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O Mosaico – Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.3, p.1-9, jan./junho. 2010 DEFICIÊNCIA EM CENA: O CORPO DEFICIENTE ENTRE CRIAÇÕES E SUBVERSÕES Ana Carolina Bezerra Teixeira 1 RESUMO: O presente trabalho tem como meta expor uma investigação acerca do corpo deficiente na cena artística brasileira com base na experiência construída junto a Roda Viva Cia. de Dança. O trabalho busca a reflexão sobre a questão destes corpos até então considerados incapazes para tal prática e que inauguram na cena artística um despertar para novas possibilidades estéticas de movimento, criação e produção artística. Destarte o papel do corpo deficiente na cena artística contemporânea passa a reivindicar um lugar além dos discursos do modelo institucional de inclusão e reivindica espaços de criação cênica e o acesso ao mercado de trabalho nas artes. PALAVRAS CHAVE: Corpo, Cena Contemporânea, Deficiência. Estudos sobre a deficiência vêm ocupando destaque nas ultimas décadas, tanto no campo da saúde, bem como nas áreas da Educação Especial e nas políticas públicas de inclusão, lideradas em grande parte pelas associações e organizações não governamentais que lutam pelos direitos da pessoa com deficiência. No que diz respeito às artes a discussão sobre deficiência ainda se faz incipiente, tornando-se necessário um maior aprofundamento sobre esta questão tão relevante para as recorrentes discussões sobre diversidade e inclusão social. O corpo deficiente só se reconhece nos espaços oportunizados por grupos que adotam o termo inclusivo, e tão pouco se percebem nos espaços midiático-culturais, a não ser quando se trata da veiculação panfletária aos atuais programas federais de inclusão social. O discurso sobre a diferença se fez evocável nas artes cênicas do país nos últimos dez anos, todavia, privilegiou um acesso restrito no que diz respeito aos corpos deficientes no mercado artístico nacional. Assim sendo, estes corpos são subutilizados, servindo de modelo para criação de grupos tidos como inclusivos que reforçam a visão estereotipada de um corpo – deficiente- sui generis, exemplo de vida e de superação. As discriminações sofridas pelo corpo deficiente e o estigma social que o 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. É bailarina e coreógrafa-pesquisadora, atua nas áreas de Dança, Teatro e Estudos sobre Deficiência. 1

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  • O Mosaico Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.3, p.1-9, jan./junho. 2010

    DEFICINCIA EM CENA: O CORPO DEFICIENTE

    ENTRE CRIAES E SUBVERSES

    Ana Carolina Bezerra Teixeira1

    RESUMO: O presente trabalho tem como meta expor uma investigao acerca do

    corpo deficiente na cena artstica brasileira com base na experincia construda junto a

    Roda Viva Cia. de Dana. O trabalho busca a reflexo sobre a questo destes corpos at

    ento considerados incapazes para tal prtica e que inauguram na cena artstica um

    despertar para novas possibilidades estticas de movimento, criao e produo

    artstica. Destarte o papel do corpo deficiente na cena artstica contempornea passa a

    reivindicar um lugar alm dos discursos do modelo institucional de incluso e reivindica

    espaos de criao cnica e o acesso ao mercado de trabalho nas artes.

    PALAVRAS CHAVE: Corpo, Cena Contempornea, Deficincia.

    Estudos sobre a deficincia vm ocupando destaque nas ultimas dcadas, tanto

    no campo da sade, bem como nas reas da Educao Especial e nas polticas pblicas

    de incluso, lideradas em grande parte pelas associaes e organizaes no

    governamentais que lutam pelos direitos da pessoa com deficincia.

    No que diz respeito s artes a discusso sobre deficincia ainda se faz incipiente,

    tornando-se necessrio um maior aprofundamento sobre esta questo to relevante para

    as recorrentes discusses sobre diversidade e incluso social. O corpo deficiente s se

    reconhece nos espaos oportunizados por grupos que adotam o termo inclusivo, e to

    pouco se percebem nos espaos miditico-culturais, a no ser quando se trata da

    veiculao panfletria aos atuais programas federais de incluso social.

    O discurso sobre a diferena se fez evocvel nas artes cnicas do pas nos

    ltimos dez anos, todavia, privilegiou um acesso restrito no que diz respeito aos corpos

    deficientes no mercado artstico nacional. Assim sendo, estes corpos so subutilizados,

    servindo de modelo para criao de grupos tidos como inclusivos que reforam a viso

    estereotipada de um corpo deficiente- sui generis, exemplo de vida e de superao.

    As discriminaes sofridas pelo corpo deficiente e o estigma social que o

    1 Mestranda do Programa de Ps Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia. bailarina e coregrafa-pesquisadora, atua nas reas de Dana, Teatro e Estudos sobre Deficincia.

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  • O Mosaico Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.3, p.1-9, jan./junho. 2010

    acompanhou no decorrer dos tempos se refletem hoje em novas nomenclaturas sobre o

    corpo e o indivduo deficiente como; aleijado, invlido, pessoa excepcional, especial,

    portadora de deficincia, portadora de necessidades especiais, e por fim pessoa com

    deficincia. vlido salientar que a adoo destes nomes no modificou o olhar social

    sobre este corpo que segue contentando-se com brechas na sociedade. Ainda prevalecem

    os modelos corporais de perfeio e produtividade fsica, a supremacia do corpo bpede,

    da viso bidimensional, da audio perfeita, do raciocnio rpido e lgico, onde o corpo

    se torna cada vez mais atrelado a correo, condicionamento e a diferentes tipos de

    manipulaes estticas.

    Para alm desta discusso, j to debatida, est a viso dos corpos com

    deficincia e suas relaes numa sociedade contempornea em constante transformao

    poltico-social e econmica.

    O discurso da incluso ocupou as mais diferentes reas humanas, e no que se

    refere s artes, ainda encontra dificuldades na proposio de conhecimentos menos

    superficiais que retratem de forma coerente a realidade destes corpos. Nessa linha de

    raciocnio, questiono se a adoo do termo inclusivo nas artes, no corrobora na prpria

    histria, reais vestgios da excluso social escamoteada por um imaginvel iderio de

    igualdade.

    No tratarei aqui de abranger o papel do corpo deficiente em todas as reas

    artsticas, mas no que concerne a minha experincia como arte educadora, artista e

    deficiente, atuando a doze anos no mercado das artes cnicas e em especfico na

    chamada Dana Inclusiva.

    A adoo do termo Dana Inclusiva marca o surgimento de companhias que se

    consagraram por admitir em seu elenco portadores de deficincia, objetivando um

    produto artstico de qualidade que atendesse as necessidades da insero dos bailarinos

    no mercado da dana. Albright(1997) refere-se dana com portadores de deficincia

    fsica como um marco para uma visibilidade deste corpo na cena artstica, onde

    bailarinos com e sem deficincia compartilham o poder de criaes e intercmbios de

    movimento.

    Sempre me inquietou a idia de que grupos de dana com deficientes fossem

    criados sem um propsito formativo que privilegiasse o processo investigativo do

    trabalho artstico-corporal desenvolvido pelos artistas com deficincia, bem como sua

    autonomia enquanto criadores cnicos. Vrios grupos foram criados no Brasil e no

    mundo no incio da dcada de noventa. Companhias como a Candoco na Inglaterra, a

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    AXIS Co. Dance nos Estados Unidos, e no Brasil a Roda Viva Cia. de Dana foram

    marcos para o surgimento de novos olhares sobre a dana e sobre o corpo deficiente.

    Apesar da qualidade artstica destes trabalhos e de seu comprometimento na

    formao artstica de seus integrantes, estes grupos ainda so identificados como

    inclusivos; o que a meu ver caracteriza uma subdiviso por vezes discriminatria em

    relao ao circuito das tradicionais companhias de dana.

    No intuito de promover uma discusso crtica acerca da especulao teratolgica

    e assistencialista destes corpos na cena artstica, tenho como tema central de

    investigao o trabalho do artista deficiente, atravs da experincia junto a Roda Viva

    Cia. de Dana na cidade de Natal, Estado do Rio Grande do Norte.

    Nesta companhia tive a oportunidade de atuar como bailarina, educadora,

    coregrafa, diretora artstica; e com base nas observaes realizadas em meu percurso

    artstico, assim como, em diversos trabalhos realizados no circuito das companhias

    inclusivas2, pude mensurar com mais preciso o processo em si. Ao observar e

    acompanhar o trabalho da Roda Viva Cia. de Dana, bem como outros grupos no Brasil

    e no exterior, pude constatar a delicada situao em que se encontram os artistas

    deficientes nas artes cnicas e em especfico no mercado da dana.

    Por conseguinte, enquanto artista e pesquisadora pude vivenciar os processos de

    criao e preparao da Roda Viva Cia. de Dana, onde foi possvel atentar elementos

    de ordem fsica, intelectual e afetiva que incidiam sobre os corpos dos bailarinos, que

    reaprendiam e redescobriam atravs do fazer artstico, no apenas a oportunidade de

    danar, mas, sobremodo, de atuar para alm de suas limitaes fsicas. Contudo, mesmo

    com todas as potencialidades da dana enquanto instrumento de transformao

    individual e coletiva dos bailarinos, deparei-me diversas vezes com inquietaes acerca

    de como esses processos se davam diretamente nos bailarinos e especificamente a

    participao destes nos processos de criao e pesquisa, bem como sua autonomia

    enquanto artistas, profissionais da dana.

    A Roda Viva Cia. de Dana um marco para a dana brasileira, no que se refere

    ao corpo deficiente enquanto criador. O trabalho desenvolvido por esta companhia

    repercutiu alm dos espaos inclusivos e de grupos teraputicos influenciando desta

    feita, o surgimento de inmeros trabalhos semelhantes por todo o pas. A trajetria desta

    e sua importncia na formao de inmeros bailarinos que por ela passaram e a troca de

    2 Companhias que admitem em seu elenco portadores e no portadores de deficincia, termo criado em 2002 pelo professor Henrique Amoedo.

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    experincias com coregrafos renomados do Brasil e exterior, justificam a necessidade

    de refletirmos sobre o trabalho e a formao dos artistas deficientes na cena artstica

    brasileira.

    pertinente pensar que a Dana Contempornea adotou (aprimorou) o discurso

    da fragmentao e da autonomia corporal dos bailarinos, j herdada dos pioneiros da

    dana moderna nas dcadas de 50/60 utilizando-se do grotesco e do deformado, bem

    como a utilizao de temas polticos, existenciais, urbanos na concepo de

    coreografias. Assim torna-se incompreensvel a no aceitao do corpo deficiente nos

    grupos tidos como tradicionais, j que este representa em todos os aspectos a incessante

    busca da dana contempornea pela construo-investigao do movimento fora dos

    padres idealizados para prtica da dana.

    Nos tempos atuais o bailarino portador de deficincia s encontra guetos

    artsticos para muitas vezes representar a prpria deficincia. Esta representao

    realizada muitas vezes de forma discreta, adaptvel, teraputica ou at mesmo como

    objeto da especulao investigativo-laboratorial de interesses alheios, miditicos e

    polticos. Verifica-se a uma espcie de cota artstica que se confunde com as cotas

    sociais destinadas s polticas de incluso adotadas, sobretudo nos pases da Amrica

    Latina.

    Destaco aqui que nas ltimas dcadas vem sendo implantada uma verdadeira

    corrida civil pela reivindicao dos direitos do deficiente, muitas vezes de organismos

    ou grupos polticos que oportunamente se beneficiam destas questes. Assim o cidado

    que tem algum tipo de deficincia torna-se objeto estratgico de discusses que esto

    fora de sua realidade, convvio, ou posicionamento poltico-social-cultural.

    Este corpo torna-se cobaia da experimentao - especulao de sua patologia no

    sentido de obteno de respostas motoras. Deixaram-se de lado as capacidades

    intelectuais e criativas de participao nos processos artsticos da cena. A deficincia,

    neste aspecto, abre caminho para a audincia e novamente assume a viso depreciativa

    de uma sociedade ainda convicta de sua aparente normalidade (superioridade).

    Neste sentindo, chamo ateno aqui para a necessidade de uma reflexo acerca

    dos processos de formao de grupos que admitam pessoas deficientes no campo das

    artes cnicas e em especfico, a dana. A grande incidncia de companhias no Brasil

    provocou uma espcie de vale-tudo artstico, o que compromete o trabalho e a

    participao deste artista que sedento por espaos de aceitao, muitas vezes deixa-se

    levar pelo desejo da apario cnica, ou da fama.

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    Trata-se de referendar o trabalho deste artista e enfatizar uma formao de

    qualidade, que no vitime cenicamente o corpo j vitimado e subestimado socialmente e

    que reconhea a participao efetiva deste profissional nos processos de trabalho-

    criao. As dificuldades visveis ou no, ecoam nos corpos (em todos os corpos) e

    quando desafiadas assumem uma ao nica.

    A espetacularizao de corpos com algum tipo de deficincia antiga, desde o

    surgimento das primeiras civilizaes ocidentais encontram-se relatos de temores,

    extermnios, afastamentos e repdio aos corpos com algum tipo de deformidade. No

    final do sculo XIX e inicio do sculo XX, corpos considerados monstruosos eram

    exibidos em praa pblica, vistos como produto de fora maligna ou aberraes da

    natureza. Os freak3 shows no final do sculo XIX e incio do sculo XX na Europa e

    Estados Unidos, foram exemplos desta cultura voyerstica, muito bem observada por

    Jean Jacques Courtine quando afirma que a teratologia constituiu avano crucial no

    conhecimento do ser vivo, pelo fato de ter mostrado pertencerem espcie humana

    certas formas de vida que pareciam manifestar diante dela a mais irredutvel alteridade

    (2007, p. 296).

    Hoje nos deparamos com a midiatizao excessiva do discurso inclusivo atravs

    de propagandas, eventos esportivos, telenovelas, que se utilizam do slogan da

    visibilidade e da igualdade. No entanto representam a necessidade da sociedade pela

    obteno de exemplos sobre-humanos de superao. Essa viso depreciativa ou

    espetacular do corpo deficiente extirpa sua autonomia, seu direito constitudo da

    cidadania e pode encontrar no territrio artstico a mesma reproduo dos discursos

    dominantes de normalidade.

    Esta relao de poder de corpos normais x corpo anormais reflexo de um

    passado histrico ainda bastante atual, encoberto apenas pelo discurso da oportunizao

    e da acessibilidade. Foucault j nos chama ateno em sua obra Os Anormais de como

    essas relaes podem desdobrar-se em locais de poder a favor da hegemonia da norma.

    Pensar que a cena artstica da dana dita inclusiva pode estar assumindo tal lugar um

    aspecto coerente com a realidade enfrentada pelo corpo deficiente.3 Em meados do sculo XIX at os primeiros anos do sculo XX, as pessoas que sofriam algum tipo de deformidade fsica ou de ordem congnita eram exibidas como atraes de circos nas principais cidades

    da Europa, sendo chamadas de Freaks (Aberraes), o exemplo mais conhecido o de Jonh Merrick o

    famoso Homem Elefante que acometido de uma doena degenerativa foi vtima da especulao dos

    circos, viveu na Inglaterra entre 1862-1890.

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  • O Mosaico Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.3, p.1-9, jan./junho. 2010

    Este status quo espetacular imbudo aos corpos considerados anormais,

    fragmentados, perpetuou-se em todos os setores da sociedade, inclusive nas artes. Para a

    pintura, o teatro, as danas dos sculos XVIII E XIX as deformidades e a feira

    humanas eram motivos para criaes que abordavam o medo, a maldade, a imperfeio

    do negativo, a punio, a morte, a feira, tudo aquilo que uma sociedade deveria excluir

    de sua organizao. A cultura teratolgica dos sculos XVIII E XIX chancelou a

    sentena e os papeis sociais dos corpos considerados anormais, estigmatizados como

    deficientes, gordos, negros ou doentes.

    A poltica assistencialista do ps-guerra na recuperao de corpos deficientes

    mantm-se cristalizada em muitas das aes destinadas a este pblico, no seria

    diferente pensar que as artes cnicas tambm seriam influenciadas no mesmo sentido.

    Desde os Freaks, at chegarmos s apresentaes grotescas de corpos deformados,

    hostilizados em programas de auditrio (SODR, 2000) e via internet, o que vemos o

    mesmo olhar especulativo modificado apenas pelo lugar-tempo.

    O corpo deficiente no se reconhece enquanto vtima da loteria da vida, mas se

    esbarra nas imposies sociolgicas impostas pela sociedade, nos diz Diniz (2007,

    p.43). Com efeito, ao mesmo tempo em que o discurso da incluso se nutre da

    participao do grupo social para a integrao-aceitao do excludo, este renova o ciclo

    excludente em aes paliativas de oportunizao. A crise que se encontra a deficincia

    hoje nos traz a discusso sobre o desejo e a repulsa social diferena. A existncia do

    corpo deficiente na sociedade fortalece a estrutura social da normalidade, este corpo

    restringe-se em sua definio social e percebido como indivduo meio - termo (Breton

    2007, p.75), incompleto em sua anatomia, excludo de sua cidadania, e refm das

    interferncias pblicas.

    Desta feita, a crise instalada da diferena assume o discurso vivo mantido pelas

    instituies reguladoras, que se digladiam entre as constantes reformulaes

    politicamente corretas, ignorando as condies reais de excluso destes corpos e de

    convivncia entre corpos deficientes. A incluso que se materializa de forma miditica

    no inclui o corpo deficiente, que por sua vez, no se reconhece no meio social,

    econmico e poltico, perpetuando desta maneira a segregao constituda pela

    sociedade perfeita.

    As artes da cena correm o risco de privilegiar a manuteno destes mecanismos

    de incluso disfarada, reforando a criao de guetos artsticos que se restringem

    apenas a oportunizao de espaos.

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  • O Mosaico Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.3, p.1-9, jan./junho. 2010

    H, sobretudo, uma regulao e um controle do olhar que

    define quem so e como so os outros. Visibilidade e

    invisibilidade constituem nesta poca, mecanismos de

    constituio da alteridade e atuam simultaneamente com o

    nomear e/ou deixar de nomear. (SKLIAR, 2001, p. 123).

    A sociedade contempla a diferena e parece no acreditar na possibilidade de

    visibilizar-se tambm nas suas incapacidades. O territrio artstico favorece o acesso

    destes corpos, mas afasta-se do entendimento esttico que estes propem para a

    emergncia de outros olhares sobre o corpo considerado fora dos padres.

    Ao entrar em cena o artista deficiente traz consigo para o palco a cena que vive

    socialmente, pois e sempre foi alvo do fetiche da especulao humana, e da

    espetacularidade atribuda pelo olhar social. Ao deparar-se com o fazer cnico prope

    um outro entendimento esttico, artstico, poltico de seu corpo. Ele ali um re-criador

    de si mesmo um intrprete da falta, que se transfigura em movimentos, dana. No

    entanto, este corre o risco de torna-se um meio de exibio gratuito, coadjuvante em

    obras artsticas que privilegiam apenas a sua insero na cena.

    A investigao acerca do trabalho do bailarino deficiente vai alm dos aspectos

    metodolgicos de procedimentos e tcnicas, ela assume o dilogo entre a

    impossibilidade e o fazer - cnico deste corpo que reflete o no-poder de todos os

    corpos, mas mesmo assim transfigura o lugar da dana e do humano.

    Maffesoli (2001) assinala que por ser mltiplo em si mesmo que o indivduo

    no se reconhece na rigidez social, o autor com esta frase sintetiza a necessidade do

    rompimento e da subverso ao formatado social, o que pode ser entendido no caso do

    artista com deficincia como criador de uma cena mltipla, em devir. Esta cena em

    constante transformao funde-se com o massacrante cotidiano social, poltico e

    histrico da deficincia compreendendo-a assim como criao de uma ideologia

    corporal perpetuada no decorrer dos tempos, e remodelada na atualidade atravs do

    travestido discurso da incluso. A meu ver estamos diante de uma nova Experincia de

    Opresso (DINIZ, 2007, p.22).

    A deficincia compreendida na sociedade pelo seu signo se re-configura

    enquanto enfrentamento poltico-corporal atravs das artes da cena, se mostra e se

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  • O Mosaico Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.3, p.1-9, jan./junho. 2010

    repete, transcende o universo da criao artstica e ecoa nos corpos imersos na

    impossibilidade. Esta autonomia transcende o universo da criao artstica e ecoa nos

    corpos imersos na impossibilidade, emergentes sim; na espetacularidade de suas

    experincias sociais, polticas e subjetivas.

    Este corpo def4 subverte o projeto poltico do binarismo social normal versus

    anormal e assume o local da diferena alm de seu signo, mas, sobretudo da diferena

    que retorna na forma artstica e na percepo das alteridades espectadoras. O corpo

    deficiente assume o lugar do qual a humanidade fugira no decorrer da histria ele

    alicera sua autonomia nos contrrios e nas segregaes impostas pela sociedade.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AMOEDO BARRAL, Jos. Dana Inclusiva em Contexto Artstico. Anlise de Duas

    Companhias. Dissertao no publicada. Lisboa, 2002.

    BRETON, David Le Breton. A Sociologia do Corpo. Rio de Janeiro: Editora Vozes,

    2007..

    COURTINE, Jean Jacques; VIGARELLO, Georges (Org). A Histria do Corpo: V. III.

    As mutaes do olhar: O sculo XX. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008.

    DINIZ, Dbora. O que Deficincia?. So Paulo: Brasiliense, 2007.

    ECO, Humberto. A Histria da Feira. Rio de Janeiro: Record, 2007.

    FOUCAULT, Michel. Os Anormais. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

    GOFFMAN, Irving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio

    de Janeiro: LTC, 2008.

    SKLIAR, Carlos. O Nome dos Outros. Narrando a alteridade na Cultura e na

    Educao. In: LARROSA, Jorge & Carlos Skliar (Org.). Habitantes de Babel: polticas

    e poticas da diferena. Belo Horizonte: Autntica, 2001.

    MAFFESOLI, Michel. Da parte do Diabo: Resumo da Subverso Ps-Moderna. Rio

    de Janeiro: Record, 2004.

    NARUYAMA, AKIMITSU. Freaks. Aberraes Humanas. Lisboa: Centra Livros,

    2000.

    4 Def abreviatura da palavra deficincia, forma de tratamento muito utilizada entre pessoas com algum tipo de deficincia.

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  • O Mosaico Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.3, p.1-9, jan./junho. 2010

    SODR, Muniz. O Imprio do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

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