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Teologia da cidade – nos livros, nas ruas Delcides Marques Mestrando em Antropologia Social Universidade de Campinas - UNICAMP “Mas quem se importa ainda com os teólogos excetuando os teólogos?” Friedrich Nietzsche (2003 [1878], p. 36) “[...] o método comparativo é o único que convém à sociologia”. Émile Durkheim (1978 [1895], p. 150) Historiando... Page 1 of 21 :::OS URBANITAS - Revista de Antropologia Urbana::: ISSN 1806-0528 , Ano 5, v.5, nº... 31/7/2009 http://www.aguaforte.com/osurbanitas8/delcidesmarques-dossieRAM-2008.html

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Teologia da cidade – nos livros, nas ruas Delcides Marques Mestrando em Antropologia Social Universidade de Campinas - UNICAMP

“Mas quem se importa ainda com os teólogos excetuando os teólogos?” Friedrich Nietzsche (2003 [1878], p. 36)

“[...] o método comparativo é o único que convém à sociologia”. Émile Durkheim (1978 [1895], p. 150)

Historiando...

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É possível demonstrar que a antropologia teve origem na racionalista e desencantada teologia (protestante), mas pode-se, também, e apesar disso, defender que há uma supremacia da antropologia, como saber científico, sobre a teologia, um saber religioso. Há trajetos dos saberes teológico e antropológico que podem ser tomados como alternância entre aproximações e distanciamentos de um em relação ao outro. Vejamos alguns elementos sobre tais embates ou avizinhações a partir do modo como certos antropólogos se posicionaram em relação à teologia como sua inimiga, num cientificismo legitimador, ou como sua interlocutora, num dialogismo disciplinar, a fim de ressaltar, posteriormente, o modo como lidamos com os dois saberes neste trabalho.

Em termos foucaultianos, se o século XIX é marcado pelo surgimento e especialização das ciências que constituem a epistéme moderna ao criar o homem como objeto científico, foi dos séculos anteriores que tais ciências receberam uma herança que vinha se consolidando no pensamento ocidental. Autores de origem religiosa como Herman Reimarus, Gotthold Lessing, Johann Herder, Friedrich David-Strauss, entre outros, preconizaram ou contribuíram para a distinção entre estudos teológico-dogmáticos e histórico-filológicos. Se a teologia tratava a religião mais como realidade a priori, tendo por pressuposto o cristianismo, os autores acima diagnosticaram que a teologia estava em vias de ser substituída por saberes que tomariam a religião como fenômeno a posteriori, em perspectiva histórica, lingüística, psicológica e sociológica.

Além da racionalização da religião no próprio meio religioso, a filosofia positiva de Auguste Comte (1978 [1830-1842]; 1978 [1844]) também censurou o termo teologia e o relegou a uma possível fase pré-metafísica da evolução do pensamento científico. Tal fase fictícia estaria baseada num estado de imaginação e crença em deuses e espíritos, numa coesão social baseada na moral e numa busca por conhecimentos absolutos. A teologia deveria ser ultrapassada. Anos depois, Marcel Mauss (1999 [1909], p. 229) também criticou os teólogos. Em sua argumentação, eles haviam sido praticamente os únicos teóricos da oração, mas na verdade teriam estudado não a prece, e sim a idéia que eles tinham dela. Os estudos teológicos teriam partido de suas tradições religiosas e com vistas a retornar a elas. O teólogo estaria irremediavelmente preso à sua religião. Desse modo, a teologia foi vista negativamente como um instrumento religioso que obstava o posicionamento científico.

Com Edward E. Evans-Pritchard a teologia pôde aparecer com um sentido mais positivo, principalmente em sua aproximação com a antropologia. Ele criticou os cientistas sociais que não deram a devida atenção à teologia. De modo que, se os teólogos possuíam um profundo conhecimento do cristianismo, mas outro bastante superficial das “religiões primitivas”, com os cientistas sociais acontecia

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justamente o contrário. Era preciso, nesse sentido, aliar os dois saberes em si mesmos insuficientes. Evans-Pritchard demonstrou a possibilidade (mas também o desafio) de falar em algo como uma “teologia Nuer” ou “teologia Azande” (Evans-Pritchard, 1956; 1974 [1936]; 1974 [1959]; 1978 [1965]). Mary Douglas, por sua vez, não deixou de situar o nascimento radical da antropologia nos púlpitos das igrejas inglesas, ao vinculá-lo ao nome de Robertson Smith (uma profunda inspiração no pensamento de James Frazer e Émile Durkheim).

Como se vê, a emergência da antropologia a partir de sua antecessora, a teologia, pode ser tomada em dois sentidos emancipatórios dessemelhantes.

Num sentido, tratar-se-ia de um oprimido que alcança sua liberdade, e que só pode comemorar a soltura. No outro sentido, remeteria a um filho que conquista a maioridade, mas que deve muito às suas origens. Se o primeiro ponto de vista lembra a libertação do encavernado da alegoria platônica, o segundo remete diretamente ao Zaratustra nietzschiano pós-caverna. Um é solto, o outro se liberta.

Contextualizando...

No caso brasileiro, a aproximação entre os dois saberes foi realizada particularmente por Otávio Velho (1995) e Carlos Steil (1996). Em anos mais recentes, o pensamento tomado como objeto de estudo por parte de antropólogos. Marcos Rufino (2006) tratou da teologia católica da inculturação e Ronaldo de Almeida (2002) da teologia protestante fundamentalista. Uma aproximação entre teologia e ciências da religião foi realizada por Antônio Gouvêa Mendonça (2005). Apesar da inspiração em tais autores, a abordagem proposta aqui é relativamente distinta.

Enfim, como os dois saberes são engrenados neste trabalho? Três alternativas foram discutidas por Joel Robbins (2006). Poderia pertinentemente dar cabo à primeira parte do texto e continuar buscando o papel que idéias teológicas tiveram na formação do pensamento antropológico. De outro modo, também não

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seria vão acompanhar a influência do trabalho dos teólogos (elites da igreja) sobre as comunidades cristãs comumente estudadas. Outra escolha perceberia como a teologia coloca questões fundamentais para se revisar o projeto antropológico (tal como teria feito a presença do feminismo na antropologia stratherniana).

As perspectivas que poderíamos adotar por meio de Mary Douglas e Joel Robbins (teologia versus antropologia) e inspirados em Strathern (feminismo versus antropologia) são interessantes, mas a nossa pretensão está fundada numa outra comparação (teologia de escritores católicos versus teologia de pregadores pentecostais). Optamos por colocar concepções teológicas referidas à vida na cidade sob perspectiva comparada. A antropologia aparece aqui, diga-se de passagem, mediando e simetrizando uma interlocução entre as duas teologias. Não que com isso a antropologia permaneça imune ao contato e confronto. Muito pelo contrário. Por estarmos no âmbito da linguagem, pode-se também ver como a antropologia é contaminada e desafiada por tais discursos heterogêneos. Aliás, e ainda que não seja o nosso foco primordial aqui, pode ser que haja pistas nos argumentos dos teólogos que sirvam como provocação aos argumentos antropológicos.

Interessa-nos bastante a formulação de Strathern (1999, p. 166) de que os dados etnográficos são eles próprios produzidos, e o são de tal modo a responder “às perguntas que se vão fazer a eles; assim, isto é, até certo ponto, uma câmera de eco”. Instiga-nos, de igual modo, a sua proposta de uma “experimentação com modos narrativos” que se voltam “para a maneira pela qual se pode manter a análise como uma espécie de ficção conveniente e controlada” (Strathern, 2006 [1988], p. 19 e 31). Nesse sentido, por mais que a ficção seja antropológica, nem a antropologia nem os pregadores e teólogos são fictícios. A idéia é levar a escrita etnográfica às suas (últimas) conseqüências, tal como apontou Clifford Geertz: O que faz o etnógrafo? – ele escreve (1978 [1973], p. 30). Mas a escrita é ao mesmo tempo o recurso e a limitação do trabalho antropológico descritivo (tal como mostraram os antropólogos “pós-modernos”). A proposta é que podemos escrever, estando menos interessados em explicar ou interpretar o discurso-prática dos interlocutores e mais atentos para experimentar as relações e práticas de sentido por meio de uma ficção que não é interpretação da interpretação, nem construção de construção ou ainda piscadela de piscadela de piscadela...

Em suma, esse texto apresenta-se como uma ficção, uma estratégia narrativa, uma tentativa de inventar linguagem, de produzir conceito. É escrito por alguém que num dia fora pregador e noutro estivera envolvido com a teologia (Marques, 2006), mas que se deparou com suas procedências em conflito durante a pesquisa de campo. Enfim, pregadores de rua poderiam ser tomados como

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produtores de concepções teológicas? Tais concepções poderiam ser comparadas com as concepções de outros teólogos que escrevem sobre as experiências da cidade?

Mesmo que os pregadores da Sé não estejam lá muito interessados com a teologia acadêmica – como me disse o pregador Roberto em entrevista numa manhã de fevereiro de 2005: “Aqui temos experiência, não teologia” –, eu estou. De todo modo, assumo que esse é um objetivo explicitamente pessoal e que me interesso pela possibilidade de multiplicar o discurso-prática dos pregadores a partir de sua potencialidade teológica; uma “câmera de eco”. Isso não indica uma distorção deliberada dos pregadores, mas uma torção que visa perceber as dobras de suas falas por meio de um confronto que se faz por cima, que nivela epistemologicamente todos os envolvidos. Se os pregadores não estão diretamente interessados em teologia, estão, por sua vez, interessados em falar de cidade. E se também há teólogos falando dela, julgo interessante tratá-los relacionalmente com os pregadores. Ainda que os pregadores não sejam seus leitores, até porque, além dos pregadores não utilizarem livros como referência em suas pregações, tais escritores são católicos. Diante também da possibilidade maior de que tais teólogos tenham visto os pregadores, basta ir à Praça da Sé, local da Catedral de São Paulo, durante o dia todo em todos os dias de segunda a sexta-feira para ouvir suas pregações.

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Fotografia 1. “Pregador de frente para a Catedral”. Fonte: Arquivo pessoal. Doug Casarin. Maio de 2006.

E já que vim desse meio religioso (Marques, 2006), sem demora admito desconsiderar qualquer possibilidade de uma absoluta identificação ou de um total estranhamento diante de tais práticas sociais. Há, isso sim, a possibilidade de retomar a memória e repetir esses religiosos num devir-pregador e devir-teólogo que não é, evidentemente, nem metamorfose de identidade (no meu caso, “retornar-se nativo”) nem alteridade como diferença intransponível. De modo que prezo por um discurso antropológico que não pretende se confundir com a fala dos pregadores nem com o texto dos escritores; não sendo, portanto, nem um dos elementos nem o conjunto destes. A antropologia pode ser outra coisa que uma síntese dialética dos discursos nativos. Tal experimento argumentativo não se aventura na busca por uma ontologia da identidade ou da alteridade plenas, mas pelas circunstâncias, funcionalidades, acontecimentos. O argumento antropológico é, no limite, uma multiplicidade.

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Acredito que neste encontro discursivo a minha fala recria a deles. Pretendo repeti-los, pregadores e teólogos, contudo, com uma repetição que não ambiciona se confundir com suas próprias falas, pois, como ensinou Gilles Deleuze (1988 [1968]), repetição é diferença. Há sempre algo que não se repete na repetição. Há sempre um indício que denuncia a repetição. Há sempre uma variação ou desafinação ou dissonância que sugere a imitação. Estamos, portanto, diante de uma memória que possibilita a repetição e de uma opção de vida que dá a conhecer a diferença mais radical. Mas, numa “reversão do platonismo” é preciso dar legitimidade ao simulacro.

Ainda inspirado em Deleuze, quando falo dos pregadores da Praça da Sé, refiro-me a alguns dos pregadores “fixos” (Alexandre, Edvaldo e Roberto) e a alguns pregadores de “de vez em quando” (Cristiano e Altino). Aqui, falar em “os pregadores” é fazer uso de uma repetição que é também diferença: dos “fixos” entre si, dos “fixos” com os de “de vez em quando”, e dos eventuais entre si. De igual modo, ao mencionar o nome individual dos pregadores, levo em consideração a multiplicidade da repetição-diferença que não pode, por conseguinte, ser confundida com a generalidade que simplifica reduzindo ou com a meticulosidade que impossibilita a repetição.

Uma de minhas primeiras preocupações referiu-se à escolha do tema a ser tratado e dos teólogos a serem postos em comparação com os pregadores da Sé. Evitando escolhas absolutamente aleatórias, decidi por um tema respeitante diretamente à prática diária dos pregadores e à preocupação dos teólogos da libertação: a vida na cidade. Foram dois os teólogos escolhidos para a comparação: José Comblin e João Batista Libâneo . Ambos são autores singulares na teologia brasileira, pois acompanharam e produziram obras sobre os sucessos e desafios da Igreja Católica e da Teologia da Libertação nas últimas décadas. São autores reconhecidos no ambiente acadêmico-teológico e que têm se debruçado especificamente no apontamento de entrecruzamentos entre o cristão e a cidade a partir do cotidiano das pessoas e das instituições sociais.

Outro de meus desafios referiu-se à conceituação de teologia que poderia auxiliar, ao menos provisoriamente, o experimento. Optei, então, por uma concepção simples de teologia, mas que não pretendo que seja de modo algum simplista. No caso, uma conceituação fundada na etimologia. Em grego o termo theología refere-se, parafraseando, ao discurso racional sobre assuntos diversos correlatos à divindade. Assim, ao invés de nivelá-los por baixo como

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“crentes” (com preconceitos do tipo, “eles crêem, nós sabemos”), os tomo, pregadores e teólogos, como discursadores do Deus-cristão: uns como teólogos da escrita e dos livros e outros como teólogos da fala e da rua. Teólogos sim, e todos eles, mesmo que cada um ao seu modo. Eles são vistos como teólogos, e isso a fim de que todos sejam tratados como estando no mesmo nível epistemológico. Um faz teologia mais pela escrita, outro mais pela pregação – tal distinção, todavia, tem a ver com a preponderância das atividades e não necessariamente com a exclusividade delas. De qualquer modo, ambos produzem logos, enquanto discurso e palavra – escrita, falada, pensada, vivida.

E falar em teologia “da cidade” é retomar o título de um dos clássicos livros de José Comblin (1991 [1968]). Para ele tal teologia está mais próxima da chamada teologia pastoral urbana, que trata do papel da Igreja nas grandes cidades. O que fiz, portanto, foi diminuir o alcance semântico para ampliar o alcance epistêmico da expressão, de modo a abarcar também os teólogos da Sé.

Os pregadores, se é que posso tomá-los como minoritários ou marginais no sentido dado por Félix Guattari (1981, p. 46s), ao menos são costumeiramente tidos pelos teólogos estabelecidos como teologicamente improdutivos ou, na melhor das hipóteses, leigamente produtivos. Nesta ocasião, não se fará a necessária discussão fundamentos gerais da Teologia da Libertação. Necessária, pois é uma teologia que se apresenta como aquela que dá voz ao oprimido. Restaria discutir as implicações do pressuposto de que há “três teologias” na Teologia da Libertação: teologia profissional e acadêmica (tem a lógica científica); teologia pastoral e evangelística (tem a lógica da ação); e teologia popular e leiga (tem a lógica da vida). Clodovis Boff afirma a sua não-pretensão de pôr a teologia profissional acima da teologia popular, contudo, ao tratar particularmente do teólogo profissional ele diz: “o teólogo sabe com os outros”, “o teólogo sabe para os outros”, e “o teólogo sabe pelos outros” (Boff, 1999, p. 604s). Diversas teologias, um teólogo?!

Procurando superar uma desclassificação classificatória, tratamos os pregadores como estando lado a lado com os teólogos que escreveram sobre as experiências de vida na cidade, a fim de experimentar conceitualmente as teologias que eles propõem, e de vê-las como discursos-práticas alternativos, contrastantes ou complementares às teologias “estabelecidas”. É um debate teológico comparado que oscila entre a teologia de pregadores de rua e a teologia de escritores e leitores de livros . Uns consultando e produzindo muitos textos, outros consultando e reproduzindo um só texto: a bíblia. Dessa forma, o que me interessa são as relações sociais nos (o lado de dentro do lado de fora) e dos (o lado de fora do lado de dentro) discursos-práticas citados. Enfim, as relações entre as relações; relações de relações.

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No que tange aos pregadores de rua, busca-se, portanto, experimentar o que Michel Foucault mencionou ao se referir aos prisioneiros envolvidos nos trabalhos do Grupo de Informação sobre as Prisões (G.I.P.). Segundo Foucault (2003 [1972], p. 40), quando os prisioneiros “se puseram a falar, eles próprios tinham uma teoria da prisão, da penalidade, da justiça”. Nesse sentido, o que lhe interessou foi “essa espécie de discurso contra o poder, esse contradiscurso sustentado pelos prisioneiros ou por aqueles a quem chamam de delinqüentes, é isso o que conta, e não uma teoria sobre a delinqüência”. É assim que pretendo tomar as “idéias” dos pregadores também como “conceitos”, e extrair de tal decisão as suas conseqüências (Viveiros de Castro, 2002, p. 129). Lembrando que “um conceito ora necessita de uma nova palavra para ser designado, ora se serve de uma palavra ordinária à qual dá um sentido singular” (Deleuze, 1992 [1990], p. 46).

Simetrizando...

Veremos, de agora em diante, quais são os temas que procedem para a anunciada comparação das teorias dos teólogos-escritores com as teorias dos teólogos-pregadores sobre a vida na cidade. Como já explicitei, José Comblin e João Batista Libâneo são teólogos católicos ligados à Teologia da Libertação. Os dois tratam da experiência citadina em abordagem bastante próxima: as críticas são as mesmas, mas a ênfase num ou noutro aspecto e o modo da argumentação variam consideravelmente. Por não entrarmos minuciosamente nas possíveis nuances entre eles e por privilegiarmos apenas um texto de cada autor, apresentaremos alguns dos temas referidos à vida na cidade que são comuns tanto a cada um dos dois teólogos como aos teólogos pentecostais de rua, e são eles: 1) criminalidade e drogas; 2) dinheiro; e 3) religião. A eles, portanto.

1) Criminalidade e drogas

Para Comblin (2002, p. 5-6) “as grandes cidades estão numa situação dramática” diante da “criminalidade, poluição, congestionamento, problemas de transporte, tráfico de drogas, armas e todo tipo de contrabando, estresse, cansaço, nervosismo, e assim por diante” . Tal argumentação sobre as

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condições de vida urbana reitera um dos termos centrais do título que Comblin concede à obra: “desafios”. Mas é preciso explicitar que o autor não vê a cidade apenas criticamente. Em outra de suas obras ele ressalta as possibilidades e vantagens de se “viver na cidade” (Comblin, 1996). Além disso, o livro que lançou as bases de sua abordagem sobre a cidade, a toma como um fenômeno histórico-sócio-teológico (Comblin, 1991 [1968]).

Ainda sobre uma caracterização dos problemas da cidade, Libâneo (1997, p. 41-42) afirma que as “gigantescas aglomerações aumentam a violência e criminalidade, o tráfico e consumo de droga, a miséria, a fome, a favelização, a degradação da qualidade de vida, etc”. Libâneo aponta, ainda, que “a grande cidade exprime mais involução que melhoria de vida para a maioria das pessoas”. Como se vê, os dois teólogos falam de grandes cidades (Comblin) ou grande cidade (Libâneo). Ambos mencionam a criminalidade como um drama urbano. E se os dois falam de tráfico de drogas, Comblin acrescenta o tráfico de armas e todo tipo de contrabando e Libâneo o consumo de droga. Os autores divergem na menção a outros problemas: enquanto o primeiro indica problemas de transporte, trânsito e psicologia (estresse, cansaço, nervosismo), o segundo ressalta problemas sócio-econômicos (miséria, fome, favelização, degradação da qualidade de vida).

No que tange a tais problemas, os teólogos da rua têm suas próprias experiências narradas nos CDs de testemunho. Mais do que “histórias de vida”, são “testemunhos de vida”. São teologias fundadas em suas experiências de conversão. Dois dos teólogos da Sé, Alexandre Pedrezane (s/d) e Altino Lara (s/d), denunciam nos CDs o processo de socialização que vivenciaram em suas infâncias.

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Imagem 1. Capa do CD Testemunho”.

O primeiro, Pedrezane, logo nos momentos iniciais de sua narração, diz: “Quero contar a minha vida: o que eu era, o que eu fui e o que eu sou hoje pela misericórdia de Deus”. E começa a narração: “Eu era um menino com apenas dez anos de idade. Comecei no império do crime, no mundo do crime, no tráfico, no roubo e na matança com a minha família”. Contudo, a sua inserção no crime não coube apenas à família: o Diabo “se apoderava da minha vida”.

Lara, “ex-morador de rua”, “ex-mendigo”, “ex-drogado”, “ex-epilético” (como aparece escrito na capa do CD), narra que aos sete anos passou aos cuidados de uma tia que “professava a fé em deuses estranhos”, e que o inseriu no “centro”. Aos treze anos de idade, Altino teria começado a fumar maconha e aos catorze já fazia “avião”. Ele acabou “rejeitado pela sociedade”, e devido à sua “desobediência” e “pecados”, morou sete anos “nas ruas”, inclusive na Sé.

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É interessante que os dois pregadores, teólogos da experiência, enfatizem aspectos distintos de socialização. Um foi conduzido para a criminalidade e drogas (império do crime), o outro para a mendicância (ex-morador de rua e ex-mendigo), doença (ex-epilético) e vício (ex-drogado). Se a droga é comum a eles, Alexandre era também traficante e chegou a ser presidiário no Carandiru. Pedrezane apresenta a família e o Diabo envolvidos na trama de sua socialização. Lara, por sua vez, ressalta o papel de uma tia e de seus próprios atos (desobediência e pecado). Ambos, contudo, chegaram a ser marginais (postos à margem) na cidade (prisão e miséria). Desse modo, os próprios teólogos da praça teriam provindo da situação dramática mencionada por Comblin. Os pregadores teriam vivenciado os problemas da cidade mencionados pelos autores.

2) Dinheiro

Um dos teólogos católicos critica as transformações urbanas paulistanas: “Em outros tempos os símbolos da cidade eram a catedral e o edifício da prefeitura, lugares públicos, símbolos da vida social em comunidade”. Contudo, indicando as mudanças, ele lamenta que “hoje em dia os símbolos são os edifícios dos bancos, símbolos da propriedade privada e da luta pelo lucro. A Praça da Sé de São Paulo tornou-se lugar perigoso e a Avenida Paulista tornou-se o símbolo da cidade” (Comblin, 2002, p. 6-7). Parafraseando outras de suas palavras: o deus da cidade é o dinheiro e a sua cultura é a do mercado capitalista, individualista, competitivo e globalizado. Libâneo chega a falar numa “ideologia do capital” que está lado a lado com outros instrumentos responsáveis pela “morte espiritual do Ocidente”. Nisso tudo, a igreja não pode se omitir, “seja para desmascarar a pretensão neoliberal, seja para resgatar elementos válidos, afinados com sua visão social, da tradição socialista sem deixar, com isso, de reconhecer o fracasso do modelo histórico do socialismo real” (Libâneo, 1997, p. 57). Fica explícito que, enquanto Comblin discorre sobre a mudança dos símbolos da cidade, Libâneo maximiza as pretensões político-econômicas do capitalismo neoliberal.

Edvaldo Silva e Alexandre costumam estabelecer relações particulares com o dinheiro na Praça. Com o primeiro, no dia 01/08/2005, ficou evidenciado que o dinheiro não é discorrido como um problema, mas, e muito pelo contrário, como parte essencial de sua manutenção. Edvaldo, nesse dia, distribuiu envelopes aos presentes e solicitou contribuições dizendo: “Nós não estamos aqui para ganhar dinheiro, mas só podemos contar com a ajuda de vocês. Ninguém nos ajuda; nem igreja”. Assim, os que fossem contribuir deveriam entrar no local riscado e colocar os envelopes numa pasta preta posta sobre o chão. Além disso, Edvaldo e Alexandre também costumam “oferecer” (preferem assim, ao invés de falar em “comercializar”) suas gravações na Praça: o primeiro, com seu DVD de pregação; e o segundo, com seu DVD e CD de testemunho. No dia 19/12/2005 presenciei Alexandre os entregando aos presentes e dizendo: “Ajudem o pregador, amém? Ajudem o pregador; é R$ 10,00. É meu trabalho, meu testemunho, amém?”. Após isso, distribuiu também os envelopes de oferta,

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como eu vira Edvaldo fazer meses antes. Ambos afirmam que o dinheiro da oferta é ajuda. Se Edvaldo realça que ele não está ali para ganhar dinheiro, Alexandre esclarece que o CD é seu trabalho, seu testemunho. A imagem abaixo permite a visualização da disposição dos objetos no culto de um dos pregadores que pede ofertas e oferece seus CDs.

Fotografia 2. Objetos dos pregadores (em detalhe). Fonte: Arquivo pessoal. Delcides Marques. Março de 2008.

É possível perceber, diante de tais descrições, que não é possível separar a fala dos pregadores de suas práticas. É por isso mesmo que parece pertinente continuarmos nos referindo às suas atividades na Sé como discursos-práticas, um falar-fazer . Nesse sentido, os discursos e as práticas servem de contexto um para o outro: pregações e pedidos de contribuições se complementam. E isso sem falar do entorno e do local utilizado para tais atividades e tampouco de

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outros objetos fundamentais para o que acontece ali.

3) Religião

Comblin chega mesmo a comentar que os grupos religiosos aceitos em tal sociedade de mercado, são eles próprios seguidores da lógica mercadológica: a verdade não conta, e sim o convencimento e a utilidade. Nesse sentido, ele critica explicitamente o neopentecostalismo da Igreja Universal do Reino de Deus que “não exige compromisso, oferece satisfação imediata, promete tudo o que faz falta na vida da maioria” (2002, p. 46). A teologia da prosperidade é, para Comblin, “negação do evangelho” ou o que Libâneo chama de “espiritualidade subjetiva” e “de massa” (1997, p. 58 e 60). Não há mais uma crença na religião, mas em “sua própria experiência religiosa” que responde aos seus problemas individuais (idem, p. 58-59). E a resposta católica às necessidades da cidade é uma igreja altamente hierarquizada, onde o clero é “o depositário da doutrina correta” e “dos sacramentos”, além de ser o único que “interpreta corretamente a Bíblia” (Comblin, 2002, p. 15). O catolicismo precisa (re) descobrir seu potencial de “espiritualidade cristã” (Libâneo, 1997, p. 61s).

Diferentemente de Comblin, que utiliza repetidamente os termos neopentecostal e neopentecostalismo (praticamente como sinônimo de pentecostais), Libâneo faz uma distinção entre “pentecostalismo evangélico” e “pentecostalismo autônomo”. De qualquer modo, seja o neopentecostalismo seja o pentecostalismo autônomo são objetos de críticas por parte dos autores. Libâneo tem um argumento que mostra uma mudança de postura de muitos teólogos da libertação em relação ao pentecostalismo evangélico. Se em tempos anteriores ele foi considerado alienador, agora, alguns teólogos “descobrem no próprio pentecostalismo evangélico valores antes desconhecidos”, ou seja, uma forma de libertação (idem, p. 60).

Com relação à inadequação da Igreja Católica, os teólogos da rua são bastante polêmicos. Roberto, por exemplo, chamou a minha atenção para a sua assertiva: a Igreja Católica “não é igreja, é comunidade religiosa, professa uma religião” (em fevereiro de 2005). Nesse mesmo dia, o pregador Roberto afirmou-me que uma igreja é um “ajuntamento de gente qualificada que professa a fé cristã” e que apesar da Praça não ser uma igreja, “a igreja pode estar aqui”. Com relação ao chamado neopentecostalismo, Roberto o criticou por ser uma “mistura de outros tipos de religião; a cruz é católica”. Eles têm um “evangelho doente, deturpado, místico” (fevereiro de 2005).

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Cristiano, por sua vez, e respectivamente nos dias 26/12/2005 e 19/01/2006 pregou: “Eu sou católico apostólico cristão, não romano”, e “pregamos o que está na Bíblia, não como a Igreja Católica com um evangelho distorcido”. Em 19/01/2006, Cristiano, diferentemente de Roberto, argumentou que “igreja tem duas: a prostituta e a santa. A prostituta visa o materialismo. São as igrejas falsas”. E cita os seguintes nomes: “Adventista do Sétimo Dia, Igreja Católica, Testemunhas de Jeová, Mórmons, Macumba”. Mas, a “santa não tem placa, a verdadeira é o corpo do ser humano. O templo é para reunir e adorarmos”.

Articulando os dois pregadores, temos Roberto falando de um evangelho doente, deturpado, místico e Cristiano mencionando evangelho distorcido. Além disso, os dois parecem divergir num ponto: Roberto diferencia igreja e religião, e Cristiano defende que há dois tipos de igreja. Mas seus argumentos coincidem, de certa forma, ao destacar que a igreja (Roberto) e a igreja santa (Cristiano) não são denominações religiosas (placa). A Igreja pode ser apresentada sob o ponto de vista macro, um ajuntamento de gente qualificada (Roberto), e sob o ponto de vista micro, o corpo do ser humano (Cristiano).

Comparando...

Chegamos a um ponto crucial de nossa argumentação. Trata-se de uma inferência sobre as relações percebidas como centrais na rede teórica ampliada dos teólogos da cidade. Como já deve ter ficado evidente, em alguns pontos de suas elaborações os teólogos da cidade se aproximam e em outros se distanciam radicalmente. Quando falam dos problemas da cidade só diferem nos detalhes e quando concebem dinheiro e religião as divergências são bem mais evidenciadas. A figura seguinte pretende facilitar a compreensão do que denomino “circuito das teorias de teologia da cidade”. A expressão “teologia da cidade” subsume a teologia de todos os teólogos em questão: pregadores de rua e escritores de livros. Além disso, as analogias e homologias entre suas teorias são tomadas sob a rubrica de um ciclo que, como pretendo mostrar, é em grande medida um circuito lógico binário. Evidentemente que as relações percebidas e apresentadas não esgotarão as possibilidades teóricas e temáticas dos discursos-práticas dos teólogos dos quais nos ocupamos, afinal de contas, vamos retomar apenas algumas das conexões parciais possíveis nesta comparação. As linhas sugerem relações entre os termos ou expressões que são bastante significativas, mesmo que muitas vezes também polissêmicas. Ficará evidente que as oposições centrais serão as duas primeiras. As demais serão desdobramentos ou dependerão delas. Estamos falando de um esquema que tem suas vantagens e desvantagens. Ganha pela compreensão e perde

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pela simplificação. Quiçá os ganhos superem as perdas.

Figura 1. Circuito das teorias de teologia da cidade.

Ao falar de igreja santa e igreja prostituta (a) encontramos uma distinção entre igreja verdadeira e igreja falsa. A igreja santa não se refere a uma ou a muitas denominações religiosas, mas a outra igreja efetivamente se refere. E o pregador cita nomes. Por mais que "prostituta" seja um termo grosseiro e até ofensivo aos nossos olhos, não o é para Cristiano que pode, inclusive, mostrar passagens bíblicas que o utilizam para se referir ao povo que “se vendeu aos falsos deuses” e abandonou sua fé. Tal igreja visa o materialismo. Já a igreja santa não tem placa e não é templo; este é lugar de reunião e adoração. Ela é o corpo do ser humano, templo do Espírito Santo.

Roberto, por sua vez, não distingue entre duas igrejas, mas entre igreja e religião. Enquanto ele não é religioso, mas “crente em Jesus”, a Igreja Católica é apenas uma comunidade religiosa e professa uma religião. Outra distinção feita por Roberto aparece em sua fala acerca do evangelho doente, deturpado, místico que refere às religiões misturadas com o catolicismo; para Roberto, a cruz é católica. Temos, portanto, dualismos opositivos que permitem a compreensão da igreja santa em relação à igreja prostituta, da igreja em relação

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à religião.

Além de tais antagonismos duais, há aqueles produzidos no âmbito da teologia de Comblin e Libâneo (b). “As” Igrejas (neopentecostais ou do pentecostalismo autônomo) e “a” Igreja (Católica) se excluem mutuamente: as primeiras aderiram à lógica do mercado ao se inserirem na cidade, mas à custa de se tornarem não-evangélicas; e a segunda se tornou bastante alheia à cidade, mas manteve o conteúdo do evangelho. Libâneo fala de uma espiritualidade subjetiva que abarca a espiritualidade de massa das Igrejas pentecostais autônomas e as “novas formas de espiritualidade” como oposta a uma “espiritualidade cristã” ou “para o cristão” que implica numa “espiritualidade psicológica e cósmico-ecológica”. Esta última é a “espiritualidade libertadora e da libertação”. Além disso, há em seu trabalho oposições que não são estritamente negadoras, mas que apontam para reelaborações: “espiritualidade rural”, “do campo”, “das pequenas cidades” e “espiritualidade na cidade”, “urbana”. Podemos sintetizar os dois teólogos também em pares de contrários: a Igreja e as Igrejas, espiritualidade cristã e espiritualidade subjetiva, espiritualidade de libertadora e espiritualidade de massa.

Por mais que os dois grupos de teólogos se neguem em muitos aspectos, parece viável buscar algumas aproximações em suas abordagens. A autenticidade da igreja santa ou da espiritualidade cristã (c) se dá pela não contaminação com o que pode corromper o evangelho. Além disso, em ambos os casos há a missão cristã de dar uma resposta evangélica para a cidade e seus problemas, tais como o da criminalidade e das drogas: seja em perspectiva sócio-econômica – “desmascarar a pretensão neoliberal” que culmina na “concentração de capital” e nas desestruturações sociais decorrentes (m), seja em perspectiva sócio-espiritual – “o que eu era, o que eu fui e o que eu sou hoje pela misericórdia de Deus” (o). Tal resposta pretende ir na contra-mão ordinária do sistema capitalista ou materialista. Analogias também podem ser encontradas entre as concepções de igreja prostituta e espiritualidade de massa (d). Ambas deturpam a mensagem (negação do evangelho) e iludem os que buscam realização em suas vidas (oferece satisfação imediata, promete tudo o que faz falta). Elas se mancharam em grande medida devido a um envolvimento com o dinheiro: materialismo para uns (i) e capitalismo para outros (j).

A igreja santa dos pentecostais pode ser assemelhada com a espiritualidade de massa (e). A noção de espiritualidade de massa como a exaltação de uma religiosidade subjetiva tangencia com a noção de igreja santa. Enfim, os teólogos de rua enaltecem as suas próprias experiências de conversão que servem como base para seus testemunhos. Mas a noção de igreja prostituta também pode tangenciar a noção de espiritualidade cristã dos católicos (f). A igreja prostituta perdeu o seu caráter de evangelho e pode ser tratada mais

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como uma religião que como igreja; como vimos, é preciso ser católico apostólico cristão, não romano. Os autores acusam o neopentecostalismo de não-evangélico e os pregadores conferem tal acusação ao catolicismo.

O dinheiro mantém relações com diversas outros elementos do circuito. Para uns há uma relação de ressignificação de seu uso (g), para outros a sua relação é de constituição dos conflitos sociais (l), mas para todos há relações de deturpação que ele estabelece (i) (j). Já mencionamos os danos das relações deturpadoras do dinheiro na igreja prostituta e na espiritualidade subjetiva ou de massa.

A ressignificação transforma o dinheiro em oferta (com a distribuição dos envelopes) e em ajuda (com a obtenção dos DVDs e CDs de pregação ou de testemunho). Nas duas circunstâncias o dinheiro é tomado como benção, contribuição: a questão não é “ganhar dinheiro, mas só podemos contar com a ajuda de vocês”. Não é mais uma questão de dinheiro, é uma questão de sobreviência (“é meu trabalho, meu testemunho”) e de generosidade (“ajudem o pregador”). Nesse sentido, a oferta é a fonte financeira de alguém que veio do mundo do crime e agora tem a pregação e o testemunho como seu meios de manutenção financeira (n).

Os autores o vêem negativamente. Os males da cidade estão direta e indiretamente envolvidos com a questão do dinheiro, “o deus da cidade”. Os próprios símbolos da cidade deixaram de ser históricos (Praça da Sé) para serem os que expressam a luta pelo lucro (Avenida Paulista): os edifícios dos bancos, por exemplo. Devido à luta pelo lucro a cidade está numa situação dramática no plano da segurança (criminalidade, tráfico de drogas, armas e todo tipo de contrabando), no aspecto psíquico (estresse, cansaço, nervosismo), nos desdobramentos ecológicos (poluição) etc.

Finalizando...

Resta dizer algumas palavras sobre a comparação: teólogos católicos e teólogos pentecostais convergem ao concordar que crime e violência são problemas sociais que afetam profundamente a cidade e que igrejas e dinheiro também podem se tornar aliados do mal urbano. Discordam, todavia, sobre o

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caminho para a melhoria da vida na cidade. Os primeiros estão mais próximos de um socialismo e os segundos mais relacionados a algo como um empirismo.

Os teólogos abordados mostram como diversas das categorias habitualmente utilizadas pelos cientistas sociais é objeto de disputas e divergências conceituais. Duas das categorias usadas indiscriminadamente nos textos acadêmicos podem e devem ser revisadas analiticamente a partir de experiências de pesquisa: cidade e religião. Uma pergunta a ser feita constantemente: de qual cidade e religião estamos falando? Dependendo de onde se parte, os lugares de chegada são bastante distintos.

Enfim, seguimos um caminho que apontou embates entre teologia e antropologia, alternativas ao conflito entre tais saberes e decisões tomadas para este trabalho. Além disso, esperamos ter conseguido simetrizar e comparar teólogos de livros com teólogos de rua. A pretensão se vinculou a uma tentativa de trabalhar com uma questão de fronteira: a cidade. Ela é objeto de estudo de arquitetos, antropólogos, geógrafos, sociólogos, historiadores etc., mas aqui apareceu como tema de teólogos. Ainda que não tenha sido possível uma contraposição entre a concepção dos teólogos e a dos demais discursadores citadinos, fica o desafio. Enfim, finalizo reafirmando justamente os limites de um trabalho que chega a seu limite, mas que de forma alguma apregoa o esgotamento das questões. Diante disso, talvez ele deva ser considerado mais como uma pista de pesquisa que a sua cabal realização.

Notas

Graduado em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP) e mestrando em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Devo muito às leituras feitas por Adalton Marques, Daiane Marques, Eduardo Dullo e Gabriel Pugliese, bem como às questões orais por parte de Carlos Steil, Edlaine Gomes, Eva Scheliga, Francisco Franco, Márcia Contins e Sandra Carneiro.

Evidentemente que muitas outras teologias poderiam fazer parte de uma comparação com os pregadores. Vejamo-las acompanhadas de um exemplo para cada. Há aquela que lida com a sociedade capitalista a partir de uma abordagem teológico-econômica (Jung Mo Sung). Outra comparação possível seria entre a teologia dos pregadores e a teologia feminista (Elsa Tamez) já que não há pregadoras na Praça e poucas vezes mulheres param para ouvi-los. Ainda outras comparações seriam com os midiáticos teólogos da prosperidade (Edir Macedo) ou com teólogos da batalha espiritual (Neuza Itioka), que em muitos aspectos cosmológicos se assemelham aos teólogos pregadores.

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Valeria a pena uma exploração da explícita presença de vários autores da sociologia, história, antropologia, arquitetura e literatura que lidaram com a temática urbana e aparecem em Comblin: Max Weber, Louis Wirth, Gordon Childe, Oswald Splenger, Charles Dickens, Lewis Munford, Le Corbusier etc. Outro limite que nos acomete aqui é a impossibilidade de tratar, no curto espaço e tempo deste texto, de todas as obras de Comblin direta ou indiretamente referidas à cidade.

Um esclarecimento. Os teólogos dos livros serão citados por sobrenome, ano de publicação da obra e número da página. Os teólogos pregadores serão citados pelas falas nos “CDs de testemunho”, mas principalmente pelo dia, mês e ano da ida a campo e acesso aos citados discursos-práticas. Os termos e expressões citados pela primeira vez aparecerão entre aspas duplas, mas para não sobrecarregar o texto, as suas repetições aparecerão sem aspas.

Tal constatação poderia, mesmo não sendo o caso aqui, servir de inversão à tendência de inferiorizar os pregadores em relação aos escritores. Desse modo, se os últimos se valem apenas da escrita, os primeiros não são acompanhados apenas da fala, mas também de contextos de ação.

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