deleuse a arte e a filosofia
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8/3/2019 Deleuse a Arte e a Filosofia
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roberto machado
Deleuze, a arte e a flosofa
Rio de Janeiro
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a geografia do pensamento
Filosofa e criao de conceitos
Gilles Deleuze sempre exerceu seu pensamento em relao a domnios ou
objetos heterogneos levando em considerao no apenas a losoa dediferentes pocas, mas tambm as cincias, as artes, a literatura. Alguns
de seus estudos so monograas sobre lsofos: Lucrcio, Leibniz, Espinosa,Hume, Kant, Nietzsche, Bergson, Foucault Outros dizem respeito a
pensamentos no loscos: Proust, Sacher-Masoch, Zola, Kafka, Melville,Whitman, Tournier, Carmelo Bene, Beckett, Francis Bacon e o cinema.Finalmente, um terceiro tipo aborda um tema a diferena, o sentido, o
desejo, a multiplicidade, os diferentes modos de exerccio do pensamento
a partir da produo losca, literria, artstica e at mesmo cientca:matemtica, fsica, biologia, lingustica, psicanlise, antropologia ocaso de Diferena e repetio, Lgica do sentido, O anti-dipo, Mil plats, O que a flosofa?.
Ora, a heterogeneidade desses domnios ou objetos no deve obscure-cer a espantosa homogeneidade do procedimento que possibilita denir seumodo de pensar como losco. s aparentemente, portanto, que a obrade Deleuze composta de livros de histria da losoa, de crtica de arte ouliterria e nalmente de reexo losca. Vejamos por qu.
No se pode desprezar a quantidade e a qualidade dos textos de Deleuze
sobre arte e literatura. No se pode esquecer a utilizao que alguns de seus
escritos fazem de teorias cientcas. Seu pensamento no se restringe considerao do texto losco: fazer losoa muito mais do que repetirou repensar os lsofos. Quando, porm, ele estuda o discurso cientco ouas expresses artsticas e literrias, jamais tem por objetivo fazer losoa
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das cincias, das artes ou da literatura. Pois, para ele, a losoa no uma
reexo sobre a exterioridade da losoa, uma reexo sobre domnios ou
reas extrnsecas ao discurso losco; ela um processo de criao. Nocreio que a losoa seja uma reexo sobre outra coisa, como a pintura ou
o cinema No se trata de reetir sobre o cinema O cinema no para
mim um pretexto ou um domnio de aplicao. A losoa no est em es -
tado de reexo externa sobre os outros domnios, mas em estado de aliana
ativa e interna entre eles, e ela no nem mais abstrata, nem mais difcil,
arma Deleuze no momento da publicao de seu primeiro livro sobre o
cinema,A imagem-movimento.1 E volta a insistir na mesma ideia quando do
lanamento deA imagem-tempo: Quando se vive em uma poca pobre, a -losoa se refugia em uma reexo sobre Se ela nada cria, que mais pode
fazer seno reetir sobre? De fato, o que interessa retirar do lsofo o
direito reexo sobre. O lsofo criador e no reexivo.2
Quando Deleuze diz que o lsofo criador e no reexivo, o que pre -
tende se insurgir contra a caracterizao da losoa como metadiscurso,
metalinguagem, uma tendncia da losoa moderna que, desde Kant, tem
por objetivo formular ou explicitar critrios de legitimidade ou de justi-
cao. Insurgindo-se contra essa tendncia, ele reivindica para a losoaa produo de conhecimento ou, mais propriamente, a criao de pensa-
mento, como acontece com as outras formas de saber, sejam elas cient-
cas ou no. Da ele denunciar a epistemologia como um agente de poder
na losoa que desempenha como a histria da losoa um papel de
repressor do pensamento ou se constitui como um aparelho de poder no
prprio pensamento; da tambm ele acusar Wittgenstein de ter sufocado e
at mesmo matado o que havia de vivo no pensamento anglo-saxo, criando
uma estpida escola estril.3
Essas crticas, que s aparecem incidentalmente em sua obra so -
bretudo em entrevistas , sem terem sido rigorosamente formuladas
e explicitadas, so, no entanto, um bom indicador de como sua losoa
se distingue dessas losoas contemporneas; alm disso, elas permitem
compreender como a novidade de seu projeto no impede que Deleuze
seja considerado um lsofo clssico ou tradicional. Assim, quando sua
losoa se pe em relao intrnseca com saberes de outros domnios com outros modos de expresso , o objetivo no fund-los, justic-los
ou legitim-los, mas estabelecer conexes ou ressonncias de um domnio
a outro a partir da questo central que orienta suas investigaes: o que
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signica pensar?, o que ter uma ideia? na losoa, nas cincias, nas
artes, na literatura.
Para a epistemologia, por exemplo, o conhecimento uma exclusi- vidade da cincia, e a losoa no produz propriamente conhecimento.
O objetivo da epistemologia reetir sobre como a cincia funciona para
fazer uma teoria do conhecimento cientco. Por isso, sem se colocar em
uma perspectiva de reexo sobre a cincia, ou seja, em uma perspectiva de
elucidao das operaes caractersticas da racionalidade cientca, uma
teoria do conhecimento seria uma meditao sobre o vazio, para utilizar
a expresso de Canguilhem.* Ora, para Deleuze, o objeto principal da lo-
soa o exerccio do pensamento presente na losoa, mas tambm nascincias, nas artes, na literatura. O pensamento no um privilgio da lo -
soa: lsofos, cientistas, artistas so antes de tudo pensadores. E porque
a questo do pensamento se encontra no mago da considerao, por De-
leuze, de qualquer domnio de saber que seu pensamento jamais sai da lo-
soa, nunca deixa de ser losoa; mas tambm que seus estudos, sejam eles
sobre lsofos, artistas, literatos, nunca se detm numa questo de detalhe,
investigando, ao contrrio, o procedimento de criao desses pensadores, o
prprio modo de funcionamento de seus pensamentos, a engrenagem, algica de um pensamento.4
Se quisermos relacionar seu procedimento losco com o de dois -
lsofos franceses que tiveram como projeto dar s cincias a losoa que
merecem, que pretenderam renovar a losoa colocando-a altura das re -
volues cientcas modernas, poderemos dizer que, em vez de Bachelard
e sua epistemologia, a metafsica de Bergson que serve de modelo para a
losoa de Deleuze. Em A imagem-movimento ele se refere explicitamente
ao desejo profundo de Bergson: fazer uma losoa que seja a da cinciamoderna (no no sentido de uma reexo sobre a cincia, isto , de uma
epistemologia, mas, ao contrrio, no sentido de uma inveno de conceitos
autnomos, capazes de corresponder aos novos smbolos da cincia) .5 E,
no mesmo livro, amplia o projeto de Bergson situando-o na direo de seu
prprio projeto: deve se tornar capaz de pensar a produo do novo
* Lobjet de lhistoire de la science, tudes dhistoire et de philosophie des sciences, Paris,Vrin, 1968, p.11. No nos enganemos. Deleuze pode at recolher uma ou outra ideia nosescritos de Canguilhem, como faz com quase todos os pensadores; h, no entanto, incom -patibilidade total entre os projetos loscos dos dois. Sobre a epistemologia de Cangui-lhem, cf. a primeira parte de meu livro Foucault, a cincia e o saber(Zahar, 2006).
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trata-se de uma converso total da losoa, e o que Bergson se prope a
fazer: dar cincia moderna a metafsica que lhe corresponde, que lhe falta,
como uma metade faz falta outra metade. Mas pode-se parar nesse cami-nho? Pode-se negar que as artes tambm tenham que fazer essa converso?
Que o cinema seja um fator essencial a esse respeito, e at mesmo tenha um
papel a desempenhar no nascimento e na formao desse novo pensamento,
desse novo modo de pensar?6
A losoa como a cincia, a arte, a literatura dene-se, portanto,
por seu poder criador ou, mais precisamente, pela exigncia de criao
de um novo pensamento. Mas isso no signicaria assimilar os diferentes
domnios do saber? No, na medida em que o poder criador da losoareivindicado por ele especco. Qual , ento, a diferena? Deleuze ex-
plicitou a distino das formas de criao que caracterizam os vrios sa-
beres, assinalando o fundamental da diferena constitutiva da losoa: a
criao ou a produo de conceitos A losoa se ocupa de conceitos;
ela os produz, os cria. A pintura cria um determinado tipo de imagens,
linhas e cores. O cinema cria outro tipo de imagens, imagens-movimento
e imagens-tempo7; O que me interessa so as relaes entre arte, cincia e
losoa. No existe privilgio de uma dessas disciplinas sobre as outras.Cada uma delas criadora. O verdadeiro objeto da cincia criar funes,
o verdadeiro objeto da arte criar agregados sensveis e o objeto da loso-
a criar conceitos.8
Desde o seu aparecimento, de forma espordica na poca dos livros so-
bre o cinema, essa explicitao da relao entre os domnios de pensamento
tem dois aspectos. Por um lado, h interferncia, repercusso, ressonncias
entre atividades criadoras sem que haja prioridade de umas sobre as outras,
e, especialmente, sem que a losoa tenha qualquer primado de reexo e
inferioridade de criao. Os conceitos so exatamente como sons, cores ou
imagens, e isso faz com que a losoa esteja em estado de aliana com os
outros domnios. Um agregado sensvel, uma funo pode estimular a cria-
o de conceitos na losoa e, inversamente, um conceito pode estimular
a criao nas outras disciplinas. Criar, em todos esses domnios, sempre
ter uma ideia. Pensar ter uma nova ideia. Por outro lado, h especicidade
dos saberes, no sentido em que cada um responde a suas prprias questesou procura resolver por conta prpria e com seus prprios meios problemas
semelhantes aos colocados pelos outros saberes. Por isso, uma ideia los-
ca diferente de uma ideia cientca ou artstica.
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Mas o lugar onde Deleuze melhor explicita essa distino entre funes,
agregados sensveis e conceitos ao formular uma teoria diferencial do exer-
ccio do pensamento a partir de suas atividades especcas de criao emO que a losoa?. Deixemos de lado a comparao entre as formas de cria-o, elaborada a partir de uma concepo do pensamento como criador, para
enfocar mais detidamente a teoria do conceito que esse livro apresenta.
O que a losoa? inicia com a armao de seus autores de que a res-posta questo enunciada no ttulo do livro sempre foi clara para eles: A
losoa a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.* Resposta
que os leva a acrescentar, logo a seguir, que ao criar a losoa, os gregos
substituram o sbio oriental, que pensa por gura, pelo lsofo amigo dasabedoria, que pensa o conceito. Ser amigo da sabedoria signica criar con-
ceitos, criar novos conceitos. H mais uma vez dois aspectos nessa ideia.
Por um lado, a losoa criao, isto , tem a funo de criao, assim
como a cincia, a arte, a literatura. O elemento da losoa, portanto, no
dado, no existe implicitamente, velado, sendo revelado pelo lsofo;
criado e se conserva como uma criao. O pensamento losco criador
porque faz nascer alguma coisa que ainda no existia, alguma coisa nova. A
esse respeito Deleuze est seguindo no s Bergson, mas principalmenteNietzsche, quando este diz que o lsofo no descobre: inventa. Por outro
lado, a losoa criao especca, criao de conceitos, sem que haja ne-
nhuma preeminncia, nenhuma superioridade, nenhum privilgio da lo-
soa em relao s outras formas de criao, cientca, artstica ou literria.
Mas tambm sem que essa funo conceitual possa ser usurpada por ou-
tros saberes como a sociologia, a lingustica, a psicanlise, a epistemologia,
a anlise lgica e at mesmo tcnicas como a informtica, o marketing, o
design, a publicidade, a comunicao.Se Deleuze defende que a losoa no contemplao, reexo, comu-
nicao, porque a considera criao, e criao singular, ou melhor, criao
de conceitos singulares: Toda criao singular, e o conceito como cria-
o propriamente losca uma singularidade.9 Ideia, tambm de inspi-
rao nietzschiana, que j afasta Deleuze de muitos outros lsofos e o leva
a sugerir que todos criaram conceitos singulares, mesmo se disseram o con-
trrio. Uma das implicaes importantes dessa ideia, por favorecer a com-
*Efetivamente essa ideia antiga em Deleuze, como se v pelo artigo Bergson, de 1956,que inicia justamente dizendo: Um grande lsofo aquele que cria novos conceitos(ID, p.28). Cf. tambm a entrevista de 1980 Huit ans aprs: entretien, DRF, p.163.
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preenso de como Deleuze pensa, que os conceitos so assinados, tm o
nome de seu criador, pois o nome prprio, segundo ele, uma individuao
sem sujeito, denida por afetos, potncias, intensidades: uma hecceidade,para usar a palavra de Duns Scot que lhe to cara.10 Assim, ideia remete a
Plato, substncia a Aristteles, cogito a Descartes, mnada a Leibniz, con-dio de possibilidade a Kant, vontade de potncia a Nietzsche, durao a
Bergson
Em O que a losoa? encontramos vrias caractersticas do conceito.Chamo a ateno para a mais bsica: um conceito um todo fragmentado,
uma totalidade fragmentria. Isto signica que, em vez de ser algo simples,
o conceito uma multiplicidade, uma articulao de elementos, de compo-nentes, eles mesmos conceituais, distintos, heterogneos, mas inseparveis,
intrinsecamente relacionados, agrupados em zonas de vizinhana ou de in-
discernibilidade.
Um exemplo esclarecedor, retomado de Diferena e repetio em O que a losoa?, o conceito cartesiano de eu ou de cogito: penso, logo sou. De-leuze explicita esse conceito como enunciando: Eu que duvido, eu penso,
eu sou, eu sou uma coisa que pensa, apontando que ele tem trs componen-
tes: duvidar, pensar e ser. Alm disso, ele defende que esses componentesesto organizados em duas zonas de vizinhana que permitem passar de
uma a outra: uma primeira zona relaciona duvidar e pensar: eu que duvido
no posso duvidar que eu penso; uma segunda zona relaciona pensar e ser:
para pensar preciso ser.11 Esses trs elementos constituem um conceito. E
evidentemente esse conceito no existe de modo isolado, pois uma losoa
formada por conceitos inter-relacionados. Assim, o conceito de cogito seconecta com o de Deus, que por sua vez se conecta com o de extenso. A
grande novidade do conceito cartesiano de cogito sua recusa de pressu-posto objetivo onde denir um conceito remeteria a outros conceitos ainda
no denidos, como na denio aristotlica do homem como animal ra-
cional, na qual para saber o que o homem preciso saber o que animal e
racional. Com o cogito, Descartes cria um conceito que no pressupe nadade objetivo, um primeiro conceito que determina a verdade como certeza
subjetiva absolutamente pura e a partir do qual os outros conceitos adqui-
rem objetividade pela ligao com ele.O que Deleuze chama de devir do conceito essa conexo tanto dos
elementos de um conceito quanto dos diferentes conceitos em um mesmo
sistema conceitual; o fato de que os conceitos se coordenam, se conectam,
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se compem, se aliam numa determinada losoa, mesmo que tenham his-
trias diferentes. Assim, ele distingue devir e histria de um conceito. Dizer
que um conceito tem uma histria signica que ele no criado do nada; foipreparado por conceitos anteriores ou alguns componentes desse conceito
vm de conceitos de outros lsofos, embora ele permanea original.
A esse respeito, Deleuze chama a ateno para a originalidade do con-
ceito kantiano de cogito com relao ao cartesiano. Pois, para Kant, se o eupenso uma determinao que implica uma existncia indeterminada
eu sou, ainda no se sabe como esse indeterminado determinvel, nem
sob que forma ele aparece como determinado. Portanto, no se pode dizer,
como Descartes, eu sou uma coisa pensante. Por que Kant pode dizer isso?Porque introduz um novo componente no cogito, o tempo como forma dainterioridade, defendendo que s no tempo minha existncia indetermi-
nada determinvel.
O cogito cartesiano signica: eu penso, logo sou (pois para pensar pre-ciso ser), eu sou uma coisa que pensa. Eu penso um ato, um princpio de
determinao, eu sou algo a determinar, a existncia indeterminada. E
a relao entre os dois termos se d no sentido em que a determinao eu
penso determina a existncia indeterminada eu sou como sendo a existn-cia de um ser pensante. Temos ento: eu penso, logo sou, eu sou uma coisa
que pensa. A crtica kantiana consiste em negar um encadeamento entre os
dois termos e propor um terceiro. Esse terceiro termo a forma sob a qual o
indeterminado determinvel pela determinao: a forma do tempo. O que
muda, ento, com a introduo do tempo no cogito? Que a existncia do eupenso s determinvel no tempo, portanto como um eu fenomenal, recep-
tivo e mutante, porque o tempo uma forma da intuio, que sensvel, e
no intelectual, como o eu penso, que Kant chama de forma da apercepo:
o tempo a forma sob a qual a intuio de nosso estado interno torna-se pos-
svel. O tempo s nos representa conscincia como nos aparecemos e no
como somos em ns mesmos porque s nos intumos como somos interna-
mente afetados .12 Assim, o eu transcendental distinto do eu fenomenal,
porque o tempo os distingue no interior do sujeito. O nico conhecimento
que podemos ter de ns mesmos o do eu fenomenal. Portanto, no sentido
de que um conceito preparado por outros como o conceito kantiano decogito elaborado a partir do cartesiano que um conceito tem uma his-tria. O que diferente de seu devir, isto , da inter-relao conceitual em
determinado sistema losco, seja o cartesiano, seja o kantiano.