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1 DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DIRECTIVO DA ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE (VERSÃO NÃO CONFIDENCIAL) Considerando as atribuições da Entidade Reguladora da Saúde conferidas pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio; Considerando os objectivos da actividade reguladora da Entidade Reguladora da Saúde estabelecidos no artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio; Considerando os poderes de supervisão da Entidade Reguladora da Saúde estabelecidos no artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio; Visto o processo registado sob o n.º ERS/056/11; I. DO PROCESSO I.1. Origem do presente processo 1. Em 20 de Junho de 2011, foi remetida à Entidade Reguladora da Saúde (doravante ERS) pelo Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde a denúncia de A., relativa à eventual recusa de emissão de atestado para renovação de carta de condução por uma médica de família da Unidade de Saúde Familiar de Joane (ora em diante USF de Joane), integrada no Agrupamento de Centros de Saúde Ave III – Famalicão (doravante designado de ACES Ave III), sito na Rua do Pavilhão, s/n, 4765-628 Delães.

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1

DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DIRECTIVO DA

ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE

(VERSÃO NÃO CONFIDENCIAL)

Considerando as atribuições da Entidade Reguladora da Saúde conferidas pelo artigo

3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;

Considerando os objectivos da actividade reguladora da Entidade Reguladora da

Saúde estabelecidos no artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;

Considerando os poderes de supervisão da Entidade Reguladora da Saúde

estabelecidos no artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;

Visto o processo registado sob o n.º ERS/056/11;

I. DO PROCESSO

I.1. Origem do presente processo

1. Em 20 de Junho de 2011, foi remetida à Entidade Reguladora da Saúde

(doravante ERS) pelo Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde a

denúncia de A., relativa à eventual recusa de emissão de atestado para renovação

de carta de condução por uma médica de família da Unidade de Saúde Familiar de

Joane (ora em diante USF de Joane), integrada no Agrupamento de Centros de

Saúde Ave III – Famalicão (doravante designado de ACES Ave III), sito na Rua do

Pavilhão, s/n, 4765-628 Delães.

2

2. A predita denúncia foi inicialmente tratada no âmbito do processo de avaliação

aberto sob registo n.º AV/584/11, sendo que, e após análise preliminar da mesma,

o Conselho Directivo da ERS, por despacho de 13 de Julho de 2011, ordenou a

abertura de inquérito registado sob o n.º ERS/056/11.

I.2. Da denúncia do utente

3. Concretamente, o exponente, por correio electrónico de 9 de Maio de 2011,

remetido para o Gabinete do Cidadão da Administração Regional de Saúde do

Norte, I.P. (doravante designada ARS Norte), solicitou esclarecimentos sobre se “O

médico de família no seu local de atendimento ou seja no centro de saúde, é

obrigado quando solicitado para tal, a passar atestado de saúde? Caso concreto:

Atestado para renovação de carta de condução.”.

4. Em resposta a tal solicitação, de 10 de Maio de 2011, o Gabinete do Cidadão da

ARS Norte informou o utente que os esclarecimentos sobre essa questão

poderiam ser consultados no portal da saúde1;

5. Bem como acrescentou que o Gabinete Jurídico da ARS Norte se havia já

pronunciado sobre essa questão mediante Parecer no qual era referido que,

“[I] não obstante a actividade do médico de família não se esgotar na

emissão de atestados, essa constitui também uma das suas obrigações.

Ao médico compete atestar a informação médica relativa aos seus

doentes, nomeadamente para os efeitos legalmente exigidos (dever de

informação).”.

6. Nessa sequência, por correio electrónico de 11 de Maio de 2011, veio o utente

concretizar a situação concreta ocorrida, referindo que, ao ter-se deslocado ao

Centro de Saúde de Joane para uma consulta com a sua médica de família, para

efeitos de obtenção de atestado médico para renovação de carta de condução,

esta “[I] negou-se, baseada numa circular da Ordem [dos Médicos], e por acordo

entre todos os clínicos [da USF] de Joane”, ainda que “[I] todos os clínicos dest[a]

[USF] na sua actividade privada o fa[çam].”

7. Posteriormente, o utente remeteu toda essa informação, por correio electrónico de

23 de Maio de 2011, para o Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde;

1http://www.portaldasaude.pt/portal/conteudos/informacoes+uteis/carta+de+conducao/cartacon

ducao.htm

3

8. Sendo que nessa sequência o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde emitiu o

seguinte Despacho, datado de 15 de Junho de 2011:

“Salvo melhor análise, a emissão de atestado para renovação da carta

de condução, faz parte da carteira de serviços do médico de MGF em

relação aos seus utentes. Quem melhor que o médico de família para,

conhecendo o cidadão em questão, confirmar a capacidade para

conduzir? [I]”;

9. Tendo ademais solicitado a avaliação da situação pela ERS.

I.3. Da exposição da ARSLVT

10. Em 5 de Julho de 2011, foi recepcionada a exposição da Administração Regional

de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. (doravante apenas designada ARSLVT),

mediante a qual foi solicitada orientação à ERS no que se refere “[I] à

legitimidade de eventuais recusas dos médicos de família aquando das

solicitações apresentadas por utentes para efeitos de renovação de cartas de

condução.”.

11. Concretamente, na exposição é feita referência a alguma legislação e outra

documentação relativa à questão apresentada pela ARSLVT, designadamente:

(i) o Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de Fevereiro2, tal como

republicado pelo Decreto-Lei n.º 174/2009, de 3 de Agosto, que,

no ponto 3 do seu anexo III, estabelece relativamente aos

condutores integrados no grupo 13 que “os candidatos são sujeitos

a exame médico efectuado por médico no exercício da sua

profissão.”;

(ii) a Circular Informativa da Direcção-Geral de Saúde n.º 16/DSPS

de 23 de Maio de 2005, que pretendeu clarificar o supra

mencionado diploma legal, e que refere que “[I] as normas que

2 O qual transpôs para ordem jurídica nacional a directiva n.º 2000/56/CE, da Comissão, de 14

de Setembro, no que diz respeito aos conteúdos programáticos das provas de exame e

códigos comunitários harmonizados, e procede à reestruturação, num único diploma, dos

vectores essenciais, de definição comunitária, relativos à carta de condução.

3 O grupo 1 integra os condutores de veículos das categorias A, B e B+E e das subcategorias

A1 e B1.

4

passarão a vigorar são as seguintes: Grupo 1 – Os candidatos à

emissão ou renovação de uma carta de condução pertencentes a

este grupo são sujeitos a exame médico efectuado por médico no

exercício da sua profissão.”;

(iii) a Portaria n.º 1368/2007, de 18 de Outubro, que define a Carteira

Básica de Serviços das USF, e que estabelece, na alínea d) do

número 5, do ponto II, do anexo I “[I] como atribuições médicas a

certificação de estados de saúde e de doença que surgirem como

sequência de actos médicos praticados e emissão de declarações

específicas pedidas pelos utentes, desde que inseridas no estrito

cumprimento da resposta ao direito à saúde dos cidadãos”;

(iv) a posição do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos

Médicos, publicada na Revista da Ordem dos Médicos, de Março

de 2007, onde é referido que “[I] a obtenção de licença de

condução, licença desportiva ou reconhecimento da aptidão física

para a sua prática não se inserem no âmbito de solidariedade

social e portanto, não constituem uma obrigação para o médico

que trabalha no Serviço Nacional de Saúde. Tal não invalida que o

médico, por sua livre opção, o decida fazer.”.

12. Mais acrescenta a ARSLVT ter tomado conhecimento de uma reclamação de um

utente de um centro de saúde da sua área de jurisdição, junto do ACES respectivo,

“[I] insurgindo-se contra o facto de para efeitos de renovação de carta de

condução, ter solicitado ao seu médico de família, e este [I] [ter alegadamente]

recusado, a emissão de atestado [I]”;

13. Tendo o profissional médico do ACES em questão justificado tal conduta com o

facto de “[a] atestação de actos de foro da responsabilidade individual, como a

emissão de atestados que visam assegurar a obtenção de licença para actividades

que se inscrevem no interesse individual e privado do cidadão como a licença de

condução, carta de caçador e outras, não faz parte do conteúdo funcional do

médico do Serviço Nacional de Saúde”, acrescentando que “ milhares de utentes

do [centro de saúde em causa] não têm médico de família pelo que [dão]

preferência ao atendimento destes utentes em detrimento da passagem daqueles

atestados.”

14. Mais concluiu a ARSLVT, que o médico de família “[I] pode efectuar exame e

passar o atestado médico para renovação da carta de condução de veículos das

5

categorias A e B, B+E e das Sub categorias A1 e B1, isto é, pode o exame ser

efectuado por qualquer médico no exercício da sua profissão [I] até porque estão

na posse de todo o histórico do utente [I]”;

15. Sendo seu entendimento que “seria mesmo estranho que [I] o médico de família

colocado a trabalhar no âmbito de um ACES, se declarasse impedido de

passagem de atestado médico para efeitos de exames de condução aos utentes

que acompanha [I] (e de que [é] muitas vezes o seu único médico), e, por outro

lado, aquele mesmo médico procedesse ao atendimento em atendimento privado

(e remunerado para o efeito), neste caso por se considerar dentro do seu conteúdo

funcional.” - cfr. exposição da ARSLVT, de 29 de Junho de 2011, junta aos autos.

I.4. Diligências

16. No âmbito da investigação desenvolvida pela ERS, realizaram-se, entre outras, as

diligências consubstanciadas

(i) em pesquisa no Portal da Saúde da USF de Joane e do ACES Ave III4;

(ii) no pedido de elementos ao ACES Ave III, de 22 de Agosto de 2011, e

respondido em 29 de Agosto de 2011;

(iii) no pedido de elementos à USF de Joane, de 22 de Agosto de 2011, e

respondido a 2 de Setembro de 2011.

II. DOS FACTOS

II.1. Factos relativos à resposta do ACES Ave III ao pedido de informação da ERS

de 22 de Agosto de 2011

17. Das exposições recebidas pela ERS, resultava então a alegada situação de recusa

de emissão de atestado para renovação de carta de condução pelos médicos de

família, em concreto de uma médica de família da USF de Joane e de um médico

de família de um Centro de Saúde da área de jurisdição da ARSLVT;

4 http://www.portaldasaude.pt/

6

18. Revelando-se necessário proceder à recolha de informação adicional, junto do

ACES Ave III, para averiguar com maior profundidade a situação em análise, foi-

lhe solicitado, por ofício de 22 de Agosto de 2011, que procedesse à concretização

da situação apresentada, designadamente:

“[I]

1. Se tem conhecimento de situações idênticas à exposta que tenham

ocorrido em diferentes unidades funcionais integradas no ACES Ave III e,

em caso afirmativo, identificação do(s) prestador(es) em causa;

2. Dos fundamentos que legitimam tal prática e se os mesmos constam,

designadamente, de uma circular da Ordem dos Médicos, conforme

enunciado pelo utente;

3. Envio dos demais esclarecimentos complementares julgados necessários

e relevantes à análise do caso concreto.”.

19. Na sua resposta, datada de 29 de Agosto de 2011, veio o ACES Ave III informar a

ERS que:

“[I]

1. [Teve] conhecimento de uma reclamação do utente [M.], de 12/04/2011

na Extensão de Saúde Urbana. Este utente não tem médico de família e

como tal a situação teve lugar na consulta de recurso. Mais se refere que

neste caso o utente não chegou a ter consulta por ter sido informado de

que aquele tipo de atestados não era passado a nível da consulta de

Medicina Geral e Familiar.

2. A situação de não obrigatoriedade dos atestados para carta de condução

terem que ser emitidos pelo médico de família advém do parecer do

Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos [I], e de parecer

jurídico do Sindicato dos Médicos da Zona Sul [I]. De acrescentar que já

há algum tempo este assunto foi debatido com a tutela (Sub-Região de

Saúde de Braga), tendo sido enviado por e-mail, nessa altura,

esclarecimento sobre o assunto pelo Director do Serviço de Saúde

(DSS), Dr. [J.] [I].

3. Como esclarecimento complementar anex[a] resposta à pergunta

formulada pelo Coordenador da Unidade de Saúde Familiar de Joane, Dr.

7

[R.], à data de 25/05/2011 (Doc. 4).”. – cfr. resposta do ACES Ave III, de

29 de Agosto de 2011, e respectivos anexos, juntos aos autos.

20. Do que resulta dos documentos referidos supra, anexados à exposição, e no que

aqui importa referir, o Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos

reiterou, em Março de 2011, o seu parecer de que “[I] os médicos que trabalham

no Serviço Nacional de Saúde só deverão certificar estados de saúde e de doença

que surjam na sequência dos actos médicos efectivamente praticados.”;

21. Sendo entendimento daquele Conselho “[I] que a obtenção de licença de

condução, carta de caçador, licença desportiva ou reconhecimento de aptidão

física para a sua prática não se inserem no âmbito de solidariedade social e

portanto, não constituem uma obrigação para o médico que trabalha no Serviço

Nacional de Saúde.”;

22. Não obstante, “Tal entendimento não invalida que o médico, por sua livre opção, o

decida fazer.”. – cfr. Informação constante da Revista da Ordem dos Médicos, de

Março de 2007, anexa à resposta de 29 de Agosto de 2011, junta aos autos.

23. Ademais, do que se extrai do Parecer n.º 27/2011 do Sindicato dos Médicos da

Zona Sul, a “[I] avaliação isolada e à margem de quaisquer cuidados de saúde

efectivamente prestados, exclusivamente destinada à atestação da aptidão física e

mental exigida, por lei, para o exercício da condução de veículos - sem prejuízo,

evidentemente, da sua natureza de acto médico - é, em rigor, exterior às

actividades de prestação de cuidados, de promoção da saúde e de prevenção da

doença.”;

24. Pelo que “[I] não se insere, propriamente, no elenco das actividades materiais

que ao Estado cabe assegurar e desenvolver, através do Serviço Nacional de

Saúde, em ordem à plena e efectiva concretização do direito constitucional dos

cidadão à protecção da saúde (artigo 64.º da CRP, desenvolvido, entre outros

instrumentos normativos, pela LBS).”;

25. Motivo pelo qual, segundo esse Sindicato, “[I] tal actividade de avaliação médica

não se encontr[a] prevista no conteúdo funcional típico dos médicos de medicina

geral e familiar integrados na carreira especial médica (artigos 11.º a 13.º do DL

177/2009 e cláusula 11.ª do ACCE).”.

26. Do que decorre, em jeito de conclusão, da explicitação tal como constante no

Parecer do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, que “[I] a referida avaliação

8

médica, para os candidatos e condutores do grupo 1 previsto na alínea a) do artigo

1.º do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC), pode ser

efectuada por qualquer médico, independentemente da sua área profissional e da

natureza jurídica do regime de exercício da sua actividade profissional prosseguida

[I]”;

27. Não obstante, “[I] não constitui obrigação legal para os médicos de medicina

geral e familiar da carreira especial médica que, em regime de contrato de trabalho

em funções públicas, exercem a sua actividade profissional nos estabelecimentos

públicos prestadores de cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de

Saúde, designadamente nos centros de saúde.” – cfr. Parecer n.º 27/2011 do

Sindicato dos Médicos da Zona Sul, anexo à resposta de 29 de Agosto de 2011,

junto aos autos.

II.2. Factos relativos à resposta da USF de Joane ao pedido de informação da

ERS de 22 de Agosto de 2011

28. Igualmente, em 22 de Agosto de 2011, foi ainda solicitado à USF de Joane, que

concretizasse a situação por si apresentada, designadamente:

“[I]

1. Se tem conhecimento da situação denunciada relativamente ao concreto

utente e se a recusa de emissão de atestado médico para renovação da

carta de condução se assume como uma prática adoptada por todos os

profissionais médicos da USF de Joane;

2. No caso afirmativo, indicação dos fundamentos que legitimam tal prática

e se os mesmos constam, designadamente, de uma circular da Ordem

dos Médicos, conforme enunciado pelo utente;

3. Informação sobre eventuais desenvolvimentos relativos à situação do

utente em causa, bem como envio de quaisquer outros elementos,

esclarecimentos adicionais ou documentos que considere relevantes para

o enquadramento da questão em crítica.”.

29. Na sua resposta de 2 de Setembro de 2011, veio aquela USF, esclarecer:

“[I]

9

1. [Ter tido] conhecimento da situação denunciada aquando do contacto

telefónico da Dra. [M.], da Direcção Geral de Saúde, à qual [prestou]

todas as informações solicitadas, bem como [facultou] os pareceres da

Ordem dos Médicos e da ARS Norte [I] [sendo que a conduta

apresentada] é uma prática [adoptada] por todos os profissionais,

médicos da USF de Joane.

2. A situação que na opinião dos profissionais, legitima a não

obrigatoriedade dos atestados para carta de condução, terem que ser

emitidos pelo médico de família, é consubstanciada no parecer da Ordem

dos Médicos [I];

3. Na sequência do processo, [solicitou] informação à ARS Norte, acerca do

procedimento [adoptado] na USF de Joane, em 18/05/2011, e [obteve] as

respostas em anexo.”. – cfr. resposta da USF de Joane, de 2 de

Setembro de 2011, e respectivos anexos, juntos aos autos.

30. Faz-se notar, que tal pedido de informação da USF de Joane de 18 de Maio de

2011 – no qual é questionado sobre se os médicos de família nos Centros de

Saúde são obrigados “[I] a preencher todo e qualquer atestado do foro da

responsabilidade individual que vise [I] assegurar a obtenção de licenças para

actividades que se inscrevem no interesse individual e privado do cidadão

(nomeadamente carta de caçador, carta de condução, carta de barco, atestado

para frequentar ginásios e piscinas, etc.).” – não contém qualquer tipo de

destinatário, não permitindo confirmar que o mesmo tivesse sido remetido

directamente para a ARS Norte;

31. Sendo que a resposta, junta aos autos, é elaborada não pela ARS Norte mas pelo

ACES Ave III, embora contendo em epígrafe a menção “pedido de informação à

ARS Norte”.

32. Nessa resposta, o ACES Ave III esclarece que:

“[I]

1. O dever de informação é um dever incontestável do médico de família

quando solicitada por escrito pelo próprio utente;

2. Segundo orientações da Ordem dos Médicos não haverá obrigatoriedade

da emissão de cartas de condução;

3. A emissão de relatório comprovativo do estado de saúde ou doença de

um utente deverá ser emitido em papel timbrado do Serviço Nacional de

Saúde;

10

4. Em conclusão, [R] a obrigatoriedade de informação nunca esteve em

causa, não sendo contudo obrigatório a emissão de atestados para carta

de condução, caçador, barco, etc.” – cfr. resposta do ACES Ave III à USF

de Joane, de 25 de Maio de 2011, anexa à resposta de 2 de Setembro de

2011, junta aos autos.

III. DO DIREITO

III.1. Das atribuições e competências da ERS

33. De acordo com o n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, a

ERS tem por missão a regulação da actividade dos estabelecimentos prestadores

de cuidados de saúde.

34. Sendo que estão sujeitos à regulação da ERS, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do

Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, “[...] todos os estabelecimentos

prestadores de cuidados de saúde, do sector público, privado e social,

independentemente da sua natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas,

centros de saúde, laboratórios de análises clínicas, termas e consultórios”

(sublinhado nosso).

35. É manifestamente esse o caso da USF de Joane, integrada no ACES Ave III.

36. As atribuições da ERS, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-

Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, compreendem “[I] a supervisão da actividade e

funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde no que

respeita:

[I]

b) À garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde e dos

demais direitos dos utentes;

c) À legalidade e transparência das relações económicas entre os diversos

operadores, entidades financiadoras e utentes.”.

37. Por seu lado, constituem objectivos da actividade reguladora da ERS, em geral,

nos termos do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio:

11

“[I]

b) Assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de

saúde, nos termos da Constituição e da lei;

c) Garantir os direitos e interesses legítimos dos utentes;

[I]”.

38. No que se refere ao objectivo regulatório previsto nas alíneas b) e c), ambas do

artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, de assegurar o

cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de saúde e de garantir os

direitos e interesses legítimos dos utentes, a alínea a) do artigo 35.º do Decreto-Lei

n.º 127/2009, de 27 de Maio, estabelece ser incumbência da ERS “assegurar o

direito de acesso universal e equitativo aos serviços públicos de saúde ou

publicamente financiados”;

39. Incluindo-se ainda nos objectivos regulatórios da ERS, nos termos do artigo 37.º

do Decreto-lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, pronunciar-se sobre questões

relacionadas com “[I] as relações entre o SNS e os operadores privados, tendo

em vista o fomento da transparência, da eficiência e da equidade do sector, bem

como a defesa do interesse público e dos interesses dos utentes” (alínea a) do

referido artigo 37.º);

40. Podendo a ERS assegurar tais incumbências mediante o exercício dos seus

poderes de supervisão – consubstanciado, designadamente, “no dever de velar

pela aplicação das leis e regulamentos e demais normas aplicáveis às actividades

sujeitas à sua regulação” - bem como mediante a emissão de ordens e instruções,

bem como recomendações ou advertências individuais, sempre que tal seja

necessário – cfr. alínea b) do artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de

Maio.

41. O que aqui está em análise é, portanto, saber se a emissão de atestados constitui

uma prestação de cuidados de saúde, e nessa medida não deva deixar de ser

efectuada pelos profissionais médicos a exercer funções nas unidades de

cuidados primários integradas no SNS.

42. Refira-se que tem sido entendimento da ERS, aliás expresso por exemplo no

Parecer relativo às Taxas de Saúde Pública emitido no âmbito do processo de

inquérito n.º ERS/009/11, onde se refere que se entendem por “cuidados de

12

saúde” todas aquelas actividades que tenham por objecto a prevenção, promoção,

restabelecimento ou manutenção da saúde, bem como o diagnóstico, o

tratamento/terapêutica e reabilitação, e que visem atingir e garantir uma situação

de ausência de doença e/ou um estado de bem-estar físico e mental.

43. Ora, os atestados médicos, ao visarem a prevenção de determinadas doenças e a

promoção quer da saúde individual quer da saúde pública, não podem deixar de

ser integrados naquele conceito de “cuidados de saúde”;

44. Tal como ao representarem a corporização e exteriorização de um diagnóstico –

mesmo que seja lato sensu sobre o estado geral de saúde de dado utente –

constituem, também por isso, um acto integrado em tal conceito de “cuidados de

saúde”.

45. É também por isso que a emissão de atestados se encontra, assim, reservada aos

profissionais de saúde médicos, enquanto acto integrado exclusivamente no

exercício de funções médicas.

46. Assim, atendendo a que quer a exposição apresentada pelo utente A., quer o

ofício da ARSLVT, vinham relatar uma alegada recusa por parte dos médicos de

família das unidades de cuidados primários em emitir atestados médicos aos seus

utentes, embora o continuassem a fazer no âmbito da sua actividade privada;

47. E que dos elementos de prova juntos quer pelos exponentes (utente A. e

ARSLVT), quer pelas entidades visadas, designadamente USF de Joane e ACES

Ave III, se verificava uma não uniformidade de entendimento(s) sobre a

obrigatoriedade, ou não, de os médicos de família emitirem atestados médicos

para renovação de cartas de condução, quando em exercício de funções no sector

público;

48. Não pode deixar de justificar-se uma intervenção regulatória da ERS, no sentido

de garantir junto das ARS uma actuação unívoca e uniforme de todos os

profissionais de saúde (em especial dos médicos de família) a exercer funções nas

unidades de cuidados primários no que se refere à emissão de atestados médicos

que comprovem a situação física e mental dos utentes para fins como obtenção ou

renovação de carta de condução.

13

III.2. Da emissão de atestados médicos para obtenção ou renovação de carta de

condução

III.2.1. Enquadramento legal

49. O Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de Fevereiro5, tal como republicado pelo Decreto-

Lei n.º 174/2009, de 3 de Agosto, estabelece no ponto 3 do seu anexo III, por

remissão do n.º 1 do artigo 8.º, “as normas mínimas relativas à aptidão física e

mental para a condução de um veículo a motor”.

50. Assim, os candidatos ou condutores de veículos das categorias A, B e B+E e das

subcategorias A1 e B1, ou seja, do grupo 1, “[I] são sujeitos a exame médico

efectuado por médico no exercício da sua profissão.” – cfr. ponto 3 do anexo III do

referido diploma legal.

51. Já os candidatos ou condutores de veículos das restantes categorias ou das

categorias B e B+E que pretendam exercer condução de ambulância, veículos de

bombeiros, automóveis de passageiros de aluguer, transporte escolar e de

mercadorias perigosas, ou seja, do grupo 2, “[I] são sujeitos a um exame médico

especial antes da emissão da licença de aprendizagem e, subsequentemente, os

condutores são sujeitos a exames periódicos prescritos para a revalidação das

categorias e subcategorias averbadas na carta de condução, ambos efectuados

pela autoridade de saúde da área da residência constante do bilhete de identidade

do examinando.” – cfr. ponto 4 do anexo III do referido diploma legal.

52. Nas demais disposições do anexo III do Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de

Fevereiro, o legislador estabelece as diversas componentes que devem ser tidas

em consideração para efeito de aferição da aptidão física e mental para a

condução, no que se refere à visão, audição, aparelho de locomoção, doenças

5 O qual transpôs para ordem jurídica nacional a directiva n.º 2000/56/CE, da Comissão, de 14

de Setembro, no que diz respeito aos conteúdos programáticos das provas de exame e

códigos comunitários harmonizados, e procede à reestruturação, num único diploma, dos

vectores essenciais, de definição comunitária, relativos à carta de condução.

14

cardiovasculares, diabetes mellitus, doenças neurológicas, perturbações mentais,

álcool, drogas e medicamentos e insuficiências renais.

53. Tal anexo foi, no entanto, formalmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 313/2009, de

27 de Outubro, que aprovou o Regulamento da habilitação legal para conduzir, o

qual estabeleceu que enquanto não forem criados os centros de avaliação médica

psicológica (CAMP) “[I] a avaliação da aptidão física, mental e psicológica é

efectuada:

a) Por médico no exercício da sua profissão, para os candidatos ou condutores do

grupo 1;

b) Pela autoridade de saúde da área da sua residência, quanto à aptidão física e

mental, e por laboratório de psicologia, quanto à avaliação psicológica, para os

candidatos ou condutores do grupo 2.” – cfr. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 313/2009,

de 27 de Outubro.

54. Do exposto resulta então que enquanto não forem criados os referidos CAMP

destinados a proceder à avaliação da aptidão física, mental e psicológica dos

candidatos à obtenção ou renovação de carta de condução, tal tarefa, no caso dos

condutores do grupo 1, é exercida por médico no exercício da sua profissão;

55. O que desde logo, não permite excluir de tal função os médicos de família que

exercem funções nas unidades de cuidados primários;

56. E constitui base legal manifestamente suficiente e clara para se poder concluir

liminarmente que existe uma obrigação legal de emissão de atestados, para os

efeitos aqui considerados, pelos médicos integrados no SNS e, em particular, a

exercer funções nas unidades de cuidados primários.

III.2.2. Da sua inclusão no conceito de “cuidados de saúde”

57. Sem prejuízo do vindo de referir no ponto anterior, e que manifestamente

esclarece a situação, com carácter imperativo por decorrência de Lei;

58. Refira-se ainda que o conceito de “saúde”, vulgarmente aceite, e adoptado pela

Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), à qual Portugal aderiu em

13 de Fevereiro de 1948, determina que “a saúde é um estado de completo bem-

estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou

enfermidade”.

15

59. Assim, é possível definir “cuidados de saúde” como integrando todas aquelas

actividades que tenham por objecto a prevenção, promoção, restabelecimento ou

manutenção da saúde, bem como o diagnóstico, o tratamento/terapêutica e

reabilitação, e que visem atingir e garantir uma situação de ausência de doença

e/ou um estado de bem-estar físico e mental.

60. Importa então analisar se avaliação médica e consequente emissão de atestado

para efeito de obtenção ou renovação de carta de condução, se integra ainda, ou

não, em tal conceito de cuidados de saúde;

61. Fazendo-se notar que para tal não basta o preenchimento do conceito material de

cuidados de saúde que supra se apresentou;

62. Implica ainda que os actos em questão sejam prestados num estabelecimento

prestador de cuidados de saúde;

63. Por profissionais devidamente habilitados;

64. E prestados a pessoas em função de necessidades ou exigências concretas;

65. E relacionados com a sua saúde, ou prevenção desta.

66. Ou seja, e ainda que a actividade principal dos médicos não deva ser a de

emissão de atestados médicos;

67. O facto de os mesmos visarem a prevenção de determinadas doenças e a

promoção quer da saúde individual quer da saúde pública, ou seja, de

pretenderem atestar a aptidão física e mental de determinadas pessoas de forma a

assegurar que as mesmas não coloquem em crise, pelo exercício de determinadas

actividades (como in casu a condução de veículos a motor), o seu próprio estado

de saúde, ou de terceiros;

68. Não podem obviamente deixar de contribuir para um tal estado de ausência de

doença e enfermidade, bem como para um estado de bem-estar físico e mental de

um concreto indivíduo e da população em geral.

69. Efectivamente, os atestados médicos

(i) destinam-se a atestar uma situação de ausência (ou não) de

doença e/ou um estado de existência (ou não) de bem-estar físico e

mental;

(ii) representam a corporização e exteriorização de um diagnóstico –

mesmo que seja lato sensu sobre o estado geral de saúde de dado

utente;

16

(iii) são praticados por médico no exercício da sua profissão;

(iv) têm como destinatários indivíduos em concreto; e

(v) consistem em actividades destinadas à defesa da saúde pública, de

prevenção da doença e de promoção e protecção da saúde;

70. Pelo que não podem deixar de ser considerados como se integrando no âmbito da

prestação de cuidados de saúde.

III.2.3. Da sua inclusão no âmbito do direito à protecção da saúde

71. Recorde-se que a situação em análise no presente processo, em que os

profissionais médicos de algumas unidades de cuidados primários, nomeadamente

da USF de Joane, se recusaram a emitir atestados médicos para efeitos de

obtenção ou renovação de cartas de condução, prende-se, desde logo, com a

posição do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, publicada na

Revista da Ordem dos Médicos, de Março de 2007, onde é referido que “[I] a

obtenção de licença de condução, licença desportiva ou reconhecimento da

aptidão física para a sua prática não se inserem no âmbito de solidariedade social

e portanto, não constituem uma obrigação para o médico que trabalha no Serviço

Nacional de Saúde.”.

72. Em igual sentido, se pronunciou o Sindicato dos Médicos da Zona Sul, ao referir

que a “[I] avaliação isolada e à margem de quaisquer cuidados de saúde

efectivamente prestados, exclusivamente destinada à atestação da aptidão física e

mental exigida, por lei, para o exercício da condução de veículos - sem prejuízo,

evidentemente, da sua natureza de acto médico - é, em rigor, exterior às

actividades de prestação de cuidados, de promoção da saúde e de prevenção da

doença.”;

73. Pelo que, “[I] não se insere, propriamente, no elenco das actividades materiais

que ao Estado cabe assegurar e desenvolver, através do Serviço Nacional de

Saúde, em ordem à plena e efectiva concretização do direito constitucional dos

cidadão à protecção da saúde (artigo 64.º da CRP, desenvolvido, entre outros

instrumentos normativos, pela LBS).”.

74. De acordo com tais interpretações, a avaliação médica e consequente emissão de

atestado médico destinada a atestar a aptidão física e mental dos condutores para

17

a obtenção e renovação de carta de condução, não se integraria no elenco das

actividades destinadas à concretização do direito à protecção da saúde.

75. Contudo, não se pode concordar com a exclusão de actividades que claramente se

integram, como visto, no conceito de prestação de cuidados de saúde do âmbito

da concretização do direito à protecção da saúde conforme consagrado no artigo

64.º da CRP; senão vejamos,

76. Um tal direito consagrado na referida norma constitucional, e que garante o acesso

dos cidadãos aos cuidados de saúde no âmbito do SNS, deve ser assegurado em

respeito pelos princípios fundamentais plasmados naquele preceito constitucional,

designadamente, a universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial.

77. Por seu lado, a Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de

Agosto, em concretização da imposição constitucional contida no referido preceito,

estabelece na sua Base XXIV como características do SNS:

“a) Ser universal quanto à população abrangida;

b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;

c) Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as

condições económicas e sociais dos cidadãos”

d) Garantir a equidade no acesso dos utentes, com o objectivo de

atenuar os efeitos das desigualdades económicas, geográficas e

quaisquer outras no acesso aos cuidados;

[I]”.

78. Assim, resulta que o acesso dos utentes aos cuidados de saúde implica, nos

termos da Constituição e mais concretamente do seu artigo 64.º, a garantia de um

acesso

i) universal (deve-se garantir que o acesso aos cuidados de saúde é

assegurado a todos os cidadãos);

ii) geral (determinação do tipo de cuidados de saúde que devem ser

abrangidos pelo SNS);

iii) igual e equitativo (os cidadãos em situação idêntica devem receber

tratamento semelhante e os cidadãos em situação distinta devem

receber tratamento distinto); e

18

iv) em tempo útil em função da necessidade de cuidados de saúde; e

ainda

v) tendencialmente gratuito e com respeito dos preços administrativos

(taxas moderadoras).

79. No que se refere à alínea b) da Base XXIV da LBS, que é aquela cuja análise aqui

interessa, a generalidade do SNS refere-se à determinação do tipo de cuidados de

saúde que devem ser abrangidos pelo SNS, impondo-se que garanta, com maior

ou menor grau, uma prestação integrada de cuidados globais de saúde aos seus

beneficiários.

80. O princípio da generalidade aponta para o direito dos cidadãos a obter todo o tipo

de cuidados de saúde, pelo que o Estado com o intuito de assegurar a realização

do direito à protecção da saúde deverá “garantir uma racional e eficiente cobertura

de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde” - cfr. alínea b) do n.º 3

do artigo 64.º da CRP.

81. Ou seja, conforme consta da alínea b) da Base XXIV da LBS, tem o cidadão o

direito a que lhe sejam prestados integradamente todos os cuidados de saúde,

sejam primários, diferenciados, continuados ou até paliativos.

82. Assim, e no que importa realçar, resulta claro que o permanente cumprimento das

características da generalidade do SNS implica a existência de regras que

garantam que um qualquer utente obterá, junto do SNS e em qualquer situação, a

prestação de todos cuidados de saúde que efectivamente necessite.

83. Assim, e tendo-se concluído que a avaliação médica e consequente emissão de

atestado sobre a aptidão física e mental para efeito de obtenção ou renovação de

carta de condução se integra no conceito de cuidados de saúde;

84. E não se prevendo, actualmente, à luz do texto constitucional, a possibilidade de

alguma forma se determinar ou limitar as actividades integradas no âmbito da

prestação de cuidados de saúde no SNS;

85. Não se pode deixar de considerar a avaliação médica e a emissão de atestados

médicos como integradas no âmbito da garantia do direito à protecção da saúde.

86. Efectivamente, e embora a Lei de Bases da Saúde, mais concretamente a Base

XXXV, previsse a possibilidade de “[a lei poder] especificar as prestações

garantidas aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde ou excluir do objecto

dessas prestações cuidados não justificados pelo estado de saúde”;

87. Certo é que tal não veio ainda a ocorrer;

19

88. E no que concretamente respeita à avaliação médica e à emissão de atestados

médicos também não existe nenhum diploma legal que exclua tal actividade do

âmbito dos cuidados de saúde a serem prestados pelos profissionais médicos a

exercerem funções nos estabelecimentos integrados no SNS;

89. Bem pelo contrário, o legislador veio tomar expressa e clara posição no sentido de

os mesmos serem emitidos “por médico no exercício da sua profissão” – cfr.

Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de Fevereiro e Decreto-Lei n.º 313/2009, de 27 de

Outubro.

90. Não se podendo aceitar, obviamente, que tal exclusão possa ser efectuada

mediante Parecer emitido por uma Ordem Profissional, e ainda com efeito não no

exercício de profissão liberal, mas no âmbito dos actos praticados pelos

profissionais médicos em estabelecimentos integrados no SNS;

91. Os quais, ademais, e que aqui se refute expressamente, não se dedicam a

actividades de “solidariedade social”, mas sim ao cumprimento de uma obrigação

de garantia de acesso a cuidados de saúde constitucionalmente imposta.

92. Portanto, é também claro por este aspecto que tal actividade se integra no

conteúdo funcional da categoria de assistente, nos termos do disposto no artigo

11.º do Decreto-Lei n.º 177/2009, de 4 de Agosto, que estabelece o regime da

carreira especial médica;

93. Em especial na sua alínea a), que estabelece ser seu dever “Prestar cuidados de

saúde mediante a prática de actos médicos do âmbito da sua especialidade, sob a

sua responsabilidade directa ou sob responsabilidade da equipa na qual o médico

esteja integrado”.

94. Ora, cabendo ao médico da especialidade de medicina geral e familiar que exerce

as funções de médico de família de um utente, no concreto centro de saúde em

que o mesmo se encontra integrado, fazer o acompanhamento permanente do

mesmo;

95. E sendo ele quem melhor conhece, em cada momento, a concreta situação de

ausência de doença e/ou de estado de bem-estar físico e mental do seu utente;

96. Será obviamente tal profissional médico que estará em melhores condições de

atestar a aptidão física e mental para conduzir;

97. Não se podendo, pelo contrário, compreender que um utente que seja

permanentemente seguido pelo seu médico de família se veja na obrigação de,

necessitando de uma avaliação médica e consequente atestação da sua aptidão

20

física e mental, procurar, no sector privado, um outro profissional médico que

ademais poderá não ser conhecedor do seu historial clínico;

98. E muito menos se compreende que tivesse que procurar o seu médico de família,

mas fora do local onde aquele o habitualmente acompanha;

99. Apenas porque este, sem qualquer base legal que o fundamente, se recusa à

emissão de atestados no exercício de funções públicas;

100. Mas já não no exercício de funções privadas.

III.3. Da análise da situação concreta

101. Recorde-se que o ACES Ave III alegou que a situação de não obrigatoriedade

dos atestados para carta de condução terem que ser emitidos pelo médico de

família era o resultado de um Parecer emitido Conselho Nacional Executivo da

Ordem dos Médicos, no qual era referido que “[I] os médicos que trabalham no

Serviço Nacional de Saúde só deverão certificar estados de saúde e de doença

que surjam na sequência dos actos médicos efectivamente praticados.”;

102. Uma vez “[I] que a obtenção de licença de condução, carta de caçador,

licença desportiva ou reconhecimento de aptidão física para a sua prática não se

inserem no âmbito de solidariedade social e portanto, não constituem uma

obrigação para o médico que trabalha no Serviço Nacional de Saúde.”.

103. Mais fundamentou a posição adoptada pelos médicos que exercem funções

nesse ACES, com base no Parecer jurídico do Sindicato dos Médicos da Zona Sul

onde era referido que a “[I] avaliação isolada e à margem de quaisquer cuidados

de saúde efectivamente prestados, exclusivamente destinada à atestação da

aptidão física e mental exigida, por lei, para o exercício da condução de veículos -

sem prejuízo, evidentemente, da sua natureza de acto médico - é, em rigor,

exterior às actividades de prestação de cuidados, de promoção da saúde e de

prevenção da doença.”;

104. Pelo que “[I] não se insere, propriamente, no elenco das actividades materiais

que ao Estado cabe assegurar e desenvolver, através do Serviço Nacional de

Saúde, em ordem à plena e efectiva concretização do direito constitucional dos

cidadão à protecção da saúde (artigo 64.º da CRP, desenvolvido, entre outros

instrumentos normativos, pela LBS).”.

105. Posição diferente foi assumida quer pelo Senhor Secretário de Estado Adjunto

e da Saúde – segundo o qual “[I] a emissão de atestado para renovação da carta

21

de condução, faz parte da carteira de serviços do médico de MGF em relação aos

seus utentes. Quem melhor que o médico de família para, conhecendo o cidadão

em questão, confirmar a capacidade para conduzir? [I]” – cfr. Despacho de 15 de

Junho de 2011, junto aos autos;

106. Quer pela ARSLVT, que concluiu que o médico de família “[I] pode efectuar

exame e passar o atestado médico para renovação da carta de condução de

veículos das categorias A e B, B+E e das Sub categorias A1 e B1, isto é, pode o

exame ser efectuado por qualquer médico no exercício da sua profissão [I] até

porque estão na posse de todo o histórico do utente [I]”;

107. Sendo seu entendimento que “seria mesmo estranho que [I] o médico de

família colocado a trabalhar no âmbito de um ACES, se declarasse impedido de

passagem de atestado médico para efeitos de exames de condução aos utentes

que acompanha [I] (e de que [é] muitas vezes o seu único médico), e, por outro

lado, aquele mesmo médico procedesse ao atendimento em atendimento privado

(e remunerado para o efeito), neste caso por se considerar dentro do seu conteúdo

funcional.” – cfr. exposição da ARSLVT, de 29 de Junho de 2011, junta aos autos.

108. Refira-se ainda que em resposta ao utente A. de 10 de Maio de 2011 o

Gabinete do Cidadão da ARS Norte informou o mesmo do Parecer já emitido pelo

Gabinete Jurídico da ARS Norte no qual seria defendido que “[I] não obstante a

actividade do médico de família não se esgotar na emissão de atestados, essa

constitui também uma das suas obrigações. Ao médico compete atestar a

informação médica relativa aos seus doentes, nomeadamente para os efeitos

legalmente exigidos (dever de informação).”.

109. De todo o exposto, e tendo em consideração que a situação de recusa de

emissão de atestados médicos não se restringe à USF de Joane, mas pode ser

prática recorrente em todo o território continental;

110. E que – ainda que sem fundamento – são defendidas posições contraditórias

sobre a admissibilidade de tal recusa;

111. Torna-se premente a necessidade de uniformização dos comportamentos dos

profissionais de saúde a exercerem funções nas diversas unidades de cuidados

primários;

112. O que implica que a ERS, ao abrigo das suas atribuições e competências, e

com o intuito de assegurar o direito dos utentes de acesso aos cuidados de saúde,

22

e em especial à obtenção de atestados médicos comprovativos da aptidão física e

mental para, in casu, a obtenção ou renovação de carta de condução;

113. Deva prosseguir uma intervenção regulatória, sob a forma da emissão de uma

Recomendação dirigida às cinco ARS, no sentido de assegurar que estas tomem

uma posição unívoca e uniforme sobre a obrigação de emissão de atestados

médicos pelos profissionais médicos a exercer funções nas unidades de cuidados

primários integradas do SNS;

114. De forma a garantir que os utentes que aí sejam habitualmente seguidos

obtenham a atestação da sua aptidão física e mental;

115. Pela razão que os atestados médicos, ao visarem a prevenção de

determinadas doenças e a promoção quer da saúde individual quer da saúde

pública, não podem deixar de ser integrados naquele conceito de “cuidados de

saúde”;

116. Tal como não podem deixar de estar abrangidos pelo conteúdo funcional dos

médicos de família a exercer funções nas unidades de cuidados primários

integradas no SNS, pois são estes aqueles que melhor serão conhecedores são

do estado de saúde dos seus utentes;

117. E sobre os quais, para além disso, impende expressamente uma obrigação

legal, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 313/2009, de 27 de

Outubro, de praticarem tais actos.

IV. AUDIÊNCIA DE INTERESSADOS

118. A presente decisão foi precedida da necessária audiência escrita de

interessados, nos termos do n.º 1 do artigo 101.º do Código do Procedimento

Administrativo, aplicável ex vi do artigo n.º 41.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27

de Maio, tendo sido chamados a pronunciarem-se, relativamente ao projecto de

deliberação da ERS, a ARS Norte, a ARS Centro, a ARS Lisboa e Vale do Tejo, a

ARS Alentejo e a ARS Algarve.

119. Certo é que no decurso do prazo legal para o efeito, e até ao presente

momento, apenas a ARS Centro e ARS Alentejo vieram exercer o seu direito de

resposta por ofícios de 15 de Novembro de 2011 e 14 de Novembro,

respectivamente, e cujos teores infra se analisam.

23

IV.1. Análise das respostas da ARS Centro e da ARS Alentejo

120. A ARS Centro veio, desde logo, informar que os seus serviços “[I] sempre

consideraram e instruíram os seus trabalhadores no sentido de ser função do

médico de família, a emissão de atestados médicos para efeitos de cartas de

condução, pese embora a opinião da Ordem dos Médicos sobre esta matéria”.

121. Ademais, veio ainda acrescentar a ARS Centro que tendo sido solicitados

esclarecimentos junto dos 14 ACES nela integrados, constataram que “[I] apenas

três unidades de saúde familiares e um ACES não emite os referidos atestados,

alegando a carta de compromisso e as orientações da ordem dos Médicos”;

122. Entendeu, no entanto, ainda salientar ter sido “[I] referido atraso na marcação

de consultas para o efeito específico da emissão de carta de condução, alegando

a falta de recursos humanos”.

123. Assim, importa concluir não ter sido apresentado pela ARS Centro, no exercício

do seu direito de pronúncia em audiência de interessados, um qualquer elemento

factual e documental dissentâneo dos factos e sua apreciação tais como

constantes do projecto de deliberação da ERS.

124. Com efeito, os argumentos veiculados configuram, por um lado, uma aceitação

e concordância com o entendimento expresso pela ERS no projecto de

recomendação regularmente notificado;

125. E por outro lado, demonstram ser já orientação dada por essa ARS aos seus

funcionários ser “[I] função do médico de família, a emissão de atestados

médicos para efeitos de cartas de condução, pese embora a opinião da Ordem dos

Médicos sobre esta matéria”.

126. Por seu turno, a ARS Alentejo veio informar que “[I] concorda integralmente

com toda a fundamentação de facto e de direito plasmada no Parecer que sustenta

o projecto de decisão, nada tendo acrescentar ou propor quanto à matéria em

causa.”.

127. Assim, e considerando não só o teor da pronúncia da ARS Centro e da ARS

Alentejo, bem como o facto de até ao momento presente nenhuma das demais

ARS ter exercido o seu direito de pronúncia;

24

128. Conclui-se pela inexistência de qualquer facto ou documento susceptíveis de

alterar o projecto de deliberação tal como notificado pela ERS às partes envolvidas

e que, por isso, se mantém in totum.

V. DECISÃO

129. Em face de todo o exposto, e nos termos e para os efeitos dos artigos 41.º n.º 1

e 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, o Conselho Directivo da

Entidade Reguladora da Saúde recomenda à Administração Regional de Saúde do

Norte, I.P., à Administração Regional de Saúde do Centro, I.P., à Administração

Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P., à Administração Regional de

Saúde do Alentejo, I.P., e à Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P.,

doravante consideradas conjuntamente como ARS:

a) a adopção urgente de todas as medidas necessárias a garantir a

identificação das unidades de cuidados primários integradas no SNS

onde se verificam situações de recusa, por profissionais médicos que

aí exerçam funções, de avaliação médica e consequente emissão de

atestados médicos que comprovem a situação física e mental dos

utentes para fins como obtenção ou renovação de cartas de condução;

e

b) a adopção urgente de todas as medidas necessárias a garantir uma

actuação unívoca e uniforme de todos os profissionais de saúde (em

especial dos médicos de família) a exercer funções nas unidades de

cuidados primários integradas no SNS, no que se refere à obrigação

de emissão de atestados médicos que comprovem a situação física e

mental dos utentes para fins como obtenção ou renovação de cartas

de condução.

130. A versão não confidencial da presente decisão será publicitada no sítio oficial

da ERS na Internet.

O Conselho Directivo