definições de literatura

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2015-02 – Curso História da Cultura no Rio de Janeiro – Prof. Marcos Alvito 1 Definições de Literatura [0] Antes de 1800 literature e outros termos análogos em outras línguas européias significava 'escritos' ou 'conhecimento de livros'. (...) Livros que hoje são estudados como literatura em aulas de Inglês ou Latim em escolas e universidades antes não eram tratados como um tipo especial de escrita mas como bons exemplos do uso da linguagem e da retórica. Eles eram exemplos de uma categoria mais ampla de práticas modelares de escrita e de pensamento, que incluía discursos, sermões, história e filosofia. Os estudantes não eram solicitados a interpretá-los, como hoje interpretamos obras literárias, buscando explicar o que elas realmente 'querem dizer'. Ao contrário, os estudantes as memorizavam, estudavam sua gramática, identificavam suas figuras retóricas e suas estruturas ou procedimentos argumentativos. Uma obra como a Eneida de Virgílio, que hoje é estudada como literatura, era tratada mui diferentemente nas escolas antes de 1850.” Fonte: CULLER,Jonathan. Literary Theory: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 200o. [1a. ed. 1997] p. 21; “Basicamente, estou me referindo àquele campo das letras que conquistou certa autonomia e especialização no mundo contemporâneo, destacando-se do que se costumava denominar ‘belas letras’ e que incluía, além da poesia e do romance, a filosofia, a história, o ensaio político ou religioso. Essa redefinição de fronteiras é um processo que se consolida com força particular a partir de 1848, quando a derrota da onda revolucionária que varreu a Europa, e que ficou conhecida como a ‘Primavera dos Povos’, impôs um questionamento das relações entre literatura e política e estimulou o surgimento do escritor, entendido como alguém cuja principal função é a experiência com a linguagem. É através da linguagem que o escritor se apropria do mundo e inventa a sua própria realidade. Outro fator importante para essa caracterização do campo literário foi o crescimento da imprensa jornalística e da publicação de livros na Europa no século XIX. Muitos desses escritores se tornaram profissionais, ou seja, passaram a viver do trabalho de escrever para um mercado literário que surgia e que consumia as suas obras, principalmente na forma de folhetins que eram publicados nos jornais diários. Esse público que se amplia na esteira dos processos de industrialização e de urbanização, frutos da revolução industrial, demandava cada vez mais as histórias escritas por autores como Charles Dickens, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, entre outros. Muitas dessas histórias eram acompanhadas pelos seus leitores, e particularmente pelas suas leitoras, com um interesse semelhante ao do público das novelas televisivas de hoje, cada capítulo sendo aguardado ansiosamente. O sucesso comercial do que esses autores escreviam dependia de sua capacidade em ‘prender’ o público. Portanto, o seu processo de criação era, em grande medida, determinado pela necessidade de agradar ao público leitor. [1] O que estou chamando de literatura neste livro é, então, esse conjunto de escritos, geralmente ficcionais, que sofreu o processo de

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Page 1: Definições de Literatura

2015-02 – Curso História da Cultura no Rio de Janeiro – Prof. Marcos Alvito 1

Definições de Literatura “[0] Antes de 1800 literature e outros termos análogos em outras línguas européias significava 'escritos' ou 'conhecimento de livros'. (...) Livros que hoje são estudados como literatura em aulas de Inglês ou Latim em escolas e universidades antes não eram tratados como um tipo especial de escrita mas como bons exemplos do uso da linguagem e da retórica. Eles eram exemplos de uma categoria mais ampla de práticas modelares de escrita e de pensamento, que incluía discursos, sermões, história e filosofia. Os estudantes não eram solicitados a interpretá-los, como hoje interpretamos obras literárias, buscando explicar o que elas realmente 'querem dizer'. Ao contrário, os estudantes as memorizavam, estudavam sua gramática, identificavam suas figuras retóricas e suas estruturas ou procedimentos argumentativos. Uma obra como a Eneida de Virgílio, que hoje é estudada como literatura, era tratada mui diferentemente nas escolas antes de 1850.” Fonte: CULLER,Jonathan. Literary Theory: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 200o. [1a. ed. 1997] p. 21; “Basicamente, estou me referindo àquele campo das letras que conquistou certa autonomia e especialização no mundo contemporâneo, destacando-se do que se costumava denominar ‘belas letras’ e que incluía, além da poesia e do romance, a filosofia, a história, o ensaio político ou religioso. Essa redefinição de fronteiras é um processo que se consolida com força particular a partir de 1848, quando a derrota da onda revolucionária que varreu a Europa, e que ficou conhecida como a ‘Primavera dos Povos’, impôs um questionamento das relações entre literatura e política e estimulou o surgimento do escritor, entendido como alguém cuja principal função é a experiência com a linguagem. É através da linguagem que o escritor se apropria do mundo e inventa a sua própria realidade. Outro fator importante para essa caracterização do campo literário foi o crescimento da imprensa jornalística e da publicação de livros na Europa no século XIX. Muitos desses escritores se tornaram profissionais, ou seja, passaram a viver do trabalho de escrever para um mercado literário que surgia e que consumia as suas obras, principalmente na forma de folhetins que eram publicados nos jornais diários. Esse público que se amplia na esteira dos processos de industrialização e de urbanização, frutos da revolução industrial, demandava cada vez mais as histórias escritas por autores como Charles Dickens, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, entre outros. Muitas dessas histórias eram acompanhadas pelos seus leitores, e particularmente pelas suas leitoras, com um interesse semelhante ao do público das novelas televisivas de hoje, cada capítulo sendo aguardado ansiosamente. O sucesso comercial do que esses autores escreviam dependia de sua capacidade em ‘prender’ o público. Portanto, o seu processo de criação era, em grande medida, determinado pela necessidade de agradar ao público leitor. [1] O que estou chamando de literatura neste livro é, então, esse conjunto de escritos, geralmente ficcionais, que sofreu o processo de

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autonomização acima descrito. As suas formas são muito variadas: crônicas, romances, poesias, peças teatrais etc. Mas há em comum entre essas diferentes formas o fato de que seus autores são considerados escritores, ou seja, um tipo específico de intelectual cujo trabalho envolve necessariamente a preocupação estética com a linguagem.” Fonte: FACINA,Adriana. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. pp. 7-9. “Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística, tal como a descreve Kierkgaard, quando define o sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda a palavra, mesmo interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da linguagem; ou então pelo amen nietzchiano, que é como uma sacudida jubilatória dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama de 'capa reativa'. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. [2] Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso portanto, essencialmente, o texto, isto é, o tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto. As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas um 'senhor' entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua: desse ponto de vista, Céline é tão importante quanto Hugo, Chateaubriand tanto quanto Zola. O que tento visar aqui é uma responsabilidade da forma: mas essa responsabilidade não pode ser avaliada em termos ideológicos e por isso as ciências da ideologia sempre tiveram tão pouco domínio sobre ela.” Fonte: BARTHES,Roland. Aula. São Paulo:Cultrix, 2004.12.ed. [1a. ed. é de 1978] pp. 15-18. “Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar.” (...) “[3] Resta ainda aquele fio que comecei a desenrolar logo ao princípio: a

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literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver.” (...) “Habituado como estou a ver na literatura uma busca do conhecimento, para mover-me no terreno existencial necessito considerá-lo extensível à antropologia, à etnologia, à mitologia. Para enfrentar a precariedade da existência da tribo – a seca, as doenças, os influxos malignos -, o xamã respondia anulando o peso de seu corpo, transportando-o em vôo a um outro mundo, a um outro nível de percepção, onde podia encontrar forças capazes de modificar a realidade. Em séculos e civilizações mais próximas de nós, nas cidades em que a mulher suportava o fardo mais pesado de uma vida de limitações, as bruxas voavam à noite montadas em cabos de vassouras ou em veículos ainda mais leves, como espigas ou palhas de milho. Antes de serem codificadas pelos inquisidores, essas visões fizeram parte do imaginário popular, ou até mesmo, diga-se, da vida real. Vejo uma constante antropológica nesse nexo entre a levitação desejada e a privação sofrida. Tal é o dispositivo antropológico que a literatura perpetua.” Fonte: CALVINO,Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 3.ed. [1a. ed. 1988] pp. 11; 39;39-40; “Conta a lenda, e se não é verdadeira é pelo menos uma boa história, que certa vez Stalin perguntou de quantos batalhões o Papa dispunha. Eventos subsequentes nos demonstraram que embora os batalhões sejam importantes em determinadas circunstâncias, eles não são tudo. Existem forças não-materiais, que não podem ser medidas precisamente, mas que mesmo assim têm peso. Nós estamos cercados por poderes intangíveis, e não somente pelos valores espirituais explorados pelas maiores religiões mundiais. O poder da raiz quadrada é também um poder intangível: suas leis rígidas sobreviveram por séculos, sobrevivendo não somente aos decretos de Stalin mas até mesmo aos do Papa. [4] E entre estes poderes eu gostaria de incluir o da tradição literária; ou seja, o poder da rede de textos que a humanidade produziu e que ainda produz não para fins práticos (como registros, comentários ou leis e fórmulas científicas, atas de encontros ou horários de trens) mas, ao contrário, para ela própria, para o desfrute da própria humanidade – e que são lidos por prazer, edificação espiritual, alargamento do conhecimento, ou talvez somente como passatempo, sem que ninguém nos force a lê-los (exceto quando somos obrigados a fazê-lo na escola ou na universidade).” Fonte: ECO,Umberto. “On some functions of literature” In: On literature. Orlando: Harcourt Books, 2004. [1a. ed. 2002] p.1; “um certo tipo de atenção que podemos chamar de literária: um interesse nas palavras, nas suas inter-relações, e principalmente um interesse em como o que é dito relaciona-se com a maneira pela qual é dito.” (...) [5] quando a linguagem é separada de outros contextos, afastada de outros

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propósitos, ela pode ser interpretada como literatura (embora ela tenha que possuir algumas qualidades que a tornam propícia a tal interpretação). Se a literatura é a linguagem descontextualizada, separada de outras funções e propósitos, ela é também em si mesma um contexto, que promove ou estimula certos tipos especiais de atenção. Por exemplo, leitores prestam atenção a potenciais complexidades e buscam significados implícitos, sem assumir, digamos, que o que foi dito está lhes prescrevendo fazer alguma coisa. Descrever 'literatura' seria analisar um conjunto de pressupostos e de operações interpretativas que os leitores empreendem a partir de tais textos.” Fonte: CULLER,Jonathan. Literary Theory: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 200o. [1a. ed. 1997] pp. 24;25;

“o que é literatura ? Muitas têm sido as tentativas de definir literatura. [6] É possível, por exemplo, defini-la como a escrita ‘imaginativa’, no sentido de ficção – escrita esta que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. A literatura inglesa do século XVI inclui Shakespeare, Webster, Marvell e Milton; mas compreende também os ensaios de Francis Bacon, os sermões de John Donne, a autobiografia espiritual de Bunyan e os escritos de Sir Thomas Browne, qualquer que seja o nome a que se dê a eles. (...) A distinção entre 'fato' e 'ficção', portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isso é que a própria distinção é muitas vezes questionável. (...) No inglês de fins do século XVI e princípios do século XVII, a palavra 'novel' foi usada, ao que parece, tanto para os acontecimentos reais quanto para os fictícios, sendo que até mesmo as notícias de jornal dificilmente poderiam ser consideradas fatuais. Os romances e as notícias não eram claramente fatuais, nem claramente fictícios, a distinção que fazemos entre essas categorias simplesmente não era aplicada. (...) Além disso, se a 'literatura' inclui muito da escrita 'fatual', também exclui boa parte da ficção. As histórias em quadrinhos do Super-Homem e os romances de Mills e Boon são ficção, mas isso não faz com que sejam geralmente considerados como literatura e muito menos como Literatura. O fato de a literatura ser a escrita 'criativa' ou 'imaginativa' implicaria serem a história, a filosofia e as ciências naturais não-criativas e destituídas de imaginação ? [7]Talvez nos seja necessária uma abordagem totalmente diferente. Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou 'imaginativa', mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson, representa uma 'violência organizada contra a fala comum'. A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. Se alguém se aproximar de mim em um ponto de ônibus e disser: 'Tu, noiva ainda imaculada da quietude', tenho consciência imediata de que estou em presença do literário. Sei disso porque a tessitura, o ritmo e a ressonância das palavras superam o seu significado abstrato – ou, como os linguistas diriam de maneira mais técnica, existe uma desconformidade entre os significantes e os significados. Trata-se de um tipo de linguagem que chama atenção sobre si mesma e exibe sua

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existência material, ao contrário do que ocorre com frases como: 'Você não sabe que os motoristas de ônibus estão em greve ?' De fato, esta foi a definição de 'literário' apresentada pelos formalistas russos (...) Os formalistas surgiram na Rússia antes da revolução bolchevista de 1917; suas idéias floresceram durante a década de 1920 até serem eficientemente silenciadas pelo stalinismo. Sendo um grupo de críticos militantes, polêmicos, eles rejeitaram as doutrinas simbolistas quase místicas que haviam influenciado a crítica literária até então e, imbuídos de um espírito prático e científico, transferiram a atenção para a realidade material do texto literário em si. À crítica caberia dissociar arte e mistério e preocupar-se com a maneira pela qual os textos literários funcionavam na prática: a literatura não era uma pseudo-religião, ou psicologia, ou sociologia, mas uma organização particular da linguagem. Tinha suas leis específicas, suas estruturas e mecanismos, que deviam ser estudados em si, e não reduzidos a uma outra coisa. A obra literária não era um veículo de idéias, nem uma reflexão sobre a realidade social, nem a encarnação de uma verdade transcendental: era um fato material, cujo funcionamento poderia ser analisado mais ou menos como se examina uma máquina. Era feita de palavras, não de objetos ou sentimentos, sendo um errro considerá-la como a expressão do pensamento de um autor. (...) Em sua essência, o formalismo foi a aplicação da linguística ao estudo da literatura; e como a linguística em questão era do tipo formal, preocupada com as estruturas de linguagem e não com o que ela de fato poderia dizer, os formalistas passaram ao largo da análise do 'conteúdo' literário (instância em que sempre existe a tendência de recorrer à psicologia ou à sociologia) e dedicaram-se ao estudo da forma literária. (...) A revolução dos bichos não seria para os formalistas uma alegoria do stalinismo; pelo contrário, o stalinismo simplesmente ofereceria uma oportunidade propícia à criação de uma alegoria. Os formalistas começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou menos arbitrária de 'artifícios', e só mais tarde passaram a ver esses artifícios como elementos relacionados entre si: 'funções' dentro de um sistema textual global. (...) o que todos esses elementos tinham em comum era o seu efeito de 'estranhamento' ou de 'desfamiliarização'. A especificidade da linguagem literária, aquilo que a distinguia de outras formas de discurso, era o fato de ela 'deformar' a linguagem comum de várias maneiras. (...) Os formalistas, portanto, consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma 'especial' de linguagem, em contraste com a linguagem 'comum', que usamos habitualmente. (...) (...) Pensar na literatura como os formalistas o fazem é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia. (...) Um outro problema concernente ao argumento da 'estranheza' é o de que todos os tipos de escrita podem, se trabalhados com a devida engenhosidade, ser considerados 'estranhos'. (...) [8] Quando o poeta nos diz que seu amor é como uma rosa vermelha, sabemos, pelo simples fato de ele colocar em verso tal afirmação, que não lhe devemos perguntar se ele realmente teve uma namorada que, por alguma

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estranha razão, lhe parecia semelhante a uma rosa. Ele nos está dizendo alguma coisa sobre as mulheres e sobre o amor em geral. Poderíamos dizer, portanto, que a literatura é um discurso 'não-pragmático'; ao contrário dos manuais de biologia e recados deixados para o leiteiro, ela não tem nenhuma finalidade prática imediata, referindo-se apenas a um estado geral de coisas. (...) Esse enfoque na maneira de falar, e não na realidade daquilo que se fala, é por vezes considerado uma indicação do que entendemos por literatura: uma espécie de linguagem auto-referencial, uma linguagem que fala de si mesma. Mas também essa definição de literatura encerra problemas. Entre outras coisas, teria sido uma surpresa para George Orwell saber que seus ensaios devem ser lidos como se os tópicos por ele examinados fossem menos importantes do que a maneira pela qual os examinou. Em grande parte daquilo que é classificado como literatura, o valor verídico e a relevância prática daquilo que é dito é considerado importante para o efeito geral. Contudo, mesmo considerando que o discurso 'não-pragmático' é parte do que se entende por 'literatura', segue-se desta 'definição' o fato de a literatura não poder ser, de fato, definida 'objetivamente'. A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza do que é lido. (...) O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado. [9] Nesse sentido, podemos pensar na literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto de qualidades evidenciadas por certos tipos de escrita que vão desde Beowulf até Virginia Woolf, do que como as várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita. Não seria fácil isolar, entre tudo o que se chamou de 'literatura', um conjunto constante de características inerentes. Na verdade, seria tão impossível quanto tentar isolar uma única característica comum que identificasse todos os tipos de jogos. Não existe uma 'essência' da literatura. Qualquer fragmento de escrita pode ser lido 'não-pragmaticamente', se é isso o que significa ler um texto como literatura, assim como qualquer escrito pode ser lido 'poeticamente'.” (...) “[10] a sugestão de que 'literatura' é um tipo de escrita altamente valorizada é esclarecedora. Contudo, ela tem uma consequência bastante devastadora. Significa que podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria 'literatura' é 'objetiva', no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente – Shakespeare, por exemplo - , pode deixar de sê-lo. Qualquer idéia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como a entomologia é o estudo dos insetos, pode ser abandonada como uma quimera. Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é literatura. A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe.” (...) Se não é possível ver a literatura como uma categoria 'objetiva', descritiva,

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também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício do Empire State. Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros.” Fonte: EAGLETON,Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.6.ed. [1ª. ed. é de 1983] pp. 1-24.