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DÉBORAH S. DE VASCONCELOS CONSUMO COLABORATIVO E MEIO AMBIENTE: UM ESTUDO DA RELEVÂNCIA DA PREOCUPAÇÃO COM A QUESTÃO AMBIENTAL E DA CRÍTICA AO CONSUMISMO EM REDES AUTOGESTIONADAS Niterói 2016 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E COTIDIANO

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  • DBORAH S. DE VASCONCELOS

    CONSUMO COLABORATIVO E MEIO AMBIENTE: UM ESTUDO DA

    RELEVNCIA DA PREOCUPAO COM A QUESTO AMBIENTAL E DA

    CRTICA AO CONSUMISMO EM REDES AUTOGESTIONADAS

    Niteri

    2016

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MDIA E COTIDIANO

  • Dborah S. de Vasconcelos

    CONSUMO COLABORATIVO E MEIO AMBIENTE: Um estudo da relevncia da

    preocupao com a questo ambiental e da crtica ao consumismo em redes autogestionadas

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-

    Graduao em Mdia e Cotidiano da

    Universidade Federal Fluminense, como parte

    dos requisitos necessrios obteno do grau

    de mestre em Mdia e Cotidiano.

    Orientador: Prof. Dr. Guilherme Nery Atem

    Coorientadora: Profa. Dra. Lucimara Rett

    Niteri

    2016

  • V331 Vasconcelos, Deborah S. de

    Consumo colaborativo e meio ambiente: Um estudo da relevncia

    da preocupao com a questo ambiental e da crtica ao

    consumismo em redes autogestionadas../ Deborah S. de

    Vasconcelos. Niteri, 2016.

    130 f.

    Orientador: Prof. Dr. Guilherme Nery Atem.

    Coorientadora: Profa. Dra. Lucimara Rett

    Trabalho de Concluso de Curso (graduao) - Universidade

    Federal Fluminense, Instituto de Artes e Comunicao, Ps-

    Graduao em Mdia e Cotidiano, 2016.

    1. Consumo colaborativo. 2. Meio ambiente. 3. Redes sociais. I.

    Atem, Guilherme Nery. II. Universidade Federal Fluminense.

    Instituto de Artes e Comunicao. Programa de Ps-Graduao em

    Mdia e Cotidiano. III. Ttulo.

    CDD: 791.43

  • Dborah S. de Vasconcelos

    CONSUMO COLABORATIVO E MEIO AMBIENTE: Um estudo da relevncia da

    preocupao com a questo ambiental e da crtica ao consumismo em redes autogestionadas

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Mdia e Cotidiano da Universidade

    Federal Fluminense, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de mestre em

    Mdia e Cotidiano.

    Niteri, 20 de julho de 2016

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Guilherme Nery Atem, PPGMC/UFRJ (orientador)

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Lucimara Rett, ECO/UFRJ (coorientadora)

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Frederico Augusto Tavares Junior, EICOS/UFRJ

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Andrea Medrado, PPGMC/UFF

  • Aos que, em meio a uma sociedade consumista e

    individualista, trabalham para torn-la mais justa para todos.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, que sempre me deram apoio e suporte para que eu pudesse me dedicar aos

    meus sonhos profissionais e pessoais;

    Aos amigos, por compreenderam as minhas ausncias sem nunca terem deixado de estar por

    perto dando fora a nimo;

    Ao namorado, por sempre acreditar em mim e de quem o apoio foi fundamental para superar

    os momentos de dificuldade;

    Ao orientador Guilherme Nery, pelos ensinamentos e por estar sempre disponvel a ajudar

    com tranquilidade e bom humor;

    coorientadora Lucimara Rett, por abraar esse projeto trazendo um novo olhar a pontos que

    se mostravam crticos;

    Aos colegas de turma do PPGMC, pelas trocas de experincias, discusses e reflexes sempre

    produtivas;

    Coordenao do PPGMC, pelo auxlio em todo o processo, compreendendo as dificuldades

    enfrentadas no decorrer da pesquisa;

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pela bolsa

    concedida em parte do perodo do mestrado;

    A todos os administradores dos grupos, por concederam no apenas uma entrevista, mas um

    momento de convivncia com trocas importantes no s para a pesquisa, mas tambm para a

    vida.

  • mais do que pelas coisas que todos os dias so fabricadas vendidas

    compradas, a opulncia de Lenia se mede pelas coisas que todos os

    dias so jogadas fora para dar lugar as novas. Tanto que se pergunta se

    a verdadeira paixo de Lenia de fato, como dizem, o prazer das

    coisas novas e diferentes, e no o ato de expelir, de afastar de si,

    expurgar uma impureza recorrente.

    (Italo Calvino As cidades invisveis)

  • RESUMO

    VASCONCELOS, Dborah S. de. Consumo colaborativo e meio ambiente: Um estudo da

    relevncia da preocupao com a questo ambiental e da crtica ao consumismo em redes

    autogestionadas. Dissertao (Mestrado em Mdia e Cotidiano) Programa de Ps-Graduao

    em Mdia e Cotidiano, Universidade Federal Fluminense. Niteri, 2016.

    Esta dissertao tem como tema central o consumo colaborativo, uma proposta que ganha

    fora e destaque na ltima dcada e que envolve a emergncia de prticas que so apontadas

    como uma nova forma de consumo. No consumo colaborativo o acesso a bens e servios se

    d sem que haja necessariamente aquisio de um produto ou custo entre as partes envolvidas

    no processo, o que permitiria que as pessoas percebessem o benefcio do acesso aos produtos

    ao invs da sua posse. A pesquisa tem como objetivo entender a relevncia da preocupao

    com a questo ambiental e da crtica ao consumismo em redes de consumo colaborativo. Para

    proceder a essa investigao, elege-se como objeto as redes autogestionadas formadas de

    forma independente, que utilizam a ferramentas de Grupo do Facebook e cujo foco recai sobre

    os chamados mercados de redistribuio (BOTSMAN; ROGERS, 2011). A pesquisa tem um

    carter qualitativo, utilizando-se do mtodo etnogrfico e recorre-se combinao de trs

    tcnicas: observao participante, entrevista semiestruturada (com os administradores dos

    grupos) e questionrio com perguntas fechadas e abertas (voltado todos os integrantes do

    grupo). Esta ltima tcnica, ainda que no seja comum em pesquisas qualitativas, permite ter

    uma maior abrangncia de respostas e auxilia na verificao dos dados levantados a partir da

    aplicao das duas primeira tcnicas. A partir desse mtodo e combinao de tcnicas, assim

    como da pesquisa bibliogrfica preliminar realizada utilizando diferentes autores e escolas em

    seus possveis dilogos, possvel perceber que a preocupao com questo ambiental

    secundria, no sendo o fator principal para os integrantes desses grupo mas, de uma forma

    geral, h uma relevante crtica aspectos do consumismo.

    PALAVRAS-CHAVE: CONSUMO COLABORATIVO. MEIO AMBIENTE. REDES

    SOCIAIS.

  • ABSTRACT

    VASCONCELOS, Dborah S. de. Collaborative consumption e meio ambiente: and

    environment: A study of the relevance of concern for environmental issues and the critique of

    consumerism in self-organized networks. Dissertao (Mestrado em Mdia e Cotidiano)

    Programa de Ps-Graduao em Mdia e Cotidiano, Universidade Federal Fluminense.

    Niteri, 2016.

    This dissertation is focused on the collaborative consumption, a proposal that gains power

    then highlight in the last decade and that involves the emergence of practices that are seen as a

    "new way" of consumption. In collaborative consumption access to goods and services is

    given without necessarily buying a product or cost between the parties involved in the process,

    which would allow people to understand the benefit of access to goods rather than their

    possession. The research aims to understand the importance of concern for environmental

    issues and the critique of consumerism in collaborative consumption networks. To carry out

    this research, is elected as the object self-organized networks formed independently using the

    Facebook Group tools and whose focus is on so-called redistribution markets (BOTSMAN;

    ROGERS, 2011). The research has a qualitative, using the ethnographic method and refers to

    the combination of three techniques: participant observation, semi-structured interview (with

    administrators group) and questionnaire with closed and open questions (aimed at all members

    of the group ). The latter technique, although it is not common in qualitative research, allows

    for a wider range of responses and assists in verifying the data collected from the application

    of the first two techniques. From this method and combination of techniques, as well as the

    preliminary literature search performed using different authors and schools in their possible

    dialogue, it is possible that the concern with environmental issues is secondary, not the main

    factor for the members of these groups but, in general, there is a relevant criticism of aspects

    of consumerism.

    KEYWORDS: COLLABORATIVE CONSUMPTION. ENVIRONMENT, SOCIAL

    NETWORKS.

  • RSUM

    VASCONCELOS, Dborah S. de. Le consommation collaborative et l'environnement: Une

    tude de la pertinence de proccupation pour les questions environnementales et la critique du

    consumrisme dans les rseaux auto-organiss. Dissertao (Mestrado em Mdia e Cotidiano)

    Programa de Ps-Graduao em Mdia e Cotidiano, Universidade Federal Fluminense.

    Niteri, 2016.

    Cette thse se concentre sur le consommation collaborative, une proposition qui gagne la force

    et l'importance dans la dernire dcennie et qui implique l'mergence de pratiques qui sont

    considres comme une nouvelle forme de la consommation. En consommation

    collaborative l'accs conomique aux biens et services est donn sans avoir acheter

    ncessairement un produit ou le cot entre les parties impliques dans le processus, ce qui

    permettrait aux gens de comprendre l'avantage de l'accs aux biens plutt que leur possession.

    La recherche vise comprendre l'importance de proccupation pour les questions

    environnementales et la critique du consumrisme dans les rseaux de consommation

    collaborative. Pour mener bien cette recherche, est lu les rseaux auto-organiss objet

    form en utilisant indpendamment les outils Facebook Groupe et dont l'objectif est le soi-

    disant marchs de redistribution (BOTSMAN; ROGERS, 2011). La recherche a une

    qualitative, en utilisant la mthode ethnographique et se rfre la combinaison de trois

    techniques: observation participante, entrevue semi-structure (avec groupe d'administrateurs)

    et le questionnaire avec des questions fermes et ouvertes (destine tous les membres du

    groupe ). Cette dernire technique, mais il est pas commun dans la recherche qualitative,

    permet une plus large gamme de rponses et aide vrifier les donnes recueillies auprs de

    de l'application des deux premires techniques. De cette mthode et la combinaison des

    techniques, ainsi que la recherche prliminaire de la littrature ralise en utilisant diffrents

    auteurs et les coles dans leur dialogue possible, il est possible que le souci des questions

    environnementales est secondaire, pas le facteur principal pour les membres de ces groupes,

    mais, en gnral, il y a une critique pertinente des aspects de la consommation.

    MOTS-CLS: CONSOMMATION COLLABORATIVE. ENVIRONNEMENT. RSEAUX

    SOCIAUX.

  • LISTA DE ABRAVIATURAS E SIGLAS

    3R Reduzir, Reutilizar, Reciclar (Poltica dos 3R)

    CMC Comunicao mediada pelo computador

    CMMAD Comisso Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

    MCM Meios de comunicao de massa

    NTIC Nova tecnologia de informao e comunicao

    ONG Organizao no governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente

    RIO-92 Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento

    (Rio de Janeiro 1992)

    RIO+10 Cpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentvel (Johanesburgo 2002)

    RIO+20 Conferncia das Naes Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentvel (Rio de

    Janeiro 2012)

  • SUMRIO

    INTRODUO 12

    1 REFLEXO SOBRE O CONSUMO NA CONTEMPORANEIDADE E SUA

    RELAO COM O MEIO AMBIENTE 19

    1.1 Perspectivas do consumo no mundo contemporneo 19

    1.2 Aspectos do consumismo contemporneo 28

    1.3 Consumismo e meio ambiente: entre questionamentos e propostas 35

    1.3.1 Movimento ambientalista e movimentos contraculturais 37

    1.3.2 Da militncia construo de um discurso ambiental internacional 40

    1.3.3 Desenvolvimento sustentvel enquanto discurso 45

    1.3.4 Prticas de resistncia ao consumo: propostas para um consumo consciente? 47

    2 PRTICAS DE CONSUMO COLABORATIVO: PROPOSTAS PARA UMA

    NOVA FORMA DE CONSUMO? 55

    2.1 Definindo consumo colaborativo: afinal, o que isso? 55

    2.1.1 Mapeando o consumo colaborativo: exemplos e classificaes 57

    2.1.2 Consumo colaborativo: o retorno a uma velha forma de consumo? 62

    2.1.3 A ascenso do consumo colaborativo: por que agora? 66

    2.2 Aspectos envolvidos no consumo colaborativo 69

    2.2.1 Desenvolvimento das NTICs e da internet: Web 2.0 e redes sociais virtuais 69

    2.2.2 Comunidades virtuais e colaborao 73

    2.2.3 Interao com a economia de mercado 78

    3 ANLISE EMPRICA EM REDES AUTOGESTIONADAS DE CONSUMO

    COLABORATIVO: A QUESTO AMBIENTAL, O CONSUMISMO E

    OUTRAS CONSIDERAES SOBRE O TEMA 80

    3.1 Metodologia 80

    3.1.1 Definindo mtodo e tcnicas: o uso do mtodo etnogrfico na internet 82

    3.1.1.1 Observao participante 87

    3.1.1.2 Entrevista 88

    3.1.1 Questionrio 90

  • 3.2 Aplicao da metodologia proposta: histrico de pesquisa 95

    3.3 Questo ambiental nas redes analisadas e outros pontos relevantes: alguns

    resultados da anlise de dados 102

    CONSIDERAES FINAIS 104

    REFERNCIAS 107

    APNDICE A EXEMPLOS DE CONSUMO COLABORATIVO NO BRASIL E

    CLASSIFICAO PROPOSTA 120

    APNDICE B INFORMAES GERAIS DAS REDES ANALISADAS 104

    APNDICE C ROTEIRO-GUIA PARA ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA121

    APNDICE D QUESTIONRIO DE PESQUISA 124

    APNDICE E RESULTADS QUANTITATIVOS OBTIDOS COM A

    APLICAO DO QUESTIONRIO 129

  • 12

    INTRODUO

    Os estudos sobre consumo ocupam, hoje, posio de relevncia nas cincias

    sociais e estudos histricos (BARBOSA, 2006), no sendo diferente no campo da

    comunicao social; interesse que tem levado a uma considervel troca interdisciplinar

    entre pesquisadores e estudiosos dentro e fora do mundo acadmico. Estes estudos

    abordam o consumo a partir de diferentes perspectivas e, de uma forma geral,

    influenciam na percepo de que se vive em uma sociedade consumista e hedonista, na

    qual o mais valorizado no o ser e sim o ter, ou ainda, como ressalta Debord

    (1997), o parecer.

    Contudo, em um perodo recente, observa-se a emergncia de prticas que so

    apontadas como uma nova forma de consumo. No que vem sendo chamado de

    consumo colaborativo, o acesso a bens e servios se d sem que haja necessariamente

    aquisio de um produto ou custo entre as partes envolvidas no processo, o que

    permitiria que as pessoas percebessem o benefcio do acesso aos produtos ao invs da

    sua posse. Diversos produtos e servios, novos e antigos, so relacionados ao consumo

    colaborativo, por exemplo, emprstimo entre vizinhos, troca de livros, revenda de

    roupas e objetos, compartilhamento de carros, caronas, espaos de coworking,1

    couchsurfing,2 etc. De uma forma geral, o consumo colaborativo baseia-se em aes de

    grupos em torno de um interesse comum e coletivo, sendo a colaborao local ou

    pessoal e com o consumidor podendo usar a internet para conectar e formar grupos com

    pessoas que possuem os mesmos interesses (BOTSMAN; ROGERS, 2011).

    Como possvel perceber, o tema amplo, assim como cada vez maior a

    predisposio da populao em ser parte ativa desse movimento. Ainda que esta

    cultura colaborativa no seja to difundida no Brasil, comparada a alguns pases da

    Europa (em especial Alemanha e Frana), ela tem cada vez mais adeptos e

    simpatizantes, mesmo que no sejam consumidores atuantes, de fato, dentro desses

    1 Coworking um modelo de trabalho que se baseia no compartilhamento de espao e recursos de

    escritrio, reunindo pessoas que trabalham no necessariamente para a mesma empresa ou na mesma rea

    de atuao, podendo inclusive reunir entre os seus usurios os profissionais liberais e usurios

    independentes. 2 O Projeto CouchSurfing um servio de hospitalidade com base na internet. Confira em:

    .

  • 13

    sistemas. Uma pesquisa, realizada pela Nielsen3 em 60 pases em 2014, mostra que duas

    em cada trs pessoas querem compartilhar ou alugar seus produtos (NIELSEN, 2014).

    Estes nmeros mostram que, embora seja uma prtica emergente e no configurando

    uma revoluo na forma como se d o consumo hoje, o consumo colaborativo uma

    tendncia que no pode ser ignorada. Marcas e empresas tm adaptado suas estratgias

    de comunicao mercadolgica com o intuito de acompanhar e tentar se inserir de

    diferentes formas nesta nova proposta, tal qual buscam apresentar um posicionamento

    socioambiental e um discurso verde a seus pblicos.

    O crescente interesse por este tipo de prticas e redes de consumo abre caminho

    para reflexo em diversas reas, mas, sendo um fenmeno recente, ainda so poucos os

    autores que tem tratado teoricamente do tema. Surge, assim, o interesse por pesquisar as

    questes envolvidas no consumo colaborativo, como forma de contribuir para o

    aprofundamento do tema e um maior entendimento destas prticas. Esta investigao

    estimulada pela constatao de que o consumo colaborativo surge com fora e passa a

    fazer parte do cotidiano dos participantes destas redes, influenciando suas atitudes, e

    dos que esto a sua volta, frente a diversas questes de ordem econmica, social e

    cultural. O intuito o de entender, ainda que parcialmente, algumas das motivaes e

    suas relevncias para os participantes de redes colaborativas, o que feito mobilizando

    e aprofundando conceitos de diferentes reas em que a proposta dessa dissertao se

    inscreve.

    Dentre os motivadores que alguns autores indicam como fundamentais para que

    as prticas de consumo colaborativo se desenvolvam neste momento histrico,4 est um

    maior engajamento da populao no que se refere preocupao com o meio ambiente e

    os impactos causados pelo aumento nos padres de consumo (traduzidos pelo

    consumismo) em decorrncia da crise ambiental e do crescimento do movimento

    ambientalista. De uma forma geral, objetiva-se, justamente, entender a importncia

    deste fator para os participantes das redes conformadas sob a influncia da cultura do

    consumo colaborativo. Diante desse panorama, se colocam algumas questes: Seria a

    3 Nielsen uma empresa de pesquisa de mercado presente em mais de 100 pases. Ela realiza medies e

    anlises sobre a dinmica do mercado e as atitudes e comportamentos do consumidor. Confira em:

    . 4 So destacados como fatores que permitem a ascenso do consumo colaborativo: a crise ambiental e

    crescimento do movimento ambientalista; o incremento da internet e crescimento da participao nas

    redes sociais virtuais; e a crise econmica mundial que foi deflagrada entre 2008 (BOTSMAN; ROGERS,

    2011).

  • 14

    questo ambiental um grande motivador para as pessoas se engajarem e aderirem a estas

    redes e prticas? Qual a relevncia da preocupao com questes ambientais e da crtica

    e seus problemas, ou seja, enquanto prtica de resistncia, para os participantes destas

    redes?

    Esta pesquisa parte da percepo geral de que a motivao na participao de

    redes de consumo colaborativo requer, sim, uma inclinao, ainda que mnima, para a

    mudana de atitude com relao forma e padro de consumo. Porm, ainda que possa

    envolver uma vontade legtima de proporcionar o bem para a comunidade e o meio

    ambiente, atravs das ideias embutidas no compartilhamento, interdependncia e

    interao, acredita-se que estes no seriam o principal motivador para a participao

    nestas redes, uma vez que a lgica mercadolgica est presente em grande parte destas

    redes, assim como na vida de cada um de seus participantes. justamente na busca de

    um entendimento sobre estas questes levantadas e o esclarecimento sobre esta

    percepo geral que se tem, que se desenvolve esta investigao.

    Visando atender os objetivos propostos e auxiliar no entendimento do assunto de

    forma ampla, realiza-se uma pesquisa qualitativa com um carter exploratrio, um tipo

    de pesquisa realizado especialmente quando o tema escolhido pouco explorado e

    torna-se difcil sobre ele formular hipteses precisas e operacionalizveis (GIL, 2008, p.

    27). Em uma primeira etapa, realiza-se uma reviso bibliogrfica dos principais temas

    envolvidos, sendo necessrio, pelo carter interdisciplinar do assunto tratado, recorrer a

    tericos e autores de diversos campos de estudo, tais como sociologia, antropologia,

    filosofia, economia, psicologia, cincia da informao, engenharia ambiental, entre

    outros. Sendo assim, como embasamento terico, so utilizados autores das diferentes

    reas que se destacam no estudo do consumo, do meio ambiente e das redes sociais, o

    que permite desenvolver um trabalho mais rico ao apresentar e contrapor diferentes

    pontos de vistas de estudiosos de diversas formaes. Em decorrncia da atualidade do

    assunto, alm de livros e artigo cientficos, traz a necessidade de buscar como fonte

    outras publicaes e suportes, tais como contedos disponveis em blogs, redes sociais

    virtuais e publicaes em mdia especializada.

    J em um segundo momento da pesquisa, realiza-se uma investigao emprica,

    buscando entender a partir das prticas existentes a relevncia da questo ambiental e da

    crtica ao consumismo para os participantes das redes de consumo colaborativo.

  • 15

    Recorre-se ao mtodo etnogrfico por entender que este um mtodo indicado para

    estudar questes ou comportamentos sociais que ainda no so claramente

    compreendidos [...] e ajudar um pesquisador a tomar p da situao antes de se centrar

    em questes especficas (ANGROSINO, 2009, p. 36), mas sem deixar de levar em

    considerao que a aplicao de metodologias de pesquisa j existentes em um

    ambiente online requer adaptaes e anlises das possibilidades e os limites de tal

    adaptao para a pesquisa efetuada na web (HINE, 2005). Dessa forma, prope-se a

    utilizao de uma combinao de tcnicas de investigao que auxiliam a anlise

    emprica, buscando atender o objetivo geral da pesquisa: a observao participante

    permite obter uma viso ampla e detalhada da realidade das redes de consumo

    colaborativo; as entrevistas semi-estruturadas, feita com os administradores das redes

    analisadas, buscam um maior aprofundamento no que diz respeito s relaes dentro do

    grupo, permitindo emergir informaes relevantes para a pesquisa; e a aplicao de um

    questionrio qualitativo semiestruturado, direcionado aos participantes das redes

    escolhidas para anlise, enriquece a pesquisa, funciona como um verificador dos

    resultados obtidos com as duas primeiras tcnicas e permite uma caracterizao geral

    dos grupos pesquisados.

    O foco da pesquisa e das anlises concentra-se em redes sociais constitudas no

    ciberespao voltadas para prticas de consumo colaborativo classificadas como

    mercados de redistribuio, ou seja, aquelas que promovem a redistribuio de

    mercadorias, usadas ou no, cujos proprietrios desejam passar adiante (BOTSMAN;

    ROGERS, 2011, p. 190). Buscando uma maior segmentao deste objeto de estudo,

    utiliza-se de uma diviso desenvolvida a partir da observao e levantamento de

    prticas existes no Brasil.5 Dessa forma, so escolhidas redes que surgem independente

    de uma plataforma ou uso especfico, funcionando de forma autogestionada; podendo

    envolver trocas monetrias ou no; e que tenham como foco de suas interaes os bens

    materiais (fsicos). De uma forma geral, as prticas dessas redes se traduzem em

    doaes, emprstimos, trocas e vendas livres entre pares, ou seja, entre indivduos de

    forma pessoal, sem envolvimento de empresas.

    5 Esta proposta de segmentao apresentada no captulo 2, item 2.1.1.

  • 16

    Para proceder a essa investigao, opta-se pelo acompanhamento de algumas

    redes que se utilizam da ferramenta de Grupos da rede social Facebook,6 das quais a

    pesquisadora tambm participante, uma vez que, dessa forma, se torna possvel

    acompanhar as atividades e trocas (pelo menos em parte) entre os integrantes da rede,

    tendo em vista que possvel (por meio de um mural aberto) que todos os participantes

    do grupo leiam e interajam.7 A seleo dos grupos se d com base nas redes ativas que

    possuam caractersticas da proposta do consumo colaborativo, tendo como critrio o

    volume e pertinncia das publicaes, as interaes e trocas efetuadas pela rede e a

    localidade de referncia sendo a cidade do Rio de Janeiro. A partir do monitoramento de

    nove grupos,8 opta-se por analisar trs deles: calada resiste, Hipstrech Decor e

    Liberte suas coisas (Free your stuff) - Rio de Janeiro. Para esta escolha leva-se em

    considerao a pertinncia da proposta inicial do grupo com o tema investigado,9 acesso

    aos administradores para realizao de entrevista e retorno de respostas ao questionrio

    por parte dos integrantes.

    Ao estruturar o caminho percorrido at chegar os resultados desta pesquisa,

    opta-se por apresentar um trabalho desenvolvido em trs captulos que contemplam

    discusses tericas sobre o tema abordado, assim como a aplicao dos pressupostos

    terico-metodolgicos na analise de situaes concretas. Buscando conceituar

    teoricamente o consumo na sociedade contempornea, o primeiro captulo apresenta um

    percurso histrico-terico trazendo as diferentes vises sobre o consumo

    contemporneo e abordando a mudana de foco da produo para o consumo, que

    reflete a mudana na sociedade e os deslocamentos que resultaram na atual da cultura

    do consumo e do consumismo. Na sequncia acrescenta-se discusso a temtica do

    consumismo contemporneo, ressaltando alguns de seus aspectos e passando pela

    questo da obsolescncia programada e dos impactos na sociedade e no meio ambiente.

    Dando continuidade ao tema do consumismo e suas consequncias, so abordadas as

    contestaes histricas feitas ao modo de produo capitalista, como os movimentos

    contraculturais e ambientalista, e as questes que envolvem a construo de discurso

    6 Confira em: .

    7 Este recurso no possvel em outras plataformas.

    8 Grupos monitorados e observados: Bazar Aconchego; calada resiste; Calada Autogestionada;

    Desapega meninas!!!; Desentulha, troca, empresta RJ; Feira Feminina de Escambos Horizontais; Feira

    Grtis da Gratido; HIPSTRECH Decor; HIPSTRECH GRANDE TIJUCA , CENTRO e ZONA SUL

    - APEGOS e DESAPEGOS!. 9 Em alguns grupos esta informao foi conseguida apenas na etapa de entrevistas.

  • 17

    poltico do desenvolvimento sustentvel no pensamento ambientalista hegemnico

    internacional e brasileiro. O captulo finaliza com a apresentao e problematizao de

    algumas propostas de resistncia cultura do consumo e da ideia de consumo

    consciente.

    O segundo captulo busca conceituar e explicar aquilo que tem sido chamado de

    consumo colaborativo, trazendo suas caractersticas especficas que o diferencia das

    prticas de consumo hegemnicas. So apresentadas definies, exemplos,

    classificaes propostas, caractersticas e particularidades do consumo colaborativo, no

    intuito de aprofundar a discusso sobre o tema, ainda pouco explorado, e traar algumas

    das bases sob a qual se dar a investigao emprica no ltimo captulo. Alm disso,

    destacam-se as principais mudanas e contingncias histricas que resultaram na

    ascenso das prticas de consumo colaborativo no mundo contemporneo e que no

    esto ligadas a comunidades tradicionais. Ainda neste captulo, so discutidos alguns

    aspectos envolvidos diretamente com as prticas colaborativas, trazendo um panorama

    que aprofunda teoricamente o tema. Relaciona-se o consumo colaborativo a questes

    como o desenvolvimento da internet e das redes, comunidades virtuais e colaborao.

    Alm disso, este captulo tambm busca apresentar como o consumo colaborativo se

    relaciona e se comporta frente economia de mercado, destacando o uso da proposta de

    consumo colaborativo como forma de agregar valor na formao de novos negcios, ou

    ainda, na associao de marcas e empresas j consolidadas.

    No terceiro captulo aprofunda-se a anlise das redes de consumo colaborativo,

    de forma especfica, a partir de uma pesquisa emprica que tem como objetivo ancorar e

    comprovar, no plano da experincia, aquilo apresentado conceitualmente. Aps a

    fundamentao da escolha da abordagem mtodo e tcnicas utilizadas, so justificados

    os critrios que levam a escolha de determinadas redes a serem analisadas, assim como

    a apresentao de cada uma delas. Em seguida, descreve-se como se deu o processo de

    pesquisa emprica, apresentando um breve histrico. Por fim, traz-se a anlise dos dados

    coletados por meio das tcnicas empregadas e so feitas as consideraes finais com

    relao pesquisa emprica.

  • 18

    O consumo colaborativo um fenmeno novo e se confunde com outras prticas

    de consumo (por exemplo, a economia criativa10

    ). Devido ao seu carter recente, o

    estudo desta temtica envolve questes emergentes no meio acadmico, ainda

    carecendo de estudos empricos que tratem do contexto brasileiro, o que leva ao

    entendimento de que este estudo possibilita ampliar a compreenso do fenmeno do

    consumo colaborativo no Brasil. Dessa forma, esta pesquisa se apresenta, antes de tudo,

    com o intuito de colocar em debate esse tema ainda pouco abordado, buscando ressaltar

    seus pontos positivos mas tambm olh-lo de forma crtica.

    Tendo em vista que a comunicao se impe como fora estruturante de novas

    formas de socializao, esta proposta de investigao se mostra relevante para o campo

    da comunicao social tambm enquanto relao entre mdia e cotidiano, uma vez que,

    impulsionada pelo uso da internet, a cultura colaborativa tem crescido, de forma a afetar

    o cotidiano dos sujeitos envolvidos com essas prticas. A internet apresenta-se com um

    papel central no crescimento desse tipo de rede, em decorrncia de suas possibilidades

    de aproximar pessoas distantes geograficamente, mas com interesses em comum, o que,

    nesse caso, est diretamente ligado popularizao do uso das redes sociais. Assim, o

    consumo cotidiano dos sujeitos afetado por meio de suas prticas comunicacionais em

    rede, que tambm trazendo consequncias para suas vidas em sociedade e comunidade.

    10

    Economia Criativa um termo criado para nomear modelos de negcio ou gesto que se originam em

    atividades, produtos ou servios desenvolvidos a partir do conhecimento, criatividade ou capital

    intelectual de indivduos com vistas gerao de trabalho e renda. [...] as atividades do setor esto

    baseadas no conhecimento e produzem bens tangveis e intangveis, intelectuais e artsticos, com

    contedo criativo e valor econmico (SEBRAE, 2016).

  • 19

    1 REFLEXO SOBRE O CONSUMO NA CONTEMPORANEIDADE E SUA

    RELAO COM O MEIO AMBIENTE

    Quando se pretende tratar de temticas que envolvem o consumo preciso

    considerar seu contexto histrico, social, poltico e econmico, alm das diferentes

    abordagens e percepes que existem sobre o tema. Historicamente deixadas de lado em

    estudos e pesquisas de diversos campos, que privilegiavam a produo, as atividades e

    os atos de consumo atingiram tal relevncia na contemporaneidade que o consumo

    tornou-se tema central em muitas teorias e pesquisas. Dentre as possveis abordagens

    que podem ser feitas quanto s implicaes desta centralidade, est a relao do

    consumismo com a questo ambiental, uma vez que o aumento do consumo tem

    impacto direto no meio ambiente, seja pelo uso de recursos na produo de bens ou pelo

    descarte de rejeitos, dentre outros.

    Neste captulo, a partir de um percurso histrico-terico, so apresentadas

    diferentes vises sobre o consumo contemporneo abordando a mudana de foco da

    produo para o consumo, que representa tambm uma mudana na prpria sociedade.

    Em seguida, abordada a temtica do consumismo contemporneo, apresentando

    alguns de seus aspectos e passando pela questo da obsolescncia programada e dos

    impactos na sociedade e no meio ambiente. Para finalizar, so trazidas tambm as

    contestaes feitas ao modo de produo capitalista e apresentadas algumas propostas

    de resistncia cultura do consumo.

    1.1 Perspectivas do consumo no mundo contemporneo

    corrente a percepo de que o consumo ocupa hoje um lugar central na vida

    dos indivduos da sociedade contempornea. Essa ideia tende a associ-lo ao

    consumismo e a identific-lo como um fenmeno recente em nossa sociedade. Porm, o

    consumo um tema complexo, sendo o consumismo apenas uma das inmeras questes

    que a ele se relacionam e o ato de consumir sendo algo presente no cotidiano de todos

    os indivduos de todas as sociedades em todos os tempos: o consumo uma condio,

    e um aspecto, permanente e irremovvel, sem limites temporais ou histricos; um

  • 20

    elemento inseparvel da sobrevivncia biolgica que ns humanos compartilhamos com

    todos os outros organismos vivos (BAUMAN, 2008, p. 38). Assim, o que vai trazer

    destaque para o consumo na contemporaneidade o lugar que este ocupa entre os

    fatores determinantes do estilo e da qualidade de vida social e ao seu papel como

    fixador de padres (um entre muitos ou o principal) das relaes inter-humanas

    (BAUMAN, 2008, p. 38).

    Nas sociedades ocidentais contemporneas, as atividades de consumo tm sido

    entendidas, de uma forma geral, enquanto forma de satisfao de necessidades bsicas

    e/ou suprfluas (BARBOSA, 2004, p. 7). As necessidades bsicas seriam aquelas

    que so essenciais para a sobrevivncia humana enquanto espcie e as suprfluas

    todas aquelas que no se encaixam nesse tipo de necessidade. 11

    Esta diviso tende a

    criar uma percepo que v como positivo apenas o consumo em seu aspecto de

    utilidade, sendo esta uma caracterstica prpria do objeto, e o termo suprfluo Tal

    como empregado na vida cotidiana, traz um timbre de condenao (VEBLEN, 1974,

    p. 326). Porm, o consumo visto como necessidade uma ideia que se deve temer, pois

    encontra uma explicao determinista, com o natural explicando o cultural e retirando o

    sentido coletivo e simblico do consumo (ROCHA, 2009). Sendo assim, os significados

    dos bens s devem ser determinados na relao com o funcionamento da sociedade, no

    existindo um valor social intrnseco, mas sim uma preparao semntica com os valores

    e identidades sendo negociados na esfera da recepo. Alm disso, existe na ideia de

    suprfluo um tom moralizador, muito em decorrncia das tradicionais abordagens

    utilitaristas, ainda que, como descreveu Barbosa (2006, p. 11), diversos trabalhos e

    exemplos nos levem ideia de que nenhuma sociedade em alguma poca, tenha

    desenvolvido uma relao estritamente funcional com o mundo material. Pode-se

    dizer, portanto, que esta diferenciao entre bens relativa, como destaca Veblen (1974,

    p. 327-328):

    Um artigo pode ser til e suprfluo a um tempo, e a sua utilidade para

    o consumidor pode constar de utilidade e superfluidade nas mais

    variadas propores. Os bens consumveis, e at mesmo os bens

    produtivos, geralmente revelam os dois elementos combinados,

    componentes que so da sua utilidade; conquanto, de modo geral, o

    elemento superfluidade tenda a predominar em artigos de consumo,

    11

    Esta ideia aproxima-se da Pirmide de Maslow, uma escala de necessidades que devem ser atingidas

    de forma hierrquica (fisiologia, segurana, relacionamento, estima e realizao pessoal) para que se

    atinja a autorrealizao.

  • 21

    enquanto o contrrio verdadeiro em se tratando de artigos destinados

    ao uso produtivo. Mesmo nos artigos que primeira vista parecem

    servir apenas pura ostentao, sempre possvel captar a presena

    de um propsito til, pelo menos ostensivo; e, por outro lado, mesmo

    na maquinaria e nas ferramentas inventadas visando a algum processo

    particular, bem como nos mais grosseiros aparelhos da indstria

    humana, os traos de consumo conspcuo ou, pelo menos, o hbito da

    ostentao, usualmente se tornam evidentes em face de um escrutnio

    mais atento. Seria arriscado afirmar que um propsito til est sempre

    ausente da utilidade de qualquer artigo ou servio, por mais bvio que

    seja o desperdcio ostensivo do seu propsito original e principal

    elemento; e seria apenas um pouco menos arriscado afirmar em

    relao a qualquer produto originalmente til, que o elemento de

    desperdcio nada tenha a ver, imediata ou remotamente, com o seu

    valor.

    Na perspectiva tradicional da economia, relaciona-se o desenvolvimento do

    consumo na sociedade moderna diretamente com a Revoluo Industrial. A partir dessa

    viso, a intensificao da produo que imputa nos indivduos os hbitos de consumo.

    Porm, as abordagens tradicionais economicistas e utilitrias apresentam limitaes

    para a compreenso da complexidade do fenmeno do consumo no mundo

    contemporneo. Essas perspectivas tericas e interpretativas no consideram que o

    consumo envolve aspectos do contexto histrico, social, poltico e econmico e que

    podem existir diferentes abordagens e percepes sobre o tema. Dessa forma, no

    conseguem dar conta da complexidade do consumo, assim como no explicam o

    consumismo moderno e,

    A despeito das diferenas de nfases em certos temas e pocas

    investigadas [o conservadorismo keynesiano ou a viso revolucionria

    marxista], fica claro que, ao contrrio do que a historiografia

    tradicional tem afirmado e os economistas repetido, a sociedade e a

    cultura de consumo no so a gratificao histrica retardada do

    longo labor industrial (BARBOSA, 2004, p. 18).

    Partindo de uma viso sociolgica, Featherstone (1995, p. 31) considera que

    importante focalizar a questo da proeminncia cada vez maior da cultura de

    consumo, e no simplesmente considerar que o consumo deriva inequivocamente da

    produo. Do mesmo modo, Baudrillard (2008) destaca que se pode definir o consumo

    enquanto uma atividade e um processo tanto econmico quanto cultural. Vale destacar

    que, de acordo com Campbell (2002), uma nova aptido e propenso ao consumo surge

    ainda no sculo XVIII, com a chamada Revoluo do Consumidor. A explicao para

    essa transformao estaria ligada a uma revoluo cultural que modifica valores morais

  • 22

    e ticos e que leva substituio do ascetismo pelo hedonismo, reduzindo as restries

    puritanas ao desejo, ambio material e ao anseio por opulncia (CAMPBELL, 2002).

    A partir desta viso, teria sido a Revoluo do Consumidor uma das responsveis pelo

    sucesso da Revoluo Industrial.

    Por muito tempo encarado de maneira moralista e considerado algo despojado de

    importncia simblica, o consumo e as questes que o cercam passam a ser tema de

    interesse de estudos acadmicos, que historicamente mantiveram o foco na esfera da

    produo para analisar as relaes sociais. Estes estudos ganham corpo nos anos 1980 e

    essa temtica tem, hoje, uma posio relevante no campo das cincias sociais e estudos

    histricos (BARBOSA, 2006), com diversos os autores destacando o papel central que o

    consumo ocupa na sociedade atual, influenciando atividades no apenas econmicas,

    mas polticas, culturais e sociais, e pautando muitas das atividades cotidianas dos

    indivduos. Porm, essa mudana de foco nos estudos no se d sem motivo, por um

    querer dos pesquisadores. A ateno se volta para os estudos sobre o consumo na

    medida em que a sociedade se transforma e tambm muda seu centro organizador. Se na

    sociedade moderna a produo era vista como organizadora da sociedade e do

    capitalismo industrial, tendo o trabalho como o centro,12

    a partir do sculo XX

    observou-se uma tendncia de mudana no paradigma do principio estruturante e

    organizador da sociedade, da produo para o consumo (BAUDRILLARD, 2008;

    FEATHERSTONE, 1995). Para Baudrillard (2008), durante o sculo XX, o capitalismo

    foi mudando seu centro de gravidade e, no mundo fragmentado atual, o principal terreno

    da atividade social deixou de ser a produo e passou a ser o consumo.13

    A sociedade contempornea vem, portanto, sofrendo profundas alteraes em

    relao modernidade que transformam todos seus mbitos: econmicos, polticos,

    sociais, ecolgicos e tecnolgicos. A complexidade caracterstica desta sociedade leva

    diversos tericos14

    a se esforarem para esclarecer a natureza dos processos em curso e

    compreender as motivaes e implicaes do consumo na sociedade. Esses autores tem

    como referncia a mudana, que muitas vezes vista como a diluio do que vinha

    12

    Em uma perspectiva sociolgico-marxista, em geral, o trabalho que se encontra na centralidade da

    vida cotidiana e que definidor do ser do homem. uma atividade bsica e genrica do homem, o

    intercmbio entre a sociedade e a natureza (HELLER, 2004). 13

    Para Baudrillard (2008), o real perdeu sua espessura, desapareceu, e todas as relaes humanas so

    simulacros mediados por signos. 14

    Franois Lyotard (2002), com seu conceito-chave de ps-modernidade; Zygmunt Bauman (2003), com

    sua ideia de uma modernidade lquida; Gilles Lipovetsky (2004), com a hipermodernidade, entre outros.

  • 23

    anteriormente (a modernidade) para a entrada de uma nova formatao. Um desses

    autores Gilles Lipovetsky, que v a sociedade contempornea como a experimentao

    das ideias da modernidade em seu grau mais avanado, em que a cultura do excesso,

    determinada e marcada pelo efmero, com o sujeito, em ritmo frentico, buscando a

    satisfao dos seus desejos15

    (LIPOVETSKY, 2004). Os princpios modernos so

    readaptados na contemporaneidade para uma sociedade liberal, caracterizada pelo

    movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos

    grandes princpios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo

    hipermoderno para no desaparecer (CHARLES, 2004, p. 26).

    Dentre as principais mudanas percebidas na sociedade destaca-se a rpida

    expanso do consumo e da comunicao de massa, que passam a ter forte presena no

    cotidiano de toda a sociedade. Assim, o consumo de bens, de comportamentos e da

    prpria mdia constituiria a base da sociedade contempornea, sendo potencializado

    pela corrida pelo bem-estar individual, atravs do consumo hedonista, e pela busca

    infinda pela felicidade. De acordo com Lipovetsky (2005, p. 84),

    A revoluo do consumismo, que s chegar a seu pleno regime aps

    a Segunda Guerra Mundial, tem, de fato, a nosso ver, um alcance mais

    profundo, que reside essencialmente na realizao definitiva do

    objetivo secular das sociedades modernas, a saber, o controle total da

    sociedade e, por outro lado, a liberao cada vez mais ampla da esfera

    particular, agora entregue a um self-service generalizado, velocidade

    da moda, flutuao dos princpios, dos papis, dos status.

    Diante dessas transformaes associadas ao sistema econmico capitalista e

    globalizao, a sociedade e suas relaes passam a ser organizadas e voltadas para o

    consumo, com valores, ideias e aspiraes passando a ser definidos e organizados de

    acordo com aquilo que se consome. Trata-se de uma sociedade de mercado,

    caracterizada pela cultura do consumo, que tem ntima relao com a mdia e a

    globalizao, que maximiza o acesso aos bens em toda a parte do mundo.

    De acordo com Barbosa (2004, p. 8), a sociedade de consumo seria, dependendo

    da abordagem terica utilizada, simultaneamente algum tipo de consumo particular e

    um tipo de sociedade especfica com arranjos institucionais, princpios classificatrios

    e valores particulares. Enquanto alguns autores do destaque para o primeiro ponto,

    15

    Para se referir a esse processo, Lipovetsky (2004) utiliza o termo hipermodernidade. O prefixo hiper

    tambm usado pelo autor para caracterizar o padro de consumo presente nessa sociedade, o

    hiperconsumo (LIPOVETSKY, 2010).

  • 24

    definindo essa sociedade por um tipo de consumo especfico por exemplo, quando

    Jean Baudrillard (2008) se refere ao consumo do signo , outros trazem questes

    referentes s caractersticas sociolgicas deste tipo de sociedade especfica como o

    consumo de massas e para as massas, alta taxa de consumo e descarte de mercadorias

    per capita, presena da moda, sociedade de mercado, sentimento permanente de

    insaciabilidade e o consumidor como um de seus principais personagens sociais

    (BARBOSA, 2004, p. 8).

    Ao tratar da relao e diferena entre sociedade de consumo e cultura de

    consumo, Barbosa (2004) destaca que nem toda sociedade de consumo uma cultura de

    consumo. Algumas sociedades, ainda que sejam sociedades de mercado em que existe a

    figura do consumidor com privilgios e direitos, culturalmente no utilizam o consumo

    como principal forma de reproduo nem de diferenciao social, e variveis como

    sexo, idade, grupo tnico e status ainda desempenham um papel importante naquilo que

    usado e consumido (BARBOSA, 2004, p. 9). Esta situao pode ser exemplificada

    por sociedades mais tradicionais, como a da ndia, onde coexistem a sociedade de

    consumo e uma cultura baseada em aspectos institucionais fortes.

    Don Slater (2002) ressalta que na cultura do consumo os valores no so apenas

    organizados pelo consumo, mas, de certo modo, derivados dele. Na cultura do consumo,

    o ato de consumir ganha importncia simblica indita, se infiltrando em todas as

    esferas da vida social e com as relaes passando a ser mediadas por ele. Para o autor,

    os valores do reino do consumo invadem outros domnios da ao social, de modo que

    a sociedade moderna in toto uma cultura do consumo, e no especificamente em suas

    atividades de consumo (SLATER, 2002, p. 32-33). Assim, na cultura de consumo

    contempornea, todas as atividades, at as mais simples, esto permeadas por relaes

    de consumo, que vo ocupando todos os espaos da vida cotidiana dos indivduos e

    fazendo com que aspectos que a princpio no se relacionam com prticas de consumo,

    como o contato com a natureza, o cio, a sade e a educao, se transformem em

    mercadoria. No que Bauman (2008) chama de sociedade de consumidores, o consumo

    se torna o eixo organizador da sociedade,16

    fonte emanadora de inspirao para a

    modelagem de uma enorme variedade de formas de vida e de padres de relaes entre

    as pessoas. Nessa sociedade, as relaes de consumo esto inseridas na cultura da

    16

    Substituindo o papel do trabalho na sociedade moderna de produtores (BAUMAN, 2008).

  • 25

    sociedade e seus valores e ideologia so reforados pelo mercado e por instituies

    como a mdia.

    Ao tratar deste tema, Featherstone (1995, p 121) destaca que

    Usar a expresso cultura do consumo significa enfatizar que o

    mundo das mercadorias e seus princpios de estruturao so centrais

    para a compreenso da sociedade contempornea. Isso envolve um

    foco duplo: em primeiro lugar, na dimenso cultural da economia, a

    simbolizao e o uso dos bens materiais como comunicadores, no

    apenas como utilidades; em segundo lugar, na economia dos bens

    culturais, os princpios de mercado oferta, demanda, acumulao de

    capital, competio e monopolizao operam dentro da esfera dos

    estilos de vida, bens culturais e mercadorias.

    O mesmo autor, analisando os estudos relacionados cultura do consumo, identifica

    trs perspectivas fundamentais: as que abordam a questo do ponto de vista da

    produo do consumo; as que se detm aos modos de consumo; e as que tratam do que

    chama de consumo de sonhos, imagens e prazeres (FEATHERSTONE, 1995).

    Na perspectiva das teorias que tratam da produo do consumo, a cultura de

    consumo tem como premissa a expanso da produo capitalista, que deu origem a uma

    vasta acumulao de cultura material na forma de bens e locais de compra e consumo

    (FEATHERSTONE, 1995, p. 31). Aqui, o consumo entendido como consequncia da

    produo e a cultura do consumo consequncia da expanso do capitalismo e o

    aumento da produo. De acordo com Barbosa (2004, p. 37), esta perspectiva

    compartilhada igualmente tanto por economistas clssicos como por neomarxistas que

    veem consumo como uma consequncia das necessidades da produo em massa

    oriunda da revoluo industrial e que levou a uma viso estritamente economicista do

    consumo. A diferena entre as vises desses dois grupos est na questo do controle

    sobre os consumidores. Enquanto economistas clssicos tem uma viso positiva que

    considera a cultura do consumo como emancipadora, na medida em que teriam

    resultado em maior igualitarismo e liberdade individual (FEATHERSTONE, 1995, p.

    31); neomarxistas a veem como alimentadora da capacidade de manipulao

    ideolgica e controle sedutor da populao, prevenindo qualquer alternativa melhor

    de organizao das relaes sociais (FEATHERSTONE, 1995, p. 31), sendo

    desintegradora e responsvel pelo afastamento das pessoas de valores e tipos de

    relaes sociais consideradas mais verdadeiras, autnticas (BARBOSA, 2004, p. 37).

  • 26

    Considerando o consumo como derivado da produo, este segundo grupo

    considera que a necessidade de criar novos mercados e formar e educar novos

    pblicos criou mecanismos de seduo e manipulao ideolgicas das pessoas atravs

    do marketing e da propaganda (BARBOSA, 2004, p. 37). Um exemplo dessa viso

    negativa da cultura de consumo a da Escola de Frankfurt,17

    ancorada nas percepes

    de indstria cultural e transformao da cultura em mercadoria. Os autores desta escola

    destacam a obliterao do valor de uso em relao ao valor de troca, um processo que

    permite que as mercadorias se tornem livres para mltiplas associaes. Outro exemplo

    Baudrillard (2008), que destaca que o consumo supe a manipulao ativa dos signos,

    tornando-se central na sociedade capitalista, com o signo e mercadoria formando a

    mercadoria-signo. Para o autor, essa autonomia do significante permite que a mdia e

    a publicidade manipulem os signos.

    O ponto de vista que trata do tema a partir dos modos de consumo tem uma

    abordagem sociolgica que percebe que a satisfao e o status dependem da exibio e

    da conservao das diferenas em condio de inflao. Nesse caso, focaliza-se o fato

    de que as pessoas usam as mercadorias de forma a criar vnculos ou estabelecer

    distines sociais (FEATHERSTONE, 1995, p. 31). Assim, o consumo visto como

    uma forma de diferenciao social, com a transferncia das propriedades simblicas

    atribudas s mercadorias para seus usurios, enquanto categorias de pessoas. Mary

    Douglas e Baron Isherwood (2009) destacam o papel dos bens enquanto marcadores

    sociais dentro de um sistema informacional, sendo seu consumo fsico apenas uma parte

    do processo. Assim a informao contida nos bens utilizados vo servir para estabelecer

    contato com aqueles que possuem vises de mundo semelhantes e esto em um mesmo

    patamar, ao mesmo tempo em que provoca a excluso daqueles que no fazem parte

    deste mundo: Os bens so neutros, seus usos so sociais; podem ser usados como

    cercas ou como pontes (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009, p. 36). As

    mercadorias/bens seriam usadas como diferenciadores ou comunicadores sociais

    relacionando-se com as prticas e estratgias de consumo dos diferentes segmentos

    sociais, implicando na formao de hbitos, identidade e diferenciaes. Ao existir

    formas socialmente estruturadas pelas quais as mercadorias so usadas para demarcar

    17

    O que ficou conhecido como Escola de Frankfurt consistiu em um grupo de intelectuais que na primeira

    metade do sculo XX produziu um pensamento conhecido como Teoria Crtica. Dentre os nomes mais

    conhecidos esto Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamim.

  • 27

    relaes sociais, o consumo se realizaria coletivamente, existindo como algo

    culturalmente compartilhado e sendo preciso considerar as transformaes que os

    indivduos, que compram e usam bens, provocam ao compartilharem o consumo

    (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009). De acordo com Bourdieu (2007), as prticas de

    consumo so centrais na criao e manuteno de relaes sociais de dominao e

    submisso. Os chamados bens posicionais, os quais os grupos dominantes buscam deter

    o monoplio sobre (BOURDIEU, 2007), tem na sociedade de consumo contempornea

    uma instabilidade que permite sua chegada a uma populao maior, o que leva a uma

    corrida social constante para a obteno de novos bens para, assim, conservar distino

    de status reconhecveis.

    O terceiro ponto de vista daqueles que tratam do consumo de sonhos, imagens

    e prazeres, destacando os prazeres emocionais do consumo, os sonhos e desejos

    celebrados no imaginrio cultural consumista e em locais especficos de consumo que

    produzem diversos tipos de excitao fsica e prazeres estticos (FEATHERSTONE,

    1995, p. 31). Featherstone (1995, p. 42), destaca que, de acordo com o argumento de

    alguns autores, pode-se inferir que o capitalismo tambm produz (somos tentados a

    seguir a retrica ps-modernista e dizer superproduz) imagens e locais de consumo

    que endossam os prazeres do excesso. Essas imagens e locais promoveriam um

    embaamento da fronteira entre arte e vida cotidiana e de todo conjunto de associaes

    negativas relacionadas cultura ps-moderna. Por outro lado, Featherstone (1995)

    destaca que existem autores, por exemplo Walter Benjamin, que veem como positiva a

    produo em massa de mercadoria, pois liberaria a criatividade da arte, permitindo que

    migrasse para os objetos contemporneos. J para Semprini (2006), o projeto industrial

    da modernidade inicialmente no estava comprometido com questes estticas, estando

    fora do seu programa cultural e de competncias, sendo exceo produtos de alta-

    costura e perfumes, que eram restritos elite. Porm, com a sensibilidade esttica sendo

    inserida no consumo de massa, estimula-se o desenvolvimento do estetizar da vida

    cotidiana, fenmeno social em plena expanso que leva a que um nmero crescente de

    artefatos culturais e/ou de consumo incorpore uma dose significativa de estetizao,

    entendida a partir de uma perspectiva clssica de filosofia esttica.

    A partir desse panorama, Featherstone (1995, p. 48) coloca que na cultura de

    consumo ainda persistem economias de prestgio em que bens podem ser

  • 28

    interpretados e usados para classificar o status de seu portador ao mesmo tempo em

    que usa imagens, signos, e bens simblicos evocativos de sonhos, desejos e fantasias

    que sugerem autenticidade romntica e realizao emocional em dar prazer a si mesmo,

    de maneira narcsica, e no os outros. com esta ideia, que trabalha com essas duas

    perspectivas agindo simultaneamente, que ser tratado o consumo nesta pesquisa.

    1.2 Aspectos do consumismo contemporneo

    Para Bauman (2008, p. 41), enquanto o consumo basicamente uma

    caracterstica e uma ocupao dos seres humanos como indivduos, o consumismo se

    configura enquanto um atributo da sociedade, apresentando-se como um tipo de

    arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos

    rotineiros, permanentes e, por assim dizer, neutros quanto ao regime, transformando-

    os na principal fora propulsora e operativa da sociedade (BAUMAN, 2008, p. 41,

    grifo do autor). Assim, ainda que o consumo enquanto prtica tenha sempre existido na

    vida do ser humano, o que se destaca atualmente uma exacerbao de sua participao

    no cotidiano dos indivduos, atuando como organizador da vida.

    Dentre outros aspectos, o consumismo atual pode ser relacionado ao que Veblen

    (1974) identifica como consumo conspcuo, correntemente definido como um dispndio

    feito com a finalidade precpua de demonstrao de condio social, sendo, portanto,

    um hbito cuja aquisio motivada pela competio (comparao individual)

    (CHELUCHINHAK; CAVICHIOLLI, 2010, p. 21). De acordo com Veblen (1974), o

    dispndio conspcuo se relaciona com o gasto com as coisas que costumam ser

    consideradas como suprfluas, uma vez que no haveria mrito em consumir apenas

    coisas necessrias vida, estando, portanto, diretamente ligado compra de artigos de

    luxo e gastos ostentatrios por aqueles que desejam se identificar com algum grupo.

    A respeito deste tema, o autor destaca aspectos que so relevantes para esta

    pesquisa, uma vez que resultam em um maior consumo e produo de produtos, e seu

    consequente descarte, gerando impacto direto no meio ambiente. Por um desejo de se

    identificar com as classes dominantes, os indivduos procuram copiar padres de

    comportamento de estratos superiores, utilizando o consumo para demonstrar um

    determinado status que no possuem, muitas vezes ignorando seu bem estar. Esta ideia

  • 29

    origem da teoria trickle down effect,18

    que foi tratada por Simmel (1957) e expandida

    e atualizada de acordo com a sociedade contempornea por McCracken (2003). Como

    consequncia, as classes superiores tendem a mudar seus padres de comportamento a

    fim de diferenciarem das classes superiores que tentam imit-los. Assim, o que

    considerado adequado e de bom gosto hoje, dentro de um determinado tempo, quando

    se tornar padro e de fcil acesso, j no ser mais. Esta configurao d origem,

    portanto, a

    uma corrida incessante para as pessoas atingirem um determinado

    nvel, que no mais que o ponto de partida para atingir o nvel do

    grupo que se situa imediatamente acima delas, num processo sem fim

    [...]. Sua base est, antes de tudo, em uma corrida pelo prestgio, que

    seria infinita porque impossvel de se saciar, uma vez que o resultado

    depende sempre de uma comparao entre quem tem mais e quem tem

    menos bens (TASCHNER, 1996-1997, p 31).

    Esse comportamento descrito por Veblen (1974) sofre uma adaptao na

    sociedade contempornea individualista e de mercado, uma vez que a relao entre

    estilo de vida e posio social se flexibiliza e no existem mais regras ou restries

    sobre o que cada classe social pode ou no consumir: como no existem grupos de

    referncias nem regras que decidam por e para ns, os grupos sociais so

    indiferenciados entre si em termos de consumo (BARBOSA, 2004, p. 22). Assim, os

    grupos de referncia deixam de serem, necessariamente, as classes sociais mais altas e o

    efeito trickle-down, tal qual descrito por Simmel (1957) e Veblen (1974), tambm deixa

    de ser imperativo. Existe hoje uma multiplicidade de grupos, tribos urbanas e

    indivduos criando suas prprias modas. Em vez de olharmos para cima, olharamos

    para os lados (BARBOSA, 2004, p. 22). McCracken (2003) vai abordar este tema

    quando realiza uma reviso da teoria do efeito trickle-down, ressaltando que, apesar de

    seu declnio, ela ainda pode ser de grande valia para os pesquisadores da moda e do

    consumo. De acordo com o autor, ainda que eficiente para a anlise da moda europeia

    dos sculos XVI, XVII e XVIII, a teoria no se adequa configurao das relaes e da

    moda na sociedade contempornea. Dessa forma, McCracken (2003), em um esforo

    intelectual de minimizao das limitaes apresentadas pelo modelo inicial, prope a

    incluso de outros fatores no modelo terico, utilizando os argumentos do estudo em

    18

    De maneira geral o efeito trickle down remete ao fato de que, com o tempo, as classes mais baixas

    tendem a adotar comportamentos que, anteriormente, eram adotados apenas pelas classes sociais mais

    altas.

  • 30

    uma concepo de tribos ou segmentos distintos da sociedade. Em sua reviso sobre a

    teoria do efeito trickle down, o autor abandona os distintivos de classe social, baseada

    na capacidade financeira, e adere aos distintivos de gnero, ocupao, raa/etnia,

    cultura, orientao sexual, religio, poltica, dentre outros (FREITAS; PINTO;

    OLIVEIRA, 2012, p.6).

    J na percepo de Lipovetsky (2010), o que os indivduos buscam no mais a

    ostentao ou a exibio como forma de diferenciao de classe, mas viver e satisfazer

    seus desejos emocionais, corporais, estticos, relacionais, sanitrios e ldicos. O terico

    destaca o papel da felicidade na sociedade contempornea, onde haveria uma busca

    permanente de realizao pessoal. Os bens, que antes eram um meio de se diferenciar

    do outro e usados como smbolos de status, agora se colocam disposio desse

    indivduo que espera que eles proporcionem liberdade, sensaes, novas experincias,

    melhoramento da vida fsica. Por este ngulo, a dinmica consumista se sustentaria na

    busca de felicidades privadas. Em tempos de hiperconsumo, as motivaes privadas

    superam muito as finalidades distintivas (LIPOVETSKY, 2010, p. 42), sendo o

    hiperconsumidor atrado pelas sensaes variadas e de maior bem-estar sensvel. As

    novidades mercantis so desejadas por si mesmas, pela simples razo da satisfao dos

    benefcios subjetivos que elas estimulam.

    Passa-se para o universo do hiperconsumo quando o gosto pela

    mudana se difunde universalmente, quando o desejo de moda se

    espalha alm da esfera indumentria, quando a paixo pela renovao

    ganha uma espcie de autonomia, relegando ao segundo plano as lutas

    de concorrncia pelo status, as rivalidades mimticas e outras febres

    conformistas (LIPOVETSKY, 2010, p. 44).

    Esta percepo se alinha com a ideia de que existiria hoje uma busca incessante pela

    felicidade que se concretizaria no consumo, no possuir determinados bens. A

    contradio desta busca se encontra no fato de que esta felicidade nunca atingida, pois

    o desejo de consumir que funciona como motivador, sendo maior a alegria em desejar

    e esperar do que em possuir. Como apontado por Bauman (2008), a felicidade est na

    deciso da compra e no no uso em si.

    Para Campbell (2002), essa insaciabilidade dos consumidores o que caracteriza

    a sociedade de consumo e sua origem est na passagem do hedonismo tradicional para o

    hedonismo moderno. Em A tica romntica e o esprito do consumismo moderno, alm

    de identificar o romantismo como um dos ingredientes fundamentais na formao da

  • 31

    sociedade de consumo moderna, Campbell (2002) destaca que uma mudana na

    concepo das fontes do prazer, ou seja, na estrutura do hedonismo, da subjetividade

    moderna, resulta na mudana no padro de consumo. Isso ocorre porque, enquanto no

    hedonismo tradicional o prazer oriundo das sensaes e se ancora nos sentidos e na

    satisfao que esses podem obter de estmulos exteriores (BARBOSA, 2004, p. 51), no

    hedonismo moderno ele se desloca para as emoes, o que permite evocar estmulos

    atravs da imaginao e na ausncia de qualquer sensao gerada a partir do mundo

    exterior (BARBOSA, 2004, p.51). Assim, com a prevalncia do hedonismo moderno,

    h uma ampliao das experincias agradveis uma vez que o controle est por conta da

    imaginao, para a qual no h restries, e bens e servios se transformam em

    detonadores de daydreams (BARBOSA, 2004, p 52), os sonhos auto-ilusivos. Os

    consumidores esto mais preocupados com o prazer das experincias auto-ilusivas que

    constroem com suas significaes associadas a partir de produtos e servios, do que

    com a satisfao das necessidades a que estes se prestam.

    A partir destas consideraes, poder-se-ia dizer que a atividade fundamental do

    consumo no a seleo, a compra ou o uso dos produtos, mas a procura do prazer

    imaginativo a que a imagem do produto se empresta (BARBOSA, 2004, p. 52-53). E,

    to logo um desejo ou necessidade seja satisfeito, j h outro espera, em um

    processo incessante e ininterrupto, que no se d por um simples querer, mas pela

    insaciabilidade para com novos produtos. nesse mesmo sentido que Lipovetsky

    (2010) considera que o hiperconsumidor atrado pelas sensaes variadas despertadas

    e pelo desejo de maior bem-estar sensvel. Os objetos novos so desejados por si

    mesmos, apenas pela satisfao dos benefcios subjetivos que despertam

    (LIPOVETSKY, 2010). Como destaca Baudrillard (2002, p. 206), no so os objetos e

    produtos materiais que so objetos de consumo. Estes so apenas objeto da necessidade

    e da satisfao.

    Baudrillard (2002, p. 207) considera que no o aumento na quantidade

    produtos no mercado ou a busca por satisfazer as necessidades que torna o consumo

    prprio da sociedade contempornea, mas sim a converso do objeto em signo. Porm,

    para suprir a demanda constante por novos produtos, so desenvolvidas estratgias que

    levam acelerao da produo de objetos, o que acaba tendo como consequncia a

    perda do valor de uso desses objetos, diminuindo sua durabilidade e acelerando seu

  • 32

    descarte. Uma dessas estratgias, que basilar na manuteno e intensificao do

    consumismo contemporneo, a chamada obsolescncia programada, que alimenta a

    produo de novos bens e, entre outros reflexos, gera um impacto direto no meio

    ambiente em decorrncia da explorao de recursos naturais para produo. Para Arendt

    (2005, p. 138): Sua mera abundncia os transforma em bens de consumo. A

    interminabilidade da produo s pode ser garantida se os seus produtos perderem o

    carter de objetos de uso e se tornarem cada vez mais objetos de consumo.

    Ainda que nos parea um fenmeno atual, a ideia de fabricar produtos com curta

    durabilidade de maneira premeditada obrigando os consumidores a adquirir novos

    produtos no recente. O primeiro passo para o desenvolvimento do modelo de

    obsolescncia programada ocorre ainda na dcada de 1920, com o surgimento do cartel

    S.A Phoebus, em 1924. Reunindo um grupo de fabricantes de lmpadas e comandado

    pelas empresas Osram e Philips, o cartel nasce com o intuito de dividir o mercado

    mundial. Uma das medidas tomadas a determinao que define que todas as lmpadas

    devam ter a vida til limitada em 1000 horas,19

    havendo um controle rigoroso por parte

    do cartel e com multas previstas em caso de no serem seguidas as limitaes pelos

    fabricantes (CONCEIO; CONCEIO; ARAJO, 2014). J enquanto conceito, a

    obsolescncia programada surge durante a grande crise de 1929 como uma proposta

    para solucionar a depresso econmica. Para o investidor imobilirio Bernard London,

    autor do artigo Ending the depression through planned obsolescence,20

    se os produtos

    tivessem seus ciclos de vida interrompidos (diminudos), os consumidores precisariam

    voltar s compras, gerando mais demanda de produo e consequentemente mais

    emprego, o que daria fim crise. Para London (1932), o governo deveria estipular um

    prazo de vida para cada produto que seria considerado como morto aps este perodo,

    podendo ser multados aqueles que seguissem utilizando produtos que estivessem fora

    da validade. O plano no posto em prtica pelo governo e nos anos seguintes se d a

    recuperao econmica e social que vai at o incio da II Guerra Mundial, mas a ideia

    de diminuir a vida til dos produtos para intensificar o consumo ressurgiria com fora

    no ps II Guerra Mundial.

    19

    A lmpada de Thomas Edison, em 1881, tinha 1500 horas de vida. Nessa poca eram produzidas

    lmpadas com at 3000 horas de durao (CONCEIO; CONCEIO; ARAJO, 2014). 20

    Acabar com a depresso atravs da obsolescncia programada.

  • 33

    Com a recuperao da economia mundial e o aumento de renda, ocorre um

    aumento no consumo e os consumidores passam a procurar produtos para alm das

    chamadas necessidades bsicas, de melhor qualidade e que os diferenciasse. Assim,

    nos anos 1950, so apresentados aos consumidores novos produtos, novas funes e

    novos designs com a ajuda dos meios de comunicao, em especial da publicidade, que

    alcana uma massa de potenciais consumidores. A obsolescncia no planejada

    apenas em seu aspecto tcnico ou fsico, ela tambm da ordem da percepo e

    desperta no consumidor o desejo de se ter sempre algo mais novo e moderno. Novos

    produtos so apresentados como mais atraentes ou com tecnologia superior, buscando

    convencer o consumidor que aquele que ele possui est obsoleto e que esse consumidor

    ficar socialmente defasado (SLADE, 2006).

    Chegamos ento, hoje, em um momento em que essa lgica se intensificou e

    aperfeioou, tendo em vista as caractersticas da sociedade atual. Uma das evidencias da

    obsolescncia programada de produtos em seus aspectos tcnicos so as celebradas

    estratgias de melhoria continuada de produtos. Quando os ltimos lanamentos de

    determinada marca esto chegando s lojas, j existe um novo produto na linha de

    produo para substitu-lo. A acelerao e a inovao tecnolgica, aliadas publicidade

    global e tcnicas modernas de marketing, trazem uma quantidade e velocidade

    impressionante de lanamento de novos produtos no mercado com aparncia inovadora

    e pequenas mudanas funcionais, levando os consumidores, vidos por novidades, a

    uma corrida para serem os primeiros a adquirir o mais novo lanamento, ainda que no

    precisem ou que o produto no atenda s suas propostas.

    A obsolescncia programada pode ser identificada como um instrumento de

    controle do consumo, uma vez que o fabricante programa a vida til de um produto para

    que ele dure menos de forma intencional, sendo um modelo que estimula a

    desatualizao e o descarte de tudo. Percebe-se a obsolescncia programada operando

    por duas vias: por um lado cooptando o consumidor a adquirir um novo produto sem

    necessidade, seja porque no precisa21

    ou porque o seu antigo ainda est funcionando;

    por outro, afetando a durabilidade dos produtos que passam a ser projetados para

    possurem uma vida til mais curta e com novos modelos sendo lanados de forma mais

    21

    Sobre a subutilizao dos produtos, Silva (2007) traz discusso o fato de que poucos so os usurios

    que conhecem todas as funcionalidades de um celular, no sendo raro que as pessoas comprem itens

    desnecessrios, por exemplo, relgios resistentes profundidade sem que nem ao menos saibam nadar.

  • 34

    rpida para suprir essa defasagem. Ainda assim, muitas vezes o preo o fator decisivo

    de compra, em detrimento da qualidade, para consumidores que buscam novas

    tecnologias e produtos. Predomina um consumo rpido e sem compromisso com a

    qualidade do produto. Esse um aspecto a ser considerado, em especial porque

    significativa a produo de baixo custo aliada a pouca qualidade (por exemplo alguns

    produtos chineses) que, alm de estarem relacionados com problemas como pirataria,

    contrabando e trabalho escravo e semiescravo, geram uma enorme quantidade de

    resduos. Esta questo ainda mais problemtica quando se considera que grande parte

    desse descarte de produtos de baixa qualidade est relacionada a eletrnicos, os quais

    possuem em sua composio elementos danosos para o meio ambiente. Alm disso, o

    incentivo ao consumo aliado vasta oferta de produtos e a grande concorrncia leva ao

    barateamento na aquisio de um novo produto em detrimento de seu conserto, uma vez

    que torna mais fcil e barato, e muitas vezes a nica opo, comprar um produto novo

    do que consertar aquele que j se possui. Assim, a incessante oferta de produtos

    substitutos favorece o fenmeno da obsolescncia em que so descartados itens ainda

    em plena capacidade de uso.

    Para Baudrillard (2008), o desejo constante por novos produtos (novidades) est

    relacionado busca por novos signos, uma vez que estamos inseridos em uma

    sociedade que passa a referenciar no a funcionalidade de um produto, mas a sua

    simbologia perante a sociedade, levando com que a indstria desenvolva novos

    produtos e conceitos apoiados nessa busca por novos significados e associaes. Nesse

    cenrio, a moda deve ser vista como um processo de obsolescncia cultural programada.

    medida que ela se dissemina pelo interior da sociedade ela deixa de ser um diferencial

    para alguns grupos e um novo ciclo para um novo produto estabelecido (BARBOSA,

    2004, p. 42). Segundo McCracken (2003), o sistema de moda capaz de inventar

    significados culturais atravs de lderes formadores de opinio que estimulam a

    mudana de princpios e categorias culturais. Assim, com a ajuda da mdia, a lgica da

    moda, at ento restrita ao vesturio, transferida para todo e qualquer bem, adentrando

    todos os aspectos do cotidiano dos indivduos. O que era antes entendido como uma

    ferramenta utilitria passa a ser visto como parte da expresso pessoal de quem o

    possui. Semprini (2006) complementa esta temtica ao destacar que a difuso do

    paradigma esttico que recupera a lgica do funcionamento da moda para outros

  • 35

    territrios, pois, ao utilizar a experincia sensvel, torna possvel introduzir uma lgica

    de renovao permanente, com a obsolescncia programada de base cultural

    substituindo a obsolescncia tecnolgica/fsica dos produtos. atravs do estetizar que

    a lgica de renovao permanente amplia-se e estende-se a um nmero crescente de

    setores do consumo.

    1.3 Consumismo e meio ambiente: entre questionamentos e propostas

    A partir do trajeto histrico e terico traado at aqui, abordando as diferentes

    interpretaes do consumo e perspectivas acerca da cultura de consumo, possvel

    perceber que o consumismo traz consequncias para a sociedade como um todo, no

    apenas simblicas, mas tambm materiais. Visando suprir os desejos dos consumidores

    por mais e novos produtos, h a intensificao na produo que tem impacto direto no

    aumento da utilizao de energia, da explorao de recursos e tambm dos rejeitos

    gerados. importante destacar que, com o incremento do consumo de massa e o

    desenvolvimento de novos tipos de materiais, a velocidade com a qual cresce o volume

    de materiais descartados acelera-se e as caractersticas dos resduos domsticos slidos

    alteram-se: alm do aumento no volume de resduos gerados, estes agora possuem uma

    decomposio mais lenta, pois a maior parte no mais de natureza orgnica. Essa

    configurao gera diversos problemas, por exemplo o grande depsito de lixo do

    Pacfico, como conhecida uma regio no Oceano Pacfico em que se acumulam

    toneladas de lixo que se dirigem para l em decorrncia das correntes martimas. A

    composio deste lixo , principalmente, de plstico, podendo chegar a conter um

    milho de pedaos desse material por cada quilmetro quadrado. A maior parte de

    microfragmentos que se espalham muito rapidamente e flutuam abaixo da superfcie em

    uma esteira de lixo, sendo ingeridos por animais marinhos (CORRAL, 2014).

    Ainda que a questo do alto descarte de resduos seja central no impacto

    ambiental gerado pelo aumento do consumo, ao se tratar do tema h uma tendncia em

    se preocupar apenas com o incio da cadeia explorao dos recursos , deixando de

    lado o impacto do ps-consumo. Certamente diminuir a explorao de recursos uma

    questo importante, mas no se pode esquecer que quanto mais se consome novos

    produtos mais rejeitos so produzidos. com essa percepo que o lixo apontado por

  • 36

    ambientalistas como um dos mais graves problemas ambientais urbanos atuais e

    destaque como preocupao de ordem pblica. Visando combater este problema, tm-se

    utilizado a poltica dos 3Rs22

    reduzir, reutilizar e reciclar como estratgia de

    enfrentamento no mbito da gesto dos resduos slidos. Porm, pode-se observar, nas

    prticas cotidianas e mesmo nos programas de conscientizao ambiental, uma relao

    reducionista do tema com a inverso desta poltica, voltando o foco para a reciclagem,

    quando o mais importante seria a reduo.23

    Com uma atitude de resoluo de

    problemas ambientais locais de forma pragmtica, a reciclagem torna-se uma atividade

    fim com um direcionamento excessivo para os aspectos tcnicos, psicolgicos e

    comportamentais da gesto do lixo. De acordo com Layargues (2002, p. 16), a

    reciclagem, da maneira como vem sendo feita, ou seja, desprovida de polticas pblicas,

    tem muito pouco de ecolgico; na verdade, tornou-se uma atividade econmica como

    qualquer outra.24

    O que se pode notar que, ao invs de ser encarado como um

    problema situado na cultura da sociedade, o enfrentamento da questo do lixo visto

    apenas pela ordem tcnica, na qual se busca dar um destino ao que produzido sem

    questionamentos.

    Bauman (2005) faz uma anlise crtica com relao ao refugo que compartilha o

    mesmo espao semntico de rejeitos, dejetos, restos, lixo. Para o autor, a

    sociedade atual em toda sua construo histrica no tem interesse no refugo, pois s o

    produto interessa, e por isso os dejetos so removidos radicalmente, tornados invisveis

    pois no se olha para eles e inimaginveis porque no se pensa neles. O destino

    do refugo o depsito de dejetos, o monte de lixo (BAUMAN, 2005, p. 20). Essa falta

    de interesse sobre o tema pode, em parte, ser atribuda s caractersticas da

    contemporaneidade. As pessoas no querem sequer pensar sobre os seus rejeitos, o seu

    lixo, pois este um tema sem interesse para uma sociedade que valoriza o bem-estar

    individual atingido pelo consumo hedonista e a busca infinda pela felicidade.

    22

    Conhecido como os 3 Rs da sustentabilidade (reduzir, reutilizar e reciclar), um conjunto de atitudes

    relacionadas aos hbitos de consumo que ajudam a poupar os recursos naturais, gerar menos resduos e

    minimizar seu impacto sobre o meio ambiente, alm de promover a gerao de trabalho e renda. Os 3Rs

    so objetivos da Poltica Nacional de Resduos Slidos do Brasil. 23

    De acordo com a proposta, deve-se privilegiar a reduo e, s quando no for possvel, recorrer

    reutilizao e ento reciclagem. Porm, o que se observa de uma forma geral a inverso dessa ordem

    na aplicao prtica desta poltica. 24

    Os rejeitos s foram incorporados ao capitalismo de produo quando se teve condies tecnolgicas

    de torn-lo lucro.

  • 37

    Em um modelo produtivo que tem a natureza como fonte inesgotvel de

    matrias-primas e energia inicio do processo produtivo e depsito de lixo final do

    processo , capaz de assimilar dejetos sem limites, a economia no passa da circulao

    e consumo de bens em que a natureza uma externalidade que fornece recursos e

    absorve resduos do processo. Como consequncia, configuram-se sistemas econmicos

    concebidos sobre alicerces antiecolgicos e que no consideram a natureza no processo

    produtivo (SOFFIATI, 1995). Este modelo associado com os novos paradigmas da

    sociedade contempornea, caracterizada pelo movimento, pela fluidez e pela

    flexibilidade, tem afetado diretamente as relaes socioculturais, questes de trabalho e

    o meio ambiente, levando a questionamentos histricos por parte de diversos setores da

    sociedade, como o caso dos movimentos ambientalistas e sociais que buscam propor

    novas possibilidades de desenvolvimento para a sociedade. Estes movimentos, que vo

    tratar de buscar novas propostas para a sociedade com relao aos padres de consumo

    e de produo, contestando a lgica de mercado e a relao com o meio ambiente, se

    intensificam, aprofundam e diversificam o debate na ltima dcada.

    [...] As diversas formas de percepo e definio da questo ambiental

    vm se alterando em funo do prprio aprofundamento do debate, da

    agudizao dos problemas, do desenvolvimento de novos estudos

    cientficos e da participao de novos atores que trazem novas

    questes e interesses para o debate (PORTILHO, 2010, p.24).

    De acordo com Portilho (2010), existe um aparente consenso internacional sobre as

    necessidades de reverter a degradao do meio ambiente e os impactos para as

    populaes, sendo um tema envolvido em uma disputa ideolgica com uma pluralidade

    de definies, problematizaes e solues em diferentes setores polticos e sociais.

    1.3.1 Movimento ambientalista e movimentos contraculturais

    Os primeiros alertas para problemas ambientais causados pelo homem25

    so bem

    antigos e, em 1798, Malthus j chamava ateno para o fato que a populao crescia

    rapidamente sem o mesmo ocorrer com os meios de subsistncia26

    (BURSZTYN;

    25

    Crises ambientais sempre existiram antes mesmo do surgimento do homem. Uma das particularidades

    desta crise est no fato de ser a nica causada por uma espcie (SOFFIATI, 1987). 26

    A Revoluo Industrial, que acelera o processo de urbanizao e de crescimento demogrfico, ainda

    no atinge o meio rural nesse momento, gerando falta de alimentos e recursos (BURSZTYN;

    BURSZTYN, 2006).

  • 38

    BURSZTYN, 2006). Sob o impacto da Revoluo Industrial, as sociedades europeias

    comeam timidamente a se questionar a respeito dos efeitos da poluio e da

    degradao da natureza, porm, com a incorporao de novas tecnologias produo no

    campo,27

    o problema da escassez de alimentos parece resolvido e instala-se um perodo

    de otimismo quanto infinita capacidade da cincia e das tcnicas, desaparecendo a

    preocupao com o crescimento populacional e com a expanso em todos os mbitos.

    Assim, os trs primeiros quartos do sculo XX so marcados pelo crescimento da

    populao, da produo, dos mercados, do consumo de matrias-primas e dos

    conhecimentos, passando a ideia de ser possvel um crescimento ilimitado

    (BURSZTYN; BURSZTYN, 2006, p. 56).

    Somente aps a II Guerra Mundial o assunto volta a ser levantado, a partir do

    reconhecimento de que os avanos cientficos poderiam trazer malefcios ao meio

    ambiente e uma vez que os problemas decorrentes do desenvolvimento e do uso de

    produtos qumicos e armamentos passam a ser notados no campo e nas cidades pela

    populao. De acordo com Moscovici (2007), com os efeitos da bomba de

    Hiroshima28

    que a cincia moderna se depara com seus limites ticos e com a

    perspectiva da finitude da vida sobre o planeta que ela prpria poderia ocasionar. Dessa

    forma, na dcada de 1960, seguindo o caminho dos primeiros movimentos

    antinucleares, uma mobilizao intelectual, militante e poltica em torno dos riscos

    ambientais inicia os debates mundiais sobre degradao ambiental (BRSEKE, 1995).

    Esta conjuntura vai dar origem ao movimento ambientalista, que tem como

    marco o lanamento, em 1962, da obra da biloga Rachel Carson. Silent spring29

    denuncia os malefcios causados ao meio ambiente e ao homem pelo uso de DDT,30

    desafiando as prticas dos agricultores e a poltica do uso do pesticida. Ainda que

    controverso e tachado de alarmista pelo governo, esse trabalho considerado o incio da

    discusso internacional sobre o meio ambiente, introduzindo a questo ambiental nas

    pautas polticas e contribuindo para as discusses em torno do tema. O principal legado

    27

    A mecanizao do campo e o uso de fertilizantes levam ao aumento da produo. 28

    Refere-se aos bombardeios realizados pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaky, no

    Japo, que resultou seu rendimento ao final da II Guerra Mundial e que ocasionou milhares de mortes e

    trazendo diversos de problemas de sade para os sobreviventes. 29

    O nome do livro em portugus Primavera Silenciosa. 30

    DDT a sigla de diclorodifeniltricloretano, o primeiro pesticida moderno e que foi largamente usado

    aps a II Guerra Mundial para combater os mosquitos transmissores da malria e tifo. Depois das

    denuncias de que causaria cncer em seres humanos e mortandade em animais, foi banido em vrios

    pases na dcada de 1970. No Brasil, sua proibio s ocorre em 14 de maio de 2009, com a Lei 11.936.

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    de Carson (1969) foi o combate ao materialismo da cincia e s ideias de controle da

    natureza pela tecnologia.

    No mesmo contexto que se configura o movimento ambientalista surge uma

    srie de outros movimentos sociais que, nas dcadas de 1960 e 1970, lutaram por causas

    das chamadas minorias sociais, com destaque para o movimento dos direitos civis dos

    negros nos Estados Unidos e o movimento feminista. Na mesma poca, tambm

    aparecem os primeiros movimentos contraculturais, os quais se caracterizam pela recusa

    aos parmetros burgueses de felicidade (VOUGA; CANO; VASCO, 2015, p. 3) e que

    influenciam diversas manifestaes estudantis, inclusive as que culminaram no Maio de

    68.31

    Os beatniks, ou gerao beat, nascem nos Estados Unidos no final da dcada

    de 1950, sendo um dos primeiros movimentos considerados de contracultura. Formado

    por jovens intelectuais que trazem contestaes com relao ao consumism