEM atravessou toda a administração John Major e acaboupor corroer a unidade do Partido Conservador, que se dividiu entre acorrente europeísta, o grupo centrista do primeiro-ministro e os“eurocéticos”.25

23 Uma abordagem extremada desse problema aparece no ensaio apocalíptico de Martin Feldstein,“EMU and International Conflict”, Foreign Affairs, November/December 1997.

24 Veja-se o ensaio de C. Fred Bergsten, “America and Europe: Clash of Titans?”, Foreign Affairs,March/April 1999.

25 Os “eurocéticos” representam uma voz de fundo na sociedade britânica e no Partido Conservador.John Gray, schollar de Oxford, explicou no jornal The Guardian que “a Europa é o novo inimigo noqual o Partido Conservador agora busca sua identidade, tendo substituído o socialismo”. É maiscomplicado que isso: no discurso dos “eurocéticos”, a Europa se identifica ao socialismo reformistado velho Partido Trabalhista. O que eles rejeitam é a mistura da “economia social de mercado” dosalemães com o dirigismo econômico tecnocrático dos franceses.

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O “novo trabalhismo” de Tony Blair prepara, cautelosamente, umareviravolta na política para a Europa. Depois de prometer um plebiscitosobre a UEM, seu governo emitiu sinais favoráveis ao euro e distribuiudeclarações europeístas. Nessa linha, Blair procurou solucionar aduplicidade que mina a coerência da política britânica para a Europadesde os tempos do Plano Schuman. Mas a plena adesão britânica aoprojeto europeu abriria novo cenário, no qual o “motor franco-alemão”da integração cederia lugar a um tripé de potências.

Com ou sem a adesão britânica à UEM, a União Européia encontra-se numa encruzilhada política, criada pela Doutrina Bush. A oposiçãofranco-alemã à segunda Guerra do Golfo, em 2003, provou que o “motoreuropeu” original continua em funcionamento.

O alinhamento de Londres com Washington provou que o“relacionamento especial” estabelecido por Churchill na Segunda GuerraMundial e reiterado por Thatcher nos anos 80 é uma políticabipartidária. Mas a divisão entre aquilo que o secretário da Defesaamericano Donald Rumsfeld denominou a “nova Europa” – a Grã-Bretanha e os novos integrantes da Otan na parte centro-oriental docontinente – e o que ele chamou de “velha Europa” – o eixo franco-alemão – atesta as enormes dificuldades para a definição de uma políticacomum européia.

Do Atlântico à CEI

O encerramento da Guerra Fria removeu a fronteira geopolíticaque limitava a expansão do espaço comunitário, propiciando novo ciclode alargamento do bloco. Nesse ciclo, completado em 1995, ingressaramna UE três dos quatro Estados neutros de economia de mercado: Áustria,Finlândia e Suécia. Paradoxalmente, o ingresso dos novos membrosrealizou-se em razão de lógicas herdadas da Guerra Fria. Nas décadasde confrontação bipolar, a neutralidade desses países funcionava comopoderoso fator de estabilidade externa. Mas a turbulência geopolíticaderivada do desmoronamento do bloco soviético e agravada pelasguerras balcânicas suprimiu a percepção de segurança proporcionadapelo estatuto de neutralidade.

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No cenário criado com o fim da Guerra Fria, a adesão à UE nãoconfigurou apenas o estreitamento de laços com a Europa ocidental,mas também a integração à esfera de segurança ocidental. Esse passo,que representa o abandono parcial do estatuto de neutralidade,aprofundou a fratura geopolítica entre as duas porções do ContinenteEuropeu e colocou no centro da agenda estratégica a integração dosEstados do antigo bloco soviético.

A perspectiva de incorporação à Europa comunitária funcionoucomo poderoso estímulo para as revoluções democráticas de 1989 noLeste Europeu. Desde a edificação de regimes pluripartidários e adeflagração de reformas econômicas de mercado, os Estados que fizeramparte do antigo bloco soviético direcionaram todos os seus esforços depolítica externa para a meta da integração à UE. O Pacto de Varsóvia eo Comecon foram dissolvidos entre 1990 e 1991. Os Estados quetomaram a dianteira nas reformas econômicas – Polônia, Hungria,República Tcheca e Eslováquia – constituíram o Grupo de Visegrado,um bloco comercial transitório destinado a acelerar e preparar suaseconomias para a incorporação à UE.

A conversão das economias do Leste Europeu recebeu, desde oinício, apoio político e financeiro do Ocidente. O FMI e o Banco Mundialestruturaram programas de financiamento e ajuda externa. Sob osauspícios dos países da Europa ocidental e a liderança francesa, criou-seo Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd),com sede em Londres.26 A UE, por sua vez, coordenou um programa deajuda para a reestruturação econômica da Polônia e da Hungria (Phare).

Contudo, nenhuma dessas iniciativas representou “novo PlanoMarshall”, como muitos sugeriam na época. As economias em transiçãodependeram, essencialmente, de investimentos externos privados.

Depois de completado o ciclo de incorporação dos países neutros,a complexa integração dos Estados do antigo bloco soviético assumiu o

26 Mas, como enfatizaram Stephan Haggard e Andrew Moravcsik: “The creation of the EBDR wasneither an effort by a unified Europe to free itself from American hegemony, nor an attempt to fill a pressingfunctional need that preexisting organizations could not fulfill. Rather it was a largely symbolic act by thegovernment of François Miterrand and other European states to signal support for eastern Europe andperhaps garner some commercial benefits while avoiding a financial commitment on the scale of thatundertaken by Germany.” (After the Cold War, op. cit., p. 248).

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lugar mais importante na agenda da UE. A necessidade de reorganizaros mecanismos de decisão do bloco e o impacto do ingresso de economiasmais pobres sobre o programa agrícola e os fundos comunitários deajuda a regiões atrasadas retardaram o processo. Em 2002, finalmente,foi deflagrada a fase final de negociações com dez países da Europacentro-oriental, além dos Estados insulares de Chipre e Malta, noMediterrâneo.

O novo ciclo de alargamento empurrou os limites da UE até asfronteiras da Comunidade de Estados Independentes (CEI). Mas essealargamento não abrange a maior parte dos Estados surgidos daimplosão da antiga Iugoslávia e a Albânia, que configuram uma zonade instabilidade geopolítica balcânica. Também não abrange a Turquia,antiga candidata à adesão que sofre resistências em função da suaidentidade cultural muçulmana, da fragilidade da sua democracia e doseu peso demográfico.

Questão balcânica

A fragmentação do Estado iugoslavo assinalou a extinção dootimismo iluminista que se disseminara em 1989, com a queda do Murode Berlim. A violenta emergência dos nacionalismos balcânicos reveloua força das tendências de desagregação e dos particularismos étnicos eculturais no cenário da globalização.

As sucessivas declarações de independência da Eslovênia, daCroácia e da Bósnia-Herzegovina, entre 1991 e 1992, redundaram naguerra civil sangrenta que estilhaçou o Estado erguido por Tito no finalda Segunda Guerra Mundial. A Bósnia figurou como núcleo da primeiraguerra balcânica da década. O Acordo de Dayton, de 1995, sustentadopor forças internacionais de imposição da paz, encerrou esse episódio.A segunda guerra balcânica da década eclodiu na região de Kosovo eprovocou, em 1999, longa operação de bombardeio aéreo da Otan contraa Sérvia. A imposição de um protetorado internacional informal sobreKosovo encerrou o conflito.

“Agimos para proteger milhares de pessoas inocentes em Kosovocontra uma ofensiva militar crescente. Encerrar essa tragédia é umimperativo moral”. Com essas palavras, Bill Clinton sintetizou, em rede

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de televisão, a motivação da Otan, quando se iniciava o mais vastobombardeio aéreo na Europa desde 1945. Procurando o caminho doscorações da opinião pública, o presidente reciclava o “imperativo moral”,a mais histórica das justificativas utilizadas pela política externa deWashington.

Mas, no seu pronunciamento, Clinton forneceu as pistas de outramotivação para a campanha aérea na Sérvia, ao explicar que a operaçãose destinava “também” a defender o “interesse nacional”: “Agimos paraprevenir uma guerra mais vasta, para desarmar um barril de pólvorano coração da Europa, que já explodiu duas vezes com resultadoscatastróficos”. O barril de pólvora balcânico, com seu epicentro emKosovo, ameaçava tragar a Albânia, a Macedônia, a Grécia e a Turquianuma explosão capaz de volatilizar toda a frágil ordem geopolíticaregional, inclusive as estruturas do flanco sul da Otan.

O envolvimento direto da Albânia não era um risco, mas umacerteza. A internacionalização da guerra repercutiria sobre a Macedônia,onde significativa minoria de albaneses étnicos, muçulmanos, convivecom a maioria cristã ortodoxa. Uma conflagração na Macedônia seriaa senha para o eventual envolvimento direto, em campos opostos, daGrécia e da Turquia.

Por essa via, Kosovo ameaçava arrastar os Bálcãs na direção deconflitos que pareciam superados pela história. A rivalidade greco-turcasedimentou-se como eco do confronto secular entre cristãos ortodoxose muçulmanos na Europa balcânica. Foi essa rivalidade que provocou ainvasão turca do norte de Chipre em 1974 e a divisão da ilha entre oEstado greco-cipriota e a entidade turco-cipriota. Durante a guerra daBósnia, a Turquia participou ativamente das operações encobertas detreinamento e suprimento de armas para as forças muçulmanas,enquanto a Grécia procurou equilibrar-se entre seu compromisso coma Otan e o vasto consenso interno, pan-helênico, favorável à Sérvia eaos sérvios bósnios.

O Acordo de Dayton para a Bósnia e o protetorado informal sobreKosovo aprofundaram a tendência de fragmentação da antigaIugoslávia em entidades étnicas separadas. Encerradas as hostilidadesem Kosovo, o desabamento do regime nacionalista de Milosevic na

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Sérvia proporcionou as condições para o início do processo de secessãopacífica da república de Montenegro.

A conclusão da secessão de Montenegro e a eventual independênciade Kosovo configuram novo espaço geopolítico balcânico. Afragmentação política e o equilíbrio de poder entre a Sérvia e a Croáciasão as principais características estratégicas da região da antigaIugoslávia. A Eslovênia, livre de conflitos étnicos internos e culturalmenteligada à Áustria, tende a definir seu futuro fora da moldura balcânica.Os pequenos Estados da Bósnia, da Macedônia, de Montenegro e deKosovo são potenciais focos de crises étnicas crônicas e permanenteinstabilidade política. A Albânia é integrante externo da região da antigaIugoslávia, pois funciona como pólo de atração para os albaneses étnicosda Macedônia e de Kosovo.

Texto Complementar

GRÃ-BRETANHA E FRANÇA, ANDRÉ FONTAINE(In: The Economist, v. 331, nº 7861, April 30th 1994, p. 21-24)

Perhaps it had something to do with the black uniformity of the cars, orthe bowler hats, or the way in which so many of the young and not so youngladies seemed – unlike the men – to care so very little about looking their best.Or perhaps it was the fact that, the reverse of the situation in Paris, tea wasrationed and coffee sold freely. At any rate, when rail traffic resumed acrossthe Channel almost half a century ago and the author of these lines set foot inLondon for the first time, he found doing so a far more disorienting experiencethan anything he had been given to expect.

But that was then; and times have changed. Americanisation has hadits way. Wherever you go you find the same hairstyles, the same jeans, thesame short skirts, the same motley crowds piling into the metro. The time-honoured breakfast tea is giving way to coffee. The metric system has triumphedover that outlandish currency which used to so baffle continentals. Therighthand-drive car remains, of course, as does most important of all – theCrown, with its inimitable pageantry. But too many a recent escapades havediminished the weight of that institution. In France, meanwhile, the election ofa president by universal suffrage has created something of a non-hereditary

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monarchy; this being, of all the principles of the french constitution, the onethat the public has taken most readily to its heart.

One might even begin to conclude that the traditions and contradictionswhich separated, even opposed, the bristish and french peoples for so long,were now disappearing, true, an interminable film about Joan of Arc came outrecently in Paris; but it was a critical success and no more. The Hundred YearsWar disappeared from the school textbooks 15 years ago and few peoplenowadays have a clear idea as to what it was all about. It is hard to imaginethat a century and a half ago the most famous, though probably not thegreatest, of French historians, Jules Michelet, could write simply: “The war ofall wars, the combat of all combats, is the one between France and England.all the rest are mere episodes”. Or that General de Gaulle could have said tothe British ambassador one day: “Fundamentally, our two countries havealways been at war, save when they were allied against a common enemy”.

Their size, age and proximity, their enduring refusal to be subsumedinto anyone else’s empire, the loss of their colonies, their nuclear weaponseverything, including their current decline, surely makes twin peoples of theBritish and the French. and yet, if twins they are, they are not twins born ofthe same egg. Either nation might invoke that proud phrase from “The Tempest”:“We are such stuff as dreams are made on”. But the dreams of one are not thedreams of the other. Both peoples have learned only too well to cherish theirrespective uniqueness. Listen again to Shakespeare: “This happy breed of men,this little world, this precious stone set in the silver sea.” And to Michelet:“Nations can be classified like animals. But France – France is a person”.

Insularity helps to nourish such dreams. Perhaps it is consider Japan aprecondition for them. But how, then, to cultivate such singularity of characterwhen one is not, in fact, an island at all? The answer: by trying to become one.That, in effect, is what France has been doing over the centuries as it hassought to prolong its coastline by means of other “natural frontiers:” – moutainsand rivers supposedly easy to defend. In the end, it hoped for its sins to resteasy behind the imagined security of its Maginot line.

Even now, considerations of this kind still carry weight. The Channeltunnel would have seen the light of day much earlier had so many britons notbeen worried that it might offer too easy a passage to possible invaders. ButFrance can scarcely afford to snigger: the National Assembly’s defence

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committee heard similar arguments, sometimes from very distinguished people,when plans were being made for the tunnel under Mont Blanc.

To affirm one’s singularity is, by definition, to cultivate one’s differences.In the case of Britain and France, the prime difference is obviously that oflanguage. To cite Michelet one last time, language is “the principal mark ofnationality”. No surprise, therefore, that the common use of English shouldhave created so particular an intimacy between Great Britain and itstransatlantic offspring, often underpinned by powerful family links.

John Major has made a point of cultivating his american connections;so too did Harold Macmillan, who dreamed of having his country play Greeceto America’s new Rome. It was Churchill above all who upheld the “specialrelationship” with America. However great his regard for France – which owedhim its zones of occupation in Germany and Austria, and its permanent seaton the United Nations Security Council – it was clear enough that two nations,and two only, were “more equal than others” in Churchill’s eyes: the UnitedKingdom and the no-less-United States.

These were the “English-speaking peoples” on whom he called, in hisfamous speech at Fultion, Missouri, on March 5th 1946, to join forces andresist the ambitions of Stalin in his hour of triumph. Nor would De Gaulleever forget what Churchill said to him on the eve of the Normandy landings:“You may be sure, general, that if we ever have to choose between Europe andthe open sea, it is the open sea we would choose.” As for Anthony Eden, withoutdoubt the best-disposed towards France of all the occupants of Number 10,his vision was of three interesting circles circumscribing the Atlantic, Europe,and the Common wealth-with London as their common element.

To have asked the french to accept that vision would have been likeasking them to suffer a return of the law of primogeniture that they hadabolished in the Revolution. And yet, nor could Britain, for its part, havinglong made “divide and rule” a cardinal principle of its diplomacy, fail to bealarmed when it saw France moving towards a reconciliation with Germanyso complete as to create another “special relationship” – this one destined,moreover, to serve as the cornerstone of a new Europe.

In fact, it was up to Britain to decide whether or not it joined from thestart in the building of that new Europe. But for it to do so, it would have

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wanted the others to let it be both “inside” and “outside” Europe at the sametime. In any case, Britain scarcely believed that this complicated mechanismcould ever succeed, with its legalistic approach so very alien to the common-law tradition. And, above all, Britain was confident that it had the means,should the need arise, to bring the structure down from with out. Theconsequence, with its succession of vetoes, ultimatums, empty chairs, claimsfor “money back” and, in fine, vain attempts to stop the germans fromreunifying, lives on in our memories.

Palmerston’s remark that “England has no friends, only interests,” isone that people everywhere like to quote. All countries have that much incommon. Very often, however, it is not the interests themselves that matter, somuch as what countries imagine them to be a process in which vanity, naturallyenough, is quick to play a part. This much has been apparent in recentdisagreements over european economic policy. But to look only at the detail ofsuch disagreements is to miss the point. More than anything else these areclashes of style, of approach, of philosophy.

Max Weber analysed magnificently the contrast between Catholic andProtestant conceptions of the relationship between money and sin. That apart,Great Britain is a maritime power by vital necessity and – like the UnitedStates – a free-trader of sorts by vocation. France, on the other hand, has beena centralising state since its birth under the Capetian Kings. Its successiverulers were always busy putting down rebelions and feudal barons. France didnot wait for Colbert in order to become protectionist; and it has remained so,after the brief parenthesis of the Second Empire, in its deepest soul. Look atthe farmers’ anger towards the Maastricht treaty and Gatt; look at the emotionsstirred by loss of jobs when production is transferred out of France to lower-cost factories overseas or when french firms give their business to subcontractorsin the developing world; look at the fishermen in revolt against imports thatforce down the price of their fish.

The prime minister, Edouard Balladur, is a champion of privatisationand a believer in the market economy. He knows very well, and readly remindsothers, that France cannot expect to hold its position as the world’s fourth-largest exporter – second-largest for agricultural products – and at the sametime yield to pressure from whichever of its own interest groups feels threatenedby low-cost imports. But for all that, Mr Balladur is – like Valéry Giscard

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d’Estaing, Jacques Chirac, Michel Rocard, Laurent Fabius or Alain Juppé – aproduct of the École Nationale d’Administration, that essentially frenchinstitution where the creme de la creme are taught that there is nothing in lifemore noble than serving the state.

The power of ENA transcends party politcs: it is the real crucible whereinthe political class is forged. The énarchie is, for better and for worse, thebackbone of both the administration and the business world. One need onlylook at how the bosses were chosen for the state corporations that have recentlybeen privatised; no cause there for surprise on the part of anybody whoremembers that Mr Balladur learnt his craft under Georges Pompidou, afaithful student of Saint-Simon who was convinced that the job of those inpower was to keep a firm hand on the tiller guiding the course of nationaldevelopment. Had this not been so. Mr Balladur would not have dealt in theway he has been doing with the crisis at Air France – a striking contrast to theway the problems of British Airways were resolved. But it must be understoodthat Adam Smith has found very few followers in France; nor is the fall-outfrom experiments with liberalism in Russia and Eastern Europe going to swellthe ranks of his admirers.

At the cultural level, the story is much the same.There is certainly alarge group of honorary frog-eaters in Britain who manifest a real passion forFrance and its language, and who are enduringly loyal to their french friendsfrom the Bordelais and the Loire to the backwoods of Provence. But the factremains that the great majority of the british people still seems to find it difficultto understand that the french are determined to protect – that word again – alanguage which is spoken now by no more than 3% of the world’s population,even while English is well on its way to supplying the global village with theglobal language so fatally absent since the Tower of Babel.

It might be argued that to say “the French are determined” is over-statingthe case, since a number of them have already given up the fight. Leavingaside the excessive invasion of our everyday vocabulary by Anglicisms whichare so often merely barbaric or nonsensical, the fact is that many researchersand academics in France are reduced to publishing almost exclusively in English.But that serves only to reinforce the strength of feeling within the state andamong the intelligentsia. Over and above the almost sensual pleasure thatmany frenchmen take in savouring the language of their writers down the

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centuries, the existence of a francophone community, which now numbers some50 countries among its members, is crucial to France’s world role. By the sametoken, and helping to explain the fierceness with which Paris defended theprinciple of the exception culturelle during the recent Gatt negotiations, thevitality of the French language represents an essential asset for a country whichproduces so many books, films, plays and television programmes, for which itwants the largest possible market at home and overseas.

Yet even this is not what matters most. What matters most is the questionwhich has been begged throughout the process of building a new Europe “ thequestion of what form that Europe should ultimately a free-trade area run bya club of fair – whether friends who only really feel safe under Uncle Sam’ssecurity umbrella? If one looked into the hearts and minds of the great majorityof britons, would one not find that they asked for nothing more? As to theFrench Fifth Republic, its constant ambition has been to bring together thenations of Europe in such a way that they might loose the grip of what deGaulle, like Mao, called the “double hegemony”.

Now, the Soviet Union no longer exists, and the arrival of Bill Clintonhas been marked by a certain resurgence of American isolationism – thoughnot to the extent of deterring the White House and the Departament ofCommerce from advancing their country’s commercial and cultural interestswith their customary zeal. Yet the impotence of Europe when confronted withthe conflict in the former Yugoslavia has brought the superpowers of yesteryearto stage a dramatic comeback on the diplomatic stage. Not the least paradoxicalelement in that process was the role played by France in February, in persuadingAmerica to throw its weight behind an ultimatum on Bosnia which had not, toput it mildly, excited any very great enthusiasm among other members of theEuropean Union.

Now that the Twelve are likely soon to become 15 or 16, and whith theprospect of opening their doors to Hungary and Poland and others after that,could it perhaps be time for the british and the french to stop their wranglingand to try to settle on a common answer to this question of what Europeshould become? The circumstances are there to help concentrate their minds.Germany is still digesting its unification, and its chancellor will soon face adifficult election. The days have long gone when the Iron Lady could boast ofgiving advice to the president of the United States, and the present holder of

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that office does not seem to pay any particular attention to John Major (whosesin it was to wish openly for the re-election of Gerge Bush). As to France, itscarcely matters that Matignon and the Quai d’Orsay are now in the handsof gaullists, for they are moving as fast as anyone might to normalise relationswith NATO.

No one still nurses the illusion that he might see in his own lifetime thatfederal Europe of which Westminter has been so afraid for so long. The questionnow is whether there is still time to build a “Europe of Nations” that is strongenough to make its voice heard and to defend its interests; and whether GreatBritain is inclined – as so many of its french admirers hope – to take its “placeinside that Europe without ulterior motives.

Fine words, it might be said. But what do they signify in concrete terms?

They signify, first, that institutions alone are not enough: an Europe of nationsmust flow from the will of its peoples. “Where there is a will there is a way,” asfrench students have long chanted when trying to learn the language of Albion.Britain and France would never have been created if our ancestors had wastedtheir time on the sort of byzantine arguments – like that over the 23-or 27-voteblocking minority “ which have recently been dividing our governments.

They signify, too, that the new European Union needs to prove itselfworthy of that name by actually functioning as one; in other words, bybecoming more and more united. This can be pursued without endangeringthe national characteristics that constitute, by contrast with the American“melting-pot”, one of Europe’s richest endowments. Politically, this would meangiving the European Parliament – the only one in the world, to my knowledge,which lacks the power to pass laws – the means needed to play its full part.Economically, it would mean developing common policies for industry, energyand transport. In monetary terms, it would mean bowing to the evidence thatthere cannot be a durable single market without a single currency. Militarily,it would mean enlarging the Eurocorps, which should be easier now that theUnited States no longer opposes the concept of autonomous european defence.

It means recognising that, faced with a scourge of unemployment nomember of the EU can hope to solve alone, it will certainly be necessary oneday to lay the foundations of an european social policy, and also to take afresh and concerted look at Europe’s relations with the developing world; only

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by raising living standards there can we hope to restore long-term growth inour own economies.

It means resolving that Europe must speak with a single voice on theinternational stage: this is the era of NAFTA, of the Commonwealth ofIndependent States, of Asia-Pacific economic co-operation. Regional groupingspredominate. It would be perverse if Europe alone were unable to unite behindits own ambition in that direction. Above all, it means accepting that astructured Europe provides the best frame work for maintaining or restoringpeace and democracy in a continent freed from totalitarianism.

Without such an Europe, there can be only two destinations left for ourworn-out peoples: the retirement home (but paid for by whom?), or a future asmuseum attendants living off the tips provided by tourists from the Far Eastand West. We cannot afford to go on much longer reinforcing the notion, alreadywidely accepted on all five continents including the eastern part of our own,that our decline is irresistible.

4 – POTÊNCIAS EMERGENTES: JAPÃO E ALEMANHA

A redefinição dos significados do poder, num mundo onde sedissolveu o confronto ideológico bipolar, assinala a emergência daspotências derrotadas na Segunda Guerra Mundial. O Japão e aAlemanha – potências cujo peso econômico específico não tinhacorrespondência política ou militar durante a Guerra Fria – lentamentecomeçam a participar com voz própria da diplomacia internacional.

Os fluxos comerciais e os movimentos de capitais globalizaram-se e geraram blocos econômicos regionais. Na Europa, desde o Tratadode Roma de 1957, um longo percurso consolidou as estruturascooperativas institucionalizadas da atual União Européia. No Oriente,o dinamismo da economia japonesa e os investimentos de capitaisocidentais estimularam a industrialização de países da orla oceânica,esboçando a constituição de um complexo regional dinâmico cujo focoé o Japão. A economia mundial não tem mais um único centro.

A constituição de blocos econômicos supranacionais encontra suaexpressão mais avançada na União Européia. Em 1992 foram suprimidas

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as barreiras que ainda limitavam o movimento de mercadorias, capitais,serviços e pessoas, completando a formação do mercado único. A UniãoEconômica e Monetária foi deflagrada, com o lançamento do euro, quese tornou a moeda oficial de doze dos quinze países do bloco. Peladefinição de políticas externas e de defesa comuns, a Europa projeta osalto, ainda muito incerto, da unificação econômica para a unidadediplomática.

O bloco econômico da Bacia do Pacífico não tem estruturasinstitucionais oficiais. Apóia-se na rede de fluxos de capitais emanadada poderosa economia do arquipélago japonês e na dinâmica decrescimento dos Novos Países Industrializados (NPIs), impulsionada pelaabertura da economia chinesa. As amargas lembranças da SegundaGuerra Mundial – quando o Japão ocupou os territórios da orla asiáticae as ilhas do Pacífico – estabelecem limites estreitos para a cooperaçãopolítica na esfera oriental. Uma corrida armamentista regional,agudizada pelas suspeitas em torno do programa nuclear norte-coreano,combina-se com um complexo emaranhado de tensões históricas,dissociando os processos econômicos dos diplomáticos em toda amacrorregião.

Alemanha unificada e Europa

No pós-guerra, a reconstrução da economia européia foiimpulsionada pelo Plano Marshall que, entre 1948 e 1952, transferiubilhões de dólares dos Estados Unidos para a Europa ocidental e reativoua produção e o consumo estagnados. O modelo da reconstrução européiaapoiou-se no conceito de tamanho do mercado. Em face da economiaem vias de globalização, a fragmentação política européia representavalimitação para a expansão das empresas industriais e financeiras docontinente.

Essa limitação foi sendo ultrapassada pela formação de organizaçõeseconômicas supranacionais. Em 1952, a Comunidade Européia doCarvão e do Aço (Ceca) derrubava as barreiras alfandegárias queseparavam os complexos siderúrgicos da RFA, da França, da Itália ede Benelux. Poucos anos depois, a instituição do Mercado Comum

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Europeu (MCE) apontava para o ambicioso objetivo de suprimir todasas barreiras nacionais para a circulação de produtos, serviços e cidadãosno espaço comunitário. A progressiva ampliação horizontal daComunidade Européia combinou-se com o aprofundamento verticalda integração. O Tratado de Maastricht assinalou nova etapa nessatrajetória, que associava as dimensões econômica e política.

Mas a unificação européia não foi, jamais, um processo movidounicamente pelas lógicas da economia. Ao contrário: surgiu e seconsolidou no ambiente da Guerra Fria e foi um instrumento dasedimentação da Europa ocidental como unidade geopolítica aliada aosEstados Unidos.

Na origem da Ceca, encontra-se o tratado de amizade firmadoem 1950 entre a França e a Alemanha ocidental. Esse tratado visavaenquadrar a RFA no bloco europeu, restringindo seus horizontes político-diplomáticos. Alemanha e França eram, há mais de um século, osprincipais rivais na disputa pela influência na Europa continental etinham protagonizado os conflitos militares de 1870-1871, 1914-1918 e1939-1945. O poderio alemão e a sua dinâmica expansionistaconstituíram os fundamentos desses conflitos. Na Guerra Fria, a parteocidental da Alemanha deveria ser disciplinada e subordinada aocomplexo internacional da Europa ocidental.27

A Comunidade Européia ergueu-se sobre esse projeto de restriçãoe limitação dos nacionalismos na Europa do ocidente. A presença dastropas americanas e da estrutura político-militar da Otan foi um doslastros da unificação européia. A liderança diplomática da França naEuropa continental foi o outro lastro, que tinha como pressuposto adivisão da Alemanha e a conseqüente neutralização dos seus antigos

27 Jean Monnet detalha em suas Memórias: A Construção da Unidade Européia (Brasília: UnB, 1986),nos capítulos XI, XII e XIII, as circunstâncias nas quais foi elaborado o Plano Schuman e negociadocom a RFA de Konrad Adenauer o tratado de constituição da Ceca. Monnet relata que Adenauerenxergou, desde o início, o sentido profundo da proposta, para além dos detalhes econômicos:“Indiscutivelmente, declarava ele, se franceses e alemães, se sentassem um dia à mesma mesa, em ummesmo edifício, para trabalhar juntos e assumir responsabilidades comuns, seria dado um grandepasso à frente. As conseqüências psicológicas dessa atitude seriam enormes. O desejo francês desegurança seria satisfeito e o despertar de um nacionalismo alemão, impedido”. (p. 253).

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projetos imperiais. O eixo franco-alemão tornou-se, desde o início,o arcabouço da Europa do pós-guerra. A entrada retardatária daGrã-Bretanha na Comunidade Européia, em 1973, solidificou as pontesque ligavam a Europa continental à América do Norte.

A RFA da Guerra Fria era um Estado semi-soberano, cujaafirmação no sistema internacional dependia da mediação de instituiçõescomo a Comunidade Européia e a Aliança Atlântica.28 A eliminação da“cortina de ferro” modificou a geometria do espaço europeu e golpeouos fundamentos tradicionais do eixo franco-alemão.

No centro dessa mudança, encontra-se a reunificação alemã, quealterou profundamente as relações entre o leste e o oeste da Europa. AAlemanha unificada não é diferente da antiga RFA apenas por terincorporado 18 milhões de habitantes e os territórios da AlemanhaOriental. Ao contrário da antiga RFA, a nova Alemanha é uma potênciaeconômica que não sofre das limitações políticas congênitas impostaspela Guerra Fria. Desde a reunificação, a Alemanha voltou a possuir oatributo da soberania.

Mesmo reafirmando seus compromissos com a Otan eaprofundando a aliança com a França pelo Tratado de Maastricht, anova Alemanha encontra-se livre para praticar uma diplomacia bifronte,direcionada tanto para o oeste como para o leste do continente. Sem a“cortina de ferro”, ela retoma uma influência tradicional que se estendena direção dos países do antigo bloco soviético.

A reunificação alemã recriou a Europa central, um espaçogeopolítico vinculado a Berlim cujos contornos se espraiam pela Polônia,pela República Tcheca, pela Eslováquia, pela Hungria, pela Eslovênia,pela Croácia e pela Romênia. Mais além, a influência alemã se faz sentirna Ucrânia, em Belarus e na Rússia. Na fase atual, de reorganizaçãodas estruturas econômicas dessa região, os investimentos e os

28 Isso jamais significou o abandono da principal aspiração alemã: a reunificação das duas partes danação. Como observaram Jefferey J. Anderson e John B. Goodman: “Bonn’s efforts to keep the goal ofreunification simmering, if not at full boil, on the international agenda created tensions with its westernallies. Ostpolitik, too, raised international doubts about the strenght of Germany’s ties to the west. And onceOstpolitik proved successful, West German officials became more assertive in the pursuit of their nationalinterests (...)”. (After the Cold War, op. cit., p. 24).

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financiamentos germânicos lideram folgadamente os fluxos de capitaisocidentais para a antiga “zona do rublo”.29

A nova diplomacia alemã não é belicista ou militarista. Ainfluência alemã se expressa principalmente pela difusão de capitais,gerando uma solidariedade econômica regional e estreitando os laçosgeográficos que interligam a Europa central. Entretanto, a influênciaalemã tem também uma dimensão política. No início do conflito quedesagregou a Iugoslávia, a Alemanha definiu pela primeira vez umapolítica autônoma frente aos seus aliados comunitários (e particularmentedissonante das iniciativas de Paris), voltada para o reconhecimento dasindependências da Eslovênia e da Croácia. A iniciativa diplomática deBerlim, que obrigou a UE a apressar o processo de reconhecimento dosnovos Estados, foi alvo de pesadas críticas, oriundas da chancelariafrancesa, que a responsabilizou pela irradiação da guerra civil para aBósnia.30

A crise iugoslava golpeou a confiança no futuro da “relaçãoespecial” entre a Alemanha e a França, a tal ponto que o então chancelerHelmuth Kohl julgou necessário reassegurar que Berlim “não quer umaEuropa alemã, mas uma Alemanha européia”. O empenho do seugoverno em garantir o sucesso da UEM, nos difíceis anos de incertezasde meados da década de 1990, conferiu conteúdo e confiabilidade aoscompromissos reafirmados com a unidade européia.

A Alemanha, como o Japão, viveu as décadas da Guerra Fria sob osigno de um paradoxo: gigantes econômicos, ambos eram anõesgeopolíticos. As razões do retraimento estratégico alemão foram

29 Stephan Haggard e Andrew Moravcsik sublinharam o papel desempenhado pela Alemanha nocurto mas crucial período de desagregação das estruturas do antigo bloco soviético: “In 1989 Germanyacted “quickly and decisively”, making unprecedentedly large pledges of aid to the Soviet Union andPoland. During the next two years Germany provided nearly a third of total G-24 aid commitments (andtwo thirds of EC bilateral commitments), while financing a large portion of EC aid as well. Germany’scontribution totaled over six times that of France, nearly twelve times that of Great Britain, and about twiceas much as that of the United States and Japan combined”. (After the Cold War, op. cit., p. 253).

30 As atitudes alemãs em relação à Eslovênia e, principalmente, à Croácia, foram, em grande medida,moldadas por afinidades tradicionais, anteriores à Segunda Guerra Mundial, e basicamente divergentesdas afinidades tradicionais francesas. A guerra civil na antiga Iugoslávia trouxe à tona, pela primeiravez após o encerramento da Guerra Fria, manifestações oficiais filiadas aos velhos nacionalismoseuropeus, que não se extinguiram apesar do processo de integração européia. Veja-se, a respeito dossentimentos emanados da imprensa alemã, ainda no segundo semestre de 1991, o ensaio de ÉtienneSur “La presse allemande et la crise yougoslave”, Hérodote nº 63, p. 66-69.

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suprimidas desde a reunificação, e a evolução da Rússia, das antigasrepúblicas soviéticas e dos Estados da Europa Centro-oriental na direçãoda economia de mercado solicitaram da Alemanha papel ativo nadiplomacia internacional.

A decisão do Bundestag, adotada em 1994 e confirmada peloTribunal Constitucional, de autorizar o emprego de tropas alemãs emmissões de paz da ONU exteriores à zona da Otan antecipou essaevolução. A participação de forças de combate alemãs na campanhada Otan em Kosovo e o estabelecimento de uma “zona alemã” noprotetorado militar a que foi submetida a província iugoslavaassinalaram nova fase na política externa da potência centro-européia.

A Alemanha age consistentemente, ainda que de modo discreto,para exercer influência política compatível com sua importânciaeconômica e estratégica. Berlim assumiu nítida posição contrária aoataque dos Estados Unidos contra o Iraque, em 2003, reativando o“motor franco-alemão” que parecia emperrado. Sua diplomaciareafirma, em todas as circunstâncias, o compromisso europeu e oengajamento na construção da União Européia. Contudo, não admitemais a posição politicamente marginal dos tempos da Guerra Fria.

Japão e Bacia do Pacífico

A estratégia da reconstrução japonesa no pós-guerra envolveu doiselementos básicos: a formação de poupança interna e a conquistados mercados externos. A capitalização dos conglomeradosindustriais apoiou-se no baixo custo da força de trabalho e nacanalização da poupança popular para o investimento empresarial. Oconsumo comprimido transformava-se em capital e o capital emtecnologia. Ao contrário da Europa, a trajetória da reconstruçãojaponesa realizou-se quase à margem dos capitais americanos.

A conquista dos mercados externos apoiou-se numa políticaagressivamente exportadora, fundada na subvalorização do iene. Poressa via, a política de câmbio funcionava como escudo protetor daindústria do arquipélago. Consistentemente com essa estratégia,agências oficiais funcionaram como centros de planejamento econômico,configurando políticas industriais flexíveis e alto grau de integração

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entre o poder público e o empresariado nacional.

Ao longo da Guerra Fria, a prosperidade da economia japonesacimentou uma zona política e diplomática tutelada pelos Estados Unidosna Ásia oriental e na orla do Pacífico. Coréia do Sul, Taiwan, Cingapurae Hong Kong tornaram-se alvos de investimentos financeiros eprodutivos ocidentais, formando uma muralha de economias demercado saudáveis em torno da União Soviética e da China Popular.

A crise do petróleo, expressa nos “choques de preços” de 1973 e1979, elevou o custo do barril no mercado internacional de cerca de3 dólares para mais de 30 dólares. A economia japonesa, apoiada emindústrias de alto consumo energético e intensa utilização do fatortrabalho (como a siderurgia, a construção naval e a fabricação deautomóveis) sofreu um processo de ajustamento radical, alterando suafeição. A crise do petróleo acelerou a transição para uma base industrialsustentada pela microeletrônica e pela informática e forçou umaremodelação completa da produção automobilística, que teve suas linhasde montagem largamente automatizadas.

As indústrias tradicionais, consumidoras de energia e trabalho,deslocaram-se para a periferia do arquipélago, dinamizando o crescimentoeconômico dos NPIs, que iniciavam uma trajetória voltada para amodernização e sustentada pelo planejamento econômico associado aoinfluxo de capitais externos. Contrariamente aos países subdesenvolvidosindustrializados da América Latina, os NPIs orientaram seu esforço fabrilpara a conquista dos mercados internacionais, ampliando continuamenteas exportações de manufaturados.

Na segunda metade da década de 1980, essas economias deixarama primeira fase da modernização industrial e ingressaram na segunda,desenvolvendo a produção de bens duráveis apoiada em tecnologiasmais sofisticadas. Ao mesmo tempo, o impulso de crescimento da Ásiaoriental disseminou-se para a Ásia do sudeste e passou a envolver novospaíses, como a Malásia, a Tailândia e, em menor escala, a Indonésia e asFilipinas. A principal vantagem comparativa dessas economias industriaisretardatárias que orbitavam na esfera japonesa residia no baixo custoda força de trabalho e nas políticas industriais liberais seguidas por seusgovernos.

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A abertura econômica da China Popular, iniciada com a morte deMao Zedong, em 1976, introduziu novo espaço de desenvolvimentoindustrial na Bacia do Pacífico. A elite comunista, agrupada em tornode Deng Xiao Ping, deflagrou um conjunto de reformas liberalizantesdestinadas a atrair o capital externo e diversificar a base tecnológica daindústria nacional.

Os investimentos capitalistas na China Popular concentraram-senas zonas especiais criadas no litoral sudeste. O Japão logo assumiuposição de liderança nos empreendimentos industriais das zonaseconômicas especiais, que se configuraram como reservas de mão-de-obra barata e disciplinada. Dessa forma, parcelas do território chinêsestabeleceram pontes com a zona da Bacia do Pacífico, ampliando oslimites de um poderoso megabloco regional.

A difusão da influência econômica japonesa na Bacia do Pacíficonão foi acompanhada por uma expansão correspondente da suainfluência geopolítica. Durante a Guerra Fria, o Japão subordinou-se àestrutura de poder mundial dos Estados Unidos, que lhe garantia aproteção do “guarda-chuva nuclear”. A Constituição japonesa, originadada ocupação americana no pós-guerra, impunha uma limitação dosgastos com a defesa a um teto de 1% do PNB e proibia a utilização dasForças de Auto-Defesa (as forças armadas do arquipélago) em açõesofensivas. Nessas condições, a política exterior de Tóquio tendeu acircunscrever-se ao plano das relações econômicas.

O encerramento da Guerra Fria modificou esse quadro, reduzindoa importância da proteção americana. Ao mesmo tempo, os atritoscomerciais e financeiros nipo-americanos reacenderam o espíritonacionalista no arquipélago.31

O ajustamento de Tóquio ao sistema internacional em transiçãofoi certamente retardado pelas atribulações políticas internas –associadas à necessidade de reorganização de um regime político

31 O Livro Azul (relatório anual do Ministério do Exterior japonês) de 1987 destacava a ascensãojaponesa e o declínio relativo dos Estados Unidos e, significativamente, expressava preocupação como sentimento de “arrogância” que se disseminava e ameaçava isolar diplomaticamente o Japão. Emsetembro do ano anterior, o então primeiro-ministro Nakasone protagonizara um incidente deproporções internacionais ao sugerir, em reunião com membros do governista PLD, a superioridadeintelectual japonesa frente aos americanos, ancorando-a em argumentos raciais.

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corroído pelo descrédito na elite política liberal-democrata – e pelaprópria ênfase conferida ao combate à estagnação econômica da décadade 1990. Entretanto, a definição de papéis mais ativos de Tóquio noplano internacional é um desafio posto pela própria realidade.

O centro do desafio global é a reorganização das relações com osEstados Unidos. Liberto das ameaças soviética e chinesa, o Japão já podedizer não. Mas um não inequívoco envolve a tentação perigosa da guerracomercial, do rearmamento e do isolamento numa Ásia que guarda aslembranças do velho expansionismo japonês. Tóquio parece preferir otalvez, equilibrando-se cuidadosamente entre as novas responsabilidadesinternacionais e a parceria estratégica com Washington.

Nessa linha dúbia, combina concessões e desafios na disputacomercial com os Estados Unidos, envia soldados para o Camboja noquadro das forças de paz da ONU, pede desculpas oficiais pelasagressões militares no Extremo Oriente durante as décadas de 1930 e1940. As hesitações revelam-se na carência de um consenso interno sobrea questão vital das tropas americanas estacionadas no arquipélago.32

O desafio regional é ainda mais complexo. Para se projetar comoator principal na Ásia e na Bacia do Pacífico, Tóquio precisa superar asdesconfianças dos países que conheceram a ocupação japonesa,estabilizar as relações com Pequim no momento em que se consolida a“longa marcha” da abertura econômica chinesa, resolver a pendênciado arquipélago das Kurilas com a Rússia e ainda definir o seu padrão deatitudes diante da persistente tensão na Península Coreana e da “corridanuclear” no Indostão.

Esse conjunto de “tarefas” solicita a manutenção das relaçõesprivilegiadas com os Estados Unidos, que funcionam como ator extra-regional detentor da influência necessária para impor certa ordem nacomplexa rede de tensões que caracterizam a Bacia do Pacífico. Mas,

32 Morihiro Hosokawa, primeiro-ministro entre 1992 e 1993, salientou a dramática redução dasameaças externas à segurança japonesa e clarificou um ponto de vista que ecoa percepções bastantedisseminadas na elite política do país: “It is egoistical for Americans to believe that the United States hasdone Japan a favor by defending it all these years by stationing its forces within the country. (...) Whenevermore American soldiers leave, the Japanese see it as more good news.” (“Are U.S. Troops in Japan Needed?”,Foreign Affairs, July/August 1998,p.4). Hosokawa defende a opção da continuidade do “guarda-chuvanuclear¨ americano, sem as tropas e as bases.

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sobretudo, exigem redefinição da agenda externa japonesa capaz deassociar a China Popular a um diálogo trilateral voltado para os temasda segurança macrorregional.33

A estagnação econômica provocada pela ruptura da bolhaespeculativa, no início da década, acentuou o caráter hesitante dadiplomacia japonesa. A crise asiática de 1997 evidenciou os limites dainfluência financeira japonesa entre os NPIs, cujas moedas mantinhamtaxas de câmbio mais ou menos associadas ao dólar. Mas a valsadiplomática de Tóquio, que procura conciliar as demandas externas eos limitados consensos internos, prepara a subida de um degrauhistórico: o ingresso como membro permanente no Conselho deSegurança da ONU, solicitação apoiada oficialmente por Washington.

O gabinete de Junichiro Koizumi, formado em 2001, deflagrouuma política externa mais afirmativa e, simultaneamente, procuroureafirmar e reforçar a aliança com os Estados Unidos. Tóquio apoiouWashington na crise diplomática que acompanhou a segunda Guerrado Golfo, em 2003, e Koizumi alinhou-se com a “guerra ao terror”. Antesdisso, procurou aproveitar a Copa do Mundo de 2002 para quebrar ogelo que caracteriza as relações nipo-coreanas. Sua política externacoloca, no topo da agenda, a estabilização geopolítica da PenínsulaCoreana e manobra para assegurar ao Japão um papel de destaque nasnegociações internacionais sobre a Coréia do Norte.

5 – RÚSSIA NA ENCRUZILHADA

A União Soviética foi a herdeira do antigo Império Russo, fundadopor Ivan IV no século XVI. Tendo por núcleo a Rússia eslava, o territórioimperial expandiu-se até o século XIX, subordinando a Moscou inúmerospovos de culturas, alfabetos, idiomas e religiões diferentes espalhadospor mais de 22 milhões de km2.

33 Yoichi Funabashi sintetizou a vastidão dos problemas diplomáticos que Tóquio não pode deixar deenfrentar: “Japan must define its priorities, policies, and national interests more clearly. Security ties withAmerica must be strengthened; so must diologue among China, Japan, and the United States. AlthoughJapan cannot and would not wish to compete militarily with China or the United States, it cannot be left outof regional and global discussions between the two. Tokyo ’s role may be to ameliorate the hegemonictendencies of these two great powers”. (“Tokyo ’s Depression Diplomacy”, Foreign Affairs, November/December 1998, p. 34).

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A Revolução Russa de 1917, que derrubou Nicolau II e levou aopoder os comunistas, enfrentou em seguida uma guerra civil sangrenta.Durante a guerra civil, na qual os exércitos contra-revolucionáriostentavam sufocar o governo bolchevique, produziram-se levantesnacionais de povos em luta pela independência.

O entrelaçamento desses dois eventos de natureza diferente – areação da velha classe dirigente contra os comunistas e as lutas nacionaispela independência – acabou unindo a sorte de um à do outro. A derrotada contra-revolução garantiu a unidade territorial do velho Império,transfigurado em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O novo“Império Vermelho” ergueu-se sobre a derrota dos levantes nacionalistas.

Os comunistas no poder hesitaram sobre a política a adotar frenteàs nacionalidades. Entretanto, à medida que se consolidava a ditadurade partido único, cristalizava-se novo centralismo. Aos poucos, oscomunistas tornavam-se mais e mais parecidos com “czares vermelhos”.Durante o período stalinista (1924-1953), foi incentivada a migraçãode russos para as repúblicas periféricas, de modo a cimentar a unidadedo Estado em torno da sua matriz eslava. O partido único (PartidoComunista da União Soviética, (PCUS), identificado ao aparelho deEstado, garantia a Moscou o controle sobre os governos das repúblicas.

O Império Vermelho aglutinava, na periferia da Rússia, povosmuçulmanos da Ásia central (Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão,Tadjiquistão e Quirguistão), caucasianos cristãos (Armênia, Geórgia) emuçulmanos (Azerbaijão), populações de origem nórdica e polonesanas repúblicas bálticas (Lituânia, Estônia e Letônia), eslavos católicos eortodoxos da Ucrânia e de Belarus e até mesmo romenos da Moldávia.34

As reformas políticas (glasnost) e econômicas (perestroika)inauguradas por Mikhail Gorbachev em 1985 minaram as bases do“Império Vermelho”, pois enfraqueceram seu fundamento: o Estado-Partido.O enfraquecimento do poder central fez ressurgirem os movimentosnacionalistas. As repúblicas bálticas, que foram independentes até aSegunda Guerra Mundial, iniciaram ainda nos anos reformistas deGorbachev as lutas pela separação.

34 Sobre a formação histórica do Estado multinacional russo-soviético, veja-se Yves Lacoste “Unegéopolitique de l’immensité; les étapes de se formation et ses risques actuels”, Hérodote nº 47, p. 10-58.

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O golpe fracassado da burocracia comunista e da comunidade desegurança contra Gorbachev, em agosto de 1991, assinalou a derrocadafinal do outrora poderoso PCUS. O fim do Partido foi o fim do Estado,despedaçado pelas forças centrífugas dos nacionalismos. A constituiçãoda Comunidade de Estados Independentes (CEI) representou oreconhecimento da decomposição territorial do Império.

A CEI não substituiu a União Soviética, pois não é um Estadomas unicamente uma casca confederativa sob a qual se movem unidadespolíticas formalmente soberanas. A desaparição da União Soviéticaoriginou 15 novos Estados, com graus variados de soberania efetiva masdotados de representação internacional própria, forças armadas esistemas de leis nacionais. A criação da CEI não foi capaz de evitar adeflagração de guerras abertas em repúblicas ex-soviéticas. Os conflitoslatentes entre povos, etnias e nacionalidades que compunham o Estadosoviético degeneraram em conflitos militares e instabilidade estruturalse instalou nas periferias da Comunidade.35

Na região do Cáucaso – espaço de entrelaçamento de etnias,culturas e religiões diferentes – os atritos entre a Armênia e o Azerbaijãopelo controle da região de Nagorno-Karabakh degeneraram em guerraaberta. Os armênios, cristãos ortodoxos, conseguiram, pela força dasarmas, reincorporar a região à sua república. Nagorno-Karabakh épovoado por uma maioria armênia mas foi entregue para o Azerbaijãomuçulmano pelo ditador soviético Josef Stalin na década de l930. Ocessar-fogo de 1994 não produziu, até hoje, um tratado de paz. Navizinha Geórgia, continuam a se manifestar movimentos separatistasdos eslavos da Ossétia do Sul e da Abkházia. O governo georgiano nãotem controle efetivo sobre essas regiões e depende do suporte militar deMoscou.

Na Moldávia – formada em grande parte por territórios romenosanexados na Segunda Guerra Mundial – registram-se conflitosenvolvendo os eslavos da região de Trans-Dniester, que querem areincorporação à Rússia, enquanto parte da elite dirigente se inclina

35 Sobre a questão étnica e nacional na antiga União Soviética, veja-se Hérodote nº 54-55, Les Marchesde la Russie.

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pela reincorporação à Romênia. A insubordinação do Trans-Dniester éestimulada e explorada por Moscou, que mantém tropas estacionadasna região para proteger a população eslava e conservar o país no quadroestratégico da CEI.

A Ásia central muçulmana concentra uma população de cerca de50 milhões de habitantes, de origens turca e persa. Os novos Estadosindependentes, carentes de instituições democráticas, conhecem oressurgimento do islamismo como força social e política e experimentama atração exercida pelos Estados muçulmanos vizinhos.

O Tadjiquistão, principal foco das tensões regionais, atravessouuma guerra civil que perdurou desde a independência, em 1991, até ofrágil acordo de paz de 1997. O regime não controla o conjunto doterritório e as facções islâmicas radicais projetam influência sobre oUzbequistão e o Quirguistão.

A instabilidade na sua periferia externa inquieta a Rússia. Asfronteiras estratégicas da Rússia estiveram sempre além das suasfronteiras políticas.36 Os velhos czares estenderam-nas até o OceanoPacífico e os desertos da Ásia Central. Os czares vermelhos foram além,projetando-as sobre a Europa oriental, até a “cortina de ferro”. Depoisde 1991, tudo isso desmoronou estrepitosamente.

O desmoronamento externo acentua as ameaças que pairam sobrea unidade do próprio Estado russo. O fracasso da transição para aeconomia de mercado, expresso no emagrecimento incessante do PIBdurante uma década inteira, adquire tonalidades de tragédia quandose avalia o sentido da redução constante da expectativa de vida dapopulação russa. Esse fenômeno demográfico, cujas dimensões sãoglobalmente inéditas na era industrial, acompanha como uma sombrao esgarçamento da tessitura da sociedade e a ruptura das solidariedadesregionais que constituem a nação.

36 “Il est peu d’États où les frontières aient été autant sacralisées et en même temps transgressées par leursarmées, puisque, fait unique au monde sur une telle longueur, les armées soviétiques sont présentes des deuxcôtés de la frontière de l’URSS sur 45% de l’enveloppe totale. L’Union Sovietique est en effet le seul État aumonde à avoir eu, jusqu’en 1991, autant de soldats hors de ses frontières - au moins 805.000 hommes à sapériphérie immédiate – ce qui représente près de 30% du total de ses forces. Dans le cas des États-Unis, onestime à 510.000 le nombre des soldats stationnés hors de leur pays, soit 24% du total.” Michel Foucher,Fronts et frontières, Paris: Fayard.

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Os imensos espaços subpovoados da Sibéria sofrem os terríveisefeitos da morte das estruturas produtivas anacrônicas geradas nointerior da economia soviética. A degradação das infra-estruturas atrasae distorce a reestruturação econômica. O declínio demográficoprovocado pelo descompasso entre a natalidade e a mortalidadeaprofunda-se devido à emigração. As cidades e as regiões organizadasem torno das indústrias extrativas fecham-se sobre si e estabelecemconexões com os mercados externos, destruindo os elos federativoscomercial, tributário e legal.

As repúblicas da atual Federação Russa originaram-se na “políticadas nacionalidades” de Stalin, que foi um dos mais desastrososexperimentos de engenharia social jamais conduzidos por um Estado.O seu caráter etno-nacional funcionou como fonte de perpetuação deelites ressentidas contra a subordinação ao Estado imperial russo. Aimplosão do sistema de partido único suprimiu a armadura quedisciplinava essas elites. O caos econômico, institucional e moral dadécada de 1990 ativou as fornalhas do autonomismo e do separatismono edifício federal.

A explosão separatista na república caucasiana e majoritariamentemuçulmana da Chechênia, que se iniciou em 1994 e se agravou nosanos seguintes, representou um sinal da fragilidade geopolítica daFederação Russa. A instabilidade manifestou-se também, sob formasmais amenas, nas longínquas repúblicas siberianas, cujos dirigentesadotaram iniciativas autonomistas unilaterais nas esferas fiscal etributária.

Mas o verdadeiro pesadelo reside na situação das repúblicas doVolga, que permanecem mais ou menos silenciosas, porém reúnemcondições para deflagrar graves incêndios. Estimulados pelos eventosda Chechênia, dirigentes do Tatarstão e do Bashkortostão reivindicaramautonomias financeira e legislativa. Como ocorre no Cáucaso, a pobrezaconstitui o material volátil que pode precipitar explosões. Na maioriadelas, os russos étnicos formam minorias mais ou menos expressivas.Essas áreas – onde se situam vastos campos de petróleo e por ondepassam os oleodutos e as ferrovias que conectam a Rússia européia àÁsia Central e à Sibéria – abrigam 18 milhões de muçulmanos.

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Novos cenários, antigas prioridades

A presença de minorias populacionais de origem russa nos Estadosperiféricos e os atritos entre essas populações e as novas autoridadesrepresentam pretextos para a ingerência de Moscou no seu perímetroexterior. A crise institucional que abala a Federação Russa e adisseminação dos autonomismos e dos separatismos internos aguçam osentimento de insegurança das elites políticas russas. Essas são as fontesdo renascimento de um nacionalismo panrusso que se expressadiferenciadamente por quase todo o espectro de forças políticas naRússia e que é o alicerce político principal do governo de Vladimir Putin.

Com o desmantelamento do bloco soviético e a fragmentação daUnião Soviética, o Estado russo enxerga nos limites da CEI sua novafronteira estratégica. A maior parte das tropas do antigo ExércitoVermelho continua nas suas posições, em territórios de Estados da CEI.Essas tropas estão sob comando formal da Comunidade, mas todossabem que obedecem a ordens emanadas diretamente de Moscou. Aomesmo tempo, o governo de Moscou manobra os conflitos nasrepúblicas ex-soviéticas de maneira a reforçar a influência russa e opapel de mediação exercido pelo Kremlin.

O ingresso da Geórgia na CEI, em 1993, praticamente forçadopela combinação do avanço das forças internas separatistas com aspressões políticas e econômicas de Moscou, ilustrou exemplarmente oprojeto hegemonista conduzido pela Rússia. Em 1999, o “tratado deunião” firmado entre a Rússia e Belarus representou o estabelecimentode estruturas confederais que preparam eventual reabsorção darepública leste-européia.

O novo nacionalismo russo expressou-se na solicitação endereçadapor Moscou à ONU de um estatuto especial para a Rússia como potênciamediadora das crises no interior da zona da CEI. O “Exterior Próximo”,como se convencionou na Rússia denominar a área coberta pelas antigasrepúblicas soviéticas, é percebido como uma extensão indissociável daprópria Rússia e uma faixa de fronteiras estratégicas.

A guerra civil na Bósnia representou a ocasião para a reentradada Rússia no centro dos acontecimentos internacionais. A intervenção

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diplomática do Kremlin para evitar ações militares drásticas da Otancontra as forças sérvias que sitiavam Sarajevo, em fevereiro de 1994,assinalou a singular coerência histórica da política externa de Moscou:os laços culturais e políticos tradicionais que vinculam russos e sérviosdesde o século XIX foram reafirmados com nitidez e determinação.

A aliança russo-sérvia foi posta à prova durante a campanha aéreada Otan contra a Iugoslávia, em 1999. Nesse episódio, que abalou asrelações entre Moscou e a aliança militar ocidental, a Rússia provavelmenteconstituiu o obstáculo decisivo para uma invasão terrestre de Kosovo.Contudo, a participação das forças russas, em condição subalterna, noprotetorado internacional estabelecido em Kosovo atestou a reduçãoda influência mundial de Moscou.

A Rússia foi, sempre, um império continental. Mesmo no zênitedo poderio soviético, em meados da década de 1970, o impulsoexpansionista na direção dos oceanos restringiu-se à consolidação debases e alianças na Indochina, na África, na Península Arábica e noCaribe, sem que jamais se constituísse uma verdadeira rede global similarà dos Estados Unidos. Justamente essa circunstância tornaextremamente sensíveis os “pontos quentes” representados pelas saídasoceânicas russas. Essa sensibilidade, traduzida no interesse tradicionalpelos Bálcãs e pelo Mediterrâneo oriental, reaparece no caso do Pacíficonorte e repercute sobre as relações russo-japonesas.

A Guerra Russo-Japonesa de 1905 assinalou, a um só tempo, amaturidade estratégica do Japão Meiji e a incontrolável decadência daRússia czarista. Aquele conflito, que anunciava a Revolução de 1917,definiu uma rivalidade tradicional entre os dois Estados, atualizada naSegunda Guerra Mundial e por toda a Guerra Fria.

Esse padrão de rivalidade representa atualmente um obstáculopara a cooperação entre Moscou e Tóquio, cujo potencial transparecenos projetos de aproveitamento dos imensos recursos naturais da Sibéria.O contencioso do arquipélago das Kurilas, anexadas por Stalin em 1945e reivindicadas insistentemente pelo Japão desde os anos de Gorbachev,é a face mais visível dos desacordos que separam os dois países.

A expansão imperial da Rússia czarista para a Ásia Central atingiuseu auge durante as complexas disputas russo-britânicas pela influência

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sobre o Afeganistão, no século XIX. Às vésperas da Segunda GuerraMundial, o Pacto Molotov-Ribbentrop, nas suas cláusulas secretas,definiu o Irã como esfera de influência russa. Esse eixo de interesse,direcionado para o Golfo Pérsico, também é uma constante da políticaexterna da potência continental.

Atualmente, a política russa na Ásia Central experimenta asdificuldades derivadas das instabilidades no interior da CEI e sente osefeitos da atração exercida tanto pela Turquia como pelo Irã sobre ospovos de origem persa e turcomena da região. Os diversos projetosconcorrentes de construção de oleodutos e gasodutos para o escoamentoda produção das repúblicas centro-asiáticas configuram um quadromóvel, cuja evolução depende da situação interna de países turbulentoscomo o Irã, o Paquistão e o Afeganistão. O grau de influência russasobre a Ásia central depende, em grande medida, do futuro dessesprojetos, que têm o potencial de associar diretamente os países da regiãoàs grandes empresas ocidentais e ao mercado mundial.37

A operação militar no Afeganistão, deflagrada por Washingtonem 2001 como etapa inicial da “guerra ao terror”, gerou mudançasestratégicas importantes na Ásia Central. O Tadjiquistão passou aabrigar uma base militar americana, associou-se à Parceria pela Paz daOtan e abriu negociações para ingresso na OMC. De modoaparentemente paradoxal, Moscou colaborou com a articulação militaramericana no Tadjiquistão. Essa colaboração expressa o interesse russona vertente afegã da “guerra ao terror” da administração americana eevidencia a cooperação entre Moscou e Washington na repressão aofundamentalismo islâmico na Ásia Central.

Europa como dilema

O foco mais importante da política externa russa está dirigidopara as relações com a Europa. Nos anos de Gorbachev, a política da“Casa Comum Européia” lastreou uma diplomacia ousada e justificou,estrategicamente, a perda dos satélites do Leste Europeu. A própriareunificação alemã, consentida por Moscou nas negociações “2 + 4” de

37 Sobre a geopolítica dos dutos na Ásia Central, veja o survey publicado pela revista The Economist(february 5th 1998).

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1990, pode ser entendida como evolução coerente no quadro do projetode integração da União Soviética ao concerto das nações européias.

A política externa de Gorbachev enquadrava-se na tradiçãopendular russa, que, ao longo dos séculos, experimentou períodosconflitantes de adesão e negação dos caracteres europeu e ocidental doEstado criado pelos czares. A tentativa frustrada de reconciliação coma Europa constituía uma reação às décadas de isolamento auto-impostoda Guerra Fria.

Em condições internas muito difíceis, sob a pressão das criseseconômica e institucional e enfrentando o fogo da oposição nacionalista,Boris Yeltsin procurou preservar alguns fiapos da grande visão da “CasaComum Européia”. Prova dessa disposição foi a decisão de participaçãorussa na “Parceria pela Paz” proposta pela Otan. O governo de VladimirPutin segue, em linhas gerais, a mesma orientação externa. Contudo,no quadro da ONU, associa-se aos esforços da França para limitar opoder da hiperpotência.

Em médio prazo, o problema das relações entre a Rússia e oconjunto europeu solicita a edificação de instituições internacionais maisavançadas e eficazes que as atuais, herdadas das últimas fases da GuerraFria. A Conferência sobre a Segurança e Cooperação Européia (CSCE),criada em Helsinque, em 1975, representou elemento de estabilizaçãocontinental adaptado às lógicas estratégicas da Guerra Fria. A suatransformação na atual Organização para a Segurança e CooperaçãoEuropéia (OSCE), em 1994, consistiu um primeiro passo rumo àinstitucionalização da segurança internacional nos cenários do AtlânticoNorte e da Eurásia. Mas os conflitos na Bósnia e em Kosovo escaparamlargamente ao quadro de cooperação e mediação da OSCE e aprofundaramas percepções de isolamento e insegurança que se disseminam na Rússia.

São essas percepções que alimentam o ressurgimento, sob formasespecíficas, da antiga ideologia da singularidade russa.38 No século XIX,essa ideologia se cristalizou como eslavofilia. O nacionalismo grão-russoprocurava definir uma esfera de influência exclusiva e uma nítidafronteira histórico-cultural capaz de separar a Rússia da Europa. A

38 Consulte, a respeito, a matéria “Russian exceptionalism: is Russia diferent?”, The Economist, June 15th

1996, p. 19-21.

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rejeição da razão iluminista e do direito contratual ocidental, a ênfaseno cristianismo ortodoxo e a afirmação romântica dos mistérios da “almarussa” formavam o contraponto para o programa ocidentalizante quefoi uma obsessão de Pedro I e Catarina II nos dois séculos precedentes.

A crise dos anos 90 empurrou o velho pêndulo, mais uma vez,para a rejeição da Europa. Naqueles anos, estruturaram-se consensosnegativos em relação ao Ocidente, à Otan, à Europa, à democraciarepresentativa e à economia de mercado. Contudo, a eleição de Putin ea retomada do crescimento econômico, após a longa e turbulentatransição que marcou o colapso do Estado soviético, produziram umareorientação estratégica.

A transição russa ainda é uma revolução inacabada. O dilemaque a permeia e atormenta consiste em definir o lugar da Nação nomundo. A “opção européia” dos tempos de Gorbachev perdeu força evigor com o fracasso da perestroika e os desastres da “era Yeltsin”. Aopção nacionalista e eurasiana, tributária da tradição grão-russa,pareceu decorrência inevitável do retrocesso penoso e humilhanteexperimentado durante uma década inteira.

Mas o pêndulo continua em movimento. Atualmente, a Rússiaredefine seu interesse nacional procurando combinar a meta deaproximação com a Europa à da consolidação da sua hegemonia naCEI. A primeira meta refletiu-se na colaboração diplomática comfranceses e alemães que frustrou a tentativa americana de obter oaval da ONU para a invasão do Iraque, em 2003. A segunda reflete-seno jogo permanente de persuasão e atemorização que procuracontrabalançar as forças centrífugas no “Exterior Próximo”.

Texto Complementar

O INCERTO LUGAR DA RÚSSIA NA EUROPA, Marc Ferro(In: Le Monde Diplomatique, nº 475, octobre 1993, p. 6)

Il y a quelques mois, alors que l’Etat sovietique avait disparu, que lapuissance de la Russie paraissait sérieusement entamée, que l’effondrementdes régimes communistes semblait signifier leur disparition, l’on fut surprispar le soutien apporté par Moscou au régime de Belgrade. Même si cet appuià la Serbie ne fut pas inconditionnel, on prenait conscience que, malgré les

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bouleversements, la Russie renouait d’anciennes alliances, comme si lesconstantes de la vieille diplomatie s’étaient révélées les plus fortes. Y aurait-ildonc une continuité entre le régime communiste et celui du président BorisEltsine? Cette question que se posent les capitales occidentales s’accompagned’une autre interrogation: la Russie a-t-elle sa place dans le concert europeen?,avec son corollaire: que signifie l’Europe pour la Russie?

Trois facteurs expliquent le soutien de Moscou à la Serbie. En premierlieu, survit nécessairemente une connivence entre les dirigeants ex-communistesde Russie et ceux de la “nouvelle Yougoslavie”: ils se comprennent à demi-mot.

Ensuite, la renaissance du nationalisme russe renoue logiquemente avecle panslavisme qui a toujours considéré la Serbie comme le “petit frère” – ceque n’ont jamais été les Polonais, les Slovaques ou les Tchèques. Lors du grandsoulèvement serbe contre l’Empire ottoman au début du dix-neuvième siècle,Saint-Pétersbourg étendit sa protection aux insurgés, avant que le tsar Nicolas1er n’oblige les Turcs à reconnaître l’autonomie interne de la Serbie, premierpas vers l’indépendance. Lorsque, en 1907, l’empire austro-hongrois annexala Bosnie-Herzégovine (que la Serbie considérait comme son extension naturelle),l’hostilité résolue de Saint-Pétersbourg encouragea un micro-panslavisme –toujours vivant – qui déboucha sur l’attentat de Sarajevo en 1914.

Dernier facteur explicatif de l’axe Moscou-Belgrade, encore plus ancienque le précédent, l’appui donné par le tsar Pierre le Grand aux orthodoxesserbes contre les persécutions islamiques. En signe de reconnaissance, ilseffectueront un pèlerinage à Zagorsk (près de Moscou) dès 1730. Si la Francea pu se considérer longtemps comme à l’origine de la création de la Yougoslavieau lendemain de la première guerre mondiale, c’est bien la Russie qui assumele rôle de “petite mère”.

Cet exemple suffit à montrer les permanences de la politiqueinternationale, par-delá les fluctuations conjoncturelles. Ces permanences, onpeut les relever aussi dans les fluctuations conjoncturelles. Ces permanences,on peut les relever aussi dans les rapports de la Russie avec la France et pluslargement avec l’Europe comme entité.

Entre Paris et Saint-Pétersbourg, le moment crucial est la seconde moitiédu dix-huitième siècle. Jusque-là, les Turcs, les Polonais, voire les Suédois,jouaient pour les Bourbons le rôle d’alliés de revers contre les princes dont la

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puissance s’enracinait en Europe centrale; les Russes étaient alors les ennemisdes amis de la France. Mais la montée en puissance de la Prusse, qui menaçaitla Pologne catholique, provoqua la grande alliance franco-russe entre Elisabethet Louis XV. Pour la première fois depuis François 1er, Paris abandonnaitconstantinople au profit de la Russie dont elle orientait ainsi l’expansionnismede l’ouest vers le sud-ouest.

Cet axe fut consolidé par la lutte engagée par Paris contre l’hégémonieéconomique et coloniale du capital anglo-hollandais et lorsque la Révolutionet l’Empire se heurtèrent à la coalition des puissances centrales et du capitalismeanglais. Le baiser de Tilsit, échangé en juin 1807 entre Napoléon et le tsarAlexandre 1er, était dans la nature des choses, même si le tempérament deshommes rendit illusoire cette deuxième alliance franco-russe.

Celle-ci fut néanmoins renouée plus tard dans le siècle et permit de fairefront en Europe à tous les systèmes imaginés par Bismarck. L’histoire plusrécente est connue, mais on peut en rappeler quelques épisodes: à peine leréarmement allemand menace-t-il en 1934, que Louis Barthou, ministre desaffaires étrangères, retrouver le chemin de Moscou, dès 1944, alors que l’empriseaméricaine met en peril la puissance coloniale française, De Gaulle fait lemême voyage. Et chaque fois, la Pologne fut sacrifiée...

Dans ces rapports, la France se retrouva toujours en position dedemandeur. La Russie n’est d’elle même intervenue en Europe qu’au temps dela Révolution française et après la victoire sur l’Allemagne nazie. Est-elle doncétrangère à ce continent? Y appartient-elle? Telles sont les questions qui hantentaussi bien la Russie que l’Europe.

Les questions peuvent paraître vaines. Quelle société mieux que la russeconnaît les grands classiques, Balzac ou les impressionnistes, Schiller ouMolière? Et qui sont plus familiers à Londres ou à Paris que Tchekhov,Stravinski, Eisenstein, les danseurs du Bolchoï ou les athlètes russes? Depuisle plus lointain passé, de nombreux liens dynastiques ont soudé la Russie aureste du continent: Anne de Kiev épousant Henri de France en 1051, sansparler des unions avec les Hanovre, les princes scandinaves, jusqu’au mariagedu dernier tsar Nicolas II – dont la fille serait la filleule de l’empereur GuillaumeII – avec Alix de Hesse.

Personne ne doutait de l’appartenance de la Russie à la grande familleeuropéenne quand la Russie tsariste participait à des coalitions de l’époque de

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Frédéric II à celle de la Sainte-alliance, du siège de Paris en 1814 à la GrandeGuerre. Mieux, elle s’intégrait au “concert européen” durant les expéditionsd’outre-mer, en Chine par exemple, contre les Boxers en 1900. Quand la Russieest vaincue par le Japon en 1905, c’est bien l’Europe tout entière qui se senthumiliée par cette défaite de l’”homme blanc”. Durant tous ces siècles, c’estl’Empire ottoman qui est perçu comme un monde étranger: la frontière qui faitsens est celle qui sépare la révolution bolchevique pour que le clivage séparel’Est de l’Ouest.

Etrange paradoxe! Après 1917, plus la Russie – et ensuite l’Unionsoviétique – se fait européenne, plus l’on s’en écarte et certains n’hésitent pasà la rejeter en Asie. Quoi de plus européen, en effet, que le marxisme des partissociaux-démocrates – qui’ls se réclament de Karl Kautsky ou de RosaLuxemburg? Et connaît-on panthéon plus européen que celui que élève sespremières statues à Danton ou à Robespierre? Et des livres d’histoire plusimprégnés par la culture du Vieux Continent que les manuels soviétiques quiglorifient Jeanne d’Arc, le philosophe italien Tommaso Campanella ou DenisDiderot?

Cette “européanité” de la Russe soviétique se voulait à double senspuisque, avec la création de l’Internationale communiste en 1919, les partiscommunistes – dont les plus puissants sont européens y jouent les relais de lapensée marx-leniniste. Jusqu’en 1923 au moins, c’est aux PC d’Allemagne, deHongrie et de France qu’est dévolue la mission de prendre le relais de la révolutionmondiale.

Or c’est précisément à partir des années 20 que l’Ouest redécouvre lecaractère asiatique de la Russie. Certes, le trait n’était pas nouveau, Voltaireou Michelet l’avaient énoncé, mais il sera désormais massivement repris, ycompris par les marxistes que dénoncent, au nom de Marx, le “mode deproduction asiatique” que Staline met en place. L’engagement de Hitler contrele bolchevisme sera présenté comme la lutte de la civilisation contre l’Asie:durant l’été 1941, les caméras allemandes des services de Goebbels sélecionnentles prisionniers soviétiques à faciès mongol pour montrer le “véritable enjeu” dela guerre.

A peine oublié, à l’heure de Stalingrad et de la victoire sur le nazisme, lecaractère asiatico-bochevique de l’expansionnisme soviétique soude à nouveaules Etats européens. Les accords entre l’Italien Alcide De Gasperi, l’Allemand

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Konrad Adenauer et le Français Robert Schuman, tous trois démocrates-chrétiens, expriment à la fois la volonté d’intégrer la République Fédérale àl’Ouest – et d’éviter une répétition des événements de Corée – et la déterminationde contrecarrer la puissance des partis communistes dans deux de ces pays.

Désormais, l’URSS apparaît comme l’anti-Europe, incarnant letotalitarisme et la séparation entre l’Europe de l’Est et l’Occident. Le cri decette autre Europe, à Budapest en 1956 ou À Prague en 1968, confirme quel’URSS est un pays étranger, figé dans l’absurde et l’horreur, enfermé dansson communisme bureaucratique. Contre toute attente, le système se transformade l’intérieur: la société secoua le carcan politique et finit par en détruire lescadres. A l’écoute de M. Mikhaïl Gorbachev, l’Occident eut d’abord l’impressionque la Russie aspirait, unanime, à réintégrer la “maison commune” dont elles’était séparée; puis, au cosmopolite et à l’occidentaliste Gorbachev fut opposéBoris Yeltsin, Russe et nationaliste. A nouveau l’Ouest s’interrogea gravement:la Russie était-elle encore capable de s’amalgamer à l’Europe?

Georges Nivat l’a exprimé avec justesse: “Il ne s’agit pas de savoir si laRussie va rentrer en Europe, une variante de cette Europe variée, maisd’admettre qu’elle est Europe et qu’il suffit qu’elle le veuille, soit soi-même,pour qu’Europe elle soit.” Ce choix n’a cessé de hanter le pays, mais il se poseen termes nouveaux depuis que s’est effondré le mythe russe, cette idée que laRussie était prédestinée à incarner la quête d’une fédération relativementhomogène où les non-Russes représentent moins de 20% de la population.

Notons que le débat sur l’identité russe a toujours exclu une conceptionethnique de la nation. Même aux temps de la russification, sous Alexandre IIIet Nicolas II, l’objectif principal était de lutter contre les clergés catholiques enPologne ou protestant dans les pays baltes et en Finlande, dont l’Egliseorthodoxe craignait le prosélytisme. C’est l’orthodoxe qui était au coeur del’identité russe et qu’il fallait protéger.

Le coup d’envoi du débat sur l’identité et le rapport à l’Europe fut donnépar Piotr Tchaadaev dans la revue Télescope en 1836. Au lendemain desrévolutions de 1830, il proclamait que la Russie devait tout à l’Occident et àl’Orient, “mais qu’elle n’avait rien donné au monde”. Ce cri de douleur étaitaussi une manière de nier que le passé était aussi admirable que le proclamaientles tsars: Nicolas 1er le comprit qui taxa Tchaadaev de fou et envoya sonéditeur au Goulag de l’époque en Sibérie. Ce “dissident” du tsarisme voyait

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l’Occident s’émanciper, se dégager de l’emprise des Eglises, accélérer sa marchevers le progrès. Attaché à l’unité intellectuelle et morale du continent, il pensaitque celui-ci avait vocation à étendre sa civilisation – respect de la personne,protection des libertés individuelles, attention portée aux libertés individuelles,attention portée à l’enseignement et à la culture – à la planète entière. Pour leplus radical des occidentalistes, Vissarion Bielinski, la Russie servile etautocratique, avec ses popes et ses mendiants, “avec ses pauvres diables desoldats en faction”, ne pouvait atteindre ces objectifs. Il fallait changer toutcela, et seul le socialisme – celui de Saint-Simon, de Proudhon, bientôt deMarx – était l’Idée ou plutôt le Savoir nécessaire pour atteindre ce résultat.

Dans l’autre camp, Ivan Kireesviski donnait, en 1845, dans Le Moscovite,la première formulation d’ensemble de la doctrine slavophile. II disait sonhostilité à cet occidentalisme héritier de la Renaissance et des Lumières quiamputerait l’homme russe de sa dimension spécifique qui est l’orthodoxie. Ilcherchait une voie russe pour mettre fin au conservatisme tsariste et permettreau peuple de s’épanouir.

Il est significatif qu’Alexandre Herzen (...) a préconisé un socialismerusse, se plaçant ainsi à l’intersection de deux courants qui devaient se perpétuerjusqu’à la révolution bolchevique. En 1927, le prince Troubetskoï formula unenouvelle variante de la théorie slavophile: loin d’être fille de l’orthodoxie, lasociété s’ancre dans des traditions russo-touraniennes, voire eurasiennes. Ainsisont revalorisées les thèses sur la nature asiatique de la Russie mais débarrasséesaussi bien de la conception ombrageuse et cocardière de la nation que del’intolérance orthodoxe. Ce courant était particulièrement hostile àl’occidentalisme hérité de Pierre le Grand dont le marxisme serait le dernieravatar et qui fait du Russe un étranger dans son propre pays. Cette vision, quine s’accommodait avec le régime soviétique que pour autant qu’elle se retrouvaitdans sa volonté de puissance, mêle désormais les eaux des nostalgiques del’ancienne grandeur.

6 – EVOLUÇÃO POLÍTICA E ECONÔMICA DA CHINA

Ao longo dos séculos, a China experimentou ciclos pendulares deabertura para o mundo exterior e fechamento isolacionista. Os períodosde abertura corresponderam à hegemonia do comércio, dos comerciantes

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e dos portos; os de fechamento, à das elites político-militares e do poderterritorializado.39 A Revolução Chinesa de 1949 pode ser compreendidacomo uma reação violenta ao período de abertura que a precedeu e àsubordinação às potências mundiais que caracterizou o século XIX e aprimeira metade do século XX.40

O ciclo maoísta representou o mais recente dos grandes períodosde isolamento. A natureza autocrática do poder comunista, ainda quesingular, recuperou e atualizou inúmeros traços das dinastias tradicionaischinesas. O isolamento correspondeu a um projeto de definição de umaidentidade nacional e à edificação de um aparelho de Estado capaz decontrolar o território imenso e subsumir o universo plural das culturasregionais. Nas três décadas de maoísmo, a China emergiu como unidadegeopolítica e potência continental asiática.

As relações com a União Soviética permitem distinguir duas fasesdistintas ao longo do ciclo revolucionário. Entre 1949 e 1960, Pequimoptou pelo alinhamento incondicional com Moscou, expresso tanto noplano estratégico (programas de cooperação militar) como no econômico(planos qüinqüenais direcionados para a industrialização intensiva).Nessa fase, as tensões que tinham marcado o relacionamento do PartidoComunista Chinês (PCC) com a liderança de Stalin antes da tomadado poder por Mao Zedong ficaram encobertas pela conjuntura mundialda Guerra Fria. A aplicação da Doutrina Truman à Ásia determinava aconfiguração do “cordão sanitário” em torno da China e estimulava aaproximação Pequim-Moscou.

Entre 1960 e 1972, Pequim reforçou o isolamento face ao exteriorpelo rompimento com Moscou, desenvolveu o ambicioso programa decapacitação nuclear e redirecionou a economia para padrões autárquicosoriginais. O cisma sino-soviético teve como causa fundamental aaspiração chinesa de possuir um arsenal nuclear próprio e autônomo.

39 Uma história autorizada da China, entre 1600 e a atualidade, aparece na obra Em busca da Chinamoderna, de Jonathan D. Spence (São Paulo: Companhia das Letras, 1996). Para uma análise dascaracterísticas geopolíticas do território chinês e dos fatores que moldaram as suas fronteiras atuais,ver Michel Foucher, Fronts et frontières, Op. cit., p. 322-332.

40 A evolução da política neocolonial na China conduziu a significativo confronto diplomático entreas potências européias e os Estados Unidos. Nos primeiros anos do século XX, as “Cartas do OpenDoor” de Washington assinalaram o contraste entre visões de mundo e interesses conflitantes. Sobreo “Open Door”, ver George F. Kennan, “El señor Hippisley y el Open Door”, Las Fuentes de la ConductaSoviética y otros escritos, Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1991, p. 37-53.

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O ponto mais crítico das relações entre os dois países foi atingido emagosto de 1969, quando se registraram combates esporádicos ao longode trechos contestados da fronteira comum.

Cada uma dessas fases se caracterizou pelo envolvimento, diretoou indireto, de Pequim em conflitos de importância estratégica. Aprimeira fase foi marcada pelo episódio da instalação do governonacionalista em Taiwan e pelas crises no Estreito de Taiwan. Outroepisódio crítico foi a Guerra da Coréia (1950-1953), que envolveudiretamente numerosas tropas chinesas. Esses episódios qualificaram oengajamento americano na “contenção” da China Popular.41

A segunda fase foi marcada pelas crises sino-indianas de 1962 e1965 em torno da disputa pela Caxemira e, ainda, pelo envolvimentoindireto de Pequim no prolongado conflito do Sudeste Asiático. Nosubcontinente indiano, Pequim estabeleceu aliança com o Paquistão,destinada a contrabalançar a cooperação indo-soviética. Na Indochina,em função da histórica rivalidade com o Vietnã, acabou por se engajarna sustentação do regime genocida cambojano do Khmer Vermelho.

Afastada do bloco soviético, a China viveu anos de aguda instabilidadeinterna, especialmente após 1966, quando se iniciou a chamada RevoluçãoCultural. A Revolução Cultural correspondeu a intensa radicalizaçãopolítica e a profundas divisões nas cúpulas comunistas.

Acusados de “direitismo” e “revisionismo”, os dirigentes moderadosdo PCC tornaram-se alvo de campanhas de desmoralização e expurgo.Multidões exaltadas de adeptos de Mao Zedong e Lin Piao formaram asGuardas Vermelhas, organizações de jovens maoístas. Mas a manipulaçãodesenfreada das massas populares pelas cliques palacianas em conflitocontribuiu, decisivamente, para a desmoralização duradoura do sistematotalitário.42

41 A respeito da Guerra da Coréia e das crises do estreito de Formosa, consultar André Fontaine,History of the Cold War: from yhe Korean War to the present, New York: Pantheon Books, 1969, p. 9-30e p. 112-118.

42 “Quando Liu Shaoqi foi derrubado, nós demos todo apoio. Naquela época, Mao Zedong foielevado às alturas: ele era o Sol vermelho e não sei que mais. Mas a história de Lin Piao nos deu umalição importante. Acabamos vendo que os dirigentes lá de cima podiam dizer hoje que uma coisa eraredonda e, amanhã, que era chata. Nós perdemos a fé no sistema.” (citado por Jonathan D. Spence,Em busca da China moderna, op. cit., p. 580). Assim, um jovem maoísta designado para viver numpovoado rural expressou a perplexidade gerada pela acusação póstuma de traição lançada contra LinPiao em 1972.

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Nesses anos, o isolamento internacional chinês foi amenizadoapenas pelas tentativas de aproximação com o Movimento dos PaísesNão-Alinhados, que conhecia seus anos áureos. Essa tentativa seconsubstanciou no desenvolvimento e na propagação das teses terceiro-mundistas, que se tornaram marca registrada da versão maoísta dosocialismo. Entretanto, a colaboração com os Não-Alinhados foi, sempre,precária e parcial, pois limitada pela trajetória pró-soviética da Índia edo Egito, Estados que ocuparam posições de vanguarda no Movimento.

Um episódio significativo desses anos foi o reatamento de relaçõesentre Pequim e Paris, em 1964, possibilitado pelo rompimento entre aFrança e o governo de Taiwan. Essa estranha aproximação decorria doparalelismo entre a situação dos dois países, engajados em programasnucleares autônomos e na denúncia, desde perspectivas divergentes, da“dupla hegemonia” das superpotências.

China e Ocidente

A ruptura do isolamento chinês e a gradual abertura para oOcidente foram deflagradas pelas viagens de Henry Kissinger e RichardNixon a Pequim, em 1971 e 1972. A administração de Washingtonsubstituía a noção rígida do “cordão sanitário” asiático – materializadoem alianças militares como a SEATO e o Pacto de Bagdá – pelaperspectiva flexível e dinâmica de promover uma dissuasão parcial daUnião Soviética gerando maior segurança para a China.

Em outubro de 1971, Pequim tomava o assento chinês na ONU,com a exclusão de Taipé. Em setembro de 1972, eram reatadas asrelações sino-japonesas. No final da década, após o restabelecimentodas relações sino-americanas, Pequim e Washington firmavam um pactoexplicitamente orientado contra o expansionismo soviético na Ásia. Essepacto foi precipitado pela invasão soviética do Afeganistão, em 1979.Com ele, constituiu-se um eixo anti-soviético envolvendo os EstadosUnidos, a China e o Paquistão, país-chave para a sustentação logísticados grupos da guerrilha muçulmana afegã.

No plano da política interna, a China colocava um ponto finalnas turbulências da Revolução Cultural, preparando-se para a inflexãona direção do Ocidente. Em setembro de 1971, Lin Piao morria em

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circunstâncias misteriosas, depois de aparente tentativa de assassinatocontra Mao Zedong. Desse modo, rompia-se a aliança entre os radicaise o centro maoísta, que tinha constituído o eixo da Revolução Cultural.

As mortes de Chou En Lai e de Mao Zedong, em 1976, precipitaramo confronto entre correntes do PCC que se prolongou por quase doisanos e terminou com a vitória das facções moderadas. Deng Xiao Ping,marginalizado durante a Revolução Cultural, foi reabilitado e emergiucomo sucessor do “Grande Timoneiro”. Entre 1978 e 1981, o novo líderevoluiu dos expurgos da ala radical para os expurgos do centro maoísta,enraizando a sua própria facção em todos os órgãos cruciais do aparatodo Partido-Estado.

A virada política foi acompanhada pelo radical redirecionamentoda economia. A “Política das Quatro Modernizações”, anunciada em1978, deflagrou os processos combinados de dissolução das ComunasPopulares autárquicas no campo, estímulo à criação de pequenos negóciosprivados nos serviços e na manufatura e estabelecimento de incentivospara investimentos estrangeiros diretos em áreas litorâneas especiais.

Nos anos seguintes, o curso reformista consolidaria o projeto dedefinição de enclaves internacionalizados na faixa costeira. As ZonasEconômicas Especiais (ZEEs) multiplicaram-se inicialmente no litoralsudeste e, em seguida, por toda a orla oriental, passando a funcionarcomo pontes entre a China Popular e o mercado mundial.

A abertura chinesa pode ser dividida em duas etapas. Entre aascensão de Deng Xiao Ping e o fim da Guerra Fria, a rivalidade sino-soviética no teatro asiático continuou a condicionar intensamente adiplomacia de Pequim. Os combates sino-vietnamitas de 1979 e a prolongadasustentação do Khmer Vermelho no Camboja limitaram as possibilidadesdiplomáticas chinesas, mas jamais colocaram em risco os fluxos deinvestimentos estrangeiros que irrigavam as reformas econômicas.

Em 1989, a cúpula que reuniu a direção chinesa com MikhailGorbachev amenizou consideravelmente o clima de confrontação quedurou três décadas, mas a subseqüente crise da Praça da Paz Celestialpareceu, por um momento, colocar em risco todo o projeto reformista.Nos anos seguintes, Pequim reinstalou pela violência a estabilidade

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interna e reafirmou seu compromisso com a abertura econômica,acelerando as reformas. As potências ocidentais, malgrado a retóricade defesa dos direitos humanos, agiram no sentido de evitar o isolamentochinês e preservar o projeto de Deng Xiao Ping.43

O futuro da China é uma incógnita desafiadora. De um lado, opaís dispõe de potencialidades invejáveis: abundantes e diversificadosrecursos naturais, vastas possibilidades de incremento da produtividadeagrícola, reservas inesgotáveis de mão-de-obra e amplo mercadoconsumidor em expansão acelerada. De outro, encerra explosivastensões: a resistente tendência a um crescimento demográficoinsustentável, os riscos de explosões separatistas capazes de despedaçara precária unidade nacional, a contradição entre as estruturas de podertotalitário e as demandas de democracia e participação política.

O acelerado crescimento da economia na década de 1990 e adinâmica que adquiriram as reformas de mercado disseminarampercepções otimistas nos meios empresariais do Ocidente tendentes acamuflar os impasses profundos e os problemas estruturais oriundosdo processo de modernização.44

A crise financeira asiática de 1997 repercutiu sobre o ritmo deexpansão da economia chinesa e desautorizou as projeções – de restoirrefletidas e levianas – baseadas no prosseguimento das taxas decrescimento alcançadas na primeira metade da década. Contudo, oscontroles cambiais rígidos protegeram a economia chinesa das ondasde choque mais violentas da crise financeira macrorregional.

No topo da agenda diplomática de Pequim, encontra-se a questãoda unidade da China. Deng Xiao Ping reafirmou o objetivo maoísta de

43 A administração americana de George H. Bush vacilou sobre a atitude a ser adotada frente aPequim, mas o establishment diplomático mobilizou-se articuladamente para assegurar a manutençãodo patamar de relações construído nos anos 70. Henry Kissinger e Richard Nixon escreveram inúmerosartigos reprovando as ameaças emanadas de Washington e colocando a questão em termos dointeresse nacional americano. Bill Clinton, em declarações de campanha, retomou as ameaças deisolamento da China; no poder, renovou o estatuto de nação mais favorecida, optando pelos interessescomerciais das empresas americanas. O Japão jamais alimentou dúvidas dessa ordem: poucos mesesdepois dos episódios da Praça da Paz Celestial, empresários e políticos japoneses já voltavam afreqüentar a China.

44 Para uma avaliação desses impasses e problemas, consultar Paul Kennedy, Preparando-se para oséculo XXI, Rio de Janeiro: Campus, 1993.

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alcançar a unidade do Estado chinês mas, no contexto da sua políticade modernização econômica, formulou a estratégia de “uma nação, doissistemas”. Essa estratégia deveria possibilitar a reintegração de HongKong e também a de Taiwan. Ela assegurava à Colônia britânica e à“província rebelde” a vigência das regras da economia de mercado ealgum tipo de autonomia política.

A concessão de Hong Kong aos britânicos, formalizada em 1898,expirava-se em 1997. Essa circunstância facilitou as negociações para adevolução da Colônia, concluídas em 1984. O período de transição entrea conclusão do tratado e a reintegração foi pontuado por momentos detensão e pela crise de 1989, quando a Colônia se tornou palco demanifestações de apoio aos estudantes da Praça da Paz Celestial.

Reintegrada à China, Hong Kong tornou-se uma RegiãoAdministrativa Especial, beneficiando-se de autonomias administrativae jurídica. A Lei Básica, aprovada pela China, é a “miniconstituição” doenclave, com vigência até 2047.

O roteiro de Pequim previa que Taiwan seguisse o exemplo deHong Kong. Mas esse roteiro foi perturbado pela democratização doregime de Taiwan. Desde 1992, o governo do Kuomintang (KMT)engajou-se numa política de reformas que conduziu à consolidação doPartido Democrático Progressista (PDP), a expressão de um nacionalismotaiwanês que rejeita a noção da unidade da China. A bandeira daindependência de Taiwan, que jamais havia sido erguida pelo KMT,passou a ser agitada pelo PDP e alcançou suporte majoritário naseleições de 2000.

O impasse em torno do futuro de Taiwan se expressa pelasformulações inconciliáveis de Pequim e Taipé. Pequim exige negociaçõesbaseadas no princípio da unidade da nação chinesa. Taipé reivindicaque seu governo seja reconhecido como interlocutor soberano pelaChina, embora sob pressão americana tenha congelado a idéia dadeclaração de independência.

O problema da unidade articula as políticas externa e internada China. No interior desta, as contestações à unidade nacionaloriginam-se das populações muçulmanas do Sin-Kiang e dos budistas

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do Tibete. O regime de Pequim, sempre acusado de violações dos direitoshumanos relacionadas ao Sin-Kiang e ao Tibete, interpretou a políticada “guerra ao terror” de Bush como oportunidade sem igual paraacentuar a repressão à insubordinação interna.

Uma dimensão importante da encruzilhada em que se encontraa China reside na sua inserção como ator de destaque no sistemainternacional. No fundo, Pequim se defronta com a difícil tarefa decontribuir para a constituição de um entorno regional estável, previsívele cooperativo na Bacia do Pacífico. Essa necessidade se materializa emquestões como a da dissolução da tradicional rivalidade sino-japonesa,a reorganização das relações com a Indochina (e, em especial, com oVietnã), a revisão das relações com a Índia e a administração dareincorporação de Hong Kong. Contudo, nada é tão prioritário, no planomacrorregional, como a estabilização da Península Coreana.

O programa nuclear da Coréia do Norte é um elemento explosivo,pois provoca sobressalto permanente na Coréia do Sul e pode, em umcenário extremo, estimular uma reviravolta na política militar japonesa.Do ponto de vista de Pequim, a estabilidade das relações com o Japão ea Coréia do Sul é vital para a continuidade da expansão econômica. Porisso, no caso da Península Coreana, os interesses chineses coincidem comos de Washington.

A derrocada do poderio russo e a prolongada estagnação econômicajaponesa realçam a importância da China na distribuição do podermundial. Durante o conflito indo-paquistanês de 1999, nas fronteirasdisputadas da Caxemira, a China revelou-se consciente da complexidadedo sistema internacional pós-Guerra Fria, afastando-se sutilmente daposição tradicional de apoio ao Paquistão. No ano seguinte, Pequim uniu-se às negociações asiáticas destinadas a encaminhar a resolução dasdisputas sobre o Mar da China meridional. Finalmente, o ingresso naOMC, após prolongadas e difíceis negociações, institucionalizou aposição chinesa na economia global e consolidou os laços entre Pequime Washington.

A política externa de Pequim estrutura-se em torno dos eixoscomplementares da unidade nacional e da projeção de influência emescalas asiática e mundial. Essa organização de prioridades, destinada

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a assegurar a marcha rumo à condição de potência de primeira magnitude,corresponde a clara definição do interesse nacional chinês.

Texto Complementar

UMA GEOESTRATÉGIA PARA A EURÁSIA, Zbigniew Brzezinzki(In: Foreign Affairs, v. 76, nº 5, Sept/Oct. 1997, p. 50-64)

Eurasia is the world’s axial supercontinent. A power that dominatedEurasia would exercise decisive influence over two of the world’s three mosteconomically productive regions, Western Europe and East Asia. A glance atthe map also suggests that a country dominant in Eurasia would almostautomatically control the Middle East and Africa. With Eurasia now servingas the decisive geopolitical chessboard, it no longer suffices to fashion onepolicy for Europe and another for Asia. What happens with the distribution ofpower on the Eurasian landmass will be of decisive importance to America’sglobal primacy and historical legacy.

(...) In the western periphery of Eurasia, the key players will continueto be France and Germany, and America’s central goal should be to continueto expand the democratic European bridgehead. In the Far East, China islikely to be increasingly pivotal, and the United States will not have an eurasianstrategy unless a sino-american political consensus is nurtured. In Eurasia’scenter, the area between an enlarging Europe and a regionally rising Chinawill remain a political black hole until Russia firmly redefines itself as apostimperial state. Meanwhile, to the south of Russia, Central Asia threatensto become a caldron of ethnic conflicts and great-power rivalries (...).

China as the eastern anchor

There will be no stable equilibrium of power in Eurasia without adeepening strategic understanding between America and China and a clearerdefinition of Japan’s emerging role. That poses two dilemmas for America:determining the practical definition and acceptable scope of China’s emergenceas the dominant regional power and managing Japan’s restlessness over its defacto status as an american protectorate. Eschewing excessive fears of China’srising power and Japan’s economic ascension should infuse realism into apolicy that must be based on careful strategic calculus. Its goals should be to

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divert chinese power into constructive regional accommodation and to channeljapanese energy into wider international partnerships.

Engaging Beijing in a serious strategic dialogue is the first step instimulating its interest in an accommodation with America that reflects thetwo countries’ shared concerns in northeast Asia and Central Asia. It alsobehooves Washington to eliminate any uncertainty regarding its commitmentto the one-China policy, lest the Taiwan issue fester, especially after China’sdigestion of Hong Kong. Likewise, it is in China’s interest to demonstrate thateven a Greater China can safeguard diversity in its internal politicalarrangements.

(...) Although China is emerging as a regionally dominant power, it isnot likely to become a global one for a long time. The conventional wisdomthat China will be the next global power is breeding paranoia outside Chinawhile fostering megalomania in China. It is far from certain that China’sexplosive growth rates can be maintained for the next two decades. In fact,continued long-term growth at the current rates would require an unusuallyfelicitous mix of national leadership, political tranquillity, social discipline,high savings, massive inflows of foreign investment, and regional stability. Aprolonged combination of all of these factors is unlikely.

Even if China avoids serious political disruptions and sustains itseconomic growth for a quarter of a century – both rather big ifs “ China wouldstill be a relatively poor country. A tripling of GDP would leave China belowmost nations in per capita income, and a significant portion of its people wouldremain poor. Its standing in access to telephones, cars, computers, let aloneconsumer goods, would be very low.

In two decades China may qualify as a global military power, since itseconomy and growth should enable its rulers to divert a significant portion ofthe country’s GDP to modernize the armed forces, including a further buildupof its strategic nuclear arsenal. However, if that effort is excessive, it couldhave the same negative effect on China’s long-term economic growth as thearms race had on the soviet economy. A large-scale chinese buildup would alsoprecipitate a countervailing japanese response. In any case, outside of its nuclearforces, China will not be able to project its military power beyond its region forsome time.

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A Greater China becoming a regionally dominant power is anothermatter. A de facto sphere of chinese regional influence is likely to be part ofEurasia’s future. Such a sphere of influence should not be confused with azone of exclusive political domination, like the Soviet Union had in EasternEurope. It is more likely to be an area in which weaker states pay specialdeference to the interests, views, and anticipated reactions of the regionallydominant power. In brief, a chinese sphere of influence can be defined as one inwhich the first question in the various capitals is “What is Beijing’s view onthis?”

(...) Greater China’s geopolitical influence is not necessarily incompatiblewith America’s strategic interest in a stable, pluralistic Eurasia. For example,China’s growing interest in Central Asia constrains Russia’s ability to achievea political reintegration of the region under Moscow’s control. In this connectionand in regard to the Persian Gulf, China’s growing energy needs means it hasa common interest with America in maintaining free access to, and politicalstability in, the oil-producing regions. Similarly, China’s support for Pakistanrestrains India’s ambitions to subordinate that country, while offsetting India’sinclination to cooperate with Russia in regard to Afghanistan and CentralAsia. Chinese and japanese involvement in the development of eastern Siberiacan also enhance regional stability.

The bottom line is that America and China need each other in Eurasia.Greater China should consider America a natural ally for historical as well aspolitical reasons. Unlike Japan or Russia, the United States has never hadany territorial designs on China; compared to Great Britain, it has neverhumiliated China. Moreover, without a viable strategic relationship with America,China is not likely to continue to attract the enormous foreign investmentnecessary for regional preeminence.

Similarly, without a sino-american strategic accommodation as theeastern anchor of America’s involvement in Eurasia, America will lack ageostrategy for mainland Asia, which will deprive America of a geostrategyfor Eurasia as well. For America, China’s regional power, co-opted into a widerframework of international cooperation, can become an important strategicasset - equal to Europe, more weighty than Japan - in assuring Eurasia’sstability. To recognize this fact, China could be invited to the G-7’s annualsummit, especially since an invitation was recently extended to Russia (...).

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Transcontinental security

In the long term, Eurasia’s stability would be enhanced by the emergence,perhaps early in the next century, of a trans-eurasian security system. Such atranscontinental security arrangement might involve an expanded NATO,linked by cooperative security agreements with Russia, China, and Japan.But to get there, americans and japanese must first set in motion a triangularpolitical-security dialogue that engages China. Such three-way american-japanese-chinese security talks could eventually involve more, asianparticipants, and later lead to a dialogue with the Organization for Cooperationand Security in Europe. That, in turn, could eventually pave the way for aseries of conferences by european and asian states on security issues. Atranscontinental security system would thus begin to take shape.

Defining the substance and institutionalizing the form of a trans-eurasian security system could become the major architectural initiative of thenext century. The core of the new transcontinental security framework couldbe a standing committee composed of the major eurasian powers, with America,Europe, China, Japan, a confederated Russia, and India collectively addressingcritical issues for Eurasia’s stability. The emergence of such a transcontinentalsystem could gradually relieve America of some of its burdens, whileperpetuating beyond a generation its decisive role as Eurasia’s arbitrator.Geostrategic success in that venture would be a fitting legacy to America’s roleas the first and only global superpower.

7 – A ONU DIANTE DA “NOVA ROMA”

A ONU e a sua antecessora, a Liga das Nações, têm em comum ainfluência original das noções idealistas sobre o primado da ordem fundadana justiça e no direito, como arcabouço das relações internacionais. Nosdois casos, como reação às grandes guerras – momentos de afirmaçãodescontrolada e exacerbada da soberania nacional – surgiram organizaçõescuja origem não disfarçava a convicção da necessidade de algo como um“governo mundial”, destinado a subordinar as soberanias egoístas dos Estados.

Entretanto, as duas organizações foram fruto de circunstâncias reais,não de idéias. A Liga das Nações espelhou, de certa forma, uma tentativa

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derradeira de recuperar a ordem européia cujas raízes se encontram noséculo XIX. Essa tentativa fracassou, pois não correspondia mais àscircunstâncias concretas que envolviam o sistema internacional de Estados:o revanchismo franco-britânico não podia ser sucedâneo genuíno doequilíbrio multipolar de Viena; a ausência dos Estados Unidos representavaum golpe mortal para a Liga, no contexto de um sistema que tendiarapidamente à mundialização. O “governo mundial” da Liga não passavade acerto eventual entre os Estados europeus vencedores do conflitode 1914-1918, cuja decomposição acompanhou a própria decadência dosseus criadores.

A ONU procurou, na sua origem, distinguir-se da antecessora. O localda sua fundação, São Francisco, e do estabelecimento da sua sede, NovaIorque, bem como o estilo e o conteúdo da Declaração dos DireitosHumanos, revelam o engajamento decisivo e a influência ideológicadeterminante dos Estados Unidos na formulação das bases da novaorganização. Seu relativo ecumenismo – expresso na possibilidade deingresso das potências derrotadas – registrava a incorporação das liçõesdeixadas pelo fracasso da Liga.45

Na origem da ONU se encontram as idéias desenvolvidas porRoosevelt e seu secretário de Estado, Cordel Hull, durante os anos da guerra.O “governo mundial” imaginado em Washington só seria capaz de promovera harmonia e suprimir as ameaças a uma ordem baseada na justiça secontasse com a força dos “Quatro Policiais” – os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a União Soviética e a China.46

Paradoxalmente, o idealismo wilsoniano gerou um mecanismo quese adaptou admiravelmente às circunstâncias da realpolitik da Guerra Fria.Na prática, a ONU jamais se assemelhou a algo como um “governomundial”. Como a Liga, ela emanou das relações de força geradas pelaguerra. Mas, ao contrário da Liga, ela contribuiu para perpetuar as condiçõesque lhe deram origem e sobreviveu às tormentas e às crises da confrontação

45 Para análise comparativa circunstanciada dos documentos de fundação da ONU e da Liga, verRaymond Aron, Paz e Guerra..., op. cit., p. 854-862.

46 Na visão rooseveltiana, a França era objeto de pouco disfarçado desprezo, vista como território a seradministrado e reconstruído. A Alemanha, por sua vez, continuava a ser encarada como a principal ameaçaà harmonia internacional. Para um relato sobre o ponto de vista de Roosevelt, veja a obra de Robert E.Sherwood, Roosevelt e Hopkins, Rio de Janeiro-Brasília: Nova Fronteira/UnB, 1998, partes IV e V.

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bipolar. A composição do CS e a regra do direito de veto asseguraram o“direito dos vencedores” e, simultaneamente, geraram o mecanismo deadaptação das Nações Unidas ao sistema internacional do pós-guerra.

A lógica da bipolaridade definiu, para o mal e para o bem, a dinâmicado Conselho de Segurança. O direito de veto, empregado alternativamentepor Washington e Moscou, refletiu a hegemonia das superpotências e, viade regra, marginalizou as Nações Unidas do encaminhamento das crisesagudas entre os atores principais, que foram solucionadas por meio dadiplomacia bilateral tradicional.47 Entretanto, o direito de veto preservouas Nações Unidas, impedindo que o conflito entre as superpotências tragasseno seu vórtice o sistema mundial de segurança coletiva.

Ao longo da Guerra Fria, os princípios da não-intervenção, daautodeterminação e da soberania tiveram efetividade limitada pelocontexto da confrontação e pela lógica das esferas de influência. A UniãoSoviética praticou o intervencionismo na Hungria e na Tchecoslováquia,respaldada pela linha da “cortina de ferro” e pelas decisões de Yalta. OsEstados Unidos atuaram com desenvoltura na sua “quinta fronteira”caribenha, mas se viram limitados, durante a Guerra do Vietnã, a açõesterrestres ao sul do Paralelo 16. A Guerra de Suez revelou os limites dopoder de intervenção das velhas potências européias e, também, osentido específico da autodeterminação no mundo das superpotências.A Crise dos Mísseis em Cuba representou um episódio de valor quasenormativo na determinação dos limites recíprocos estabelecidos pelassuperpotências.48 A ONU não desempenhou papel relevante em nenhumdesses acontecimentos.

Os limites da influência da ONU foram explicitados nitidamenteao longo da evolução da crise israelo-palestina. O conflito de 1948-1949,que determinou o fracasso do plano de partilha aprovado pelaAssembléia Geral, continuou a produzir desdobramentos poucopromissores para os entusiastas do direito emanado das Nações Unidas.

47 Uma interessante exceção foi o episódio da Guerra da Coréia (1950-53), quando a intervençãoamericana se realizou sob os auspícios da ONU, em virtude do boicote soviético. Depois dessseevento, Moscou aprendeu a manobrar de forma realista a circunstância da existência da ONU,chegando, com certo sucesso, a utilizá-la para fins propagandísticos nos anos 1960 e 1970, desde oingresso em massa dos novos Estados independentes da Ásia e da África.

48 Ver a respeito o interessante estudo de caso de Graham T. Allison, “Conceptual Models and the CubanMissile Crisis”, incluído na coletânea comentada Classic Readings of International Relations, op. cit.

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As conquistas territoriais israelenses na guerra de 1967 foramperenizadas, em aberto desafio às solenes resoluções de condenação. Acolonização dos territórios ocupados expandiu o desafio, ilustrando aimpotência da ONU de agir contra a vontade de uma das superpotências.Mesmo os acordos de paz assinados em Camp David, entre Israel eEgito, passaram ao largo das Nações Unidas, limitando-se a fazer mençãovazia às resoluções adotadas.

Entretanto, a ONU escapou à sina do esvaziamento que fulminousua antecessora. A descolonização afro-asiática conduziu dezenas denovos Estados à Assembléia Geral, que passou a espelhar, desde a décadade 1960, a dimensão mundial do sistema internacional.

A Conferência de Bandung e o Movimento dos Países Não-Alinhadoscriaram novas demandas, políticas e econômicas, que repercutirampositivamente sobre a ONU, oxigenando-a e ampliando agendasparalisadas pelo confronto Leste-Oeste. O princípio da autodeterminaçãoe a noção de soberania nacional encontraram nesses eventos novatradução, voltada contra o intervencionismo de Washington e Moscou.

ONU no Pós-Guerra Fria

As circunstâncias do fim da Guerra Fria removeram o terreno dabipolaridade de poder sobre o qual se movia a ONU. Num primeiromomento, a falência da União Soviética desequilibrou o Conselho deSegurança, tornando-o instrumento dócil da diplomacia de Washington.Então, a Organização foi conduzida a intenso ativismo, destinado aavalizar ou fornecer suporte às iniciativas da hiperpotência.

A euforia inicial do pós-Guerra Fria se prolongou até a Guerra doGolfo, gerando percepções e expectativas tendentes a atribuir um papelde primeira grandeza para ações concertadas no Conselho de Segurança.A administração George H. Bush, bafejada pelo êxito retumbante noOriente Médio, estimulou a multiplicação de ações de intervenção daONU. As tradicionais missões de paz foram suplementadas por“missões humanitárias”, cujo modelo primeiro foi a “Operação Restaurara Esperança”, na Somália.

A experiência de poucos meses revelou o exagero. Com a solitáriae relativa exceção do Camboja, as missões na Somália, em Angola e no

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Haiti oscilaram entre êxitos incompletos e retumbantes fracassos. Elasserviram para mostrar que a operação multinacional no Golfo Pérsicoconstituiu caso excepcional, não padrão: dificilmente as condiçõessingulares que a cercaram (alta prioridade concedida por Washington,amplo consenso internacional, flagrante ilegitimidade de uma das partes,finalidades nítidas e ambiente estratégico definido) se repetiriam emoutras ocasiões. Rapidamente, dissiparam-se as crenças de fundoiluminista na possibilidade de transformação da velha ONU em algocomo um “governo mundial”.

O tema dos direitos humanos ganhou relevo no contexto dasexpectativas iluministas sobre o papel das Nações Unidas na “novaordem mundial”. Em junho de 1993, a ONU patrocinou a Conferênciasobre Direitos Humanos de Viena, que se enquadra na moldura deiniciativas como as das conferências sobre população e as relativas aomeio ambiente e se destina a forjar consensos e instrumentos de açãoda comunidade internacional na esfera de temas de impacto global.

Na ocasião, Washington liderou um bloco de Estados, essencialmenteconstituído pelos aliados atlânticos, estruturado em torno da defesa dauniversalidade dos direitos humanos e, como corolário, da suaprecedência em face do princípio da soberania nacional. Dentre asdecorrências dessa postura, está a legitimação de missões internacionaisde intervenção deflagradas em nome da defesa dos direitos humanosem países submetidos a regimes tirânicos.

A China Popular, à frente de um bloco heterogêneo de Estadosasiáticos, árabes, muçulmanos e africanos, sustentou tese divergente,fundada na precedência do princípio da soberania nacional. Aposição chinesa embasou-se nas noções de relativismo cultural, pelasquais o conteúdo e o significado dos direitos humanos estão condicionadospela história particular de cada povo e não são redutíveis a definiçõesglobalizantes.

O impasse entre as posições contrastantes refletiu-se em umadeclaração final pouco afirmativa que, entretanto, sustenta o caráteruniversal e obrigatório dos direitos humanos, apoiando-se na própriaCarta da ONU. As propostas práticas foram transformadas em simplessugestões. O encontro paralelo de Organizações Não-Governamentais

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(ONGs) ligadas à questão dos direitos humanos expressou insatisfaçãocom as limitações da Conferência.

O impasse constatado em Viena admite diferentes leituras. Noplano ético-filosófico, trata-se de um eco de interrogações e polêmicascomplexas, cujo fundo toca no debate interminável sobre a naturezahumana. No plano da diplomacia corrente, expressa as diferentesestratégias da superpotência e dos seus aliados imediatos, de um lado, ede uma potência média e inúmeros Estados menores, de outro, dianteda dissolução das regras implícitas na bipolaridade da Guerra Fria.

Para Pequim, a defesa intransigente da soberania nacional surgecomo escudo de proteção do autoritarismo político interno, em conjunturacaracterizada pelo incremento do poder de intervenção dos EstadosUnidos. Para Washington, os direitos humanos surgiram como condutoadequado de legitimação de opções de política externa que demandama cobertura da comunidade internacional. Contudo, a “estranha aliança”estabelecida entre as duas potências por ocasião das negociações sobreo Tribunal Penal Internacional (TPI) revelou a complexidade do temados direitos humanos no atual sistema de Estados.

A administração Clinton defendeu, durante quatro anos, a criaçãode uma corte internacional destinada a julgar acusados de crimes deguerra e crimes contra a humanidade. Contudo, quando um tratadofoi costurado, na Conferência de Roma, em julho de 1998, Washingtonalinhou-se com uma minoria de ditaduras e votou contra o Tratado doTPI, isolando-se dos aliados tradicionais da Otan.

O desenlace decorreu, em parte, dos extraordinários equívocoscometidos pela diplomacia americana no longo período de negociaçõesprévias.49 Mas, atrás dos equívocos, encontra-se uma encruzilhadaverdadeira.

Os argumentos de Washington contra o Tratado do TPI enfatizavamos riscos de acusação e julgamentos politicamente motivados contratropas americanas posicionadas ao redor do globo. Mas sua propostarejeitada de emenda conferia ao Conselho de Segurança um poder de

49 Veja, a respeito, o comentário de Ruth Wedgwood, “Fiddling in Rome”, Foreign Affairs, November/December 1998.

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veto sobre as ações da corte, o que de fato deixaria as grandes potênciasfora do alcance do Tribunal.

No fundo, o voto dos Estados Unidos revelou o apego à ordeminternacional existente naquilo que é, mais caracteristicamente, umaherança da Guerra Fria: a condição especial desfrutada pelos integrantesdo Conselho de Segurança.

O tema dos direitos humanos tornou-se, em definitivo, um dosgrandes eixos da política internacional. O tribunal instalado para julgarcrimes de guerra na antiga Iugoslávia depende, na prática, das iniciativasdas tropas da Otan que, por sua vez, obedecem a critérios políticos elogísticos no que tange à perseguição e à captura de acusados. Ocomplexo desenvolvimento do “caso Pinochet” revelou as imensasdificuldades dos tribunais nacionais na condução de processosextraterritoriais cujo fulcro são as violações de direitos humanos.

O TPI foi instalado após longo percurso de ratificações nacionaisdo Tratado que revelaram o isolamento da posição dos Estados Unidos.Mas, no contexto da Doutrina Bush, as resistências de Washington àcorte internacional transformaram-se em irredutível oposição. Sobintensa pressão americana, diversos países europeus firmaram acordosque virtualmente colocam cidadãos americanos fora do alcance do TPI.A “exceção americana” reduz significativamente a legitimidade da corteinternacional.

O período das grandes expectativas depositadas nas NaçõesUnidas encerrou-se em meados da década de 1990. A intervenção naBósnia, que chegou a envolver quarenta mil capacetes azuis em 1995,revelou com toda a clareza os limites das missões em ambiente deconflito militar. Os massacres de civis em áreas declaradas “refúgiosseguros” desmoralizaram as Nações Unidas e abriram caminho para osbombardeios da Otan, que acabaram conduzindo ao Acordo de Dayton.A lição extraída por Washington desse episódio foi decisiva para amarginalização completa da ONU na condução da crise étnica e dacampanha aérea em Kosovo, em 1999.

A Doutrina Bush empurrou as Nações Unidas para uma criseprofunda. A declaração da “guerra ao terror” não procurou legitimação

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da comunidade internacional. A proclamação do princípio da “guerrapreventiva” evidenciou a ruptura da “Nova Roma” com os padrões deconduta consagrados pela ONU. A operação militar americana noAfeganistão, em 2001, mesmo legitimada a posteriori pelo Conselho deSegurança, foi decidida e deflagrada por Washington.

Mas a ONU enxergou realmente o abismo durante o longo impasseque antecedeu a segunda Guerra do Golfo, em 2003. França, Rússia eChina anunciaram que votariam contra a resolução que legitimava ainvasão do Iraque, preparada por Washington e Londres. França e Rússiachegaram a insinuar que usariam o direito de veto, se fosse necessário.Mas, diante da derrota anunciada, Washington sequer apresentou aresolução, optando por deflagrar a invasão à revelia da ONU.

O episódio evidenciou o lugar ocupado pelas Nações Unidas naconjuntura internacional criada pela Doutrina Bush. Reagindo aounilateralismo americano, as potências se reuniram para limitar o podere a liberdade de ação da hiperpotência. Assim, na ótica das potências, oConselho de Segurança se tornou um instrumento de amenização ecorreção do desequilíbrio de poder no sistema internacional de Estados.Evidentemente, na ótica da hiperpotência, o Conselho de Segurança foipercebido como estorvo ao exercício do seu poder.

Depois da segunda Guerra do Golfo, reabriu-se o debate, esboçadoem meados da década de 1990, sobre a reforma do Conselho deSegurança. Originalmente, o argumento que sustentava a proposta dereforma enfatizava a necessidade de adaptar o sistema de segurançacoletiva a uma ordem mundial liberta das circunstâncias estratégicasque marcaram a Conferência de São Francisco. A incorporação de novosmembros permanentes – como o Japão, a Alemanha e os países emdesenvolvimento – assinalaria a extinção definitiva da ordem mundialdo pós-guerra.

O debate original não prosperou, pois os Estados Unidospreferiram congelar a relação de forças do Conselho de Segurança. Aretomada do tema, nas condições de crise da ONU geradas pela invasãodo Iraque, tende a aprofundar as divergências entre a “Nova Roma” eas demais potências acerca do futuro do sistema de segurança coletiva.

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No fundo, o problema estrutural está na possibilidade de convivênciade uma comunidade internacional que partilha valores e padrões deconduta com um sistema de Estados caracterizado pela unipolaridadeestratégica e pelo unilateralismo da hiperpotência.

8 – GLOBALIZAÇÃO, REGIONALIZAÇÃO EMULTILATERALISMO

Se se entende por globalização o processo pelo qual são criadasas condições, materiais e econômicas, para a mundialização do espaçode fluxos de capitais e mercadorias, então se trata de um movimentoque está em marcha desde que, nos séculos XV e XVI, as “GrandesNavegações” européias romperam o isolamento das “histórias regionais”.

O longo percurso deflagrado por aqueles eventos distantes galgoupatamares cruciais durante o século XIX, quando a Revolução Industrialintensificou as trocas mercantis e desencadeou um surto de investimentosno exterior. Esse processo histórico acompanhou e alimentou asinovações técnicas na produção e no transporte de mercadorias etambém gerou as demandas por capitais e os meios de satisfazê-las.

O pós-guerra representou novo patamar nesse processo,caracterizado pela emergência de forças de globalização como as empresastransnacionais e os conglomerados financeiros internacionalizados. Oambiente de estabilidade geopolítica mantido pela prevalênciaestratégica dos Estados Unidos e a armadura formada pelos consensoseconômicos de Bretton Woods catapultaram os fluxos de capitais emercadorias para níveis jamais antes sonhados e contribuíram para astrês gloriosas décadas de prosperidade econômica do pós-guerra.50

Nesse ambiente se consolidou a “sociedade de consumo”, foramreconstruídas as economias devastadas do Japão e da Europa ocidentale desencadeou-se o processo de modernização industrial de inúmerospaíses da periferia do sistema capitalista. Entretanto, a presença de vasta

50 Sobre as complexidades da relação entre a hegemonia estratégica dos Estados Unidos e o quadrocooperativo de Bretton Woods, consultar Raymond Aron, “Os Estados e a economia internacional”,Os Últimos Anos do Século, Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 35-66.

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área de economias de comando, relativamente isoladas do mercadomundial, determinou as fronteiras do movimento globalizador.51

A dissolução da área das economias de comando fundamentadasna estatização generalizada dos meios de produção correspondeu atransformações profundas na economia mundial, que agiam há maisde uma década.

A economia industrial desenvolve-se por meio de ciclos longos quecomeçam com uma fase de rápido crescimento e acumulação de capital,atravessam uma fase de estabilização e, em seguida, conhecem umafase descendente caracterizada pela redução do crescimento e dos lucrosempresariais. Nikolai Krondatieff, pesquisando na década de 1920 asestatísticas de produção industrial, consumo, preços, juros e salários daGrã-Bretanha, dos Estados Unidos e da França, foi o primeiro a registraresses ciclos longos.

Kondratieff identificou ciclos completos constituídos por fases deprosperidade, recessão, depressão e recuperação a intervalos de 40 a 60anos, entre 1782 e 1845 (Primeira Revolução Industrial) e entre 1845 e1892 (Segunda Revolução Industrial). Um pouco mais tarde, Joseph A.Schumpeter estudou-os em profundidade, conseguindo associá-los àmarcha da inovação tecnológica.52

Schumpeter mostrou que a economia industrial evolui por meioda “destruição criadora”. Quando um conjunto de novas tecnologiasencontra aplicação produtiva, as tecnologias tradicionais são “destruídas”,isto é, deixam de criar produtos capazes de competir no mercado eacabam sendo abandonadas. Na fase inicial, ascendente, do ciclo, asnovas tecnologias oferecem elevadas taxas de lucros e os empresáriosinovadores erguem verdadeiros impérios econômicos. Na fase deestabilização, o acirramento da competição e a redução dos lucros

51 A respeito de algumas características cruciais da economia e das políticas internacionais nessasdécadas, consultar os ensaios de John Lewis Gaddis, “The Long Peace: Elements of Stability in the PostwarInternational System”, Edward L. Morse, “The Transformation of Foreign Policies: Modernization,Interdependence, and Externalization” e Robert Gilpin, “Dependence and Economic Development”, incluídosna Section IV – The Cold War International System, da coletânea comentada Classic Readings..., op. cit.

52 As idéias iniciais do economista sobre os ciclos longos apareceram num artigo publicado na revistaEconomica, em 1927: “The Explanation of the Business Cycles”. Mas a sua teoria encontra-se formalizadana obra Business Cycles: A Theoretical, Historical and Statistical Analysis of the Capitalist Process,publicada originalmente em 1939.

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assinalam a generalização do novo patamar tecnológico. Finalmente, afase descendente caracteriza-se pela saturação dos mercados, prenunciandomais uma ruptura na base técnica, que deflagrará novo ciclo.53

A teoria dos ciclos longos permite situar a revolução tecnocientíficacontemporânea na trajetória da economia industrial. Essa onda deinovações corresponde à ruptura do padrão tecnológico do pós-guerra,assentado sobre a eletrônica de consumo, a petroquímica e a aeronáutica.No seu lugar, estrutura-se um padrão apoiado na microeletrônica, nainformática, nas telecomunicações e na biotecnologia.

A revolução tecnocientífica repercutiu sobre o conjunto daorganização da produção e do consumo, em escala global, determinandonovas estratégias para os conglomerados industriais, redefinindo ainfluência e o alcance dos mercados financeiros e revelando os limitesdos modelos keynesianos de gestão pública que tinham se tornadohegemônicos desde a Grande Depressão dos anos 30. A retomada dopensamento econômico liberal expressou as necessidades postas por taistransformações e revolucionou os padrões de regulação política eadministrativa nas sociedades ricas do Ocidente. As vitórias eleitoraisde Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, em 1979, e de Ronald Reagan,nos Estados Unidos, em 1980, assinalaram o encerramento do ciclokeynesiano e a ascensão do novo pensamento liberal.54

As economias de comando, ineptas para acompanhar os saltostecnológicos e os níveis de produtividade definidos pelo mercadomundial, sucumbiram ao desafio. A falência do bloco soviético (e, deoutra forma, da opção de isolamento da China Popular) rompeu afronteira que restringia o movimento globalizador. Pela primeira vez

53 Alguns autores, discutindo os ciclos longos, procuraram identificar alterações no seu funcionamentoprovocadas pelas políticas keynesianas de regulação de mercados introduzidas desde os anos 30 nospaíses industriais e expandidas para o cenário internacional pelo Sistema de Bretton Woods. Sobre osciclos longos no pós-guerra, consultar Immanuel Wallerstein, O Capitalismo Histórico (São Paulo:Brasiliense, 1985) e Michal Kalecki, Crescimento e Ciclo Econômico Capitalista (São Paulo: Hucitec, 1983).

54 A crise que atingiu diferenciadamente os partidos socialistas e social-democratas europeus nos anos80 expressou a incapacidade das doutrinas intervencionistas em fazer face às novas necessidades. Emdeterminados países – como a Grã-Bretanha e a Alemanha Ocidental – a resultante foi a prolongadamarginalização política dos antigos partidos trabalhista e social-democrata. Em outros – como,notadamente, na França e na Espanha – os socialistas aderiram às teses liberais com sofreguidão,pondo em marcha reformas tão radicais quanto as do reaganismo americano ou as do thatcherismobritânico. Essa “convergência” das ideologias partidárias acabou por provocar, sob o comando deTony Blair, uma verdadeira reinvenção do Partido Trabalhista britânico, que funcionou como trampolimpara seu retorno a Downing Street.

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em toda a História, estão à disposição tanto os meios econômicos etecnológicos quanto as condições políticas e estratégicas para a unificaçãoda economia global. De certa forma, essa unificação já é realidade.

Se a globalização se referencia em fluxos de capitais e mercadorias,o processo de regionalização o faz na configuração de mercadostransnacionais, ou seja, na constituição de blocos geoeconômicos queagrupam, formalmente ou não, conjuntos de países.

Esse movimento, inaugurado pelo ambicioso projeto de integraçãoeuropéia deflagrado na década de 1950, encontra-se em plena marchatanto nas Américas quanto na Bacia do Pacífico. Sua dinâmicafundamenta-se tanto em medidas comerciais de abertura de mercadose remoção de barreiras alfandegárias reguladas por acordos pactuadosentre Estados como em processos de integração objetivos e nãoregulamentados, determinados pelos investimentos de capitais noexterior.

As relações entre os processos de globalização e regionalização sãocomplexas, comportando polêmicas e indagações prospectivas. Aoposição aparente entre os dois termos desaparece quando se tomamem conta as necessidades de concentração de recursos e a escala demercados postas pela atuação dos conglomerados econômicos em escalaglobal. De certo modo, a regionalização é uma plataforma para aglobalização.

Os Estados participam da criação das condições políticas para omovimento de globalização, ainda que seus agentes principais sejam asempresas.55 Além disso, são os Estados que, assumindo funçõesessencialmente normativas, estabelecem o leito comum de regimes eregulamentações no qual se realiza a competição.

55 “...a globalização financeira e produtiva vem se expandindo aceleradamente, ditada em grandeparte pelo aumento do número de empresas multinacionais – em 1970, eram 7 mil; em 1992, 37 mil– japonesas, européias e americanas que, desta forma, influenciam enormemente a política decomércio exterior, de investimentos, de tecnologia e, conseqüentemente, a política externa dos seusrespectivos Estados. Estes, nos planos bilateral e multilateral, têm sido defensores intransigentes dasconquistas feitas por suas grandes empresas e procuram garantir que as mesmas expandam aindamais seus mercados no exterior, e tentam, por todos os meios, reservar para elas parte substantiva deseus mercados nacionais e regionais.” (Paulo Guilherme Aguiar Cunha, “Indústria Nacional e PolíticaExterna”, Temas de Política Externa Brasileira II, vol. 1, op. cit., p. 354-355).

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Por outro lado, a cooperação entre conglomerados econômicos eblocos regionais no quadro da globalização não exclui mas, na verdade,supõe a multiplicação dos atritos e das divergências entre as partes.Globalização e regionalização são dimensões conflitivas de um únicoprocesso de unificação econômica do espaço mundial.56

Ordem de Bretton Woods

Nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, a administraçãoRoosevelt elaborou as linhas mestras da arquitetura estratégica eeconômica do pós-guerra. A ONU e as instituições econômicasmultilaterais foram imaginadas, simultaneamente, como dimensõescomplementares da política global de Washington.57

A Conferência de Bretton Woods foi precedida pelos planos Whitee Keynes, que se distinguiam quanto ao problema do financiamentodos saldos devedores nacionais. O Plano White, formulado em 1942pelo secretário-assistente do Tesouro americano, Harry D. White,focalizava sua atenção na estabilidade de preços internos e internacionais.Preconizava a criação de um fundo de estabilização das Nações Unidas,que deveria estabelecer bandas cambiais estreitas. Essas bandas sópoderiam ser alteradas pelo voto de 80% dos Estados integrantes dofundo. Na votação sobre as taxas de câmbio, cada Estado teria apenasum voto, o que configurava, do ponto de vista de Washington,surpreendente abdicação de soberania sobre sua própria moeda.

O plano americano repudiava o capitalismo nacional de comando,tal como praticado na década de 1930 pela Alemanha. Sustentava anecessidade de liberalização progressiva do comércio internacional, pela

56 Nesse sentido, é difícil concordar inteiramente com as teses sobre a “triadização” da economiamundial, entendida como uma moldura de cooperação básica entre os pólos econômicos europeu,japonês e americano que, se não exclui inteiramente as disfuncionalidades, as reduz à dimensão docircunstancial e do episódico. Um exemplo desse tipo de interpretação se encontra em RicardoPetrella, “Pax triadica”, Le Monde Diplomatique nº 464, novembro 1992, p. 32.

57 “As propostas de segurança (Nações Unidas) e econômicas (Bretton Woods) caminharam lado alado, “tão interdependentes quanto as lâminas de uma tesoura”, como as descreveria depois Morgenthau.Em conjunto, as propostas americanas projetavam a visão abrangente de uma comunidade políticacompartilhada no pós-Guerra, baseada em valores liberais de liberdade política (lei) e competiçãoeconômica (comércio). “A segurança econômica”, conforme observa Robert Pollard, significava que“os interesses americanos seriam melhor servidos por um sistema econômico aberto, em contrastecom um grande sistema militar em tempo de paz”.” (Henry Nau, O Mito da Decadência..., op. cit.,p. 97-98).

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redução negociada das barreiras tarifárias. Mas oferecia níveis modestosde financiamento externo para países desafiados por desequilíbrios nobalanço de pagamentos, de modo que o ajuste econômico desses paísesdependeria das suas políticas internas. Nesse aspecto, a propostaassemelhava-se penosamente ao antigo padrão ouro.

A principal singularidade do plano americano estava no papelprevisto para o Fundo de Estabilização, que poderia vetar, por decisãode uma maioria qualificada, medidas de política econômica nacionalconsideradas nocivas ao equilíbrio do balanço de pagamentos. Essedireito de ingerência inaudito não foi adotado em Bretton Woods. Maso Fundo de Estabilização imaginado por White funcionou como embriãoideológico do FMI.

O Plano Keynes, apresentado quase simultaneamente ao projetoamericano, tinha ênfases diferentes. No lugar do Fundo de Estabilização,previa uma união de compensação com direito de saque a descoberto,cujos montantes seriam definidos com base na participação dos Estadosno comércio global. Os saques se dariam em nova moeda de reservainternacional. Os governos nacionais poderiam promover mudançascambiais de até 5% ao ano. Mudanças maiores teriam que ser aprovadaspela União de Compensação, na qual os Estados Unidos e a Grã-Bretanhadisporiam de maioria de votos.

A concepção de Keynes não incluía obrigações de redução de tarifascomerciais e permitia, embora não estimulasse, medidas comerciaisdiscriminatórias. No fundo, ao contrário do Plano White, a propostabritânica admitia ajustes econômicos nacionais baseados na expansãoda oferta de moeda e escudados, até certos limites, atrás de tarifasprotecionistas e desvalorizações cambiais.

Não se deve exagerar as diferenças entre os dois Planos. No fundo,o que os distinguia mais claramente era a interpretação que faziam dosinteresses nacionais respectivos. O plano americano conferia fortespoderes de ingerência à autoridade internacional em relação aos paísesdevedores – e os Estados Unidos se imaginavam como permanentescredores. O plano britânico conferia latitude maior de decisões nacionaisaos devedores – e a Grã-Bretanha sabia que, durante a fase dereconstrução, seria uma devedora.

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Em Bretton Woods, chegou-se a um compromisso entre os doisprojetos. O FMI foi criado com recursos totais de 8,8 bilhões de dólares,muito menos que os 26 bilhões sonhados por Keynes para a União deCompensação. Por outro lado, os Estados Unidos acabaram por aceitarmuito menos ingerência internacional que a prevista pelo Plano White,possibilitando ajustes nacionais baseados na desvalorização cambial eno protecionismo.

O padrão dólar-ouro, que emergiu de Bretton Woods, expressavao compromisso e erguia-se sobre a ambigüidade. No acordo que criou oFMI, permitia-se uma mudança única de 10% na taxa de câmbio dospaíses-membro, desde que justificada como forma de corrigir“desequilíbrios fundamentais” no balanço de pagamentos. O Fundopoderia publicar um relatório criticando políticas dos países-membroque atentassem contra o equilíbrio das contas externas. White revelousua adesão ao compromisso ao qualificar o sistema monetário como“estável, ainda que moderadamente flexível” e comparou a flexibilidadecambial à oscilação normal do Empire State Building.58

No fim das contas, a ordem de Bretton Woods acabou refletindoa tríade de políticas de estabilidade de preços, mercados flexíveis ecomércio internacional tendente ao liberalismo que era advogada porWashington. Essa tríade de políticas foi, na prática, imposta à Europapelos acordos do Plano Marshall, que selaram a hegemonia estratégicaamericana.

A ordem de Bretton Woods fundamentou-se em inédito consensofavorável ao multilateralismo. A criação do sistema de paridades dólar/ouro e a edificação de organismos, como o Banco Internacional para aReconstrução e o Desenvolvimento (BIRD ou Banco Mundial) e o FundoMonetário Internacional (FMI), foi possível apenas pela combinação dostraumas e das destruições gerados pela Grande Depressão e pela guerra.

A moeda internacional imaginada por Keynes – e tambémesboçada por White – jamais saiu do campo das idéias. Sua existênciademandaria uma instituição internacional responsável pela emissão, oque restringiria a soberania de todos os participantes do sistema, inclusive

58 O Mito da Decadência..., op. cit., p. 105.

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os Estados Unidos, coisa inaceitável para Washington. Por razõessimilares, fracassou a proposta inicial de criação de uma OrganizaçãoInternacional de Comércio (OIC).

A Carta de Havana, que definia as funções do novo organismo,conferia direitos de voto iguais para todos os Estados, o que implicavasubmeter a política comercial americana a restrições intoleráveis aosolhos de Washington. No lugar da OIC, foi assinado em 1947 o Gatt,que também se baseava nos princípios do multilateralismo e doliberalismo, mas não era organização reconhecida pelo direitointernacional e funcionou sempre a partir de acordos consensuais.

As instituições de Bretton Woods desempenharam funçõesmarginais na fase da reconstrução do imediato pós-guerra. O FMIfuncionou como emprestador de porte relativamente pequeno até oinício da década de 1960, para só depois ampliar os Direitos Especiaisde Saque (SDRs). O Banco Mundial praticamente circunscreveu suaatenção à reconstrução durante as duas primeiras décadas de existência,até que finalmente se voltou para o financiamento do desenvolvimento.O Gatt realizou sua primeira negociação verdadeiramente global – aRodada Kennedy – entre 1964 e 1967.

OMC e multilateralismo

Apesar de suas limitações originais, o Gatt revelou-se um sucesso.As oito sucessivas rodadas de negociações multilaterais sob a sua égidepossibilitaram a redução continuada das tarifas e das práticasprotecionistas, contribuindo para a notável expansão do comérciointernacional nas décadas do pós-guerra.59

O último ciclo de negociações globais do Gatt, a Rodada Uruguai,iniciou-se em 1986 e foi concluído apenas em 1994, após seguidas crisese adiamentos. Apesar da forte limitação dos documentos finais, queficaram aquém das ambições que a nortearam, ela representou avançoincontestável no rumo de um comércio internacional mais aberto e,ainda, uma reafirmação da opção dos Estados pelo multilateralismo.

59 Uma análise das negociações do Gatt e da situação do comércio mundial antes da Rodada doMilênio encontra-se em “A Survey of World Trade: Where next?”, The Economist, October 3rd 1998.

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A criação da OMC, na Conferência de Marrakesh de 1994,sintetizou a percepção de que novo patamar havia sido atingido. Alémdo comércio de mercadorias, coberto pelo antigo Gatt, a OMC cobreacordos em serviços, investimentos e propriedade intelectual. A OMCé, formalmente, uma organização internacional e corporifica a retomadados fundamentos do projeto da OIC. Reconhecida como um tribunal,tem poderes para solucionar controvérsias entre os países-membro.

Diferentemente do FMI e do Banco Mundial, a OMC opera nabase da igualdade entre seus integrantes. Para que a Organização possaadministrar com poderes reais o sistema multilateral de comércio,instituiu-se o princípio da “aceitação em bloco” (single undertaking): sópodem ser membros da OMC os países que aceitarem todos oscompromissos, como um conjunto indivisível. A adesão das economiasem transição do antigo bloco soviético, bem como a admissão da China,conferiram universalidade à nova Instituição.

Entretanto, a dinâmica dos processos de globalização eregionalização, ao condicionar verdadeiras parcerias entre os Estados eos conglomerados econômicos nacionais, introduz continuamentedistorções no multilateralismo proclamado pelos acordos e reiteradopelos pronunciamentos oficiais. As práticas protecionistas e retaliatórias,a discriminação comercial e o comércio administrado bilateral convivemcom o envoltório multilateral consagrado formalmente pela OMC.

As potências econômicas e comerciais são responsáveis pela maiorparte das distorções no multilateralismo, pela razão simples de que têminfluência determinante sobre as trocas internacionais. A RodadaUruguai foi pródiga em exemplos, que envolveram notadamente aquestão dos subsídios agrícolas (praticados em larga escala pela UniãoEuropéia, pelos Estados Unidos e pelo Japão) e das barreiras protecionistasinformais (caso flagrante dos sistemas de distribuição de mercadoriasno Japão).

Os Estados Unidos, principal defensor das teses multilateralistase liberalizantes, revelam-se acentuadamente protecionistas no queconcerne a ramos vitais da sua indústria (por meio, por exemplo, dossubsídios indiretos à microeletrônica pelas encomendas de material

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bélico). A primeira administração Clinton, que desde a campanhaeleitoral definiu prioridades de política externa condicionadas aoincremento da performance comercial dos produtos nacionais, atentoupermanentemente contra o multilateralismo ao promover o comércioadministrado com o Japão e ao multiplicar as ameaças de aplicação dalegislação comercial retaliatória de que dispõe (Super 301) ignorandoas instâncias multilaterais de recurso.

A combinação dessas duas características da ordem comercialinternacional – multilateralismo regulado por consensos negociados epráticas comerciais discriminatórias utilizadas unilateralmente – parececonfigurar uma das tendências do horizonte próximo. A outra é amudança de ênfase setorial nas negociações comerciais multilateraisforçada pelas potências econômicas.

A Rodada Uruguai do Gatt produziu significativos acordos deredução de barreiras comerciais nos produtos industriais e, em particular,nos setores de alta tecnologia. Além disso, introduziu no sistemamultilateral de comércio os temas dos serviços e da proteção de patentese propriedade intelectual. Todos esses avanços beneficiam, de modo geral,os países do Norte.

Entretanto, as negociações para a remoção de barreiras e a reduçãode subsídios no setor agrícola, que interessam sobretudo aos países doSul, experimentaram avanços apenas decorativos. O Acordo de BlairHouse materializou um compromisso entre a União Européia e os EstadosUnidos que praticamente não tocou nos vultosos subsídios agrícolasdestinados a proteger os produtores dos países ricos.

Desde o desenlace daquele ciclo de negociações, Washingtonredirecionou o foco da sua política comercial para o setor de alta tecnologia(em especial as telecomunicações) e para o intercâmbio de serviços. Maisrecentemente, ganhou corpo a proposta de inclusão dos fluxos deinvestimentos diretos na esfera da OMC.

Contudo, a assimetria consagrada pelo Acordo de Marrakesh eratão evidente que a OMC se comprometeu, desde sua origem, a priorizaro comércio agrícola no ciclo seguinte de negociações multilaterais,previsto para começar em 2000. Mas a projetada Rodada do Milênioentrou em colapso no momento do estabelecimento da agenda básica,

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em função da resistência de europeus e americanos em honrar ocompromisso de Marrakesh. Assim, o protecionismo agrícola dos paísesricos tornou-se elemento de desestabilização do conjunto do sistemacomercial multilateral, colocando em risco o próprio futuro da OMC.

Do ponto de vista dos países em desenvolvimento, o desafioconsiste em evitar que a liberalização crescente do comércio internacionalavance prioritária ou exclusivamente nos setores que refletem asvantagens comparativas das potências econômicas globais. Esse desafioexige ampla articulação de alianças, a fim de garantir avançossignificativos nas negociações agrícolas e de vincular concessões nossetores de alta tecnologia à eliminação das barreiras contra as exportaçõesde aço, têxteis, calçados e outros produtos que refletem as vantagenscomparativas dos países em desenvolvimento.

A Rodada de Doha, lançada em substituição à projetada Rodadado Milênio, constituiu uma encruzilhada decisiva para o sistemacomercial multilateral. O acúmulo de frustrações legadas pela RodadaUruguai e aprofundadas na última década exige forte correção de rumo.Mas, evidentemente, essa correção depende, em grande medida, daatitude dos Estados Unidos e da União Européia.

O multilateralismo da OMC é encarado com desconfiança pelosEstados Unidos, que recusaram o projeto da OIC em nome damanutenção da sua plena soberania comercial. Na União Européia, oproblema não se encontra no princípio da soberania comercial, mas naforça dos interesses organizados em torno da Política Agrícola Comum(PAC). O prolongado impasse entre americanos e europeus, de um lado,e os países em desenvolvimento, de outro, tende a enfraquecer asfundações do sistema multilateral de comércio e abre caminho para afragmentação regional dos acordos comerciais.

9 – ISLÃ E OCIDENTE

O Islã compreende mais de um bilhão de fiéis. O mundomuçulmano estende-se, de Oeste a Leste, desde o Senegal, no Ocidenteafricano, até as Filipinas, nos limites do Oceano Pacífico, e de Norte aSul, desde o Cazaquistão, na Ásia Central, até a Tanzânia e a Indonésia,

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nos dois lados do Oceano Índico. Fora dos limites do mundo muçulmano,há significativas minorias islâmicas na Índia e na Europa. Na Europa,além das populações balcânicas convertidas há séculos, o Islã crescepela imigração proveniente da África e da Ásia Meridional.

Mundo muçulmano e mundo árabe são conjuntos geopolíticos eculturais parcialmente superpostos, porém distintos. O mundomuçulmano é mais vasto que o árabe. Os países com maior populaçãomuçulmana não são árabes: Indonésia, Paquistão, Índia e Bangladesh.

O islamismo é a religião predominante nos países árabes, e a culturamuçulmana é o alicerce histórico das sociedades árabes – mas o mundoárabe se define pela língua, não pela religião. O Corão constituiu ofundamento da unidade cultural dos árabes, pois promoveu a difusão dalíngua comum. O árabe corânico proporcionou a fusão étnica de centenasde clãs e tribos antes separados por dialetos e costumes distintos. Ainfluência da língua árabe se estende por todo o mundo muçulmano,pois as principais orações do islamismo devem ser pronunciadas em árabe.

As sociedades árabes atravessaram dois longos períodos dedominação externa. A partir do século XVI, na sua maioria, foramincorporadas ao Império Turco-Otomano. A decadência otomana abriucaminho para o imperialismo europeu, na África do Norte e, depois, noOriente Médio. No século XIX, a França estabeleceu seu domínio noMagreb, e a Grã-Bretanha, no Egito. Em 1912, a Itália ocupou a Líbia.Com a derrocada final do Império Turco-Otomano, na Primeira GuerraMundial, a Síria e o Líbano tornaram-se mandatos franceses, enquantoo Iraque, a Transjordânia (atual Jordânia) e a Palestina passaram acontrole britânico.

As potências européias criaram fronteiras coloniais e deprotetorados, dividindo os territórios sob seu domínio. Por essa via,surgiram os embriões dos Estados árabes contemporâneos. O domínioeuropeu gerou, como reação, o aparecimento de movimentosnacionalistas nas sociedades árabes. Esses movimentos, ainda queinfluenciados pela cultura muçulmana, não se identificavam pela religião.Os novos líderes e pensadores árabes desejavam a soberania política e amodernização econômica.

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A ORDEM INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA: TENDÊNCIAS

A conquista da soberania foi um processo longo, muitas vezesdoloroso. O Egito alcançou a independência em 1922, mas o poderverdadeiro continuou nas mãos dos britânicos até a derrubada do reiFarouk, em 1952. No Oriente Médio, as potências européias retiraram-se após a Segunda Guerra Mundial. No Magreb, o domínio francêsperdurou até o início da década de 1960.

Entretanto, nada contribuiu mais para aumentar o ressentimentodas sociedades árabes contra as potências ocidentais que a consolidaçãode um Estado judaico, povoado por imigrantes, na Palestina. Israel éum produto sui generis da expansão colonial européia. Como os EstadosUnidos, o Canadá e a Austrália, Israel formou-se pela colonização depovoamento deflagrada pela transferência em massa de populaçõeseuropéias. Sua singularidade reside no fato de que o elemento ideológicodesempenhou funções decisivas na dinâmica de constituição do Estadojudaico. O movimento sionista, criado por Theodor Herzl nos últimosanos do século XIX, materializou o nascimento do nacionalismo judaicocontemporâneo e forneceu as bases de organização e articulaçãointernacional para a imigração de judeus europeus direcionada para aPalestina.60

Os episódios cruciais na constituição de Israel – a transferênciada Palestina para mandato britânico e a Declaração Balfour de 1917, osconflitos com os palestinos na década de 1930, o Holocausto e o Planode Partilha da ONU de 1947 – assinalaram a última experiêncianeocolonial européia. Irônica e tragicamente, ela se desenrolouparalelamente à descolonização do Oriente Médio.

O Plano de Partilha conduziu à guerra, que terminou com a vitóriadas forças de Israel. A guerra de 1948-1949 deixou como legado umapopulação de refugiados palestinos no Oriente Médio e as sementes doprojeto de unidade árabe contra Israel. O projeto pan-arabista nasceuno Egito do pós-guerra e foi fertilizado pelos rancores oriundos dapresença britânica no Canal de Suez.

60 Sobre o papel diplomático cumprido por Herzl e pelos sionistas na política européia, ver MichelKorinman, “La diaspora juive, une géopolitique allemande” e “Herzl ou l’élaboration d’un projetgéopolitique”, Hérodote nº 53. Paris: La Découverte, 1989, p. 13-25 e 38-49.

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Ascensão e decadência do pan-arabismo

O Egito nasserista orientou-se para a modernização econômica,firmando acordos de cooperação com a União Soviética. A construçãoda hidrelétrica de Assuã, no Nilo, constituiu o marco dessa políticamodernizante. Mas o nacionalismo nasserista voltou-se, sobretudo, paraa supressão da influência européia no país e a difusão da idéia da unidadepolítica dos árabes.

O conflito árabe-israelense situa-se na intersecção de doisprocessos: o do neocolonialismo europeu e o da descolonização, de umlado, e o da Guerra Fria, de outro. Entretanto é, crucialmente, produtodo entrechoque do onacionalismo judaico com os nacionalismos árabes.

A ascensão de Nasser assinalou a transição entre o processo dadescolonização e o enquadramento do subsistema de Estados do OrienteMédio no sistema internacional da Guerra Fria. A aproximação entre oEgito e a União Soviética soldou a aliança estratégica entre os EstadosUnidos e Israel. A Guerra de Suez, em 1956, marcou a ossificação dasalianças antagônicas na região, malgrado a recusa de Washington emprestar assistência à aventura colonial franco-britânica.

O fundamento do pan-arabismo consistia na noção da existênciade uma única nação árabe, fragmentada pelo imperialismo europeu. Aunidade política possibilitaria a reunião dos recursos dos diferentes paísesárabes e a configuração de uma potência econômica. O petróleoabundante da região do Golfo Pérsico e a vasta mão-de-obra disponívelem países como o próprio Egito serviriam como plataforma para orenascimento do brilho dos árabes.

A Guerra de Suez deixou marcas profundas, tanto no sistemainternacional quanto na política árabe. A humilhante retirada anglo-francesa assinalou o “canto de cisne” das velhas potências européias e asua definitiva subordinação às regras da bipolaridade da Guerra Fria.Nasser emergiu como ponto de encontro das aspirações árabes derenascimento geopolítico e econômico.

O pan-arabismo fez da oposição a Israel sua principal bandeirageopolítica. Israel sintetizava, aos olhos dos árabes, a opressão colonialeuropéia e, de modo geral, a arrogância imperial do Ocidente. Mas o

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desastre militar na Guerra dos Seis Dias, em 1967, materializado naocupação de territórios palestinos, sírios e egípcios, constituiu um golpefatal nas aspirações de unidade árabe.

Depois da morte de Nasser, em 1970, o pan-arabismo diluiu-senas mãos do sucessor, Anuar Sadat. A retomada da coligação antiisraelensefoi aceita pela Síria, mas não pela Jordânia. Na Guerra de Outubro (oudo Yom Kippur), em 1973, apesar da derrota, a coligação árabe reveloumaior capacidade militar e, no início do conflito, chegou a controlarparte dos territórios ocupados por Israel. Mas o cessar-fogo assinalou aderrocada da liderança egípcia. Nos anos seguintes, Sadat rompeu acooperação entre o Cairo e Moscou, construiu firme aliança com Washingtone, finalmente, assinou a paz em separado com Israel. Os Acordos deCamp David, concluídos em 1979, restituíram a Península do Sinai aoEgito e determinaram prolongado congelamento do status quo regional.

Fora do Egito, o nacionalismo árabe e o pan-arabismoexpressaram-se pelo Partido Baath, que tinha pretensões internacionais.O Baath alcançou o poder na Síria e no Iraque, mas paradoxalmenteessas vitórias contribuíram para diluir o apelo do pan-arabismo. Iraquee Síria tornaram-se pólos concorrentes e rivais do baathismo, a pontode Damasco ter expressado apoio ao Irã, um país exterior ao mundoárabe, na guerra contra o Iraque, nos anos 80.

O esgotamento do pan-arabismo deveu-se, em grande parte, aofracasso da modernização econômica, que não foi capaz de amenizaras profundas desigualdades sociais nas sociedades árabes. Mas,sobretudo, revelou que o mito da nação árabe não tinha força suficientepara sobrepujar os interesses geopolíticos divergentes dos Estados árabes.Os “Estados petrolíferos” do Golfo Pérsico, liderados pela Arábia Saudita,jamais aceitaram trocar seus laços com as grandes potências ocidentaispelo projeto da união com o populoso e pobre Egito. A disputa pelaliderança árabe – que envolveu Egito, Síria, Iraque e até mesmo Líbia –lançou ao descrédito os grandiosos discursos pan-arabistas.

Reviravolta fundamentalista

Os fundamentos corânicos do Islã não prevêem a separação entrereligião e política. Toda a comunidade de fiéis constituiria uma só

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“nação”: a umma. O califa, líder da comunidade islâmica, é um chefereligioso e político. A unidade entre as esferas da religião e da políticamanifesta-se no plano jurídico: segundo a tradição, o corpo de leis dassociedades muçulmanas deve se assentar na Sharia, que condensa osprincípios do Corão e da Suna sob a forma de legislação civil.

No Ocidente, a reforma e o iluminismo estabeleceram o princípioda separação entre política e religião. O novo princípio difundiu-se eultrapassou os limites das sociedades ocidentais. No Império Turco-Otomano, que então dominava grande parte do mundo muçulmano,já não existia unidade absoluta entre as duas esferas do poder: o sultãoexercia a liderança política; o califa funcionava como líder religioso.

Apesar da separação parcial entre os poderes político e religioso, ocalifa turco simbolizou a unidade da umma até o início do século XX.Contudo, com a derrocada final do Império Turco-Otomano e aproclamação da república, em 1923, a Turquia transformou-se numEstado laico. O cargo de califa ficou vago e, para todos os efeitos, aumma desagregou-se.

O fundamentalismo islâmico contemporâneo emergiu no vácuocriado pelo fracasso do pan-arabismo. A humilhação política e a pobrezaeconômica funcionaram como seus motores. O Ocidente é o inimigo,representado pelos Estados Unidos e, regionalmente, por Israel. Arestauração da umma – ou seja, a recuperação das glórias perdidas deum passado mítico – constituiu sua finalidade.61

Em todo o mundo muçulmano, essas idéias repercutiram eserviram como programa para novas correntes políticas, que contestama subserviência dos governos ao Ocidente, rejeitam a modernidade eexigem a subordinação da política à religião. No Egito, a IrmandadeMuçulmana voltou-se contra Nasser, e seu principal líder foi preso e

61 A obra Sinalizações na Estrada, de Sayyid Qutb, publicada no Cairo em 1964, formulou as basesdo fundamentalismo islâmico contemporâneo. Nela, está escrito: “A liderança do homem ocidentalno mundo humano está chegando ao fim, não porque a civilização ocidental esteja em bancarrotamaterial ou tenha perdido sua força econômica ou militar, mas porque a ordem ocidental já cumpriusua parte, e não mais possui aquele acervo de ‘valores’ que lhe deu sua predominância (...).A revolução científica concluiu seu papel, como concluíram o ‘nacionalismo’ e as comunidadesterritorialmente limitadas que surgiram em sua época (...). Chegou a vez do Islã.” (Citado em AlbertHourani, Uma história dos povos árabes, São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 442).

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executado em 1966. O assassinato de Sadat, em 1981, foi perpetradopor um dos grupos radicalizados que se formaram a partir da IrmandadeMuçulmana.

Do Egito, o centro do fundamentalismo deslocou-se para o Irã. ARevolução Xiita de 1979, dirigida pelo aiatolá Khomeini, gerou umarepública islâmica. O Estado iraniano, na primeira década revolucionária,enxergou-se como pólo irradiador do despertar do Islã. Na guerra contrao Iraque, o Irã procurou levantar a maioria xiita iraquiana. Tambémpassou a financiar o Hezbollah (“Partido de Deus”), que combateu, noLíbano, a ocupação militar israelense. Mas a influência iraniana esbarrounas singularidades do país, persa e xiita, que o separam dos muçulmanossunitas e do mundo árabe.

O fundamentalismo disseminou-se no Oriente Médio e na Áfricado Norte, sob a forma de partidos e grupos oposicionistas, associados aredes de caridade religiosa. Na Argélia, a Frente Islâmica de Salvação(FIS) foi banida depois de vencer as eleições gerais de 1992. Na Palestinaocupada, o Hamas desafiou a autoridade de Yasser Arafat, organizouatentados suicidas e se apresentou como liderança alternativa decombate a Israel.

O islamismo político, sob forma mais moderada, impregnou atémesmo a Turquia. Desde a fundação da república, por Mustafá KemalAtaturk, na década de 1920, a Turquia tornou-se um Estado laico eoptou pelo caminho da modernização e da ocidentalização. O ingressona Otan consolidou a posição turca no dispositivo estratégico doOcidente. A Turquia controla os estreitos de Bósforo e Dardanelos.Participa, simultaneamente, da Europa e do Oriente Médio. O valorestratégico da Turquia explica a pressão insistente de Washington sobreos aliados europeus pela admissão do país na União Européia.

A Arábia Saudita é o mais importante centro de difusão doislamismo político contemporâneo. Esse fato constitui profundoparadoxo, pois o Estado saudita se tornou, desde o final da SegundaGuerra Mundial, o principal aliado dos Estados Unidos na região doGolfo Pérsico e, desde os “choques de preços” do petróleo, o parceirocrucial na regulação do mercado mundial do petróleo.

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A Casa de Saud firmou, no final do século XVIII, um pacto com aseita islâmica puritana dos Wahabitas. A monarquia criada por Ibn alSaud nos primeiros anos do século XX alicerçou-se sobre o pacto dadinastia com a seita puritana. Durante décadas, a Casa de Saudconservou posição dominante no pacto, e a seita puritana exigiu apenasa manutenção das suas prerrogativas no âmbito religioso. Contudo,esse equilíbrio começou a ser corroído nas décadas de 1970 e 1980, quandoa monarquia deu guarida aos militantes da Irmandade Muçulmanaperseguidos no Egito.

Oferecendo proteção e cargos nas esferas religiosa e educacionalaos militantes fundamentalistas, a monarquia saudita pretendiacontrabalançar a influência do nacionalismo árabe e reforçar a sua própriaposição no mundo muçulmano. O Islã “verdadeiro” deveria funcionarcomo alternativa ao pan-arabismo modernizante de países como o Egito,o Iraque e a Síria. Mas a manobra resultou, inesperadamente, na politizaçãodo Wahabismo e, depois, na emergência de uma oposição fundamentalistaà aliança entre a Casa de Saud e os Estados Unidos.

Numa primeira etapa, a politização do Wahabismo pareceu servirtanto à monarquia saudita quanto a Washington. Sob os auspícios daseita puritana, foram recrutados e armados os “guerreiros da fé”, quecombateram a União Soviética em solo afegão. O dinheiro sauditatambém financiou os muçulmanos bósnios que resistiram aos sérvios,os guerrilheiros da Chechênia que desafiaram a Rússia e os separatistasalbaneses de Kosovo. Nos tempos da guerrilha anti-soviética noAfeganistão, Osama Bin Laden teve o apoio da CIA e dos mais altoscírculos da dinastia saudita. Uma década depois, o Taleban chegou aser visto como sócio potencial das empresas petrolíferas americanas queprojetavam construir dutos em território afegão.

Na segunda etapa, os “guerreiros da fé”, voltaram-se contra amonarquia saudita. A ruptura derivou do apoio da Arábia Sauditaaos Estados Unidos na Guerra do Golfo e da instalação de basesamericanas permanentes em território saudita. O impacto dessasdecisões repercutiu em todo o mundo islâmico e, especialmente, nospaíses árabes, numa conjuntura marcada pela frustração dos esforçosde paz na Palestina.

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Osama Bin Laden acusou a monarquia saudita de sujeitar-se àpolítica mundial dos “infiéis”, declarou a jihad contra os Estados Unidose instalou-se no Afeganistão. Paralelamente, avolumaram-se asmanifestações subterrâneas, entre os Wahabitas, de oposição à Casa deSaud. A monarquia, encostada contra a parede, foi obrigada a reprimiras lideranças mais radicalizadas do islamismo político e, ao mesmotempo, a aceitar tacitamente o financiamento da Al-Qaeda a partir deramos da própria família real.

Quinze dos dezenove terroristas que praticaram os atentados de11 de setembro de 2001 eram sauditas. Depois dos atentados, aadministração Bush exigiu de Riad o desmantelamento da rede queconecta os Wahabitas a Bin Laden, o que implicaria a dissolução doalicerce político do Estado saudita. A incapacidade da Casa de Saud derealizar essa missão e a crise política do Estado saudita impulsionaramWashington a desencadear a operação de derrubada do regime deSaddam Hussein. Essa operação teve, portanto, a finalidade de evitar adesestabilização da hegemonia americana na região do Golfo Pérsico.

Washington assumiu riscos significativos ao promover a operaçãomilitar no Iraque. De um lado, abriu uma fenda profunda na unidadedo Ocidente e da Otan. De outro, complicou o panorama geopolíticojá bastante complexo do Oriente Médio, arriscando provocar aimplosão territorial do Iraque. A estabilidade turca foi potencialmentecomprometida, pois a eliminação de Saddam Hussein reativa onacionalismo curdo no Iraque e na Turquia. Mas o espectro da turbulênciana Arábia Saudita foi percebido em Washington como ameaça direta àvitalidade estrutural da economia americana. Assim, sob a ótica daadministração Bush, o interesse nacional dos Estados Unidos exigia aremoção do regime iraquiano.

O renascimento fundamentalista não é um fenômeno inerenteao Islã. Suas raízes profundas estão, evidentemente, fincadas no solode uma tradição cultural que não sofreu nada comparável ao impactoque tiveram a reforma e o iluminismo na formação do Ocidente. Massua dinâmica política está conectada ao fracasso do nacionalismo árabe,aos ressentimentos criados pela política mundial de Washington e aoconflito nacional entre Israel e os palestinos.

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Questão palestina

O impulso inicial, nacional e sionista, da colonização depovoamento propagou-se no tempo. As guerras de 1948-1949 e 1967assinalaram os momentos mais importantes do expansionismoisraelense, cujas raízes se encontram nas implantações pioneiras dasprimeiras décadas do século.62

A Guerra de Outubro, em 1973, ampliou as bases sociais para aestratégia de colonização. A marcha dos acordos de paz com o Egito e asubstituição dos trabalhistas pelos conservadores do Likud, em 1977,libertaram a estratégia de colonização dos argumentos iniciais desegurança. O projeto do Grande Israel fez seu caminho, aparecendocomo continuação natural da tradição expansionista do sionismo dostempos heróicos.63

O Acordo de Paz entre Israel e a Organização para a Libertaçãoda Palestina (OLP), negociado em Oslo e assinado em setembro de 1993em Washington, representou uma reviravolta histórica. Ele sinalizou apossibilidade de interrupção do movimento expansionista donacionalismo judaico inaugurado há quase um século e de ruptura dalógica de confronto embutida na ausência do reconhecimento recíprocoentre as nações israelense e palestina.

O processo de paz, complexo e frágil, arrastou-se durante quaseuma década, até entrar em colapso. No lado palestino, os termos daautonomia palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza tornaram-seobjeto de críticas acerbas, veiculadas tanto por dissidências da OLP comopor islâmicos do Hamas. No lado israelense, acelerou-se a polarizaçãoentre os partidários da paz e os do Grande Israel. O assassinato doprimeiro-ministro Itzhak Rabin em novembro de 1995 assinalou o zêniteda radicalização na política interna de Israel. A campanha eleitoral de1996, precedida por uma série de atentados terroristas do Hamas,

62 Para uma análise histórica e geográfica profunda do estabelecimento sionista na Palestina, veja a obrade Meron Benvenisti, Sacred Landscape (Berkeley-Los Angeles: University of California Press, 2000).

63 Sobre esse processo e o impacto geopolítico da estratégia de colonização, consultar Nadia Benjelloun-Ollivier, Israel-Palestine: le nombre et l’espace; Michel Foucher, Israel-Palestine: quelles frontières; MichelKorinman, Israel-Palestine-Jordanie: trois scénarios israéliens; Peter Demant, Les implantations israéliennesdans les territoires occupés, Hérodote nº 29-30, Paris: La Découverte/Maspero, p. 83-186.

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conduziu à derrota dos trabalhistas e ao virtual congelamentodo processo de paz durante o governo de Binyamin Netanyahu(1996-1999).

A entidade autônoma palestina foi definida pelos acordos deOslo I (1994) e Oslo II (1995), retomados e desenvolvidos pelos acordosde Wye Plantation (1998). Segundo os acordos, uma Zona A, limitadaàs principais aglomerações urbanas palestinas, foi transferidaplenamente à autoridade palestina. Uma Zona B, abrangendo grandeparte dos povoados palestinos e das áreas circundantes, foi declaradade controle misto, com administração civil palestina e segurança internaisraelense. Uma Zona C, abrangendo a maior parte dos territórios e,notadamente, o vale do Rio Jordão e uma larga faixa limítrofe entre aCisjordânia e Israel, permaneceu sob controle integral de Israel.

O estatuto futuro de Jerusalém, símbolo nacional palestino ecapital do Estado almejado pela OLP, sequer foi debatido. A cidadesagrada de muçulmanos, judeus e cristãos abriga atualmente maioriapopulacional israelense, gerada pelo deslocamento de 155 mil colonosjudeus para sua parte oriental. Seus limites administrativos foramremodelados e expandidos, de forma a abranger uma série deimplantações periféricas israelenses.

O método de Oslo, da “paz por etapas”, fracassou sob o peso dosradicalismos israelense e palestino. A Autoridade Palestina, instaladapela OLP nas áreas autônomas, revelou-se incapaz de conter osextremistas islâmicos, que promoveram campanhas de atentadossuicidas nas cidades de Israel. A direita israelense, agrupada no Likud eem partidos religiosos, jamais se conformou com a perspectiva dedevolução dos territórios ocupados.

As esperanças e a desilusão geradas a partir do processo de paz deOslo modificaram, para sempre, o estatuto da questão palestina. Aresistência palestina transcendeu os limites de luta nacional e atingiu acondição de símbolo de alcance global, fertilizando os ressentimentosem todo o mundo árabe e muçulmano. Sob o pano de fundo da violênciado Estado israelense, os terroristas suicidas adquiriram, aos olhosde árabes e muçulmanos, a aura de mártires. A aliança entre Israel e

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os Estados Unidos passou a funcionar como foco de agitação dofundamentalismo islâmico, tanto no mundo muçulmano quanto noOcidente.

Quando se encerrava a segunda Guerra do Golfo, em 2003,Washington divulgou novo “roteiro da paz”, que prevê a formação deum Estado Palestino antecedido pelo fim dos atentados palestinos contraIsrael e pelo congelamento da colonização israelense nos territóriosocupados. Em princípio, a nova proposta tem o aval da União Européiae o da Rússia.

O “roteiro da paz” sofreu, desde seu anúncio, contestações oficiaisisraelenses. Ele não fornece respostas para as questões cruciais dasfronteiras e do estatuto de Jerusalém. Mas revela que a administraçãoBush volta a conferir importância à questão palestina, na conjunturaaberta pela ocupação militar do Iraque e dramatizada pelo prosseguimentodas ações terroristas perpetradas pelo fundamentalismo islâmico.

10 – INDOSTÃO NUCLEARIZADO

A rivalidade regional entre a Índia e o Paquistão tem suas raízesnas circunstâncias da descolonização, que conduziu à bipartição daUnião Indiana segundo critérios político-religiosos. A região daCaxemira, encravada na faixa de fronteiras do Himalaia, tornou-se ofoco principal dessa rivalidade.

A bipartição da União Indiana, baseada no Plano de Mountbatten,foi decidida pelo Parlamento britânico em julho de 1947. A partilhacorrespondia às aspirações concorrentes da Liga Muçulmana de AliJinna e do Partido do Congresso de Jawaharlal Nehru, embora tivesse aoposição decidida de Mohandas Gandhi, que previa a tragédiasubseqüente. As fronteiras entre a Índia e o Paquistão, traçadas emLondres, separando as regiões do Punjab e de Bengala, tornaram-secicatrizes geopolíticas e nacionais que ainda não pararam de sangrar.

Nos meses seguintes às independências, confirmaram-se asprevisões de Gandhi. O desencadeamento de conflitos sectários provocou

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vasto êxodo, que conduziu 8,6 milhões de refugiados paquistaneseshindus para a Índia e, no sentido inverso, 2,7 milhões de refugiadosmuçulmanos para o Paquistão e para o antigo Paquistão oriental (atualBangladesh). A tormenta deixou como saldo cerca de um milhão devítimas fatais.

Em outubro de 1947, a Caxemira tornou-se palco da primeiraguerra indo-paquistanesa. Confrontado com uma invasão de forçastribais paquistanesas, o marajá hindu que governava a regiãomajoritariamente muçulmana optou pela adesão à Índia, emborapreferisse a independência. Uma resolução do Conselho de Segurança,em abril de 1948, exigiu a retirada das forças paquistanesas e deliberousobre um futuro plebiscito regional para escolha popular entre a adesãoà Índia ou ao Paquistão.

O plebiscito jamais foi realizado, e a Caxemira passou a refletir oantagonismo entre os princípios de construção nacional dos Estadosrivais. O Paquistão ergueu-se sobre o princípio das “duas nações”,segundo o qual a religião define as identidades nacionais distintas depaquistaneses e indianos. Esse princípio fundamenta a reivindicaçãosobre o território da Caxemira. O princípio nacional indiano assenta-sesobre a precedência da língua e da cultura. A ruptura da regiãomuçulmana de Bengala com o Paquistão e a constituição, em 1971, deBangladesh, são apresentadas pela Índia como provas da falácia doprincípio identitário religioso.

Na primeira metade da década de 1960, outras duas guerrasexplodiram na Caxemira. O estatuto regional atual é produto dessesconflitos. Uma linha de controle separa o Estado indiano de Jammu eCaxemira da Caxemira paquistanesa.

A China, que bateu as tropas indianas em 1962, controla o AksaiChin, no nordeste da região, e pequena faixa cedida pelo Paquistão. AÍndia considera toda a região como parte integrante de seu território. OPaquistão considera-se um “país incompleto”, enquanto não conseguira anexação da Caxemira. Oficialmente, a China aceita discutir o futurodas áreas que controla, mediante acordo bilateral prévio entre NovaDelhi e Islamabad. Entre os habitantes da região, uma pesquisa

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independente de opinião conduzida em 1995 apurou larga maioriafavorável à independência.64

O cisma sino-soviético de 1960 repercutiu no Indostão,cristalizando os alinhamentos e as rivalidades em escala continental. AÍndia reforçou seus laços de cooperação científica, tecnológica eeconômica com a União Soviética, enquanto o Paquistão estabeleceualiança duradoura com a China, que foi decisiva para sua capacitaçãonuclear.

O desenvolvimento do programa nuclear chinês, até o testeatômico de 1964, impulsionou os esforços indianos para a construçãode um artefato atômico. Em 1974, a Índia conduziu o seu primeiroteste nuclear e definiu a sua política, que consiste na combinação da“dissuasão mínima” e da doutrina de uso do arsenal nuclear apenas emresposta a uma agressão nuclear prévia. No plano internacional, NovaDelhi assumiu a linha de frente da crítica ao Tratado de Não-ProliferaçãoNuclear (TNP), dinamizando-a por sucessivas propostas voltadas aodesarmamento nuclear global.65

Testes nucleares e TNP

A implosão da União Soviética e o fortalecimento econômicoda China geraram novas percepções de insegurança na Índia.Concomitantemente, na década de 1990, o sistema político indianoentrou em convulsão, devido à ruptura da hegemonia do Partido doCongresso e à ascensão da corrente hindu ultranacionalista agrupadano Bharatiya Janata Party (BJP). Esse foi o pano de fundo dos cinco

64 A Índia perdeu, por suas próprias faltas, os “corações e mentes” dos habitantes da Caxemira. Nostempos de Nehru, o mais popular líder regional, xeque Muhammad Abdullah, preferia o secularismoindiano ao sectarismo religioso paquistanês. Mas quando o muçulmano Abdullah flertou com a idéiada independência, conheceu a prisão na Índia. Mais tarde, seu filho, Farooq, participou do ministériode Indira Gadhi, até ser rudemente afastado.

65 “India was the first to call for a ban on nuclear testing in 1954, for a nondiscriminatory treaty onnonproliferation in 1965, for a treaty on nonuse of nuclear weapons in 1978, for a nuclear freeze in 1982,and for a phased program for complete elimination of nuclear weapons in 1988. Unfortunately, most ofthese initiatives were rejected by the nuclear weapons states, who still consider these weapons essential fortheir own security. What emerged, in consequence, has been a discriminatory and flawed nonproliferationregime that damages India’s security.” (Jaswant Singh, “Against Nuclear Apartheid”, Foreign Affairs,September/October 1998, p. 44).

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testes nucleares conduzidos pela Índia no deserto do Rajastão, emmaio de 1998.

Mas os testes indianos constituíram, mais especificamente, umaresposta à evolução dos tratados e dos regimes internacionais voltadosà não-proliferação nuclear. Em 1995, o TNP foi estendido indefinida eincondicionalmente. Em 1996, após uma série de explosões chinesas,foi assinado o tratado de banimento de testes nucleares. Essa evoluçãoassinalou o fracasso da diplomacia indiana de desarmamento nucleargeral, reafirmou o status quo discriminatório e, sobretudo, ameaçouampliar a vantagem estratégica da China diante da Índia.

Embora orientadas para a edificação de dissuasão mínima contraa China, as provas indianas provocaram a imediata reação do Paquistão.Os seis testes paquistaneses no Baluquistão vitimaram todo o edifíciode não-proliferação erguido durante décadas e coroado pelo tratado debanimento de testes. Pela primeira vez, Estados exteriores ao Conselhode Segurança alçavam-se, abertamente, à condição de potênciasnucleares.66

Em meados de 1999, as tensões crescentes na Caxemiradegeneraram, mais uma vez, em hostilidades abertas. Militantesmuçulmanos, apoiados mais ou menos abertamente pelas ForçasArmadas e pelos organismos de segurança do Paquistão, avançaramatravés da linha de controle e ocuparam posições na porção indiana daregião. A Índia escalou o conflito, lançando ataques aéreos e de artilhariapesada. Durante algumas semanas, a ameaça de um desfecho nuclearpairou sobre os dois países, mas o enfrentamento terminou com aretirada das forças apoiadas pelo Paquistão, sob um cessar-fogo tácitoda Índia. A prudência da China, que preferiu manter-se a distância daposição de Islamabad, abrindo caminho para eventual descongelamentodas relações com Nova Delhi, parece ter desempenhado papel decisivono recuo paquistanês.

66 Em 1999, o TNP abrangia 182 Estados não-nucleares, além das cinco potências nucleares doConselho de Segurança. Apenas quatro Estados – Índia, Paquistão, Israel e Cuba – mantinham-se forado regime global. Mas, como observou o subsecretário de Estado americano, Strobe Talbott, “sincethe South Asian tests, several non-nuclear-weapons states have noted pointedly that in joining the NPT, theywere accepting the existence of five states that had declared nuclear arsenals, not seven. If efforts to hold theline against further erosion fail, last year ’s tests could spark a chain of withdrawals from the NPT.”(“Dealing with the Bom in South Asia”, Foreign Affairs, March/April 1999, p. 114).

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O desenlace representou humilhação para a política externapaquistanesa, aprofundou a crise institucional no país e preparou terrenopara a tomada do poder pelos militares. Mais importante que isso, oeco da artilharia nas alturas do Himalaia revelou a extrema fragilidadede toda a arquitetura estratégica asiática, que não está adaptada àexistência das duas novas potências nucleares.

A Doutrina Bush tem impacto direto no conflito indo-paquistanês.O governo paquistanês foi forçado a abandonar o Taleban e apoiar acampanha americana no Afeganistão, após os atentados de 11 desetembro de 2001. A decisão de alinhamento a Washington colocouIslamabad em rota de colisão com os partidos islâmicosfundamentalistas e, até certo ponto, com seus próprios serviços secretos,que treinam os separatistas da Caxemira.

Se a posição paquistanesa foi fragilizada pela “guerra ao terror”,a da Índia ganhou nova força e alento. Em dezembro de 2001, duranteos bombardeios americanos no Afeganistão, militantes fundamentalistasislâmicos praticaram sangrento atentado contra a sede do Parlamentoindiano, em Nova Delhi. A reação indiana consistiu em utilizar o argumentoda “guerra ao terror” para exigir que Islamabad reprimisse os partidosfundamentalistas paquistaneses. Encurralado, o Governo paquistanêsnão encontrou alternativa senão prender centenas de militantes islâmicose proibir o funcionamento de dois grupos extremistas.

A evolução recente do conflito indo-paquistanês combina-se coma “guerra ao terror”, produzindo lento terremoto nas estruturas quesustentam o Estado paquistanês. O desenlace da crise no Paquistãorepercutirá sobre a arquitetura estratégica do Indostão e da Ásia Centralmuçulmana.

11 – BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

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1 – ESTADOS UNIDOS E AMÉRICA LATINA

No alvorecer do século XX, novo conjunto de tecnologiasdeflagrava a terceira onda da industrialização. O uso do petróleo comocombustível e a invenção do motor a combustão interna originavam aindústria automobilística. Nascia, ao mesmo tempo, a modernaindústria química. A eletricidade tornava-se a fonte de energia dasfábricas. Os motores elétricos e, com eles, a linha de montagempropiciavam um salto extraordinário na produtividade do trabalho.Simultaneamente, a difusão do telex e a do telefone revolucionavam ascomunicações.

A maturidade industrial britânica foi atingida muito cedo, emmeados do século XIX. Os Estados Unidos, que só então decolavampara o mundo industrial, não precisaram sequer de meio século paraalcançar a maturidade. A industrialização retardatária americananutriu-se de condições históricas e geográficas singulares: a ausência deum passado feudal, as enormes potencialidades agrícolas do território ea imigração em massa. Tais condições possibilitaram um surto dedesenvolvimento desconhecido nos demais países industriais. A etapado consumo de massa foi atingida pelos Estados Unidos já na décadade 1920. Na Europa industrial, inclusive na pioneira Grã-Bretanha, essaetapa só veio a ser alcançada mais tarde, pouco antes ou logo depois daSegunda Guerra Mundial.

O terceiro ciclo de inovações da economia industrial entrou nasua fase descendente após o crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.Depois da Segunda Guerra Mundial, o crescimento foi retomado sobrenovas bases tecnológicas. A indústria eletrônica criou centenas de novosprodutos e conferiu mais um impulso à produção automobilística. Odesenvolvimento da petroquímica gerou a indústria de plásticos e fibrassintéticas. A aeronáutica civil beneficiou-se dos avanços na aviaçãomilitar, produzindo mais uma revolução nos transportes.

Ao longo dos dois ciclos longos do século XX, os Estados Unidosfirmaram-se como a principal potência econômica mundial. Já em 1900,a produção industrial americana ultrapassava a britânica e, nas vésperasdo crash de 1929, atingia dianteira folgada sobre os concorrentes

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europeus. Mas supremacia americana atingiu o seu ápice no imediatopós-guerra, quando o produto das cinco potências econômicas européiase do Japão somados não atingia o da potência hegemônica. A quartaonda de inovação desenvolvia-se, em escala ainda mais pronunciadaque a terceira, como verdadeira “onda americana”.

O poderio sem precedentes dos Estados Unidos catalisou areconstrução da economia internacional. Na Conferência de BrettonWoods, o dólar tornou-se a moeda do mundo. O Fundo MonetárioInternacional (FMI) e o Banco Mundial – criados para regular os fluxosde capitais na economia internacional – tinham nos Estados Unidos seuprincipal acionista.

Desde a década de 1960, a supremacia americana conheceu lentaerosão. Como resultado da reconstrução européia e da japonesa, ariqueza redistribuiu-se geograficamente, gerando o aparecimento depólos econômicos concorrentes. A economia mundial deixou de ter umúnico centro, ainda que o dólar continuasse sendo a moeda de referênciadas trocas mundiais.

A erosão da supremacia americana acompanhou a fasedescendente do quarto ciclo industrial. Mas ela refletiu, em primeirolugar, a progressiva unificação européia, que reduziu a participação daeconomia dos Estados Unidos no mercado europeu. A política agrícolacomunitária diminuiu o controle americano sobre os mercados de cereaise alimentos em todo o mundo. A acumulação de capitais na AlemanhaOcidental, na França, na Grã-Bretanha e na Itália restringiu a dependênciade investimentos americanos característica do imediato pós-guerra.

Em segundo lugar, a liderança americana conheceu o desafiorepresentado pelo “milagre japonês” dos anos 60. Visto inicialmente comdesdém, como “fabricante de rádios de pilha”, o Japão firmou-se comoprincipal concorrente dos Estados Unidos no mercado mundial. Asmercadorias japonesas, produzidas a custos cada vez menores,invadiram setores amplos do mercado consumidor americano.

Ao longo de três décadas, o desafio japonês deixou de ser umespantalho para tornar-se realidade palpável, inscrita nas estatísticas.Em 1970, o PIB do Japão não chegava à quinta parte do americano;

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atualmente, correspondente a cerca de 35%. Em 1970, o PIB per capitajaponês representava 40% do americano; atualmente, está próximode 80%.1

Na década de 1990, enquanto se acelerava o ciclo de inovações darevolução tecnocientífica, registrou-se novo dinamismo da economiaamericana. As taxas de crescimento do produto superaram as da UniãoEuropéia e, por margem ainda maior, as do Japão. As empresas do país,reestruturadas e mais competitivas, reassumiram o controle sobre amaior parte dos setores de alta tecnologia. O ritmo acelerado de criaçãode empregos e a manutenção de índices de inflação baixos contribuírampara sustentar as expectativas otimistas. Entre os analistas econômicos,tornou-se comum profetizar novo “século americano”.2

As amargas teses “declinistas” da década de 1980 foram, hoje sesabe, produto do contraste entre a relativa estagnação conjuntural daeconomia americana e a prosperidade japonesa, impulsionada pela bolhafinanceira especulativa. É provável que o profetismo eufórico da décadade 1990 se revele o produto de contraste simétrico, mas igualmenteconjuntural. De qualquer modo, é difícil imaginar que o dinamismoreencontrado dos Estados Unidos inverta a tendência estrutural deconfiguração de uma economia global multipolar.

Alca e “Hemisfério Americano”

O fim da Guerra Fria e a consolidação dos blocos econômicossupranacionais na Europa e na Bacia do Pacífico impuseram aos EstadosUnidos uma revisão da sua inserção na economia mundial. A

1 Para as comparações entre produto atual, utiliza-se o método de cálculo da paridade do poder decompra (PPC). Esse método, que reduz as distorções geradas pelas conjunturas cambiais, não eraaplicado em estatísticas produzidas até os primeiros anos da década de 1980.

2 Um exemplo representativo dessa tendência se encontra em um ensaio de Mortimer B. Zuckerman,“A Second American Century” (Foreign Affairs, May/June 1998). Nele, pode-se ler: “The unique brandof entrepreneurial bottom-up capitalism is made up of structural elements that have wrought the stunningeconomic success of the 1990s and are likely to provide the basis for extending America’s comparativeadvantage over time. (...) On the brink of the 21st century, the United States is at a point reminiscent of itsentry into the twentieth. Frederick Jackson Turner pronounced the end of the American frontier in 1893. Thenewly settled continent, linked by rail, lay open as a vast, tariff-free marketplace, conducive to mass-produced products at prices the masses could increasingly afford – Edison’s electric lights, Singer’s sewingmachines, Bell’s speaking tubes, Ford’s automobiles. (...) Today, of course, the new frontier is the globaleconomy. Evidence is growing that the United States is as well placed to exploit that as it was the newcontinental marketplace of a century ago.” (p. 18-20).

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concorrência internacional acelerou a constituição de uma zona de livrecomércio liderada pelos Estados Unidos na América do Norte.

Em junho de 1990, o presidente George H. Bush lançava suaIniciativa para as Américas, a meta de uma macrozona de livre comércio“do Ártico até a Terra do Fogo”. Ao mesmo tempo, colocava emfuncionamento a engrenagem do Acordo de Livre Comércio da Américado Norte (North America Free Trade Agreement, Nafta). O tratado doNafta foi assinado em agosto de 1992. Assim, ampliava-se, com aincorporação do México, o acordo bilateral entre os Estados Unidos e oCanadá.

A redução acentuada das tarifas alfandegárias entre os EstadosUnidos e os parceiros da América do Norte ampliou o comércio regionale estimulou os fluxos de investimentos diretos, consolidando o novobloco econômico. Reunindo uma população de quase 420 milhões dehabitantes e somando um PIB de cerca de 12 trilhões de dólares, o bloconorte-americano apresenta escala comparável à da União Européia.Contudo, ao contrário da experiência comunitária européia, o Naftanão prevê a construção de instituições políticas ou qualquer tipo defusão de soberanias.

Tendo como vértice a economia americana, o Nafta estrutura-sesobre dois vetores contrastantes. O Canadá, tradicionalmentedependente do mercado consumidor e dos fluxos de investimentos dosEstados Unidos, apresenta economia desenvolvida e diversificada, baixocrescimento vegetativo e elevados níveis de vida. O México, ao contrário,apresenta profundos desníveis sociais, forte crescimento vegetativo eintensos movimentos migratórios. A urbanização crescente amplia astensões sociais, e os fluxos de migrantes ilegais geram uma fronteira deatritos na linha do Rio Grande.

O Nafta, porém, representa algo mais que uma zona de livrecomércio. Sua constituição sinalizou novo interesse dos Estados Unidospelo “Hemisfério Americano”. Esse interesse renovado envolve nãoapenas a América do Norte como também a América Latina. Nomomento em que o bloco soviético ruía na Europa, a Iniciativa para asAméricas reorganizava a política hemisférica de Washington. A novaorientação logo se revelou um projeto bipartidário: a proposta de criação

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de uma área econômica pan-americana foi retomada e aprofundadapelo presidente Bill Clinton, pela formulação da Área de Livre Comérciodas Américas (Alca). A administração George W. Bush continuou aimpulsionar o projeto da Alca.

Depois das décadas da Guerra Fria, quando a Europa ocupou asatenções da política mundial de Washington, o novo interesse pelo“Hemisfério Americano” não representa ruptura histórica, mas aretomada de uma orientação tradicional da política externa americana.

A América para os americanos – esse princípio, expresso no célebrediscurso do presidente James Monroe, em 1823, orientou toda a políticaexterna dos Estados Unidos, até a Segunda Guerra Mundial. A DoutrinaMonroe, como ficou conhecida, definia o “Hemisfério Ocidental” comofoco da inserção do país no sistema internacional. O pan-americanismoda primeira metade do século XX expressou a força e a continuidadedessa orientação.

A Doutrina Truman, que em 1947 anunciou o engajamento dosEstados Unidos na Guerra Fria, inverteu radicalmente o sentido dapolítica externa americana. A Europa, cenário principal da confrontaçãocom a União Soviética, tomou o lugar de destaque que cabia à América.O fim da Guerra Fria e, com ela, o da “política da contenção”,paralelamente à emergência de um cenário econômico global multipolar,solicitaram reorganização das prioridades de Washington. É esse o panode fundo do projeto da Alca.

A Iniciativa para as Américas foi uma resposta de Bush aoaprofundamento do projeto comunitário europeu, numa conjunturamarcada pelo impasse das negociações da Rodada Uruguai do Gatt.Essa resposta se destinava a ampliar a margem de manobra externados Estados Unidos mas, também, a manter e coesionar o establishmentinternacionalista americano, que se encontrava sob o fogo da críticados neo-isolacionistas.

Mais ainda que Bush, Bill Clinton, ao assumir a administração,encarava a política externa americana na moldura ameaçadora criadapela configuração de megablocos concorrentes na Europa e na Bacia doPacífico. As Américas do Sul e Central, únicas macrorregiões que geram

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saldos positivos para o comércio exterior deficitário dos Estados Unidos,emergiam como alvos privilegiados das exportações da superpotência.3

Prosseguindo a política do antecessor republicano, Clintonenfrentou as resistências do Congresso e saboreou raro êxito bipartidárioao conseguir a aprovação parlamentar do tratado do Nafta. A estratégiade Washington consistia, inicialmente, em perseguir a meta da Alcapela paulatina ampliação do Nafta. A proposta de adesão chilena,formalizada ainda antes da entrada em vigor do tratado americano,parecia abrir as portas da América do Sul, num momento em que oMercosul provocava forte crescimento do intercâmbio entre o Brasil e aArgentina.

A crise cambial mexicana de 1994 golpeou mortalmente aestratégia americana. O rápido socorro financeiro de Washingtonestancou a derrocada, prevenindo o colapso político iminente doMéxico.4 Mas o preço diplomático do resgate financeiro foi a perda dainiciativa interna dos internacionalistas. No Capitólio, os neo-isolacionistasrecuperaram influência que parecia declinar inexoravelmente. Osargumentos protecionistas, fortalecidos pela desvalorização cambialmexicana, ganhavam latitude, articulando um leque de lideranças quese estendia da direita republicana à esquerda sindical.5

Nos anos seguintes, a solicitação presidencial de tramitação rápida(fast track) de acordos comerciais foi deixada no limbo e, em seguida,recusada. A nova situação forçou o recuo e a definição de outra estratégia,baseada em negociações multilaterais fora do quadro do Nafta. A área

3 Em 1998, os Estados Unidos exibiram saldo positivo de US$ 9,35 bilhões no comércio demercadorias com a América do Sul e a Central. O intercâmbio com a União Européia foi deficitárioem US$ 16,75 bilhões e com os parceiros do Nafta em US$ 30,98 bilhões. Os déficits comerciaiscom os países asiáticos foram ainda maiores: US$ 32,96 bilhões com o conjunto dos NPIs,US$ 44,86 bilhões com a China e US$ 56,11 bilhões com o Japão. Esses dados são representativosdas tendências do comércio exterior americano na década de 1990.

4 Em janeiro de 1994 explodia a revolta indígena de Chiapas. A entrada em cena do ExércitoZapatista de Libertação Nacional (EZLN) acelerava a desmoralização do sistema político autoritáriobaseado no monopólio de poder do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Em março, o assassinatodo candidato presidencial oficial, Luis Donaldo Colosio, sinalizava a grave crise no interior dopróprio aparato de poder central. Foi nesse contexto que ocorreu, em dezembro, a crise cambial.

5 Talvez a formulação mais clara da argumentação dos neo-isolacionistas tenha sido produzida porPatrick J. Buchanan, um representante da direita populista republicana, num livro cujo título resumetoda a tese: The Great Betrayal: How American Sovereignty and Social Justice Are Being Sacrificed to theGods of the Global Economy (Boston, Little, Brown, 1998).

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pan-americana de livre comércio tornava-se, desse modo, uma metasujeita a cronogramas e agendas estabelecidos consensualmente.

A Primeira Conferência das Américas (Miami, 1994) revelou asdiferenças entre os pontos de vista de Washington e os do Mercosul.Suas conclusões – a meta de implantação da área de livre comércio em2005 e o cronograma de redução progressiva de barreiras a partir doano 2000 – representaram o acordo possível entre as posições americanae brasileira.

A incapacidade da administração Clinton de passar o pedido dofast track no Congresso paralisava as conversações para o ingresso chilenono Nafta. Ao mesmo tempo, a conclusão de acordos bilaterais de livrecomércio do Mercosul com o Chile e com a Bolívia fortalecia a posiçãobrasileira. Essa foi a moldura na qual ocorreu o Encontro de Ministrosdo Comércio Exterior das Américas (Belo Horizonte, 1997).

O encontro de Belo Horizonte foi precedido por difíceis einconclusivas negociações entre Washington e Brasília. Os negociadoresbrasileiros recusaram as propostas de rápida redução geral de tarifascomerciais e solicitaram a remoção das sobretaxas aplicadas pelosEstados Unidos às exportações nacionais de aço e suco de laranja. Asdiscussões multilaterais limitaram-se a detalhar as agendas e ocronograma, sem avançar em redução de tarifas.

A Segunda Conferência das Américas (Santiago, 1998)praticamente se limitou a concluir acordos nos campos da educação edos direitos humanos. Sem avanços no cronograma da área de livrecomércio, a cúpula de chefes de Estado homologou a estruturainstitucional para a Alca, baseada em conferências ministeriais a cada18 meses e no Comitê de Negociações Comerciais (CNC), destinado acoordenar os grupos temáticos. Na fase decisiva de negociações do bloco,iniciada no final de 2002, o CNC passou a ser presidido conjuntamentepelos Estados Unidos e pelo Brasil.

A Alca articula-se ao conjunto da política mundial de comérciodos Estados Unidos. Do ponto de vista de Washington, sua finalidadegeral consiste em ampliar as exportações de bens de alta tecnologia e deserviços, ocupando mercados controlados pela União Européia nas

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principais economias da América do Sul. O alvo principal da estratégianorte-americana é o Cone Sul e, em especial, o vasto mercado brasileiro.

Sob a perspectiva comercial de Washington, a macrorregiãoformada pelas Américas do Sul e Central pode ser dividida em quatroconjuntos principais. O primeiro é formado pelos países da AméricaCentral ístmica, que apresentam mercados diminutos e têm nos EstadosUnidos o fornecedor mais importante. O segundo, pela Colômbia e pelaVenezuela, que são mercados de dimensões médias e também têm nosEstados Unidos o principal fornecedor. Nesses dois conjuntos, ainfluência comercial da União Européia é secundária.

O terceiro conjunto é formado pelos países andinos. Chile, Peru,Equador e Bolívia importam principalmente de países da Aladi. OsEstados Unidos funcionam como segundo fornecedor, à frente da UniãoEuropéia. O quarto conjunto é o Mercosul, que abrange o Brasil, únicogrande mercado da macrorregião, e a Argentina, importante mercadode dimensão média. O principal fornecedor desses dois países é a UniãoEuropéia. No caso do Brasil, os Estados Unidos disputam a segundaposição com a Aladi. Já no caso da Argentina, os Estados Unidos ocupamapenas a terceira posição, atrás do Brasil.

A oferta inicial de Washington para a Alca, apresentada no iníciode 2003, evidenciou o lugar particular ocupado pelo Mercosul nasnegociações hemisféricas. Segundo essa oferta, os Estados Unidospromoveriam reduções tarifárias diferenciadas. No momento da entradaem vigor da área de livre comércio, teriam isenção tarifária 85% dasimportações agrícolas provenientes do Caribe, 64% do MCCA, 68% daCAN e 50% do Mercosul. As importações industriais também teriamtratamento regionalmente diferenciado, favorecendo a América Centrale os países andinos. Nos dois casos, as importações do Mercosul ficariamsubmetidas a um cronograma mais lento de redução de tarifas.

Essa oferta inicial, ao dividir o conjunto continental, representouruptura com o princípio multilateral que organizava as negociações daAlca. Ela evidenciou a tática da administração de George W. Bush detentar atrair as economias latino-americanas menores e isolar a posiçãonegociadora do Brasil e da Argentina. O método bilateral seguido porWashington representa, no fundo, retomada da abordagem da Iniciativa

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para as Américas. De acordo com essa abordagem, a Alca se constituiriaa partir de uma série de acordos diferenciados entre os países latino-americanos e os Estados Unidos.

Texto Comentado

A PREDESTINAÇÃO GEOGRÁFICA, Albert K. Weinberg(In: Destino Manifiesto, Buenos Aires: Paidós, p. 70-77)

O conjunto ideológico do Destino Manifesto foi construído aolongo de décadas, desde a independência, em 1776, até os primeirosanos do nosso século. A trajetória da expansão territorial americana,realizada às custas das áreas coloniais européias na América do Norte,constituiu o pano de fundo histórico dessa construção ideológica. Aquestão das fronteiras – a sua conceituação e a apreensão pelopensamento nacionalista americano – representou um núcleo dinâmicocrucial da idéia do Destino Manifesto.

A Doutrina Monroe, de 1823, expressou, sob forma de projetopolítico estruturado, a definição de uma esfera prioritária de interessedos Estados Unidos: o “hemisfério americano”. Essa opção, embasadanas percepções sedimentadas pela guerra de independência, embutiasimultaneamente uma noção de ruptura (entre a nova repúblicaamericana e o Velho Mundo) e um projeto de unidade (entre os EstadosUnidos e o conjunto do Novo Mundo). O pan-americanismo, que sedesenvolveu como estratégia diplomática desde as últimas décadas doséculo XIX, decorreu da opção hemisférica radicada no Destino Manifesto.

A Iniciativa para as Américas de George Bush e a condução doprojeto da Alca retomam velhos temas do nacionalismo americano erefletem percepções do sistema internacional cujas origens remontamà época de constituição do Destino Manifesto. Os extratos escolhidosda obra de Weinberg contribuem para situar adequadamente esseproblema, conferindo-lhe toda a sua dimensão.

Predestinação geográfica

De todos modos, el principio de proximidad llega a su conclusión a travésde una pretensión norteamericana, el reclamo de lo que podría denominarse“hemisferio de interés”. Se trata naturalmente de la Doctrina Monroe, que

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sobre la base de un principio geograficopolítico de seguridad impide que Europaintervenga o realice nuevas actividades de colonización en el HemisferioOccidental. La influencia del raciocinio geográfico sobre “la doctrina de lasdos esferas”, de la cual la Doctrina Monroe es simplemente la expresión másimportante, se refleja en las observaciones de diversos norteamericanos enrelación con numerosos problemas y períodos. La referencia de Thomas Painea la distancia que separa a América de Gran Bretaña como “prueba poderosay natural” de la independencia, así como la alusión de Washington a “nuestrasituación separada y distante” y al mejoramiento de las ventajas que “lanaturaleza nos ha concedido”, revelan la presencia del factor geográfico en losideales de independencia y aislamiento. La afirmación de Hamilton en el sentidode que su “situación” impulsaba a Estados Unidos a buscar “cierto ascendienteen el sistema de asuntos americanos” señala el comienzo de la concepción dela hegemonía hemisférica como un resultado del aislamiento. La observacióndel gobernador Morris, según la cual las olas de un inmenso mar aplicarían eledicto del Tiempo y el Destino contra la intrusión europea en Luisiana, reflejala idea de un destino protector del aislamiento norteamericano. La afirmaciónde John Adams, según la cual el dedo de la naturaleza amputaba únicamentea la colonización de la costa noroeste por Estados Unidos, sugiere la existenciade una relación entre la predestinación geográfica y el principio de nocolonización de la doctrina Monroe, del cual según parece Adams fue elprincipal responsable. Posteriormente muy a menudo se dio a la DoctrinaMonroe una interpretación geográfica. Así, en el curso del debate sobre Oregónrealizado en 1846, el representante Stanton afirmó que la Doctrina Monroecoincidiá con el siguiente principio:

“La ley que convierte al océano en barrera opuesta al comercio instantáneoentre las naciones – la ley de la naturaleza que ha separado a los continentesinterponiendo vastos abismos – prohíbe que las naciones de un continenteposean derechos en otro por implicación, extensión, contigüidad, o por laaplicación de otros principios invisibles, intangibles y metafísicos.”

Podemos señalar, de paso, que el mismo principio geográfico fue afirmadoaún antes del pronunciamiento de Monroe, en el Manifiesto de la JuntaProvisional del Gobierno Mexicano. Después de citar varios ejemplos del hechode que “la Naturaleza ha señalado los territorios de las naciones” mediantefronteras naturales, el Manifiesto decía: “La acción política debe conformarseinevitablemente al orden de la naturaleza; y así como sería monstruoso reunir

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en el mismo espacio los elementos contrarios del fuego y el agua, lo es igualmenteunir en una provincia personas distintas y lejanas, especialmente si dichadiferencia y esa distancia se extienden a los extremos de dos mundos”. Elfactor común de ambas observaciones consiste en que la doctrinanorteamericana de la separación de los dos hemisferios hasta cierto punto seve sugerida o reforzada por una argumentación racional de carácter geográficoque combina los principios de proximidad y de frontera natural. Sin embargo,el primer principio es el que prevalece en la doctrina especial de la hegemoníade Estados Unidos en el Hemisferio Occidental. Aquí nos hallamos ante laconcepción de que la “proximidad geográfica”, como dice Olney, convierte alos países de las Américas en aliados cuya integridad debe ser defendida porEstados Unidos contra Europa.

Pero este raciocinio geográfico es una arma de doble filo. Prohíbe no sólola expansión de Estados Unidos fuera de los límites continentales. Pues losdistantes vagabundeos del principio de proximidad debían concluir finalmenteen la idea de que, como afirma lord Curzon, “de todas las Fronteras Naturales,el mar es la más inflexible, la menos variable y la más eficaz”. Como el marhabía parecido “inviolado”, todavía en 1820 existían escasos indicios de quelos expansionistas norteamericanos se propusieran apartarse del continente.Cuando en 1811 se advirtió al representante Rhea que la creación del Territoriode Orléans podía convertirse en precedente para la anexión de las Indiasoccidentales, respondió que no se interesaría en las islas de las Indiasoccidentales a menos que “placiera al Todopoderoso Hacedor de los Mundosmover los fundamentos de las islas de las Indias occidentales para colocarlosal costado de Estados Unidos”.

Sin embargo, posteriormente se definió una actitud distinta hacia unaisla de ese grupo, a pesar de que sus cimientos no habían sufrido ningunamodificación. Cuba se perfilaba en el horizonte norteamericano poco despuésde 1820, debido a la amenaza de que durante las revoluciones hispano-americanos se apoderaran de ella los europeos o los latinoamericanos. Comola crisis acentuó la comprensión de la importancia estratégica de Cuba paralas costas y el comercio norteamericanos, el secretario de Estado John QuincyAdams no sólo se opuso a la transferencia de Cuba sino que predijo que en elfuturo la isla sería anexada por Estados Unidos. En este punto posee particularinterés el hecho de que justificó la adquisición de Cuba con la teoría de lapredestinación geográfica.

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Por extraño que perezca, la teoría geográfica es el mismo principio deproximidad que aparentemente prohíbe iniciar empresas fuera del continente.En un despacho enviado en 1823 al ministro norteamericano en España, Adamssostuvo una profecía de anexión con la siguiente reflexión de carácter geográfico:

“Debido a su posición local estas islas son apéndices naturales delcontinente norteamericano; y una de ellas, Cuba, situada casi a la vista denuestras costas, por una multitud de razones se ha convertido en objeto detrascendente importancia para los intereses políticos de nuestra Unión.”

La observación contemporánea de Alexander Everett, ministro americanoen España, demuestra la influencia general de esta doctrina del apéndice:“Siempre creí, y entiendo que es también la opinión general en Estados Unidos,que esta isla constituye en realidad un apéndice de las Floridas.”

Varias ideas geográficas se combinaron para producir este concepto delcarácter de Cuba como apéndice natural de Estados Unidos. La más evidentede dichas ideas es el concepto de contigüidad virtual, sugerido por lacircunstancia de que Cuba está “casi a la vista de nuestras costas”. Otra es laidea de que Cuba se encuentra más cerca de Estados Unidos que de otro estadocontinental. Esta reflexión aparece en un comentario formulado en 1825 por elsecretario de Estado Clay sobre los planes mexicanos y colombianos respectode Cuba: “... si esa Isla ha de convertirse en dependencia de un cualquiera delos estados americanos, es imposible no advertir que la ley de su posiciónproclama la necesidad de anexarla a Estados Unidos”. Tenemos finalmente elargumento de carácter geográfico formulado por el Presidente Monroe en sucarta de 1823 a Jefferson en favor de la adquisición de Cuba: “Entiendo quela península de Florida y Cuba son parte de la desembocadura del Misisipí...”Estas ingeniosas reflexiones deben ser entendida en parte a la luz del hecho deque las racionalizaciones de estos hombres sobre el “apéndice natural”procuraban disimular el conflicto de esta versión de la proximidad con ladoctrina de la frontera natural.

¿Pero aun la lógica más astuta puede imponerse al desnudo hechogeográfico de que el “apéndice natural” es después de todo una isla, enclavadaallende la gran barrera del mar? Que Cuba no es en realidad un apéndice deEstados Unidos lo comprobaría rápidamente quien intentase llegar a nadohasta la isla. A decir verdad, en 1859 Seward trató de salvar lógicamente lasolución de continuidad afirmando que “cada piedra y cada grano de arena de

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esa isla fueron arrastrados desde el suelo americano por el flujo del Misisipí.Pero también podía verse en ese origen geológico el designio de la naturaleza deseparar a Cuba de Estados Unidos. Tampoco es posible asignar decisivaautoridad a la afirmación de Adams en la disputa sobre Orégon en el sentidode que tanto el derecho internacional como la ley natural consideran a lasislas adyacentes meros apéndices de los continentes. Pues en la controversiasobre las Islas de Lobos, cuando la posición de Estados Unidos exigió adoptarla posición opuesta, Daniel Webster – un hombre tan erudito como los anteriores– arguyó con igual dogmatismo que ni siquiera una isla situada sólo a pocasmillas de tierra firme podía ser reclamada con el argumento de la proximidad.

Sólo cabe afirmar que, si bien la primera empresa fuera de los límitesdel continente viola el principio de la frontera natural, la violación promovidapor el concepto de proximidad en el caso de Cuba fue relativamente venial yno estaba destinada a configurar un principio general. Los estadistasnorteamericanos de la década de 1820 entendían que Cuba era un ne plusultra en el océano. Pero podía conservar el carácter de ne plus ultra una vezque el principio de proximidad se había liberado de la concepción limitativade que el mar es una barrera permanente?

Las verdaderas tendencias lógicas de estos principios geográficos puedenser observadas únicamente ojeada al curso ulterior de la doctrina de laproximidad para comprobar las extraños extremos a los cuales habría deimpulsarla la corriente del deseo. En realidad, durante la década de 1840 elexpansionista se contentaba modestamente con el continente norteamericano;sus pretensiones geográficas a los territorios de Oregón y de ciertas provinciasmexicanas le parecían superiores a las europeas en virtud del “principio decontigüidad liberado de las barreras levantadas por océanos formidables”.Stephen Douglas declaró en 1844: “No quiero traspasar el gran océano... esoslímites señalados por el Dios de la Naturaleza”. Pero en la década subsiguienteDouglas y la mayoría de los restantes expansionistas querían pasar los límitesdel gran océano para apoderase de Cuba, que parecía formar parte – como losostuvo el Daily Union de Washington – de los “límites naturales” de EstadosUnidos. Y si Cuba era un apéndice natural, los expansionistas de la décadade 1860 podían considerar antinatural la anexión – deseable desde el puntode vista estratégico – de la República Dominicana? El gobernador Pownalldijo en 1780 que determinar si las Indias Occidentales formaban o no parte

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del continente norteamericano era en realidad una cuestión académica. En1860 el Representante Woodward y otros llegaron definitivamente a laconclusión de que estas islas formaban “parte del continente norteamericano”y de que “nos pertenecen naturalmente”. La extensión del interés norteamericanoa las islas de las Indias Occidentales fue fruto de la Guerra Civil, que demostróla utilidad de las bases navales en ese sector marítimo. Dos décadas despuésel interés estratégico en las “avanzadas naturales” se había desplazado alPacífico, al compás del crecimiento del comercio ultramarino. Con respecto alas Islas Hawaii, encrucijada del Pacífico, el almirante Belknap escribió en1893: “Ciertamente parecería que la naturaleza creó ese grupo para que endefinitiva fuese ocupado como puesto avanzado, por así decirlo, de la granRepública que se alza en su límite occidental, y ahora ha llegado el momentode realizar ese designio”. La doctrina de la proximidad se refleja con mayorclaridad todavía en la exposición del Representante Henry, quien declaró que“las queremos porque se encuentran más cerca de nuestro territorio que decualquier otra nación”. En realidad, algunos legisladores – entre ellos elRepresentante Clark – objetaron la anexión propuestas en cuanto implicabatraspasar los límites continentales fijados a la República por la “Naturaleza”.Pero el Senador Chandler afirmó que la adquisición de Hawaii era parte deuna política continental, dado que la naturaleza había convertido a las islasen sector del sistema defensivo del continente. Por lo que parece, nada estálejos o cerca: el pensamiento se ocupa de determinar cual es la situación real.

Aunque Hawaii estaba a dos mil millas del continente americano, suadquisición no chocó con el principio jeffersoniano del “meridiano de divisióna través del océano”. Pero una vez anexadas las islas Hawaii, les fue fácil alos imperialistas extender el principio de proximidad más allá del meridianooceánico, en dirección a las Filipinas. “Estamos extendiendo las manos”, escribióel ex ministro Denby, para tomar lo que la naturaleza nos destinó”. Una delas concepciones que sirvió de base a esta interpretación de los designios de lanaturaleza fue la proximidad de las Filipinas respecto de Hawaii. Otra fue laidea, expresada en el New York Recorder, de que en vista de la más cercanaadyacencia a Estados Unidos que a Europa, “las islas exteriores de los dosocéanos pertenecen, no al sistema europeo, sino al americano”. Kimpen,historiador alemán de la expansión norteamericana, trae una afirmacióndivertida pero no muy convincente, según la cual otra justificación geográficade la política colonial norteamericana fue la teoría de que las Filipinas forman

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parte de la mitad occidental de la tierra con arreglo a la antigua bula dedivisión del papa Alejandro. No menos ingeniosa fue la respuesta del SenadorBeveridge a la objeción de que las Filipinas no son contiguas: “¡Nuestra Armadalas hará contiguas!”

Después de la anexión de las Filipinas pudieron considerar natural aunla participación de Estados Unidos en la división territorial de China. Así, elBoston Herald, al reclamar que Estados Unidos participase en los probablesacuerdos entre las potencias, implícitamente apelaba a la doctrina de laproximidad con la siguientes palabras: “Las islas Filipinas son nuestra puertade acceso a China”. Aunque esta opinión no era representativa, no cabe dudade que la concepción del océano como barrera natural había desaparecido tancompletamente de la filosofía expansionista como el viejo clíper desaparecióde los medios de transporte. Whitelaw Rield, cuyo periódico creía en 1889 queSamoa estaba “destinada por la naturaleza a ser dependencia australianaantes que de norteamericanos” afirmó en el momento de la anexión de Tutuila– una de las islas Samoa – que “el océano nos une con el infinito y misteriosoOriente”. Asimismo, Beveridge proclamó que “el océano no nos separa de lasregiones a las cuales nos impulsa el deber y el deseo”, y que por el contrario“nos une a ellas”. Los norteamericanos habían aprendido la lección que sedesprendia de la imaginativa hazaña de los imperialistas británicos, de unHarrington que pensaba que “el desarrollo de Oceanía impone la ley al mar”,y de un Coleridge que afirmaba que “Dios mismo parece señalarnos con sudedo la superficie del mar”. El desarrollo del principio de proximidad habíatransformado el océano, y éste había dejado de ser barrera natural paraconvertirse en nexo territorial.

En los últimos años del siglo XIX algunos expansionistas dieron en hablarsemi-humoristicamente del “manifiesto destino de la raza inglesa y la naciónyanqui que es heredar la tierra”. En realidad, la doctrina de la proximidadhabía llegado tan lejos que no existía ahora una razón geográfica que lepermitiese detenerse. Cuando el principio de proximidad atraviesa el océano,con ese acto supera la última barrera natural posible. Se delinea entonces lasposibilidades observadas por Ugarte en su comentario sobre la pretensióngeográfica de Marcy respecto de Cuba: “Es evidente que este concepto de ladependencia estratégica y de los inevitables resultados de la proximidad puedellevar paulatinamente a la conquista de un mundo.”

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Afortunadamente para el mundo, la fatiga impone un freno allí dondela lógica geográfica no lo hace. Así, poco después de comienzos del siglo ladoctrina norteamericana de la proximidad abandonó la meta de conquistamundial y se concentró en Estados Unidos. Pero ahora las tesis delexpansionista o del intervencionista en el sentido de que la “proximidad crea

relaciones políticas especiales” podía ser acusada de inconsecuencia. Cuandoun expansionista miembro de la Conferencia Nacional de Relaciones Exterioresdeclaró que todas las islas ocupadas por potencias europeas en el Caribe eran“natural y estratégicamente parte dos Estados Unidos”, el señor MoorfieldStorey replicó con las siguientes palabras:

“No es posible afirmar que la proximidad a la costa de Estados Unidosdetermina el destino de estas islas, y que la proximidad a la costa asiática no

perjudica nuestras pretensiones a la posesión de las Filipinas.”

Al imponer la soberanía norteamericana a las Filipinas la doctrina de laproximidad había cometido un suicidio lógico, mas o menos como la serpientelegendaria que creció hasta que acabó comiéndose su propia cola. Pues altraspasar la línea media del océano perdió el derecho a satisfacer el propósitooriginal: afirmar la superioridad de la pretensión de Estados Unidos sobre losterritorios adyacentes frente a potencias ultramarinas como España. En cuantosoberano de las Filipinas, Estados Unidos estaba en otro hemisferio,

precisamente el mismo en el cual muy pronto Japón habría de afirmar supretensión a la hegemonía sobre la base del principio de proximidad queOccidente le había enseñado. Aunque la Doctrina Monroe continuaba en vigor,los norteamericanos no podían mantener su apoyo consecuente a la misma,como lo hacía Olney, con la fórmula de que “tres mil millas de océano intermediodeterminaban que la unión política permanente entre un Estado europeo y

otro americano fuese antinatural e impráctica”.

Aparentemente la catástrofe lógica afectaba no sólo a la doctrina de laproximidad sino a toda la filosofía norteamericana de la frontera natural. Loque no implica negar la tesis de von Engeln según la cual “el lugar aporta labase esencial y significativa de toda asociación humana”, o su corolariorepresentado por la fórmula de lord Curzon: “las fronteras son ciertamente enfilo de la navaja sobre el cual se encuentran como suspendidas las modernas

cuestiones de la guerra o la paz, la vida o la muerte de las naciones”. Ello no

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implica siquiera negar que, como escribió la Señorita E. C. Semple, “cadapaso adelante de la expansión norteamericana representó una frontera máscientífica”. Pero la premisa característica de la doctrina norteamericana de lapredestinación geográfica no fue una ventaja práctica – la constante ampliaciónde las fronteras – sino el concepto de que dicho proceso tenía un término natural.

Por extraño que parezca, la doctrina geográfica pretendía ser una doctrina delos “límites”, su premisa básica era el concepto de que la razón percibía encada sector del compás una frontera natural que (de acuerdo con las palabrasde Benton) sería “eterna” porque aun la posteridad advertiría claramente sunaturaleza. Pero la historia de la expansión norteamericana desmintióprecisamente esta teoría de que la frontera natural posee un carácter

eternamente obvio. Ni la posteridad ni otros partidarios del expansionismoque vivieron en la misma época creyeron definitiva la frontera occidental deBenton; y este último tampoco mantuvo la misma opinión varias décadasdespués, cuando los norteamericanos pusieron los ojos sobre Oregón. Tantohacia el Oeste como hacia el Sur el término justificado geográficamente de unmovimiento de expansión se convirtió en punto de partida de un nuevomovimiento. La doctrina de la frontera natural se vio refutada en cuanto lo

que pretendía ser una doctrina de los límites universalmente válidos fue aplicadapor expansionistas que se mostraron incapaces de coincidir sobre la naturalezaexacta de esos mismos límites.

A esta altura de las cosas no es difícil comprender la notableincapacidad de la doctrina para limitar la expansión. Es indudable que detenerla marcha del imperio habría sido tarea excesiva para un principio filosófico;pues cada avance de la frontera resolvía una serie de problemas e

inmediatamente creaba otra, y satisfacía un deseo a costa de estimular unonuevo. Pero la “frontera natural”, concepto que según lo demuestra la historiageneral posee “los más diversos sentidos”, configuraba una barreraparticularmente débil a causa de su falta total de rigidez lógica. Tanta era laflexibilidad que le aportaban sus tres versiones que en una cuestión territorialera siempre posible hallar una variante lógica que abría el camino al concepto

de la frontera natural. No puede extrañar, por consiguiente, que RobertWinthrop observase que “el dedo de Dios jamás apunta en dirección contrariaa la extensión de la gloria de la república”. Entre el deseo y el criterio geográficono había más contradicción que la existente entre el viento y la veleta.

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2 – DEMOCRACIA POLÍTICA E REFORMAS ECONÔMICAS

América anglo-saxônica e América Latina: essas expressões,consagradas por décadas de uso, sintetizaram uma linha de tensão

geopolítica e econômica que separa os Estados Unidos de todos osvizinhos ao sul do Rio Grande. No fundo, América anglo-saxônica foi,sempre, uma metáfora para esse contraste entre a maior potência domundo e a América pobre e subdesenvolvida.

As relações entre o “colosso do Norte” e os vizinhos do Sul exibiramforte ambivalência ao longo da história. A Revolução Americana de1776 forneceu as idéias que impulsionaram as guerras de independênciada América hispânica, conduzidas por Simón Bolívar e San Martín, eaté mesmo a revolução dos escravos no Haiti de Toussaint L’Ouverture.

Só o Brasil, imperial e escravista, transformou a sua independência nanegação das idéias americanas e na afirmação nostálgica da Europaaristocrática que desaparecia.

A Doutrina Monroe, de 1823, fingiu cimentar a unidade de

propósitos americana, confirmando o engajamento dos Estados Unidosna defesa da liberdade das nações do Novo Mundo. Contudo, era ocomeço de uma grande mentira, que se desdobrou pelas décadas: AAmérica para os americanos constituía a senha ideológica para uma duplaoperação geopolítica, de cisão – entre a América e a Europa – e desubordinação – da América aos Estados Unidos. O pan-americanismo

tornou-se o instrumento da segunda dessas operações.

Mais tarde, ao longo do meio século de Guerra Fria, consolidou-sea bipartição do continente ao longo da linha de fronteira (econômica,geopolítica, demográfica, cultural e simbólica) do Rio Grande. A

superpotência do Norte, engajada na sustentação estratégica da Europaocidental e na diplomacia global de contenção da União Soviética,simultaneamente subordinou e marginalizou os vizinhos latinos do Sul.A América Latina definiu-se a si pelo que não era: Estados Unidos.

O fim da Guerra Fria e do eixo de polaridade global Leste-Oestecomplica as relações entre as duas Américas. Os governos de Washington

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lançam novo olhar sobre a América Latina e começam operaçãodestinada a redefinir o lugar do subcontinente na política mundial dosEstados Unidos. Em torno do projeto da Alca, o pan-americanismoatualiza-se na era da globalização.

Do ponto de vista dos Estados Unidos, a América Latina desdobra-se em duas esferas de interesse distintas: a América Central e o Caribe,de um lado, e a América do Sul, de outro. As esferas centro-americanae caribenha é foco de preocupações especiais, nas quais a política externase confunde com a política interna. A estabilidade dessa vasta faixa de

fronteira entre as Américas aparece, há mais de um século, como questãode segurança nacional.

A prioridade de estabilização das fronteiras centro-americana ecaribenha expressou-se, desde os tempos do Big Stick, nas operaçõesmilitares destinadas a impedir o surgimento de regimes nacionalistasna macrorregião. Essa política se adaptou às circunstâncias da GuerraFria e renovou-se no isolamento imposto à Cuba castrista.

Depois, na década de 1980, a administração Ronald Reagan

engajou-se resolutamente na “guerra de baixa intensidade” contra oregime sandinista nicaraguense, na sustentação do governosalvadorenho ameaçado pela guerrilha esquerdista e na remoção doregime castrista de Granada. Na mesma linha, a administração GeorgeH. Bush conduziu a operação de remoção do governo panamenho deManuel Noriega, em 1989.6

O encerramento da Guerra Fria, a derrota eleitoral dos sandinistas

e o acordo de paz em El Salvador estabilizaram, politicamente, aAmérica Central e o Caribe. A crise cubana contribuiu decisivamentepara a diminuição das preocupações estratégicas de Washington com aregião.

6 A intervenção americana no Panamá, justificada sob a bandeira do combate ao narcotráfico,destinava-se a estabelecer um governo “confiável” no país, de modo a assegurar os interesses deWashington na Zona do Canal. O pano de fundo histórico e estratégico da operação só pode sercompreendido à luz das incertezas geradas pelo acordo de devolução do Canal assinado por JimmyCarter e Omar Torrijos em 1977.

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Na década de 1990, as preocupações regionais de Washingtonmudaram de foco, concentrando-se na instabilidade econômica e naspressões migratórias. A intervenção americana no Haiti, em 1994,justificada pela crise interna, destinava-se a estancar o fluxo doboat-people, que podia se transformar em verdadeira hemorragia.7

Das “ditaduras de segurança nacional” à democratização

A emergência da Guerra Fria condicionou a integração da AméricaLatina ao sistema mundial de poder ocidental. Formalizada pelaconstituição da Organização dos Estados Americanos (OEA), naConferência de Bogotá de 1948, e pela assinatura do TratadoInteramericano de Assistência Recíproca (Tiar), no Rio de Janeiro, noano precedente, a integração dos Estados latino-americanos no sistemageopolítico ocidental tinha por finalidade a consolidação da influênciahemisférica de Washington. Nesse processo, o Atlântico Sul tornou-seum “mar americano”, elemento integrante da estratégia de controle dosoceanos e das rotas marítimas pela superpotência ocidental.

A OEA, com sede em Washington, trazia na carta de fundaçãosuas finalidades precípuas: defender a soberania dos países-membro,promover a solidariedade hemisférica, providenciar serviços sociais,econômicos, políticos e técnicos aos integrantes.8 O sentido geopolíticoda OEA ficou patente durante a década de 1960, quando a RevoluçãoCubana apareceu como ameaça à solidez da esfera de influênciahemisférica. Em 1962, Cuba foi suspensa da Organização, sob aacusação de representar os interesses de uma potência extracontinental.

7 Um criterioso relato analítico da crise que culminou com a intervenção no Haiti aparece na tese deIrene Pessôa de Lima Câmara, Em Nome da Democracia: A OEA e a Crise Haitiana (1991-1994) (Brasília:IRBr/Funag/Centro de Estudos Estratégicos, 1998). Esse trabalho revela as circunstâncias nas quais oprincípio pan-americanista sobre o qual se baseia a Organização dos Estados Americanos (OEA)entrou em conflito com o intervencionismo de Washington. Adicionalmente, a análise desvenda adivergência crucial que separava a posição brasileira da americana, cuja expressão máxima apareceuquando os Estados Unidos forçaram a transferência das decisões para o âmbito do Conselho deSegurança da ONU.

8 A OEA representou uma estrutura formalizada da ideologia panamericanista, cujas origens remontamao século XIX. Sobre as Conferências hemisféricas e a OEA, ver G. Pope Atkins, América Latina en elSistema Político Internacional (Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1991, p. 267-314). Umaabordagem histórico-diplomática do Sistema Interamericano aparece no ensaio de Dário M. deCastro Alves, “Perspectivas do Sistema Interamericano”, Temas de Política Externa Brasileira (Brasília-São Paulo: FUNAG/Ática, 1989, p. 137-175).

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Alguns anos depois, em abril de 1965, tropas da OEA juntaram-se àsforças de intervenção americanas na República Dominicana.

O Tiar estabelecia essencialmente o princípio da defesa mútuados Estados signatários contra hipotéticas agressões de potênciasextracontinentais e previa a colaboração das Forças Armadas hemisféricas,por meio de exercícios conjuntos e intercâmbio de informações. Criadosdurante os “anos quentes” da Guerra Fria, tanto a OEA como o Tiarmaterializaram a aplicação da estratégia do containment no subsistemalatino-americano.

A montagem da esfera de influência hemisférica não se limitou àformalização de tratados internacionais e à edificação de instituiçõesde segurança coletiva. Ela envolveu a criação de novas elites político-militares em inúmeros países do subcontinente, formadas sob asideologias emanadas de Washington e destinadas a constituir osverdadeiros centros de poder e decisão dos Estados latino-americanos.

Em 1947, o Congresso americano votava o National Security Act,do qual se originaram o Conselho de Segurança Nacional e a AgênciaCentral de Inteligência (CIA). O National War College (NWC) tornou-se desde essa época o centro difusor das doutrinas estratégicas deWashington. Trabalhando em estreita ligação com o NWC, instalou-sena capital dos Estados Unidos o Colégio Interamericano de Defesa,destinado a coordenar as atividades das Forças Armadas do hemisfério.Em 1961, na Zona do Canal, surgia a Escola do Exército Americanopara as Américas que, em dez anos, diplomou mais de 30 mil militareslatino-americanos.

Esse conjunto de iniciativas americanas resultou no aparecimentode organismos similares ao NWC em diversos países latino-americanos,inclusive a Escola Superior de Guerra (ESG) brasileira, criada em 1949por uma missão militar americana. Entre 1950 e 1968, o Curso Superiorde Guerra diplomou centenas de militares e civis, difundindo o conjuntode teorias, noções e conceitos englobados na Doutrina de SegurançaNacional.

A Doutrina de Segurança Nacional moldou duradouramente opensamento político de setores significativos das elites latino-

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americanas. Em torno de conceitos como os de “fronteiras ideológicas”e “inimigo interno”, consolidou-se uma cultura autoritária queacompanhou o processo de modernização dos aparelhos públicos e deprofissionalização das Forças Armadas. O pensamento estratégico ediplomático foi profundamente influenciado pela Doutrina, queintegrou às percepções nacionais tradicionais o sentido de pertinênciaa um bloco ocidental e o alinhamento à superpotência da Américado Norte.9

Os países latino-americanos caracterizam-se, historicamente, pelainstabilidade de suas estruturas políticas e institucionais. A ausência deinstituições democráticas tradicionais marcou a vida política dos paísesdo subcontinente desde sua independência, condicionando as sucessõesde regimes autoritários, ditatoriais ou caudilhistas, eventualmenteinterrompidos por instáveis intervalos semidemocráticos. Contudo, asdécadas de 1960 e 1970 configuraram uma fase singular, na qual seinstalaram regimes ditatoriais de tipo especial. Tais regimes,fundamentados institucionalmente no poder militar e ideologicamentenos postulados da Doutrina de Segurança Nacional, contaram com oapoio explícito ou tácito de Washington, pelo menos nos momentoscruciais de implantação e consolidação.

Essa onda de “ditaduras de segurança nacional” constituiu duplareação: contra a Revolução Cubana e o alinhamento da ilha com a UniãoSoviética, de um lado, e contra movimentos nacionalistas ou guerrilhasesquerdistas que se disseminaram pelo subcontinente, de outro. Emvirtude de serem portadores de um projeto geoestratégico de longoalcance, cristalizado em elites político-militares formadas desde opós-guerra, tais regimes se distinguem do autoritarismo tradicionaltanto pela sua prolongada duração como pela profundidade dastransformações que impuseram às estruturas políticas e econômicasnacionais. Dentre os regimes mais tipicamente identificados com aDoutrina de Segurança Nacional, contam-se aqueles implantados noBrasil (1964-1984), na Argentina (1966-1972 e 1976-1983), no Chile(1973-1989) e no Uruguai (1976-1984).

9 No Brasil, a mescla de percepções geoestratégicas tradicionais à Doutrina de Segurança Nacionalaparece com nitidez na Geopolítica do Brasil, de Golbery do Couto e Silva (Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1967).

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Os regimes militares instalados no Cone Sul promoveram oentrelaçamento dos respectivos aparelhos militares, paramilitares e deinteligência, configurando verdadeira “internacional da contra-insurgência”, que intercambiava informações e mesmo prisioneirospolíticos. Essa rede internacional repercutiu na diplomacia, com asustentação de cada um dos regimes por seus similares e vizinhos,fenômeno ilustrado pelas relações especiais estabelecidas entre asditaduras brasileira, uruguaia e chilena ao longo da década de 1970.

A redemocratização dos Estados do subcontinente derivoutanto de condicionantes nacionais como de alterações no ambienteinternacional. Desde 1976, com Jimmy Carter na Casa Branca e avalorização do tema dos direitos humanos, Washington reorientou suapolítica continental, passando a favorecer estratégias de aberturademocrática gradualistas.

A “distensão” brasileira e os atritos entre os Estados Unidos e asditaduras argentina e chilena constituíram reflexos desse momento,revelando as singularidades nacionais de um processo desigual eambivalente.10 Esse momento também revelou as dimensõesnacionalistas dos próprios regimes de segurança nacional latino-americanos. As divergências de orientação e as crises diplomáticas entreWashington e esses regimes foram, muitas vezes, repercussões donacionalismo militar latino-americano.11

O encerramento da Guerra Fria coincidiu com a conclusão dosprocessos de redemocratização. No Brasil, a transição para um governo

10 A posse de Ernesto Geisel no Brasil e o subseqüente afastamento do general Ednardo D’ÁvillaMello, após os episódios de Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho no Deops de São Paulo, em 1975,deflagraram a “distensão” brasileira, cujo ritmo se harmonizou com a postura diplomática de JimmyCarter, a partir de 1976. O projeto de abertura consolidou-se com a marginalização do general SilvioFrota e a definição de João Baptista Figueiredo para a sucessão presidencial de 1978. Paralelamente,a Argentina conhecia os anos de chumbo da “guerra suja”, e o Chile vivia o auge do autoritarismo deAugusto Pinochet. Os atritos entre os regimes argentino e chileno e entre ambos e a Casa Brancageraram situações inusitadas, como o flerte entre Buenos Aires e Moscou (expresso na venda decereais argentinos para a União Soviética, após o boicote decretado por Carter em represália àinvasão do Afeganistão, em 1979) e a aproximação Santiago-Pequim, materializada no fornecimentode armamentos chineses para o Chile.

11 O Brasil protagonizou uma das crises mais importantes: a assinatura do Acordo Nuclear com aAlemanha Ocidental, em 1975, contrariando as expectativas de Washington. O Chile foi o responsávelpelo grave incidente deflagrado pelo atentado perpetrado em 1976 pela DINA, a polícia política dePinochet, contra Orlando Letelier, ex-chanceler de Allende exilado em Washington.

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civil completou-se na escolha de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral,em 1984, abrindo caminho para as eleições presidenciais diretas, em1989. Na Argentina, a Guerra das Malvinas precipitou o desaparecimentodo regime militar, nas eleições gerais de 1983, mas a agitação sediciosanos quartéis acompanhou todo o governo de Alfonsín, até a eleição deCarlos Menem e o indulto aos militares da “guerra suja”, em 1989. NoChile, a lenta transição democrática consolidou-se, parcialmente, coma eleição presidencial de Patrício Aylwin, também em 1989.

Genericamente, o ritmo da redemocratização do Cone Sulreproduziu-se mais ou menos por todo o subcontinente, em situaçõestão diversas como as da Bolívia, do Peru, do Haiti e da Nicarágua. Adécada de 1980 assinalou o encerramento do ciclo militar latino-americano e o estabelecimento de regimes democráticos baseados nacompetição partidária e nas eleições livres.

A combinação dos processos de redemocratização com oesgotamento das estratégias históricas de desenvolvimento por“substituição de importações”, no ambiente do encerramento da GuerraFria, representa o traço essencial da nova realidade latino-americana.12

Como regra geral, que se traduz diferenciadamente em função davariedade de situações nacionais, os países do subcontinente enfrentamatualmente o duplo desafio de redefinirem sua inserção no sistemainternacional de Estados e na economia global.

A democracia política e a revisão dos modelos econômicosfundamentados no protecionismo constituem pontos de partida para anova trajetória dos países do subcontinente. A integração a umaeconomia internacional que, simultaneamente, se globaliza e seregionaliza em blocos solicita a reorganização das funções do poderpúblico e a estabilização macroeconômica. A eficiência empresarialtorna-se meta de políticas microeconômicas amparadas pela reduçãodas tarifas alfandegárias e pela exposição à competição externa. Osacentuados desníveis sociais e a presença de massas imensas de excluídos

12 Sobre o esgotamento da etapa de “substituição de importações”, consultar Stephany Griffith-Jonese Osvaldo Sunkel, O Fim de uma Ilusão: As Crises da Dívida e do Desenvolvimento na América Latina(São Paulo: Brasiliense, 1990).

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representam desafios suplementares, que condicionam as formas e asopções das políticas de reforma econômica.

Uma das características essenciais da evolução das políticasexternas latino-americanas é a busca da dinamização de acordos deintegração econômica em blocos sub-regionais. Três décadas depois doTratado de Montevidéu de 1960, que instituiu a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), os novos esquemas de cooperaçãoe integração distinguem-se nitidamente da tradicional perspectiva deampliação geográfica da proteção dos mercados. Atualmente, trata-seda implementação de blocos econômicos inscritos no movimento deglobalização dos fluxos de capitais e mercadorias, que guardamcoerência com os esforços nacionais de abertura dos mercados internose maior exposição à concorrência internacional.

Esse esforço geral está presente na reativação da ComunidadeAndina e do MCCA, nos acordos bilaterais firmados pelo Chile com oMéxico e a Argentina, no Mercosul, e na concretização de acordos delivre comércio do Chile e da Bolívia com o Mercosul. Ele transforma opanorama de todo o subcontinente e solicita iniciativas de políticaexterna criativas e inovadoras.

O conjunto desses processos de integração se depara a dois desafiosde primeira magnitude. Um deles consiste na questão crucial dadefinição das relações comerciais do subcontinente com os EstadosUnidos, que se materializa nas negociações para a formação da Alca.

O outro consiste na instabilidade macroeconômica provocada pelosfluxos globalizados de capitais financeiros e pelos seus reflexos cambiais.Esse segundo desafio está associado, parcialmente, aos problemas nascontas externas e aos difíceis processos de ajuste fiscal de praticamentetodos os Estados do subcontinente. Porém, de um ponto de vistaestrutural, sua origem encontra-se nas oscilações cambiais característicasda globalização, cujas repercussões podem ser desastrosas para osesforços de integração comercial regional.

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Focos de instabilidade institucional

Na América Latina, a democracia é um fenômeno histórico recente.Suas regras formais chocam-se com estruturas políticas e institucionaisherdadas do passado autoritário e populista. Essa contradição, que semanifesta desigualmente nos Estados do subcontinente, continua a gerarinstabilidade e incertezas.

Os principais focos de instabilidade institucional aparecem naVenezuela e na Colômbia. Contudo, o impacto institucional das criseseconômicas e da exclusão social estendem-se, diferenciadamente, pelospaíses andinos e alcançam a Argentina.

Os dois cenários de crise na Região Andino-Amazônicaapresentam características distintas, derivadas das singulares históriasnacionais. Entretanto, seu traço comum é a falta de enraizamento dasinstituições democráticas e a legitimidade insuficiente das elites políticas.

A Venezuela, curiosamente, alcançou invejável estabilidadedemocrática após a eleição do democrata-cristão Rafael Caldera, em1968, precisamente no período em que proliferavam as “ditaduras desegurança nacional” no subcontinente. A ampliação vertiginosa dasrendas petrolíferas sustentou a formação de uma classe média prósperae assegurou o funcionamento das instituições democráticas e a alternânciano poder dos partidos tradicionais, até o final da década de 1980.

Contudo, a queda nas cotações do petróleo e a explosão doendividamento externo provocaram empobrecimento brutal do país.A ruptura do ciclo de “prosperidade petrolífera” manifestou-se soba forma de aguda crise institucional, no segundo governo de CarlosAndrés Perez (1989-1993).13

A tentativa de golpe militar de 1992 pelo coronel Hugo Chávez epelos outros oficiais nacionalistas do Movimento RevolucionárioBolivariano, o subseqüente estado de sítio e o impeachment do ano

13 A inflexão política foi marcada pelo “Caracazo”, a série de impressionantes manifestações popularesde fevereiro de 1989, cuja repressão deixou um saldo de mais de 500 mortos. O “Caracazo” ocorreulogo após a posse de Andrés Perez, como reação a um pacote de medidas liberalizantes que envolviamausteridade financeira, aumentos dos preços dos combustíveis e restrições a reajustes salariais.

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seguinte prenunciavam a marcha rumo ao colapso institucional. Osegundo governo de Rafael Caldera (1994-1998), pontilhado por crisespolíticas e destroçado pela derrocada econômica, encerrou-se com asesmagadoras vitórias do Pólo Partidário nas eleições legislativas e de seulíder, Hugo Chávez, nas presidenciais.

O governo Chávez abriu nova etapa na história política venezuelana.Os partidos tradicionais – a AD e o Copei – parecem fadados à irrelevância.Uma Assembléia Constituinte, eleita em 1999 com esmagadora maioriaalinhada a Chávez, declarou seu propósito de reorganizar o conjuntodas instituições de Estado, em particular o Legislativo e o Judiciário. Emtorno do presidente, consolidou-se nova elite política de cunhonacionalista, em grande parte oriunda do Movimento RevolucionárioBolivariano. À sua frente, descortinaram-se as opções divergentes darenovação institucional da democracia ou da construção dos alicercesde um regime personalista e autoritário.

A polarização política não cessou de se aprofundar desde a eleiçãode Chávez. A coalizão da “revolução bolivariana” estruturou-se em tornoda oficialidade média e enraizou-se entre a população pobre das periferiasurbanas. As elites políticas tradicionais, utilizando a imprensa, as entidadespatronais e parte do movimento sindical conseguiram reunir a classemédia numa campanha de boicote sistemático contra o “chavismo”.

No início de 2002, a radicalização desaguou num golpe militarque fracassou em menos de dois dias, sob o impacto do isolamentoexterno e o da reação interna. O golpe frustrado sofreu imediatacondenação na América Latina, mas teve a simpatia pouco disfarçadade Washington. A “revolução bolivariana” não enfrenta apenas apolarização aparentemente irreversível da política venezuelana mas,também, a antipatia declarada da administração de George W. Bush.

Um ano depois, uma greve organizada por dirigentes e funcionáriosda empresa estatal petrolífera representou a senha para uma tentativa,também frustrada, de obter a renúncia do presidente. A diplomaciabrasileira desempenhou papel crucial no episódio, evitando o isolamentointernacional de Chávez e neutralizando os esforços de Washington paraconseguir a abreviação do mandato presidencial.

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Na Colômbia, a violência política convive, há décadas, cominstituições representativas profundamente corroídas pela corrupção.Durante a década de l970, o crescimento do narcotráfico foi acompanhadopela expansão das atividades guerrilheiras das Forças ArmadasRevolucionárias da Colômbia (Farc), do Movimento Revolucionário19 de Abril (M-19) e do Exército de Libertação Nacional (ELN).Paralelamente, estruturavam-se os esquadrões paramilitares de extremadireita, responsáveis por atentados e chacinas cada vez mais numerosos.

As tentativas de diálogo político no governo de Belisario Betancur(1982-1986) geraram uma dissidência nas Farc, que abandonaram aluta armada e se transformaram em partido político. No final do governode Virgilio Barco (1986-1990), o M-19 também desistiu da guerrilha.Mas a violência política endêmica manifestou-se nas eleições de 1990,quando foram assassinados os candidatos presidenciais do M-19 e daUnião Patriótica, oriunda da dissidência das Farc.

A repressão desencadeada pelos governos de César Gaviria (1990-1994) e de Ernesto Samper (1994-1998) contra os cartéis da drogaestreitou as relações entre os narcotraficantes e os grupos armados deesquerda e direita. Desde meados da década de 1990, as guerrilhas dasFarc e do ELN intensificaram suas atividades e chegaram a controlar,em 1998, cerca de 40% do território do país. As eleições presidenciais,dominadas pelos debates sobre a pacificação, conduziram ao poder oconservador Andrés Pastrana.

As negociações de paz conduzidas por Pastrana, envolvendo osdois agrupamentos guerrilheiros, foram desde o início bloqueadas porsucessivos impasses. O virtual desmantelamento das instituições deEstado, contaminadas de alto a baixo pelo dinheiro do tráfico, aimpotência das Forças Armadas diante das guerrilhas e dos esquadrõesde extrema direita e a campanha de seqüestros conduzida pelas Farccontribuíram decisivamente para o colapso da tentativa.

Mas o processo de paz de Pastrana sofreu, desde o início, os efeitosdo Plano Colômbia. Articulado pelos governos da Colômbia e dosEstados Unidos em 2000, o Plano destinava-se, originalmente, a erradicaras plantações de coca e combater o narcotráfico. Nesse quadro de

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cooperação, Washington assumiu o compromisso de fornecerequipamentos militares e treinar soldados colombianos.

No início, o Plano Colômbia distinguia o narcotráfico dasguerrilhas e circunscrevia-se ao objetivo de combater o tráfico de drogas.Contudo, aos poucos, essa fronteira foi sendo dissipada e substituídapela noção da “narcoguerrilha”. A noção da “narcoguerrilha” é,essencialmente, falsa. As Farc e o ELN condenam o narcotráfico e nãomantêm acordos políticos com os cartéis, embora admitam que cobramimpostos dos narcotraficantes.

A Doutrina Bush completou o percurso, suprimindo formalmentea distinção original do Plano Colômbia. No lugar da “narcoguerrilha”,Washington passou a trabalhar com a noção do “narcoterrorismo”. Nomomento do colapso do processo de paz, Pastrana caracterizou osguerrilheiros como terroristas, suprimindo o estatuto de opositorespolíticos de que gozavam.

A nova etapa do Plano Colômbia coincidiu com a vitória eleitoralde Alvaro Uribe, sobre a base de uma plataforma de combate implacávelaos grupos guerrilheiros. Uribe apresentou-se como candidatoindependente, e seu sucesso rompeu o tradicional rodízio entre liberaise conservadores. A promessa de suprimir as guerrilhas e o narcotráficoassegurou o apoio de um eleitorado farto da guerra civil crônica e daviolência política permanente. Entretanto, nada indica que o abandonodo caminho das negociações possa conduzir o país à estabilizaçãoinstitucional.

O pano de fundo da instabilidade política na América Latina é ofracasso econômico e social das políticas liberais aplicadas há mais deuma década. Um estudo da Cepal revelou que, em 2002, novos 7 milhõesde latino-americanos ficaram abaixo da linha de pobreza. A proporçãode pobres subiu para 44% da população, perfazendo 222 milhões depessoas.

As instituições políticas sofrem, em todos os países, o impacto dessefracasso. Na Bolívia, no início de 2003, estudantes e policiais rebeladoscercaram o palácio presidencial onde se encontrava Gonzalo Sanchezde Losada, eleito meses antes. A explosão de violência, precipitada por

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aumento de tarifas e tentativa de instituir novo imposto sobre salários,deixou um saldo de 33 mortos e centenas de feridos.

No Equador, a dolarização da economia, imposta por GustavoNoboa em 2000, não conseguiu estabilizar a economia mas ampliou ocontingente de miseráveis. As eleições presidenciais de outubro de 2002deram a vitória ao candidato de esquerda Lucio Gutierrez, que teve oapoio das organizações sociais e indígenas.

O panorama, marcado pela crise econômica, é de desorganizaçãodos sistemas de regulação política. Os partidos tradicionais, desgastadose desmoralizados, perdem suas raízes sociais. As instituições políticassofrem de aguda falta de credibilidade. Contudo, mesmo nesse quadro,as regras da democracia resistem e evidenciam força insuspeitada.

Texto Complementar

O SUBSISTEMA REGIONAL LATINOAMERICANO, G. Pope Atkins(In: América Latina en el Sistema Político Internacional, Buenos Aires: GrupoEditor Latinoamericano, 1991, p. 45-57)

Los eruditos han propuesto diversas definiciones de subsistemasregionales, y su labor sobre los temas pertinentes está caracterizada por unadisparidad conceptual. Un informe de William Thompson (1973) sobre losescritos acerca de subsistemas regionales se destaca como uno de los mas útilespara establecer qué criterios deberían ser aplicados al determinar la validez deconsiderar las regiones geográficas como subsistemas internacionales.Thompson ha hecho un inventario y evaluado veintiún atributos que habíansido propuestos por dieciocho analistas para definir un subsistema regional.Llegó a la conclusión de que los criterios necesarios y suficientes eran tres:1) que los actores regionales estuvieran geograficamente próximos (estacondición está implícita en el término “región”, e incluye la identificación deunidades diferenciadas; 2) que se reconozca a la región – tanto interna comoexternamente – como un área distintiva; y 3) que la interacción entre los actoresy sus esquemas de relaciones muestre un grado de regularidad e intensidad(esta condición está implícita en el concepto de “subsistema” y es en partesinónimo de la noción de integración). Un subsistema regional, entonces,consiste en un conjunto de Estados geograficamente próximos que interactúan

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regularmente y comparten hasta cierto punto un sentido de identidad regional,reconocido por actores exteriores. Estos mismos criterios identifican otrossubsistemas dentro de la región.

Al estudiar un subsistema regional particular uno debe identificar, enprimer término, la frontera que delimita la región y la diferencia de otroscomponentes del sistema internacional más amplio. En un sistema autónomo,la frontera se define como el límite que contiene todos los componentes y fueradel cual no hay interacción del sistema. Decididamente, los actores exterioresa un subsistema regional son importantes, pues hay interacción más allá delas fronteras. El límite debe separar los componentes de un subsistema de losde otros, aunque estas distinciones pueden estar menos claramente definidasen un sistema independiente.

El establecimiento de una tipología de actores importantes para elsubsistema ayuda a identificar los límites regionales. Para distinguir unsubsistema de otros componentes del sistema deben identificarse las unidadesdiferenciadas. Estas incluyen los Estados regionales dentro de las fronteiras,los Estados exteriores que interactúan regularmente con los actores regionalesy varias clases de entidades regionales y externas que no son naciones ni Estados.

Una característica necesaria del subsistema regional es la proximidadgeográfica dentro de fronteras físicas, pero por si misma ella no define elsubsistema. Los investigadores de estudios regionales deben cuidarse deldeterminismo geográfico y estar atentos a las conjeturas no autorizadas sobreel carácter de las relaciones políticas dentro de un territorio determinado. Elresultado puede ser una región artificial basada solamente en convenienciageográfica; si las unidades propuestas del subsistema no tienen en común nadamás que su proximidad, entonces la proposición no es válida. Por ello, despuésde establecer los límites geográficos de una región, el analista debe buscarindicaciones adicionales de la categoría de subsistema.

El segundo aspecto del análisis del subsistema es el grado de laautopercepción regional y la visión que los actores exteriores tienen de la región.Los atributos compartidos por los actores del subsistema pueden ayudar adelinear la región si es que contribuyen a una autoconciencia regional. Entérminos sistémicos, sin embargo, los rasgos socioculturales, económicos ypolíticos comunes no son requisitos definitorios y no hay ningún mérito en

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imponer tales restricciones a las designaciones regionales. Los Estados próximose interactuantes pueden ser ricos o pobres, culturalmente complejos o simples,política y socialmente avanzados o no (según se los defina) sin violar el conceptode subsistema. La consideración clave en el análisis del subsistema es el gradode identidad mutua entre los actores.

La región, finalmente, también se define por la regularidad de lasrelaciones entre las unidades, incluyendo los esquemas e intensidad de lasdiversas formas de interacción llevadas a cabo por los actores regionales oexteriores, tanto cuando son Estados como cuando no lo son, así como lasinstituciones y procesos reguladores relacionados con el subsistema. ¿Cualesson los esquemas y efectos de contactos internacionales tales como intercambiosdiplomáticos, comunicaciones, relaciones culturales, comercio e inversión, ayudaeconómica y diversas clases de relaciones militares? ¿Surge una configuraciónde poder identificable entre los actores regionales o con respecto a la regióncomo parte de la estructura mundial? ¿Cuál es el papel del conflictoregularizado, tanto dentro de la región como con actores externos, al estructurarel subsistema? ¿Que asociaciones y organizaciones formales dan mayorestructura a la política regional?

¿Cuan válida es la visión de América Latina como un subsistemaregional? Los treinta y tres Estados independientes de la región, ¿forman unaentidad de estudio coherente? Esta pregunta es la versión de los teóricos delsistema para la antiquísima pregunta de los latinoamericanistas: ¿hasta quépunto puede considerarse el área como una unidad significativa en el manejode los asuntos internacionales? En otras palabras: los Estados independientesde la región, ¿forman una entidad de estudio coherente, o América Latina essólo una descripción geográfica conveniente?

En la exposición que sigue argumento que América Latina puedeefectivamente ser vista como una unidad significativa en el manejo de asuntosinternacionales. Además, establezco que la clave para un análisis detalladode las relaciones internacionales latinoamericanas es reconocer varios nivelesdentro del subsistema. Esto es, la estructura y los procesos de las relacionesinternacionales latinoamericanas deberían ser definidos en una serie jerárquica:1) toda la región como un subsistema del sistema internacional mundial;2) subregiones dentro de la región latinoamericana; y 3) conjuntos de relacionesbilaterales por parte de Estados latinoamericanos individuales. Es posible

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detectar una variedad de subsistemas subregionales; desde mi punto de vista,los tres más importantes son México, el Círculo del Caribe y América del Surmás allá del Caribe (Cono Sur y Brasil). También expondremos másextensamente niveles subalternos dentro del Caribe y América del Sur, talescomo América Central, la Comunidad de Naciones del Caribe, la cuenca delAmazonas, la región andina y otros.

El nível regional latino-americano

Demarcación geográfica y tipología de actores

La frontera regional. La identificación de una línea de demarcaciónregional comienza con el concepto de un límite geográfico que delimita la regióny encierra un conjunto de Estados físicamente próximos. De esta manera,América Latina es definida como la región que incluye el territorio del hemisferiooccidental al Sur de Estados Unidos. Mide 7.000 millas desde el norte deMéxico hasta el Cabo de Hornos en el extremo sur de Chile y Argentina. Estaárea está ocupada en su mayor parte por treinta y tres Estados soberanos (aprincipios de 1989). El resto pertenece a colonias de Gran Bretaña, Holanda,Francia y Estados Unidos. El norte de la región – México y la zona del Caribe– está, en general, al sur de Estados Unidos. Casi toda América del Norte; laregión de Natal (el “bulto” brasileño) está a apenas 1.900 millas del puntomás próximo del continente africano.

Los Estados regionales. Los Estados regionales situados dentro de loslímites del subsistema forman el punto central de la política internacional delsubsistema. Estos Estados están normalmente subdivididos en agrupacionesque reflejan su cultura política y “edad” como Estados-nación independientes:

1. Iberoamérica se refiere a las diecinueve naciones de origen español yportugués, todas las cuales son Estados “viejos” o “tradicionales” en el contextode los estudios latinoamericanos. Dieciocho de ellos forman América hispana.Son, por orden alfabético: Argentina, Bolivia, Chile, Colombia, Costa Rica,Cuba, República Dominicana, Ecuador, El Salvador, Guatemala, Honduras,México, Nicaragua, Panamá, Paraguay, Perú, Uruguay y Venezuela. Ocupanel 57% del total de la superficie terrestre de América Latina. La mayoría deellos se independizó de España entre 1810 y 1830; Cuba lo hizo en 1898, perono fue técnicamente soberana hasta el fin de la ocupación norteamericana en1902. Panamá fue una provincia de Colombia hasta que logró su independencia

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en 1903. América portuguesa o Lusoamérica se refiere a Brasil, colonia dePortugal hasta su independencia en 1822. Este gigante da América Latina, elEstado regional más grande tanto en cuanto a población como a territorio ymás grande que la porción continental de Estados Unidos, cubreaproximadamente el 40% de la tierra latinoamericana.

2. La pequeña isla-nación de Haití es el más antiguo estado regional y,por lo menos periféricamente, “tradicional” para los latinoamericanistas. Haitíse separó de Francia en 1804 en un exitoso levantamiento de esclavos negros yha mantenido su cultura afro-occidental hasta el presente.

3. El resto de los actores regionales son trece “nuevos” Estados, doce delos cuales son antiguas colonias británicas que obtuvieron su independenciaentre 1962 y 1984 y son conocidas colectivamente como la Comunidad depaíses del Caribe. Son Antigua-Barbuda, Bahamas, Barbados, Belize,Dominica, Grenada, Guyana, Jamaica, St. Kitts-Nevis, Sta. Lucía, SanVicente y Trinidad Tobago. Surinam, una antigua colonia holandesa, seindependizó en 1975 y representa lo que podría llamarse la “Américaholandesa”.

Estados exteriores. El sector externo está compuesto de aquellosEstados exteriores a la frontera que tienen relaciones significativas con losactores regionales. Las colonias políticas ubicadas dentro del límite regional,que a comienzos de 1989 sumaban once entidades administrativas, representanuna continua intrusión territorial de Estados externos controladores (ReinoUnido, Francia, Países Bajos y Estados Unidos). Los Estados exterioresimportantes incluyen no sólo a los que poseen territorio regional sino tambiéna aquellos que mantienen alguna forma de interacción regularizada con laregión en cuestión, participan en la distribución regional de poder, estánasociados o participan de organizaciones regionales, o participan con la regiónen otras formas de política internacional.

Históricamente, los Estados europeos se contaban entre los mássignificativos componentes del sector externo, con Gran Bretaña como únicoactor exterior más importante en el siglo XIX. Una cantidad de ellos hareafirmado recientemente sus intereses latinoamericanos, en especial desdecomienzos de 1970. Estados Unidos, importante en el norte de América Latinadurante el siglo XIX, ha sido el más significativo (aunque no indiscutido) actoexterior para gran parte de América Latina durante la mayor parte del siglo

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XX. La Unión Soviética expandió sus actividades hacia 1960, comenzandocon su alianza con Cuba. Por la misma época, Japón se transformó en unafuerza económica importante. Un conjunto de Estados exteriores tiene relacionesbilaterales especiales o de otro tipo en la región latinoamericana.

Actores que no son Estados. Muchas clases de entidades que no sonEstados también funcionan como actores importantes en el subsistemalatinoamericano. La más vieja es la Santa Sede y la estructura organizativade la Iglesia Católica Romana. Las corporaciones multinacionales (CMN)también han tenido papeles importantes, así como – en menor medida – losmovimientos obreros internacionales. Los grupos insurgentes subnacionaleshan estado activos en América Latina por largo tiempo, especialmente desdefines de los años 50, y lo siguen siendo en la actualidad. Además, la importanciade partidos políticos transnacionales, especialmente los de origen europeo, haido en aumento.

Percepciones

Autoconciencia regional. La evidencia que confirma la existencia de unaconciencia regional es variada. En América Latina, tanto las diferencias comolas singularidades fundamentales son obvias. Sin embargo, no debería hacersedemasiado hincapié en diversidad y singularidad; los Estados latinoamericanostienen mucho en común, y en ciertos aspectos importantes prevalece unaidentificación mutua. Aunque pocas son las generalizaciones que podríanaplicarse a todos los Estados latinoamericanos, existe un alto grado deparentesco entre ellos, y algunos esquemas aplicables en general (aunque nouniversalmente) y experiencias y peculiaridades comunes surgen de ladiversidad. (...).

La conciencia regional es difícil de medir, pero la evidencia sugiere unafuerza en “contrafase” actuando sobre las relaciones latinoamericanas, unasituación ambivalente de rechazo y atracción mutuas. Las expresiones másobvias de ambivalencia se pasan en las relaciones entre Brasil y Américahispana. Hay gran diversidad entre los dieciocho Estados hispanoamericanos,pero ellos también muestran una fuerte unión cultural e identidad mutua dentrode la región. En la América hispana la ambivalencia se refleja especialmenteen la competencia por el liderazgo entre México y Argentina y, a veces entreColombia, Chile, Perú y Venezuela. La identidad mutua es revelada más aun

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por la susceptibilidad de grupos políticos de un Estado con respecto a progresosde otros Estados. Los efectivos militares parecen tener comunicaciones regularescon sus pares latinoamericanos tal como ocurre, cada vez más, entre ciertospartidos políticos y, en menor medida, con los sindicatos de trabajadores.Aunque las experiencias mexicanas, brasileña, cubana, peruana y otras hanplanteado diversos modelos de desarrollo, parece significativo que los debatesregionales tiendan a concentrarse sobre qué soluciones latinoamericanas sonmás viables para los problemas de cambio con una referencia mínima a modelosno regionales.

Los Estados exteriores han contribuido a aumentar la cohesiónsubsistémica en América Latina con su sola presencia. No hubo Estadolatinoamericano que fuera un gran poder dentro de la corriente política mundial;todos operaron desde una posición débil con respecto a las potencias mundiales,salvo algunas excepciones recientes. Aunque algunos estuvieron a veces muycerca de romper este molde, la mayoría ha tendido a unirse a otros para hacerfrente a las amenazas, reales o imaginarias, del mundo exterior. Por ejemplo, launidad hispanoamericana desde las guerras de la independencia de Españahasta mediados de 1860, en la medida que existió, se basó principalmente enel temor a los extranjeros y en el deseo de aliarse en contra de ellos. Los planesde integración económica desde la Segunda Guerra Mundial fueron motivadosno solamente por esperanzas de beneficio económico mutuo, sino también porla posibilidad de escapar de la dependencia económica de Estadosindustrializados externos. Además, los latinoamericanos propendieron aapoyarse mutuamente cuando los forasteros ejercieron presión en la zona, auncuando no estuvieran involucrados los intereses de un Estado individual. Porejemplo, la intervención norteamericana en el Caribe durante el primer terciodel siglo XX provocó fuertes protestas de la lejana región del Río de la Plata,que no fue mayormente afectada por la acción norteamericana. Hacia mediadosde los años 70 el tema del Canal de Panamá ya no era sólo un enfrentamientoentre Panamá y Estados Unidos, sino que se había convertido en unapreocupación para virtualmente toda América Latina, que apoyaba los interesesde Panamá en desmedro de Estados Unidos. Más recientemente, el conflicto enAmérica Central desembocó en la organización del Grupo de Contadora entreMéxico, Colombia, Venezuela y Panamá, posteriormente respaldado por un “grupode apoyo” de Estados sudamericanos no afectados directamente por las crisiscentroamericanas. Otro ejemplo de unidad regional fue la decisión mayoritaria

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de Estados latinoamericanos al expresar su apoyo a Argentina durante laguerra con el Reino Unido en 1982 por la posesión de las Islas Malvinas/Falkland, aun cuando no aprobaran la agresión argentina.

Regularidad de interacción

Una parte considerable de este libro se ocupa de los procesos de interaccióny, cuando es adecuado, se consideran en el contexto latinoamericano losdiversos criterios referidos a estructuras subsistémicas propuestas en midefinición de requisitos del subsistema. La pregunta general a plantear es siexiste regularidad de relación en estas áreas; si fuese así, se reforzaría el conceptode un subsistema latinoamericano. Los siguientes capítulos exponen los procesosde interacción que proveen evidencia considerable para la teoría de unsubsistema regional.

Otros subsistemas

México

México es un Estado importante que limita con una superpotencia. EnAmérica Latina se destaca por su especial estructura de relaciones bilateralescon Estados Unidos, además de sus relaciones interamericanas einternacionales. México integra un subsistema norteamericano separado delresto de América Latina: Canadá y Estados Unidos. Siempre ha tenido sumaimportancia para una u otra de las potencias mundiales, pero desde hacelargo tiempo Estados Unidos ha sido la principal presencia extranjera en México(la amenaza extranjera a los ojos de muchos mexicanos). Por consiguiente larelación México-Estados Unidos está en gran medida segregada de la másamplia liza interamericana. Mucho de los temas son “norteamericanos” encuanto al contenido y están estrechamente vinculados con los asuntos internosen cada país; la relación ha sido determinada especialmente por la proximidadterritorial y estructuras económicas y sociales cada vez más integradas.

El círculo del Caribe

El límite del subsistema del Caribe en la política internacional incluye,según la percepción tanto de los Estados locales como exteriores, las islas delMar Caribe y las más próximas en el Océano Atlántico, todo el istmo de

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América Central y la península de Yucatán, la costa septentrional de Américadel Sur que se extiende hasta el Océano Atlántico y más allá del Mar Caribecomo tal. De este modo, se considera a Venezuela una nación caribe, Colombiaes vista cada vez más como perteneciente a la región caribe, pero también se laclasifica como nación del Pacífico. Los dos países se vieron incluidos, de tiempoen tiempo, en el subsistema andino de América del Sur. La idea de una “cuencadel Caribe” que se adapta a la definición dada más arriba, a menudo es vistapor los europeos como un invento norteamericano (los planificadores de políticasde Estados Unidos prefieren ese término); pero en el siglo XIX Gran Bretañaparecía sostener la misma idea, así como lo hacen hoy Venezuela y México.

Los Estados caribeños han sido pequeños, débiles y relativamente noinstitucionalizados, con la excepción de Colombia y (más recientemente)Venezuela y Costa Rica. Por consiguiente, la región siempre ha sido objeto derivalidades, presión, intervención y dominación por parte de potencias másfuertes. No hay nada nuevo con respecto al conflicto geopolítico en el área. Eneste sentido, la política internacional no ha cambiado por siglos; soló los actoresse han desplazado. A lo largo del siglo XX los Estados caribeños generalmenteestuvieron bajo la esfera de influencia norteamericana. Estados Unidos hasido el policía internacional de la zona, más dogmático y consecuente ahí queen América del Sur más allá del Caribe; la mayor parte del área integra unsistema de comercio bilateral con Estados Unidos.

La presencia norteamericana en el Círculo del Caribe ha sido uno de losmás claros casos de hegemonía en el sistema político internacional. Estahegemonía, sin embargo, no ha sido total, constante o simple y ha soportadonumerosos retos. Las posesiones territoriales del Reino Unido, Francia y losPaíses Bajos constituyeron una constante desviación de la supremacíanorteamericana. Más recientemente, la Unión Soviética se alineó con Cuba yapoyó a Nicaragua. (...) Además, las acciones norteamericanas en el Caribe,a lo largo de los años, a menudo generaron una fuerte oposición interna enEstados Unidos. A fin de cuentas, sin embargo, el poder y la influencia deEstados Unidos han sido y continuarán siendo los principales factores en lapolítica internacional del Caribe.

El Círculo del Caribe se puede seguir subdividiendo. América Central, elárea del istmo entre México y Colombia, muestra características sistémicas. LosEstados centroamericanos desearon la unidad política por más de un siglo y

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medio, pero no la lograron. Se agruparon en uniones políticas y económicas,pero están profundamente divididos con respecto a una cantidad de temas. La(...) crisis de guerra civil y conflicto internacional en América Central aportaotro elemento estructural que contribuye a definir esta área como un subsistema.La Comunidad de Países del Caribe también conforma un subsistema. Estánmayormente en la zona este del Caribe, a excepción de Belize, ubicada en elistmo de América Central. Estados Unidos también lograron unirse a laFederación de Indias Occidentales e independizarse como un solo Estado en1962. Pero poco después comenzó su integración económica. La intervenciónnorteamericana en Grenada (un país de la Comunidad de Países del Caribe)en 1983 los separó aún más, pero posteriormente tomaron medidas para repararestas divisiones.

El Cono Sur

Es discutible que todo el continente sudamericano por debajo de AméricaCentral forme un subsistema internacional. América del Sur más allá delCaribe, sin embargo, es una entidad más coherente. Desde el punto de vista dela política internacional, esta zona mayoritaria del continente es en gran partesinónimo de lo que se llama el Cono Sur de Sudamérica. Los actores en lasrelaciones internacionales del Cono Sur son: Argentina, Brasil, Chile, Uruguay,Paraguay, Bolivia, Perú y, a veces, Ecuador. Se excluye a la hilera de Estadosnorteños: Colombia, Venezuela, Guyana y Surinam; los intereses de estosEstados se superponen a los del subsistema sudamericano, especialmente enlos que hace a límites, pero el impulso de sus relaciones internacionales a menudoes paralelo a los temas de la Cuenca del Caribe.

Definido de esta manera, el Cono Sur forma un subsistema regionalque se distingue por una serie de características. Una de las más importantesha sido el relativo aislamiento de la región de la corriente política internacional,en gran parte debido a su singular situación geográfica. Además, los Estadoslíderes del Cono Sur están, en un sentido relativo, internamenteinstitucionalizados y actúan independientemente en cuanto a políticainternacional se refiere, en especial se los compara con la mayoría de los paísescaribeños. Su remota ubicación mundial a gran distancia de Europa y EstadosUnidos, combinado con la fuerza relativa de los Estados clave locales, haliberado a la región mayormente de ser incluida en las rivalidades mundialesde equilibrio de poder y la ayudió a resistir influencias externas sobre el manejo

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de asuntos internos. De esta manera, la región no formó parte de un sistemamundial de equilibrio de poder en el cual una potencia ha asumido el papel depolicía internacional que impone la paz. Esta autonomía es dramáticamentediferente de la situación que se presenta en el Norte de América Latina.

Los Estados del Cono Sur tienen una amplia seria de relaciones externasque se suman a su habilidad para equilibrar influencias exteriores. La subregiónes un área de comercio multilateral; a diferencia de México y la mayor partedel Caribe, que están restringidos a un intercambio económico bilateral conEstados Unidos, los Estados del Cono Sur y Brasil tienen antiguos vínculos,tanto culturales como económicos, con Europa. El comercio regional con Europa,notablemente, incluye transferencia de armamentos. Brasil, en especial, hadiversificado su economía y desarrolló un extenso espectro de relacionesbilaterales. (...) Estados Unidos, en conjunto, ha sido uno de entre varioscompetidores en América del Sur sin alcanzar jamás una posición dominantecomo en el Círculo del Caribe, o de principal importancia como en México. Engeneral, Estados Unidos ha tenido en cuanto a sus relaciones latinoamericanasse refiere, un interés mínimo por el Cono Sur, a excepción de Brasil, y suinfluencia en este país ha disminuido significativamente desde mediados delos años 60.

Un relativo aislamiento de la política de poder mundial ha permitido ala mayoría de los Estados del Cono Sur constituir esquemas independientesde interacción con respecto a su propio conjunto de temas subregionales. Estostemas abarcaron tanto rivalidades locales por obtener el liderazgo comobúsquedas nacionales de seguridad, poder, bienestar, prestigio y recursos,dependiendo de las capacidades de los Estados comprometidos. La políticainternacional subregional ha agregado componentes estratégicos y geopolíticosa las políticas exteriores de los más importantes Estados del Cono Sur. Handesarrollado estos esquemas solamente con referencia a sus propias subregiones,ampliadas hasta incluir el Atlántico Sur y la Antártida. Las relacionesintraregionales se caracterizaron por equilibrios de poder más bien firmes ypersistentes en los cuales los Estados más pequeños funcionaron como“amortiguadores” de las rivalidades entre Estados más grandes. La adopciónde perspectivas geopolíticas distingue más aún el subsistema del Cono Sur delas zonas más norteñas de América Latina. Es particularmente ominoso ycontrasta sobremanera con el resto de América Latina que se hayan introducidocuestiones nucleares en las relaciones internacionales subregionales con

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potenciales desarrollados por Argentina y Brasil. Finalmente, como ya lomencionamos, algunos Estados del Cono Sur tienen vínculos con la región delAtlántico Sur e intereses en la Antártica. Estos intereses son característicos delos Estados subregionales sudamericanos dentro de América Latina.

El subsistema del Cono Sur, al igual que el de la Cuenca del Caribe,puede ser subdivido aún más. Han emergido particularmente tressubagrupaciones caracterizadas por organizaciones formales y porotros rasgos, tales como disputas por cuestiones de límites. Los países del Plata– Brasil, Argentina, Uruguay, Paraguay y Bolivia – tienen unaautoidentificación reflejada, entre otras formas, por su organización del acuerdode la Cuenca del Plata en 1969 orientado al desarrollo de la infraestructuraregional. Los países amazónicos – Brasil, Surinam, Guyana, Venezuela,Colombia, Ecuador, Perú y Bolivia – tienen una autopercepción similar; firmaronel Pacto Amazónico en 1978 por el desarrollo controlado de la Cuenca delAmazonas.

En un subsistema andino que a veces emerge, parte del Cono Sur sesuperpone al Círculo del Caribe. Los países andinos – Venezuela, Colombia,Ecuador, Perú, Bolivia y Chile – se consideraron a sí mismos, en muchossentidos, una unidad internacional. Por ejemplo, la integración fue fomentadaen 1966 por la formación del Grupo Andino y estos Estados (exceptuando aVenezuela) son parte de un naciente sistema comercial de la Cuenca del Pacífico.Para algunos de ellos los intereses territoriales también se extendien al OcéanoPacífico: la Isla de Pascua pertenece a Chile y las Galápagos a Ecuador.

Brasil

Como se ha mencionado anteriormente, Brasil está geograficamenteseparado del Cono Sur, pero es un actor clave de este subsistema. Es el Estadomás fuerte, tanto de ese subsistema como de América Latina en general. Envarios sentidos, sus relaciones bilaterales deben ser consideradas subsistemasseparados. Brasil se mantuvo apartado del resto de América Latina por muchotiempo debido a su herencia cultural portuguesa, tamaño (territorial, poblacióny economía), ambición y potencial para ser un Estado influyente en la políticamundial. Durante largo tiempo el “gigante dormido” de América Latina y,alguna vez, el socio joven de una alianza cooperativa con Estados Unidos,Brasil ha aumentado su autoconfianza frente a Estados Unidos y su capacidad

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general para seguir políticas exteriores independientes. Ha aumentadoexitosamente sus relaciones bilaterales y no está dispuesto a resurgir comosubordinado en cualquier relación futura. Ahora establece relaciones conEstados Unidos que no presuponen intereses mutuos; prefiere acercarse a otrasnaciones del mundo desde el punto de vista de relaciones bilaterales antes queen conjunto con el resto de América Latina y está abierto a una mayor expansiónde sus relaciones exteriores. Es significativo, además, que Brasil hayadesarrollado una red multilateral de comercio internacional.

3 – CONE SUL E MERCOSUL

Nos primeiros tempos – os tempos de Colombo e Gandavo – aAmérica foi una. Conquistadores, aventureiros e colonos enxergaramna América o paraíso perdido e reencontrado. A América era a fonte deriquezas incomensuráveis, que incitavam a imaginação e chamavampara a aventura. Em oposição à Europa, a América era o Novo Mundo,livre dos vícios e da miséria, da provação e do sofrimento. A unidadeamericana dessas primeiras décadas não se assentava sobre a realidade,mas sobre a imaginação.

A colonização rompeu a unidade ilusória da América de Colombo,fragmentando-a em territórios desconectados, amarrados apenas peloslaços que os prendiam à economia mercantil vertebrada nas monarquiaseuropéias. As modalidades divergentes de exploração colonialdissolveram a “América” e criaram as Américas: a América hispânica,assentada sobre a servidão ameríndia; a América lusitana, apoiada naescravidão africana; a América anglo-saxônica, bipartida entre asplantações sulistas e as propriedades familiares nortistas; o Caribe dasplantations e dos piratas... A formação dos Estados nacionais americanos– que tem como ponto de partida a independência alcançada nasprimeiras décadas do século XIX – completou o percurso defragmentação do Novo Mundo.

A América britânica foi fraturada pela Revolução Americana emdois Estados de dimensões continentais. A América lusitana conservoua sua unidade no Império brasileiro. A América hispânica dissociou-se

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em uma diversidade de territórios nacionais, logo depois das vitórias deBolívar e San Martín. A América caribenha aprofundou sua trajetóriadisruptiva, gerando um caleidoscópio de microestados insulares.

Desde essa época, a unidade da América tornou-se um problemade ordem geopolítica e econômica. Os projetos de integração continentaltornaram-se temas da política externa dos Estados soberanos. Nessequadro, a disparidade crescente entre o poder e a força dos EstadosUnidos, de um lado, e a pobreza e o desamparo das nações latino-americanas, de outro, forneceu a moldura para diferentes empreendimentosintegradores.

Pan-americanismo

A invasão da Espanha pelas tropas francesas de NapoleãoBonaparte, em 1810, deflagrou o processo das independências naAmérica Hispânica. As elites criollas das colônias espanholas – estimuladaspelas idéias vindas da França revolucionária e da república independentedos Estados Unidos – encontraram em homens como Simón Bolívar eJosé de San Martín os chefes militares da libertação.

A restauração da Coroa espanhola, em 1814, após a derrota deNapoleão, abriu caminho para terrível contra-ofensiva metropolitana.Quando se iniciava a ofensiva recolonizadora espanhola contra as forçasdos generais libertadores, aparecia a célebre “Carta da Jamaica”. Nessedocumento, Simón Bolívar preconizava a unidade da América Hispânicaindependente, que deveria se organizar numa imensa confederação, doMéxico até a Argentina, formada por três grandes federações. O grandeideal bolivariano, de unidade do conjunto hispano-americano, teve nessedocumento sua primeira expressão.

Em 1824, quando a libertação tinha finalmente se concluído, afragmentação territorial da América Hispânica desenvolvia-se sob oinfluxo das oligarquias regionais, que tinham herdado os aparelhosadministrativos metropolitanos. Bolívar, presidente da Grã-Colômbia,empreendia então a última tentativa de salvar a unidade hispano-americana, convocando o Congresso do Panamá. Dois anos depois, areunião – assistida apenas por Grã-Colômbia, México, Federação

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Centro-Americana e Peru – fracassava melancolicamente. A dinâmicade decomposição territorial evoluiu inexoravelmente, gerando guerrascivis, conflitos e guerras de fronteira, hostilidade e desconfiança. Osnovos Estados emergiram refletindo os interesses das elites criollas e doscaudilhos políticos regionais.

O projeto bolivariano continuou ecoando nas décadas seguintes.Nos anos 1830 e 1840, o México esboçou iniciativas para a convocaçãaode reuniões continentais, revelando sua ambição de converter-se emliderança regional. Entretanto, após a devastadora guerra contra osEstados Unidos (1846-1848), deflagrada pela anexação do Texas, asiniciativas bolivarianas transferiram-se para a América do Sul. Entre1848 e 1865, ocorreram três encontros continentais, convocados sob osigno da “Carta da Jamaica”.

O Congresso Americano de Lima (1848), convocado pelo Peru,teve a participação de Bolívia, Chile, Equador e Colômbia. Nele, foiaprovado um Tratado de Confederação que, apesar do título pretensioso,limitava-se a estabelecer débeis mecanismos de ajuda mútua em casode agressão por uma potência estrangeira. O Congresso Continental deSantiago (1856) foi uma reunião de um único dia, assistida apenas porChile, Peru e Equador. Ela redigiu ambicioso Tratado Continental, jamaisratificado por qualquer Estado, que previa uma liga permanenteassociada contra eventuais agressões estrangeiras. A SegundaConferência de Lima (1864-1865) teve maior audiência, reunindo Peru,Bolívia, Chile, Equador, Venezuela, Colômbia, El Salvador e Guatemala.Novamente, a questão central foi a da defesa comum e, mais uma vez,projetou-se uma Confederação que nunca saiu do papel.

O hispano-americanismo oriundo das idéias do Libertador refletiua infância dos Estados surgidos do Império Espanhol. As oligarquiasregionais que controlavam os governos mal tinham consolidado o seupoder e o sentimento nacional apenas começava a se desenvolver. Aforça e a agressividade dos Estados Unidos manifestavam-se comoameaças, ao mesmo tempo que surgiam agressões localizadas daEspanha e da França. Nas últimas décadas do século XIX, o hispano-americanismo esgotou-se completamente, contaminado pelos interessesconflitantes das oligarquias e corroído pelos fracassos sucessivos das

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tentativas integracionistas. Por essa época, a ascensão dos EstadosUnidos à condição de grande potência representou o golpe definitivocontra o hispano-americanismo, que foi substituído pelo pan-americanismo.14

As origens remotas do pan-americanismo encontram-se naDoutrina Monroe. A América para os americanos – essas palavras célebrespronunciadas em 1823, perante o Congresso dos Estados Unidos,sintetizavam a oposição da república independente ao colonialismoeuropeu. Simultaneamente, sinalizavam as ambições territoriais do novoEstado, que conflitavam com os domínios territoriais russos e espanhóisna América do Norte. Esse duplo caráter – anticolonial e expansionista– da Doutrina Monroe seria a fonte da sua força e sua permanência.Traduzida e atualizada por todo um século, ela serviu de fundamentoideológico para a construção da esfera de influência continental dosEstados Unidos.

O hispano-americanismo entrevia a unidade de um conjuntogeopolítico formado pelas antigas colônias espanholas, excluindo asAméricas britânica e lusitana. O pan-americanismo, ao contrário, tempor horizonte a totalidade do continente: o “Hemisfério Ocidental”. Essanoção – destinada a borrar o fosso histórico, cultural e demográficoentre a “Saxônia” e a América Latina – abrigava o conceito da liderançaamericana sobre a América.

A política americana de “segurança hemisférica” desenvolveu-sesob o signo do Sistema Interamericano, criado na Primeira ConferênciaPan-Americana (Washington, 1889-1890). Outros encontros similarespontilharam as primeiras décadas do século XX. Formalmente assentadosobre os princípios do multilateralismo e da cooperação, o Sistema

14 “Aunque la perspectiva del americanismo subrayaba la homogeneidad cultural hispanoamericana, losacuerdos a los que se llegó en los cuatro congresos convocados entre 1826 y 1865 estaban esencialmentebasados en el miedo al mundo exterior. Probablemente muchos líderes alentaban con toda sinceridad unsentimiento tribal hispanoamericano, y ese espíritu sería uno de los factores de convocatoria de los congresos,pero la unidad lograda se basaba en las amenazas provenientes del mundo exterior. Cuando los peligrosexternos parecían superados, la unidad desaparecía. Los Estados hispanoamericanos mostraron uniformidady hasta solidaridad en sus puntos de vista acerca del mundo exterior a su región, pero en sus relacionesentre sí los nuevos Estados independientes eran a menudo acosados por sospechas o indiferencia recíproca.”G. Pope Atkins, América Latina en el Sistema Político Internacional.

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Interamericano funcionou como quadro de consultas diplomáticas queembasava a liderança dos Estados Unidos.15

Ao mesmo tempo, a cooperação hemisférica abria as portasda América Latina para os homens de negócios americanos, quediversificavam investimentos e ampliavam laços comerciais, invadindomercados até então praticamente monopolizados pelos capitaisbritânicos.

A dimensão planetária do poderio americano só iria ganharcontornos definidos após a Segunda Guerra Mundial. O crescimentoda influência geopolítica da União Soviética e a decadência dos impérioscoloniais europeus catapultaram os Estados Unidos à condição depotência hegemônica do mundo capitalista.

O território europeu foi o principal cenário da Guerra Fria.Entretanto, a emergência de um sistema bipolar de poder remodelouas relações entre os Estados Unidos e a América Latina. Então, o pan-americanismo assumiu o formato geopolítico adequado às condiçõesda Guerra Fria.

O pan-americanismo da Guerra Fria foi agressivo e intervencionista.Sob o pretexto da “contenção”, foram deflagradas intervençõesamericanas na Guatemala (derrubada do governo nacionalista de JacoboÁrbenz, 1954), em Cuba (apoio ao desembarque de exiladosanticastristas na Baía dos Porcos, 1961), na República Dominicana(apoio aos militares na guerra civil contra os nacionalistas, 1965), emGranada (derrubada do regime castrista, 1983) e no Panamá (derrubadada ditadura nacionalista de Manuel Noriega, 1989). Após a RevoluçãoCubana, as estratégias continentais de Washington derivaram para o

15 Criticando a operação americana no Haiti, em 1994, Henry Kissinger observou que, no episódio,abriu-se o precedente histórico de solicitar auxílio militar extracontinental, contrariando uma tradiçãodiplomática estabelecida: “Um dos princípios mais sagrados da política externa americana sempre foimanter o poder militar de outros continentes fora do Hemisfério Ocidental. Da Doutrina Monroe aoTratado do Rio de 1947, estabelecendo um sistema coletivo de segurança para o Hemisfério Ocidental,e nas décadas decorridas decorridas desde então, todos os governos dos EUA sempre insistiram emque os problemas hemisféricos devem ser resolvidos pelos países do Hemisfério. No entanto, ogoverno americano evitou envolver a instituição especificamente criada para esse fim, a Organizaçãodos Estados Americanos (OEA), por perceber que nossos parceiros no Hemisfério jamais aprovariama intervenção militar, se bem que concordassem com medidas diplomáticas e econômicas. O apelopor assistência militar a países que não integram o Hemisfério numa questão puramenteinteramericana cria um precedente que futuros governos americanos poderão vir a lamentarprofundamente.” (O Estado de S. Paulo, 29.9.1994, p. A2).

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apoio à implantação de ditaduras militares de “segurança nacional” naAmérica do Sul.

Latino-Americanismo

O conceito de integração econômica latino-americana surgiu noambiente da Guerra Fria. Ele refletia uma reação, tímida e limitada, àhegemonia dos Estados Unidos e ao pan-americanismo. O “HemisférioAmericano” bipartia-se em dois conjuntos contraditórios, separados poruma linha de tensão traçada sobre o Rio Grande. No lugar do conjuntocontinental, postulava-se a dissociação entre a “Saxônia” e a América“Latina”.16

No plano geopolítico, dois processos internacionais influenciarama emergência das idéias integracionistas latino-americanas: adescolonização afro-asiática e a integração econômica européia.

A descolonização afro-asiática foi deflagrada com a independênciada Índia e a do Paquistão, em 1947, ganhou tensão e densidade nomomento da libertação da Indochina francesa, em 1954, e atingiu todaa sua amplitude nos primeiros anos da década de 1960, com aindependência das colônias francesas e britânicas na África. O movimentodescolonizador gerou, como subproduto político, a ideologia terceiro-mundista.

A Conferência Afro-Asiática de Bandung (1955) e, principalmente,a Conferência dos Países Não-Alinhados de Belgrado (1961) assinalarama entrada do Terceiro Mundo no cenário diplomático internacional. Ospaíses subdesenvolvidos reivindicavam a atenção do planeta para oabismo que separava as economias do Norte das do Sul, introduzindonovo pólo de tensão no cenário ossificado pela disputa Leste-Oeste.

16 Efetivamente, nesse novo ambiente histórico, reinventava-se a América “Latina”, pois as raízesdessa noção geopolítica e simbólica encontram-se no projeto francês de projeção de influência noContinente Americano deflagrado durante a Guerra Civil americana pela coroação do imperadorMaximiliano no México, em 1862. A operação de política externa de Napoleão III consistia empromover um “monroísmo às avessas”, assumindo a “proteção” das nações latino-americanas contrao expansionismo imperial dos Estados Unidos. O arcabouço ideológico para a operação inspirou-seno pan-latinismo do saint-simoniano Michel Chevalier. Como observou Richard Morse, o pan-latinismo elaborava ‘um discurso “geoideológico’ para a suposta unidade lingüística, cultural e ‘racial’dos povos latinos, em contraposição aos germânicos, anglo-saxões e eslavos” (O Espelho de Próspero:Cultura e Idéias nas Américas, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 14).

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A criação da Comunidade Européia, pelo Tratado de Roma de1957, foi em grande medida repercussão da Guerra Fria e da hegemoniageopolítica dos Estados Unidos sobre a Europa ocidental. Afinal, a origemda Comunidade repousa na reaproximação franco-alemã e no tratadoda Ceca de 1952, que se destinavam a soldar os Estados do OesteEuropeu contra o desafio posto pelo poderio soviético.

Entretanto, no plano geoeconômico, a Comunidade foi o instrumentodo reerguimento dos países do Oeste Europeu. A liberalização regionaldas trocas comerciais ampliou a escala dos mercados, possibilitando oressurgimento dos conglomerados econômicos europeus e fornecendopatamar para a competição com as grandes empresas americanas.

A Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) foicriada pelo Tratado de Montevidéu de 1960. O Tratado previa oestabelecimento gradual de um mercado comum, preparado pelaconstituição de uma zona de livre comércio. Inicialmente, contou comsete integrantes: Argentina, Brasil, Chile, Peru, Paraguai, México eUruguai. Mais tarde, recebeu a adesão de Colômbia, Equador, Venezuelae Bolívia, envolvendo quase toda a América do Sul, além do México.

A Alalc refletia o percurso de industrialização por substituição deimportações seguido pelas principais economias do subcontinente: Brasil,México e Argentina. A lógica implícita ao acordo era a da ampliaçãopara o plano macrorregional das políticas de proteção alfandegáriaseguidas nos mercados nacionais. A retórica desenvolvimentista que aanimava se fundamentava nas noções de industrialização acelerada edesenvolvimento autônomo. Era como se o nacionalismo populistapredominante no discurso dos governantes de cada país tivesse alargadoseu raio de ação, abrangendo a totalidade da América Latina.

Os ambiciosos objetivos da Associação, realçados pela vastidãodos espaços geográficos que recobria, chocaram-se desde o início comas desigualdades econômicas internas. As divergências entre os “TrêsGrandes” (Brasil, México e Argentina) e os demais integrantessabotaram as metas de integração. Ao mesmo tempo, ironicamente, aprópria ênfase generalizada dos países latino-americanos nos mercadosinternos e nas políticas de substituição de importações limitou o potencialde crescimento do comércio na área da Alalc. Logo, a meta de

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constituição da zona de livre comércio foi adiada de 1973 para 1980. Onovo prazo acabou por ser abandonado, junto com a própria Alalc.

No mesmo espírito da Alalc, nasceram o Mercado ComumCentro-Americano (MCCA), em 1960, e o Pacto Andino, em 1969. OMCCA surgiu com o propósito de integrar as economias e incentivar osinvestimentos industriais nos países do istmo centro-americano, quebuscavam seu lugar no contexto internacional de desconcentraçãogeográfica da indústria. O Pacto Andino nasceu do Acordo de Cartagena,que se propunha a superar, em escala sub-regional, a estagnação daAlalc. Sem abandonar o Tratado de Montevidéu, o Grupo Andinopropunha-se a avançar na direção de um mercado comum pela definiçãode tarifa externa única, de reduções de taxas alfandegárias e deprogramas conjuntos para o desenvolvimento industrial.

No ambiente do fracasso do Tratado de Montevidéu, que marcoua década de 1970, as tentativas sub- regionais logo se viram diante deum beco sem saída. O MCCA não foi capaz de enfrentar aespecialização agroexportadora das economias centro-americanas e aconseqüente dependência frente aos mercados exteriores. Além disso,foi envenenado pelas rivalidades diplomáticas entre os países-membro.O Pacto Andino jamais conseguiu chegar a acordos estáveis sobre assuas principais metas. A deterioração da situação econômica internados seus membros tornou ainda mais vazia a retórica integracionista.

O fracasso da Alalc foi reconhecido tacitamente pelo Tratado deMontevidéu de 1980, que a substituiu pela Associação Latino-Americanade Desenvolvimento e Integração (Aladi). A nova organização recebeua adesão de todos os integrantes de sua infeliz predecessora.

O segundo Tratado de Montevidéu organizou-se em torno demetas menos pretensiosas e mais flexíveis. Mesmo conservando oprincípio multilateralista de criação de um mercado comum, nãoestabeleceu prazos ou cronogramas para a realização dessa meta. Poroutro lado, estimulava a concretização de acordos comerciais limitadose uniões aduaneiras entre países-membro. Dessa forma, o tratado daAladi baseou-se firmemente na noção de autonomia de decisões dosEstados-membro e reconheceu a prioridade dos mercados dos paísesdesenvolvidos no comércio exterior latino-americano.

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Durante a década de 1980, a crise das dívidas externas impediu aintensificação do comércio na área da Aladi. A severa restrição dasimportações provocada pela necessidade de obtenção de vastos saldoscomerciais positivos bloqueou qualquer perspectiva de reorganizaçãogeográfica do comércio exterior dos países latino-americanos. A recessãogeneralizada e a conseqüente carência de capitais funcionaram comoseveros entraves para os investimentos intrarregionais.

Mercosul, acordo entre democracias

O Mercosul nasceu da aproximação geopolítica brasileiro-argentina e dos acordos prévios de integração econômica bilateralfirmados entre os dois países. A pré-condição para a cooperaçãodiplomática e a econômica foi a redemocratização política: em meadosda década de 1980, os dois Estados transitaram de “ditaduras desegurança nacional” para regimes civis baseados em eleições livres.

A Argentina conheceu dois ciclos ditatoriais distintos. Entre 1966e 1972, uma sucessão de golpes militares terminou com a devolução dopoder aos civis e a realização de eleições gerais. As eleições de 1973reconduziram o peronismo ao poder, por Hector Cámpora, do próprioJuan Domingo Perón em seguida e, com sua morte, de Maria EstélaMartinez de Perón. Em 1976, um golpe militar, deflagrado sob o pretextodo combate à guerrilha urbana, derrubou a herdeira de Perón.

O regime de segurança nacional instalado no país levou a cabo achamada “guerra suja”, exterminando a oposição armada esquerdistado Exército Revolucionário do Povo (ERP) e dos Montoneros e, comigual fúria, as oposições civil e democrática. Foi a derrota militar naaventura das Malvinas que colocou um ponto final na mais sangrentadas ditaduras implantadas na América Latina, provocando a realizaçãode eleições livres em 1983.

O Brasil viveu sob uma “ditadura de segurança nacional” entre1964 e 1984. O regime militar instalado no país provocou a ruptura doperíodo populista, que tinha desembocado em fortes tensões sociais nosprimeiros anos da década de l960. O golpe preventivo de 1964 não tevecomo pretexto, entretanto, o combate a movimentos esquerdistasarmados. Em dezembro de 1968, a edição do Ato Institucional nº 5 foi

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a senha para a intensificação da repressão e o endurecimento definitivodo regime, criando as condições para o surgimento de grupos de esquerdade luta armada.

A elite militar da Escola Superior de Guerra controlou diretamenteo poder de Estado, ao longo do ciclo ditatorial. Os generais revezaram-se no Governo seguindo um figurino de administração corporativa,fundada nas Forças Armadas. Ao contrário da Argentina, a aberturapolítica foi gradual e, até certo ponto, planejada. A devolução do poderaos civis começou pela reunião do Colégio Eleitoral de 1984, que ungiuTancredo Neves como sucessor do general João Baptista Figueiredo. Ogoverno de José Sarney completou a transição, preparando a primeiraeleição presidencial direta, em 1989.

A redemocratização correu paralelamente à dissolução doambiente de rivalidades geopolítica e diplomática que marcou, por váriasdécadas, as relações entre as potências regionais platinas. A rivalidadeplatina remonta à época das independências, quando brasileiros eargentinos disputaram o controle do Uruguai, que chegou a ser anexadoao Império como Província Cisplatina. Desde o início do século XX, opensamento geopolítico brasileiro elaborou estratégias destinadas aampliar a influência nacional na Bacia Platina, deflagrando competiçãocom o vizinho do Sul. A Bolívia e o Paraguai foram então classificadoscomo “prisioneiros geopolíticos” da Argentina, por dependerem doestuário platino e do porto de Buenos Aires para ter acesso aos mercadosextracontinentais.

Uma operação estratégica e diplomática de larga envergadura foiposta em andamento, com a finalidade de “libertar” esses países,fazendo-os gravitar na órbita do Brasil. A construção da Estrada deFerro Brasil-Bolívia – que liga Santa Cruz de la Sierra ao porto de Santos– e da rodovia BR-277 e da Ponte da Amizade – que ligam Assunção aoporto de Paranaguá – deslocaram os fluxos de mercadorias desses paísessem mar: ao invés do eixo fluvial norte-sul que os prendia à Argentina,estabeleceu-se um eixo oeste-leste, baseado no vasto litoral brasileiro.Mais tarde, a construção do porto de Rio Grande, nas águas profundasdo litoral meridional, reduziu ainda mais a importância dos portos deBuenos Aires e Montevidéu, nas águas rasas do estuário platino.

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No pós-guerra, a cooperação estratégica entre o Brasil e os EstadosUnidos, iniciada ainda durante o Conflito Mundial, marginalizoudiplomaticamente a Argentina. Durante a década de 1970, sob asditaduras militares, desenvolveu-se verdadeira corrida à tecnologia dasarmas nucleares, envolvendo os rivais platinos. O projeto e a construçãoda Usina Hidrelétrica de Itaipu, levados a cabo por uma empresabinacional constituída por brasileiros e paraguaios, geraram sério atritodiplomático com a Argentina. Buenos Aires reclamava da tomada dedecisões unilaterais sobre o uso das águas compartilhadas do Rio Paraná,que prejudicavam potencialmente seus próprios projetos de usinas nocurso inferior do rio. Também se ressentia da captura geoeconômica doParaguai pelo Brasil.

Esse ambiente de amarga rivalidade e ressentimento desanuviou-se na década de 1980. Paralelamente à redemocratização, outros fatorescontribuíram para a reversão da trajetória de competição. De um lado,a prolongada crise econômica que atingiu os países industrializados dosubcontinente deslocou o foco das atenções, que se concentravam nadisputa pela influência geopolítica. De outro, as transformações nopanorama mundial – a substituição do conflito Leste-Oeste pelaconstituição de blocos regionais – impuseram como prioridade umaagenda baseada na noção de cooperação econômica.

O passo inicial para a aproximação foi o encontro dos presidentesJosé Sarney e Raul Alfonsín, em novembro de 1985, em Foz do Iguaçu.A Ata de Iguaçu, uma declaração de intenções de política externa,preparou os empreendimentos práticos de cooperação. Em julho de 1986,era assinado o Programa de Integração e Cooperação Econômica Brasil-Argentina (Pice). Rompendo com a tradição retórica e ambiciosa dostempos da Alalc, o Programa baseava-se na idéia de integração graduale flexível, assentada sobre acordos específicos por setores industriais.No seu cerne, estava a idéia de incremento da competitividadeinternacional das duas economias, pela ampliação da escala dosmercados.

Em novembro de 1988, desenhou-se a meta de um mercadocomum, no prazo de dez anos, fixada pelo Tratado de Integração,Cooperação e Desenvolvimento. A estratégia a ser seguida envolveria a

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gradual união aduaneira, com a redução das taxas alfandegárias até atotal eliminação dos obstáculos às trocas bilaterais e a formação de umazona de livre comércio. Mais tarde se passaria ao mercado comum, noqual estaria contemplada também a livre circulação de capitais e pessoase a coordenação das políticas macroeconômicas dos parceiros.

Mercosul e globalização

Em julho de 1990, os novos governos dos dois Estados (FernandoCollor, pelo Brasil, e Carlos Menem, pela Argentina) decidiram aceleraro processo de integração, antecipando para 31 de dezembro de 1994 oestabelecimento da união aduaneira. Em seguida, entrou em vigor oAcordo de Complementação Econômica (ACE-14), prevendo a reduçãogradual das tarifas alfandegárias até sua completa eliminação. Oenfoque adotado, prevendo redução linear das tarifas alfandegárias paratodos os produtos, representou significativa mudança da rota previstano Pice. Coerentes com a nova orientação econômica adotada nos doispaíses, abandonava-se a idéia de acordos setoriais, vinculados à situaçãoespecífica dos ramos produtivos de cada país, preferindo-se reforçar aabertura dos mercados e a livre competição.

Foi esse enfoque que norteou a constituição do Mercado Comumdo Sul (Mercosul), estabelecido no Tratado de Assunção, em março de1991. O novo Tratado situa-se, formal e juridicamente, na moldura deacordos parciais previstos pelo Tratado de Montevidéu de 1980. A adesãodo Uruguai e do Paraguai ao projeto comunitário deu os contornosgeográficos atuais do empreendimento.

Ao contrário da União Européia, cuja edificação se apoiou desdeo início na criação de instituições supranacionais de soberaniacompartilhada – como o Conselho de Ministros, a Comissão Européia eo Parlamento Europeu – o Mercosul desenvolveu-se preservandototalmente o poder de decisão dos governos nacionais. A União Européiaenvolve a delegação de soberanias: os Estados abrem mão de parte desuas atribuições e as deslocam para organismos internacionais. OMercosul é um tratado limitado aos marcos tradicionais da soberanianacional: as decisões são tomadas pelos chefes de Estado ou por gruposde trabalho indicados pelos Governos. Assim, o Mercosul não tem a

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pretensão de formação de uma comunidade de nações, mas apenas ade constituição de um mercado comum.

Sob os pontos de vista político e diplomático, o Mercosul é produtode um conjunto de acordos bilaterais entre o Brasil e a Argentina. Asduas economias industriais da macrorregião platina representam o eixode aglutinação e o ímã do processo de integração regional, que recebeua adesão do Uruguai e do Paraguai e, mais tarde, firmou acordos delivre comércio com o Chile e a Bolívia.

O Mercosul consolidou-se, em primeiro lugar, pela intensificaçãodo intercâmbio intrarregional. A rápida redução tarifária provocou,principalmente, explosão nas trocas entre Brasil e Argentina, revelandocomplementaridades econômicas que se encontravam mascaradas peloprotecionismo alfandegário. No mesmo período, o comércio entre oMercosul e o resto do mundo experimentou crescimento significativo,mas bastante inferior à expansão do intercâmbio intrarregional.

Em segundo lugar, o Mercosul consolidou-se pela atração deinvestimentos internacionais no setor industrial dos dois parceirosprincipais. O poder de atração de capitais do mercado regional revelou-se, essencialmente, pela explosão de investimentos diretos no Brasil, noperíodo aberto com a adoção do Plano Real. A percepção de que o Brasilse tornava a “porta de entrada” para o Cone Sul passou a condicionardecisões estratégicas das corporações transnacionais. Desse modo, oMercosul revelou-se instrumento importante para a definição dasmodalidades de inserção das economias regionais nas novasespecializações produtivas geradas pela globalização.17

Mas a configuração das relações comerciais no bloco regional foiprofundamente influenciada pelas políticas de estabilização econômicaadotadas pela Argentina e pelo Brasil. Num período inicial, o plano deconvertibilidade argentino provocou a apreciação do peso, que setraduziu nos saldos crescentemente deficitários das contas externas dopaís. O advento do Plano Real, em 1994, funcionou como soluçãoconjuntural para os problemas cambiais argentinos, pois a forte

17 Uma análise do período de consolidação do Mercosul aparece em Mercosul Hoje, de Sergio A. L.Florêncio e Ernesto H. F. Araújo (São Paulo: Alfa-Omega, 1996).

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apreciação da moeda brasileira impulsionou as exportações do parceiro.Entre 1995 e 1998, o mercado brasileiro contribuiu, decisivamente, parareduzir os desequilíbrios da balança comercial e do balanço depagamentos em conta corrente da Argentina.

Essa conjuntura mascarou as fraquezas do bloco. A ausência deum tribunal de solução de disputas comerciais foi compensada por ativadiplomacia presidencial. A timidez dos parceiros nos terrenos político ecultural foi compensada pelos significativos resultados econômicosalcançados em poucos anos. Em grande medida, o Mercosul esquivou-se das dificuldades de construção de instituições e regras comuns pelorecurso às soluções emergenciais, que algumas vezes implicaram aadoção de mecanismos de comércio administrado.

O colapso da âncora cambial brasileira e a subseqüente desvalorizaçãodo real, em janeiro de 1999, expuseram todas essas fraquezas. A duplarecessão, no Brasil e na Argentina, solapou o intercâmbio. A bruscaapreciação relativa do peso inverteu o sinal dos fluxos comerciais. Apoucos meses das eleições presidenciais, a Argentina foi obrigada aencarar o agravamento da situação das contas externas e, em últimaanálise, o esgotamento do plano de conversibilidade. Em seguida, abriu-se a mais séria crise no Mercosul, dramatizada pelas ameaças deimposição de salvaguardas unilaterais contra as exportações brasileiras.

A crise de 1999 assinalou uma encruzilhada na trajetória doMercosul e revelou os desafios a serem enfrentados. De um lado, trata-se da necessidade de encarar o complexo problema da institucionalizaçãodo Bloco, reduzindo-se desse modo a importância da diplomaciapresidencial de tipo emergencial. De outro, da necessidade decoordenação macroeconômica entre os parceiros.

Mas o Mercosul sofreu verdadeiro terremoto com os colapsosfinanceiro e cambial argentinos de 2001, que conduziram àreestruturação forçada da dívida interna, à moratória da dívida externae à quebra do sistema de paridade fixa peso/dólar, em janeiro de 2002.O colapso econômico provocou profunda crise institucional, quedesaguou na renúncia do presidente Fernando De La Rúa, da UCR, emdezembro de 2001. Seis meses depois, o PIB tinha sofrido retrocesso de15%, e o desemprego continuava superior a 20% da população ativa.

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A crise institucional foi resolvida, provisoriamente, por meio daescolha, pelo Congresso Nacional, do líder justicialista Eduardo Duhaldepara completar o mandato presidencial. A relativa estabilizaçãoeconômica, em nível mais baixo que o anterior, proporcionou ascondições políticas para a realização de eleições presidenciais noinício de 2003. O embate entre os justicialistas Néstor Kirchner eCarlos Menem terminou com a desistência de Menem de disputaro segundo turno.

Na campanha eleitoral, Kirchner comprometeu-se com o Mercosule com a linha de cooperação com o Brasil nas negociações da Alca. Onovo governo argentino enfrenta os difíceis desafios entrelaçados daconstrução da legitimidade interna, da reativação da economia e dasuperação da moratória externa. No fundo, o futuro do Mercosuldepende, em grande medida, da capacidade argentina de emergir dascrises política e econômica que acompanharam o desenlace doexperimento da paridade cambial.

Texto Complementar

O BRASIL E A AMÉRICA LATINA, Fernando G. Reis(In: Temas de Política Externa Brasileira II, Gelson Fonseca Jr. e S. H. Nabucode Castro (Orgs.), São Paulo-Brasília: Paz e Terra/Funag, 1994, vol. 2, p. 9-29)

(...) A Constituição de 1988 singulariza nossas relações com aAmérica Latina: “A República Federativa do Brasil buscará a integraçãoeconômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.Além de seu sentido programático, esse parágrafo ganha ainda maiorimportância por sua posição na estrutura da Carta Magna, pois é partedo artigo que estabelece os “Princípios Fundamentais” que devem regeras relações internacionais do Brasil.

O destaque para a América Latina soa natural, mas, numasegunda reflexão, comporta dúvidas. Não estaria o constituintebrasileiro “arando no mar”, como Bolivar há quase duzentos anos, aoencalço da miragem da “Pátria Grande” latino-americana?

Com o benefício de uma perspectiva de cinco anos, não se poderiaponderar – face à dinâmica internacional – que o “contorno” da América

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Latina está passando por uma redefinição? Ao se falar em convergênciados processos sub-regionais de integração, não se está reconhecendo umavirtual dispersão?

Por outro lado, do ponto de vista do Brasil, porque a ênfase explícitano latino-americanismo, em detrimento, por omissão, da vocaçãoecumênica que vem marcando nossa política há pelo menos duasdécadas? Num mundo crescentemente transnacional, conviria pensarcom categorias compartimentadas? Seria a moldura latino-americanaadequada para resolver, por exemplo, problemas como o do nosso déficitde investimento e de tecnologia?

Cada vez mais, a diplomacia deve manter “suas antenas emcontato com as correntes elétricas do Mundo” (Gilberto Amado, 1955).O Brasil é hoje um “global trader” e – mais do que isso – se postula comoum “global trader”, um ator global. Tal é resultado de um longo processohistórico em que outras vertentes – além da latino-americana – se fizerempresentes na nossa projeção externa: a ocidental, a interamericana, aatlântica, a africana (especialmente com os países de língua portuguesa)e a “terceiro-mundista”, para não mencionar – dentro da vocação regional– as vinculações e afinidades platinas e amazônicas, que distinguemum entorno mais caracteristicamente sul-americano. A esses vetores,poderíamos acrescentar – mais recentemente – o ibero-americano.

Já se sabe: a diplomacia brasileira, numa trajetória madura, deveatender a múltiplas frentes, de forma compatível com a diversidade eamplitude de nossos interesses. A projeção internacional do país, poroutro lado, deve ser fiel à sociedade brasileira como um todo e não apenasa uma de suas facetas.

Assim, a análise do parágrafo único do artigo 4 da Constituiçãoevoca a dicotomia entre o particular e o universal, ou – em termos maisempíricos (e atuais) – entre o globalismo e o regionalismo. A respostaao aparente paradoxo poderia ser a seguinte: se a Constituição privilegianossa perspectiva latino-americana, é porque esta contém ou reflete todasas demais. Trata-se aqui de não confundir a agenda (diplomática) e aforma de trabalhá-la, ou – como na distinção aristotélica – o mármoree a estátua.

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O argumento comporta aproximações distintas. Para começar,conviria recapitular brevemente a circunstância em que se gestou o textoconstitucional. Naquele momento, mesmo os espíritos mais argutosnão pressentiriam que já estava no horizonte um “ano admirável”.Logo, em 1989, desencadear-se-iam os eventos que transformaram aequação internacional contemporânea. Mas, na América Latina, oclima dominante em 1988 era mais de euforia (justificada) do quepropriamente de transição.

Consolidava-se na região a restauração democrática. Graças aisso, a América Latina ganhava autoconfiança e alimentava expectativas:descobriria por conta própria suas potencialidades de cooperação, embases mais pragmáticas e realistas. Talvez o melhor exemplo disso sejao que poderíamos chamar de “novo entendimento” entre o Brasil e aArgentina, que contou com um forte estímulo presidencial (Sarney-Alfonsin). Subjacente a esse processo – daí seu ineditismo e sua força –havia uma proposta de mudança nas respectivas percepções nacionais.

Como a verdadeira mão invisível, a democracia tem o dom benignode curar – ela refaz o passado. Sepultando rivalidades arcaicas e abrindoperspectivas insuspeitadas, o sopro democrático “aproximou” aAmérica Latina. O início desta década marcou um momento alto nahomogeneidade regional. O autoritarismo batia em retirada, a despeitode alguns resíduos aqui e ali. Mas se pode dizer que – com menorestridência – o Muro de Berlim começou a ruir antes neste “ExtremoOcidente” em que vivemos, para usar a feliz caracterização de AlainRouquié. A exceção de Cuba – com a qual, alias, reatamos formalmenteas relações em junho de 1986 – confirma a regra do salto qualitativo daregião. Em termos diplomáticos, a democracia tornou possível umaautêntica linguagem comum e viabilizou, também em 1986, a formaçãodo Grupo do Rio. Este, como mecanismo de coordenação, logotornar-se-ia, no contexto regional, o canal da diplomacia presidenciallatino-americana.

Ora, o G-Rio – desde sua declaração constitutiva – está predicadono binômio democracia/integração. Esta é a sua base filosófica, comodisse o presidente Itamar Franco na VI Cúpula do Grupo (Buenos Aires,1º.12.92): “Não se trata de mera justaposição, mas de relação essencial

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entre dois termos: na América Latina de hoje, não se pode conceberintegração sem democracia. A integração regional só se vem tornandopossível sob o fundamento democrático comum dos países da região.”

Podemos voltar ao texto constitucional que, já se vê, diz mais doque aparenta. O parágrafo único do artigo 4º – e por isso foi colocadono Título “Dos Princípios Fundamentais” – tem a ver com a filosofiapolítica, mais do que um simples estímulo (por importante que seja) aoprograma de integração “...dos povos da América Latina” (o grifo nãofaz parte do texto original). Se interpreto bem, foi sábio o legisladorconstituinte: a destacar a importância da integração, estava mais umavez valorizando a democracia, já que ambas devem caminhar juntas,num processo de muito reforço.

Por outro lado, se o texto constitucional recomenda implicitamenteuma prioridade, não induz a uma interpretação excelente ou unívoca(o conceito de “comunidade” é amplo). Essa prioridade latino-americanapode e deve conviver com outras. Mas por que teria a América Latinauma importância específica?

Embora influenciado pelo momento histórico, o “latino-americanismo” da Carta de 88 tem raízes mais profundas e implicaçõesmais amplas. Pode-se dizer que é a culminância de um processo históricoe, concomitantemente, o ponto de partida de um novo ciclo. Muito jáse tem escrito sobre este tema, e talvez por isso convenha retroceder aoessencial. Explico-me: a história diplomática não é apenas uma crônicae uma avaliação, sem dúvida indispensáveis, é sobretudo umainterpretação, uma hermenêutica. O passado não se reproduz comotal, mas se repete em espiral, ascendente ou descendente. O que fica éuma consciência mais apurada da nossa percepção, dos seus caminhose descaminhos. Este resíduo se incorpora à sensibilidade do ofíciodiplomático, talvez antes de emergir ao próprio discurso.

“Os fatos precederam as idéias”, assinalava San Thiago Dantas(1962), ao explicar a gestação da “política externa independente”. Masacrescentava: “... a continuidade é requisito indispensável”, ou seja, “anecessidade de coerência no tempo”. Esse tempo diplomático tem umcompasso próprio, sensível também ao ritmo do presente, mas sobretudoa uma vocação, isto é, a uma dimensão mais profunda de autofidelidade.

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Por isso mesmo, ao projetar uma realidade nacional em si mesmacomplexa, a atividade diplomática nem sempre é limiar e certamentenão é mecanicista. Passa pelo filtro da vivência, tão importante quantoa doutrina. A esse delicado equilíbrio se chama de tradição.

Passemos, com isso, a outro patamar de análise: “A América Latinanão é para nós uma mera opção diplomática. É, como tenho afirmado,a nossa circusntância”, sintetizava em 1992 o então ministro Celso Lafer.Mais de uma vez, nossos textos de política externa – creio que a partirdo Governo Sarney – têm recorrido ao conhecido conceito de Ortega yGasset (1883-1955) para caracterizar a importância específica de quese reveste a América Latina para um país como o Brasil. De modo algumo conceito é apenas retórico. A esta altura, pareceria útil explorar suasimplicações como categoria de análise.

A reflexão teórica não é um ornamento, mas um fundamento.Lembre-mo-nos da formulação original do conceito, feita por Ortegaem 1914, em seu livro de estréia: “Yo soy yo y mi circunstancia y si no lasalvo a ella no me salvo yo”. A graça da frase disfarça sua complexidade.Ortega nos introduz aqui na ontologia pela mão da fenomenologia – éo conceito de estar-no-mundo, o modo de ser próprio do homem, idéiaque logo seria aprofundada pela filosofia contemporânea, a ponto deincorporar-se ao nosso vocabulário corrente.

O grande escritor que foi Ortega não só antecipou esse filãode pensamento, mas também, com seu talento metafórico, soubetraduzi-lo de forma paupável e acessível ao longo de sua obra:“El hombre es novelista de si mismo”... “Vivir es ser fuera de si – realizar-se”,é “encontrar-se no mundo”. Para tanto, em primeiro lugar é precisoprocurar o sentido do que nos rodeia, isto é, interpretar o feixe depossibilidades da situação envolvente. O “eu-consciência” se percebe ese contitui nesta interação: o homem não é um conceito a priori – é,antes, uma interrogação permanente, que se articula no comércio como mundo e, sobretudo, na descoberta do seu semelhante. A circunstânciaé também o ponto de encontro com a liberdade do outro.

A filosofia existencial viria sublimar essa “condição humana”:o homem está condenado a ser livre, mas dentro de (ou a partir de)uma situação. O poder-ser se resolve em um projeto que, sob pena de

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fraudar sua autenticidade, está necessariamente ancorado nacircunstância. Elidir a própria vocação é correr o risco de que ela seimponha por conta própria, até com violência, como adverte o aforismode Pascal, sobre o “retorno natural”.

O que precede vale na esfera pessoal, como pode valer no planopolítico. A circunstância não é um fechamento: ao contrário, é oexpor-se ao que está fora. Em seu ensaio sobre Goethe, Ortega esclarece:“Esta unidade de dinamismo dramático entre ambos elementos – yo yel mundo – es la vida”. É quase uma definição de política externa. Acircunstância é a mediadora desse dinamismo e não um simples sinônimode proximidade, conjuntura ou oportunidade, embora seja tudo issotambém. O que o conceito sublima é um modo de percepção e não umconteúdo específico.

Talvez não tenha sido suficientemente ressaltado que o“pragmatismo responsável” partiu dessa intuição – dessa “matriz”, diziao saudoso embaixador Azeredo da Silveira. Dentro dessa ótica, leia-se aseguinte passagem de conferência do então chanceler na Escola Superiorde Guerra, em 27.4.74: “... num mundo em constante mutação, não hácoincidências permanentes nem divergências perenes ... não pode haveralinhamentos automáticos, porque o objeto da ação diplomática nãosão países, mas situações”. Neste ponto, a diplomacia de Geisel estavarecuperando o essencial da política externa independentemente, queprofessava: “... procuremos, diante de cada problema ou questãointernacional, a linha de conduta mais consentânea com os objetivos aque visamos sem a prévia vinculação a blocos de nações oucompromissos de ações conjuntas...”.

Os grifos acima são meus, para salientar a preocupaçãometodológica (e, em sentido amplo, filosófica) de ambas as formulações,o que – de resto – está explícito na apresentação que San Thiago Dantasfazia de sua política, eximindo-a desde logo do vício empirista oucasuístico: a partir da tomada de atitudes e decisões, em face dos fatos,chega-se a um segundo momento lógico, o da concatenação, pela reduçãoa posteriori a uma unidade inteligível.

Como se vê, na transposição do conceito de circunstância para oâmbito das relações internacionais não há uma receita programática e,

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menos ainda, qualquer conotação geopolítica. Em outras palavras, acircunstância não é unívoca e, nem por estar próxima, se oferece de graçaou se revela de imediato. Ponto de partida necessário para encontrarmosnosso “estar-mundo”, a circunstância deve ser interpretada e assumida.Não é ela que decide – ao contrário, é o dilema sempre novo, ante oqual temos que tomar posição. “O mundo não se dá na percepçãoinstantânea ... É simultaneamente natureza e história, realidade etempo”. Essa visão repele, por princípio, os “reducionismos”, ouseja, os universos fechados (e, às vezes, sedutores) que não admitemrefutação (...).

Antes mesmo de existir como nação independente – e, depois, aolongo de nossa história –, a percepção (mítica ou consciente) dacircunstância resgatou a viabilidade do país e “salvou” (no sentidoorteguiano) o projeto nacional. É o que bem assinala um diplomatavenezuelano que viveu entre nós. “Que no se deshiciera en comarcasautónomas e insurgentes ... es un milagro brasileño más imponente que laconformación de los Estados Unidos”. O “milagre” foi um presente danatureza, mas também uma invenção da história.

O Brasil nasceu, por assim dizer, em movimento, com vocação decaminhante, tateando “as coisas mudas ao seu redor” (Ortega y Gasset).A nação-por-vir começou na busca de seu corpo, fazendo a política desua geografia, primeiro de forma espontânea e, depois, com deliberação.O mito indígena da Ilha Brasil “inspirou” a cartografia da época (e nãosó a portuguesa), que já no início da colonização imaginava um Brasilcircunavegável, graças à presumida ligação entre as Bacias Platina eAmazônica. Na caça ao outro (o índio) e ao ouro, o sertanismo e obandeirismo iriam confirmar a fantasia interessada dos mapas.Articulou-se-se assim, a expansão territorial da Colônia para além domeridiano arbitrário de Tordesilhas, que a união das Coroas ibéricas(1580-1640) veio tornar inócuo.

Essa aventura – heróica e trágica – não teria tido as conseqüênciaspolíticas que teve não fosse a inteligência e habilidade de Alexandre deGusmão (1696-1753), “o avô dos diplomatas brasileiros”, para lembrara homenagem do embaixador A.G. de Araújo Jorge (1915). Tem grandeinteresse – para nossa ótica de análise – a clarividência do “negociador

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oculto” do Tratado de Madri (1750), acordo que só foi possível graças auma conjunção de fatores, alguns aleatórios. É sem dúvidaextraordinário que, no segundo quartel de século XVIII, um paulista –saído praticamente da “boca do sertão” e que foi para Lisboa aindaadolescente – tenha tido a intuição certeira de que era preciso “arredondare segurar” o Brasil, ou seja, legitimar a Ilha-Continente e, para tanto,“dar fundo principal grande e competente” à parte austral da Colônia,foco principal das disputas com os espanhóis.

Como secretário particular de D. João V, Alexandre de Gusmãoexplicitou (e defendeu) a percepção de um país “uno, orgânico e viável”.Seria difícil achar exemplo melhor para ilustrar a aplicação do conceito.Gusmão subordinou os ajustes específicos a uma visão de conjunto: otratado estabelece uma doutrina. Ora, o que é o uti possidetis senão alegitimação da circunstância, o casamento do momento e do contorno!A norma – tomada de empréstimo do Direito Romano – foi ocontraponto jurídico do princípio negociador das “balizas naturais”, queos desbravadores bandeirantes fizeram prevalecer na prática. Por outrolado, dentro da mesma lógica, Gusmão se desvencilhou de uma fronteiraartificial, a incômoda Colônia do Sacramento, mas aproveitoudiplomaticamente seu valor de troca. “Cedeu” o que era duvidoso noPrata (e alhures, na Ásia, as “Ilhas Filipinas”), para consolidar o que –segundo as informações de que dispunha – sabia ser valioso na Amazôniae no Mato Grosso, além de assegurar o Rio Grande do Sul. Dessa forma,o patrimônio territorial português (e brasileiro) triplicou. O “Tratadode Madri de 1750 consignava, com pequenas e insignificantes diferenças,a configuração atual do Brasil” (João Ribeiro).

Pode-se imaginar que essa tenha sido uma negociação de alto risco,uma aposta para o futuro e um resgate sobre o passado. Para Portugal,o posterior retrocesso (no terreno) foi desprezível, em comparação como avanço conceitual de 1750, duplamente valioso: pelo que valeu naassinatura e, depois, por ter deixado de valer. Para a nossa diplomacia ,o uti possidetis era um princípio em aberto – sem data –, ao contrário doque ocorreu (uti possidetis juris) nos litígios dentro da América Espanhola.Assim, a dinâmica embutida no princípio (de facto) continuou atuandoa nosso favor, através da posse “mansa e pacífica, independentementede qualquer outro título” (H. Accioly).

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O legado da diplomacia colonial seria devidamente valorizadopelos negociadores do Império e por Rio Branco. Entre Alexandre deGusmão e Rio Branco, o elo foi Duarte da Ponte Ribeiro, por seu incansáveltrabalho diplomático e pela “primazia de ter aconselhado, no Império,o uso do uti possidetis para resolver nossos problemas de limites”.

Assim, a vigência efêmera do Tratado de 1750 não desmerece aobra de Alexandre de Gusmão: foi o autor de nossa certidão de batismo,passada em Madri, quando o Brasil já tinha 250 anos. O lugar ésimbólico, como a prenunciar a comunidade latino-americana. Aodesenhar nosso mapa, o santista estava traçando também a “cartapolítica” da América do Sul.

O Tratado de Madri foi profético também sob outro aspecto, quereforça o anterior: seus artigos XXI e XXV (segundo Cortesão, propostospela Espanha, preocupada com a ameaça inglesa) recomendavam queos vassalos das duas Coroas mantivessem a concórdia caso a paz serompesse entre as Metrópoles. Em outras palavras, Portugal e Espanha“liberaram” suas colônias deste lado do Atlântico das agruras evicissitudes de sua política européia. Comenta Cortesão: “os dois artigos– sobretudo o XXI – definiam desde logo um direito primordial aoseparatismo e à autonomia”. E acrescenta mais adiante, depois deressalvar a fidelidade do brasileiro e seu soberano português: “Alexandrede Gusmão ... viu com regozijo infiltrar-se no tratado, sob a capa dadefesa mútua contra agressões de nações européias, um princípio novoque reconhecia ao Brasil e aos Vice-Reinados vizinhos uma personalidadepolítica americana”.

Não se trata de um substrato ou de uma antecipação da DoutrinaMonroe, como pretenderam alguns comentaristas brasileiros (RodrigoOtávio, Pedro Camon). Os artigos em questão do Tratado de Madrifalam explicitamente em América Meridional, o que faz diferença, comoos séculos seguintes iriam mostrar.

Proclamada a República, Rio Branco se dedicou à legitimação donosso espaço nacional, tema, a rigor, ainda em aberto depois de quatroséculos. A circunstância sul-americana foi sem dúvida seu foco prioritáriode atenção, mas foi ele também o primeiro a perceber a importância deuma boa relação com Washington. Com efeito, em 1905, as Legações

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de um e outro país são elevadas a embaixada. “O título vale uma política”,comentou Joaquim Nabuco, que foi “removido” de Londres paraWashington. Na época, falou-se de uma “mudança de eixo” de nossadiplomacia: do velho para o Novo Mundo. Sintomaticamente, a partirde então, Rio Branco encontrou dificuldades para prosseguir em seusintentos iniciais no sentido de promover uma entente ABC (Argentina/Brasil/Chile), idéia que retomaria mais tarde, com o projeto de tratadode 1911. A “assimetria” começava a interagir com a “simetria”, parausar a fértil distinção do embaixador Rubens Ricupero (1987) (...).

O ponto alto dessa aproximação brasileira com os EUA foicertamente a visita, em 1906, de Elihu Root ao Brasil. “the first visit abroadof an American Secretary of State” (E. Bradford Burns, 1966). Um anodepois, contudo, desta feita fora do âmbito hemisférico – na SegundaConferência de Paz, em Haia – já afloraram diferenças de percepçãoentre os dois países em temas essenciais como o da igualdade entreos Estados. Era uma questão de princípios, mas também de prestígio,pois se tratava da nossa primeira aparição num foro mundial,carinhosamente preparada pelo Barão. Rio Branco não faltou com seuapoio a Ruy Barbosa, nosso representante em Haia, para aflição deNabuco, embaixador em Washington, mas em benefício de nossainfluência no resto da América Latina. ironicamente, o convite para aparticipação do Brasil (e do México) se devera a uma iniciativa dosecretário de Estado John Hay. De qualquer forma, uma “aliança nãoescrita” com a potência em ascensão tinha para o barão a vantagem deprevenir (ou compensar) eventuais dificuldades no seu eixo principalde negociação: a consolidação de nossos limites e, depois disso, oequilíbrio de poder na América do Sul.

A glória de Rio Branco é mais visível com o passar do tempo. Alémdo conjunto da obra concluída, deixou-nos também o legado da visãode estadista: seu estilo (novo para o Brasil) de “fazer diplomacia”, sensívelaos “ventos de mudança” da época e ao que hoje se chama de “agendapública” (foi constante seu cuidado com a imprensa, não tivesse elesido jornalista). Essa sintonia com as forças vivas do país ficou patente– logo no início de sua gestão como ministro – no tratamento da Questãodo Acre (1903), talvez o seu maior triunfo singular.

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(...) Assim, com a diplomacia madura de Rio Branco, o Brasiltambém crescia por dentro (de forma talvez mais sutil), ao mesmotempo em que assumia seu perfil físico permanente, com a incorporaçãode novos e vastos territórios (Palmas, Amapá, Acre). O gesto, semprecedentes, de conceder ao Uruguai o condomínio da Lagoa Mirim(1909), sem qualquer reciprocidade, foi o coroamento de uma obra depacificação externa, que permitiu ao Brasil afirmar sua personalidadeinternacional e sua identidade própria.

A relação entre vizinhos – pessoas ou nações – é sempre maiscomplexa e, por ação ou omissão, mais íntima. A fronteira-divisão, oespaço ainda vazio, foi aos poucos se transformando em fronteira-confluência: por não haver litígio, a presença do homem se tornou maisimportante do que a referência do marco. Também neste particular aexperiência no Prata foi pioneira.

O chamado “sistema platino”, com base no Tratado de Brasília(1969), modelou um tabuleiro diplomático com regras próprias, etornou-se posteriormente “marco adequado, tanto normativo comooperativo, para o desenvolvimento do programa da hidrovia Paraná-Paraguai”, o maior projeto de integração física na América do Sul.

Para chegar a esse patamar de colaboração, foi necessário superaruma circunstância negativa que se cristalizou entre o Brasil e a Argentina:a disputa de teses, ao longo de uma década, sobre o aproveitamentodos recursos naturais da Bacia do Prata (“consulta prévia” versus“responsabilidade a posteriori de indenizar”). Mais por silenciar do quepor explicitar, o Tratado de 1969 consagrou uma fórmula de equilíbrioe um canal institucional com vistas ao “desenvolvimento harmônico eà integração física da Bacia do Prata”.

O compromisso de cooperação não resistiu, contudo, à rivalidadegeopolítica que logo emergiu, à medida que avançava o projeto brasileiro-paraguaio pra a construção de Itaipu e endureciam os Governos emBuenos Aires e em Brasília. A partir de 1971, a Argentina levou o problemaaos foros multilaterais, com a conseqüente repercussão pública e desgastepara os dois lados. O impasse só foi superado em 1979 com o AcordoTripartite (Brasil-Argentina-Paraguai) para o aproveitamento harmônicodas represas de Itaipu e Corpus. O consenso não resolveu apenas um

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problema técnico, desbloqueou também nosso diálogo com Buenos Airese liberou nossa diplomacia em outros planos.

(...) Na vertente norte, o Tratado de Cooperação Amazônica –TCA (1978) – ilustra bem a valorização da circunstância. Transcende oplano da relação fronteiriça para investir na “... diplomacia de projeto,obra de criação do futuro”. Além de seu valor intrínseco, como moldurade cooperação, o Pacto Amazônico – respeitadas as soberanias nacionais– foi também um antídoto regional contra qualquer veleidade deinternacionalização da Amazônia. Sua validade, nesse sentido, ficoucomprovada pela coordenação dos oito países da Bacia, com vistas àUNCED-92, especialmente no que diz respeito ao delicado problemadas florestas tropicais, já que um terço das reservas do planeta estão naAmazônia.

Na arquitetura da integração, teve outro percurso, mais lento, adefinição da circunstância subregional como tabuleiro propriamenteeconômico. No mesmo espaço, podem atuar tempos diplomáticosdistintos.

É justo lembrar, contudo, que, no final dos anos 50, a diplomacia“a serviço do desenvolvimento” do Governo JK foi marcada por grandeabertura para a América latina, tanto no âmbito bilateral e regional comono multilateral. A “Operação Pan-americana” (1958) – independentementede seus resultados – foi talvez a primeira tentativa de ação coordenadados países latino-americanos em torno de uma agenda econômica mas,esgotado o ciclo de expectativas quanto a “relações especiais” com osEUA, o Brasil voltou-se para o Cone Sul e, com o apoio da Cepal,coordenou-se com a Argentina, Chile e Uruguai com vistas a criar umaZona de Livre Comércio. Tal iniciativa, e outras paralelas, culminaramno primeiro Tratado de Montevidéu, 1969, que criou a Alalc (...).

Seja como for, foram necessários mais de trinta anos para que acircunstância subregional – com vistas à integração econômica – pudesseser reinterpretada dentro de uma ótica realista e pragmática.Gradualismo, flexibilidade e equilíbrio foram princípios básicos doPrograma de Integração e Cooperação Econômica Brasil-Argentina de1986, depois aprofundado no Tratado de Integração, Cooperação eDesenvolvimento de 1988. A partir daí, o processo se acelera e se alarga,

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até a assinatura do Tratado de Assunção (...), que cria o MercadoComum do Sul.

(...) Segue a mesma lógica de abertura (e de não-exclusão) olançamento pelo Brasil, no final de 1992, da Iniciativa Amazônica,proposta depois aprofundada pelo projeto de formação, ao longo dapróxima década, de uma Zona de Livre Comércio Sul-Americana(ALCSA). Tal projeto tem um alcance latino-americano (e, porextensão, hemisférico), pois – como disse o presidente Itamar Francoao apresentá-la durante a VII Cúpula do Grupo do Rio, em Santiagodo Chile (15.10.1993), – “...estimulará a aproximação das experiênciasintegracionistas da América do Sul com o Nafta, com a Comunidadedo Caribe e com o Mercado Centro-Americano”.

Ao lidar com fronteiras (e, é claro, isto não se aplica apenas aoPrata), lidamos também com o meio ambiente, deslocamento depopulações, controle de drogas, comunidades indígenas, direitoshumanos: os chamados “novos temas” da agenda internacional. Lidamostambém com interesses singulares e locais. A ampliação da fronteiraviva, notadamente nas áreas meridionais, estimula uma participaçãocada vez maior das autoridades estaduais e municipais no diálogo com“vizinhos reais”. Isso se faz sentir, sobretudo, nos projetos de integraçãofísica ou econômica. Nossas relações com países sul-americanos vieramaflorar, assim, a dimensão federativa de nossa política externa.

(...) Consciente dos reflexos do peso do Brasil no seu espaço imediato,nossa diplomacia teve que aprender a se mover com equilíbrio e moderação(o ex-chanceler Silveira costumava insistir nessa lição). Da necessidadeemerge a virtude, no caso a prudência, isto é, o agir na hora certa. Amultiplicidade de vizinhos nos ensinou também a evitar simplificações:tudo é importante e cada situação merece uma atenção particular.

(...) Não deve parecer autocongratulatório dizer que a diplomaciabrasileira acredita na sabedoria inerente a certas regras. “O pacifismo éo fundo da conduta internacional brasileira”, escrevia o professor SanThiago Dantas em 1953. Na Conferência de Haia de 1907, como jálembrado, Ruy Barbosa enfrentou os Grandes da época, defendendo oprincípio da igualdade plena entre os Estados. Na prática, o melhor

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exemplo de fidelidade a esse princípio foi confirmado na negociaçãocom o Paraguai para a conclusão do Tratado de Itaipu (1973). Este veioconsagrar a igualdade de direitos entre dois sócios que tinham, narealidade, condições absolutamente desiguais, não do ponto de vistajurídico – é claro – mas no que diz respeito à capacidade de aportar osrecursos (de toda ordem) necessários à execução de empreendimento.Essa obra monumental – concluída 17 anos depois – começou com umexercício igualmente único de “engenharia diplomática”.

São todos antecedentes – na nossa esfera de atuação mais próxima– que permitiram o amadurecimento de um código de princípios que,incorporado à Constituição de 1988, reforça a credibilidade e aconfiabilidade do país. É o melhor título para o acesso à sociedade dasnações. O perfil que surge dessa atuação internacional firme e coerenteé o de um país com vocação indiscutivelmente pacífica e respeitadordas normas internacionais, fiel ao multilateralismo e à solução negociadade controvérsias, aberto ao diálogo e com atitude transparente ante acomunidade internacional.

4 – QUESTÃO CUBANA

Na passagem dos séculos XIX para o XX, a América Central e oCaribe tornaram-se esfera de influência imediata dos Estados Unidos,que desenvolviam sua estratégia de domínio transoceânico no Atlânticoe no Pacífico.18 Produto do conjunto geopolítico e ideológico da DoutrinaMonroe, a Política do Big Stick orientou inúmeras intervenções dosfuzileiros navais, que resultaram na substituição de governos nacionalistaspor administrações dóceis a Washington nos pequenos Estadoscentro-americanos. Localizadas em Porto Rico, no Panamá e em Cuba

18 Essa estratégia tem suas bases no pensamento do almirante Alfred Thayer Mahan (1840-1914),que pela primeira vez focalizou nos oceanos o horizonte de expansão do poder do Estado. Nacondição de presidente do Naval War College, Mahan desenvolveu propostas de criação de umapoderosa Marinha de Guerra e do estabelecimento da hegemonia do seu país nos dois grandesoceanos. Mahan enxergava nos Estados Unidos uma “ilha geopolítica” – um Estado com saídas paraos principais oceanos e sem ameaças territoriais nas suas faixas de fronteiras terrestres. Essa condiçãogeográfica excepcional oferecia a possibilidade da expansão do poder marítimo.

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(Guantánamo), as principais bases e instalações americanas namacrorregião surgiram durante esse período de intervencionismo ativo.

Porto Rico, antigo domínio espanhol, foi cedido aos Estados Unidospelo Tratado de Paris (1898), que encerrou a Guerra Hispano-Americana.Em 1946 adquiriu autonomia formal, assumindo a condição sui generisde “Estado Livre Associado”.

O Panamá tornou-se independente da Espanha na condição dedepartamento integrante da Colômbia. A “corrida do ouro”, que levoucentenas de milhares de imigrantes para a Califórnia, transformou oistmo panamenho em importante ponto de passagem entre os doisoceanos, atraindo interesse para o projeto de construção de um canalinteroceânico. A companhia francesa de Ferdinand de Lesseps, que tinhaconstruído o Canal de Suez, começou as obras em 1881 mas fracassouoito anos depois.

Em 1903, o Senado colombiano recusou-se a ratificar o TratadoHay-Herrán, que conferia aos Estados Unidos o direito de construçãodo Canal. Com apoio de Washington, que impediu o desembarque detropas colombianas, o Panamá optou pela secessão, transformando-seem virtual protetorado americano. O novo Estado concedeu a Washingtono domínio perpétuo da Zona do Canal e o direito de intervenção militarno país.19

Cuba foi colônia espanhola até 1898. Com a Guerra Hispano-Americana, foi cedida aos Estados Unidos, precisamente no momentoem que os rebeldes liderados por José Martí estavam a ponto de vencera guerra de independência movida desde 1895 contra Madri. A ocupaçãoamericana foi levantada em 1902, mas a Emenda Platt, introduzida naConstituição cubana, autorizava intervenções militares de Washingtonno país. Entre 1908 e 1909, tropas americanas voltaram a ocupar a ilha,e nova invasão teve lugar em 1917. É dessa época a construção da basede Guantánamo, no sudeste cubano. A base sobreviveu à revogaçãoda Emenda Platt (1934) e à Revolução de 1959, que levou Fidel Castroao poder.

19 Em 1977, novo acordo veio substituir o original. Firmado por Jimmy Carter e o líder panamenhoOmar Torrijos, o acordo estabeleceu a devolução da Zona do Canal para a soberania panamenha nofinal de 1999.

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A Cuba pré-revolucionária apresentava uma paisagem bastantecomum no cenário centro-americano. A economia, fundamentada nasexportações açucareiras e no turismo, estava sob controle de investidoresamericanos e de uma elite fundiária local. Desde 1934, com curtasinterrupções, o poder era exercido ditatorialmente por Fulgêncio Batista,homem de confiança de Washington. A Revolução Cubana representoua primeira fissura na esfera de influência americana na América Central.Pouco depois da vitória dos insurretos, o alinhamento da ilha comMoscou permitiu o estabelecimento de bases navais soviéticas no“lago americano” do Caribe.

Mas a Revolução não foi, originalmente, nem socialista nempró-soviética. O Movimento 26 de Julho agrupava nacionalistas,sindicalistas, intelectuais socialistas e esquerdistas em geral. O núcleodirigente, constituído por exilados, tinha em Fidel Castro um líderque oscilava entre o esquerdismo de Ernesto “Che” Guevara, oromantismo de Camilo Cienfuegos e o pragmatismo democrático eliberal de Hubert Matos.

Os comunistas cubanos, agrupados no PSP, estreitamente ligadosa Moscou, colocaram-se contra o Movimento 26 de Julho até as vésperasda tomada do poder. No quadro da disputa mundial entre assuperpotências, a União Soviética enxergava na ilha um elementointegrante da esfera de influência imediata de Washington edesautorizava o rompimento do status quo.

Após a tomada do poder, entre 1959 e 1962, desenvolveu-se asegunda fase da Revolução Cubana. A transição, concluída peloalinhamento completo de Havana com Moscou, foi movida muito maispela lógica do conflito geopolítico da Guerra Fria que pela vontade deFidel Castro. Ele não pretendia nem a estatização da economia nem asubordinação ao bloco soviético. Contudo, os cercos econômicos e políticoamericanos empurraram o governo revolucionário para o campo soviético.

No final de 1959, Washington já organizava o bloqueio econômico,suspendendo as importações de açúcar e negando créditos. No anoseguinte, as refinarias de empresas americanas interromperam aprodução, recusando-se a processar o óleo proveniente da União

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Soviética. A expropriação das refinarias e o rompimento de relaçõesdiplomáticas, em 1961, deterioraram definitivamente a situação. Cubarecebia armas e suprimentos de Moscou, enquanto a CIA treinavaexilados cubanos na Flórida. A 14 de abril de 1961, dava-se a rupturadefinitiva, com a fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos.Em seguida, Fidel proclamou uma “revolução socialista”, fundiu o 26 deJulho ao PSP e oficializou o alinhamento com a União Soviética.

Em 1962, o círculo se fechava. Cuba era expulsa da OEA e osEstados latino-americanos rompiam relações com Havana. O episódioda Crise dos Mísseis terminava com o recuo soviético, trocado peloscompromissos assumidos por Washington de retirada dos mísseis Júpiterbaseados na Turquia e de abstenção de invasão da ilha. Formalizava-seo ingresso de Cuba no espaço geopolítico soviético, ao mesmo tempoem que era reafirmada a hegemonia militar americana no Caribe.

Cuba na encruzilhada

A tomada do poder por Fidel Castro constituiu o ato culminantede uma saga que virou mito: a revolução romântica às margens doCaribe e junto à fronteira da maior potência do mundo. O mito cubano,cujo brilho resplandecia sob o pano de fundo da pobreza e dasubordinação latino-americanas, assentou-se na noção de uma revoluçãoimaculada. A natureza insular de Cuba prolongou-se como ideologia –a crença num lugar isolado da política mundial e do jogo de poder, queempunhava a bandeira da igualdade.

Por décadas, muita gente acreditou nisso. Quando “Che” Guevararenunciou ao posto de ministro da Economia e anunciou que se dedicariaà exportação da revolução na América Latina, milhares de jovensaderiram à luta armada contra as ditaduras que infestavam osubcontinente. Quando “Che” foi fuzilado na selva boliviana, em 1967,a aura da tragédia endureceu as convicções dos militantes do ERP e dosMontoneros, na Argentina, dos tupamaros, no Uruguai, do MR-8 e doPC do B, no Brasil, do M-19, na Colômbia.

Atrás do mito, a Cuba real evoluiu como peão da política mundialde Moscou no ambiente conflitivo do duopólio de poder. Desde a fusão

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com o PSP, Fidel livrou-se dos velhos companheiros que relutavam emaceitar a subordinação à União Soviética ou que, abertamente, passavamà oposição. Hubert Matos, o antigo líder guerrilheiro, transformou-seno mais célebre prisioneiro político da ilha. O monolitismo ideológico ea identificação entre o Partido e o Estado, típicos do bloco soviético,aclimataram-se ao ambiente caribenho do novo satélite.

Nos anos 70 e 80, Cuba chegou a funcionar como potência regionala serviço da geopolítica africana de Moscou, enviando tropas em auxílioao MPLA angolano, oficiais e especialistas para a reorganização dasForças Armadas de Moçambique, assessores civis e militares para oregime pró-soviético da Etiópia. A Revolução Sandinista de 1979, naNicarágua, e o crescimento da guerrilha da FMLN, em El Salvador,em meados da década de 1980, assinalaram o auge do prestígiointernacional de Havana.

Submetida ao bloqueio comercial de Washington, a economia dailha encasulou-se nas relações especiais com a União Soviética. Asexperiências com o mercado livre de produtos agrícolas foramencerradas, e os modelos de estatização geral foram implantados tantono meio rural como no urbano. A União Soviética consumia o açúcar decana exportado e fornecia o petróleo em condições excepcionais, gerandoum subsídio médio anual de 5 bilhões de dólares. Esse cordão umbilicalcomeçou a ser cortado pela perestroika de Gorbatchev, no final dos anos80, e foi rompido inteiramente com a implosão da União Soviética, nofinal de 1991.20 Paralelamente, os Estados Unidos reforçavam o boicoteeconômico, adotando restrições comerciais extraordinárias, formalizadaspela chamada Lei Torriccelli.

Desde essa época, uma crise terminal devastou a economiacubana, submetida ao racionamento de energia, alimentos e bens deconsumo correntes. Inicialmente, a resposta do castrismo à nova situaçãoresumiu-se à chamada “Opção Zero”, que previa o estabelecimento deuma economia de guerra, baseada no aprofundamento dos controles

20 A dependência cubana em relação ao bloco geopolítico soviético pode ser avaliada a partir dasestatísticas do comércio exterior: ainda em 1988, 82% das exportações da i lha destinavam-se á áreado Comecon, que por sua vez fornecia quase 85% das importações cubanas.

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administrativos sobre a produção e a distribuição de mercadorias e naconseqüente intensificação da repressão interna. Depois, desde 1993,esboçou-se uma alternativa oposta, voltada para a introdução de umprograma de reformas econômicas, como forma de amenizar odescontentamento interno e viabilizar a manutenção do monopólio dopoder político pela burocracia comunista.

Esta última alternativa se transformou em projeto de sobrevivênciado regime. Em 1994, o PCC anunciou um pacote de reformas no qual,ao lado de medidas como novos estímulos ao turismo e introdução decertos espaços abertos ao mercado e à concorrência, foi legalizada aposse de dólares. Simultaneamente, o chanceler Roberto Robainaencenou um diálogo com grupos de exilados da Flórida, escolhidos dentreos mais suscetíveis aos acenos de Havana.

A ousada cartada de Fidel removia os rígidos controles sobre acirculação de divisas e implicava o estabelecimento de um elo econômicoentre a ilha e a numerosa comunidade cubana da Flórida, ou seja, ainevitável contaminação do conjunto do sistema econômico pelas lógicasdo mercado internacional. Havana agia em horizontes de curto prazo,constrangida pelo espectro do colapso total do sistema, cujos sintomasapareceram na crise dos refugiados de agosto e setembro de 1994.21

Apesar das crescentes divergências sobre o embargo econômico aCuba no establishment americano, os pilares da orientação tradicionalmantiveram-se basicamente inalterados. Em 1995, um voto da ONUpela revogação do embargo e as iniciativas européias e canadenses deestímulo a investimentos na ilha chegaram a abalar a determinação deWashington.

Contudo, no ano seguinte, a derrubada de dois aviões civis deorganizações anticastristas por caças cubanos, provavelmente no espaço

21 A crise dos refugiados de 1994 foi, entretanto, parcialmente manobrada pela diplomacia cubana,que reeditou, em outra situação internacional, práticas adotadas no episódio dos “marielitos” de1980. Como naquela ocasião, o fluxo de refugiados atingiu seu ponto máximo quando o regimeliberou oficiosamente a emigração, a fim de pressionar os Estados Unidos e explorar as divergênciasno establishment americano a respeito das atitudes diplomáticas a adotar diante da crise cubana. Apolítica seguida por Bill Clinton na ocasião, baseada no reforço do embargo econômico e na supressãoda concessão automática do asilo, foi criticada pela maioria dos observadores, sob o argumento deincorrer em inconsistência interna e indefinição de objetivos estratégicos.

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aéreo da ilha, conduziu Clinton a sancionar a Lei Helms-Burton, quepenaliza países e empresas com negócios em Cuba.22

A visita do papa João Paulo II à ilha, em janeiro de 1998, reacendeuas expectativas de abertura política. Na prática, registrou-se apenasafrouxamento no controle das atividades religiosas: após a libertaçãode cerca de trezentos presos, a repressão às dissidências políticasintensificou-se, em resposta ao crescimento na organização e nasatividades dos grupos de proteção dos direitos humanos.

As reformas econômicas, por seu lado, experimentaram nítidoretrocesso na esfera da promoção da iniciativa privada entre residentesda ilha. Novas leis de cobrança de impostos extorsivos provocaram ofechamento de milhares de pequenos negócios no setor de serviços. Desde1997, o regime castrista definiu os limites da abertura econômica,praticamente circunscrevendo-a aos investimentos estrangeiros. Atrásdessa definição, escondia-se o temor do surgimento de uma classe médiaempresarial potencialmente hostil ao regime.

A Doutrina Bush correspondeu a novo endurecimento deWashington em relação a Cuba. O regime castrista, seguindo padrãode conduta já tradicional, utilizou a potencial ameaça externa comopretexto para novo ciclo de repressão à dissidência interna. Em abril de2003, com base em processos sumários, dezenas de dissidentes foramcondenados a longas penas de prisão e três sequestradores de uma balsaforam condenados à morte e fuzilados.

O impasse cubano pode se prolongar pelo tempo de vida de FidelCastro ou, alternativamente, até que o bloqueio americano seja suspenso.Mas a passagem do tempo não é um fator neutro. Enquanto as reformaseconômicas permanecem mais ou menos bloqueadas, a economiacubana se desagrega e a sociedade empobrece. Enquanto o regime adiaa inevitável abertura política, as tensões subterrâneas se avolumam.

22 O caráter extraterritorial da Lei Helms-Burton provocou reclamações formais dos parceiros doNafta e da União Européia. A UE conseguiu, em 1998, a promessa de Washington de congelar aaplicação da lei.

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5 – NARCOTRÁFICO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O fenômeno do narcotráfico, que adquiriu nas últimas décadasrelevância especial nas relações interamericanas, situa-se na intersecçãode uma série de problemas: queda de preços de commodities agrícolas,desestruturação de aparelhos de Estado, emergência de “paraísosfinanceiros”, atuação de movimentos de guerrilha, estratégia internacionalantidrogas dos Estados Unidos.

Os principais centros de produção agrícola da folha de coca são oPeru, a Bolívia e a Colômbia. A introdução do cultivo em larga escalanesses países ocorreu durante a década de 1970, substituindo commoditiestropicais em áreas como o vale do Alto Huallaga, no Peru, e a região deChaparé, na Bolívia.

A queda acentuada das cotações internacionais dos produtosagrícolas exportados por esses países, no final da década, representouo pano de fundo para a expansão do cultivo de folha de coca.Simultaneamente, o narcotráfico organizava-se em escala inédita e oconsumo de maconha, nos Estados Unidos e na Europa ocidental, davalugar ao consumo de cocaína.

A Colômbia ocupou a posição de principal produtor industrial dacocaína, em situação quase monopolista. Nos seus laboratórios é refinadacerca de 80% da cocaína consumida nos Estados Unidos. Inicialmente ochamado Cartel de Medellín e, mais tarde, o Cartel de Cali concentraramas atividades de refino, formando o vértice do narcotráfico internacional.23

A consolidação do negócio internacional do tráfico de drogasdesenvolveu-se a partir da crise das instituições de Estado na Colômbia,no Peru e na Bolívia. Inversamente, o crescimento do narcotráficocontribuiu para o aprofundamento dessa crise. No caso colombiano, adifusão do dinheiro dos cartéis por toda a economia e o meio políticoprovocou corrosão irreversível da legitimidade das instituições públicas,esvaziando o sistema democrático de seus conteúdos vitais.

23 Para uma história detalhada desse processo, consultar Fabio Castillo, Los Jinetes de la Cocaina,Bogotá, Documentos Periodísticos, 1987. Um resumo abrangente da questão do narcotráfico nocontexto das Américas aparece em José Arbex Jr., Narcotráfico: um jogo de poder nas Américas, SãoPaulo: Moderna, 1993.

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A Bolívia conheceu uma fase de forte instabilidade política desdea rebelião militar e a renúncia do ditador Hugo Bánzer, em 1978. Em1980, um movimento militar conduzia ao poder o general García Mezaque, comprovadamente, estava envolvido com a máfia internacionalda cocaína, da qual recebia financiamento.

Esse período crítico representou o momento da grande expansãodo cultivo de folha de coca no país. Apenas em meados da década de1980, com a estabilização institucional e a colaboração dos EstadosUnidos na repressão ao tráfico em território boliviano, o negócio veio aconhecer significativo retrocesso.

No Peru, a expansão do cultivo da coca, desde 1975, coincidiucom a dissolução do regime militar e populista de Velasco Alvarado. Noinício da década de 1980, o surgimento do terrorismo do SenderoLuminoso e a perda de controle do Governo sobre vastas áreas rurais dosAndes e da Amazônia criaram o ambiente para o crescimento do negóciodo tráfico.24 Nos anos 90, sob o governo de Fujimori, o Sendero Luminosofoi mortalmente golpeado, e o cultivo da coca conheceu certo retrocesso.

Na Colômbia, a formação do Cartel de Medellín acompanhou ocrescimento da violência política e o dos enfrentamentos entre as forçasarmadas e as guerrilhas. Já em 1979, a questão do narcotráfico convertia-se em tema central da diplomacia colombiana, com a assinatura detratado de extradição permitindo a entrega para os Estados Unidos deacusados de negócios com a droga. Na segunda metade da década de1980, foram entregues às autoridades americanas 49 colombianos.

Em junho de 1991, a “rendição” de Pablo Escobar, o capo do Cartelde Medellín, teve como contrapartida a votação, pelo Legislativo, deuma lei proibindo a extradição. A internação de Escobar na luxuosa“prisão” de Envigado e a sua “fuga”, pouco mais de um ano depois,contribuíram para desmoralizar o governo de Bogotá. Em seguida, acaça sem trégua a Escobar, encerrada com a morte do traficante em1993, em confronto com as forças de segurança, reduziu a influênciada organização de Medellín.

24 Sobre a história e a cultura do Sendero Luminoso, pode-se consultar a obra de Gustavo Gorriti, TheShining Path: A History of the Millenarian War in Peru (Chapel Hill: University of North CarolinaPress, 1999).

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O negócio do tráfico transferiu-se, então, para o controle do Cartelde Cali, cujas estruturas são descentralizadas e largamente informais.A prisão, em 1995, dos irmãos Gilberto e Miguel Orejuela, principaischefes do Cartel, não desorganizou os traficantes de Cali, que controlama maioria dos laboratórios de refino e participam das mais diversasatividades legais em todos os setores da economia colombiana. Nova leide extradição, enviada pelo governo de Ernesto Samper e aprovada noCongresso em 1997, foi criticada por Washington em virtude de não tercaráter retroativo.

As rotas da cocaína, transportada para os grandes mercadosconsumidores na América do Norte e na Europa, envolvem os “paraísosfinanceiros” da América Central e do Caribe. A legislação financeiraflexível e as regulamentações bancárias que favorecem o anonimato secombinam com o deslocamento de agências bancárias americanas eeuropéias para territórios off-shore, garantindo ambientes seguros paraa legalização das rendas da cocaína.

Guerra ao narcotráfico

Em abril de 1986, no segundo governo de Ronald Reagan, osEstados Unidos definiram uma doutrina de combate ao narcotráfico,cujo ponto de partida foi um decreto presidencial prevendo o usoeventual das Forças Armadas contra narcotraficantes, em paísesestrangeiros. Desse modo, o tema deixava o âmbito das políticasnacionais de segurança pública e saúde para ingressar na esfera dasrelações internacionais.

A nova doutrina transformou a questão do narcotráfico emassunto de segurança nacional. O antigo embaixador na Colômbia,Lewis Tambs, revelou o sentido conceitual da “guerra ao tráfico”,cunhando a expressão “narcoterrorismo”. Também utilizou a expressãopara recobrir todas as manifestações do narcotráfico, e não apenas aligação entre os narcotraficantes e os movimentos terroristas ouguerrilheiros. Dessa forma, “narcoterrorismo” tornou-se acusaçãopassível de ser dirigida a governos constituídos, como ocorreu mais tardecom o regime panamenho de Manuel Noriega. Simultaneamente,as verbas destinadas pelo Congresso ao combate ao negócio da droga

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experimentaram crescimento geométrico, enquanto eram desconsideradasestratégias alternativas, baseadas em considerações sociais e de saúde.25

Desde essa época, os Estados Unidos passaram a atuar, por meiode conselheiros militares, agentes da CIA ou da DEA, na repressão anarcotraficantes na Colômbia, no Peru e na Bolívia. Nesses países,conselheiros e oficiais de Washington coordenaram programas desupressão de áreas de cultivo da folha de coca e desenvolveramprogramas de treinamento de forças militares e policiais para o combateao “narcoterrorismo”.

A doutrina americana provocou a militarização do combate aonarcotráfico, envolvendo as forças armadas de países latino-americanos.Em 1987, um encontro dos comandos das forças armadas de inúmerospaíses do subcontinente equiparou o narcotráfico à “guerra revolucionária”,estabelecendo as bases para a transformação da repressão ao tráficoem prioridade de segurança nacional.

Enquanto isso, multiplicavam-se no Pentágono os planos decontingência direcionados para hipotéticas intervenções militares na áreaandina. A invasão do Panamá, em dezembro de 1989, por tropas dosEstados Unidos, e a prisão do homem-forte do país, Manuel Noriega,foram apresentadas por Washington como operações enquadradas narepressão ao narcotráfico.

A chamada “Operação Justa Causa” fundamentou-se na doutrinado “narcoterrorismo” e foi justificada em termos da segurança nacionaldos Estados Unidos. Depois disso, o Panamá continuou a ser utilizadocomo rota da cocaína e centro de lavagem do dinheiro da droga,fornecendo argumentos para os críticos dos alicerces conceituais da“guerra ao narcotráfico”.

25 Um exemplo desse tipo de estratégia, que tende a reduzir a importância do tema no que concerneà política externa, aparece no artigo de Ethan A. Nadelmann, “Commonsense Drug Policy” (ForeignAffairs, January/February 1988). Ali, o autor enfatiza: “While looking to Latin America and Asia forsupply-reduction solutions to America’s drug problem is futile, the harm-reduction approaches spreadingthroughout Europe and Australia and even into corners of Norrh America show promise. These approachesstart by acknowledging that supply-reduction initiatives are inherently limited, that criminal justice responsescan be costly and counterproductive, and that single-minded pursuit of a “drug-free society” is dangerouslyquixotic. Demand-reduction efforts to prevent drug abuse among children and adults are important, but soare harm-reduction efforts to lessen the damage to those unable or unwilling to stop using drugs immediately,and to). those around them” (p. 113). (grifos nossos)

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A amplitude adquirida pela estratégia antidrogas de Washingtonmanifestou-se na “política de certificação”, lançada em 1988, e na realizaçãode dois encontros de cúpula, envolvendo chefes de Estado latino-americanos, destinadas a coordenar os esforços contra o narcotráfico.

Em fevereiro de 1990, reuniu-se a Cúpula de Cartagena(Colômbia), com a participação de George H. Bush, Virgilio Barco(Colômbia), Alan García (Peru) e Jaime Paz Zamora (Bolívia). O encontroaprovou um documento amplo, que fazia referência a um variadoescopo de medidas, instituições e organismos para a coordenação darepressão ao negócio da droga, diluindo a ênfase militar pretendida porBush. Ao mesmo tempo, o documento sublinhou a ligação entre produçãoe consumo de drogas, situando indiretamente a responsabilidade dosEstados Unidos, como grande mercado consumidor, na expansão donarcotráfico.

Em fevereiro de 1992, reuniu-se a Cúpula de San Antonio, noTexas, que contou com a presença de George H. Bush e dos presidentesCesar Gaviria (Colômbia), Alberto Fujimori (Peru), Paz Zamora(Bolívia), Carlos Andrés Perez (Venezuela), Rodrigo Borja (Equador) eSalinas de Gortari (México). O documento aprovado em San Antoniotambém se situou muito aquém das pretensões de Washington,sublinhando – pouco mais de dois anos depois da invasão do Panamá –a necessidade do respeito à soberania nacional dos países envolvidos.Além disso, a Declaração voltou a enfatizar o problema do consumo dedrogas e explicitou os aspectos sociais envolvidos na repressão aonarcotráfico, destacando a importância de programas de ajuda aoscamponeses para a substituição do cultivo ilegal.

Em Cartagena e San Antonio, evidenciou-se a diferença deenfoques que separa Washington dos países latino-americanos naquestão do narcotráfico. A constituição de uma força multinacionalantidrogas pretendida por Bush esbarrou na ênfase conferida aoprincípio da soberania nacional, e o projeto de militarização da repressãofoi atenuado pelo destaque conferido aos aspectos sociais envolvidos.

A administração Clinton amenizou a retórica da “guerra àsdrogas”, mas não alterou os fundamentos da estratégia definida pelosantecessores republicanos. A “política de certificação”, pela qual

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Washington avalia anual e publicamente o comportamento de outrospaíses no combate ao narcotráfico, seguiu seu curso e provocou sériosconstrangimentos diplomáticos sem contribuir para maior eficácia narepressão aos traficantes. As contradições da “política de certificação”evidenciaram-se no tratamento conferido à Colômbia e ao México.

Em 1996 e 1997, foi negada a certificação à Colômbia, o queacarretou suspensão de ajuda econômica e cassação do visto de entradanos Estados Unidos do presidente Samper. Em 1998, o certificado, maisuma vez, deixou de ser concedido, porém as sanções econômicas foramlevantadas e retomou-se a cooperação militar.

Já no caso mexicano, a certificação foi ritualmente renovada,apesar das evidências de envolvimento com o narcotráfico de RaúlSalinas, peça-chave no esquema de financiamento da campanhapresidencial de seu irmão, Salinas de Gortari, e do escândalo queconduziu à prisão, em 1997, do general Gutiérrez Rebollo, o chefe dapolícia antinarcóticos acusado de receber suborno do cartel de Juárez.

O regime semiditatorial de Alberto Fujimori, no Peru, semprerecebeu a certificação americana e, ao longo da década de 1990, foiconsiderado firme aliado na “guerra ao narcotráfico”. Contudo, duranteo ocaso do regime e, especialmente, após a reúncia e a fuga dopresidente, em novembro de 2000, evidenciou-se o profundoenvolvimento de Vladimiro Montesinos, chefe do Serviço de InteligênciaNacional e homem-forte do regime, nos negócios do narcotráfico.

O aprofundamento da crise colombiana, em 1999, foi acompanhadopor enrijecimento ainda maior do enfoque conceitual americano. Apolítica externa de Washington, no caso, passou a ser definida não peloDepartamento de Estado, mas pelo diretor da política antidrogas daCasa Branca, Barry McCaffrey.

Do discutível conceito de “narcoterrorismo” emergiu a caracterizaçãode “narcoguerrilhas”, aplicada aos agrupamentos armados de esquerda.No orçamento de Bush de 2003, foram suprimidas as distinções originaisdo Plano Colômbia, e o treinamento de repressão ao narcotráficooferecido pelos oficiais dos Estados Unidos transformou-se emcooperação militar contra as guerrilhas colombianas.

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6 – BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

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UNIDADE IV

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA:CONDICIONANTES E DELINEAMENTO

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1 – MOLDURAS HISTÓRICA E ECONÔMICA

A política externa brasileira encontra-se atualmente diante de ummomento especial, que representa também uma encruzilhada. Estãodadas, como nunca antes, as condições reais para a afirmação da posiçãobrasileira no mundo, consubstanciada em uma política externadirecionada para a democracia e o desenvolvimento.

Esse horizonte de possibilidades – que resulta tanto dastransformações no ambiente exterior quanto das dramáticas mudançasnacionais – não é, entretanto, fatalidade. Antes, representa uma opção,cuja contrapartida seria a manutenção de certa “marginalidade” daposição do país no mundo, traduzida pelos discursos paradoxais ecomplementares do ufanismo e do sentimento de inferioridade.1

A encruzilhada diante da qual nos encontramos é produto, antesde tudo, de transformações radicais no sistema internacional que,essencialmente, independem da atitude brasileira. O encerramento daGuerra Fria constitui o pano de fundo dessas transformações, quedescortinam cenário altamente plástico, liberto das polaridades rígidasque definiram o sistema internacional no último meio século.

A dissolução da bipolaridade global descontaminou o cenário domaniqueísmo diplomático que constrangia as potências médias eregionais a adotarem alinhamentos quase automáticos, definidos porprioridades geopolíticas e ideológicas estranhas ao interesse nacional.

O novo cenário internacional, ainda que influenciado pelo poderestratégico dos Estados Unidos, não constitui espaço diplomáticosufocado por uma polaridade hegemônica. A emergência de novos pólosde poder econômico, situados na Europa ocidental e na central, na Eurásiae no Extremo Oriente, introduz alguma flexibilidade no sistemainternacional de Estados e sugere um leque de opções mais amplo paraas potências médias.

1 Sobre o sentimento de inferioridade, disseminado na sociedade civil desde meados da década de1970 e especialmente ativo na década de 1980, ver o ensaio de Roberto Abdenur, “A Política ExternaBrasileira e o Sentimento de Exclusão” (Temas de Política Externa Brasileira II, vol. 1, Brasília/SãoPaulo: Funag-Paz e Terra, 1994, p. 30-46).

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Simultaneamente, a evolução da economia mundial, balizada pelastendências complementares de globalização e regionalização, introduzum conjunto de novos desafios para os países continentais como o Brasil,a Rússia, a China e a Índia. A abertura acelerada dos mercados nacionais,sob os golpes da nova intensidade e da velocidade dos fluxos deinvestimentos e mercadorias, implica a supressão das tradicionaisestratégias de desenvolvimento apoiadas em modelos mais ou menosautárquicos. Essas mesmas tendências, entretanto, sugerem campo maisvasto de opções em um mundo de acirrada competição entre economiasnacionais e blocos geoeconômicos.

Por outro lado, a encruzilhada presente é, também, fruto dasopções nacionais recentes, que reorganizaram a política interna brasileirae redefiniram as percepções hegemônicas a respeito do significado dointeresse nacional. A transição do autoritarismo militar para ademocracia pluralista completou-se, atravessando a zona de turbulênciaformada pelo pacto elitista e restrito que nos conduziu ao primeirogoverno civil da redemocratização e a crise de governabilidade quedestruiu o primeiro governo eleito diretamente e contaminou asinstituições políticas atingidas pelo descrédito público.

Para surpresa dos céticos, durante essa trajetória turbulenta, aestabilidade democrática foi conservada e fortalecida. Em intervalomuito curto, as condições de governabilidade foram reconstituídas e aspráticas políticas democráticas recobraram a autenticidade que pareciaperdida. A eleição presidencial de 2002, que consagrou a vitória dacoalizão de centro-esquerda liderada pelo PT, evidenciou o dinamismoda democracia brasileira.

Nesse percurso, as demandas sociais de ética e transparênciarepercutiram nas instituições e nos poderes republicanos. Um dosresultados mais notáveis foi a emergência de novas percepções sobre ofuturo do país, atravessadas por sentimentos de auto-estima que nãose confundem com o ufanismo artificial e deletério tão difundido empassado recente.

A dimensão econômica dessas transformações político-institucionais já se materializa em opções hegemônicas e sedimentadasfavoráveis a novos modelos de integração do país com os mercados

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internacionais. A abertura da economia aos investimentos e aos fluxoscomerciais externos, a exposição à concorrência internacional, aredefinição do papel do Estado na economia, as reformas previdenciáriae tributária, o consenso nacional sobre a urgência de políticas sociaismais agressivas – essa agenda carregada de mudanças gera novosdesafios e dificuldades, mas espelha compreensão renovada doscaminhos do futuro.

O conjunto de transformações nos cenários externo e internoconstitui o arcabouço para a política externa nacional. A interpretaçãodas percepções majoritárias na sociedade brasileira e a cuidadosa revisãoda inserção do país no sistema internacional constituem instrumentosindispensáveis à valorização das possibilidades existentes de afirmaçãode um papel de relevo do Brasil na cena mundial. Mas há um alicercehistórico da política externa nacional, cujas raízes e tradições seencontram na formação do Estado brasileiro e na sua consolidação comopotência média.

Tradição, experiências e percepções

José Honório Rodrigues propõe uma periodização para a históriadiplomática do Brasil, cujo ponto de partida é o traçado do Meridianode Tordesilhas.2 Essa abordagem, derivada da tradição da mitologianacional, faz da epopéia dos bandeirantes e das peripécias do gêniodiplomático de Alexandre de Gusmão a fase inicial da política exteriorbrasileira.

Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno preferem, de modo maisprudente, iniciar sua história diplomática no momento da formação deum Estado brasileiro soberano, em 1822.3 O reparo, menor, que se podefazer consiste em apontar uma lacuna: a política externa joanina. Operíodo, extremamente convulsionado, que medeia entre a chegada daFamília Real e a Independência, condicionou percepções duradourassobre o entorno continental, fundadas na oposição entre o caráterimperial do novo Reino Unido e o republicanismo emergente nosproto-Estados hispano-americanos. A política joanina no Prata e, em

2 Cf. Uma história diplomática do Brasil (1531-1945), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 45.3 Cf. História da política exterior do Brasil, São Paulo: Ática, 1992.

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especial, a ocupação da Banda Oriental derivaram, em grande medida,de tais percepções.

Certo consenso histórico permite dividir a política externa doImpério em duas fases, separadas por uma fronteira nítida: a extinçãodos tratados de aliança e comércio com a Grã-Bretanha e a introduçãodas tarifas Alves Branco, seguida pela Lei Eusébio de Queiroz, de 1850.A primeira fase, caracterizada pela subordinação externa que funcionavacomo contrapartida da manutenção do tráfico negreiro, transcorreusob o signo da insegurança. A perda da Cisplatina e as convulsõesassociadas à Guerra Grande uruguaia enlaçavam-se com a Farroupilha,ameaçando a integridade do Império. No Prata, desenrolava-se o dramada construção dos Estados argentino, uruguaio e paraguaio, querepercutia sobre a frágil unidade territorial brasileira.4

A segunda fase, caracterizada pela consolidação do Estado brasileiro,correspondeu à decrescente dependência em relação à Grã-Bretanha eà ampliação da autonomia externa do Império. A Guerra do Paraguai ea abertura do Rio Amazonas à navegação internacional, na década de1860, constituem seus eventos principais. A derrota de Solano Lópezassinalou o encerramento do longo ciclo de conflitos platinos e a conclusãodos processos tormentosos de construção das fronteiras dos Estadosenvolvidos. A abertura da navegação amazônica permitiu a delimitaçãoinicial de grande parte das fronteiras brasileiras na região e abriucaminho para o aprofundamento das relações com os Estados Unidos.

Desde meados do século XIX, o Brasil exercitou, com plenaconsciência, a tática de utilizar os Estados Unidos como contrapeso àinfluência, ainda predominante, da Grã-Bretanha. Ao mesmo tempo,definiu os espaços das Bacias Platina e Amazônica como focos distintosde projeção de influência regional, comportando-se como potênciamédia. No primeiro caso, a oposição a uma “Grande Argentina”, traduzidapela defesa da independência do Uruguai e da do Paraguai, expressou apercepção do interesse nacional. No segundo, o interesse nacionalidentificou-se com o controle efetivo sobre a vasta área amazônica, queexigia a limitação da projeção de poder dos Estados Unidos.

4 Sobre o assunto, pode-se consultar a obra de Demétrio Magnoli, O corpo da pátria: imaginaçãogeográfica e política externa no Brasil (1808-1912), São Paulo: Unesp/Moderna, 1997, p. 139-164.

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O problema da autonomia frente às grandes potências constitui,invariavelmente, a encruzilhada principal da política externa da potênciamédia. No caso do Brasil, toda a política externa republicana pode serinterpretada sob o prisma da autonomia frente aos Estados Unidos. Asrespostas concretas a esse desafio estratégico modularam a atuaçãodiplomática do país.

A “era Rio Branco” completou, do ponto de vista da políticaexterior, a transição do Império para a República. No Itamaraty, RioBranco corrigiu os excessos idealistas da primeira década republicana.5

Sua aguda visão estratégica permitiu clara definição do exercíciodo pan-americanismo, marcado pela construção de parceria especialcom os Estados Unidos e, simultaneamente, pela afirmação da liderançabrasileira no subsistema do Cone Sul. A política ABC do Barão,destinada a situar o Brasil na posição de árbitro entre a Argentina e oChile, viria a desdobrar-se, sob formas adaptadas às circunstânciascambiantes, através do restante do século.

A obra maior de Rio Branco, que foi a conclusão do processo dedelimitação das fronteiras, divide a história do Brasil independente emdois grandes períodos. A consolidação dos limites políticos redirecionouas estratégias territoriais do país para o esforço de ocupação efetiva,cujos pontos altos foram a transferência da capital e a construção dasrodovias de integração nacional. No plano externo, a obra de limiteslibertou a diplomacia brasileira das heranças colonial e imperial e criouambiente estável para a condução das políticas voltadas à cooperaçãocom os vizinhos sul-americanos.

A “era Vargas” assinalou a primeira significativa oscilação noalinhamento internacional histórico da diplomacia brasileira. Ao longoda década de 1930, a intensificação das relações comerciais com aAlemanha funcionou como contrapeso para a influência dominante dosEstados Unidos.

Na primeira metade do Estado Novo, sob Osvaldo Aranha, oItamaraty praticou ainda mais claramente uma política pendular,

5 A política externa dos primeiros tempos republicanos ganhou um estudo detalhado na obra de ClodoaldoBueno, A República e sua política exterior (1889 a 1902) (São Paulo/Brasília: Unesp-IPRI, 1995), que veioa preencher uma lacuna historiográfica.

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destinada a ampliar a autonomia nacional no plano externo. A táticaempregada pela diplomacia brasileira durante aqueles anos não refletiacondicionamentos ideológicos mas percepções muito nítidas do sentidodo interesse nacional.6

Na conjuntura decisiva dos anos iniciais da Segunda GuerraMundial, essa política atingiu contornos de dramaticidade, e seudesfecho, com o realinhamento a Washington e a declaração de guerraao Eixo, trouxe compensações estratégicas nas esferas econômica epolítica. Economicamente, Vargas conseguiu o financiamento da usinade Volta Redonda, deflagrando a implantação da siderurgia estatal nopaís. Politicamente, o Brasil posicionou-se como parceiro privilegiadodos Estados Unidos na América do Sul do pós-guerra, enquanto aArgentina era marginalizada.

Alinhamento e autonomia

O vetor mais decisivo da tradição recente da política externabrasileira foi condicionado pelo ambiente da bipolaridade rígida do pós-guerra: o sentido de pertinência ao “Mundo Ocidental” e, por essa via, oalinhamento com a política mundial de Washington.

A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, definido pelareorientação diplomática de Vargas em 1942, representou o assentamentode uma base duradoura para a orientação estratégica do país. No imediatopós-guerra, durante o governo Eurico Gaspar Dutra, a evolução do sistemainternacional na direção da Guerra Fria implicou o fechamento do lequede opções diplomáticas postas para o Brasil.

No novo cenário internacional, a proibição do Partido Comunista,a assinatura do Tiar, a formação da OEA e a instalação da ESG, sob osauspícios da missão militar americana, definiram a moldura no interiorda qual se moveria a política externa brasileira. O alinhamento com apolítica mundial de Washington tornava-se vetor decisivo para adiplomacia nacional. Nesse contexto, o pensamento geopolítico deextração militar, que há muito enfocava o interesse nacional numa

6 Sobre essa fase da política externa brasileira, pode-se consultar Gerson Moura, Autonomia nadependência (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980) e Roberto Gambini, O duplo jogo de GetúlioVargas (São Paulo: Símbolo, 1977).

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moldura basicamente circunscrita à América do Sul, tratou de inserir osubsistema no cenário global da confrontação Leste-Oeste.7

Entretanto, o alinhamento com a política mundial de Washingtonnão foi, jamais, uma operação linear. Longe de um alinhamentoautomático, a diplomacia brasileira trabalhou arduamente para conservarum espaço de autonomia no interior do qual pudesse se afirmar, emcada momento, o interesse nacional. Desde o governo JuscelinoKubitschek, pela via do nacional-desenvolvimentismo, o Brasil passoua enfatizar os temas do subdesenvolvimento e das relações econômicasNorte-Sul. O lançamento da Operação Pan-Americana (OPA), que viriaa influenciar a política continental da administração Kennedy, procuroutraduzir essas novas prioridades da agenda diplomática.

A OPA inseria-se, ainda, no contexto do pan-americanismo daGuerra Fria. Contudo, nos governos Jânio Quadros e João Goulart, amoldura conceitual do nacional-desenvolvimentismo conheceriaacentuada rotação. A chamada Política Externa Independente (PEI)organizava-se no contexto do Movimento dos Países Não-Alinhados etransferia a prioridade conferida ao confronto ideológico Leste-Oestepara o tema das desigualdades econômicas Norte-Sul.8 O terceiro-mundismo, influenciado pelos ambientes político e intelectual dadescolonização afro-asiática, filtrava-se pelo pensamentodesenvolvimentista do ISEB e da CEPAL e mesclava-se com influênciasneomarxistas, especialmente oriundas da teoria da dependência.

A criação da Alalc representou a tradução latino-americana daagenda terceiro-mundista, cujo pressuposto era a negação do pan-americanismo. A pronunciada rotação conceitual expressou-se, de modoespetacular, na condecoração oferecida a Ernesto “Che” Guevara pelopresidente Jânio Quadros e na célebre viagem do vice-presidente JoãoGoulart à República Popular da China, às vésperas da renúnciapresidencial.

7 Observe-se, a esse respeito, os artifícios de argumentação utilizados por Golbery do Couto e Silvana sua Geopolítica do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio, 1967), que produzem a sensação de umalógica pouco articulada, para introduzir a noção do conflito Leste-Oeste numa tradição de pensamentoessencialmente nacionalista e circunscrita ao entorno imediato do país.

8 Consultar, a esse respeito, a obra de San Tiago Dantas, Política Externa Independente (Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1962).

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O desejo persistente de afirmação de posição soberana no cenáriointernacional é constante na política externa brasileira, com raízesmergulhadas na diplomacia do Império. Sob esse prisma, a “políticaalemã” de Vargas e o terceiro-mundismo da PEI não representaramrupturas verdadeiras, mas unicamente oscilações acentuadas, seguidaspor bruscos movimentos de realinhamento. Nos primeiros anos doregime militar, o realinhamento manifestou-se pela ruptura de relaçõesdiplomáticas com Cuba e, em 1965, pela participação de forçasbrasileiras, sob comando formal da OEA, na intervenção na RepúblicaDominicana.

Mas o período do autoritarismo militar não deve ser identificado,de modo simplista, com a política externa de alinhamento incondicionalde seus primeiros tempos. Sob Costa e Silva e Médici, o anticomunismoprogramático foi mesclado com o nacionalismo inspirado na geopolíticade extração militar, e a diplomacia brasileira voltou a bater na tecla dasdesigualdades Norte-Sul.9 Depois, sob Geisel, a herança retórica terceiro-mundista foi abandonada, mas acentuaram-se as tendências nacionalistasassociadas à meta de projeção de influência da potência média.

O Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, de 1975, gerou novassuperfícies de atrito com Washington, agravadas pela firme rejeiçãobrasileira do Tratado de Não-Proliferação (TNP) e pelas evidências deque o país se preparava para adquirir capacidades tecnológicasautônomas no campo das armas nucleares. No mesmo ano, oreconhecimento pioneiro dos regimes pró-soviéticos instalados emAngola e Moçambique e a desenvoltura cada vez maior do “pragmatismoresponsável” do Itamaraty assinalaram nova oscilação em relação aorumo histórico tradicional.

Naqueles anos, a afirmação da condição de potência regionalderivava de correntes profundas do pensamento conservador, traduzido

9 Como assinalam Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno: “O governo Costa e Silva foi marcadopelas percepções de que o conflito Leste-Oeste se deslocara para centro-periferia e de que convinhareforçar e ampliar a ação do Sul. Instruiu sua diplomacia no sentido de exercer uma “ação resoluta”,ao lado da Ásia e da África para fazer passar na ONU, particularmente na UNCTAD, novas resoluçõespró-desenvolvimento.” (História da política exterior do Brasil, op. cit., p. 361). No governo Médici, asrelações com os Estados Unidos foram profundamente comprometidas pela extensão do mar territorialbrasileiro para 200 milhas, em 1970, que se desdobrou em incidentes nas águas territoriais e naadoção, pelo Capitólio, de medidas comerciais retaliatórias.

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na linguagem da geopolítica militar.10 Essa vertente da política externa,muitas vezes renegada pelo corpo diplomático, influenciou as iniciativasbrasileiras no subcontinente e agravou a tradicional rivalidade platinaao excluir Buenos Aires das negociações que conduziram à construçãoda hidrelétrica binacional de Itaipu.

Ocidente, Terceiro Mundo, América Latina: rótulos simples eabrangentes como esses, que designam vastas comunidades imaginárias,são incapazes de sintetizar os vetores fundamentais da inserção do Brasilno sistema internacional. Mas ênfase conferida a cada um deles sãoindícios das percepções e das prioridades que formaram, nas suasdiferentes fases, a política externa nacional.

Quando se completava a transição do autoritarismo militar paraa democracia pluralista e, simultaneamente, abandonava-se a estratégianacional-desenvolvimentista apoiada na substituição de importações,registrou-se um desejo voluntarista de mimetismo com o PrimeiroMundo. O governo Collor de Mello, especialmente na sua fase inicial,marcada pela brusca abertura comercial, tendeu a privilegiar as relaçõescom os países da Europa ocidental e com os Estados Unidos, emdetrimento tanto do entorno sul-americano quanto dos temas associadosà ordem econômica internacional.11

Desde a renúncia de Collor de Mello, a política externa brasileirapassou a buscar na sua própria tradição os conceitos e os instrumentosnecessários para reposicionar o país no ambiente estratégico do pós-guerra Fria e no cenário econômico da globalização. Essa busca envolveu

10 Dentre os teóricos pioneiros da liderança brasileira na América do Sul destaca-se Mário Travassos,autor da Projeção Continental do Brasil (São Paulo: Nacional, 1947). Essa obra, que se tornou quaseuma obsessão no interior das elites militares argentina e chilena, prosseguiria informando o pensamentogeopolítico da ESG e atualizando-se por meio das obras de Golbery do Couto e Silva e Carlos deMeira Matos.

11 Em seu instigante ensaio, Roberto Abdenur associou essa tendência à percepções negativistas sobrea posição brasileira no mundo: “Em período muito recente de nossa história, assistimos a umrecrudescimento das formas mais negativas de sentimentos autodepreciativos em relação ao Brasil.Em certos momentos, o Brasil foi tomado por um verdadeiro “fetichismo primeiro-mundista”, comfortes traços de mimetismo em direção aos países desenvolvidos. O uso acrítico e repetido doconceito da “modernidade” – vista apenas através de seus símbolos mais superficiais – foi a expressãomais concreta desse tipo de atitude. Hoje, felizmente, estamos superando esse momento. Háconsciência de que pertencer ou não ao Primeiro Mundo depende muito menos de esforços deidentificação com os países desenvolvidos que da superação das desigualdades sociais que, essas sim,fazem do Brasil um país do Terceiro Mundo.” (Op. cit., p. 34).

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a crítica das oscilações voluntaristas que se manifestaram pelos exagerosdo nacionalismo, do terceiro-mundismo e do mimetismo com o PrimeiroMundo. Mas, sobretudo, envolveu a dinamização de aspectos relevantesda tradição da política externa brasileira: os valores da paz e dacooperação internacional, do respeito aos princípios de soberania e auto-determinação, a capacidade de diálogo e mediação, o repúdio face àsdiscriminações étnicas e culturais.

Esse corpo tradicional de valores – associado à afirmação doscompromissos com a democracia, os direitos humanos e ainterdependência econômica – representa ativo crucial e plataformapara as redefinições diplomáticas demandadas pelo sistemainternacional em mutação.

O traço dominante da conjuntura internacional aberta pelo11 de setembro de 2001 é a Doutrina Bush. A reorientação da políticamundial de Washington repercute intensamente sobre todo o sistemainternacional, gerando insegurança entre as potências médias e demandageneralizada pelo respeito às instituições multilaterais. A política externado governo Lula foi desafiada, desde o início, a oferecer respostas a essaconjuntura.

Durante a crise diplomática gerada no Conselho de Segurança daONU em torno da autorização para o ataque americano ao Iraque, oBrasil alinhou-se explicitamente com a França e a Alemanha. Oposicionamento, coerente com a tradição da política externa nacional,deixou de lado a cautela excessiva e revelou a decisão brasileira deinterferir mais ativamente na política mundial.

Os desafios presentes consubstanciam-se em vasta agenda, quese estende dos problemas globais da segurança coletiva e cooperaçãointernacional às questões da integração continental e da regional,passando por um elenco de temas tão diversos como o comércio mundial,a problemática ambiental, os direitos humanos e a regulamentação douso da energia nuclear. A disposição brasileira para encarar essa agendade modo positivo tem como contrapartida a reivindicação de reformasdas instituições internacionais, capacitando-as a refletir adequadamenteum sistema internacional de Estados que não está mais definido pelaspolaridades rígidas do pós-guerra.

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Texto Complementar

RIO BRANCO E O PANAMERICANISMO, Demétrio Magnoli(In: O Corpo da Pátria, São Paulo: Unesp-Moderna, 1997, p. 200-216)

O Brasil ingressou na órbita britânica ainda antes de existir comoEstado, no momento da assinatura do Tratado de Methuen, emdezembro de 1703. O arranjo, em princípio limitado à esfera comercial,selou a dependência econômica portuguesa e estabeleceu a moldura naqual se definiriam as relações políticas e diplomáticas entre as duasCoroas. Nos dois tratados de Utrecht, a posição de Portugal já era a deum semi-protetorado britânico e, eventualmente, a frota lusa navegavasob o comando de almirantes ingleses. A subordinação portuguesarepresentou uma garantia contra as ambições de outras potências naAmérica, funcionando como um escudo naval para o território colonialluso-brasileiro.

A transferência da Corte para o Brasil e a subseqüente aberturados portos realizaram-se no contexto do conflito europeu e como partedo empreendimento britânico destinado a derrotar a França napoleônica.Os tratados de 1810 prolongaram para o Brasil semi-independente acondição de subordinação de Portugal e definiram, pelas décadasseguintes, os limites da soberania brasileira. Apenas com o seuesgotamento, em 1844, e a extinção do tráfico negreiro pela Lei Eusébiode Queiroz, o Brasil ascendeu à soberania externa plena. Oliveira Limadeplorou a condição de subordinação do Império à Grã-Bretanha,particularmente evidente durante a vigência dos Tratados de Aliança,Comércio e Navegação, quando os súditos britânicos beneficiavam-sede privilégios jurídicos especiais no Brasil: “Gozou (...) aquela nação noImpério de privilégios que fazem pensar nos que as potências ocidentaisda Europa impuseram no Oriente com o regime das capitulações”. Emtodo caso, “a Grã-Bretanha nunca exerceu sobre o Brasil a espécie deprotetorado que sob o disfarce de aliança de há séculos exerce sobrePortugal...”. A avaliação é verdadeira: mesmo durante o período desubordinação formal à Grã-Bretanha, o Brasil imperial exercitou umapolítica externa relativamente autônoma e, para proteger essa margemde manobra, procurou contrabalançar a influência britânica.

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(...) As relações com a Grã-Bretanha comportaram sempre umacombinação de subordinação estratégica geral com atritos políticos ediplomáticos localizados, no contexto mais amplo da harmoniacomercial. O tratado de comércio firmado em 1827, que limitou a 15%as tarifas incidentes sobre importações britânicas, significou a extensãodas concessões de 1810 até a introdução das tarifas Alves Branco. Poroutro lado, a Questão Cisplatina e o Bill Aberdeen, que quase gerou umconflito aberto nos cinco anos anteriores à Lei Eusébio de Queiroz,revelavam que a política imperial não era sempre coincidente com osinteresses britânicos. Essa oscilação refletiu-se na dualidade de fundoda diplomacia do Império, expressa nas tentativas de estabelecercontrapesos à influência britânica.

Na segunda metade do século, liberto da hipoteca diplomáticarepresentada pelo tráfico negreiro, o Império desenvolveu uma políticaexterna significativamente autônoma, afastando-se progressivamenteda órbita britânica. A estratégia platina destinada a destruir o poder deRosas e Oribe, o intervencionismo no Uruguai em defesa dos colorados ea própria deflagração da Guerra do Paraguai não refletiram as vontadesde Londres, mas os interesses e temores imperiais, entre os quais,notadamente, a justificada obsessão com o separatismo interno. Coma deflagração da Guerra da Secessão, na qual Londres se inclinava parao lado dos confederados, a diplomacia britânica procurou reconquistara boa vontade brasileira. Porém, nas vésperas da Guerra do Paraguai, achamada Questão Christie provocou a ruptura das relações diplomáticas,restabelecidas apenas em pleno campo de batalha, em Uruguaiana.

Ao longo dessa trajetória, firmou-se entre os formuladores dapolítica externa brasileira a convicção de que os interesses imperiaisdistinguiam-se cada vez mais das orientações diplomáticas britânicas.A Grã-Bretanha aparecia como um obstáculo para a projeção dainfluência do Império, no período crucial da formação do Estadonacional. Quando a Grã-Bretanha propôs ao Brasil participar damediação oficiosa conduzida por britânicos e franceses junto aosgovernos argentinos rivais de Mitre e Urquiza, o Barão de Penedo,representante em Londres, avaliou, em despacho particular, que oconvite tratava “certamente de nos algemar e impedir de ter umapolítica fora dos interesses europeus”. Um pouco depois, em abril de

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1862, referindo-se implicitamente à potência naval européia, D. PedroII escrevia em seu diário particular: “Veio o Paranhos... Falei-lhe dasafrontas que se têm feito ao Brasil e da necessidade de uma políticaprópria para evitar maiores embaraços futuros”.

A “política própria” de Pedro II materializou-se na tendência auma aproximação cada vez maior com os Estados Unidos (...).A Guerrado Paraguai assinala um momento decisivo no processo de aproximaçãocom os Estados Unidos. Antes, o Império tinha insistido em conservaruma distância prudente – expressa na recusa, comunicada em 1847,em tornar perpétuos os dispositivos do tratado de paz e amizade de1828 – e havia se envolvido em polêmicas acrimoniosas acerca danavegação amazônica, na década de 1850. Depois, a solução favorávela Washington do contencioso fluvial abriu caminho para a renovaçãodo tratado de 1828, declarado perpétuo em 1874, como queria o governodos Estados Unidos. O novo curso imprimido nas décadas imediatamenteanteriores à proclamação da República nutria-se do crescimento docomércio bilateral, que exibia saldos muito favoráveis para o Brasil, edo ambiente de entusiasmo ideológico pelos ideais americanistas, quecontaminava líderes como Tavares Bastos e se espraiava pela Argentinade Juan Bautista Alberdi e Domingo Sarmiento.

Entretanto, a substituição da Grã-Bretanha pelos Estados Unidoscomo pólo de referência da política externa brasileira consumou-seapenas com o advento da República. No plano simbólico, o abandonodo constitucionalismo monárquico representava a ruptura com aEuropa e a adoção do sistema republicano traduzia-se como areconciliação com a América. No imaginário da época, americanismo erepublicanismo formavam almas gêmeas, um par geográfico e políticoindissociável: não é fortuito, que o novo regime tenha recebido oreconhecimento imediato das repúblicas hemisféricas, tardando algumtempo o gesto das monarquias européias.

(...) Como regra, o enquadramento da política externa brasileirana moldura do pan-americanismo é associado diretamente com aproclamação da República. Essa interpretação, superficial, assenta-sesobre uma confusão entre dois processos que não são idênticos: asubstituição da polaridade britânica pela americana, de um lado, e a

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absorção do pan-americanismo como concepção de mundo e doutrinadiplomática, de outro. O primeiro é anterior à República, ainda quetenha se completado com o gesto da proclamação. O segundo é posteriorà mudança do regime e constitui a obra principal do Barão do Rio Brancona sua longa gestão da pasta das Relações Exteriores, entre 1902 e 1912.

José Maria da Silva Paranhos Júnior, filho do Visconde do RioBranco, assumiu em 1868 a cadeira de professor de História e Corografiado Brasil no prestigioso Colégio Pedro II. Entre 1869 e 1875 foi deputadoconservador por Mato Grosso e, em 1870, acompanhou seu pai, comosecretário, na chamada Missão Paranhos ao Rio da Prata. Ainda noImpério, em 1876, passou a exercer as funções de Cônsul Geral do Brasilem Liverpool. Com a República, o Barão do Rio Branco logo se tornariao mais destacado diplomata brasileiro, conduzindo, na condição deMinistro Plenipotenciário, a defesa da posição nacional junto aosgovernos dos Estados Unidos e da Confederação Suíça nos episódios dearbitramento dos contenciosos de limites no Prata e no Amazonas.Já como titular do ministério, foi nomeado sócio correspondente daSociedade Real de Geografia de Londres – por indicação do geógrafofrancês Elisée Reclus, de quem tinha se tornado amigo durante a suaestadia[sic] na Europa – e membro da Sociedade de Geografia de Paris.O “pai fundador” da diplomacia brasileira promoveu a ruptura dentroda continuidade, combinando a tradição realista herdada do Impériocom a renovação das concepções de mundo e dos paradigmas da políticaexterna nacional.

Rio Branco conduziu a diplomacia brasileira com um grau deautonomia frente aos poderes executivo e legislativo de que nãodispunham seus antecessores imediatos. Ao longo das administraçõesde Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca,formulou políticas e coordenou estratégias praticamente sem ainterferência dos humores internos cambiantes. Nesse percurso, corrigiuo que avaliava como desvios idealistas oriundos do republicanismoexacerbado dos primeiros anos do novo regime, ilustradosexemplarmente pelo primeiro Tratado de Palmas. Como depositário datradição imperial, reconstituiu o consenso da opinião conservadora e,conseqüentemente, tornou-se alvo da ira da corrente positivista e dojacobinismo republicano.

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Mas, por trás da superfície continuísta, o que avulta na obra deRio Branco é o seu conteúdo de ruptura e reinvenção. Com o Barão, apolítica externa brasileira adaptou-se ao novo ambiente internacional,que integrava as Américas em um único subsistema de Estados,materializando a hegemonia hemisférica dos Estados Unidos. Contudo,essa adaptação pautou-se pela meta de conservar a autonomia nacional,nas condições mais restritivas que as do período anterior (...).

Um dos atos inaugurais da gestão do novo ministro, refletindo olugar que atribuía à potência americana na constelação do sistemainternacional, consistiu na elevação da legação em Washington àcategoria de embaixada, a primeira aberta pelo Estado brasileiro. Parao posto de embaixador, nomeou Joaquim Nabuco, que abraçava osprincípios do pan-americanismo de forma integral e apaixonada (...).

Nabuco, intelectual de pendor europeísta – influenciado porBagehot e Renan desde o bacharelado em Direito em 1865 – foi oprimeiro a usar a expressão “pan-americanismo” no Brasil. No início dasua carreira diplomática, ele permaneceu por três anos – entre 1876 e1879 – no cargo de adido da legação do Império em Washington. A suaadesão entusiasmada ao modelo dos Estados Unidos pode parecersurpreendente, quando se tem em conta o seu apego ao sistemamonárquico, mas é preciso considerar o quadro no seu conjunto: Nabucoencarava a República como o futuro comum da América, ao qual sedeveria chegar por meio de lentas e seguras reformas, com destaquepara a Abolição, a Federação e o Arbitramento.

(...) O ministro encarava o seu embaixador como peça crucial paraa política americana do Brasil, mas o conteúdo dessa política era elequem definia e a sua referência consistia no aprofundamento daautonomia nacional, não na adesão idealista aos princípios pan-americanistas. O monroísmo do Barão não envolvia o estabelecimentode alianças formais rígidas. Em instrução a Nabuco, ele precisava:“O nosso desejo é prender-nos o menos possível por compromissos”.

Rio Branco operava a partir da constatação das profundasalterações no sistema internacional, que repercutiam nas Américaspor meio da substituição da Grã-Bretanha pelos Estados Unidos comopotência hegemônica. A nova hegemonia, muito menos limitada nas

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suas ações pelos equilíbrios europeus, tendia a restringir a autonomiade todos os atores do subsistema hemisférico. Nesse contexto, a fim deconservar a margem de autonomia possível, tratava-se, para o Brasil,de alçar-se à condição de interlocutor privilegiado da potência americana,estabelecendo as bases de uma parceria estratégica.

Na visão global do Barão, as Américas eram três: Estados Unidos,Hispano-América e Brasil. Sob a dinâmica do funcionamento do pan-americanismo, a meta estratégica consistia em consolidar a posiçãobrasileira como elo de ligação entre os Estados Unidos e a Hispano-América.

A tática requerida para esse fim implicava em evitar o isolamentobrasileiro e, mais que isso, aprofundar o papel nacional de pólogeopolítico sul-americano. A opção, herdada do Império, de conservara fragmentação e estimular a dispersão dos Estados hispano-americanosrepresentava um corolário da doutrina geral.

2 – BRASIL E ORDEM ECONÔMICA MUNDIAL

Depois do longo ciclo de reconstrução do pós-guerra, a economiamundial ingressou em novo ciclo de inovação tecnológica e de profundastransformações estruturais. A direção principal das mudanças apontoupara a intensificação dos fenômenos de globalização.

O processo de globalização envolve a redução acelerada dasbarreiras nacionais que funcionam como entraves para os fluxos debens, serviços e capitais. O crescimento constante do comérciointernacional, a emergência de um mercado mundializado de serviços(a circulação de bens “invisíveis”) e a desregulamentação generalizadados mercados financeiros da América do Norte e da Europa constituemdimensões desse processo.

No plano geoeconômico, a globalização provocou tanto adisseminação da economia industrial para a Ásia oriental e a meridional(com o surgimento dos chamados Novos Países Industrializados) comoa ruptura do bloco de economias estatizadas e centralmente planificadasda antiga União Soviética e da Europa centro-oriental. As reformas

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econômicas liberalizantes na China Popular e na Índia participaramdesse movimento, de âmbito planetário.

A América Latina ingressou nesse movimento com atraso. Durantea maior parte da década de 1980, economias industriais (como as doBrasil, do México e da Argentina), semi-industriais (como a do Chile) epetroleiras (como a da Venezuela) sofreram o impacto das transformaçõesde âmbito planetário sobre suas estruturas produtivas e seus modelosde desenvolvimento. O fechamento e o elevado grau de protecionismovigentes – expressos em elevadas barreiras tarifárias e não-tarifárias,além de políticas oficiais de subsídios e incentivos – traduziam o modelode substituição de importações implantado na década de 1930 ereforçado no pós-guerra.

A crise das dívidas externas e o colapso financeiro do poder públicoforam os sintomas mais característicos do esgotamento do ciclo decrescimento protegido no subcontinente. Violentos surtos inflacionáriosassinalaram o fim de uma época.12

Apenas na década de 1990, as principais economias dosubcontinente encetaram programas de reformas estruturais, em buscade estratégias de desenvolvimento novas, capazes de relançar ocrescimento interrompido. As diversas variantes de reformas – queabarcam desde a integração do México ao Nafta até a rígida ancoragemcambial do Plano Cavallo argentino – amparavam-se no mesmoarcabouço conceitual e nas estratégias comuns de abertura econômica,exposição à concorrência internacional, redução do papel do Estadocomo indutor do crescimento e correção dos desequilíbrios fiscais.

No contexto latino-americano, o Chile representou exceção. Apolítica de liberalização econômica e a maior exposição à concorrênciainternacional foi impulsionada desde a década de 1980, sob o regime deAugusto Pinochet. Os governos civis subseqüentes conservaram asorientações macroeconômicas herdadas do regime ditatorial, apenaspromovendo correções de rota na via de execução de políticas sociaiscompensatórias.

12 Para análise detalhada da crise da década de 1980 na América Latina, consultar Stephany Griffith-Jones e Osvaldo Sunkel, O Fim de uma Ilusão (São Paulo: Brasiliense, 1990), especialmente oscapítulos 2 e 3.

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O Brasil, desde os preparativos para o lançamento do Plano Real,modelou a própria versão de um programa de reformas, cujos nexo elógica se situam nesse leito comum. As reformas estruturais deflagradasno governo Collor de Mello e aprofundadas com o Plano Real implicaraminédita valorização do mercado mundial para a política externabrasileira. A acelerada abertura da economia nacional para os fluxosinternacionais de bens, serviços e capitais assinalou o encerramentodefinitivo de longo período fortemente autárquico, no qual a contribuiçãodas trocas externas para a formação da riqueza nacional tinha relevânciasecundária.

No período aberto pelas reformas liberalizantes, frações crescentesda riqueza interna passaram a depender da capacidade de avançar sobreo mercado externo e, ao mesmo tempo, o horizonte de desenvolvimentoindustrial interno passou a ser condicionado, em grande medida, pelacapacidade de importar tecnologias e internalizar investimentos. Naetapa crítica das mudanças, o programa de desestatização contribuiusignificativamente para a captação de recursos externos e a relativaestabilização da conta corrente do balanço de pagamentos.

Contudo, a brusca redução dos níveis de proteção alfandegáriae a valorização cambial da moeda nacional promovida pelo PlanoReal geraram crescente vulnerabilidade externa. Os saldos negativosna balança comercial e em conta corrente, em associação com oencerramento da fase ascendente do ciclo econômico internacional,desaguaram na desvalorização descontrolada da moeda a partir dejaneiro de 1999.

Nos anos áureos do Plano Real, o equilíbrio das contas externasdependia do ingresso de volumes expressivos de capitais internacionais.Essa etapa foi encerrada. Desde a desvalorização cambial, e mais aindaapós a ruptura da euforia especulativa nos mercados financeirosinternacionais, esse equilíbrio se tornou dependente de significativossaldos positivos na balança comercial. O aumento expressivo esustentado das exportações passou a desempenhar papel vital para aestabilidade da economia nacional.

Na arena do comércio mundial, o Brasil desempenha a função deum típico global trader. O conceito de global trader expressa a situação

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de uma economia urbana e industrial, de dimensões continentais,diversificada e complexa tanto em relação às estruturas produtivas e àspautas comerciais quanto em relação aos parceiros comerciais.13

Nessa condição, o Brasil distingue-se de economias continentaiscujo comércio exterior se organiza em torno de um único grande parceiro(caso do Canadá), de economias em desenvolvimento associadas a ummegabloco econômico (caso do México), de economias de dimensõesmenores cujo crescimento depende da integração em blocos regionais(caso de diversos países europeus) e de economias circunscritas a umapauta especializada de exportações, que dependem da inserção emnichos do mercado mundial (caso de dezenas de países do TerceiroMundo).

A definição do Brasil como global trader expressa, simultaneamente,uma tradição e um projeto. A tradição brasileira de diversificação dosparceiros comerciais, firmada ao longo do século e especialmente nopós-guerra, reflete-se atualmente na importância equilibrada da Europaocidental e da América do Norte para o comércio externo nacional, naemergência acelerada do Cone Sul como zona de intercâmbio e naexistência de interesses comerciais significativos nas áreas da Bacia doPacífico e no Oriente Médio.

Mas o crescimento sustentado da participação brasileira nasexportações mundiais é meta crucial de política econômica. O projetode intensificação da integração do Brasil ao mercado global implica adefinição de políticas destinadas a assegurar o acesso do país às diferentesmacrorregiões comerciais do globo, combatendo práticas unilateraisdiscriminatórias e implementando as tendências multilateralistaspresentes no cenário mundial.

13 Um esboço de articulação do conceito de global trader aparece nas recomendações contidas noensaio de Paulo Tarso Flecha de Lima, “Dados para uma Reflexão sobre a Política Comercial Brasileira”:“Devemos estimular os impulsos liberalizantes, sem abandonar o objetivo de consolidar e desenvolveruma indústria à altura de nossas dimensões continentais. É preciso que saibamos conciliar nossaintegração com a economia mundial, sem nos transformarmos numa “plataforma de exportação”.”(Temas de Política Externa Brasileira, São Paulo/Brasília: Ática-FUNAG, 1989, p. 377). Poucos anosdepois, a par da evolução da conjuntura brasileira, o conceito ganhava contornos mais precisos etornava-se ponto de partida para a elaboração de políticas comerciais. Veja-se, como ilustração, o ensaiode Sebastião do Rego Barros Monteiro, “O Brasil e a Rússia” (Temas de Política Externa Brasileira II,op. cit., vol. 2, p. 116-136).

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Comércio: defesa do multilateralismo

O comércio mundial está estruturado em torno de quatro grandespólos: Europa ocidental, América anglo-saxônica, Japão e Ásia. Os trêsprimeiros correspondem a países desenvolvidos. O peso excepcional daÁsia no intercâmbio de mercadorias é decorrência da revoluçãotecnocientífica, que proporcionou o surgimento de significativa baseindustrial exportadora nos NPIs e na China.

As correntes comerciais internacionais refletem o descompassoentre esses pólos e o resto do mundo. A Europa ocidental responde pormais de 40% das exportações globais; a Ásia, sem o Japão e o OrienteMédio, por cerca de 18%; a América anglo-saxônica, por cerca de 17%;o Japão, por 7%. Em conjunto, os quatro pólos concentram mais de80% das exportações mundiais. A parcela da América Latina nãochega a 6%.14

A estrutura das correntes interregionais de comércio revela que ointercâmbio global tem um núcleo central, constituído por teias de fluxosintensos entre os quatro pólos, e áreas periféricas conectadas a um oudois dos pólos principais. A América Latina depende essencialmente domercado dos Estados Unidos e, secundariamente, do mercado da UniãoEuropéia. A CEI e a Europa oriental, assim como a África, dependemcriticamente da União Européia. Os exportadores de petróleo do GolfoPérsico, dos mercados da União Européia, da Ásia e dos Estados Unidos.Não se registram correntes comerciais significativas no âmbito Sul-Sul.

Os pólos principais do comércio mundial realizam intercâmbiosvultosos no interior de blocos regionais. O comércio intrarregional daUnião Européia corresponde a 28% de todo o comércio mundial. NaÁsia (incluído o Japão), essa parcela é superior a 12%. O intercâmbiono interior do Nafta representa cerca de 10% do comércio mundial. Emcontraste, as demais áreas exibem intercâmbio intrarregional quaseinsignificante, do ponto de vista absoluto, e modesto, do ponto de vistarelativo.15

14 Cf. OMC, 2002.

15 Cf. OMC, 2002.

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O panorama do comércio mundial expressa duplo contraste. Deum lado, entre o elevado valor das exportações dos países desenvolvidose o baixo valor das exportações dos países em desenvolvimento. Deoutro, entre as grandes dimensões dos mercados consumidores dos paísesdesenvolvidos e as dimensões reduzidas dos mercados consumidoresdos países em desenvolvimento. O primeiro contraste reflete a difusãodesigual das inovações da revolução tecnocientífica. O segundo, asprofundas desigualdades internacionais de renda.

A ordem econômica emanada de Bretton Woods fundamentou-se no multilateralismo, na concertação e nas regras pactuadas destinadasa reduzir o protecionismo e combater as práticas discriminatórias. Nasdécadas do pós-guerra, as sucessivas rodadas de negociações comerciaisdo Gatt lograram avanços significativos na consolidação de ambientefavorável à intensificação das trocas, promovendo o multilateralismocomo método.

Entretanto, as realidades comerciais globais situam-se no interiorde um sistema internacional de Estados fortemente assimétrico, no qualprevalecem, via de regra, os interesses nacionais das potênciaseconômicas. Assim, as regras pactuadas e as abordagens multilateraissubordinaram-se sempre, com maior ou menor intensidade, àsprioridades econômicas e geopolíticas desse grupo de Estados. Acontradição entre os conceitos proclamados pela OMC e a realidadedas políticas de poder manifestam-se na contradição entre os discursosideológicos liberais e as práticas comerciais protecionistas ediscriminatórias.

A teoria econômica clássica sustenta que a abertura comercial éuma vantagem em si. Contudo, as estratégias dos Estados conciliameconomia clássica e postulados mercantilistas, em função de interessesdefinidos politicamente. Os Estados Unidos pressionam por rápidasreduções tarifárias nos setores de alta tecnologia e de serviços, nos quaisse concentram suas vantagens comparativas, enquanto usam e abusamde medidas protecionistas nos setores industriais tradicionais.

Para a União Européia, as barreiras não-tarifárias representaminstrumentos de defesa de variados interesses internos: servem deescudo para seus agricultores contra a concorrência dos transgênicos

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norte-americanos e dos cereais canadenses e argentinos, funcionamcomo proteção temporária para sua indústria automobilística, ameaçadapelos japoneses, e limitam a concorrência representada por produtosindustriais asiáticos e brasileiros.

A longa e penosa Rodada Uruguai do Gatt ilustrou nitidamenteesse padrão de duplicidade. O vetor central do impasse – as negociaçõesde liberalização do comércio agrícola – gerou o choque dos EstadosUnidos com a União Européia. O resultado das negociações ficou muitolonge de atender aos interesses de exportadores que praticamente nãose utilizam de subsídios, como é o caso dos países do Grupo de Cairns.A preparação para a frustrada Rodada do Milênio revelou o desinteressede Washington por novas negociações agrícolas, que atingiriam seupróprio aparato de subsídios.

Entretanto, ao menos no plano dos documentos e das regras, aRodada Uruguai consagrou disposições mais liberais e menosdiscriminatórias que as vigentes anteriormente. A criação da OMC,como desdobramento do Gatt, constituiu avanço significativo, pois asregras multilaterais pactuadas ganharam estatuto contratual e amparode mecanismos compulsórios de solução de controvérsias.16

Uma das dimensões mais significativas da defesa domultilateralismo é a manutenção de iniciativas destinadas a coibir aspráticas discriminatórias advindas da consolidação de blocos econômicosregionais. Na condição de global trader, o Brasil sofreria prejuízosprofundos na hipótese da disseminação de um espírito de blocos noambiente comercial internacional. O fato de termos comércio fortementedirecionado para os países da UE e do Nafta agrava o problema.

O desafio posto pela realidade internacional da configuração deblocos econômicos pede um conjunto diversificado de respostas. Paraalém da defesa, crucial, do multilateralismo e das regras pactuadas,trata-se de consolidar relações comerciais alternativas, tanto em nívelregional como em global.

16 É interessante (e preocupante) observar o apego da administração e o do Congresso dos EstadosUnidos à legislação comercial nacional, em particular aos instrumentos de sanções unilaterais daSuper 301. Provavelmente, o teste decisivo dos mecanismos de solução de controvérsias da OMCocorrerá em embates com o arsenal legislativo comercial dos Estados Unidos.

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Tradicionalmente, as correntes de comércio do Brasil orientaram-se, de modo predominante, para a Europa ocidental e os Estados Unidos.A instituição do Mercosul intensificou o intercâmbio com os países doCone Sul, aumentando a participação da Aladi no comércio externobrasileiro. Atualmente, o país mantém três correntes comerciais principaise uma quarta, bastante significativa, com os países da Ásia oriental.

As oportunidades para expansão das exportações para o blocoeuropeu dependem das negociações sobre subsídios agrícolas conduzidasno quadro da OMC e do projetado acordo de livre comércio entre oMercosul e a União Européia. Nos dois casos, o obstáculo a vencer é acoesão dos políticos e a da sociedade, especialmente na França, em tornoda Política Agrícola Comum (PAC) que protege os produtores rurais daconcorrência externa.

O intercâmbio com os Estados Unidos lança um cone de sombrasobre todas as correntes comerciais do Brasil. Mas a expansãosignificativa e sustentada dessa corrente de intercâmbio depende,crucialmente, da evolução das negociações da Alca.

Nas Américas se situam outros parceiros comerciais significativos.A Argentina ocupa a posição de segundo maior parceiro do Brasil, bemà frente da Alemanha. O intercâmbio com o principal sócio no Mercosulé estruturalmente deficitário. Os saldos negativos no comércio com aArgentina decorrem, em parte, das vantagens comparativas agrícolasdo país vizinho. Mas o desequilíbrio no intercâmbio bilateral reflete,antes de tudo, o acordo político implícito que alicerça o Mercosul: emtroca da influência diplomática que o bloco do Cone Sul confere aoBrasil, a Argentina obteve acesso privilegiado ao maior mercadosul-americano.

O caráter multidirecional do comércio exterior brasileiro evidencia-se ainda mais nitidamente pela existência de parceiros de peso fora dosconjuntos da União Européia e das Américas. Dentre esses parceirosestão potências industriais asiáticas (Japão e Coréia do Sul), economiascontinentais (China e Rússia) e grandes exportadores de petróleo daOpep (Nigéria, Arábia Saudita e Argélia).

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O Japão ocupa a posição de quarto parceiro comercial, atrás daAlemanha. O intercâmbio com o Japão e a Coréia do Sul exibe vultosossaldos negativos. A oportunidade para crescimento acentuado dasexportações para esses mercados depende do setor agroindustrial e daimplantação de infra-estruturas de transportes que conectem as áreasprodutoras aos portos do Oceano Pacífico.

A China, em virtude do crescimento recente do intercâmbio e daincorporação de Hong Kong, ultrapassou a Itália e já ocupa a posiçãode quinto parceiro comercial. O intercâmbio com a Rússia é muitomenor, mas tende a crescer rapidamente. O Brasil mantém saldosfavoráveis com as duas economias continentais. Essas parceriaspromissoras inspiraram a política nacional a buscar o incremento dointercâmbio com a Índia, outra economia continental.

Investimentos: a defesa da soberania

Os investimentos externos diretos são, tanto ou mais que ointercâmbio de bens e serviços, um combustível da globalização. Nadécada de 1990, até a crise asiática de 1997, a expansão acelerada dosinvestimentos externos foi fator decisivo para a continuidade docrescimento industrial da China e dos NPIs e para a transição rumo aosistema de mercado das economias da Europa centro-oriental e daRússia. Na América Latina, os investimentos externos permitiram aretomada do financiamento do crescimento econômico, após o longointervalo formado pela “década perdida”.

Contudo, os investimentos externos permaneceram, no essencial,ausentes dos principais acordos econômicos multilaterais. O Gatt nãotinha mandato para tratar amplamente do tema e, com raras exceções,os tratados que alicerçam blocos econômicos regionais se concentraramnos temas do intercâmbio de bens e serviços.17 Desse modo, os fluxosinternacionais de capitais produtivos receberam atenção relativamentepequena dos Estados, ainda que se possa argumentar que o foco real

17 A mais importante exceção é a do Nafta, cujas regras para investimentos são analisadas no capítulo8 da monografia de Fernando P. de Mello Barreto Filho, O tratamento nacional de investimentosestrangeiros (Brasília: IRBr-Funag-Centro de Estudos Estratégicos, 1999).

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dos acordos comerciais fossem exatamente os investimentos externosdiretos.18

Na ausência de regime multilateral, tornaram-se cada vez maiscomuns, desde a década de 1960, acordos bilaterais sobre investimentos,concluídos principalmente entre países desenvolvidos. No âmbito daONU, a partir de 1977, encetaram-se discussões voltadas para aformulação de um Código de Conduta de Empresas Transnacionais. Ainiciativa de países em desenvolvimento esbarrou na oposição dos paísesdesenvolvidos e fracassou no início da década de 1990. Na década de1980, os países desenvolvidos lançaram no foro do Banco Mundial ainiciativa que resultaria na Agência Multilateral de Garantia deInvestimentos (Miga).

A mudança de foro correspondia a alteração de ênfase: asnegociações na ONU estavam centradas no controle do comportamentodas transnacionais; a Miga destina-se a restringir o comportamento dosgovernos. Em 1990, no ambiente de brusca liberalização do governoCollor de Mello, o Brasil aderiu à Miga. Quase simultaneamente, osEstados Unidos e os países que viriam a formar o Mercosul assinavam oAcordo do Jardim das Rosas. Tais compromissos serviram como modelospara o Acordo de Promoção e Proteção dos Investimentos do Mercosul,firmado em 1994. Essencialmente, esses acordos protegem interessesdos investidores, em particular os relacionados a remessas e transferênciasde capital, e são omissos no que concerne a práticas comerciais restritivasou discriminatórias por parte de empresas transnacionais.19

Durante a Rodada Uruguai do Gatt, as discussões sobreinvestimentos foram muito menos abrangentes que o desejado pelos

18 A maior parte das trocas comerciais internacionais já consiste em intercâmbio intra-empresas. Essefenômeno evidencia, melhor que qualquer outro, as relações entre comércio e investimentos. Umdos pilares decisivos para a expansão acelerada dos investimentos externos são os acordos multilateraise regionais de redução de barreiras ao intercâmbio de bens e serviços, pois eles trazem embutidosnovos horizontes de investimentos para as corporações transnacionais.

19 “A proposta dos países em desenvolvimento, durante as negociações do Código de Conduta daONU, de que regras deveriam ser impostas às empresas e não aos governos, parece ter sido praticamenteignorada. Assim, as práticas comerciais restritivas, por parte de empresas multinacionais, sequer sãomencionadas nos instrumentos analisados. O próprio conceito de responsabilidade por essas práticasfoi invertido nas Diretrizes da Miga, deixando de ser obrigação das empresas de não praticá-las,passando a ser dos governos de coibi-las.” (Fernando P. de Mello Barreto Filho, O tratamento nacionalde investimentos estrangeiros, op. cit., p. 141).

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Estados Unidos e pelos países europeus, limitando-se às Medidas deInvestimentos Relacionadas a Comércio (Trim’s) e a os vários dispositivosdo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt). Contudo, antes que aRodada se encerrasse, passaram a circular propostas para um “Gattdos investimentos”. Na OCDE, sob o impulso de Washington,engajaram-se negociações destinadas a concluir um Acordo Multilateralsobre Investimentos (MAI). O esboço de tratado do MAI abrigava defesaferoz dos interesses das corporações transnacionais, limitando aoextremo a soberania dos Estados. Em 1999, a retirada francesa dasnegociações e a resistência crescente dos representantes do Canadápraticamente selaram o fracasso da tentativa.

Embora essas idéias não tenham prosperado, elas indicaram quea ONU estava sendo substituída pelas instituições oriundas de BrettonWoods como quadro de discussões sobre o tema dos investimentosexternos. Os países desenvolvidos, apesar das suas divergências,uniam-se em torno de interesses compartilhados e esboçavam estratégiacomum. Logo, ficou claro que o foro preferido para trabalhar por umregime multilateral abrangente sobre investimentos seria a OMC ou oBanco Mundial.

Do ponto de vista dos países desenvolvidos, a meta principalconsiste em implantar um regime multilateral que garanta tratamentonacional aos investimentos externos diretos, com o menor númeropossível de cláusulas de exceção. O tratado do Nafta, que supera asDiretrizes da Miga, parece representar o modelo a ser perseguido. NaRodada de Doha da OMC, os países desenvolvidos conferem prioridadeao tema dos investimentos, enquanto tentam postergar ou reduzir aprofundidade das negociações de liberalização agrícola.

Para os países em desenvolvimento, em particular aqueles que,como o Brasil, dispõem de significativa base industrial, um regimemultilateral e abrangente restringiria em demasia o campo para aformulação de políticas industriais, impondo a exposição quaseindiscriminada da economia à concorrência estrangeira. Ele significariaa renúncia à maior parte dos instrumentos fiscais e creditícios pelosquais o poder público é capaz de conduzir estratégias setoriais.

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Texto Complementar

O PAÍS E OS DESAFIOS DA OMC, Luiz Felipe Lampréia(In: Diplomacia Brasileira: palavras, contextos e razões, Rio de Janeiro:Lacerda, 1999, p. 263-269)

Este artigo foi publicado às vésperas da segunda ReuniãoMinisterial da Organização Mundial do Comércio, em Genebra. Paramelhor compreendê lo, vale fazer um breve retrospecto sobre a gênesee a significação da OMC.

Recordo me que, no começo da Rodada Uruguai (1986), oDepartamento Econômico do ltamaraty pensou em fazer um semináriocom autoridades acadêmicas que se dedicassem ao comérciointernacional e, depois de uma imensa pesquisa, conseguiu identificarapenas três pessoas: duas em São Paulo e uma em Belo Horizonte, ouseja, todo o universo de especialistas acadêmicos brasileiros em comérciointernacional cabia dentro de um fusca. Isso, de fato, era o espelho dacircunstância de que o Brasil era uma grande ilha que vivia protegidapor imensos muros tarifários e só tinha com o exterior uma relação umtanto vaga de importador de petróleo e de algumas commodities.

Até quinze anos atrás, essa era a realidade. Hoje, todos osfenômenos da globalização – este rótulo gasto, às vezes mal-entendidoe bastante difamado – convergiram para o Brasil e fizeram com que opaís se inserisse nesse veio central do relacionamento internacional. Nãopodemos mais ignorar o mundo exterior, porque ele chega, queiramosou não, às prateleiras dos supermercados, às decisões diárias de nossavida financeira, ao exercício das nossas profissões, à maneira como nósnos deslocamos de um lugar para o outro. De fato, existem hoje razõesde sobra para que procuremos entender e apreciar melhor as circunstânciasque marcam este envolvimento, não só do nosso, mas de praticamentetodos os países, exceto aqueles que escolheram marginalizar se totalmenteda sociedade – e esses são cada vez menos numerosos. É necessário queestudemos o conjunto de regras e de fatos que criam esse panoramainternacional.

Em primeiro lugar, como órgão chave da globalização, está,há quatro anos, a Organização Mundial do Comércio. Acho que é

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interessante rememorar, brevemente, a evolução que conduziu à OMC,para maior clareza, Como se sabe, logo após a Segunda Guerra Mundial,os países vencedores, basicamente os anglo-saxões, organizaram aConferência de Havana, da qual resultaram o Gatt (Acordo Geral deTarifas e Comércio, na sigla inglesa), que entrou em vigor em 1947, euma Organização Internacional de Comércio, que nunca chegou afuncionar, porque o Congresso americano não ratificou o acordoconstitutivo da Organização. Mas o Gatt – um acordo exemplar,extremamente denso e articulado – serviu para reger uma expansão,fabulosa do comércio internacional desde o pós guerra, sucedendo aoperíodo de grande fechamento do comércio internacional do entreguerras, em que o protecionismo e a depressão econômica dos anos30 levaram a um empobrecimento do mundo inteiro.

O Gatt foi suficiente para permitir uma enorme expansão docomércio internacional, fundada em duas regras básicas: a primeira, aregra da nação mais favorecida (MFN, do inglês Most Favoured Nation),segundo a qual nenhum país pode tratar outro país-membrodiferentemente, em termos tarifários, e a regra da não discriminaçãoentre o produto importado e o produto interno, o chamado tratamentonacional do art. 3 do Gatt. Ora, esse acordo vigorou durante mais dequarenta anos e, através de rodadas sucessivas (a Rodada Kennedy, aRodada Tóquio, as últimas foram assim chamadas), levou a umaliberalização crescente do comércio internacional, à remoção deobstáculos tarifários e de barreiras não tarifárias, o que permitiu umaexpansão sem precedentes do comércio internacional. Porém, chegadosos anos 80, verificou-se que havia duas grandes carências no arcabouçojurídico do comércio internacional. A primeira era de um sistema desolução de controvérsias que efetivamente fosse obrigatório e eficaz.Isso não ocorria pois, no Conselho do antigo Gatt, e na Reunião dasPartes Contratantes, a regra do consenso fazia com que um país grande– um pequeno evidentemente não se atreveria – pudesse bloquear umprocesso, um veredicto de um tribunal comercial, e portanto impedirque um país menor pudesse obter satisfação numa situação em queconsiderasse seus direitos violados por um país maior.

A segunda grande carência do Gatt era o fato de não cobrir osdemais setores do comércio internacional, ou seja, o comércio de serviços

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e a área de propriedade intelectual, e não regulamentava com suficienteprofundidade a questão das práticas desleais de comércio, comosalvaguardas, direitos anti dumping, direitos compensatórios.

O Gatt, na prática, tinha duas exceções capitais que tornavam oseu alcance no comércio internacional muito limitado. A primeira exceçãoera a de têxteis e confecções, pois havia o Acordo Multifibras e, portanto,todos esses produtos estavam na prática fora da regulamentação doGatt. A segunda exceção, ainda maior, era o comércio de produtosagrícolas. A agricultura estava fora porque a Comunidade Européiatinha logrado, desde o seu início, impor uma política agrícola, comumaltamente protecionista e subsidiadora. Os Estados Unidos, evidentemente,como segundo grande pólo de produção agrícola rapidamente copiaramessa política e também obtiveram, na prática, uma isenção.

Assim, o sistema que vigorou até 1994 permitiu um fortedesenvolvimento do comércio internacional e uma liberalizaçãoimportante, mas tinha lacunas cruciais do ponto de vista de um paísem desenvolvimento como o Brasil: a falta de um sistema de solução decontrovérsias eficaz e justo, a exclusão da agricultura e dos têxteis. ARodada Uruguai tinha o desafio de suprir estas grandes lacunas e deacrescentar novas regras a grandes setores dos negócios internacionais.Não é à toa que levou sete anos bíblicos para se completar.

Realmente foi um trabalho extraordinário, que consumiu sete anosde reuniões, mobilizou milhares de pessoas e se completou na reta finalde 1993 – na qual eu tive o imenso prazer de ser o negociador principalbrasileiro, Desse processo resultou um siste-ma que conseguiu suprir asprincipais deficiências do Gatt. A Organização Mundial do Comércio contacom um mecanismo quase judiciário de solução de controvérsias, emque não há mais a pos-sibilidade de bloqueio pelos países maiores. Depoisda fixação, através do órgão de solução de controvérsias e da própriaCorte de Apelação, a sentença tem de ser cumprida inapelavelmente,seja pela revogação da medida questionada, seja pela compensa-ção,pelo pagamento compensatório em outros produtos pelos prejuízosinfligidos à outra parte.

Esse é um fenômeno novo e extremamente importante. É muitosignificativo lembrar que o Brasil está fazendo uso caute-loso, mas

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freqüente, do mecanismo de solução de controvérsias. Isto é, a nossover, a principal conquista que tivemos na Rodada Uruguai, já que noshabilita ao que não podíamos antes: fazer valer os nossos direitos.Movemos um primeiro processo contra os Estados Unidos, juntamentecom a Venezuela, em matéria de gasolina, e vencemos em todas asinstâncias. Sofremos um caso contra o Brasil por parte das Filipinas,que protestavam contra as medidas empregadas por nós para defendernosso mercado contra alegada prática desleal de comércio deimportações de coco ralado daquele país, coisa de grande importânciapara diversos produtores do Nordeste, e vencemos também toda a linha.

Iniciamos em 1998 duas novas questões, uma contra o Canadá,em razão dos subsídios concedidos ao avião, competidor do nosso jatoEmbraer EMB-45, e outro contra a União Européia, pela maneira inexatae injusta de penalizar nossas exportações de café solúvel. Isso não querdizer que o Brasil vá agora levar todo e qualquer caso à OMC: massempre que, esgotados os procedimentos diplomáticos, consultas etentativas de conciliação normais, não obtivermos satisfação, tambémnão hesitaremos em fazê lo. Por outro lado, para completar essa avaliaçãodos benefícios da Rodada Uruguai, da OMC, devo dizer queconseguimos também um progresso satisfatório na área de têxteis econfecções, bem como na área de agricultura. É claro que, em ambos oscasos, particularmente na agricultura, sempre poderiam ser melhoresos compromissos. Os grandes países – em especial os membros da UniãoEuropéia e os Estados Unidos – aceitaram compromissos relativamenteaguados ao longo das negociações críticas que se desenvolveram a partirde 1990, quando se deu o grande fracasso da Conferência Ministerialde Bruxelas. Em 1991, houve uma primeira tentativa de apresentar umalista de compromissos, chamada Draft final Act, formulada por ArthurDunkel, então diretor geral do Gatt e, posteriormente, os acordos deBlair House e os acordos finais que levaram a uma considerável diluiçãodos compromissos de redução drástica dos subsídios agrícolas.

Mas, de qualquer modo, ao final da Rodada Uruguai, obtive-moscompromissos apreciáveis de redução dos orçamentos e das práticas desubsídio, tanto à produção quanto à exportação de produtos agrícolas,e conseguimos também o compromisso que, a partir de 1999, se façauma nova negociação, que aprofunde a liberalização do comércio

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agrícola. O Brasil, como um grande país produtor, com extraordináriasvantagens comparativas no setor agrícola, em termos de disponibilidadede terras aráveis, de sol e de água, é um país que tende a beneficiar-seamplamente desta liberalização. Por isso, uma das prioridades centraisdo governo brasileiro está na defesa de maiores oportunidades paranossa agricultura no comércio internacional.

Finalmente, a terceira grande conquista da Rodada Uruguai foi odisciplinamento na área de serviços, propriedade intelectual, investimentos,etc. Todos esses fatores, fazem parte dessa ordem econômica mundialglobalizada, que se caracteriza por out-ourcíng, por todas as característicasde internacionalização do processo produtivo e, portanto, constitui umamoldura geral a reger o fluxo de capitais, o fluxo de serviços, as normasque protegem os autores de produtos intelectuais, patentes e marcas.

É claro que a OMC não é perfeita, ela é resultado de um compromissono qual os países em desenvolvimento, como o Brasil, padeceram de seupequeno poder de barganha, que resulta de sua fraca participaçãopercentual no total do comércio internacional. Temos, certamente, umadeficiência na área de agricultura e temos também a certeza de que naárea de anti dumpíng há uma excessiva latitude, da qual se valem as grandespotências quando querem proteger seus produtores nacionais.

Essa última questão foi a negociação crucial. Já na quinzena finalda Rodada, em dezembro de 1993, passamos um fim de semana inteirocerca de doze chefes de delegação na sala do diretor-geral, e os EstadosUnidos finalmente fizeram valer a sua força e obtiveram a linguageminterpretativa que buscavam. Quando se estudar o acordo sobre aimplementação do art. 6 do Gatt, o que rege o capítulo de antidumping,ficará patente que há margem para que os Estados façam valer a sualegislação nacional sobre um sistema internacional de controvérsias, jáque existe uma determinada cláusula, chamada Standards of RevíewClause, segundo a qual, mesmo que um panel tenha chegado a umaconclusão contrária da autoridade nacional, a lei nacional prevalecerá,se o processo nacional tiver sido conduzido de maneira compatível comos seus procedimentos legais nacionais. A pressão era imensa emGenebra, porque o antidumpíng é cada vez mais o instrumento utilizadopara criar alguma forma de proteção para produtos sensíveis, já que asbarreiras tarifárias são cada vez menores.

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Recorde-se que hoje as tarifas internacionais cobrem apenas 3%em média, para produtos industrializados, e portanto não são mais umfator impeditivo. É nas taxas antidumping que está a maneira de barrara entrada de produtos indesejavelmente competitivos. Este é umproblema que nos afeta fortemente, nos Estados Unidos particularmente,com relação a produtos siderúrgicos onde há um uso freqüente, diriaabusivo, do recurso ao antidumping, o que faz que nossos produtosacabem sendo sobretaxados às vezes em 80%, 100% ou 120% e,portanto, sejam virtualmente varridos do mercado, com a manipulaçãohabilidosa de dados estatísticos.

De todo modo, é na OMC que está a nossa melhor defesa, a nossamaior conquista em termos de regras de direito comercial internacional,porque é o sistema que nos protege contra os abusos e nos dá recursosadequados para a solução de controvérsias. Nós sabemos que a OMCnão é a organização ideal, mas também devemos ter a consciência deque há, dentro dela, espaço para melhorar, aprofundando as vantagensque obtivemos, consolidando o que tiver que ser consolidado eesclarecendo aquilo que for ainda impreciso e vago, como é o caso doacordo sobre antidumping, que acabei de mencionar.

Temos procurado interagir ao máximo com a sociedade brasileirapara esclarecer o grande impacto da realidade internacional, das regrasinternacionais sobre a nossa vida cotidiana, sobre o que vestimos, o quecomemos, os carros que dirigimos, o transporte que utilizamos, enfim,todos os aspectos da nossa existência que eram, até há alguns anos, aprerrogativa exclusiva dos governos nacionais. Eles hoje se encontramfortemente limitados na sua capacidade autônoma de reger a vidaeconômica e social de cada nação, porque têm hoje incorporado ao direitopositivo interno todo o corpo de regras internacionais e, no caso docomércio internacional, as 550 páginas dos acordos da OMC. Portanto,é necessário, cada vez mais, que não apenas o governo tenha essacapacidade, mas a sociedade brasileira, as profissões ligadas a estasatividades, a opinião pública, os jornais e todos os cidadãos tenhamconhecimento, cada um no seu grau apropriado, dessas regras,circunstâncias e condições que são parâmetros cada vez maisfundamentais de nossa vida.

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3 – REFORMA DA ONU E QUESTÃO NORTE-SUL

O sistema internacional de Estados caracteriza-se por geometriacomplexa, na qual uma única hiperpotência detém a liderançaestratégica, mas a paisagem da economia global descortina vários pólosde poder. O elevado grau de incerteza quanto aos cenários do futuroimediato decorre da reorientação estrutural da política externaamericana deflagrada pelos atentados de 11 de setembro de 2001.

A presença de diversos pólos de poder econômico, bem como oprocesso de dissolução do “consenso ocidental” da Guerra Fria, limitame qualificam a liderança dos Estados Unidos, gerando vasto campo dealternativas de desenvolvimento. O desequilíbrio estratégico de podergera percepções de insegurança entre as potências, conduzindo-as aenfatizar a necessidade de respeito às instituições multilaterais. Apersistência das ameaças assimétricas aos Estados Unidos reforça ascorrentes políticas unilateralistas na hiperpotência, o que amplia assuperfícies de atrito entre Washington e as potências secundárias.

Ao mesmo tempo, a dupla face da realidade econômicainternacional – manifesta nos movimentos de globalização eregionalização – confere plasticidade ao sistema internacional. Asuperposição das realidades geoeconômicas e estratégicas sugere distintoscenários futuros e diferentes ordens de conflitos. A opção por um dessescenários, mais conflitivo ou mais harmônico, depende dos pressupostoshistóricos e filosóficos que orientam a análise.

O novo contexto internacional redefine decisivamenteproblemáticas e conceituações tradicionais e impõe desafios para aelaboração de políticas externas eficazes. A questão Norte-Sul ilustranitidamente esse desafio: o enquadramento tradicional da problemática,informado por noções anacrônicas, não serve mais como ponto de apoiopara a formulação de políticas.

A questão Norte-Sul surgiu como dimensão do processo políticoda descolonização afro-asiática, de um lado, e como fruto das análisesda economia mundial apoiadas na dicotomia centro/periferia, de outro.A configuração do Movimento dos Países Não-Alinhados e a ênfasecrescente dessa articulação na defesa de novos moldes de relacionamento

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econômico entre o Norte e o Sul repercutiram sobre a produçãointelectual e a prática diplomática, tanto no âmbito da ONU como nodas organizações regionais.

São ilustrações clássicas dessa influência a emergência da “teoriada dependência” e a atividade da Cepal, na América Latina, e asinúmeras resoluções e documentos oriundos das Conferências dos PaísesNão-Alinhados, da Assembléia Geral e de agências da ONU, nas décadasde 1960 e 1970. Não é pertinente introduzir aqui um balanço teóricoou político dos sucessos e dos fracassos dessa vertente de pensamento,mas cabe constatar que as realidades às quais se referenciava deixaramde existir ou, pelo menos, foram profundamente redefinidas na últimadécada.

Assim, a questão Norte-Sul não pode mais ser vista sob aperspectiva de dicotomia entre países industriais e agrícolas, ou mesmosob a luz das teorias da dependência ou do intercâmbio desigual. Oproblema do desenvolvimento associou-se, de modo inextricável, ao dasmodalidades de inserção na economia globalizada. Ao mesmo tempo,as estratégias de atuação do Terceiro Mundo apoiadas no conflito Leste-Oeste perderam, obviamente, sua substância.

A desmontagem, operada pelas próprias mutações do sistemainternacional, desse arsenal de teorias, modelos e estratégias diplomáticasoriginou profunda desorientação e, eventualmente, perda de foco darealidade subjacente à dicotomia Norte-Sul. São ilustrações simétricasdessa perda de foco as visões que dissolvem o tema do desenvolvimentonum discurso voltado para o simples crescimento econômico e as quepostulam o “fechamento” geopolítico e o econômico do Norte, comconseqüente marginalização absoluta do Sul.20

20 Dentre as múltiplas manifestações do primeiro tipo de enfoque, encontra-se o vasto discurso deinspiração liberal que aponta nos NPIs asiáticos uma via exemplar para o desenvolvimento sócio-econômico, abstraindo tanto as singularidades daqueles países como as profundas contradições domodelo de “plataforma de exportação”. A crise asiática de 1997 revelou as falácias desse ponto devista que, com menos audiência, continuam a reverberar. Dentre as manifestações do segundo tipode enfoque, encontra-se a noção de solidariedade quase metafísica dos países do Norte, em oposiçãoaos do Sul. Uma das derivações paradoxais dessa ordem de idéias consiste no discurso neoprotecionistaeuropeu, que acusa o Sul de praticar dumping social e fundamenta propostas discriminatórias nasuposta defesa dos níveis de vida e do emprego dos trabalhadores na Europa. Sobre essa últimaconcepção, ver a crítica contida no survey “The global economy”, publicado em The Economist nº7883, October 1st 1994.

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Essencialmente, a questão Norte-Sul apresenta-se hoje, sobperspectiva do Sul, como um projeto de reorganização das instituiçõesinternacionais destinado a impedir a cristalização das estruturas de poderdiscriminatórias herdadas do período que se encerra. Trata-se, no fimdas contas, de valorizar uma agenda internacional que contemple ostemas de interesse dos países em desenvolvimento e, ao mesmo tempo,de reforçar as instituições e os foros nos quais é menos intensa ahegemonia dos países desenvolvidos.

Isso significa, antes de tudo, evitar a construção de consensoconservador, expresso na tendência a enxergar o resultado da GuerraFria como vitória de princípios morais e/ou democráticos na esfera dosistema internacional. Esse movimento ideológico – tão claramenteretratado na evocação de uma “Nova Ordem Mundial” por parte deWashington – traz no seu bojo as estratégias de perpetuação do statusquo vigente.

A construção desse consenso conservador passa tanto pela seleçãodos temários a serem valorizados na diplomacia como pela perpetuaçãodas estruturas institucionais constituídas no pós-guerra.

A seleção conservadora dos temários foi ilustrada vastamente nosdiscursos característicos da década de 1990: justificação de novo “direitoà ingerência” apoiado nos discursos sobre os direitos humanos ou sobrea defesa ambiental, enfoque capcioso e discriminatório da questão dolivre comércio e da abertura de mercados, programas de reformaseconômicas estruturais estimulados pelos organismos financeirosinternacionais que não contemplam os problemas do desenvolvimentoe os da pobreza. Essa ofensiva ideológica conservadora coloca o desafioda elaboração de estratégias e políticas alternativas, calcadas naperspectiva a partir dos países em desenvolvimento.

A perpetuação das estruturas institucionais do pós-guerramanifesta-se na falta de entusiasmo dos países desenvolvidos empromover reformas significativas nos organismos econômicos oriundosde Bretton Woods e nos organismos políticos oriundos da Guerra Fria.Tais instituições – como o FMI e o Banco Mundial, a Aiea e a própriaONU – constituem, na forma como estão organizadas, expressões de

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um multilateralismo perverso, que freqüentemente se revelaminstrumentos para políticas de poder elitistas.

A hegemonia quase absoluta das grandes potências – e, em especial,dos Estados Unidos – nos órgãos de decisão das instituições internacionaisjá não se assenta na legitimidade (relativa) conferida pelo ambiente daGuerra Fria e contrasta penosamente com a ênfase retórica no princípioda igualdade entre os Estados. Cabe aos países em desenvolvimentoaprofundar a crítica ao elitismo das instituições internacionais e elaborarproposições de reforma que, mesmo levando em conta as realidades depoder, sejam capazes de conferir maior substância ao multilateralismoconsagrado retoricamente.21

Conselho de Segurança da ONU

A ONU espelha simultaneamente os ideais da igualdade entre asnações – expressos na sua Assembléia Geral – e as realidades do sistemainternacional emanado da Segunda Guerra Mundial – expressas nacomposição e nas atribuições do Conselho de Segurança. Essacontradição, que é a condição de existência das Nações Unidas, nãopode ser suprimida mas pode ser atenuada.

O fim da Guerra Fria implicou o encerramento do período históricodo pós-guerra. A reunificação alemã de 1990 – precedida pelos acordosenvolvendo os quatro ocupantes que resultaram na restauração dasoberania alemã – materializou como realidade diplomática a conclusãodesse ciclo. A participação de tropas alemãs e japonesas em operaçõesmilitares a cargo do Conselho de Segurança da ONU refletem novoambiente internacional, que se move segundo lógicas distintas dasvigentes há poucos anos.

No imediato pós-Guerra Fria, o Conselho de Segurança ganhouimportância inédita, em função da desobstrução gerada peloesgotamento da bipolaridade. Mas, com freqüência, as decisões e asprioridades do CS corresponderam estritamente à política mundial

21 Nesse sentido, há distinções importantes a levar em conta. A OMC, com seus mecanismos deresolução de controvérsias, contrasta nitidamente com o FMI. O multilateralismo que ela expressaconstitui, ao menos em princípio, limitação objetiva do poder das grandes potências.

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elaborada em Washington e negociada restritivamente com os aliadoseuropeus.22

Nessas condições, o CS foi utilizado sempre que se apresentou apossibilidade de alcançar algum tipo de consenso com Moscou e Pequim.Na Guerra do Golfo, o CS funcionou como trampolim legitimador deuma operação que, depois, subordinou-se exclusivamente aos EstadosUnidos. Nos anos seguintes, a questão do Iraque foi manejada pelacombinação do regime de sanções e das inspeções de armas, sob controleformal do CS, com as operações militares esporádicas sob controleunilateral de Washington.

Na Bósnia, as iniciativas fracassadas do CS abriram caminho paraa intervenção da Otan, que depois entregou a operação de manutençãoda paz a forças da ONU. Em Kosovo, as Nações Unidas foram ignoradaspela Otan, até o momento em que a operação militar se aproximava deperigoso impasse e ameaçava deteriorar profundamente as relações doOcidente com a Rússia e a China.

As operações no Haiti e no Timor Leste foram, em certo sentido,reveladoras do papel atribuído às Nações Unidas. No primeiro caso, oconflito se desenrolava na esfera de influência exclusiva dos EstadosUnidos. Então, o CS funcionou como instrumento para que Washingtonpudesse agir fora do quadro da OEA. No segundo, em que não estavamem jogo interesses vitais de nenhuma das grandes potências, o CSalcançou rápido consenso e entregou o comando da operação à Austrália.

Nesse contexto, em meados da década de 1990, foram deflagradasas discussões para o processo de reforma da ONU. Ao completar suaquinta década de existência, as Nações Unidas deveriam se adaptar ànova situação gerada pelo encerramento da Guerra Fria.

Na ocasião, a estratégia de Washington consistia em promoveruma reforma conservadora e superficial, integrando eventualmente aoConselho de Segurança, na condição de membros permanentes comdireito a veto, a Alemanha e o Japão. Esse caminho implicaria o

22 Interessante relato do funcionamento e dos problemas do CS nos primeiros anos do pós-GuerraFria aparece na contribuição de Ronaldo Mota Sardenberg, que na qualidade de Chefe da Delegaçãodo Brasil, ocupou temporariamente a presidência do Conselho: “O Brasil na presidência do Conselhode Segurança das Nações Unidas” (Temas de Política Externa Brasileira II, op. cit., vol. 1, p. 135-145).

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reconhecimento da ascensão dos países derrotados à condição de potênciascapazes de atuar em pé de igualdade com as demais, suprimindo-se aslimitações impostas pelo resultado militar do conflito mundial.Simultaneamente, implicaria a reafirmação e mesmo o aprofundamentodo abismo que separa o sistema internacional em dois grupos de países,com a marginalização do Sul dos processos decisórios mais relevantes.

A estratégia de Washington, pelo seu caráter restritivo, nãoalcançou o mínimo de apoio político para ser implementada, falhandoaté mesmo em reunir o consenso dos países desenvolvidos. Por outrolado, as propostas de inclusão de potências regionais – como a Índia e oBrasil – esbarraram na oposição de Washington e, também, de Estadosque rivalizam por influência e prestígio nos subsistemas regionais.

O obstáculo ao ingresso da Índia, por exemplo, encontra-se naoposição do Paquistão. Em outro contexto, a Argentina chegou amanifestar contrariedade com a hipótese de ingresso do Brasil. Asdificuldades somaram-se à falta de disposição dos integrantes do CS depriorizar a reforma na agenda das Nações Unidas, e o tema logo passoupara segundo plano.

A candidatura brasileira à condição de membro permanente doConselho de Segurança sintetizou, desde seu lançamento, uma avaliaçãocrítica sobre a estrutura atual do sistema decisório na ONU e sobre aprópria evolução das instituições internacionais no pós-Guerra Fria.Simultaneamente, exprimiu uma política afirmativa voltada para areforma das instituições internacionais, no sentido da ampliação domultilateralismo e da influência dos países do Sul.23

23 No discurso de abertura dos trabalhos da 50ª Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, emsetembro de 1995, o chanceler Luiz Felipe Lampreia sintetizou a política brasileira: “O fato é que amaioria das estruturas das Nações Unidas ainda são aquelas desenhadas há cinqüenta anos. Naquelemomento, o mundo entrava em uma nova fase da política de poder que já não mais se aplica. AsNações Unidas contavam com menos de um terço do número de membros que têm hoje. O conceitode desenvolvimento não estava no núcleo da agenda internacional. Atores significativos do mundodesenvolvido e em desenvolvimento não tinham ainda o papel influente que hoje desempenham.(...) Nada é mais emblemático da necessidade de adaptar as Nações Unidas às realidades do mundopós-Guerra Fria do que a reforma do Conselho de Segurança. (...) Para cumprir seu mandato emmatéria de paz e segurança internacionais em nome de todos os Estados-membros, o Conselho deSegurança precisa ter legitimidade inquestionável. E, como bem sabemos, legitimidade depende emúltima análise de representatividade. A reforma não deve acarretar uma ampliação indiscriminadado Conselho de Segurança e, muito menos, uma reforma que seja insuficiente, predicada naconveniência de um número limitado de Estados. Acima de tudo, será essencial assegurar representaçãomais eqüitativa de países desenvolvidos e em desenvolvimento que tenham tanto capacidade deatuação quanto presença efetiva em escala global.” (Diplomacia Brasileira: palavras, contextos e razões,Rio de Janeiro: Lacerda, 1999, p. 342-343).

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A candidatura brasileira se alicerçou em duas ordens de realidades:de um lado, o ativo e as potencialidades do país como ator de relevo nosistema internacional; de outro, a importância crescente da AméricaLatina no cenário mundial.

As tradições brasileiras de defesa da tolerância, da cooperaçãointernacional, da resolução negociada de conflitos e do respeito aosprincípios de autodeterminação e soberania nacional representam ativosde importância, especialmente na conjuntura presente de dissoluçãodos antagonismos ideológicos típicos da Guerra Fria. Essas tradiçõesforam reforçadas pelas transformações internas, direcionadas para aafirmação da democracia política, o respeito aos direitos humanos e oestabelecimento de economia aberta e competitiva. Foram tambématualizadas pelos papéis desempenhados pelo Brasil em processos tãosignificativos e diferentes como as negociações e o encaminhamento daRio-92, a proposição da Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul, aconformação do Mercosul e a participação em operações de paz daONU como as da Bósnia, de Angola e do Timor Leste.

A presença brasileira no CS significaria o reconhecimento daimportância crescente da América Latina no cenário mundial, nummomento- chave do processo de consolidação da democracia políticano subcontinente. Esse reconhecimento acompanharia o profundomovimento de reformas estruturais na economia dos principais paíseslatino-americanos.

O debate sobre a reforma da ONU foi congelado durante váriosanos, mas reemergiu com força no momento da crise provocada peloimpasse no CS diante do ataque americano ao Iraque, em 2003. Oimpasse traduziu, com força explosiva, o entrechoque do unilateralismoda hiperpotência com a tentativa de limitar a liberdade de ação deWashington, da França, da Rússia e da China. A evidência de que osEstados Unidos não obteriam a aprovação para uma resolução de ataqueao Iraque foi dramatizada pela decisão explícita da França e da Rússiade exercerem, se necessário, o direito de veto.

A crise diplomática desvendou os riscos que pesam sobre o sistemade segurança coletiva. Sob a perspectiva dos unilateralistas deWashington, o CS aparece como fardo, estorvo à liberdade de ação da

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hiperpotência. Sob a perspectiva da França, da Rússia e da China, comoinstrumento para amenizar o desequilíbrio estratégico de poder.

Na nova situação, tornou-se nítida e urgente a necessidade derecuperar a legitimidade e a credibilidade do sistema de segurançacoletiva. A diplomacia francesa, com respaldo alemão, reabriu o debatesobre a reforma do CS. A Grã-Bretanha, manobrando para curar a feridaprofunda nas relações transatlânticas, formulou seu apoio à idéia deampliação do CS.

A retomada do debate ocorreu em conjuntura particularmentefavorável à pretensão brasileira de ser integrado, na condição de membropermanente, ao CS. Entre os europeus, a candidatura brasileira encontraampla aceitação. A Argentina, sob Kirchner, manifesta apoio explícitoà candidatura do Brasil, e essa posição é mais ou menos consensual naAmérica do Sul.

Originalmente, a candidatura brasileira não foi apresentada comoreivindicação particularista ou extemporânea. Ela exprimiu visãotransformadora das estruturas do sistema internacional e opção porum conjunto de princípios e valores de alcance geral. Nesse sentido, seuencaminhamento justificou-se como síntese de políticas.

Hoje, o projeto de reforma da ONU e a candidatura brasileira aoCS têm chances reais de prosperarem. O obstáculo encontra-se nahostilidade às Nações Unidas das correntes mais arraigadamenteunilateralistas de Washington. Isso significa que, independentementedos resultados práticos que venha a alcançar, o projeto de reformacontribui para a afirmação programática das posições nacionais e aampliação dos espaços de consenso favoráveis aos valores queprofessamos.

Texto Complementar

O COMPROMISSO COM O MULTILATERALISMO, Celso Amorim(Aula Magna do Ministro das Relações Exteriores no Instituto RioBranco: A Diplomacia do Governo Lula, 10 de abril de 2003)

(...) O 11 de setembro trouxe o combate ao terrorismo à frente daagenda internacional. A escala e o horror do atentado contra o World

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Trade Center em Nova York despertaram na superpotência do pós-GuerraFria um sentimento de vulnerabilidade sem precedentes, cujo impactosobre o ordenamento internacional continuará a se fazer sentir pormuito tempo. Passado o momento inicial de apoio consensual à respostamilitar norte-americana contra os fundamentalistas do Talebã e da AlQaeda, a opção militar como forma de assegurar o desarmamento doIraque não obteve o apoio do Conselho de Segurança, provocando cisãoinédita na Otan e polarizando a opinião pública mundial. A instabilidadeinerente a um sistema de desequilíbrio de poder se viu agravada por fortesdivergências na forma de avaliar as ameaças e de como lidar com elas.

O Brasil defendeu com firmeza que o Iraque cumprisse plenamentesuas obrigações, em particular no que tange ao trabalho dos inspetoresda ONU, para garantir que as armas de destruição em massa estivessemefetivamente eliminadas. Apoiamos todas as resoluções pertinentes doConselho de Segurança e exortamos o Iraque a cumpri-las. Víamosmérito na tese de reforçar as inspeções e dar tempo para que pudessemprovar sua utilidade. Sabíamos que o custo, em termos humanos, deuma ação militar seria muito alto. Lamentamos, assim, que não se tenhaperseverado na busca de uma solução pacífica para a crise.

Em linha com estas preocupações, o presidente da República e eupróprio mantivemos contatos com nossos homólogos dos países da nossaregião, e de fora dela, sobretudo com os atores com maior influência noprocesso. Em cartas endereçadas a Kofi Annan e à Sua Santidade o PapaJoão Paulo II – que tive a honra de entregar pessoalmente – o presidenteLula consignou o consenso nacional em favor da paz e do respeito aodireito internacional no encaminhamento da questão do Iraque. Estaspalavras abstratas não devem encobrir o sentido trágico, o espanto e ador da guerra, que tanto nos abala, além das implicações mundiais eregionais.

Ao olharmos para o futuro, continuamos a considerar que aconcertação diplomática representa a melhor forma de se forjar umconsenso internacional na luta contra a proliferação de armas dedestruição em massa, o terrorismo e outras ameaças à paz e segurançainternacionais.

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O tema do Iraque continua a confrontar a comunidadeinternacional com enormes desafios, para além das repercussões quepossa ter no próprio Oriente Médio. As Nações Unidas não devemlimitar-se a limpar os escombros dos conflitos que ela não tenha sidocapaz de evitar. Reconhecemos e valorizamos o seu papel na prestaçãode assistência humanitária e na reconstrução institucional. Mas a ONUnão é a Cruz Vermelha. A preservação da paz e segurança internacionaiscom pleno respeito aos princípios da Carta é, e deve continuar a ser, suaprincipal missão.

Um mundo em que o recurso à força deixe de se fundamentar emregras multilaterais será intrinsecamente instável, estruturalmenteinseguro. Privilegiamos o multilateralismo em toda a amplitude de seusentido democrático, como a única via dotada de legitimidade parasolucionar os problemas que requerem cooperação internacional, pormais que os seus debates possam parecer, por vezes, prolongados efrustrantes.

Do mesmo modo que repudiamos, no plano interno, a eficáciailusória da autocracia, tampouco desejamos, no plano das relaçõesinternacionais, decisões unilaterais que desconsideram a diversidade deopiniões e os critérios multilateralmente estabelecidos.

Como disse ontem o presidente do Senado Federal, tão urgentequanto a reconstrução do Iraque é a reconstrução das próprias NaçõesUnidas. De particular relevância neste contexto é a questão da reformado Conselho de Segurança. Órgão principal do sistema da ONU, oConselho de Segurança deve sua autoridade à sua representatividade.Seu fortalecimento requer o aperfeiçoamento de seus métodos detrabalho e sua ampliação eqüitativa, o que significa essencialmentecontar com países em desenvolvimento entre seus membrospermanentes. Este não é um objetivo deste ou daquele país. É umanecessidade do próprio sistema internacional.

Em janeiro de 2004, voltaremos a integrar o Conselho de Segurançapor mais um biênio, como membros não-permanentes. Será a nona vez,desde que as Nações Unidas foram criadas, que participaremos dos seustrabalhos. Para um Governo comprometido com o multilateralismo ecom a paz, trata-se de uma oportunidade valiosa. A complexidade e a

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profundidade da crise atual impõem que nos antecipemos à nossaacessão formal ao Conselho e busquemos ativamente participar dasarticulações internacionais em torno do pleno restabelecimento da paze da segurança.

Em paralelo, não podemos descuidar do trabalho da AssembléiaGeral na área do desarmamento e não-proliferação, que são duas facesde uma mesma moeda. Como integrantes do grupo da chamada “NovaAgenda” (composto também por África do Sul, Egito, Irlanda, México,Nova Zelândia e Suécia), manteremos uma ação coordenada sobre otema da eliminação total de armas nucleares, sem a qual todos os esforçoscom vistas à não-proliferação de armas de destruição em massapermanecerão incompletos.

A História nos confronta com sérias responsabilidades nareorganização das relações internacionais. O momento exige diálogo,diplomacia, negociação, liderança política, moral e até mesmo espiritual,como disse o presidente em sua carta ao papa. A mesma aspiração pordesenvolvimento e progresso social, que moldam a ação governamentalem âmbito interno, nos mobilizará nos planos regional e global. Nossaaspiração por paz e solidariedade passa necessariamente por umaatenção detida para as carências dos menos favorecidos. Às visões daordem internacional, que privilegiam a força e concebem omultilateralismo como apenas uma opção entre muitas, devemoscontrapor um projeto de paz com justiça social, fundado em formas deconcertação democrática e no direito internacional.

A entrada em operação do Tribunal Penal Internacional constituium passo encorajador nessa direção. Ao comparecer a sua inauguração,em princípios de março, pude não somente cumprimentar a brasileiraSylvia Steiner, eleita Juíza do Tribunal, como expressar o apoio doGoverno brasileiro ao aparelhamento do direito internacional parareduzir a margem de impunidade para perpetradores de crimes contraa humanidade. É um instrumento importante, cuja aplicação não devecomportar restrições ou tratamentos excepcionais.

Devemos preservar as conquistas conceituais que emergiram dasgrandes Conferências da década de 1990 sobre direitos humanos,população, desenvolvimento social, situação da mulher, combate ao

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racismo, bem como transformá-las em ações práticas. A importânciaatribuída à promoção e proteção dos direitos humanos se reflete, noplano interno, na criação de Secretarias Especiais para a promoção daigualdade racial, de políticas para as mulheres, da assistência e promoçãosocial. Juntamente com a Secretaria de Direitos Humanos, esses órgãosauxiliarão o Itamaraty em nossa atuação externa, regional e multilateral.

A prioridade atribuída pelo presidente da República ao combateà fome e à luta contra a pobreza cria uma expectativa de um papelprotagônico do Brasil na promoção dos direitos econômicos, sociais eculturais. Esta ênfase não significa desatenção para os direitos civis epolíticos, cuja valorização – para uma democracia que se consolida comoa brasileira – permanece parte integral da orientação humanista dadiplomacia do Governo Lula.

(...) Inseridos que estamos no Continente de maior diversidadebiológica do planeta – a América do Sul – queremos consolidar osavanços logrados nas Conferências do Rio de Janeiro e de Johanesburgo,o que só será possível mediante forte engajamento político.

(...) O reconhecimento de que vivemos num mundocrescentemente interligado não deve implicar renúncia a nossacapacidade de intervir na realidade para corrigir desequilíbrios einjustiças. Sem querer emprestar-lhe palavras que ele não usou, poderiadizer que a essência da mensagem do presidente Lula aos líderes daeconomia e da política mundial, reunidos nos Alpes suíços, foi a de quenão há sustentabilidade econômica sem sustentabilidade social.

4 – CENÁRIO AMERICANO, MERCOSUL E ALCA

A aproximação política e a diplomática entre Brasil e Argentina,na década de 1980, desativou com surpreendente velocidade uma sériede focos de tensão tradicionais e inverteu o sentido conflitivo das relaçõesdiplomáticas no conjunto da área platina.24

24 Na realidade, talvez uma das fontes originais da aproximação entre Brasília e Buenos Aires possaser buscada no principal episódio militar platino, que ocorreu no limiar da redemocratização deambos os países: a Guerra das Malvinas, deflagrada em 2 de abril de 1982. Além da tomada de

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POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: CONDICIONANTES E DELINEAMENTO

O caminho que conduziu à Ata de Iguaçu, de 1985, e ao Programade Integração e Cooperação Econômica Brasil-Argentina (Pice), de 1986,foi aberto pelos processos de redemocratização dos dois parceiros. Acontinuidade dessa trajetória, com o estabelecimento do Acordo deComplementação Econômica (ACE-14), de 1990, e a assinatura doTratado de Assunção, de 1991, orientou-se já pela lógica da inserçãoregional na economia mundial em processo de globalização.

A consolidação do processo de integração decorreu de fatoreseconômicos e psicossociais. Desde o ACE-14, a tendência prévia decrescimento acelerado do comércio bilateral confirmou-se e até seacentuou, com a passagem da Argentina à condição de parceirocomercial de primeira linha. Paralelamente, encetavam-se iniciativasmúltiplas do setor privado concernentes a investimentos conjuntos emvários campos industriais e agroindustriais. O turismo – especialmentede argentinos para o litoral brasileiro – cresceu mais que proporcionalmenteà elevação do comércio. Tudo isso contribuiu para disseminar, nas duassociedades, um espírito integracionista e um clima de genuína adesãoao projeto do Mercosul.

Com a entrada em vigor da zona de livre comércio prevista peloTratado de Assunção, o Mercosul transformou-se em realidade tangívelna vida econômica e prioridade diplomática para os quatro paísesenvolvidos. Os meios de comunicação, bem como as produções editoriale acadêmica, atestaram a substância adquirida pela idéia de integração.Até certo ponto, desde os seus primeiros passos, o Mercosul rompeu oslimites do mundo oficial para amparar-se nas sociedades civis.

A expansão sustentada do comércio intrabloco, até 1997, produziuefeitos estruturais sobre as economias nacionais, revelando as vantagenscomparativas de cada parceiro e aprofundando especializações setoriais.A integração comercial repercutiu positivamente na esfera das decisõesde investimentos das corporações transnacionais, que começaram aestabelecer cadeias produtivas interligadas na área do Mercosul.

posição favorável à reivindicação argentina, o Brasil atuou decididamente no sentido de facilitar oescoamento de exportações do vizinho. Há indícios inclusive da participação sigilosa de pilotos daForça Aérea brasileira no patrulhamento litorâneo, o que configuraria envolvimento direto no conflitomilitar. Sobre o assunto, ver Moniz Bandeira, Estado Nacional e Política Internacional na AméricaLatina (São Paulo: Ensaio, 1993, p. 244-247).

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Nada disso, entretanto, pôde obscurecer a fragilidade da integraçãoeconômica, evidenciada a partir das oscilações cambiais e dramatizadapelas amargas disputas comerciais de 1999. Essa evolução desfez ootimismo ingênuo dos primeiros anos e mostrou que o processo nãoalcançou o “ponto de não-retorno” no qual sua dinâmica imanente geracadeias de desdobramentos quase automáticos.

Ao mesmo tempo, nos planos político e diplomático, jamaisdeixaram de se manifestar discrepâncias de perspectivas entre os Estadosenvolvidos, que incidem sobre os horizontes mais amplos da integraçãocontinental.

A longa história da integração européia revela que os processosintegracionistas exigem, para seu sucesso, a renovada dinamizaçãoconferida por iniciativas políticas ousadas oriundas dos governos ecapazes de manter aceso o sopro original que os desencadeou. Essasiniciativas devem necessariamente ultrapassar o âmbito da comunidadeempresarial e tocar em nervos profundos da sociedade, fornecendo sinaisdo engajamento em um futuro compartilhado.

A “cláusula democrática” introduzida no Tratado de Assunçãofoi passo decisivo para assentar o bloco sobre sólida base política. Seusefeitos fizeram-se sentir, diretamente, na evolução interna do Paraguai.Indiretamente, influenciaram num sentido positivo as disputas internasem outros países da América do Sul.

Avançou-se incomparavelmente menos em outras esferas. Aintegração regional, que desde o início privilegiou o comércio masadquiriu forte sentido político e estratégico, apenas engatinha noscampos da educação, das pesquisas científica e acadêmica, da culturae da arte.25

25 “...é importante injetar continuamente na relação bilateral entre o Brasil e a Argentina o sopro dainspiração original e não deixar que apenas as dimensões comerciais (boas ou más) determinem aqualidade do nosso relacionamento (...). Em primeiro lugar, há visíveis omissões no processo deconstrução em termos de cultura e de arte. As grandes universidades e centros de pesquisa e deexcelência dos dois países não estão entrelaçados e pouco se investiga sobre as dificuldades eoportunidades que oferecem as várias vertentes da nossa integração nesses terrenos.” (Marcos Castriotode Azambuja, “O Relacionamento Brasil-Argentina: de Rivais a Sócios”, Temas de Política ExternaBrasileira II, op. cit., vol. 2, p. 69). Caberia acrescentar os temas da língua, da história e da geografia,que remetem à questão dos currículos escolares nos níveis fundamental e médio.

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Os paralelos entre o Mercosul e a União Européia não podem serlevados muito longe. Na Europa, a integração representou, originalmente,um movimento de inversão da trajetória histórica que tinha produzidotrês guerras entre franceses e alemães. A Guerra Fria e a ameaça soviéticasoldaram a aliança franco-alemã e forneceram os fundamentos para aampliação horizontal do bloco. Foi essa a moldura para a construção deinstituições políticas supranacionais como o Conselho de Ministros, aComissão Européia e o Parlamento Europeu.

As condições históricas e geopolíticas que envolvem a UniãoEuropéia nada têm a ver com as que deram origem ao bloco do ConeSul. Além disso, as disparidades demográfica e econômica entre o Brasile a Argentina são, por si só, considerável obstáculo para o estabelecimentode instituições nas quais se compartilhem soberanias. Assim, não épossível tomar a União Européia como modelo na edificação depersonalidades política e jurídica do Mercosul.

As diferenças de perspectivas entre o Brasil e a Argentina, no planoda integração continental, não devem ser superestimadas. Mas elasexistem e decorrem de circunstâncias objetivas e condicionamentosestruturais. Por isso, dificilmente serão superadas no curto prazo eprovavelmente continuarão a desafiar a arte diplomática de Brasília eBuenos Aires.

A economia brasileira estrutura-se em torno de um setor industrialrelativamente poderoso e ampara-se num vasto mercado interno. Aeconomia argentina depende bastante da dinâmica exportadora daagropecuária e da agroindústria Essas características estruturaisdistinguem objetivamente os horizontes dos dois parceiros no queconcerne à inserção na economia mundial. Em conseqüência, a Argentinaestá, ao menos em tese, mais propensa a praticar políticas livre-cambistas,enquanto o Brasil tende a estimular políticas industriais apoiadas embarreiras protecionistas seletivas.

Tais diferenças de ênfase ajudam a compreender as divergênciasmanifestadas após 1999 em relação aos cenários de médio e longo prazo:enquanto o Brasil operou no sentido da consolidação do bloco econômico,a Argentina pareceu propensa a limitá-lo ao estágio de zona de livrecomércio e sentiu-se fortemente atraída pelo projeto de integração

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continental emanado dos Estados Unidos. Não é por outra razão que semanifestaram importantes diferenças nas negociações de tema tãosignificativo como a Tarifa Externa Comum (TEC).26

Além do vetor principal, bilateral, do processo de integração, hátensões oriundas das singularidades dos parceiros menores. As dimensõesrestritas das economias do Uruguai e do Paraguai determinamdificuldades particulares de alocação de recursos e integração demercados, que repercutem sobre vasta agenda de negociações no âmbitodo Mercosul.

O essencial, no entanto, é não perder de vista o horizonte doprojeto: o Mercosul inscreve-se nos cenários sul-americano e hemisféricoe, mais além, numa economia mundial que se globaliza e simultaneamentese regionaliza em blocos. O sucesso ou o fracasso da iniciativa no ConeSul está, no final das contas, condicionada pela sua capacidade demelhorar as condições de inserção dos seus integrantes nessa realidademais ampla.

Desafios e perspectivas

O Tratado de Assunção praticamente coincidiu com a criação doNafta e as novas iniciativas de Washington para o hemisfério americano.O lançamento, por George H. Bush, da Iniciativa para as Américasredimensionou as relações continentais e delineou um horizonte dedesafios para as demais iniciativas de integração em toda a região.

“A Alca é uma opção; o Mercosul, destino”. A síntese, de CelsoLafer, estabeleceu forte distinção entre o lugar da Alca e o do Mercosulna visão de mundo do Brasil.

O Mercosul é destino? A argumentação passa pela geografia. Brasile Argentina compartilham o Cone Sul e, em especial, a Bacia Platina.

26 Alguns analistas já apontavam o fulcro do problema no momento da assinatura do Tratado deAssunção: “Há uma forte desconfiança no que se refere à capacidade dos governos de abrirem mão degraus de liberdade na formulação das políticas econômicas e de coordenarem objetivos que atendama um mínimo de prioridades comuns.” (Rubens Antonio Barbosa, América Latina em Perspectiva: aintegração regional da retórica à realidade, São Paulo: Aduaneiras, 1991, p. 117-118). O problemareapareceu, sob aspecto mais contundente, quando se fechou o intervalo durante o qual o Plano Realmascarou o desequilíbrio macroeconômico criando um cenário cambial favorável às exportaçõesargentinas.

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As guerras do século XIX estabeleceram fronteiras políticas entre osdois países, desenhando nesse processo os contornos do Uruguai e doParaguai. Essas fronteiras não são “naturais”, pois recortam transversalmentea rede hidrográfica, separando o estuário do alto curso dos rios. As faixasde fronteiras apresentam densidades demográfica e econômicasignificativas, constituindo corredores de fluxos de mercadorias e pessoas.

Brasil e Argentina só têm duas alternativas históricas. A primeiraé a rivalidade e a prolongada disputa pela hegemonia regional. Asegunda, a aliança estratégica. No passado, os dois Estados desenvolverama rivalidade, alternando períodos de limitada cooperação com outrosde tensa confrontação. O Mercosul representou a opção pela aliançaestratégica.27

A reviravolta refletiu o novo ambiente gerado pela globalização e,também, a disparidade crescente entre os poderes econômico edemográfico dos antigos rivais platinos. Brasil e Argentina enxergaramno Mercosul a oportunidade para inserção mais favorável na economiamundial globalizada. Ao mesmo tempo, o tamanho da economia e o domercado interno brasileiros evidenciavam, cada vez mais, a ausênciade sentido de disputa pela hegemonia regional.

A Alca ocupa um lugar diferente. Sua finalidade não é a formaçãode um mercado comum, mas apenas a constituição de uma zona delivre comércio. Ao contrário do Mercosul, que se alicerça na relaçãobilateral Brasil-Argentina, a Alca envolve a relação entre os EstadosUnidos, de um lado, e todos os demais países das Américas, do outro.

Mas a Alca não é opção como qualquer outra. É definição históricae estrutural das relações do Brasil com os Estados Unidos e da inserçãobrasileira no sistema internacional de Estados. O projeto da Alca é oeixo estratégico da política de Washington para as Américas.

27 Numa conferência proferida em 1997 perante o Conselho Argentino de Relações Internacionais, oministro Lampreia sublinhou: “É fundamental que cada vez mais nossas sociedades assumam oMercosul e a relação estratégica entre o Brasil e a Argentina como fatores fundamentais em umamudança verdadeira de perspectivas para os dois países. Que saibamos ver o outro como parte denosso interesse mais essencial, como eixo de nossa própria inserção no resto do mundo. E quepossamos gerar, em bases duradouras, essa cultura de integração que significará o passo definitivo denossa região, e de nossos países em particular, a uma nova etapa de seu desenvolvimento histórico.”(Diplomacia brasileira..., op. cit., p. 178).

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A diplomacia brasileira reconheceu, desde o início, a difícilencruzilhada da Alca. O Itamaraty respondeu ao desafio deflagrandoum processo de negociação comercial em duas vertentes: Alca e UniãoEuropéia.

De um lado, a dupla negociação serve para aumentar o poder debarganha do Mercosul. De outro, ao menos em tese, a Europa poderiarepresentar um parceiro alternativo aos Estados Unidos. Mas oprotecionismo agrícola europeu, ainda mais arraigado que o americano,tem funcionado como obstáculo aparentemente intransponível para oavanço dessa vertente da negociação.

A Europa poderia substituir os Estados Unidos no plano puramentecomercial mas, enquanto um acordo com a União Européia teria apenassignificado econômico, a Alca tem uma dimensão geopolítica inegável,ainda que implícita. Ficar de fora da Alca implicaria, provavelmente,desistir da boa vontade da hiperpotência nos assuntos relacionados àgeopolítica do “Hemisfério Americano”.

Samuel Pinheiro Guimarães foi a primeira voz, no Itamaraty, aexpressar oposição de princípio à Alca. Seu argumento se estruturouem torno das desvantagens competitivas das empresas brasileiras frenteàs americanas. Enfatizou que os compromissos ligados ao livre comércio,aos serviços, aos investimentos e às patentes que devem constar dotratado da Alca limitariam ao extremo as possibilidades de intervençãodo Estado na economia brasileira. No fundo, de acordo com esseraciocínio, seriam extintos os instrumentos de planejamento nacionaldo desenvolvimento econômico.

O economista Celso Furtado, na mesma vertente, alertou para osriscos de uma “recolonização econômica”, que se traduziria por retrocessoda base industrial nacional e dependência ainda mais acentuada decapitais e tecnologias externas. Os críticos do bloco hemisférico, de modogeral, apontam ainda o caráter mutuamente excludente da Alca e doMercosul. De fato, não é fácil imaginar como as regras preferenciais deuma união aduaneira poderiam conviver com as regras gerais de umazona mais ampla de livre comércio.

O debate sobre a Alca acompanhará o governo Lula e tende afigurar no centro das agendas política e diplomática brasileira dos

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POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: CONDICIONANTES E DELINEAMENTO

próximos anos. Nas democracias, as decisões cruciais de política externanão podem ignorar a vontade da opinião pública. No caso do blocohemisférico, as opiniões divergentes refletem com bastante nitidez osinteresses conflitantes e as ideologias concorrentes que atravessam asociedade brasileira. A decisão entre a adesão à Alca ou a recusa dobloco hemisférico terá impacto profundo sobre o lugar político, oeconômico e o estratégico do Brasil no mundo.

Texto Complementar

O MERCOSUL E A INSERÇÃO GLOBAL DO BRASIL, Celso Amorim(Palestra do Ministro das Relações Exteriores no XV Fórum Nacional,pronunciada pelo ministro interino Samuel Pinheiro Guimarães, 21 demaio de 2003)

(...) O fortalecimento do Mercosul, uma prioridade em si mesmae alicerce do projeto de integração da América do Sul, deve se refletirtambém em uma ação coordenada do bloco nas negociações comparceiros de fora da região. Na OMC, o Mercosul tem apresentadopropostas conjuntas em grupos negociadores como o de agricultura eserviços. Seus quatro integrantes fazem parte do Grupo de Cairns, quereúne exportadores agrícolas competitivos do mundo desenvolvido eem desenvolvimento e lideram o movimento por liberalização eeliminação de distorções em agricultura.

Além de testemunho do vigor democrático no âmbito do bloco,os recentes processos eleitorais na Argentina e Paraguai podem serconsiderados auspiciosos para o projeto de consolidação da uniãoaduaneira e constituição do mercado comum, na medida em que osnovos mandatários estão dando demonstrações de compromisso com oMercosul. O Brasil está preparado para fazer sua parte, impedindo queo burocrático se sobreponha ao político neste processo, e, como a maioreconomia do Mercosul, apoiando grandes investimentos de empresasbrasileiras na região com vistas à articulação de uma política industrialregional.

Ao mesmo tempo, nos parece fundamental a preservação de umnível adequado de coordenação entre os membros do bloco nasnegociações da Alca – que caracterizaria como as mais complexas e

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politicamente sensíveis das três em andamento. (...) O processonegociador obedece a um cronograma intenso e ingressa em fase dedefinições, com o intercâmbio de ofertas e revisão de ofertas jáapresentadas.

O Mercosul apresentou ofertas em bens agrícolas e não agrícolas.Brasil e Argentina decidiram não apresentar oferta em serviços, emfunção da atitude norte-americana de “bilateralizar” sua oferta em bens– com listas diferenciadas para o Caricom, países centro-americanos,Comunidade Andina e Mercosul, reservando-nos as condições de acessoas menos favoráveis. Nenhum dos quatro sócios do Mercosul apresentouofertas em investimentos ou compras governamentais. Nestas áreascomo em propriedade intelectual verifica-se grande empenho norte-americano para obter disciplinas mais ambiciosas do que as da OMC,postura que contrasta com a recusa dos Estados Unidos em discutirsubsídios agrícolas e instrumentos de defesa comercial – de interessebrasileiro.

Cabe ter presente que o Brasil não necessitaria de uma estruturanegociadora como a da Alca para associar-se mais estreitamente àseconomias da América do Sul ou mesmo do México – o que poderia serfeito no âmbito da Aladi. A perspectiva de obtenção de condições deacesso privilegiado ao mercado norte-americano é obviamente atraentepara vários setores de nossa indústria e do agronegócio. Mas os contornosgerais da dinâmica atual das negociações não pode ser considerada[sic]favorável aos nossos interesses. As perspectivas de melhoria de acesso aprodutos de especial interesse não são encorajadoras, na medida emque a oferta inicial norte-americana não acena com reduções de barreiraspara produtos de especial interesse do Brasil, como suco de laranja,carnes, calçados, têxteis. Ao mesmo tempo as ambições norte-americanasem matéria de serviços, investimentos, compras governamentais epropriedade intelectual vão além do que está sobre a mesa na OMC,enquanto nossas postulações em matéria de antidumping e salvaguardase em relação a subsídios agrícolas não são levadas em conta.

Não chega a surpreender que o processo da Alca susciteexpectativas e inquietações junto à opinião pública. Parlamentares,representantes do setor privado, sindicatos, organizações não-

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governamentais desejam conhecer os contornos específicos dasnegociações para poder expressar pontos de vista e contribuir para adefinição de posições negociadoras. Por decisão do presidente Lula, oGoverno tem buscado ampliar o debate público sobre a Alca e suasimplicações para o Brasil. (...) Estamos dispostos a trabalhar com asociedade civil e o Poder Legislativo para avaliar como melhor atender ointeresse nacional nestas complexas negociações. Seguiremostrabalhando ombro a ombro com os sócios do Mercosul na construçãode uma posição solidária e firme.

O Mercosul busca formar uma associação inédita entre dois blocoseconômicos nas negociações com a União Européia. O prazo para aconclusão das negociações em 2005 coincide com o término previstopara os processos da OMC e da Alca, constituindo fator de equilíbrioem relação a esta última sobretudo. Até o final do ano corrente deverãoestar definidas as linhas gerais de um acordo. O Mercosul está cumpridosua parte da barganha, havendo apresentado oferta relativa a 85%¨dovalor do comércio para fins de desgravação em dez anos. Aguardamosda parte européia uma resposta correspondente, com proposta de acessosignificativo, particularmente em agricultura.

Vale esclarecer que, embora os temas “investimentos” e “serviços”também estejam presentes na negociação Mercosul-União Européia,os parâmetros da negociação são menos ambiciosos do que aqueleslevados à Alca pelos norte-americanos. Esta circunstância permite quecompatibilizemos nossas ofertas nesses capítulos ao que está sendonegociado na OMC, descomplicando, até certo ponto, a negociação quemais nos interessa – que é aquela relacionada a acesso. Comprasgovernamentais segue sendo um tema complexo, inclusive por constituirum possível instrumento de política industrial e tecnológica. Tencionopromover uma reflexão interna e com nossos sócios do Mercosul, tendopresente a necessidade de desenvolvermos uma postura negociadoracomum.

Não devemos esquecer que, além destes três exercíciosnegociadores, estamos conversando com outros parceiros com vistas àconclusão de diferentes tipos de acordos de aproximação comercial eeconômica. A estratégia de inserção global não deve desprezar os países

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do sul, onde as oportunidades podem ser extremamente atraentes parao exportador brasileiro. Na América do Sul , o projeto de integração saido plano da retórica. A negociação de acordo Mercosul-ComunidadeAndina soma-se aos acordos de complementação econômica firmadoscom Chile e Bolívia e os entendimentos Mercosul-Peru e Mercosul-Venezuela, e vão conformando um espaço de cooperação com uma forterationale geográfica e política.

Estamos explorando outras possibilidades de aproximaçãoeconômico-comercial com parceiros do mundo em desenvolvimento,em particular com o México, África do Sul, o mundo árabe, os paísesda Associação do Sudeste Asiático, China e Índia. Sobre estes doisúltimos mercados, vale ter em mente que a China passou à condição dequarto maior importador de produtos brasileiros em 2002 e que ocomércio bilateral com a Índia triplicou em valor nos últimos três anos,alcançando hoje 1,2 bilhão de dólares. Acabo de regressar de um périploao sul da África onde identifiquei um enorme interesse por negócios eempreendimentos conjuntos com o Brasil em países como Angola,Namíbia e Moçambique. O Mercosul está negociando um acordo depreferências que deverá levar à constituição de uma zona de livrecomércio com a South African Customs Union (Sacu) – formada pelaÁfrica do Sul, Botsuana, Lesoto e Suazilândia.

Como afirmou o presidente Lula na abertura do Seminário Brasil-China (...), “precisamos abrir fronteiras e não temos o direito de ficaresperando alguém nos convidar”. Na realidade o aprofundamento denossas parcerias tradicionais e a busca de novas associações refletem avocação universalista de nossa política externa, sob forte impulso noatual Governo.

A rota de credibilidade em que ingressou a economia brasileira, ocompromisso com o combate à pobreza e à fome, a atenção dada aosdireitos humanos e à consolidação da democracia são fatores que traçamum quadro de respeitabilidade internacional e auxiliam enormementea ação externa do Governo em suas várias vertentes, inclusive a docomércio exterior. O Brasil se encontra em condições excepcionais parapromover projetos econômico-comerciais capazes de integrá-lo de formamais competitiva nos fluxos internacionais, sem ter que abdicar de sua

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autonomia na definição de um modelo de desenvolvimento próprio, capazde conciliar progresso econômico, científico e tecnológico e justiça social.

5 – SOBERANIA E DIPLOMACIA: A QUESTÃO AMBIENTAL

O encerramento da Guerra Fria e a dissolução do vetor de tensãoLeste-Oeste geraram profunda reorganização da agenda diplomática.Dentre os temas emergentes, destaca-se a questão ambiental, que jávinha percorrendo trajetória significativa desde a década de 1970.Muitos analistas não vacilam em classificá-la como uma das prioridadesda atividade diplomática e, sob o ponto de vista dos países do Sul,“mainstream policy-making”.28

A questão ambiental tornou-se, nos últimos anos – e, especialmente,em relação à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente eo Desenvolvimento, no Rio de Janeiro (ECO-92) – temário sujeito aforte pressão ideológica. Os países desenvolvidos, num movimentodestinado a diluir o arcabouço conceitual estabelecido naquelaConferência e erguer uma plataforma de atuação de longo prazo,procuram definir um quadro de noções desfavoráveis para o Sul capazesde sustentar encaminhamentos adequados a seus próprios interesses. Apolítica de poder que opera esse discurso substitui a “ameaça do Leste”por suposta ameaça do Sul. A operação ideológica alimenta-se de noçõespoderosas, como as do “interesse global” e as do “patrimônio dahumanidade”.

A questão ambiental delimita um terreno delicado, freqüentementedefinido como sendo o da ecopolítica. A problemática envolvida –aquecimento global, chuvas ácidas, redução na camada de ozônio,poluição de águas oceânicas, desmatamento e desertificação, destruiçãode patrimônios genéticos – é, diretamente, global.

No contexto do discurso ambiental, as fronteiras e as soberaniasnacionais surgem como artifícios impostos do exterior, estranhos à

28 Ver o ensaio de Pedro Motta Pinto Coelho, “O tratamento multilateral do meio ambiente: ensaiode um novo espaço ideológico” (Temas de Política Externa Brasileira II, op. cit., vol. 1, p. 260-261) e amonografia de Leonilda B. C. G. Alves Corrêa, Comércio e meio ambiente: atuação diplomática brasileiraem relação ao selo verde (Brasília: IRBr-Funag-Centro de Estudos Estratégicos, 1998).

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dinâmica da natureza. Os apelos totalizantes à humanidade e àdependência comum que nos vincula à natureza tendem a minimizar edesvalorizar as tradições do Direito Internacional. No limite, o temáriofunciona como terreno fértil para propostas fundadas na noção do“direito à ingerência”.29

Apesar da óbvia urgência de clara definição de políticas para aquestão ambiental e do próprio sucesso que representou a ECO-92 paraa diplomacia brasileira, a atitude nacional não se desprendeuinteiramente de preconceitos que marginalizam o temário. Assim, apóso encerramento da Conferência do Rio de Janeiro, as articulações doSul reduziram-se sensivelmente, enquanto se multiplicavam asiniciativas dos países desenvolvidos, que buscavam recuperar posiçõesaparentemente perdidas. Na realidade, trata-se, para os países emdesenvolvimento, de preservar a base de princípios estabelecida naquelaocasião, bloqueando a sedimentação de conceitos que lhes são,estruturalmente, desfavoráveis.30

Noção de desenvolvimento sustentável

Entre a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente,realizada em Estocolmo, em 1972, e a Conferência do Rio de Janeiro, osfundamentos da discussão ambiental foram profundamente alterados.Ao longo dessas duas décadas, os países do Sul lograram conectar otema do desenvolvimento ao do meio ambiente.

Em Estocolmo, o arcabouço conceitual que envolvia as discussõesse organizava em torno das problemáticas demográfica e tecnológica.Meio ambiente e desenvolvimento encontravam-se dissociados. A

29 O ex-presidente francês François Miterrand chegou a veicular a proposta de uma AutoridadeAmbiental Mundial, enquanto circulava a idéia de uma Cruz Verde. Originada do temário dosDireitos Humanos, a noção do “direito à ingerência” funciona menos como proposição específica emais como retórica dirigida à opinião pública e destinada a circunscrever o Sul a posições defensivas.

30 “Em muitos países, e o Brasil não parece constituir exceção, meio ambiente ainda se afigura temaforâneo aos veios principais das políticas externas e internas. Sempre emerge a convicção de que otratamento da agenda ambiental gira numa órbita relativamente afastada das principais questõesnacionais, não merecendo assim mais do que uma atenção benevolente. Trata-se, evidentemente, deum problema sério de percepção (...). No Brasil, ainda vemos a Amazônia como periferia, enquantopara o mundo desenvolvido a região é um ponto focal de atenção. Hoje, passa-se com muitafacilidade do local para o mundial, e vice-versa; e não necessariamente se utiliza, nessas passagens, aescala nacional.” (Pedro Motta Pinto Coelho, Temas de Política Externa Brasileira II, op. cit., p. 260-261).

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despolitização da problemática correspondia a um enfoque ideológicosubterrâneo fundado na virtual exclusão dos interesses dos países doSul. O relatório preparado para a Conferência, Uma só Terra, estavainformado por perspectivas holísticas bem estruturadas, mas limitadas.A influência dos argumentos do Clube de Roma perpassava odocumento.31

A crítica aos estilos de desenvolvimento do Norte, fundados nautilização descontrolada dos estoques de recursos naturais, organizava-se sob argumentação demográfica de fundo neomalthusiano. As soluçõespareciam situar-se fora do âmbito da política internacional, dependendoessencialmente de opções de políticas demográficas e tecnológicas. Nomáximo, as proposições dirigiam-se para a imposição de limitações àcontinuidade dos estilos ambientalmente nocivos de desenvolvimento.32

Entretanto, já na ocasião, países em desenvolvimento, como a China, aÍndia e o Brasil, atuaram no sentido de iluminar as problemáticas sociale econômica ocultas na discussão ambiental.

Depois de Estocolmo, uma série de encontros diplomáticospatrocinados pela ONU adensaram o temário. As conferências deRecursos Hídricos (1975), Estabelecimentos Humanos (1976),Desertificação (1977) e de Fontes Novas ou Renováveis de Energia (1981),

31 O Clube de Roma nasceu em 1968, congregando cientistas, economistas e altos funcionáriosgovernamentais, com a finalidade de interpretar o que foi denominado “sistema global”. Os estudose as propostas dessa associação informal, baseados numa perspectiva ecológica dualista, inauguraramo ecomalthusianismo. No fundo, o arcabouço teórico do pensamento do Clube de Roma reside naidéia de que o planeta é um sistema finito de recursos, submetido às pressões do crescimentoexponencial da população e da produção econômica. As suas conclusões apontavam o horizonte docolapso do sistema. As suas propostas organizavam-se em torno da noção de um gerenciamentoglobal da demografia e da economia, a fim de alcançar um estado de equilíbrio dinâmico. Severasmedidas de controle da natalidade e mudanças radicais nos modelos produtivos, com ênfase numa“economia de serviços”, eram as recomendações centrais da nova escola de pensamento ambiental. Aobra teórica básica emanada dessa escola é Limites do crescimento, de Dennis L. Meadows e outros (SãoPaulo: Perspectiva, 1973).

32 De qualquer modo, apesar do seu viés ideológico, o documento lançou as bases para a efetivaçãode uma diplomacia ambiental amparada no multilateralismo: “A constatação de que o fluxo dasatividades humanas ocorre, na verdade, dentro de uma economia fechada, sem reservas ilimitadas derecursos ou de depósitos para absorver os seus rejeitos, levaria necessariamente à substituição da“economia de fronteira” pela “economia do astronauta”. A metáfora da economia do astronauta e deseu correlato, a “espaçonave Terra”, permitiu enfatizar o caráter global e interdependente da sociedadede fins de século, tão bem sintetizado no próprio título do relatório preparado por Barbara Ward eRené Dubos para a Conferência de Estocolmo: Uma só Terra.” (Roberto P. Guimarães, “Da oposiçãoentre desenvolvimento e meio ambiente ao desenvolvimento sustentável: uma perspectiva do Sul”,Temas de Política Externa Brasileira II, op. cit., vol. 1, p. 208).

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associadas a convenções temáticas específicas, como a de Lançamentode Dejetos por Navios (1972), sobre Espécies da Flora e FaunaAmeaçadas de Extinção (1973) e sobre o Direito do Mar (1982),estabeleceram novo patamar de discussões. Em seguida, firmaram-sebases científicas e políticas sólidas para o encaminhamento do problemada camada de ozônio, pela Convenção de Viena de 1985 e pelo Protocolode Montreal de 1987.33

Nas negociações preparatórias à Conferência do Rio de Janeiro,os países do Sul conseguiram introduzir a problemática dodesenvolvimento econômico e do social no cerne do temário ambiental.Como resultado, os textos emanados da ECO-92 tiveram como esteioo conceito de desenvolvimento sustentável. Esse conceito desfaz a antigaoposição entre o desenvolvimento e o meio ambiente e permite situaras responsabilidades do Norte no processo de mudança dos padrões derelação entre a sociedade e a natureza. Ao mesmo tempo, fundamentaestratégias econômicas destinadas a promover o crescimento da riquezae a melhoria das condições de vida mediante modelos capazes de evitara degradação ambiental e a exaustão dos recursos naturais.

Os países do Norte beneficiaram-se de um período de dois séculosde desenvolvimento industrial sem restrições de ordem ambiental.Atualmente, os países do Sul, que buscam encetar o processo de construçãode sociedades industriais, o fazem em uma realidade global marcada pelopredomínio econômico do Norte. Os países desenvolvidos internacionalizamum modelo de desenvolvimento fundado na destruição ambiental ebeneficiam-se da disparidade tecnológica adquirida para consumir osrecursos naturais em proporções muito maiores que as dos países doSul. O desenvolvimento sustentável exige transferências de tecnologiase recursos financeiros do Norte para o Sul, a fim de viabilizar novosmodelos de crescimento, ecologicamente aceitáveis.

33 O Protocolo de Montreal passou a vigorar em 1989, regulando a produção e o consumo desubstâncias destruidoras da camada de ozônio. Elaborado por pequeno número de Estados, recebeua adesão de mais de 150 países. De acordo com um rígido cronograma, os signatários estão obrigadosa eliminar 15 tipos de CFCs, além de algumas outras substâncias que têm efeitos similares. A eficáciado Protocolo assentou-se sobre duas bases. De um lado, foi decidida a eliminação de substâncias antesmesmo que a indústria tivesse substitutos para elas. Com isso, acelerou-se a pesquisa para a produçãode substitutos, que atualmente se encontram disponíveis. De outro lado, concedeu-se um prazo dedez anos para que os países em desenvolvimento, que consomem pequenas quantidades de CFCs, oseliminassem.

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O conceito de desenvolvimento sustentável permeou todas asdecisões da ECO-92. A Conferência associou a degradação ambiental àpobreza, atribuiu ao Norte a responsabilidade principal pelos problemasambientais globais e definiu a necessidade de alocação de recursosfinanceiros adicionais para o encaminhamento das questões ambientais.A Agenda 21, síntese dos programas voltados para a implementação deum modelo de desenvolvimento sustentável, representou vitóriaestratégica dos países do Sul.

Contudo, os limites dessa vitória se evidenciaram nas ambigüidadesdos tratados emanados da ECO-92, bem como no caráter genérico doscompromissos assumidos pelos países desenvolvidos. Em particular, nãoforam criados mecanismos para transferências significativas de recursosdestinados a projetos ambientais.

A contraposição dos conceitos de patrimônio da humanidade esoberania nacional marcou as negociações sobre o tema da diversidadebiológica. Os países tropicais resistiram em adotar políticaspreservacionistas que acarretam restrições aos fluxos demográficos eàs atividades econômicas. Enfatizando o fato de que os paísesdesenvolvidos destruíram a maior parte das suas florestas originais,temperadas e boreais, reivindicaram compensações financeiras etransferências de tecnologia em troca da adoção de políticas deconservação do patrimônio genético presente nas florestas tropicais.

A Convenção sobre Diversidade Biológica, hoje aceita por maisde uma centena de Estados, representou uma plataforma de conciliaçãodos interesses divergentes. Seu princípio básico é o reconhecimento dodireito soberano dos Estados sobre os recursos biológicos existentes noterritório nacional. O intercâmbio político que prevê consiste na trocado amplo acesso à biodiversidade pela concessão de ajuda financeira epela transferência de tecnologias. Mas o tratado, genérico, permite diferentesinterpretações dos direitos e dos deveres estabelecidos. Sobretudo, nãofaz referência ao sistema de patentes, que garante o monopólio sobredescobertas científicas para os detentores do conhecimento e não protegeos países que abrigam o material genético bruto pesquisado.

As negociações para a Convenção sobre Mudanças ClimáticasGlobais foram marcadas pela resistência dos Estados Unidos à fixação

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de limites compulsórios para emissões de gases estufa, defendidospela União Européia e por vários países em desenvolvimento.Os grandes exportadores de petróleo tenderam a se alinhar comWashington, enquanto pequenos países insulares da Oceaniaapareceram como os mais ardorosos defensores de medidas severascontra as emissões.

O resultado foi modesto: os países desenvolvidos comprometeram-se a congelar, até o ano 2000, as emissões de CO2 nos níveis registradosem 1990. Não foram fixados limites nacionais compulsórios, e ocompromisso unilateral não se revestiu de valor jurídico. Os países emdesenvolvimento não aceitaram incluir metas de limitação a suaspróprias emissões e conseguiram a criação de um mecanismo detransferência de recursos financeiros para cobrir custos de substituiçãode tecnologias energéticas. Esse mecanismo – a Global EnvironmentalFacility – foi instituído, mas com recursos extremamente limitados.

Poucos anos após a adoção da Convenção, tornou-se claro que ocompromisso de congelamento das emissões não seria cumprido pelamaior parte dos países desenvolvidos, especialmente pelos EstadosUnidos. Ao mesmo tempo, constatou-se significativo aumento deemissões por parte dos países em desenvolvimento, em particular aChina e os NPIs asiáticos, que experimentavam forte crescimentoeconômico. Em dezembro de 1997, novo tratado sobre o clima foifinalizado na Conferência de Kyoto.

O Protocolo de Kyoto, anexado à Convenção, representouinteressante inovação nas políticas globais para o meio ambiente. Deum lado, fixou a meta de redução de 5% sobre os níveis de emissões de1990, a ser atingida entre 2008 e 2012. De outro, criou um sistema decomércio de créditos de emissões entre os países.

Os países do Anexo I comprometeram-se com tetos máximos deemissões inferiores às emissões registradas em 1990. Entre os países emtransição para a economia de mercado, fixou-se o teto de 100% para aRússia e a Ucrânia e de 92% para a maior parte da Europa centro-oriental. Os países em desenvolvimento só terão tetos máximos numasegunda fase, a partir de 2010. O sistema de comércio de créditos de

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emissões proporciona certa flexibilidade para os países do Anexo I. Eleproporciona a opção da compra de créditos de emissões de países quealcançarem redução mais acentuada das suas próprias emissões.

A lógica subjacente ao Protocolo de Kyoto é muito mais sofisticadaque a idéia simplista de conter o aquecimento global pela imposição delimites para as emissões de “gases estufa”. No fundo, o tratado condensauma estratégia de estímulo à inovação tecnológica e à mudança dospadrões de produção e consumo de energia em escala global.

Desde o início, os europeus assumiram posição de liderança noencaminhamento da agenda do aquecimento global. Participaramativamente da fixação dos limites globais de emissões de “gases estufa”na Convenção sobre Mudanças Climáticas Globais e, depois, exerceramforte pressão para a definição de limites nacionais no Protocolo de Kyoto.Nas duas ocasiões, alinharam-se com os países em desenvolvimento eentraram em choque com os Estados Unidos, o Japão e os exportadoresde petróleo. O Brasil desempenhou papel relevante na articulação entrea União Européia e os países em desenvolvimento.

A “diplomacia do clima” figura como principal pólo de tensão noextenso temário ambiental. Na ECO-92, Washington resistiu à fixaçãode limites compulsórios de emissão de “gases estufa”. O Protocolo deKyoto foi firmado pela administração Clinton, mas logo denunciadopela administração George W. Bush. O processo de ratificaçãointernacional do Tratado isolou os Estados Unidos. O Japão e a Austráliaacabaram seguindo a União Européia, o que permitiu a entrada emvigor do Tratado em 2002.

A ECO-92 constituiu um marco no esforço para a mudança doarcabouço conceitual do temário ambiental, mas não extinguiu astentativas de transformação da ecopolítica em fator de reafirmação deum status quo fundado no poderio dos países desenvolvidos. Essastentativas se expressam principalmente pela via da utilização do discursoecológico como fator de discriminação comercial. Proposições do tipo“selo verde”, na forma como foram defendidas pela União Européia,colidem frontalmente com os princípios do livre comércio mas, pornão constituírem barreiras tarifárias, funcionam como operações

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neoprotecionistas capazes de contornar os compromissos de aberturade mercados firmados na Rodada Uruguai.34

A agenda ambiental veio para ficar. Sua relevância expressa nãoapenas a crise de um modelo de crescimento ecologicamente perversomas, ainda, as novas configurações da diplomacia no pós-Guerra Fria.Os conteúdos da agenda, por seu lado, não respondem apenas – e sequerprincipalmente – ao estado dos conhecimentos científicos, mas tambémàs políticas de poder que permeiam o sistema internacional. Por isso, aecopolítica assume funções estratégicas e entrelaça-se com as políticasvoltadas para questões comerciais e econômicas de âmbitos global eregional.

Texto Complementar

COMÉRCIO E MEIO AMBIENTE, Leonilda B. C. G. Alves Corrêa(In: Comércio e Meio Ambiente, Brasília: IRBr-Funag-Centro de EstudosEstratégicos, 1998, p. 11-30)

Evolução da questão do meio ambiente: do prisma localà ótica global

A preocupação com o meio ambiente iniciou-se com as observaçõesdos efeitos de certas práticas agrícolas ao solo, clima e vegetação. Aolongo da história da agricultura, muitos foram os que se dedicaram aestudar essa relação. No Brasil, José Gregório de Moraes Navarroalertava em 1799 para o esgotamento dos solos em áreas cultivadas epropunha a criação de pequenos bosques junto às cidades e vilas e outrasmedidas para “reparar todos os erros da lavoura do Brasil e vivificaruma grande porção de terras”.

Após a Revolução Industrial e os posteriores avanços científicos,esboçaram-se os primeiros trabalhos sobre os efeitos da poluição gerada

34 Leonilda B. C. G. Alves Corrêa apresenta, em Comércio e meio ambiente: atuação diplomáticabrasileira em relação ao selo verde, op. cit., uma síntese da atuação diplomática brasileira, em diversosforos, sobre a questão do selo verde (p. 134-185). A autora observa, com propriedade, que a OMCtem mandato expresso para “apresentar recomendações quanto à necessidade de modificar as disciplinasdo sistema multilateral de comércio para estimular a interação positiva entre medidas comerciais eambientais para a promoção do desenvolvimento sustentável, evitar a adoção de medidas comerciaisprotecionistas e permitir o monitoramento de medidas comerciais usadas para propósitos ambientais.”(p. 179).

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por minas e fábricas, tratados basicamente sob o prisma da saúde dostrabalhadores. As revoluções políticas e as guerras entre as nações, aslutas pela independência e contra a escravidão – em suma a própriahistória política, econômica e social – não favoreceram a discussão detemas ambientais de forma singularizada até meados do século XIX.

A publicação do livro Man and Nature, de George Perkins Marsh,em 1864, apontava a crescente degradação ambiental em todo o mundo,de caráter potencialmente irreversível, provocada pela ação humana.Mesmo com a repercussão obtida, o movimento de preservação danatureza, que então se estruturava, restrito a esferas comunitárias enacionais, tinha por objetivo central a proteção da flora e da fauna,bem como a criação de parques florestais para a manutenção do habitatnatural de espécies animais e vegetais.

De forma muito embrionária, a partir do final do século passado,as preocupações dos pioneiros na área ambiental começaram a estender-se às implicações das atividades produtivas sobre os seres vivos e o meioambiente – entendido como qualidade do ar, do solo, das águas econservação de recursos naturais. Nessa etapa inicial de conscientização,políticos, cientistas, missionários e indivíduos de diferentes extratossociais voltavam a alertar para os danos à natureza de certas práticasagrícolas e extrativistas (...).

Interação das políticas ambientais com políticas comerciais

(...) Os esforços para a remoção de barreiras ao comérciointernacional, após seis rodadas de negociações no Gatt, resultaram emconsiderável redução tarifária e as atenções voltavam-se para outrasmodalidades de obstáculos não-tarifários ao comércio. O movimentoambiental ganhava força, em particular nos países industrializados, e,paralelamente, normas e regulamentos técnicos destinados a reduzir oimpacto ambiental de produtos e métodos de produção vinham sendoprogressivamente adotados. Os países industrializados passavam aquestionar os modelos vigentes de crescimento e desenvolvimento,que não incorporavam preocupação com os problemas ambientais. Ospaíses em desenvolvimento defendiam, com ênfase crescente, o direitosoberano à exploração de seus recursos naturais. E, vários acordos

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internacionais em matéria ambiental incorporavam medidas de restriçãocomercial.

Em 1971, o diretor-geral do Gatt recomendava às PartesContratantes assegurar que os esforços governamentais no controle dapoluição não resultassem na introdução de novas barreiras ao comércioou em dificuldades para a remoção das barreiras existentes, tendo sidodiscutida a idéia de criar um mecanismo flexível que pudesse seracionado, diante da necessidade de examinar casos específicos. Emnovembro do mesmo ano, o Conselho acordou a criação do Grupo sobreMedidas Ambientais e Comércio Internacional, com mandato para

examine upon request any specific matters relevant to the trade policy

aspects of measures to control pollution and protect the human environment

especially with regard to the application of the provisions of the General

Agreement taking into account the particular problems of developing countries.

Nessa época, a Organização de Cooperação e DesenvolvimentoEconômico (OCDE) já examinava os dois temas com razoável grau deintegração, pois os países desenvolvidos da Europa defrontavam-se comum sério quadro de poluição que os afetava diretamente. Conscientesde que as medidas necessárias para reverter a degradação ambientalpoderiam apresentar efeitos comerciais, as discussões sobre o assuntoresultaram na formulação de “Princípios Orientadores Relacionados comos Aspectos Econômicos Internacionais das Políticas Ambientais”,publicados pela OCDE em maio de 1972 e, quase todos, incorporadosnas políticas ambientais dos países-membro. Esses princípios, direta ouindiretamente, irão se refletir nas discussões relativas a selo verde ecomércio internacional:

• Princípio de que o poluidor paga: visa a assegurar que os custosdos bens e serviços que originem contaminação reflitam oscustos de eliminação e controle. O enfoque favorece a prevençãoem lugar da compensação pelo dano causado e a internalizaçãodos custos ambientais em detrimento da concessão de subsídiospara eliminação da poluição;

• Princípio da harmonização: especifica que os governos devem seesforçar para harmonizar as políticas ambientais, a menos que

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existam razões válidas que justifiquem dissimilitudes. As razõesválidas seriam diferenças nas capacidades assimilativas,prioridades sociais, nível de industrialização e densidadepopulacional;

• Princípio de tratamento nacional e não discriminatório: obriga aaplicação de medidas nacionais tanto para produtos domésticosquanto para importados; e,

• Princípio de compensação: estipula que os países não podemcompensar as diferenças existentes entre as políticas ambientais,por intermédio da aplicação de direitos aduaneiros especiais,restrições às exportações ou medidas equivalentes.

Mesmo com iniciativas semelhantes em diversos outros forosapenas recentemente passou a haver um tratamento mais integradodas relações entre comércio e meio ambiente. Uma das justificativasseria a de que só nos últimos anos foi “internacionalizada” a formulaçãode políticas ambientais, acentuando suas relações com o comérciointernacional. Com a globalização econômica, novos canais emergempara a transmissão internacional dos efeitos econômicos de políticasdomésticas. A política ambiental constitui uma das políticas domésticascom implicações potenciais sobre o comércio, pelas diferenças entre osníveis de exigências de regulamentos ou outros instrumentos adotadosem cada país para a obtenção de seus objetivos de proteção ao meioambiente, assim como de outras medidas voluntárias implementadaspara a padronização de produtos e processos produtivos ou paraestimular mudanças nos padrões de consumo e de produção.

Apesar do fato de as políticas ambientais poderem serlegitimamente diferentes, dependendo de condições econômicas eecológicas específicas, há espaço para maior convergência naimplementação, cumprimento de regulamentos e medidas correlatas,particularmente quando visam a tratar de problemas ambientais globaise uma das preocupações centrais do sistema multilateral é a de buscarmaior coerência e compatibilização entre as duas áreas.

Contribui também para essa inter-relação a percepção do papelque pode ser desempenhado pelo comércio, como uma das principais

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formas de interação econômica internacional, no desenho de mecanismosmultilaterais para buscar soluções para problemas ambientais.

(...) As relações entre comércio e meio ambiente não sãonecessariamente antagônicas; nos últimos anos, contudo, passaram aserem vistas mais em termos de conflito do que de complementaridade.Diversas controvérsias na área de comércio internacional originaram-se de questões ambientais; muitos países vêm advogando o uso deinstrumentos de política comercial para a obtenção de objetivos depolítica ambiental; e grupos de ecologistas responsabilizam o comérciointernacional por impactos negativos sobre o meio ambiente.

Se o comércio prejudica ou não o meio ambiente é pergunta quenão pode ser respondida de forma simples ou definitiva. É amplamentereconhecido que o comércio internacional pode acarretar impactosambientais tanto positivos quanto negativos, dependendo do tipo depolítica comercial e ambiental em vigor para setores industriaisespecíficos em cada país.

O primeiro exame a ser feito é o das relações entre comércio ecrescimento econômico. Do ponto de vista histórico global, o comérciointernacional tem sido para a maioria, talvez para todas as economias,um dos principais fatores de seu desenvolvimento. De forma bastantesimplificada, contribui para a geração de empregos – estimados em cercade quatorze mil e quinhentos empregos por cada bilhão de dólaresexportado (1992) – e permite a um país aumentar sua produção econsumo e, com isso, o bem-estar econômico. Nas últimas décadas,muitos países em desenvolvimento melhoraram seu desempenhoeconômico por intermédio da expansão do comércio.

Aceita a contribuição do comércio para o crescimento econômico,cabe avaliar seus efeitos sobre o meio ambiente. A expansão das vendasexternas e a melhoria no desempenho econômico possibilitam a alocaçãode recursos para atividades de proteção ambiental, o que dificilmenteocorreria em países de economia estagnada ou nos países maispobres, diante das necessidades prementes de suas populações. Osubdesenvolvimento representa sérias ameaças ao meio ambiente, jáque a população tende a ser levada à superexploração de recursosnaturais ou à exaustão das terras aráveis.

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O crescimento econômico, que decorre em ampla medida daexpansão do comércio internacional, é, portanto, vetor fundamentalda sustentabilidade ecológica. O intercâmbio comercial, além disso,estimula a transferência de tecnologias para melhor gestão dos recursosnaturais, incentiva a inovação e melhoria na produtividade em relaçãoao uso de recursos, diante da concorrência internacional, permite acessoa produtos e insumos de menor impacto ambiental e pode contribuirpara a adequada apreciação de valores ambientais.

A questão que vem sendo mais recentemente colocada é se aliberalização do comércio apresenta efeitos positivos ou negativos sobreo meio ambiente. A atitude de grande parte dos ambientalistas estáainda dominada pela percepção do papel do comércio internacionalcomo portador de distúrbios sistêmicos ao meio ambiente. Devastaçãode florestas tropicais, comércio de marfim e de espécies em extinção,pesca de baleias e atum são alguns dos temas familiares da agendaambiental que apresentam o viés tipicamente anticomércio. Prevalece,portanto, entre os ambientalistas, o apoio a regulamentações comerciaisque imponham padrões cada vez mais elevados, para frear a degradaçãoambiental, acompanhadas de medidas de comércio restritivas para osque não estejam em conformidade.

Essa postura encontra apoio em algumas teorias que sublinhamos riscos para o meio ambiente derivados do comércio irrestrito,especialmente diante de distorções de mercado e de políticas ambientaisfracas ou inexistentes. Conceitualmente argumenta-se que aliberalização do comércio pode agravar problemas existentes ou provocarefeitos ambientais tão negativos que neutralizem os benefícios derivadosdo mercado aberto, resultando em declínio global da riqueza nacional.Essa possibilidade ocorre quando o valor dos recursos naturais não refleteseu verdadeiro preço para a sociedade: sob a perspectiva econômica, adiferença entre preços de mercado e preços sociais representa umadistorção de mercado, ou seja, a existência de externalidade. Nesse caso,a ação mais efetiva é a de concentrar esforços na introdução de políticaambiental que internalize as externalidades, de modo a obter a utilizaçãomais sustentável dos recursos naturais.

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A análise dos problemas de meio ambiente revela, contudo, quenão é o comércio que os origina e, conseqüentemente, o uso de restriçõescomerciais para resolvê-los é contraproducente e, na maioria dos casos,ineficaz. As sanções comerciais para cumprir objetivos ambientaisconduzem a distorções, por estarem centradas na questão ambientalde interesse para o país que as aplica, não necessariamente correspondemàs prioridades ambientais do país afetado, nem próximas à soluçãoadequada ao problema ambiental.

Por outro lado, o livre comércio permite que cada país se especializena produção de bens e serviços em que tenha vantagem comparativa,incluindo vantagens baseadas em suas condições ambientais. Istosignifica que os recursos mundiais serão utilizados em atividadeseconômicas onde apresentem taxas mais elevadas de retorno, masdistorções comerciais, como subsídios ou barreiras tarifárias e não-tarifárias, podem desordenar o cenário de livre comércio, impedindo aeficiente alocação de recursos e contribuindo para padrões insustentáveisde produção. A liberalização comercial, com a remoção de obstáculoscomerciais que encorajam atividades ambientalmente prejudiciais,aumenta a eficiência geral do sistema econômico mundial e facilita adisseminação de tecnologias mais limpas e o acesso a recursos financeirospara proteção ambiental.

Logo, o impacto do comércio sobre o meio ambiente depende depolíticas ambientais adequadas e de estratégias de desenvolvimentosustentável implementadas em nível nacional e internacional. Aliberalização do comércio pode agir como magnificador de fracassospolíticos, mas tais insucessos comprometeriam o desenvolvimentosustentável mesmo em economias fechadas. Paralelamente, se aspolíticas necessárias à proteção do meio ambiente e à promoção dodesenvolvimento sustentável estiverem sendo adotadas, o crescimentoinduzido pelo comércio internacional será sustentável.

A efetiva proteção ao meio ambiente está, portanto, estreitamentevinculada ao crescimento econômico, que, por sua vez, depende daexpansão do comércio – as implicações recíprocas de todas essas áreasestão contidas no conceito de desenvolvimento sustentável.

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6 – SOBERANIA E DIPLOMACIA: A QUESTÃO NUCLEAR

A atitude histórica da diplomacia brasileira sobre os temários datecnologia e dos armamentos nucleares envolve tanto posicionamentosque expressam princípios e valores nacionais quanto os que decorremdos interesses nacionais. Embora não possam ser excludentes, essas duasdimensões não são sempre idênticas e, principalmente, respondem adinâmicas de natureza diversa. Uma das tarefas diplomáticas maiscomplexas consiste na busca do equilíbrio entre tais exigências, quepossuem ritmos próprios e criam suas circunstâncias específicas.

A Constituição de 1988 veta explicitamente o uso não-pacíficoda tecnologia nuclear e, em termos mais gerais, interdita de formaabsoluta a guerra de agressão. Esses postulados constitucionaisrepresentam mais do que palavras sobre o papel, pois sintetizam vastopercurso de estabelecimento de valores nacionais que impelem o paísao engajamento na solução pacífica dos diferendos. A predisposiçãobrasileira nessa direção constitui signo tradicional e ativo importantena difusão de nossa política externa.35

Um dos fundamentos cruciais para essa predisposição é apercepção de um entorno regional pouco ameaçador. A América do Sulexibe duradoura estabilidade de fronteiras e baixo nível de tensão militar,configurando uma das áreas de menor potencial de conflito bélico doplaneta. Além disso, as dimensões territoriais e o peso demográfico doBrasil geram um sentimento de segurança regional muito elevado.36

35 Entretanto, nem sempre foi assim. Ao longo dos tempos do Império, quando estava em jogo aconstrução da unidade territorial do país, a atitude brasileira foi marcada por forte ambigüidade, oscilandoentre a opção pela diplomacia dos argumentos e a opção oposta, da diplomacia da força. A Guerra doParaguai, último conflito no qual nos envolvemos, expressou a exacerbação da segunda tendência.

36 A percepção de um entorno pouco ameaçador foi consolidada após a Guerra do Paraguai e tornou-se condicionante estrutural da política externa republicana que, nesse nível, não é afetado porconflitos internos em países vizinhos: “O Brasil não se sente ameaçado por países de sua região. Anossa é, em essência, uma atitude que compartilhamos histórica e visceralmente com a Rússia e coma China de que nossa massa crítica é bastante para responder, no médio prazo, a qualquer assaltomesmo que, por debilidade específica em um ou vários dos teatros em que nos defrontamos comvizinhos possamos estar – como muitas vezes estamos – em clara desvantagem de meios. Háafinidades muito evidentes entre a percepção brasileira da profundidade de seus espaços e de suacapacidade de resposta e a consciência que sempre teve a Rússia, primeiro, e a União Soviética pré-nuclear, depois, de que o eventual adversário (ou adversários) seriam diluídos dentro dos nossosilimitados horizontes.” (Marcos Castrioto de Azambuja, “Desarmamento – Posições Brasileiras”,Temas de Política Externa Brasileira, op. cit., p. 180).

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Desde a Primeira Guerra Mundial e, com maior relevância, nosegundo pós-guerra, o Brasil exprime esse engajamento com os valoresda paz pela participação constante nos diversos foros voltados para asnegociações do desarmamento. A participação brasileira, emboraobviamente situada em patamar muito menos significativo que o dasgrandes potências militares, destaca-se nos quadros multilaterais pelasua coerência e sua responsabilidade.

Ao lado da defesa das medidas parciais e limitadas de desarmamentoque se revelam viáveis desde uma perspectiva realista dos equilíbrios depoder, os posicionamentos nacionais caracterizam-se pela defesa domultilateralismo no trato dessas questões de evidente interesse universal.Coerentemente, os posicionamentos brasileiros sempre criticaram oscontextos seletivos e discriminatórios – bilaterais ou restritos às aliançasmilitares – nos quais se realizam negociações cruciais de controle e regimede armamentos.

Historicamente, o aspecto mais sensível e delicado da políticaexterna brasileira para a questão da paz e a do desarmamento é o queabrange o temário nuclear. Nesse contexto específico, o conjunto deposicionamentos nacionais – ainda que estribados em princípios moraise de direito objetivo inquestionáveis – suscitou importantes divergênciascom atores de primeira linha no sistema internacional e representoufonte de constrangimentos reais para nossos interesses.

O contexto em que se realiza a diplomacia sobre assuntos nuclearesfoi delineado, desde suas origens, por pressupostos decorrentes da políticade poder e pela moldura rígida da Guerra Fria. No imediato pós-guerra,inúmeras iniciativas norte-americanas – desde o Relatório Acheson-Lilienthal, passando pelo Plano Baruch, e a Lei McMahon, até oprograma “Átomos pela Paz” de 1953 – estabeleceram um arcabouçode abordagens e medidas discriminatórias. Na década de 1960, aconsolidação da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), criadaem 1957, transferiu para esse organismo a tarefa de zelar pelas políticasde salvaguarda emanadas originalmente dos Estados Unidos.

Em poucos anos, a Aiea, sob roupagem multilateral, passou afuncionar quase como representante do Clube de Londres (agrupamentoinformal dos países supridores de materiais, equipamentos e tecnologia

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nuclear), gerenciando a difusão restritiva de conhecimentos na áreanuclear. Na década de 1970 – sob o impacto da agressiva política deexportações bélicas da França, do Acordo Nuclear Brasil-RFA e do testenuclear conduzido pela Índia – as restrições e as salvaguardas foramreforçadas e, em particular, o Brasil tornou-se alvo de intermitentespressões oriundas de Washington.

A posição brasileira ficou claramente demarcada pelas diferentesatitudes adotadas diante dos tratados de Tlatelolco e de Não-Proliferação(TNP), ambos firmados no final dos anos 60. O Tratado de Tlatelolco,que visa à desnuclearização de toda a América Latina, recebeu a adesãobrasileira pois permite resguardar as opções de uso pacífico da tecnologianuclear.

O TNP, de alcance global, não recebeu a adesão nacional, poisestá ancorado na afirmação da desigualdade e no congelamento de umasituação discriminatória que compromete o acesso aos conhecimentoscientífico e técnico do horizonte de possibilidades da tecnologia nuclear.A diplomacia brasileira enfatizava que Tlatelolco representou restriçãovoluntária e responsável ao exercício agressivo da soberania, enquantoo TNP coagulou visão incompatível com as idéias de igualdade básicados Estados e o respeito à soberania nacional.37

Este posicionamento básico foi continuamente reafirmado eredimensionado pelo país, determinando a reticência brasileira emparticipar dos variados regimes de controle de tecnologias sensíveis(nucleares e de lançamento de artefatos). Contudo, a realidade dopós-Guerra Fria impôs a necessidade de reflexão mais acurada sobre o

37 O TNP responde ao princípio da subordinação do desarmamento à segurança, definida nos termosdo equilíbrio bipolar da Guerra Fria. Do ponto de vista das duas superpotências, os acordos sobrearmas nucleares tinham que se inscrever nos contextos da dissuasão (tanto mútua como em relaçãoa potências nucleares médias) como da não-proliferação. Do ponto de vista dos Estados não-nucleares,especialmente das potências regionais, o regime internacional resultante seria, inevitavelmente,percebido como discriminatório. George Lamazière enfatizou: “A negociação do TNP, como se sabe,deu-se basicamente entre as duas superpotências, que ao final apresentaram duas versões iguais dotexto final ao foro de desarmamento em Genebra...” (Ordem, hegemonia e transgressão, Brasília: IRBr-Funag-Centro de Estudos Estratégicos, 1998, p. 53) Marcos Castrioto de Azambuja registrou que oTNP constitui um “virtual resumo das premissas e obrigações que o Brasil considera inadequadas ediscriminatórias”. Em avaliação sintética e realista, constatou: “O problema central do TNP é que eleconsagra e legitima uma divisão entre os que têm e podem e entre os que não têm e não podem.”(Temas de Política Externa Brasileira, op. cit., p. 185).

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conjunto dos problemas envolvidos, à luz da nova conjuntura internacionale do impacto das opções existentes sobre os interesses nacionais.

Princípios e interesses

A não-adesão ao TNP, ainda que movida por posturas de princípio,apoiava-se em percepções relativas aos interesses nacionais. Taisinteresses se referenciavam tanto nas dimensões estratégicas quantonas econômicas do acesso ao know-how nuclear.

Estrategicamente, a absorção de tecnologias nucleares foicompreendida como condição de segurança, em função não daperspectiva de construção de um arsenal nuclear mas do efeito-demonstração possibilitado pelo domínio do conhecimento sensívelenvolvido.

Assim, em um cenário internacional de crescente difusão deconhecimento na área nuclear, a postura brasileira de rejeição do usobélico dessa tecnologia só poderia ser sustentada, no médio prazo, peloreconhecimento internacional da capacidade do país de, eventualmente,responder a alterações indesejáveis no quadro de estabilidade regional.38

Esse raciocínio, de extração marcadamente realista, agudizou-se em funçãoda rivalidade que marcou fases importantes do nosso relacionamentocom a Argentina desde o final da Segunda Guerra Mundial.39

Economicamente, a ampliação do comércio internacional dematerial bélico e de tecnologias sensíveis gerou compreensível desejo decapacitação nacional na área nuclear. Essa vontade, coerente com oprojeto de desenvolvimento nacional, condicionou posturas arredias aos

38 “É inegável que, ultrapassados certos limites de desenvolvimento tecnológico, a evidência dacapacidade de um país tem efeito de dissuasão importante, por preencher a ausência do podermaterial efetivo com a certeza de que há capacidade de mobilização rápida. Países como a Alemanhae o Japão estão nesta categoria, pois apesar de não serem potências militares capazes de constituirameaça presente, ninguém duvida da capacidade de ambos construírem armamentos dos maissofisticados e desenvolverem rapidamente meios de defesa e de agressão, em caso de necessidade.”(José Eduardo M. Felício, “Os Regimes de Controle das Tecnologias Avançadas e a Inserção do Brasilna Nova Equação do Poder Internacional”, Temas de Política Externa Brasileira II, op. cit., vol. 1, p. 271).

39 Na primeira metade da década de 1970, o quadro de tensão regional aprofundou-se a tal ponto que,dos dois lados da fronteira, foram estimulados programas nucleares sigilosos. Tais programas,independentemente de seus limites reais, foram percebidos como geradores de maior insegurança,tornando-se elementos autônomos de agravamento das desconfianças. A vigência de regimesautoritários nos dois países contribuiu, circunstancialmente, para realçar os temores internacionais.

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regimes de controle e sistemas de salvaguarda, percebidos comooperações discriminatórias de alcance comercial. Tal ordem de idéias,nem sempre justificadas, constituiu, entretanto, reação lógica a umcontexto diplomático internacional forjado sob a égide de pressupostoselitistas e isolamento das reivindicações de mecanismos multilateraisde negociação.

O encerramento da Guerra Fria e o reforço do TNP, pela suaextensão indefinida em 1995, modificou a moldura da problemática eintroduziu novos dados, forçando alteração significativa da posturabrasileira. Essa alteração se completou em 1998, quando o país aderiuao TNP.

Em primeiro lugar, a hegemonia estratégica dos Estados Unidosreforçou objetivamente o poder dos organismos para controle detransferência de tecnologias sensíveis e ampliou seu âmbito de atuação.Em especial, a nova conjuntura realçou a percepção de que determinadospaíses fogem a regras de conduta aceitas como responsáveis e estabeleceuconsensos tendentes a isolar diplomaticamente tais atores.

Os termos do encerramento da primeira Guerra do Golfo, com aimposição de inspeções detalhadas da Aiea nos locais dedicados aoprograma nuclear iraquiano, e as intensas pressões sobre a Coréia doNorte são frutos do novo período. Nessa situação, a mera reiteração dasposições tradicionais brasileiras poderia degenerar no enquadramentodo país entre os Estados pouco confiáveis, com reflexos altamentenegativos para os interesses nacionais.40 Em especial, ampliaria osobstáculos para a aquisição de tecnologias no campo de mísseis, deelevada importância científica e alto valor comercial.

Em segundo lugar, a evolução das relações regionais e sub-regionaise, em particular, o novo relacionamento bilateral com a Argentinaextinguem uma fonte tradicional de desconfianças e tensão. Oencaminhamento da Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul e a

40 Os testes nucleares conduzidos pela Índia e pelo Paquistão, em 1998, tendem a reforçar o isolamentodos Estados que permanecem fora do regime de não-proliferação. Nas novas condições abertas poresses testes, a reorientação brasileira adquire significado de maior relevância. Tendo aderido ao TNP,o país adquire credibilidade para exercitar a crítica à opção seguida pelos Estados rivais do Indostãoe, ao mesmo tempo, para reiterar que o futuro do regime de não-proliferação depende do compromissodas potências nucleares signatárias com redução mais rápida e profunda dos seus arsenais.

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consolidação do Mercosul afastam as áreas de sombra no entornobrasileiro, tendo já determinado a completa abertura dos programasnucleares brasileiro e argentino e proporcionado o início de amplacooperação científica na área da tecnologia sensível.

Em terceiro lugar, o próprio desenvolvimento das competências edas capacidades nacionais – tanto no âmbito da pesquisa científica comono da atividade empresarial – nas áreas nuclear e de lançadores começaa alterar o lugar do Brasil no mercado mundial de tecnologias sensíveis.

Tornamo-nos, aos poucos, supridores de determinadosconhecimentos e, portanto, interessados diretos em certos regimes decontrole e salvaguardas. Pelo mesmo motivo, amplia-se nosso interessena transferência de tecnologias para as quais se exigem compromissosde controle de utilização específicos, regulados por regimes elaboradossob a égide das grandes potências.

As novas circunstâncias implicaram a revisão de atitudes firmadasno passado. Nova reflexão iniciou-se logo após o fim da Guerra Fria,permitindo que a diplomacia brasileira reavaliasse o significado daadesão a regimes de controle antes rejeitados.41

A mudança de rota envolve o risco óbvio do abandono de posiçõesde princípio que permanecem válidas e exige o aprofundamento dadiscussão a respeito de políticas precisas para cada contexto específico.Contudo, permite expressão mais eficaz e influente dos valores e dosprincípios brasileiros que, ancorados na construção de um perfil deparceiro confiável nas negociações nucleares, podem contribuir para aredução das tensões internacionais e das discriminações na esfera dastecnologias sensíveis de uso duplo.

41 O percurso da reavaliação brasileira pode ser seguido, até o estágio crítico da ruptura com asposturas originais, pelo ensaio citado de José Eduardo M. Felício (Temas de Política Externa BrasileiraII, op. cit., vol. 1), que destacava, como conclusão: “Chegamos, portanto, a um momento dediagnóstico e de decisão. A decisão mais acertada no momento parece ser contribuir para a defesaconjunta dos valores que compartilhamos com a comunidade internacional. Para isso torna-senecessário aderir às regras do jogo do mundo atual, o que implica, necessariamente, em participar dosregimes de controle das tecnologias de uso duplo. A opção contrária leva a colocar o Brasil sobsuspeita, desnecessariamente – de querer, inclusive, acobertar ações de países com perfis totalmentedistintos e que vivem em regiões de tensão – e a impossibilitar que o governo possa influenciar, comseu respeitado ponto de vista, o rumo das tendências em matéria de controles.” (p. 280).

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A extensão do TNP, por tempo indefinido, resultou de barganhaconduzida pelas potências nucleares e, em particular, pelos EstadosUnidos. Em troca dessa extensão, as potências nucleares reafirmaramo compromisso original do Tratado com a eliminação futura de todosos arsenais nucleares e prometeram colocar em vigor o tratado debanimento dos testes nucleares assinado em 1996.

Mas a política externa dos Estados Unidos coloca em risco acredibilidade da barganha. Washington decidiu, desde o início daadministração George W. Bush, não ratificar o tratado de banimentodos testes nucleares, ainda que se comprometendo publicamente arespeitar seus termos. Em 2003, nova fronteira foi ultrapassada, com adecisão americana de retomar as pesquisas congeladas sobre armasnucleares de baixa intensidade.

O argumento utilizado para a permissão de retomada daspesquisas consistiu na alegação de que essas armas poderiamdesempenhar funções significativas na “guerra ao terror”, permitindoperfurar as proteções de bunkers subterrâneos. Contudo, o eventualdesenvolvimento de armas nucleares de baixa intensidade constituiprecedente extremamente perigoso, pois tende a borrar a linhademarcatória que separa as armas nucleares das convencionais.

A adesão brasileira ao TNP implica óbvias restrições, masproporciona a credibilidade indispensável para que o país exerçacobrança firme das obrigações das potências nucleares contratantes. Énesse contexto que o Brasil exerce seu direito de reivindicar a entradaem vigor do tratado de banimento dos testes nucleares e insiste emavanços concretos rumo à meta de eliminação dos arsenais nucleares.

Texto Complementar

SEGURANÇA COLETIVA E ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA,Georges Lamazière(In: Ordem, Hegemonia e Transgressão, Brasília: IRBr-Funag-Centro deEstudos Estratégicos, 1998, p. 35-59)

A análise dos regimes internacionais tem influenciado fortementea literatura sobre relações internacionais na última década e meia.

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Reflete, talvez, este fato a mescla de elementos provenientes do realismoe do idealismo que esta modalidade de análise incorpora, apropriada aum período histórico marcado pela progressiva superação dos temasestratégico-militares pelos temas econômicos e globais, sem que noentanto se atingisse o patamar de um mundo baseado apenas naoperação do direito e da razão. Bernauer, na mesma linha de Krasner(1983), sublinha inicialmente o caráter de reação ao realismo destalinhagem teórica.

The analysis of international regimes has, during the past 15 years,

resulted in what one could call a “research programme”. This programme

has been instrumental in directing the attention of International Relationsscholars away from the Realist preocupation with conflict and problems of

international anarchy to questions of international collaboration, that is,

questions of “how islands of order can form in an ocean of disorder.

De todo modo, há que dizer que o conceito de regime ele mesmoapresenta traços que atendem às preocupações tanto de idealistas comode realistas. Aponta para as inequívocas e crescentes manifestações decooperação internacional, mas não omite a influência dos fatoressubjacentes de poder econômico e militar na criação, manutenção eoperação desses mecanismos institucionais.

A definição clássica de regime internacional se deve a Krasner:“...implicit or explicit principles, norms, rules and decision-making proceduresaround which actor ’s expectations converge in a given issue area ofinternational relations.”

Para os fins deste estudo, recorreremos ao conceito de regimesobretudo por seu valor operativo e heurístico, sem entrar em maioresdebates teóricos. Neste sentido, seria útil tomar como referência adefinição avançada por Fujita, próxima à de Krasner, mas que agregaimportante menção explícita ao quadro institucional: “No âmbito desteestudo, ‘regime’ significa um conjunto formal ou informal de normas,diretrizes e instituições acordado entre Estados concernentes para balizarexpectativas de conduta em uma determinada área das relaçõesinternacionais.”

Como se verifica a partir desta definição, na análise dos regimesinternacionais dilui-se a diferença entre norma jurídica e padrão de

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comportamento, entre o explícito e o implícito, entre o formal e oinformal (...).

Regimes de segurança – cooperação com desconfiança

Como comentamos acima, a análise de regimes não se temdedicado com freqüência aos temas de segurança. Alguns autores(Bernauer, 1993) atribuem tal fato ao número reduzido de regimesexistentes nesta área, explicável por sua vez pelo caráter inerentementeconflitivo e competitivo da área de segurança; à aversão dos principaisproponentes da análise de regimes aos temas militares e estratégicos,em razão de seu debate inicial e constitutivo com a escola realista, queos privilegia; e por último, aos modismos acadêmicos, que levaram aodeclínio dos estudos sobre temas tradicionais de segurança em prol doschamados aspectos não-militares da segurança (non-military aspects ofsecurity) – tais como questões humanitárias, migratórias ou ambientais.

Apesar disso e malgrado todas as questões preliminares que sepoderia argüir e se tem arguido (Jervis, 1983) contra a aplicação doconceito de regimes a temas de segurança, há muito se faz um usoextensivo do conceito no âmbito restrito e teoricamente menos puristados estudos de desarmamento. Uma importante reflexão a este respeitoé a de Bernauer, a que nos referimos amplamente neste trabalho.

O recurso crescente a conceitos oriundos da análise de regimespara a descrição, explicação ou interpretação de questões de segurança,entretanto, não exclui que estas apresentem, efetivamente, especificidadesindiscutíveis, que caberia listar tentativamente:

– a questão central da segurança, a sobrevivência dos Estados comounidades independentes, preexiste lógica e cronologicamente às demais(econômicas ou da ordem dos valores), e apresenta forte componenteemocional;

– nesta área a fungibilidade dos recursos de poder e o peso daestrutura subjacente de poder atingem seu nível mais elevado; bastaobservar que o desequilíbrio de facto entre estados em termos de poderé aqui reconhecido de jure por pelo menos dois instrumentos internacionaisde participação quase universal, a Carta das Nações Unidas e o TNP,

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fato inexistente, ao menos neste grau, nos acordos multilaterais decaráter econômico;

– o incentivo para trapacear (cheat) é bem maior na área desegurança, pois poderia conceder ao lado que não joga segundo as regrasdo regime uma vantagem decisiva – o que pode ser considerado umavariante do chamado security dilemma ou do prisoner’s dilemma, namedida em que todos os atores prefeririam um desarmamento mútuoassegurado, mas, por medo de serem trapaceados, se armam mais doque deviam, e provocam reação simétrica e equivalente nos adversários;

– exemplificando, o raciocínio de qualquer threshold country pareceser o de perseguir um programa nuclear secreto de modo a avançar osuficiente antes de ser descoberto e/ou inibido, obtendo assim umavantagem regional – e mesmo global – irreversível;

– as duas últimas asserções nos levam ao fato de que os regimesna área de segurança se defrontam com dois problemas peculiares, aquestão do desequilíbrio e a questão da trapaça.

O desequilíbrio poderia ser qualificado de trapaça legitimada, ouviolação do espírito mas não na letra do regime. A trapaça propriamentedita seria um problema tanto no nível horizontal, entre as potênciasmilitares, como no vertical, por parte dos proliferadores. A trapaçapermitida institucionaliza os diferenciais de poder militar e se articuladiretamente à noção de segurança vigente no pós-segunda guerramundial, peace through strength. A trapaça no plano horizontal surgiacomo o grande risco na era do equilíbrio do terror, mas pode serconsiderada hoje ao menos como temporariamente superada. É atrapaça no eixo vertical, e de baixo para cima, que mais preocupa hojeos poderes centrais, e para combatê-la se desenham medidas deverificação e controle cada vez mais intrusivas.

Há duas componentes: a de os estados centrais manterem umdiferencial de poder tecnológico-militar (edge-) em relação aos estadoscapazes de perturbar a ordem internacional; e a de impedir que estesúltimos adquiram meios de destruição em massa que os tornemameaças a seus vizinhos, à ordem global e à projeção de poder necessáriapara controlá-los constituem as razões estratégicas do regime de não-proliferação.

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Aceita a hipótese de que o conceito de regimes internacionais podeser aplicado à temática de segurança, mas que esta apresenta certaspeculiaridades, cabe apontar que esta aplicação particular traz efeitossubversivos para a teoria geral, o primeiro dos quais é o predomínio dadesconfiança sobre a confiança. Este predomínio, que contrasta comênfase posta pelos praticantes da análise de regimes nos aspectoscooperativos das relações internacionais, já pode ser apontado na vogateórica e prática do conceito de medidas de fortalecimento da confiança(confidence building measures), muitas vezes visto como passo prévio enecessário antes de chegar-se a acordos de desarmamento e à suaverificação. Daí provém, igualmente, o papel central da verificação, elamesmo motivada por e motivo de desconfiança.

O segundo efeito subversivo seria a constatação, nos regimes desegurança, do claro e excessivo peso das estruturas de poder sobre oconteúdo, modalidades e resultados das negociações.

E um terceiro resultado inquietante para as versões maisedulcoradas da análise dos regimes, em decorrência do segundo traçoassinalado, é a presença marcante de aspectos de desequilíbrio implícitose explícitos, de facto e de jure, entre os parceiros.

Para concluir esta subseção, poder-se-ia dizer, para recorrer à divisãoproposta por Martin Wright das escolas de estudo das relaçõesinternacionais – cuja relevância tem sido realçada por Celso Lafer – quea área de segurança seria vocacionalmente hobbesiana, embora permitaalguns regimes de corte grociano, mas seguramente não um enfoquekantiano.

A questão central da segurança, a sobrevivência física ou político-legal das unidades componentes do sistema internacional, não seprestaria a renúncias definitivas, permitindo apenas concessõesmodestas, controladas e revogáveis a qualquer momento – vide artigo51 da própria Carta, que fala de direito natural à legítima defesa,individual ou coletiva, em caso de agressão armada, embora com alimitação nem sempre seguida ou prática de que esse direito se esgotaquando o Conselho de Segurança adota as medidas necessárias para amanutenção da paz e da segurança internacionais.

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O regime de não-proliferação de armas de destruiçãoem massa

(...) Cabe observar, de início, que ao falarmos de regime de não-proliferação de armas de destruição em massa ao longo deste trabalho, naverdade optamos por usar uma denominação simplificadora.Historicamente, o que existiu originalmente foi o regime de não-proliferação nuclear, ao qual se foram incorporando paulatinamenteesforços de controle das armas químicas, das armas biológicas, e maisrecentemente de seus sistemas de lançamento – os mísseis – falando-sejá em instituir controles sobre a proliferação de armas convencionais.Ademais, mesmo hoje, o foco do regime é ainda constituídoindubitavelmente pela área nuclear, a dos sistemas de mísseis adquirindosua relevância estratégica sobretudo por seu caráter complementar epotencializador de um eventual domínio dos usos bélicos do átomo –embora os mesmos veículos possam igualmente carregar armasbiológicas, químicas ou convencionais, concedendo-lhes outro valormilitar.

O segmento nuclear da não-proliferação tem, assim, prioridadehistórica e hierárquica sobre os demais dentro do regime. Ademais, cabesublinhar a distinção importante de que a rigor as armas químicas ebiológicas estão na verdade submetidas a um regime de proibição, e nãode não-proliferação, estando elas pela Convenção sobre Armas Biológicasde 1972 e pela entrada em vigor da Convenção sobre Armas Químicas(aberta à assinatura em 1993) banidas para toda a comunidade dasnações, sem distinção. Sua inclusão no regime de não-proliferação dearmas de destruição em massa se justifica, entretanto, além de seguirpraxe corrente na literatura especializada, porque a par das normasconsagradas naqueles instrumentos formais existem controles deexportação como os mantidos pelo Grupo da Austrália e por váriaslegislações nacionais. Justifica-se principalmente porque a incidênciadesses controles sobre os fluxos tecnológicos é desigual em termos depaíses centrais e periféricos, tomando um cunho marcadamente anti-proliferacionista.

Assumindo, como dito acima, a centralidade inconteste do regimede não-proliferação nuclear, bastaria, para situá-lo historicamente,

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mencionar brevemente os principais fatos que marcaram suaconstituição. Felício nos recorda que: “O único país que detinha atecnologia nuclear, ao término da Segunda Grande Guerra, procurou,por todos os meios, evitar a sua disseminação”. Em 1945, a administraçãonorte-americana elaborou um plano para a discussão dos controlesda energia nuclear nas Nações Unidas, que resultou no chamadoRelatório Acheson-Lilienthal. Seus pontos centrais eram o combate àproliferação de armas nucleares através da supervisão internacionaldas atividades nucleares dos países; e do controle físico do materialnuclear.

Com base no referido estudo, o plano foi apresentado à ONU em1946 pelo representante dos EUA, Bernard Baruch, tomando o nomede Plano Baruch. Os EUA propunham a criação de uma entidadesupranacional (a “Autoridade Internacional para o DesenvolvimentoAtômico”) que fosse proprietária, controlasse e operasse as instalaçõessensíveis do ciclo do combustível nuclear, licenciasse e inspecionasse asatividades nucleares em todo o mundo. A idéia não logrou aceitação,mas manteve-se a idéia do controle. Mais adiante, no mesmo ano, oCongresso norte-americano aprovou a primeira lei de energia atômicados EUA, que se tornou conhecida como Lei McMahon, que proibia ointercâmbio nuclear para fins industriais com outros países “até que sepossa estabelecer salvaguardas internacionais sancionáveis e efetivascontra o uso da energia atômica para fins destrutivos”.

(...) O presidente Eisenhower propôs as Nações Unidas, em 1953,o programa Atoms for Peace, que previa uma forma mais branda decontrole do que o Plano Baruch, sem exigir a aceitação incondicional deum regime internacional de salvaguardas. Durante os anos 50 o controlenesta área se exerceu por meio de salvaguardas bilaterais, até a fundaçãoda Aiea, em 1957, quando os EUA passaram a incluir em seus acordosbilaterais de salvaguardas disposição prevendo que a agência seencarregaria da verificação e das inspeções.

A agência originou-se da discussão da proposta Atoms for Peacepela Assembléia Geral da ONU em 1954 e 1955, tendo sido seu estatutonegociado entre 1954 e 1956. Dois momentos fundamentais para aconstituição do regime foram o Tratado de Proibição Parcial dos Testes

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Nucleares, de 1963, conhecido como Tratado de Moscou; e o Tratadode Não-Proliferação de Armas Nucleares, de 1968.

O primeiro, ao excluir da proibição os testes subterrâneos,tornou-se na prática um tratado de não-proliferação por inibir apenasos Estados que ainda engatinhavam na área.

O segundo marca a introdução em um instrumento legal docurioso termo não-proliferação. A negociação do TNP, como se sabe, deu-sebasicamente entre as duas superpotências, que ao final apresentaramduas versões iguais do texto final ao foro de desarmamento em Genebra,um dos aspectos criticados pelo embaixador Araújo Castro, chefe daDelegação do Brasil ao Eighteen Nations Disarmament Committee (ENDC),órgão antecessor da CD), quando da apresentação do texto pelosco-presidentes. Como resume Whitaker Salles a formulação de AraújoCastro, “o TNP é fundamentalmente o resultado de um entendimentobilateral direto entre as superpotências, e não de uma negociação empé de igualdade entre os Estados interessados”.

Releva recordar aqui, fato hoje pouco mencionado, que os esforçosde não-proliferação nuclear das duas superpotências de então visavamsobretudo os países industriais avançados como a Alemanha, a Suécia,a Suiça e o Japão, tendo o foco do regime de não-proliferação se voltadopara os países periféricos somente a partir dos anos 70.

(...) Com o TNP, inaugurando um padrão que se tornaria habitualapós ou mesmo antes da consagração de norma de não-proliferação ouproibição em um tratado internacional, os mecanismos informais decontrole como o Comitê Zangger (1970) e o London Supplier Group (1975)se multiplicam. Na área de armas químicas, o Australia Group é criadoem 1984; e na de mísseis, o Missile Technology Control Regime (MTCR)data de 1987. Cabe lembrar ainda que o Comitê de Coordenação deControles Multilaterais (CoCom), criado em 1949, por iniciativa dosEstados Unidos, para restringir o acesso por parte da URSS e de seusaliados a bens e tecnologias sensíveis, de utilização dual, tem sidoprogressivamente reorientado em um sentido Norte/Sul, após o fim daGuerra Fria (...).

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Características do regime

A esta altura, seria útil recorrer à descrição dos elementos centraisdo regime de não-proliferação nuclear apresentada por David Fischer(1987): normas que proscrevem a proliferação (TNP e os acordos criandozonas livres de armas nucleares); acordos complementares (como oTratado de Moscou de 1963; garantias de segurança; resoluções dasNações Unidas; acordos bilaterais de suprimento; Nuclear Suplier GroupGuidelines; salvaguardas e demais mecanismos da Iaea e Euratom –poderíamos adicionar a ABACC –; sistemas nacionais de salvaguardase controle; e meios nacionais de verificação (National Technical Means),sobretudo através de satélites de controle (monitoring).

Esta exposição nos permite extrair, por analogia, os diversoscomponentes essenciais de um regime de não-proliferação:

– uma norma de não-proliferação ou proibição completa,consagrada em um acordo internacional (TNP, Tratado de Tlatelolco,Convenções sobre Armas Biológicas e Armas Químicas);

– um sistema de verificação do cumprimento da norma (Aiea,para o TNP; Opanal e Aiea, para Tlatelolco; nenhum, para as armasbiológicas; e a Organização para a Proscrição das Armas Químicas(Opaq) para estas);

– controles informais de supridores (ou cartéis, como o NuclearSupplier’s Group, o Austrália Group e o Missile Technology Control Regime);

– e mecanismos de enforcement, ou internos ao regime, ou externos,como é o caso freqüente de recurso ao Conselho de Segurança. Na nossaanálise do caso iraquiano, são os dois primeiros e o quarto e últimoníveis que nos interessarão diretamente.

Como se viu pelos exemplos acima, este tipo ideal varia na prática,tanto em sua estrutura como em sua história. Assim, a norma escrita,ápice e justificativa do regime, surge quase sempre a posteriori, depoisque motivações de segurança a engendraram na prática. O exemploóbvio seria a área nuclear, que nunca conheceu o livre comércio, mascuja norma reguladora aparece apenas em 1968 com o TNP.

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O mesmo ocorre hoje com o MTCR, mecanismo informal decontrole sem respaldo em norma jurídica multilateralmente euniversalmente adotada, e que apesar disso aparece influenciandoindiretamente o tratamento do tema no caso do Iraque. Há casos, aocontrário, de regimes fortes no plano da norma, mas fracos na parteinstitucional, de que é exemplo a Convenção sobre Armas Biológicas.

Caberia enfatizar que o regime de não-proliferação nuclear vinhafundamentando sua legitimidade no argumento da eficácia, ao recordar-se que no final dos anos 50 e começo dos 60 previa-se – e temia-se – quepelos meados dos 70 já existiriam entre 15 e 20 Estados nuclearmentearmados, contra os cinco reconhecidos hoje, mais os dois ou trêsconsiderados correntemente como potências nucleares de facto (Israel,Índia e Paquistão).

Além da contração do montante total, aquelas análisesenfatizavam que mesmo a mera não assunção pública do status nucleartinha dois efeitos altamente positivos: o desincentivo a uma corridaarmamentista nuclear entre vizinhos ou global; e a modéstia dos arsenaisdos eventuais novos possuidores, impossibilitados que estão de testararmamentos e de proceder a uma instalação ostensiva.

Essa alegação de eficácia do tratado foi fortemente contestadaapós a descoberta do programa nuclear secreto iraquiano, levando aque as velhas questões relativas à ilegitimidade ou iniqüidade do TNPse vissem suplantadas progressivamente pela discussão sobre as brechasno regime – prólogo à questão da Unscom e do futuro da intrusividadeem verificação.

Esta evolução indica que se foi passando da discussão sobre avalidade da norma – tendo em vista sua peculiaridade, que é a de fixardireitos e deveres desigualmente – para a discussão sobre o cumprimentoda norma – que alude à sua efetividade. Para muitos autores, a crescenteforça da norma de não-proliferação nuclear estaria demonstrada pelaampla adesão ao TNP; e pela não divulgação por nenhum Estado de suacondição de detentor de armas nucleares desde a assinatura do tratado.Dunn observa que “global opinion increasingly has rejected the legitimacyof acquiring nuclear weapons”.

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Este papel da norma geral de não-proliferação como fundamentojurídico-ético do regime e sua relevância operativa são realçados porRoberts no trecho seguinte, que transcrevemos na íntegra por suarelevância:

These global regimes are important not only for their effect in limiting

the global spread of unconventional weapons; they also have the important

benefit of generating norms of state conduct. Those who see the world in

realpolitik terms decry the role of norms in polities, arguing correctly that

norms are irrelevant to those determined to act with contempt for the

standards of others. But policy realists too often miss the importance of

norms in generating the political consensus necessary to punish behavior

not consistent with those norms. Something of this mechanism was at work

in the sharp international reaction to Iraq’s annexation of Kuwait. Norms

based on the selective rejection of categories of weapons deemed unacceptable

create the foundation for sanctions, embargoes and arguably more direct

enforcement actions.

Para finalizar a discussão das características essenciais do regimede não-proliferação, podemos avançar a hipótese de que esse regimeoriginalmente colocava os Estados ante uma distribuição de benscoletivos segundo dois eixos de oposição diversos:

– de um lado, opunham-se os bens coletivos: segurança (ouestabilidade) e acesso científico-tecnológico autônomo (ou prosperidade viaenergia);

– de outro, podia-se contrastar dois outros bens coletivos: segurançaem geral (estabilidade) e segurança em particular (busca de capacidadenuclear bélica); ou ainda, expressado de outra forma, ganho absoluto(absolute gain) – paz, estabilidade do sistema internacional; e ganhorelativo (relative gain) – poder, autonomia ou prestígio.

A posição de países como Brasil, Argentina, Índia e Paquistão nopassado sempre enfrentou dificuldades de arregimentação de aliançascríticas do TNP porque (1) a maioria dos Estados periféricos preferia obem segurança ao bem acesso tecnológico ou usos pacíficos da energia nuclear,muito distante de suas possibilidades imediatas; (2) preferiam o bemsegurança em geral, via não-proliferação, ao risco de que o vizinho buscasse

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o bem segurança particular por meio de armas nucleares – isso era válidosobretudo na percepção negativa que tinham os pequenos estados dosgrandes de cada região; e portanto (3) o ganho absoluto ao ganho relativo.

Cabe ainda observar que, com o progressivo fechamento dasbrechas do regime e a erradicação quase total da possibilidade de caronas,deixou de funcionar a primeira oposição, porque hoje o acesso científico-tecnológico passa pela contribuição de cada país à segurança internacionale à estabilidade do sistema. Ao mesmo tempo, a expectativa de que esteacesso possa ser marcado pela autonomia é cada vez mais tênue.

Voltando aos pontos indicados acima, argumentação similar édesenvolvida por Krasner a partir de sua distinção entre poder relacional(relational power) e meta-poder (meta-power), como diferença entreaquelas ações que buscam maximizar valor dentro de uma estruturainstitucional e aquelas ações que procuram modificar as própriasinstituições. Este autor considera que o regime de não-proliferação temsobrevivido porque os embates entre os membros do regime são doprimeiro tipo – busca de posições relativas. Em suma, o prognóstico deKrasner sobre o regime de não-proliferação nuclear era favorável em1985, tendo em vista, adicionalmente, a não existência de controvérsiasconstitucionais no seu interior. Existiria acordo quanto aos princípiosbásicos e normas, embora talvez não sobre regras e processos decisórios.

Esta avaliação não levava em conta as propostas de “reformaconstitucional” defendidas por países como a Índia, mas há que reconhecerque esses esforços provêm de atores que não pertencem ao regime, e portantocarecem de maior eficácia e representatividade.

O elemento de acesso tecnológico e de acesso a fontes de energia,como anotamos, também está presente no regime, apesar das limitaçõesconhecidas. O regime, entretanto, tem menos capacidade de propiciarcooperação do que de denegá-la. Neste sentido deve ser entendida a seguinteobservação de Legault:

at the same time, the number of adherents to the MTCR continues togrow. Their goal is simple: non-proliferation. What they offer up to attain

this end is also straightforward: the creation of a vast zone of free-trade in

technology for those countries that know how to behave themselves.

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Na mesma linha se situa análise de Azambuja (1994):

Os termos básicos da equação com que se deparam os países em

desenvolvimento mais significativos – e não há mais do que um punhado

deles – me parecem claros: devem conquistar credibilidade para obteracesso. (...) Credibilidade significa, no contexto deste artigo, a capacidade

de ser percebido pelos outros sócios do cenário internacional como um

ator confiável e que não é movido por impulsos ideológicos, estratégicosou econômicos a violar, de forma grosseira, as regras do jogo que governam

a interação ordenada do convívio entre os Estados. Implica, a rigor, políticas

de autocontenção e a aceitação de certos conjuntos de normas decomportamento, formal ou informalmente estabelecidas.

7 – BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

Leituras Básicas

Bueno, C. e Cervo, A. L. C. História da Política Exterior do Brasil. SãoPaulo: Ática, 1992.

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Janeiro: Lacerda, 1999.Ricupero, R. Visões do Brasil: ensaio sobre a história e a inserção iternacional do

Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1995.Seixas Correia, L. F. de (Org.). A palavra do Brasil nas Nações Unidas (1946-

1995). Brasília: Funag, 1995.Recomenda-se, igualmente, a leitura das publicações do IPRI-Fundação

Alexandre de Gusmão (Funag) na Coleção Política Externa, a revistaParcerias Estratégicas, publicada pela Secretaria de AssuntosEstratégicos da Presidência da República, além de publicaçõesespecializadas como Política Externa (Paz e Terra), Carta Internacional

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(USP-FINEP-Funag), Contexto Internacional (IRI-PUC-Rio) e RevistaBrasileira de Política Internacional (IBRI).

Leituras Complementares

Bandeira, M. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1978.

Barbosa, M. G. A. Na diplomacia, o traço todo da vida. Rio de Janeiro:Record, 1992.

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Bueno, C. A República e sua política exterior (1889 a 1902). São Paulo/Brasília: Unesp-IPRI, 1995.

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Brasília: IPRI-Funag, 2002.Cardoso, A. J. S. O Brasil nas operações de paz das Nações Unidas. Brasília:

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SIGLAS

ACE Acordo de Complementação EconõmicaAelc Associação Européia de Livre ComércioAiea Agência Internacional de Energia Atômica

Aladi Associação Latino-Americana de IntegraçãoAlalc Associação Latino-Americana de Livre ComércioAlca Área de Livre Comércio das AméricasCeca Comunidade Européia do Carvão e do AçoCEI Comunidade dos Estados Independentes

Cepal Comissão Econômica para a América Latina e o CaribeCSCE Conferência sobre a Segurança e Cooperação Européia

ELN Exército de Libertação NacionalERP Exército Revolucionário do PovoESG Escola Superior de GuerraFarc Forças Armadas RevolucionáriasFMI Fundo Monetário InternacionalGatt Acordo Geral de Tarifa e Comércio

G-Rio Grupo do RioM19 Movimento Revolucionário 19 de AbrilMAI Acordo Multilateral de Investimento

MCE Mercado Comum EuropeuMercosul Mercado Comum do Sul

MIG Agência Multilateral de Garantia de InvestimentoMTCR Regime de Controle de Tecnologias de MísseisNafta Acordo de Livre Comércio da América do NorteNPIs Novos Países Industrializados

NWC National War ColleggeOCDE Organização para o Cooperação Econômica e o

DesenvolvimentoOCSE Organização para a Segurança e Cooperação Européia

OEA Organização dos Estados AmericanosOIC Organização Internacional do Comércio

OMC Organização Mundial de ComércioOPA Operação Pan-Americana

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Opaq Organização para a Proscrição das Armas QuímicasOSCE Organização de Segurança e Cooperação Européia

Otan Organização do Tratado do Atlântico NortePAC Política Agrícola Comum

PCUS Partido Comunista da União SoviéticaPEI Política Externa IndependentePice Programa de Integração e Cooperação Econômica Brasil-

ArgentinaRDA República Democrática AlemãRFA República Federal da Alemanha

SDRs Direitos Especiais de SaquesTEC Tarifa Externa ComumTiar Tratado Interamericano de Assistência Recíproca

TNP Tratado de Não-Proliferação NuclearTPI Tribunal Penal Internacional

Trim’s Medidas de Investimentos Relacionados a ComércioUE União Econômica

UEM União Eeconômica MonetáriaUnscom United Nations Special Commission

ZEEs Zonas Econômicas Especiais

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Título Manual do Candidato: Política Internacional

Autor Demétrio Magnoli

Coordernação editorial Ednete Lessa

Revisão de texto Ana Luiza Fiori Soares

Editoração eletrônica Samuel Tabosa de Castro

Capa Ingrid Rocha Comunicações

Formato 21 x 29,7 cm

Mancha gráfica 12,5 x 25,9 cm

Tipologia Times New Roman 12/17,8, textos Univers bold, 12, 14, aberturas

Papel Cartão Supremo 250 gm2 (capa) Ap 75 gm2 (miolo)

Número de páginas 380

Tiragem 2.000 exemplares

Impressão e acabamento Teixeira Gráfica e Editora Ltda.