deliberaÇÃo do conselho directivo da entidade … · 3 8. sendo que nessa sequência o...
TRANSCRIPT
1
DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DIRECTIVO DA
ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE
(VERSÃO NÃO CONFIDENCIAL)
Considerando as atribuições da Entidade Reguladora da Saúde conferidas pelo artigo
3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;
Considerando os objectivos da actividade reguladora da Entidade Reguladora da
Saúde estabelecidos no artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;
Considerando os poderes de supervisão da Entidade Reguladora da Saúde
estabelecidos no artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;
Visto o processo registado sob o n.º ERS/056/11;
I. DO PROCESSO
I.1. Origem do presente processo
1. Em 20 de Junho de 2011, foi remetida à Entidade Reguladora da Saúde
(doravante ERS) pelo Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde a
denúncia de A., relativa à eventual recusa de emissão de atestado para renovação
de carta de condução por uma médica de família da Unidade de Saúde Familiar de
Joane (ora em diante USF de Joane), integrada no Agrupamento de Centros de
Saúde Ave III – Famalicão (doravante designado de ACES Ave III), sito na Rua do
Pavilhão, s/n, 4765-628 Delães.
2
2. A predita denúncia foi inicialmente tratada no âmbito do processo de avaliação
aberto sob registo n.º AV/584/11, sendo que, e após análise preliminar da mesma,
o Conselho Directivo da ERS, por despacho de 13 de Julho de 2011, ordenou a
abertura de inquérito registado sob o n.º ERS/056/11.
I.2. Da denúncia do utente
3. Concretamente, o exponente, por correio electrónico de 9 de Maio de 2011,
remetido para o Gabinete do Cidadão da Administração Regional de Saúde do
Norte, I.P. (doravante designada ARS Norte), solicitou esclarecimentos sobre se “O
médico de família no seu local de atendimento ou seja no centro de saúde, é
obrigado quando solicitado para tal, a passar atestado de saúde? Caso concreto:
Atestado para renovação de carta de condução.”.
4. Em resposta a tal solicitação, de 10 de Maio de 2011, o Gabinete do Cidadão da
ARS Norte informou o utente que os esclarecimentos sobre essa questão
poderiam ser consultados no portal da saúde1;
5. Bem como acrescentou que o Gabinete Jurídico da ARS Norte se havia já
pronunciado sobre essa questão mediante Parecer no qual era referido que,
“[I] não obstante a actividade do médico de família não se esgotar na
emissão de atestados, essa constitui também uma das suas obrigações.
Ao médico compete atestar a informação médica relativa aos seus
doentes, nomeadamente para os efeitos legalmente exigidos (dever de
informação).”.
6. Nessa sequência, por correio electrónico de 11 de Maio de 2011, veio o utente
concretizar a situação concreta ocorrida, referindo que, ao ter-se deslocado ao
Centro de Saúde de Joane para uma consulta com a sua médica de família, para
efeitos de obtenção de atestado médico para renovação de carta de condução,
esta “[I] negou-se, baseada numa circular da Ordem [dos Médicos], e por acordo
entre todos os clínicos [da USF] de Joane”, ainda que “[I] todos os clínicos dest[a]
[USF] na sua actividade privada o fa[çam].”
7. Posteriormente, o utente remeteu toda essa informação, por correio electrónico de
23 de Maio de 2011, para o Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde;
1http://www.portaldasaude.pt/portal/conteudos/informacoes+uteis/carta+de+conducao/cartacon
ducao.htm
3
8. Sendo que nessa sequência o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde emitiu o
seguinte Despacho, datado de 15 de Junho de 2011:
“Salvo melhor análise, a emissão de atestado para renovação da carta
de condução, faz parte da carteira de serviços do médico de MGF em
relação aos seus utentes. Quem melhor que o médico de família para,
conhecendo o cidadão em questão, confirmar a capacidade para
conduzir? [I]”;
9. Tendo ademais solicitado a avaliação da situação pela ERS.
I.3. Da exposição da ARSLVT
10. Em 5 de Julho de 2011, foi recepcionada a exposição da Administração Regional
de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. (doravante apenas designada ARSLVT),
mediante a qual foi solicitada orientação à ERS no que se refere “[I] à
legitimidade de eventuais recusas dos médicos de família aquando das
solicitações apresentadas por utentes para efeitos de renovação de cartas de
condução.”.
11. Concretamente, na exposição é feita referência a alguma legislação e outra
documentação relativa à questão apresentada pela ARSLVT, designadamente:
(i) o Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de Fevereiro2, tal como
republicado pelo Decreto-Lei n.º 174/2009, de 3 de Agosto, que,
no ponto 3 do seu anexo III, estabelece relativamente aos
condutores integrados no grupo 13 que “os candidatos são sujeitos
a exame médico efectuado por médico no exercício da sua
profissão.”;
(ii) a Circular Informativa da Direcção-Geral de Saúde n.º 16/DSPS
de 23 de Maio de 2005, que pretendeu clarificar o supra
mencionado diploma legal, e que refere que “[I] as normas que
2 O qual transpôs para ordem jurídica nacional a directiva n.º 2000/56/CE, da Comissão, de 14
de Setembro, no que diz respeito aos conteúdos programáticos das provas de exame e
códigos comunitários harmonizados, e procede à reestruturação, num único diploma, dos
vectores essenciais, de definição comunitária, relativos à carta de condução.
3 O grupo 1 integra os condutores de veículos das categorias A, B e B+E e das subcategorias
A1 e B1.
4
passarão a vigorar são as seguintes: Grupo 1 – Os candidatos à
emissão ou renovação de uma carta de condução pertencentes a
este grupo são sujeitos a exame médico efectuado por médico no
exercício da sua profissão.”;
(iii) a Portaria n.º 1368/2007, de 18 de Outubro, que define a Carteira
Básica de Serviços das USF, e que estabelece, na alínea d) do
número 5, do ponto II, do anexo I “[I] como atribuições médicas a
certificação de estados de saúde e de doença que surgirem como
sequência de actos médicos praticados e emissão de declarações
específicas pedidas pelos utentes, desde que inseridas no estrito
cumprimento da resposta ao direito à saúde dos cidadãos”;
(iv) a posição do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos
Médicos, publicada na Revista da Ordem dos Médicos, de Março
de 2007, onde é referido que “[I] a obtenção de licença de
condução, licença desportiva ou reconhecimento da aptidão física
para a sua prática não se inserem no âmbito de solidariedade
social e portanto, não constituem uma obrigação para o médico
que trabalha no Serviço Nacional de Saúde. Tal não invalida que o
médico, por sua livre opção, o decida fazer.”.
12. Mais acrescenta a ARSLVT ter tomado conhecimento de uma reclamação de um
utente de um centro de saúde da sua área de jurisdição, junto do ACES respectivo,
“[I] insurgindo-se contra o facto de para efeitos de renovação de carta de
condução, ter solicitado ao seu médico de família, e este [I] [ter alegadamente]
recusado, a emissão de atestado [I]”;
13. Tendo o profissional médico do ACES em questão justificado tal conduta com o
facto de “[a] atestação de actos de foro da responsabilidade individual, como a
emissão de atestados que visam assegurar a obtenção de licença para actividades
que se inscrevem no interesse individual e privado do cidadão como a licença de
condução, carta de caçador e outras, não faz parte do conteúdo funcional do
médico do Serviço Nacional de Saúde”, acrescentando que “ milhares de utentes
do [centro de saúde em causa] não têm médico de família pelo que [dão]
preferência ao atendimento destes utentes em detrimento da passagem daqueles
atestados.”
14. Mais concluiu a ARSLVT, que o médico de família “[I] pode efectuar exame e
passar o atestado médico para renovação da carta de condução de veículos das
5
categorias A e B, B+E e das Sub categorias A1 e B1, isto é, pode o exame ser
efectuado por qualquer médico no exercício da sua profissão [I] até porque estão
na posse de todo o histórico do utente [I]”;
15. Sendo seu entendimento que “seria mesmo estranho que [I] o médico de família
colocado a trabalhar no âmbito de um ACES, se declarasse impedido de
passagem de atestado médico para efeitos de exames de condução aos utentes
que acompanha [I] (e de que [é] muitas vezes o seu único médico), e, por outro
lado, aquele mesmo médico procedesse ao atendimento em atendimento privado
(e remunerado para o efeito), neste caso por se considerar dentro do seu conteúdo
funcional.” - cfr. exposição da ARSLVT, de 29 de Junho de 2011, junta aos autos.
I.4. Diligências
16. No âmbito da investigação desenvolvida pela ERS, realizaram-se, entre outras, as
diligências consubstanciadas
(i) em pesquisa no Portal da Saúde da USF de Joane e do ACES Ave III4;
(ii) no pedido de elementos ao ACES Ave III, de 22 de Agosto de 2011, e
respondido em 29 de Agosto de 2011;
(iii) no pedido de elementos à USF de Joane, de 22 de Agosto de 2011, e
respondido a 2 de Setembro de 2011.
II. DOS FACTOS
II.1. Factos relativos à resposta do ACES Ave III ao pedido de informação da ERS
de 22 de Agosto de 2011
17. Das exposições recebidas pela ERS, resultava então a alegada situação de recusa
de emissão de atestado para renovação de carta de condução pelos médicos de
família, em concreto de uma médica de família da USF de Joane e de um médico
de família de um Centro de Saúde da área de jurisdição da ARSLVT;
4 http://www.portaldasaude.pt/
6
18. Revelando-se necessário proceder à recolha de informação adicional, junto do
ACES Ave III, para averiguar com maior profundidade a situação em análise, foi-
lhe solicitado, por ofício de 22 de Agosto de 2011, que procedesse à concretização
da situação apresentada, designadamente:
“[I]
1. Se tem conhecimento de situações idênticas à exposta que tenham
ocorrido em diferentes unidades funcionais integradas no ACES Ave III e,
em caso afirmativo, identificação do(s) prestador(es) em causa;
2. Dos fundamentos que legitimam tal prática e se os mesmos constam,
designadamente, de uma circular da Ordem dos Médicos, conforme
enunciado pelo utente;
3. Envio dos demais esclarecimentos complementares julgados necessários
e relevantes à análise do caso concreto.”.
19. Na sua resposta, datada de 29 de Agosto de 2011, veio o ACES Ave III informar a
ERS que:
“[I]
1. [Teve] conhecimento de uma reclamação do utente [M.], de 12/04/2011
na Extensão de Saúde Urbana. Este utente não tem médico de família e
como tal a situação teve lugar na consulta de recurso. Mais se refere que
neste caso o utente não chegou a ter consulta por ter sido informado de
que aquele tipo de atestados não era passado a nível da consulta de
Medicina Geral e Familiar.
2. A situação de não obrigatoriedade dos atestados para carta de condução
terem que ser emitidos pelo médico de família advém do parecer do
Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos [I], e de parecer
jurídico do Sindicato dos Médicos da Zona Sul [I]. De acrescentar que já
há algum tempo este assunto foi debatido com a tutela (Sub-Região de
Saúde de Braga), tendo sido enviado por e-mail, nessa altura,
esclarecimento sobre o assunto pelo Director do Serviço de Saúde
(DSS), Dr. [J.] [I].
3. Como esclarecimento complementar anex[a] resposta à pergunta
formulada pelo Coordenador da Unidade de Saúde Familiar de Joane, Dr.
7
[R.], à data de 25/05/2011 (Doc. 4).”. – cfr. resposta do ACES Ave III, de
29 de Agosto de 2011, e respectivos anexos, juntos aos autos.
20. Do que resulta dos documentos referidos supra, anexados à exposição, e no que
aqui importa referir, o Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos
reiterou, em Março de 2011, o seu parecer de que “[I] os médicos que trabalham
no Serviço Nacional de Saúde só deverão certificar estados de saúde e de doença
que surjam na sequência dos actos médicos efectivamente praticados.”;
21. Sendo entendimento daquele Conselho “[I] que a obtenção de licença de
condução, carta de caçador, licença desportiva ou reconhecimento de aptidão
física para a sua prática não se inserem no âmbito de solidariedade social e
portanto, não constituem uma obrigação para o médico que trabalha no Serviço
Nacional de Saúde.”;
22. Não obstante, “Tal entendimento não invalida que o médico, por sua livre opção, o
decida fazer.”. – cfr. Informação constante da Revista da Ordem dos Médicos, de
Março de 2007, anexa à resposta de 29 de Agosto de 2011, junta aos autos.
23. Ademais, do que se extrai do Parecer n.º 27/2011 do Sindicato dos Médicos da
Zona Sul, a “[I] avaliação isolada e à margem de quaisquer cuidados de saúde
efectivamente prestados, exclusivamente destinada à atestação da aptidão física e
mental exigida, por lei, para o exercício da condução de veículos - sem prejuízo,
evidentemente, da sua natureza de acto médico - é, em rigor, exterior às
actividades de prestação de cuidados, de promoção da saúde e de prevenção da
doença.”;
24. Pelo que “[I] não se insere, propriamente, no elenco das actividades materiais
que ao Estado cabe assegurar e desenvolver, através do Serviço Nacional de
Saúde, em ordem à plena e efectiva concretização do direito constitucional dos
cidadão à protecção da saúde (artigo 64.º da CRP, desenvolvido, entre outros
instrumentos normativos, pela LBS).”;
25. Motivo pelo qual, segundo esse Sindicato, “[I] tal actividade de avaliação médica
não se encontr[a] prevista no conteúdo funcional típico dos médicos de medicina
geral e familiar integrados na carreira especial médica (artigos 11.º a 13.º do DL
177/2009 e cláusula 11.ª do ACCE).”.
26. Do que decorre, em jeito de conclusão, da explicitação tal como constante no
Parecer do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, que “[I] a referida avaliação
8
médica, para os candidatos e condutores do grupo 1 previsto na alínea a) do artigo
1.º do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC), pode ser
efectuada por qualquer médico, independentemente da sua área profissional e da
natureza jurídica do regime de exercício da sua actividade profissional prosseguida
[I]”;
27. Não obstante, “[I] não constitui obrigação legal para os médicos de medicina
geral e familiar da carreira especial médica que, em regime de contrato de trabalho
em funções públicas, exercem a sua actividade profissional nos estabelecimentos
públicos prestadores de cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de
Saúde, designadamente nos centros de saúde.” – cfr. Parecer n.º 27/2011 do
Sindicato dos Médicos da Zona Sul, anexo à resposta de 29 de Agosto de 2011,
junto aos autos.
II.2. Factos relativos à resposta da USF de Joane ao pedido de informação da
ERS de 22 de Agosto de 2011
28. Igualmente, em 22 de Agosto de 2011, foi ainda solicitado à USF de Joane, que
concretizasse a situação por si apresentada, designadamente:
“[I]
1. Se tem conhecimento da situação denunciada relativamente ao concreto
utente e se a recusa de emissão de atestado médico para renovação da
carta de condução se assume como uma prática adoptada por todos os
profissionais médicos da USF de Joane;
2. No caso afirmativo, indicação dos fundamentos que legitimam tal prática
e se os mesmos constam, designadamente, de uma circular da Ordem
dos Médicos, conforme enunciado pelo utente;
3. Informação sobre eventuais desenvolvimentos relativos à situação do
utente em causa, bem como envio de quaisquer outros elementos,
esclarecimentos adicionais ou documentos que considere relevantes para
o enquadramento da questão em crítica.”.
29. Na sua resposta de 2 de Setembro de 2011, veio aquela USF, esclarecer:
“[I]
9
1. [Ter tido] conhecimento da situação denunciada aquando do contacto
telefónico da Dra. [M.], da Direcção Geral de Saúde, à qual [prestou]
todas as informações solicitadas, bem como [facultou] os pareceres da
Ordem dos Médicos e da ARS Norte [I] [sendo que a conduta
apresentada] é uma prática [adoptada] por todos os profissionais,
médicos da USF de Joane.
2. A situação que na opinião dos profissionais, legitima a não
obrigatoriedade dos atestados para carta de condução, terem que ser
emitidos pelo médico de família, é consubstanciada no parecer da Ordem
dos Médicos [I];
3. Na sequência do processo, [solicitou] informação à ARS Norte, acerca do
procedimento [adoptado] na USF de Joane, em 18/05/2011, e [obteve] as
respostas em anexo.”. – cfr. resposta da USF de Joane, de 2 de
Setembro de 2011, e respectivos anexos, juntos aos autos.
30. Faz-se notar, que tal pedido de informação da USF de Joane de 18 de Maio de
2011 – no qual é questionado sobre se os médicos de família nos Centros de
Saúde são obrigados “[I] a preencher todo e qualquer atestado do foro da
responsabilidade individual que vise [I] assegurar a obtenção de licenças para
actividades que se inscrevem no interesse individual e privado do cidadão
(nomeadamente carta de caçador, carta de condução, carta de barco, atestado
para frequentar ginásios e piscinas, etc.).” – não contém qualquer tipo de
destinatário, não permitindo confirmar que o mesmo tivesse sido remetido
directamente para a ARS Norte;
31. Sendo que a resposta, junta aos autos, é elaborada não pela ARS Norte mas pelo
ACES Ave III, embora contendo em epígrafe a menção “pedido de informação à
ARS Norte”.
32. Nessa resposta, o ACES Ave III esclarece que:
“[I]
1. O dever de informação é um dever incontestável do médico de família
quando solicitada por escrito pelo próprio utente;
2. Segundo orientações da Ordem dos Médicos não haverá obrigatoriedade
da emissão de cartas de condução;
3. A emissão de relatório comprovativo do estado de saúde ou doença de
um utente deverá ser emitido em papel timbrado do Serviço Nacional de
Saúde;
10
4. Em conclusão, [R] a obrigatoriedade de informação nunca esteve em
causa, não sendo contudo obrigatório a emissão de atestados para carta
de condução, caçador, barco, etc.” – cfr. resposta do ACES Ave III à USF
de Joane, de 25 de Maio de 2011, anexa à resposta de 2 de Setembro de
2011, junta aos autos.
III. DO DIREITO
III.1. Das atribuições e competências da ERS
33. De acordo com o n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, a
ERS tem por missão a regulação da actividade dos estabelecimentos prestadores
de cuidados de saúde.
34. Sendo que estão sujeitos à regulação da ERS, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do
Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, “[...] todos os estabelecimentos
prestadores de cuidados de saúde, do sector público, privado e social,
independentemente da sua natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas,
centros de saúde, laboratórios de análises clínicas, termas e consultórios”
(sublinhado nosso).
35. É manifestamente esse o caso da USF de Joane, integrada no ACES Ave III.
36. As atribuições da ERS, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-
Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, compreendem “[I] a supervisão da actividade e
funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde no que
respeita:
[I]
b) À garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde e dos
demais direitos dos utentes;
c) À legalidade e transparência das relações económicas entre os diversos
operadores, entidades financiadoras e utentes.”.
37. Por seu lado, constituem objectivos da actividade reguladora da ERS, em geral,
nos termos do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio:
11
“[I]
b) Assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de
saúde, nos termos da Constituição e da lei;
c) Garantir os direitos e interesses legítimos dos utentes;
[I]”.
38. No que se refere ao objectivo regulatório previsto nas alíneas b) e c), ambas do
artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, de assegurar o
cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de saúde e de garantir os
direitos e interesses legítimos dos utentes, a alínea a) do artigo 35.º do Decreto-Lei
n.º 127/2009, de 27 de Maio, estabelece ser incumbência da ERS “assegurar o
direito de acesso universal e equitativo aos serviços públicos de saúde ou
publicamente financiados”;
39. Incluindo-se ainda nos objectivos regulatórios da ERS, nos termos do artigo 37.º
do Decreto-lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, pronunciar-se sobre questões
relacionadas com “[I] as relações entre o SNS e os operadores privados, tendo
em vista o fomento da transparência, da eficiência e da equidade do sector, bem
como a defesa do interesse público e dos interesses dos utentes” (alínea a) do
referido artigo 37.º);
40. Podendo a ERS assegurar tais incumbências mediante o exercício dos seus
poderes de supervisão – consubstanciado, designadamente, “no dever de velar
pela aplicação das leis e regulamentos e demais normas aplicáveis às actividades
sujeitas à sua regulação” - bem como mediante a emissão de ordens e instruções,
bem como recomendações ou advertências individuais, sempre que tal seja
necessário – cfr. alínea b) do artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de
Maio.
41. O que aqui está em análise é, portanto, saber se a emissão de atestados constitui
uma prestação de cuidados de saúde, e nessa medida não deva deixar de ser
efectuada pelos profissionais médicos a exercer funções nas unidades de
cuidados primários integradas no SNS.
42. Refira-se que tem sido entendimento da ERS, aliás expresso por exemplo no
Parecer relativo às Taxas de Saúde Pública emitido no âmbito do processo de
inquérito n.º ERS/009/11, onde se refere que se entendem por “cuidados de
12
saúde” todas aquelas actividades que tenham por objecto a prevenção, promoção,
restabelecimento ou manutenção da saúde, bem como o diagnóstico, o
tratamento/terapêutica e reabilitação, e que visem atingir e garantir uma situação
de ausência de doença e/ou um estado de bem-estar físico e mental.
43. Ora, os atestados médicos, ao visarem a prevenção de determinadas doenças e a
promoção quer da saúde individual quer da saúde pública, não podem deixar de
ser integrados naquele conceito de “cuidados de saúde”;
44. Tal como ao representarem a corporização e exteriorização de um diagnóstico –
mesmo que seja lato sensu sobre o estado geral de saúde de dado utente –
constituem, também por isso, um acto integrado em tal conceito de “cuidados de
saúde”.
45. É também por isso que a emissão de atestados se encontra, assim, reservada aos
profissionais de saúde médicos, enquanto acto integrado exclusivamente no
exercício de funções médicas.
46. Assim, atendendo a que quer a exposição apresentada pelo utente A., quer o
ofício da ARSLVT, vinham relatar uma alegada recusa por parte dos médicos de
família das unidades de cuidados primários em emitir atestados médicos aos seus
utentes, embora o continuassem a fazer no âmbito da sua actividade privada;
47. E que dos elementos de prova juntos quer pelos exponentes (utente A. e
ARSLVT), quer pelas entidades visadas, designadamente USF de Joane e ACES
Ave III, se verificava uma não uniformidade de entendimento(s) sobre a
obrigatoriedade, ou não, de os médicos de família emitirem atestados médicos
para renovação de cartas de condução, quando em exercício de funções no sector
público;
48. Não pode deixar de justificar-se uma intervenção regulatória da ERS, no sentido
de garantir junto das ARS uma actuação unívoca e uniforme de todos os
profissionais de saúde (em especial dos médicos de família) a exercer funções nas
unidades de cuidados primários no que se refere à emissão de atestados médicos
que comprovem a situação física e mental dos utentes para fins como obtenção ou
renovação de carta de condução.
13
III.2. Da emissão de atestados médicos para obtenção ou renovação de carta de
condução
III.2.1. Enquadramento legal
49. O Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de Fevereiro5, tal como republicado pelo Decreto-
Lei n.º 174/2009, de 3 de Agosto, estabelece no ponto 3 do seu anexo III, por
remissão do n.º 1 do artigo 8.º, “as normas mínimas relativas à aptidão física e
mental para a condução de um veículo a motor”.
50. Assim, os candidatos ou condutores de veículos das categorias A, B e B+E e das
subcategorias A1 e B1, ou seja, do grupo 1, “[I] são sujeitos a exame médico
efectuado por médico no exercício da sua profissão.” – cfr. ponto 3 do anexo III do
referido diploma legal.
51. Já os candidatos ou condutores de veículos das restantes categorias ou das
categorias B e B+E que pretendam exercer condução de ambulância, veículos de
bombeiros, automóveis de passageiros de aluguer, transporte escolar e de
mercadorias perigosas, ou seja, do grupo 2, “[I] são sujeitos a um exame médico
especial antes da emissão da licença de aprendizagem e, subsequentemente, os
condutores são sujeitos a exames periódicos prescritos para a revalidação das
categorias e subcategorias averbadas na carta de condução, ambos efectuados
pela autoridade de saúde da área da residência constante do bilhete de identidade
do examinando.” – cfr. ponto 4 do anexo III do referido diploma legal.
52. Nas demais disposições do anexo III do Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de
Fevereiro, o legislador estabelece as diversas componentes que devem ser tidas
em consideração para efeito de aferição da aptidão física e mental para a
condução, no que se refere à visão, audição, aparelho de locomoção, doenças
5 O qual transpôs para ordem jurídica nacional a directiva n.º 2000/56/CE, da Comissão, de 14
de Setembro, no que diz respeito aos conteúdos programáticos das provas de exame e
códigos comunitários harmonizados, e procede à reestruturação, num único diploma, dos
vectores essenciais, de definição comunitária, relativos à carta de condução.
14
cardiovasculares, diabetes mellitus, doenças neurológicas, perturbações mentais,
álcool, drogas e medicamentos e insuficiências renais.
53. Tal anexo foi, no entanto, formalmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 313/2009, de
27 de Outubro, que aprovou o Regulamento da habilitação legal para conduzir, o
qual estabeleceu que enquanto não forem criados os centros de avaliação médica
psicológica (CAMP) “[I] a avaliação da aptidão física, mental e psicológica é
efectuada:
a) Por médico no exercício da sua profissão, para os candidatos ou condutores do
grupo 1;
b) Pela autoridade de saúde da área da sua residência, quanto à aptidão física e
mental, e por laboratório de psicologia, quanto à avaliação psicológica, para os
candidatos ou condutores do grupo 2.” – cfr. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 313/2009,
de 27 de Outubro.
54. Do exposto resulta então que enquanto não forem criados os referidos CAMP
destinados a proceder à avaliação da aptidão física, mental e psicológica dos
candidatos à obtenção ou renovação de carta de condução, tal tarefa, no caso dos
condutores do grupo 1, é exercida por médico no exercício da sua profissão;
55. O que desde logo, não permite excluir de tal função os médicos de família que
exercem funções nas unidades de cuidados primários;
56. E constitui base legal manifestamente suficiente e clara para se poder concluir
liminarmente que existe uma obrigação legal de emissão de atestados, para os
efeitos aqui considerados, pelos médicos integrados no SNS e, em particular, a
exercer funções nas unidades de cuidados primários.
III.2.2. Da sua inclusão no conceito de “cuidados de saúde”
57. Sem prejuízo do vindo de referir no ponto anterior, e que manifestamente
esclarece a situação, com carácter imperativo por decorrência de Lei;
58. Refira-se ainda que o conceito de “saúde”, vulgarmente aceite, e adoptado pela
Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), à qual Portugal aderiu em
13 de Fevereiro de 1948, determina que “a saúde é um estado de completo bem-
estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou
enfermidade”.
15
59. Assim, é possível definir “cuidados de saúde” como integrando todas aquelas
actividades que tenham por objecto a prevenção, promoção, restabelecimento ou
manutenção da saúde, bem como o diagnóstico, o tratamento/terapêutica e
reabilitação, e que visem atingir e garantir uma situação de ausência de doença
e/ou um estado de bem-estar físico e mental.
60. Importa então analisar se avaliação médica e consequente emissão de atestado
para efeito de obtenção ou renovação de carta de condução, se integra ainda, ou
não, em tal conceito de cuidados de saúde;
61. Fazendo-se notar que para tal não basta o preenchimento do conceito material de
cuidados de saúde que supra se apresentou;
62. Implica ainda que os actos em questão sejam prestados num estabelecimento
prestador de cuidados de saúde;
63. Por profissionais devidamente habilitados;
64. E prestados a pessoas em função de necessidades ou exigências concretas;
65. E relacionados com a sua saúde, ou prevenção desta.
66. Ou seja, e ainda que a actividade principal dos médicos não deva ser a de
emissão de atestados médicos;
67. O facto de os mesmos visarem a prevenção de determinadas doenças e a
promoção quer da saúde individual quer da saúde pública, ou seja, de
pretenderem atestar a aptidão física e mental de determinadas pessoas de forma a
assegurar que as mesmas não coloquem em crise, pelo exercício de determinadas
actividades (como in casu a condução de veículos a motor), o seu próprio estado
de saúde, ou de terceiros;
68. Não podem obviamente deixar de contribuir para um tal estado de ausência de
doença e enfermidade, bem como para um estado de bem-estar físico e mental de
um concreto indivíduo e da população em geral.
69. Efectivamente, os atestados médicos
(i) destinam-se a atestar uma situação de ausência (ou não) de
doença e/ou um estado de existência (ou não) de bem-estar físico e
mental;
(ii) representam a corporização e exteriorização de um diagnóstico –
mesmo que seja lato sensu sobre o estado geral de saúde de dado
utente;
16
(iii) são praticados por médico no exercício da sua profissão;
(iv) têm como destinatários indivíduos em concreto; e
(v) consistem em actividades destinadas à defesa da saúde pública, de
prevenção da doença e de promoção e protecção da saúde;
70. Pelo que não podem deixar de ser considerados como se integrando no âmbito da
prestação de cuidados de saúde.
III.2.3. Da sua inclusão no âmbito do direito à protecção da saúde
71. Recorde-se que a situação em análise no presente processo, em que os
profissionais médicos de algumas unidades de cuidados primários, nomeadamente
da USF de Joane, se recusaram a emitir atestados médicos para efeitos de
obtenção ou renovação de cartas de condução, prende-se, desde logo, com a
posição do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, publicada na
Revista da Ordem dos Médicos, de Março de 2007, onde é referido que “[I] a
obtenção de licença de condução, licença desportiva ou reconhecimento da
aptidão física para a sua prática não se inserem no âmbito de solidariedade social
e portanto, não constituem uma obrigação para o médico que trabalha no Serviço
Nacional de Saúde.”.
72. Em igual sentido, se pronunciou o Sindicato dos Médicos da Zona Sul, ao referir
que a “[I] avaliação isolada e à margem de quaisquer cuidados de saúde
efectivamente prestados, exclusivamente destinada à atestação da aptidão física e
mental exigida, por lei, para o exercício da condução de veículos - sem prejuízo,
evidentemente, da sua natureza de acto médico - é, em rigor, exterior às
actividades de prestação de cuidados, de promoção da saúde e de prevenção da
doença.”;
73. Pelo que, “[I] não se insere, propriamente, no elenco das actividades materiais
que ao Estado cabe assegurar e desenvolver, através do Serviço Nacional de
Saúde, em ordem à plena e efectiva concretização do direito constitucional dos
cidadão à protecção da saúde (artigo 64.º da CRP, desenvolvido, entre outros
instrumentos normativos, pela LBS).”.
74. De acordo com tais interpretações, a avaliação médica e consequente emissão de
atestado médico destinada a atestar a aptidão física e mental dos condutores para
17
a obtenção e renovação de carta de condução, não se integraria no elenco das
actividades destinadas à concretização do direito à protecção da saúde.
75. Contudo, não se pode concordar com a exclusão de actividades que claramente se
integram, como visto, no conceito de prestação de cuidados de saúde do âmbito
da concretização do direito à protecção da saúde conforme consagrado no artigo
64.º da CRP; senão vejamos,
76. Um tal direito consagrado na referida norma constitucional, e que garante o acesso
dos cidadãos aos cuidados de saúde no âmbito do SNS, deve ser assegurado em
respeito pelos princípios fundamentais plasmados naquele preceito constitucional,
designadamente, a universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial.
77. Por seu lado, a Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de
Agosto, em concretização da imposição constitucional contida no referido preceito,
estabelece na sua Base XXIV como características do SNS:
“a) Ser universal quanto à população abrangida;
b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;
c) Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as
condições económicas e sociais dos cidadãos”
d) Garantir a equidade no acesso dos utentes, com o objectivo de
atenuar os efeitos das desigualdades económicas, geográficas e
quaisquer outras no acesso aos cuidados;
[I]”.
78. Assim, resulta que o acesso dos utentes aos cuidados de saúde implica, nos
termos da Constituição e mais concretamente do seu artigo 64.º, a garantia de um
acesso
i) universal (deve-se garantir que o acesso aos cuidados de saúde é
assegurado a todos os cidadãos);
ii) geral (determinação do tipo de cuidados de saúde que devem ser
abrangidos pelo SNS);
iii) igual e equitativo (os cidadãos em situação idêntica devem receber
tratamento semelhante e os cidadãos em situação distinta devem
receber tratamento distinto); e
18
iv) em tempo útil em função da necessidade de cuidados de saúde; e
ainda
v) tendencialmente gratuito e com respeito dos preços administrativos
(taxas moderadoras).
79. No que se refere à alínea b) da Base XXIV da LBS, que é aquela cuja análise aqui
interessa, a generalidade do SNS refere-se à determinação do tipo de cuidados de
saúde que devem ser abrangidos pelo SNS, impondo-se que garanta, com maior
ou menor grau, uma prestação integrada de cuidados globais de saúde aos seus
beneficiários.
80. O princípio da generalidade aponta para o direito dos cidadãos a obter todo o tipo
de cuidados de saúde, pelo que o Estado com o intuito de assegurar a realização
do direito à protecção da saúde deverá “garantir uma racional e eficiente cobertura
de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde” - cfr. alínea b) do n.º 3
do artigo 64.º da CRP.
81. Ou seja, conforme consta da alínea b) da Base XXIV da LBS, tem o cidadão o
direito a que lhe sejam prestados integradamente todos os cuidados de saúde,
sejam primários, diferenciados, continuados ou até paliativos.
82. Assim, e no que importa realçar, resulta claro que o permanente cumprimento das
características da generalidade do SNS implica a existência de regras que
garantam que um qualquer utente obterá, junto do SNS e em qualquer situação, a
prestação de todos cuidados de saúde que efectivamente necessite.
83. Assim, e tendo-se concluído que a avaliação médica e consequente emissão de
atestado sobre a aptidão física e mental para efeito de obtenção ou renovação de
carta de condução se integra no conceito de cuidados de saúde;
84. E não se prevendo, actualmente, à luz do texto constitucional, a possibilidade de
alguma forma se determinar ou limitar as actividades integradas no âmbito da
prestação de cuidados de saúde no SNS;
85. Não se pode deixar de considerar a avaliação médica e a emissão de atestados
médicos como integradas no âmbito da garantia do direito à protecção da saúde.
86. Efectivamente, e embora a Lei de Bases da Saúde, mais concretamente a Base
XXXV, previsse a possibilidade de “[a lei poder] especificar as prestações
garantidas aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde ou excluir do objecto
dessas prestações cuidados não justificados pelo estado de saúde”;
87. Certo é que tal não veio ainda a ocorrer;
19
88. E no que concretamente respeita à avaliação médica e à emissão de atestados
médicos também não existe nenhum diploma legal que exclua tal actividade do
âmbito dos cuidados de saúde a serem prestados pelos profissionais médicos a
exercerem funções nos estabelecimentos integrados no SNS;
89. Bem pelo contrário, o legislador veio tomar expressa e clara posição no sentido de
os mesmos serem emitidos “por médico no exercício da sua profissão” – cfr.
Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de Fevereiro e Decreto-Lei n.º 313/2009, de 27 de
Outubro.
90. Não se podendo aceitar, obviamente, que tal exclusão possa ser efectuada
mediante Parecer emitido por uma Ordem Profissional, e ainda com efeito não no
exercício de profissão liberal, mas no âmbito dos actos praticados pelos
profissionais médicos em estabelecimentos integrados no SNS;
91. Os quais, ademais, e que aqui se refute expressamente, não se dedicam a
actividades de “solidariedade social”, mas sim ao cumprimento de uma obrigação
de garantia de acesso a cuidados de saúde constitucionalmente imposta.
92. Portanto, é também claro por este aspecto que tal actividade se integra no
conteúdo funcional da categoria de assistente, nos termos do disposto no artigo
11.º do Decreto-Lei n.º 177/2009, de 4 de Agosto, que estabelece o regime da
carreira especial médica;
93. Em especial na sua alínea a), que estabelece ser seu dever “Prestar cuidados de
saúde mediante a prática de actos médicos do âmbito da sua especialidade, sob a
sua responsabilidade directa ou sob responsabilidade da equipa na qual o médico
esteja integrado”.
94. Ora, cabendo ao médico da especialidade de medicina geral e familiar que exerce
as funções de médico de família de um utente, no concreto centro de saúde em
que o mesmo se encontra integrado, fazer o acompanhamento permanente do
mesmo;
95. E sendo ele quem melhor conhece, em cada momento, a concreta situação de
ausência de doença e/ou de estado de bem-estar físico e mental do seu utente;
96. Será obviamente tal profissional médico que estará em melhores condições de
atestar a aptidão física e mental para conduzir;
97. Não se podendo, pelo contrário, compreender que um utente que seja
permanentemente seguido pelo seu médico de família se veja na obrigação de,
necessitando de uma avaliação médica e consequente atestação da sua aptidão
20
física e mental, procurar, no sector privado, um outro profissional médico que
ademais poderá não ser conhecedor do seu historial clínico;
98. E muito menos se compreende que tivesse que procurar o seu médico de família,
mas fora do local onde aquele o habitualmente acompanha;
99. Apenas porque este, sem qualquer base legal que o fundamente, se recusa à
emissão de atestados no exercício de funções públicas;
100. Mas já não no exercício de funções privadas.
III.3. Da análise da situação concreta
101. Recorde-se que o ACES Ave III alegou que a situação de não obrigatoriedade
dos atestados para carta de condução terem que ser emitidos pelo médico de
família era o resultado de um Parecer emitido Conselho Nacional Executivo da
Ordem dos Médicos, no qual era referido que “[I] os médicos que trabalham no
Serviço Nacional de Saúde só deverão certificar estados de saúde e de doença
que surjam na sequência dos actos médicos efectivamente praticados.”;
102. Uma vez “[I] que a obtenção de licença de condução, carta de caçador,
licença desportiva ou reconhecimento de aptidão física para a sua prática não se
inserem no âmbito de solidariedade social e portanto, não constituem uma
obrigação para o médico que trabalha no Serviço Nacional de Saúde.”.
103. Mais fundamentou a posição adoptada pelos médicos que exercem funções
nesse ACES, com base no Parecer jurídico do Sindicato dos Médicos da Zona Sul
onde era referido que a “[I] avaliação isolada e à margem de quaisquer cuidados
de saúde efectivamente prestados, exclusivamente destinada à atestação da
aptidão física e mental exigida, por lei, para o exercício da condução de veículos -
sem prejuízo, evidentemente, da sua natureza de acto médico - é, em rigor,
exterior às actividades de prestação de cuidados, de promoção da saúde e de
prevenção da doença.”;
104. Pelo que “[I] não se insere, propriamente, no elenco das actividades materiais
que ao Estado cabe assegurar e desenvolver, através do Serviço Nacional de
Saúde, em ordem à plena e efectiva concretização do direito constitucional dos
cidadão à protecção da saúde (artigo 64.º da CRP, desenvolvido, entre outros
instrumentos normativos, pela LBS).”.
105. Posição diferente foi assumida quer pelo Senhor Secretário de Estado Adjunto
e da Saúde – segundo o qual “[I] a emissão de atestado para renovação da carta
21
de condução, faz parte da carteira de serviços do médico de MGF em relação aos
seus utentes. Quem melhor que o médico de família para, conhecendo o cidadão
em questão, confirmar a capacidade para conduzir? [I]” – cfr. Despacho de 15 de
Junho de 2011, junto aos autos;
106. Quer pela ARSLVT, que concluiu que o médico de família “[I] pode efectuar
exame e passar o atestado médico para renovação da carta de condução de
veículos das categorias A e B, B+E e das Sub categorias A1 e B1, isto é, pode o
exame ser efectuado por qualquer médico no exercício da sua profissão [I] até
porque estão na posse de todo o histórico do utente [I]”;
107. Sendo seu entendimento que “seria mesmo estranho que [I] o médico de
família colocado a trabalhar no âmbito de um ACES, se declarasse impedido de
passagem de atestado médico para efeitos de exames de condução aos utentes
que acompanha [I] (e de que [é] muitas vezes o seu único médico), e, por outro
lado, aquele mesmo médico procedesse ao atendimento em atendimento privado
(e remunerado para o efeito), neste caso por se considerar dentro do seu conteúdo
funcional.” – cfr. exposição da ARSLVT, de 29 de Junho de 2011, junta aos autos.
108. Refira-se ainda que em resposta ao utente A. de 10 de Maio de 2011 o
Gabinete do Cidadão da ARS Norte informou o mesmo do Parecer já emitido pelo
Gabinete Jurídico da ARS Norte no qual seria defendido que “[I] não obstante a
actividade do médico de família não se esgotar na emissão de atestados, essa
constitui também uma das suas obrigações. Ao médico compete atestar a
informação médica relativa aos seus doentes, nomeadamente para os efeitos
legalmente exigidos (dever de informação).”.
109. De todo o exposto, e tendo em consideração que a situação de recusa de
emissão de atestados médicos não se restringe à USF de Joane, mas pode ser
prática recorrente em todo o território continental;
110. E que – ainda que sem fundamento – são defendidas posições contraditórias
sobre a admissibilidade de tal recusa;
111. Torna-se premente a necessidade de uniformização dos comportamentos dos
profissionais de saúde a exercerem funções nas diversas unidades de cuidados
primários;
112. O que implica que a ERS, ao abrigo das suas atribuições e competências, e
com o intuito de assegurar o direito dos utentes de acesso aos cuidados de saúde,
22
e em especial à obtenção de atestados médicos comprovativos da aptidão física e
mental para, in casu, a obtenção ou renovação de carta de condução;
113. Deva prosseguir uma intervenção regulatória, sob a forma da emissão de uma
Recomendação dirigida às cinco ARS, no sentido de assegurar que estas tomem
uma posição unívoca e uniforme sobre a obrigação de emissão de atestados
médicos pelos profissionais médicos a exercer funções nas unidades de cuidados
primários integradas do SNS;
114. De forma a garantir que os utentes que aí sejam habitualmente seguidos
obtenham a atestação da sua aptidão física e mental;
115. Pela razão que os atestados médicos, ao visarem a prevenção de
determinadas doenças e a promoção quer da saúde individual quer da saúde
pública, não podem deixar de ser integrados naquele conceito de “cuidados de
saúde”;
116. Tal como não podem deixar de estar abrangidos pelo conteúdo funcional dos
médicos de família a exercer funções nas unidades de cuidados primários
integradas no SNS, pois são estes aqueles que melhor serão conhecedores são
do estado de saúde dos seus utentes;
117. E sobre os quais, para além disso, impende expressamente uma obrigação
legal, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 313/2009, de 27 de
Outubro, de praticarem tais actos.
IV. AUDIÊNCIA DE INTERESSADOS
118. A presente decisão foi precedida da necessária audiência escrita de
interessados, nos termos do n.º 1 do artigo 101.º do Código do Procedimento
Administrativo, aplicável ex vi do artigo n.º 41.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27
de Maio, tendo sido chamados a pronunciarem-se, relativamente ao projecto de
deliberação da ERS, a ARS Norte, a ARS Centro, a ARS Lisboa e Vale do Tejo, a
ARS Alentejo e a ARS Algarve.
119. Certo é que no decurso do prazo legal para o efeito, e até ao presente
momento, apenas a ARS Centro e ARS Alentejo vieram exercer o seu direito de
resposta por ofícios de 15 de Novembro de 2011 e 14 de Novembro,
respectivamente, e cujos teores infra se analisam.
23
IV.1. Análise das respostas da ARS Centro e da ARS Alentejo
120. A ARS Centro veio, desde logo, informar que os seus serviços “[I] sempre
consideraram e instruíram os seus trabalhadores no sentido de ser função do
médico de família, a emissão de atestados médicos para efeitos de cartas de
condução, pese embora a opinião da Ordem dos Médicos sobre esta matéria”.
121. Ademais, veio ainda acrescentar a ARS Centro que tendo sido solicitados
esclarecimentos junto dos 14 ACES nela integrados, constataram que “[I] apenas
três unidades de saúde familiares e um ACES não emite os referidos atestados,
alegando a carta de compromisso e as orientações da ordem dos Médicos”;
122. Entendeu, no entanto, ainda salientar ter sido “[I] referido atraso na marcação
de consultas para o efeito específico da emissão de carta de condução, alegando
a falta de recursos humanos”.
123. Assim, importa concluir não ter sido apresentado pela ARS Centro, no exercício
do seu direito de pronúncia em audiência de interessados, um qualquer elemento
factual e documental dissentâneo dos factos e sua apreciação tais como
constantes do projecto de deliberação da ERS.
124. Com efeito, os argumentos veiculados configuram, por um lado, uma aceitação
e concordância com o entendimento expresso pela ERS no projecto de
recomendação regularmente notificado;
125. E por outro lado, demonstram ser já orientação dada por essa ARS aos seus
funcionários ser “[I] função do médico de família, a emissão de atestados
médicos para efeitos de cartas de condução, pese embora a opinião da Ordem dos
Médicos sobre esta matéria”.
126. Por seu turno, a ARS Alentejo veio informar que “[I] concorda integralmente
com toda a fundamentação de facto e de direito plasmada no Parecer que sustenta
o projecto de decisão, nada tendo acrescentar ou propor quanto à matéria em
causa.”.
127. Assim, e considerando não só o teor da pronúncia da ARS Centro e da ARS
Alentejo, bem como o facto de até ao momento presente nenhuma das demais
ARS ter exercido o seu direito de pronúncia;
24
128. Conclui-se pela inexistência de qualquer facto ou documento susceptíveis de
alterar o projecto de deliberação tal como notificado pela ERS às partes envolvidas
e que, por isso, se mantém in totum.
V. DECISÃO
129. Em face de todo o exposto, e nos termos e para os efeitos dos artigos 41.º n.º 1
e 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, o Conselho Directivo da
Entidade Reguladora da Saúde recomenda à Administração Regional de Saúde do
Norte, I.P., à Administração Regional de Saúde do Centro, I.P., à Administração
Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P., à Administração Regional de
Saúde do Alentejo, I.P., e à Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P.,
doravante consideradas conjuntamente como ARS:
a) a adopção urgente de todas as medidas necessárias a garantir a
identificação das unidades de cuidados primários integradas no SNS
onde se verificam situações de recusa, por profissionais médicos que
aí exerçam funções, de avaliação médica e consequente emissão de
atestados médicos que comprovem a situação física e mental dos
utentes para fins como obtenção ou renovação de cartas de condução;
e
b) a adopção urgente de todas as medidas necessárias a garantir uma
actuação unívoca e uniforme de todos os profissionais de saúde (em
especial dos médicos de família) a exercer funções nas unidades de
cuidados primários integradas no SNS, no que se refere à obrigação
de emissão de atestados médicos que comprovem a situação física e
mental dos utentes para fins como obtenção ou renovação de cartas
de condução.
130. A versão não confidencial da presente decisão será publicitada no sítio oficial
da ERS na Internet.
O Conselho Directivo