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Debates em Direito Público Revista de Direito dos Advogados da União ano 8 - n. 8 - outubro de 2009 RDDP_08_2009.indd 1 22/9/2010 10:11:55

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Debates em Direito PúblicoRevista de Direito dos Advogados da União

ano 8 - n. 8 - outubro de 2009

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Diretoria da ANAUNI – Biênio 2009/2011

Presidente: Vice-Presidente:Secretária-Geral:

Adjunto:Diretora Financeira:

Adjunta:Diretora Administrativa:

Adjunta:Diretor de Atividades Legislativas:

Adjunto:Diretor Jurídico:

Adjunto:Diretor de Comunicação:

Adjunto:Diretora Social:

Adjunto:Coordenador Científico:

Assessor Especial para Capacitação:

André Gustavo Vasconcelos de Alcântara (PRU-5/PE) <[email protected]>Milton Nunes Toledo Junior (CGU-PR/DF) <[email protected]>Tania Patricia de Lara Vaz (CGU-PR/DF)Boni de Moraes Soares (DRCI-MJ/DF) <[email protected]>Isadora Maria Belém Rocha Cartaxo de Arruda (SGCT/DF)Adriana Sousa de Siqueira (SGCT/DF) <[email protected]>Patrícia Lima Sousa (CONJUR-MPOG/DF)Juliana Corbacho Neves dos Santos (SDH-PR/DF) <[email protected]>Cristiano Soares Barroso Maia (PGU/DF)José Mauro de Lima O’ de Almeida (PU/PA) <[email protected]>Rodrigo Cunha Veloso (PRU-5/PE)Lourival May Chula (PRU-4/RS) <[email protected]>Francisco Alexandre Colares Melo Carlos (PU/PA)Glaucio de Lima e Castro (PRU-3/SP) <[email protected]>Ana Valéria de Andrade Rabêlo (CGU-PR/DF)Rodrigo Ferreira Dias (PSU-PTS/RJ) <[email protected]>Luís Henrique Martins dos Anjos <[email protected]>Rommel Madeiro de Macedo Carneiro

Conselho Fiscal da ANAUNI – Biênio 2009/2011<[email protected]>

Titular:Titular:Titular:

Suplente:Suplente:

Caio Alexandre Wolff (PSU-BLU/SC)Max Casado de Mello (PU/GO)Luciano Medeiros de Andrade Bicalho (NAJ/MG)José Wanderley Kozima (PU/SC)Bruno Leonardo Guimarães Godinho (PU/BA)

Conselho de Ética, Disciplina e Prerrogativas da ANAUNI – Biênio 2009/2011 (Resolução nº 05/2008-JWK/ANAUNI)

<[email protected]>

Presidente:Membro:Membro:Membro:Membro:

Milton Nunes Toledo Junior (MF/DF)Fernando Ferreira Baltar Neto (NAJ/PB)Rodrigo de Souza Aguiar (PU/PR)Sabrina Fontoura da Silva (MEC/DF)Sérgio Eduardo Freire Miranda (PU/PI)

Conselho Editorial

Luís Henrique Martins dos Anjos (Presidente)Marcelo Ribeiro do Val (Coordenador)

Milton Nunes Toledo Junior (Coordenador)José Mauro de Lima O’ de Almeida

José Tadeu Neves XavierLena Barcessat Lewinski

Luciano Medeiros de Andrade BicalhoMarco Aurélio Ventura PeixotoReinaldo de Souza Couto Filho

Sandra Marques Magalhães

DEBATES EM DIREITO PÚBLICOREVISTA DE DIREITO DOS ADVOGADOS DA UNIÃOano 8 - n. 8 - ISSN 1677-8146Brasília – outubro de 2009Periodicidade: anualTiragem: 2.000 exemplaresEdição: Associação Nacional dos Advogados da UniãoCLSW 303 – Bloco “B” – Sala 55 – Ed. Rhodes Center IIISetor Sudeste - CEP 70673-622 – Brasília/DF

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André Gustavo Vasconcelos de Alcântara (PRU-5/PE) <[email protected]>Milton Nunes Toledo Junior (CGU-PR/DF) <[email protected]>Tania Patricia de Lara Vaz (CGU-PR/DF)Boni de Moraes Soares (DRCI-MJ/DF) <[email protected]>Isadora Maria Belém Rocha Cartaxo de Arruda (SGCT/DF)Adriana Sousa de Siqueira (SGCT/DF) <[email protected]>Patrícia Lima Sousa (CONJUR-MPOG/DF)Juliana Corbacho Neves dos Santos (SDH-PR/DF) <[email protected]>Cristiano Soares Barroso Maia (PGU/DF)José Mauro de Lima O’ de Almeida (PU/PA) <[email protected]>Rodrigo Cunha Veloso (PRU-5/PE)Lourival May Chula (PRU-4/RS) <[email protected]>Francisco Alexandre Colares Melo Carlos (PU/PA)Glaucio de Lima e Castro (PRU-3/SP) <[email protected]>Ana Valéria de Andrade Rabêlo (CGU-PR/DF)Rodrigo Ferreira Dias (PSU-PTS/RJ) <[email protected]>Luís Henrique Martins dos Anjos <[email protected]>Rommel Madeiro de Macedo Carneiro

Sumário

Apresentação .................................................................................................................7

Parte I – Advocacia de Estado

Autonomia da Advocacia de Estado e sua independência funcionalDiogo de Figueiredo Moreira Neto .........................................................................11

1 Culturas e valores ..............................................................................................112 Direitos fundamentais .......................................................................................123 A constitucionalização ......................................................................................124 A funcionalização na Constituição .....................................................................135 Desdobramento do papel ôntico das Constituições ............................................136 A lógica da adequação funcional orgânica na Constituição brasileira .................137 Funções e órgãos de controle ............................................................................148 As funções essenciais à justiça ...........................................................................159 Garantias de independência no exercício das funções essenciais à justiça ...........1710 Uma conclusão parcial a ser retirada: a isonomia entre as funções essenciais à justiça ............................................................................................18 Conclusão .........................................................................................................19

Autonomia da Advocacia de Estado e seus dilemasAlmiro do Couto e Silva ...........................................................................................21

A independência funcional da Advocacia de Estado e sua relação com a Ordem dos Advogados do BrasilBruno Espiñeira Lemos .............................................................................................25

1 A Advocacia Pública na Constituição de 1988 ...................................................252 A Advocacia de Estado ......................................................................................263 Conclusão e o referencial do pertencimento à OAB ..........................................33

Parte II – Combate à Corrupção

Improbidade administrativa na Constituição de 1988: uma ilegalidade qualificadaFábio Medina Osório ................................................................................................39

I O diagnóstico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública ..................................................................................................391 Os níveis de desonestidade e ineficiência funcionais dos agentes públicos desde uma perspectiva ético-normativa ...............................................401.1 Boa gestão pública: observações gerais .............................................................40

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1.1.1 Imperativo ético da boa gestão pública na pós-modernidade e a perspectiva de responsabilidade dos agentes públicos .......................................421.1.2 Imperativo ético de imputação ..........................................................................441.2 Má gestão pública: observações gerais ..............................................................451.2.1 Desonestidade funcional dos homens públicos e suas flutuações ético-normativas ...............................................................................................491.2.2 A ineficiência funcional dos homens públicos e suas flutuações ético-normativas ...............................................................................................54II O diagnóstico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública no Direito brasileiro ...................................................................561 Improbidade e desonra: a perspectiva da imoralidade administrativa no sistema brasileiro .........................................................................................571.1 Moral administrativa e as raízes da probidade dos agentes públicos ..................581.1.1 Boa fé objetiva ..................................................................................................601.1.2 Formação das regras não escritas da Administração Pública e a avaliação dos deveres públicos existentes .........................................................................621.2 Moralidade subjetiva: os fundamentos da responsabilidade pessoal dos funcionários públicos ........................................................................................661.2.1 Fundamentos gerais da responsabilidade pessoal ..............................................661.2.2 Tipos de responsabilidade pessoal dos agentes públicos ....................................692 O histórico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública no Direito brasileiro ..............................................................................702.1 Perspectiva constitucional .................................................................................702.2 Perspectiva legal ...............................................................................................73III Improbidade administrativa na Constituição de 1988 ........................................76 Conclusões .......................................................................................................81 Referências .......................................................................................................83

La lotta alla corruzione in Europa e in ItaliaGiuseppe Albenzio ....................................................................................................95

I La dimensione internazionale ed europea ..........................................................95II La realtà italiana .............................................................................................100

Cooperación jurídica internacional y combate de la corrupción: experiencia europeaLuis Banciella Rodríguez-Miñón ............................................................................105

I Derecho interno ..............................................................................................105II Cooperación en el ámbito de la Unión Europea ...............................................115

Combate à lavagem de dinheiro e à corrupção – Os frutos da parceria entre o Ministério da Justiça, a Advocacia-Geral da União e outros órgãos do Estado brasileiroRomeu Tuma Junior ................................................................................................123

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A estratégia nacional de combate à corrupção e à lavagem de dinheiroLuiz Augusto Fraga Navarro de Britto Filho .........................................................135

Advocacia de Estado como responsável pelo combate à corrupçãoLuís Henrique Martins dos Anjos ..........................................................................145

Introdução ......................................................................................................1451 A Advocacia de Estado como instituição republicana .......................................1452 Proposições debatidas no IX ENAU ..................................................................1483 Resoluções aprovadas na XX Conferência Nacional dos Advogados .................150 Conclusão .......................................................................................................153

Princípio da moralidade e improbidade administrativaMárcio Cammarosano ............................................................................................155

Parte III – Desenvolvimento Social

Desenvolvimento social e combate à corrupção: sobre o atendimento das necessidades básicas e a prática das virtudes cívicasPatrus Ananias ........................................................................................................169

Entidade beneficente de assistência social e regulamentação do §7º do art. 195 da Constituição FederalIdervânio da Silva Costa .........................................................................................177

1 Introdução ......................................................................................................1772 Entidade beneficente de assistência social .......................................................1783 Art. 195, §7º, da Constituição Federal: regra de isenção ou imunidade ............1824 Regulamentação por lei complementar ou por lei ordinária .............................1845 Mandado de Injunção nº 232/RJ: entendimento do Supremo Tribunal Federal .1886 Posição do Poder Legislativo ............................................................................1947 Aplicação subsidiária do Código Tributário Nacional ........................................1958 Conclusão .......................................................................................................197 Referências .....................................................................................................197

Direitos fundamentais sociais e a cláusula da reserva do possível: limites à atuação estatalMarcio Pereira de Andrade ....................................................................................199

Introdução ......................................................................................................1991 Direitos fundamentais sociais ..........................................................................2001.1 Conceito .........................................................................................................2001.2 A efetividade das normas constitucionais ........................................................2011.3 Direitos fundamentais sociais como regras e princípios ....................................2021.4 Direitos fundamentais sociais e princípio da proporcionalidade ........................205

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2 Cláusula da reserva do possível........................................................................2062.1 Introdução ......................................................................................................2062.2 Políticas públicas e orçamento: breve noção ....................................................2072.3 Natureza jurídica da cláusula da reserva do possível ........................................2092.4 Origem da cláusula da reserva do possível .......................................................2102.5 A reserva do possível no Judiciário brasileiro ....................................................2112.6 O princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial ................214 Conclusão .......................................................................................................217 Referências .....................................................................................................218

Direito à saúde e constitucionalização simbólica: perspectivas de concretização de um direito fundamentalCiro Carvalho Miranda ...........................................................................................221

1 Introdução ......................................................................................................2212 Legislação Simbólica e suas espécies................................................................2243 Constitucionalização Simbólica .......................................................................2274 Constitucionalização Simbólica e serviço público de saúde na ordem de 1988..........................................................................................................230 Referências .....................................................................................................237

Parte IV – Prática Jurídica

Petição Inicial de Ação Civil Pública (com pedido de antecipação de tutela)Sandro Souza Schwinden, Jair Francisco Kirinus Alves, Márcia Bezerra David, Lisiane Ferrazzo Ribeiro, César Jackson Griza Júnior ...............................241

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Apresentação

Debates em Direito Público, a Revista dos Advogados da União, chega ao seu oitavo ano de existência. Neste número 8, o periódico reúne a essência do que foi debatido no V Seminário Nacional sobre a Advocacia de Estado realizado durante o IX Encontro Nacional do Advogados da União na cidade de Maceió, Alagoas, de 3 a 7 de novembro de 2008, identificando-se ainda mais com o principal evento da Associação Nacional dos Advogados da União (ANAUNI), que naquele ano abordou a temática da Advocacia de Estado e o combate à corrupção na viabili-zação do desenvolvimento social. Desta forma, o conteúdo desta edição está focado nos temas pertinentes à Advocacia de Estado, ao Combate à Corrupção e ao Desenvolvimento Social.

Publicamos, neste número, textos inéditos dos professores Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Almiro do Couto e Silva, Bruno Espiñeira Lemos, Márcio Cammarosano, Fábio Medina Osório, todos autores con-vidados especialistas nas respectivas temáticas e que ministraram suas palestras no IX ENAU. Também publicamos as palestras das autoridades federais que prestigiaram o evento com suas presenças. E, como não poderia deixar ser, publicamos os artigos e peça jurídica dos Advogados da União na temática foco deste número.

Debates em Direito Público torna-se mais um canal de integração dos Advogados da União brasileiros com a Advocacia Pública estrangeira, em especial a europeia, graças aos contatos do nosso colega Marcelo Ribeiro do Val e às contribuições do Advogado do Estado italiano Giuseppe Albenzio e do Advogado do Estado espanhol Luis Banciella Rodríguez-Miñón que palestraram no IX ENAU e nos estimularam com a publicação de seus artigos.

Nossa revista permanece sendo publicada anualmente, como é de sua tradição, e pela segunda vez com a parceria inestimável da Editora Fórum, especializada no Direito Público.

Forte abraço,

Luís Henrique Martins dos AnjosPresidente do Conselho Editorial.

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Parte IAdvocacia de Estado

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Autonomia da Advocacia de Estado e sua independência funcional�

Diogo de Figueiredo Moreira NetoProfessor em universidades do Brasil e do exterior. Autor de diversas obras jurídicas.

Palavras-chave: Advocacia de Estado (autonomia). Direitos fundamentais. Funções essencias à justiça.

Sumário: 1 Culturas e valores – 2 Direitos fundamentais – 3 A constitu-cionalização – 4 A funcionalização na Constituição – 5 Desdobramento do papel ôntico das Constituições – 6 A lógica da adequação funcional orgânica na Constituição brasileira – 7 Funções e órgãos de controle – 8 As funções essenciais à justiça – 9 Garantias de independência no exer-cício das funções essenciais à justiça – 10 Uma conclusão parcial a ser retirada: a isonomia entre as funções essenciais à justiça – Conclusão

Assim como todo poder tem a sua origem na vontade, toda justificação do poder deve ter origem num valor que a oriente. Assim pretende, esta exposição, ressaltar o valor juspolítico que justifica a constitucionalização da Advocacia de Estado neste complexo e turbulento mundo pós-moderno do poder.

1 Culturas e valoresParte-se de uma abordagem antropológica, seguro método para

ancorar à realidade as abstrusas reflexões sobre o universo social. O ensi-namento da Antropologia Jurídica contemporânea é simples: tudo o que é real é dominado pela diversidade.2 Assim, todas as culturas desenvolvem os seus respectivos valores, que as caracterizam e as identificam.

Lentamente, com a aproximação dos povos e o aperfeiçoamento da comunicação social as sociedades passam de culturalmente homogêneas a culturalmente heterogêneas, dando origem às sociedades plurais.

Assim é que, nessas sociedades plurivalentes, alguns valores se comunicam, se difundem, tornam-se comuns aos grupos e se transfor-mam nas suas referências multiculturais.

1 Apresentado no V Seminário Nacional sobre Advocacia de Estado e IX Encontro Nacional de Advogados da União, Maceió, 4 nov. 2008.

2 Rodolfo Sacco, Professor da Universidade de Turim, portanto, colega de Norberto Bobbio, Membro da Academia dos Linces, é que o afirma e propõe como princípio, em sua Antropologia jurídica, publicada neste ano (Antropologie juridique. Paris: Dalloz, 2008. p. 29: “Tout ce qui est réel est dominé par la diversité”).

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Entre as várias referências multiculturais desenvolvidas no cadinho cultural da civilização ocidental, a dos direitos fundamentais veio a se tor-nar uma das mais expressivas no mundo atual, possivelmente como a maior aquisição juspolítica da humanidade, depois de se ter sagrado a liberdade no mundo liberal.

2 Direitos fundamentaisMas um longo percurso histórico foi percorrido desde a origem

do conceito de que o homem tem direitos naturais que lhe são imanentes, que se solidificou com o desenvolvimento da concepção dos direitos humanos até, finalmente, elevar-se às Constituições com esta denominação e nelas, afinal, se positivarem com seus desdobramentos metaindividuais com a atual denominação de direitos fundamentais.

3 A constitucionalizaçãoA positivação de direitos humanos, em suas origens, estava limitada

a enunciar valores, tal como já se encontrava desde o seu aparecimento em algumas Cartas medievais, até florescer nas primeiras Declarações formais, iluministas e liberais.3

Tinham, pois, os direitos humanos, a essa época páleo-liberal, uma função declaratória, e por isso recebida no positivismo como mera norma programática, sem outra eficácia que a de indicar um ideal a ser alcançado. Assim, esses direitos declarados ingressavam nas Constituições liberais apenas como programas, e, desse modo, totalmente dependentes do arbítrio dos detentores do poder de plantão, aos quais caberia definir politicamente a conveniência e a oportunidade para que fossem implementados.

Todavia, nas Constituições posteriores, de cunho social, já sob as demandas de sociedades sócio-economicamente emergentes mais com-plexas e contando com certa experiência relativamente ao controle do abuso do poder, acresceu-se à função declaratória a de garantia, que se expressou na instituição de meios para o controle de excessos, a partir do exemplo do vetusto habeas corpus do direito anglo-saxônico.

Finalmente, nas Constituições pós-modernas, estes direitos, inicialmente apenas declarados, e posteriormente garantidos, alcançam sua plenitude

3 Citando-se entre as mais famosas desta época de afirmação o Bill of Rights de 1689, a Constituição do Bom Povo da Virginia e o preâmbulo da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, ambas de 1776.

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jurídica ao dotarem-se de supremacia e de eficácia próprias, aptos, portanto, para serem efetivamente implementados ou, em expressão mais recente, funcionalizados.

4 A funcionalização na ConstituiçãoAssim, se o Estado Liberal chegou à declaração dos direitos fundamentais e

o Estado Social, à sua garantia, toca agora ao Estado Democrático de Direito, que acumula ambas as experiências e as transcende, a sua efetivação.

Portanto, o que se entende por efetivação dos direitos fundamentais vai além da declaração e mesmo da garantia contra abusos, passando assim a assu-mir uma justa prelazia sobre todos os demais direitos e instituindo em torno deles uma vertebração de todo o jurismo: constitucionalizado para tornar-se simultaneamente um dever estatal e um direito cidadão de funcionalização.

5 Desdobramento do papel ôntico das ConstituiçõesÀs normas ônticas das Constituições modernas cabia organizar o

Estado, embora os propósitos desses aparatos governamentais persistissem sob conceitos funcionais e esquemas tradicionais, por serem ainda vagos os objetivos programáticos que hipoteticamente deveriam ser perseguidos.

Distintamente, as normas ônticas das Constituições pós-modernas já possibilitam muito maior adequação das funções às finalidades do poder e, assim, basicamente, ao Estado se atribuem duas ordens de missões correspondentes aos dois grandes avanços registrados: primo, a de tornar efetiva a garantia de que os direitos fundamentais serão rigorosamente observados e, secundo, a de tornar efetiva a sua funcionalização.

Isso posto, para o desempenho dessas duas ordens de funções, as Constituições pós-modernas, como a brasileira de �988, adotam uma nova disposição orgânica, na qual se busca conjugar critérios de multiplicação de especialidades funcionais (próprios para a missão de funcionalização) com critérios de multiplicidade de controles (próprios para a missão de garantia), dando crescente importância à função de controle.

6 A lógica da adequação funcional orgânica na Constituição brasileira

Examine-se agora, sob este esquema metódico, como se apresenta a adequação funcional-orgânica na Constituição brasileira.

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Para desempenhar as funções que devem conferir efetividade à missão de funcionalização dos direitos fundamentais, a Constituição aparelha duas categorias de órgãos:

(�) os órgãos que devem ditar as regras legais do funcionamento, com funções de formular comandos normativos (os órgãos legislativos) e

(2) os órgãos que devem pôr em ação esses comandos (os órgãos executivos).

Outrossim, para desempenhar funções que devam conferir efeti-vidade à missão de garantia dos direitos fundamentais, a Constituição aparelha também duas categorias de órgãos:

(�) os órgãos de vigilância e de repressão de fato (os órgãos executivos de segurança pública) e

(2) os órgãos que devem fiscalizar, prevenir, reprimir e corrigir de direito todos os tipos de ações acima referidos (os órgãos de controle da segurança jurídica).

A cada órgão, a Constituição impõe o desempenho da função reflexiva de controle — o autocontrole; mas, com autêntica inspiração no princípio da separação de poderes, hoje, mais apropriadamente, de separação de funções� esta importante atribuição é também cometida a órgãos externos — o heterocontrole.

7 Funções e órgãos de controleEspecificamente, para desempenhar a amplíssima missão de con-

trole da segurança jurídica, as suas distintas manifestações são distribuídas constitucionalmente em rede, e não mais em pirâmide, entre diversos órgãos, sendo que concentram-se apenas em alguns deles, qualificados pela jurisdição, a competência universal para emitir decisões definitivas sobre conflitos de Direito (os órgãos judiciários).

Os demais órgãos de controle instituídos pela Carta Magna, em vez dessas missões universais de controle, desempenham missões de controle

4 Como ensina Karl Lowenstein, dos mais reputados atualizadores desse princípio: “Lo que corrientemente, aunque erróneamente, se suele designar como la separación de los poderes estatales, es en realidad la distribuición de determinadas funciones estatales a diferentes órganos del Estado. El concepto de ‘poderes’, pese a lo profundamente enraizado que está, debe ser entendido en el contexto de una manera figurativa. En la seguinte exposición se preferirá la expressión ‘separación de funciones’ a la de ‘seraparación de poderes” (LOWENSTEIN, Karl. Teoría de la constituitión. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1964. p. 55).

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específicas e limitadas — ora como sua atividade primária, ora como sua atividade secundária — para atuarem no controle externo sobre as funções exercidas pelos órgãos por eles controlados, embora, como ressaltado, sem definitividade na dicção do direito.

Dois grupos de órgãos atuam no desempenho dessas missões consti-tucionais específicas e limitadas: (�) no primeiro grupo, os que se encarregam dos controles de fiscalização e de correção em matéria contábil, financeira e orçamentária (os órgãos de contas) e, no segundo grupo, (2) os que têm a cargo controles de fiscalização, promoção e defesa em matéria jurídica em diversas ações de provedoria de justiça (os órgãos exercentes das funções essenciais à justiça).

Para o desempenho de todas essas intrincadas atividades estatais dispostas em rede, numa trama de controles recíprocos que garante vigilância e equilíbrio entre todas, mesmo superpostas, sobressai a necessidade de gozarem de independência funcional, notadamente, para as que exercem as missões de garantia, que são exatamente aquelas às quais incumbe o controle externo, que são exercidas sob várias modalidades e sobre todas as funções e seus correspectivos órgãos.

Assim, o princípio da separação de poderes, agora em sua releitura neoconstitucional — portanto, com vistas à plena eficácia dos direitos fundamentais — tem necessariamente como corolário a independência constitucionalmente assegurada para o também pleno exercício dessas várias funções de controle específicas de Estado.

8 As funções essenciais à justiçaOra, as funções essenciais à justiça são as constitucionalmente apare-

lhadas para atuar praticamente em todos os campos em que haja uma atividade jurídica, ou seja: na esfera da juridicidade.

Apresenta-se aqui um outro conceito pós-moderno, também pleno de significação — a juridicidade — como a sua referência: um conceito bem mais extenso que o da legalidade, pois que não se refere exclusiva-mente à lei, mas ao Direito, envolvendo as exigências constitucionais de legitimidade e de licitude (moralidade).

A este respeito, vale recordar Franz Bydlinski que sustenta, com razão, a necessidade do emprego gradual e subsidiário de todos os métodos disponíveis para chegar a qualquer decisão que deva exprimir a

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lei, mas sempre conforme a idéia de Direito,� uma vez que tanto os preceitos positivos como os de conteúdo ético conformam ambos o Direito.

Afinal, o conceito de atividade justa há de ser aquela que deve bus-car, na linha da legalidade, a realização da solução prevista na lei (eficácia), em que se logre, na linha da legitimidade, o atingimento do máximo de proveito geral com o mínimo de sacrifício particular (eficiência).

Chega-se, portanto, recordando aqui a lição de Friedrich Müller, à conclusão de que a operação de concretização aplicativa de uma norma não significa apenas densificá-la em seus elementos, para assim alcançar a realidade, mas, sobretudo, produzir uma norma afeita à hipótese, como se fora uma norma nova que, embora geral, é a que se faz justa para o caso.�

Para atender a tantas missões, em campos tão distintos e tão vastos, as funções essenciais à justiça, embora constitucionalmente tratadas sob um critério de unidade conceptual (no Título VI, Capítulo IV), foram desdobradas segundo a especificidade dos direitos tutelados, produzindo uma multiplicidade orgânico-operacional (nas seções que tratam dos ramos do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e da Advocacia Privada). E para atender às funções específicas assim separadas, a instituição de órgãos pessoais e coletivos que devem exercê-las.

Mas, além dos valores comuns, para os quais todos os ramos devem atuar para garanti-los por meio das atividades de provedoria — quais sejam as de fiscalização, de promoção e de defesa — há valores especificados que são cometidos a cada um desses desdobramentos das funções essenciais à justiça, que por eles deverão ser preferentemente e, por vezes, exclusivamente atendidos.

Ora, como tais valores, assim especificados na Carta, não são hierar-quizáveis entre si, em consequência, tampouco o são as funções essenciais que devem prover a sua cura.

Como se está tratando de valores e de correlativas funções de provedo-ria constitucionalmente definidos ambos, decorre necessariamente dessa evidente inexistência de hierarquização no exercício das respectivas funções a inquestionável necessidade de independência para o desempenho de cada uma delas, de outra forma, ao Judiciário só chegariam postulações que satisfizessem aos interesses deste ou daquele órgão ou detentor de poder que exercesse alguma forma de mando, autoridade ou de influência sobre os membros de qualquer das três Procuraturas de Estado instituídas.

5 BYDLINSKI, Franz. Juristische Methodenlehre und Rechtbegriff. 1982. p. 128.6 MÜLLER, Friedrich. Juristische Methodenlehre. 3. ed. 1989. p. 27.

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9 Garantias de independência no exercício das funções essenciais à justiça

Os princípios constitucionais que asseguram a independência (no Título IV, Capítulo IV), considerando a não hierarquização dos valores tutelados, são os explícitos e implícitos ou decorrentes contidos na Carta e abrangem todas as funções, embora possam estar referidos nesta ou naquela Seção que trata das especialidades funcionais.

Em outros termos: a independência não decorre do fato de ter sido explicitado este ou aquele aspecto para uma especialidade funcional, mas, sim, dimana da mesma fonte comum — da essencialidade à justiça: este é o alcance da ausência de hierarquização entre os valores, que devem ser por todas e por cada uma delas sustentados.7

Quanto a essas garantias constitucionais das funções essenciais à justiça, classificam-se em dois tipos: as funcionais e as orgânicas, em que além dos princípios constitucionais protetivos do desempenho de funções públicas em geral — a independência e a eficiência — acrescem os especificamente protetivos do exercício independente e eficiente das funções essenciais a seu cargo.

1 Garantias de independência das funções essenciais à justiçaA autonomia funcional, com seu consectário orgânico — de autonomia

administrativa, financeira e orçamentária — é o necessário conteúdo de qualquer atuação técnico-jurídica em que se demande ciência, consci-ência e imparcialidade.

2 Garantias de eficiência das funções essenciais à justiçaSão as condições mínimas para o desempenho funcional com as

características acima referidas: (�) O acesso pelo sistema de mérito; (2) a remuneração justa (isonomia como padrão) e (3) a infraestrutura adminis-trativa adequada a um desempenho apoiado e seguro.

A menção à eficiência não se faz no sentido quantitativo, como vinculada ao número de vezes com que sejam exercidos os deveres de fis-calização, de zeladoria e de promoção, sob quaisquer dos vários aspectos orgânico-funcionais em que se apresentem, nem, tampouco, referenciada

7 Em sede infraconstitucional há vários dispositivos em que essas garantias se encontram desdobradas, como em várias publicações especializadas vêm especificados, por exemplo: na Revista Jurídica da Apergs, comemorativa dos 35 anos, ano l, n. 1, p. 29, out. 2001 e em número da Revista da Associação dos Procuradores do Estado do Rio de Janeiro, v. 16, especificamente dedicado à Advocacia Pública.

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ao tempo que essas atividades demandam, mas vem tomada no sentido qualitativo, ou seja: referida à sua finalidade pública, que é a melhor realização possível da ordem jurídica.

É, pois, nesse sentido qualitativo, que passa a ter especial significado a busca da eficiência jurídica — qualidade sempre estimável, embora nem sempre mensurável, através de critérios que espelhem fielmente a efetividade da atuação das Procuraturas, enquanto órgãos dispostos pela Constituição, tanto para a sustentação, como para o aperfeiçoamento da ordem jurídica, pois assim é que estão garantidos os direitos fundamentais.

10 Uma conclusão parcial a ser retirada: a isonomia entre as funções essenciais à justiça

Como expressado, os valores especificamente tutelados pelas três diferentes funções essenciais à justiça a cargo do Estado não são hierar-quizáveis — logo, as funções tampouco o são. Se, por reductio ad absurdum, se permitisse um rompimento da isonomia orgânica com relação às três funções essenciais decorreria necessariamente:

�) a quebra da isonomia entre essas funções e, em consequência;2) o surgimento de uma indevida hierarquização de interesses, não

prevista na Constituição.Em suma: a essencialidade da função diz respeito a todos os valores

que caracterizam o Estado Democrático de Direito. Por outro lado, o necessário tratamento funcional isonômico deflui expressamente do dever constitucional de harmonia, reciprocamente imposta entre os exercentes do poder estatal, em cláusula abrangente, referida a todas as expressões constitucionais orgânicas e policráticas da soberania estatal.

Essa essencialidade também decorre da desejável capilarização de seu exercício, própria das funções essenciais à justiça, que se dá tanto no contexto social quanto no contexto estatal, pois que necessária a uma efetiva realização dos valores constitucionais em todos os níveis.

Essa atuação, assim duplamente referenciada, demanda, com inegável razão, o especialíssimo status constitucional estabelecido indiscri-minadamente para todas as três Procuraturas — o de independência técnico-funcional em relação a quaisquer dos Poderes ou funções constitucionais do Estado, com seus necessários corolários orgânicos de autonomia. É o que

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claramente se instituiu no Título IV da Carta, que, como se salientou, organiza, em todos os seus quatro Capítulos, as funções constitucionais essenciais de execução de um aspecto técnico considerado essencial de fiscalização, de promoção e de defesa do poder estatal.

Não é preciso mais insistir que práticas perversas, mas infelizmente disseminadas, conduzem a enormes distorções, sendo a mais grave delas o estorvar quando não o impedir a advocacia de Estado de exercer, com a dignidade e a eficiência que a Carta Magna delas exige, a plenitude de seus deveres funcionais, notadamente no exercício do controle, tanto por via judicial como extrajudicial, dos superiores interesses da ordem jurídica do Estado, postos à sua cura.

Tampouco é preciso insistir que, com a negação da independência ou com o estorvo de sua atuação, abrem-se os caminhos para as práticas arbitrárias quando não corruptas que tanto assolam a política.

ConclusãoPretendeu-se evidenciar e remarcar a crescente dimensão juspolítica

da advocacia de Estado, enfatizando a sua ímpar situação constitucional e sua imprescindível independência funcional — que desfruta juntamente com as duas outras Procuraturas públicas co-irmãs — pois se encontram postas, todas elas, como órgãos intermediários entre a sociedade e o Estado — e, por isso mesmo, afirmam a indispensabilidade de todas e de cada qual, em seus respectivos campos de competência, por serem, as suas missões, pela própria natureza constitucional de seu cometimento, igualmente essenciais para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

É necessário entender-se a Advocacia de Estado, do mesmo modo que o Ministério Público e a Defensoria Pública, como um instrumento da sociedade, constitucionalmente inserido na estrutura Estado, pois que, como essas demais Procuraturas co-irmãs, estão destinadas ao controle dos valores e dos princípios jurídicos que a refletem — o que vem a ser a mais distintiva característica do Estado Democrático de Direito.

Está-se, portanto, no campo da realização da cidadania — o que, acertadamente, a Constituição de �988 quis elevar, prestigiar e instru-mentar ao institucionalizar as funções essenciais à justiça, devendo-se, por isso, frisar, mais uma vez, essa peculiaridade, que escapa à percepção

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de quem se satisfaz com uma alígera leitura de nossa Carta Política: o fato de que elas são instrumentos essenciais, por certo, à justiça, como está explícito, mas, por isso mesmo, essenciais à própria existência de um Estado Democrático de Direito, que tem sintetizado no valor justiça a plena reali-zação dos direitos fundamentais.

Argumentos corolários conduzem tanto à indispensabilidade como à independência funcional própria do conceito constitucional da advocacia. Pri-meiro, a plena autonomia funcional da advocacia de Estado é indissociável das conseqüentes autonomias orgânicas — a administrativa e a financeira — pois são ambas imprescindíveis exigências da insubordinação à esfera políti-co-administrativa. Apenas gozando dessas autonomias, os seus membros poderão fazer prevalecer, em sua atuação, os valores jurídicos sobre os valores político-partidários e sobre os valores técnico-administrativos. Esta é ademais, uma evidente inferência que se retira da própria exclusão constitucional desses órgãos do âmbito do Poder Executivo.

Portanto, em síntese, é constitucionalmente essencial para a plena realização do Estado Democrático de Direito que cada órgão exercente de funções essenciais à justiça atue com independência, em seu respectivo espaço de competência.

Onde há poder deve haver direito — ubi potestas, ibi ius — e, assim, onde há direito, deve existir necessariamente a sua fiscalização, promo-ção e defesa independentes, o que obrigatoriamente supõe funções de controle independentes.

Este é o seguro caminho, senão o único, para a realização, quem sabe ainda neste surpreendente século, do Estado de Justiça, como o batizou com felicidade Carlos Cassagne — pois pior que a ilusão de direitos é a ilusão da garantia dos direitos, essa triste situação a que se condena a sociedade em que um Estado se mostre débil ou ineficaz no desempe-nho das indispensáveis funções constitucionais de provedoria de justiça, distribuídas entre suas Procuraturas de Estado: a todas e a cada uma, sem distinção de especialização entre elas.

Teresópolis, primavera de 2008.

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Almiro do Couto e SilvaProcurador do Estado do RS. Aposentado.

Palavras-chave: Advocacia de Estado. Advocacia-Geral da União.

Se nós formos comparar a Advocacia Pública com o Ministério Público, vamos verificar que o Ministério Público, ainda que a escolha seja feita pelo Presidente da República, pelo Procurador-Geral da República, essa escolha é feita dentre os integrantes dos quadros dos procuradores, quer dizer, é uma escolha limitada, o que assegura de certa forma, uma independência maior da instituição.

Mas há um aspecto que eu queria salientar aqui também, pra mostrar realmente que existe outra brecha que parece importante e significativa. A Constituição estabelece que a defesa dos processos con-centrados do controle de constitucionalidade, a defesa da lei impugnada como constitucional deve ser feita pela Advocacia-Geral da União, deve ser feita pelo Advogado-Geral da União. De sorte que aí um comporta-mento impositivo estabelecido pela própria Constituição, ainda que a lei seja um absurdo, vamos supor — porque as leis absurdas do Brasil não são assim tão excepcionais, todos nós sabemos, ainda que a lei seja um absurdo, o Advogado-Geral da União tem o dever constitucional, isto está na Constituição, de fazer a defesa da lei. Seria muito mais razoável se estivesse utilizado aqui o mesmo esquema que usou de lei de ação popular que cabe a possibilidade de escolha, quando o Estado, digamos assim, é réu na ação popular, ele pode escolher de que lado ele quer ficar, ele pode ficar do lado do autor, ou pode, isso sim, defender a lei, e entender que a lei, na verdade o ato, não tem nada de ilegal, não causou nenhum prejuízo ao erário público. Em se tratando do controle concentrado de constitucionalidade, isso não acontece. Não há a mínima possibilidade do Advogado da União dizer simplesmente: olha, realmente a ação está

1 Palestra proferida no IX Encontro Nacional dos Advogados da União (ENAU) e V Seminário Nacional sobre Advocacia do Estado realizado em Maceió, Alagoas, em 04 de novembro de 2008.

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com um propósito. Por mais que ele se esforce, não poderá fazer isso, porque há um mandamento constitucional que manda o Advogado-Geral da União, tem de defender a lei, ainda que manifestamente inconstitu-cional, ainda que estridentemente inconstitucional, porque realmente afasta, digamos assim, da Advocacia-Geral da União, este dever, que é um dever primário dentro do Estado de Direito, que é, antes de mais nada, a realização da própria justiça material. Então, isso, na verdade, vai contrariamente a este sentido, que é um sentido hoje que tem no Estado de Direito em todo mundo, que é a realização da justiça material, da justiça social que é um dos aspectos da justiça material, é uma das grandes tarefas do Estado moderno, do Estado democrático moderno, do Estado republicano moderno, essa na verdade é uma dimensão maior, do Estado contemporâneo, que fica de certa forma comprometida com este preceito que está na Constituição Federal.

Com relação, especificamente, aos problemas que surgem mais na área das Procuradorias do Estado, essa, digamos assim, essa falta de independência administrativa frequentemente tem vindo em detrimento da remuneração dos Procuradores de Estado, porque realmente, houve, pelo menos no meu estado, durante um certo tempo, uma certa equipa-ração, não uma equiparação jurídica, até porque a equiparação jurídica seria inconstitucional, mas havia uma equiparação de fato, ou tradicional, que os Procuradores de Estado recebiam mais ou menos em certos níveis dos magistrados ou em certos níveis dos membros do Ministério Público. Havia, digamos assim, uma certo nivelamento das atribuições, uma certa equiparação dessas atribuições que era respeitado pelos governos sucesso-res. Alguns anos atrás isso se rompeu, e, na verdade, os vencimentos dos procuradores baixaram consideravelmente, e os concursos para Procu-radoria-Geral passaram a ser concursos simplesmente para obtenção de títulos, para realização de concursos em outras áreas mais interessantes, e aquilo ali então, o cargo de Procurador do Estado virou um rito de passagem para outras posições que se conseguia porque o candidato tinha sido aprovado naquele concurso; aquilo era levado em conta em outros concursos que os candidatos entendiam como mais significativos ou mais importantes. Então fazia-se esse concurso na área das carreiras públi-cas federais, ou até, em outros estados, municipais em outros estados,

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mas passaram os procuradores a exercerem outra função quase de caráter transitório, tal o nível de remuneração desses procuradores. E isso também foi o que levou — vamos falar com franqueza — levou a surgir esses problemas nas procuradorias, da possibilidade dos procuradores, na verdade advogarem, quando havia essa equiparação de fato, essa questão da possibilidade de advogar não vinha à tona porque se dizia bom, já que os magistrados a que vocês estão equiparados não podem advogar, os membro do Ministério Público não podem advogar, se vocês querem continuar recebendo o que estão recebendo então essa proibição deve existir. Quando na verdade houve esse rompimento dessa equiparação tradicional, aí que surgiu a questão, tem sido muito debatido no Rio Grande do Sul, imagino que o problema seja parecido aqui, em outros estados, que vivem uma situação semelhante, é que surgiu o problema de saber possibilidade dos procuradores exercerem a advocacia privada. É uma discussão que no passado tinha se encerrado definitivamente no Rio Grande do Sul, hoje voltou à tona com grande vigor, com grande força, tem setores muito fortes que sustentam essa possibilidade, até porque, milita em favor dessa tese esse argumento que, parece forte também, de que isso afasta grandes advogados, pessoas muito talentosas, talentos naturais para a advocacia, que não querem ser apenas advogados públi-cos, mas querem ter também a sua advocacia paralela. Eu até tenho uma certa simpatia para isso, por essa tese, porque na verdade quando ingres-sei na Procuradoria do Estado, havia essa possibilidade de exercer essa atividade como advogado privado, eu continuei sempre exercendo essa atividade como advogado privado, e isso nunca realmente, se preservou o direito daqueles que vinham de uma situação anterior; eu fui benefi-ciado por isso, não sei se justamente ou injustamente, mas a verdade é que sempre exerci, claro que nunca exerci a advocacia contra o Estado, ou contra a Administração Indireta do Estado, evidentemente que não, mas exerci sempre a advocacia em caráter privado, com grande, posso dizer sem falsa modéstia, com grande eficiência em ambos os âmbitos. Mas essa é uma questão que tem de ser seriamente debatida, por aqueles que estão vivendo essa situação, porque isso é uma faca de dois gumes: se abre a advocacia privada em paralelo com a advocacia pública, isso pode ser a renúncia, não sei por quanto tempo, há vencimentos dignos, que

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sejam atribuídos à categoria dos defensores, dos advogados de Estado. A verdade é que nem sempre todas as pessoas têm a possibilidade de exercer bem duas atividades. Muitas pessoas, realmente, às vezes, dão mais relevo à advocacia privada do que à pública, e com isso então, cria problemas depois para o desenvolvimento, para o desempenho dessas atribuições e dessas funções ligadas à Advocacia de Estado.

Eu não vou me estender aqui, ainda mais que vamos ouvir a palavra do doutor Bruno, eu queria apenas encerrar essas observações, entendendo que, e sublinhando que a Advocacia de Estado exerce no Estado contemporâneo, não só uma função relevantíssima, mas como também uma função absolutamente imprescindível. É impossível pensar em um Estado Democrático de Direito, que funcione bem sem a coo-peração efetiva do Advogado Público. Isso é praticamente impossível, em qualquer lugar do mundo. Não há lugar no mundo que a atividade pública seja exercida sem a cooperação competente, sem a cooperação diligente dos advogados públicos. Daí a importância dessas reuniões também, daí a importância desses congressos, onde os problemas dessa categoria importantíssima, são examinados, são discutidos com a largueza como vem sendo nesse encontro nacional dos advogados da União. Muito Obrigado.

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A independência funcional da Advocacia de Estado e sua relação com a Ordem dos Advogados do Brasil*Bruno Espiñeira LemosAdvogado. Procurador do Estado da Bahia. Mestre em Direito – UFBA. Prof. Direito Constitu-cional. Membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

Palavras-chave: Advocacia Pública. Advocacia de Estado (independência funcional).

Sumário: 1 A Advocacia Pública na Constituição de �988 – 2 A Advocacia de Estado – 3 Conclusão e o referencial do pertencimento à OAB

1 A Advocacia Pública na Constituição de 1988O novo sistema criado com a Constituição de �988 para a Advocacia

Pública compreende o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advo-cacia de Estado. Ao Ministério Público compete a defesa dos interesses da sociedade; à Defensoria Pública a defesa dos interesses dos hipossuficientes e à Advocacia de Estado a defesa dos interesses estatais. Torna-se, portanto, de fácil percepção que se está diante de instituições com a mesma essência e com atribuições semelhantes, desenvolvendo atividades consultivas e postulatórias, sendo responsáveis pela defesa de interesses necessários à preservação e existência do Estado Democrático de Direito.

Não se deu de modo despropositado a inserção das funções essenciais à Justiça no Título IV, da Constituição Federal, no qual se tem a “Organi-zação dos Poderes”, e, situando-as em capítulo independente, ao lado dos capítulos que tratam dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

A própria fixação do sistema constitucional das funções essenciais à Justiça representou um avanço na criação e alargamento de atribuições das instituições que possibilitariam, logo adiante, a percepção concreta do ideal de um Estado Democrático de Direito, diante do claro componente fiscalizador que as novas Instituições fundadas ou refundadas representa-riam, direcionado para o efetivo exercício das demais funções estatais.

* Esboço teórico desenvolvido como norte para a exposição realizada no Painel “Autonomia da Advocacia de Estado e sua independência funcional” ocorrido no IX Encontro Nacional dos Advogados da União e V Seminário Nacional sobre Advocacia do Estado (3 a 8 de novembro de 2008) Maceió – AL.

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Como se pode perceber, em novo enfrentamento da moderna técnica constitucional, somaram-se as funções essenciais à Justiça às tradicionais funções legislativa, judiciária e executiva, totalizando quatro funções de fundamental importância para a otimização do funcionamento do Estado de Direito e para a consolidação do regime democrático.

É de fundamental destaque que as Instituições que passaram a com-por as Funções Essenciais à Justiça não se encontram afeitas à corriqueira atividade administrativa do Estado, mas sim, na condição de “Procuraturas Constitucionais”, assumiram mais que um Poder, verdadeiramente um “contrapoder” harmonizador das demais funções ou Poderes do Estado.

2 A Advocacia de EstadoNa Itália, as atribuições de defesa do Estado e de titular da ação

penal foram distribuídas a entidades distintas. Nesse país, o Ministério Público é o responsável pela ação penal e pela fiscalização da lei, ao passo que à Advocacia de Estado compete a defesa dos interesses do Estado.

Nesse sentido, a Constituição da República de �988 criou a Advo-cacia-Geral da União para exercer a defesa de seus interesses em juízo, e para prestar-lhe a assessoria jurídica, retirando do Ministério Público Federal essas atribuições. Seguiu o modelo italiano onde a defesa judicial dos interesses do Estado compete à Avvocatura dello Stato, antiga Avvocatura Erariale, distinta do Ministério Público.

Ao delimitar e criar a Advocacia-Geral da União, o constituinte ori-ginário além da inspiração obtida com o modelo italiano de Advocacia de Estado, não deixou de observar as Procuradorias dos Estados que antecedem a Carta de 88 e foram refundadas com o referido diploma constitucional.

Não se pode conceber hoje, após a clara divisão de atribuições entre Ministério Público e Advocacia de Estado, o acerto com que agiu o constituinte de origem, visando em última análise garantir e fortalecer o novel Estado Democrático de Direito, inclusive, evitando com isso o conflito entre os interesses da sociedade e do Estado, na maioria das vezes coincidentes, contudo, em alguns momentos conflitantes, em um cenário democrático saudável.

Não há dúvida, pois, que os Advogados de Estado, além de advo-gados na acepção “independente” da expressão, são “agentes políticos”.

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A autonomia ou independência funcional, hoje vista como uma prerrogativa implícita da Advocacia de Estado e que reforça a sua precípua atri-buição do exercício do controle da legalidade lhe traz como consequência útil e necessária a sua natureza jurídica de Órgão de Estado, integrante do sistema de funções essenciais à justiça, não se vinculando, tampouco se subordinando a nenhum dos três poderes constitucionalmente estabelecidos.

O controle da legalidade praticado pela Advocacia de Estado pre-vine equívocos no seio da Administração e evita prejuízos para o Erário, danos aos direitos subjetivos dos administrados e, em geral, ofensa aos princípios constitucionais da administração pública.

Diante do referido cenário, no qual o destinatário final da sua atuação é a coletividade e não o governante é que se torna crucial que a Advocacia de Estado tenha asseguradas, explicitamente, prerrogativas e garantias para a sua perfeita e independente atuação, na condição de função essencial à justiça, a fim de se evitar ingerências indevidas de governantes inescrupulosos sobre os membros das respectivas Instituições.

Muito embora muitos Estados-membros tenham buscado assegurar as referidas prerrogativas e garantias (autonomia administrativa, funcional e financeira, dentre outras) as posições de vanguarda dos referidos entes federa-dos têm sofrido interpretação restritiva por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), não aceitando a independência funcional da Advocacia de Estado diante da redação da Constituição Federal que não teria assim sinalizado.

O cenário que se descortinou após �988, passados vinte anos, afigura-se mais que suficiente para que o STF se mostre mais sensível diante da relevância e dimensão do Advogado de Estado.

Repita-se: Hoje, ultrapassadas algumas turbulências rumo à conso-lidação democrática, descortinada e amadurecida a dimensão da atuação dos Advogados de Estado, após vinte anos de vigência da Carta de 88, nos parece, finalmente, que é chegada a hora de aprimorar-se seu status e suas garantias no corpo da Constituição Federal, explicitando-os, de modo a permitir o seu efetivo e derradeiro aprimoramento constitucional.

O assunto retorna (PEC nº 29/2000, rejeitada no Senado que tratava de prerrogativas das PGEs) à baila do parlamento com a PEC nº 82/2007, de autoria do deputado federal Flávio Dino, a qual pretende assegurar às Procuradorias de Estado, dos Municípios e à AGU, autonomias funcional,

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administrativa e financeira, bem como o poder de iniciativa de suas políticas remuneratórias e das propostas orçamentárias anuais, dentro dos limites da LDO.

A referida PEC pretende ainda assegurar as garantias da inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa; também a irredutibilidade de subsídio e a independência funcional.

Parece-nos de todo louvável e digna de nota, a inserção das Pro-curadorias-Gerais dos Municípios, no rol das instituições que compõem a Advocacia de Estado.

Afinal, quando a Constituição Federal de �988 explicita que os Municípios são entes com autonomia e compõem a estrutura federa-tiva do país, não há como se deixar de compreender-se a extensão do comando da norma constitucional em direção à referida composição das carreiras de Advocacia de Estado.

E nenhum argumento de ordem metajurídica, acerca da existência de milhares de Municípios no país, o que inviabilizaria a intenção legi-ferante supra proposta, servem ao correto destino e direção da análise do tema. O que se deve tratar com maior seriedade é sim, a criação que se fez desenfreada de novos e inviáveis Municípios, muitos deles ao arrepio da regra constitucional de regência e a possível inviabilização da implementação da norma constitucional.

Dentre as três esferas de governo, diga-se, a municipal é aquela que se encontra mais próxima da população, nela as políticas públicas ganham sua execução derradeira e neste ponto federativo, os Advoga-dos de Estado necessitam ainda mais da proteção contra investidas e ingerência ilegítimas dos gestores dos Municípios.

Retornando ao cerne da PEC nº 82/2007, a sua nota técnica, dentre outros argumentos de relevo, afirma que a referida Emenda objetiva atu-alizar a “Advocacia Pública”, ao que se deve ler, Advocacia de Estado, não devidamente considerada na �ª etapa da Reforma do Judiciário, de modo a conciliar sua atuação com as novas diretrizes da Emenda nº ��/0�.

Afirma a Nota Técnica que as alterações propostas são orientadas por três vetores principais:

�. Explicitar o papel da “Advocacia Pública” no controle de licitude dos atos da Administração;

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2. Assegurar os meios para que esse controle seja exercido, de forma eficaz, transparente e eficiente, conferindo à “Advocacia Pública” autonomia funcional, administrativa e financeira e o poder de inicia-tiva de suas políticas remuneratórias e propostas orçamentárias.

3. Por fim, assegurar aos integrantes da “Advocacia Pública” as prer-rogativas necessárias à plena eficácia do exercício de suas funções, mediante a atuação concreta em todo o complexo estrutural do Estado, notadamente na defesa judicial de atos emanados por todos os Poderes.

Tem, pois, a Emenda tratada, a finalidade de explicitar as atuais competências (eu diria atribuições) da Advocacia de Estado, como espécie tratada do gênero Advocacia Pública, tornando mais claro o conteúdo típico dessa atividade o que pode contribuir de forma significativa para a transparência e o combate à corrupção e à improbidade administrativa, mediante atuação técnica, nos limites da competência fixada, insisto na melhor técnica, atribuições ao invés de competência, inserida na concep-ção de Advocacia de Estado construída pelo constituinte de �988.

Em suas razões de justificativa da proposta de Emenda apresen-tada, o próprio parlamentar adverte que o controle de licitude dos atos da Administração não retira ou reduz a discricionariedade política ou administrativa, mas apenas contribui para que o seu exercício se dê com observância das leis de regência, o que convém à sociedade, de modo, inclusive, a evitar que, a posteriori, os agentes públicos envolvidos venham a ser responsabilizados pelo MP e pela “Advocacia Pública”, perante o Poder Judiciário.

Motivando as razões das autonomias preconizadas, com relação à autonomia funcional, afirma que, no exercício de atividade técnica, não podem ficar sujeitos os “advogados públicos” a interferências externas, de ordem política ou outras, haja vista que tais interferências inviabilizam e tornam sem sentido a própria atividade de controle e responsabilização, favorecendo a corrupção e a improbidade.

Na senda da autonomia administrativa, é ela entendida como a pos-sibilidade do próprio órgão ou entidade disciplinar e implementar sua organização e funcionamento, administrando seus recursos materiais e humanos, nos limites da lei e sem interferências externas.

Já a autonomia financeira, considerado o mais polêmico dos aspectos em análise, tendo em vista as discussões atuais acerca da necessidade de maior controle dos gastos públicos e da atividade financeira do Estado,

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quer significar, em síntese, a possibilidade de o órgão elaborar sua proposta orçamentária, buscando evitar contingenciamentos injustificados, que tendem a inviabilizar o exercício das atribuições de responsabilidade da “Advocacia Pública”, identificadas com a defesa do patrimônio, rendas e políticas públicas e que, portanto, não podem sofrer descontinuidade.

Uma semelhança de tratamento deve ser assegurada, refere-se ao MP, pois tais Instituições, no exercício de suas atribuições próprias, estão muitas vezes, em pólos opostos, defendendo posições jurídicas antagônicas em ações civis públicas, de improbidade e outras tantas, inclusive envolvendo a defesa de agentes políticos (Ministros, Secretários de Estado, Parlamentares, Magistrados etc.) realizada pela “Advocacia Pública”, cenário este que recomenda uma “paridade mínima de armas”, conferindo prerrogativas semelhantes aos seus membros, sob pena de prejuízo para a defesa dos interesses e direitos patrocinados e, por con-sequência, para o próprio bem jurídico tutelado.

Em outras palavras, sem os instrumentos e prerrogativas a municiar os Advogados de Estado não há como se atuar com paridade frente ao Ministério Público e às principais bancas de advocacia do país na defesa dos atos de Estado firmados pelos membros dos Três Poderes.

A motivação da proposta de emenda constitucional em discussão, preconiza ainda que a autonomia funcional permitirá a expansão e concreti-zação de direitos fundamentais em benefício da população carente, na medida em que proporcionará ao “advogado público” a condição de reconhecer a legitimidade de pretensões expostas em demandas judiciais instauradas pelas Defensorias Públicas da União e dos Estados, mediante paradigmas extraídos de matérias pacificadas no âmbito das Cortes Superiores. Atualmente, a conciliação ou o reconhecimento desses direitos, seja no âmbito administrativo, seja no judicial, está condicionado à autorização do Poder Executivo, ainda que o Poder Judiciário já tenha firmado precedente sobre a matéria em litígio.

Conclui-se a motivação para a reforma constitucional, em especí-fico, afirmando-se que ela visa também atualizar as Funções Essenciais à Justiça sob a perspectiva da “Advocacia Pública”, harmonizando-se com a finalidade perseguida na emenda da Reforma do Judiciário, na medida em que se busca a diminuição das ações judiciais e a solução rápida das demandas da sociedade contra o Estado.

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Não me parece correta a exegese constitucional implementada por alguns juristas de que a Advocacia de Estado, nos Estados e Distrito Federal é mais ampla e independente. Além da representação, que se igualaria à da União, no que diz respeito ao controle da legalidade dos atos admi-nistrativos não se encontraria aquela restrita ao Poder Executivo, pois o art. �32/CF estabelece que os Procuradores exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.

A impropriedade redacional que se estende à não previsão da parti-cipação da Ordem dos Advogados do Brasil nos concursos de ingresso na AGU, o que encontra-se contemplado para as PGEs, além da magistratura e do Ministério Público, embora possa trazer uma maior legitimidade ao certame, não significa que a AGU não deva solicitar a referida presença da OAB e mais ainda, urge a correção constitucional do tema.

A motivação da proposta de Emenda constitucional em discussão, preconiza ainda que a autonomia funcional permitirá a expansão e concretiza-ção de direitos fundamentais em benefício da população carente, na medida em que proporcionará ao “advogado público” a condição de reconhecer a legitimidade de pretensões expostas em demandas judiciais instauradas pelas Defensorias Públicas da União e dos Estados, mediante paradigmas extraídos de matérias pacificadas no âmbito das Cortes Superiores. Atualmente, a conciliação ou o reconhe-cimento desses direitos, seja no âmbito administrativo, seja no judicial, está condicionado à autorização do Poder Executivo, ainda que o Poder Judiciário já tenha firmado precedente sobre a matéria em litígio.

Alguns desafios vencíveisA cultura da legalidade democrática advinda da Carta de 88 per-

mite que se afaste toda e qualquer visão da Advocacia de Estado como um mero elemento “burocrático”, na pior acepção do termo, vista como uma verdadeira inimiga da boa governança. Impõe-se à Advocacia de Estado o dever de esgotamento das análises e demandas que lhe são postas, especialmente, em matéria de políticas públicas, adotando uma postura propositiva. Jamais se podendo conceber condutas que se limitam a apresentar o “não fazer”, sem que imediatamente se mostre o porquê e especialmente se disponibilize o “como fazer”, em harmonia com o seu compromisso com a coisa pública, conjugada com o uso de uma criativi-dade que jamais pode ser vencida pela inércia ou pela passividade.

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A demora na solução dos feitos ajuizados contra a Fazenda Pública serve ao intuito de quem pretende postergar o pagamento das obrigações do Estado, transferindo para os próximos administradores os encargos originados no governo precedente. Essa tradição da Administração Pública brasileira é contrária ao interesse público, exasperante para o portador do interesse individual imediato e agressiva aos princípios básicos inspiradores de um Estado Democrático de Direito.

A Advocacia de Estado, digo eu, tem aqui uma tarefa imprescindível (e melhor ainda se conquistadas as garantias constitucionais já discutidas) que é precisamente, a de auxiliar na orientação e criação de mecanismos de solução de conflitos, também de modo extrajudicial.

Trata-se de um novo paradigma difícil de ser construído ao mesmo tempo em que difícil se faz a “desconstrução” do paradigma judicial, porém, uma campanha maciça deve ser desenvolvida, para convencer a sociedade de que o acesso à Justiça, não se confunde com o acesso ao Poder Judiciário, aliás, realidade confusa esta que dificulta e quase inviabiliza a função social do Direito.

Quando se afastar o mito da justiça judicial, trocando-se o “sistema de confiança” padrão, este baseado apenas na confiabilidade de deter-minado setor estatal e que acaba encarando outras alternativas como concorrentes, tentando desacreditá-las, decerto que um novo cenário social se descortinará. (credibilidade para o Advogado de Estado, que ao contrário de como é visto, sempre como o inviabilizador de pleitos e “procrastinador” — nesse ponto os “inimigos” são os governantes e a própria população — na verdade não se observa que o Advogado de Estado está sempre buscando proteger o patrimônio público).

Para concluir este ponto, entendemos que a Advocacia de Estado, em conjunto com os “gestores responsáveis,” tem o dever de fomentar, mas antes mesmo, se convencer de que a leitura do Estado, mesmo aquele concebido na visão hobbesiana, trata-se de um artefato imaterial, que não tem existência independente da existência dos indivíduos que o constituem e que, como cidadão, o compõem.

Em outras palavras, partindo-se de tal premissa, surge a necessidade de uma atuação da Advocacia de Estado coordenada com os gestores públicos, de modo proativo e propositivo. Desse modo, a coletividade poderá sentir e vivenciar um Estado “casa de todos”, e não um inimigo comum a ser combatido.

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O Estado, como uma ficção é um ente ideal que deve, incondicionalmente, buscar o bem-estar, a felicidade do indivíduo. Os seus operadores é que se equivocam com frequência e violentam a dignidade humana.

Nesse sentido é que me parece, como já tive oportunidade de dizer, agora com outras palavras;� que, para a própria segurança da sociedade, a Advocacia de Estado não pode e não deve se submeter ao governante do momento e, sim, trabalhar em parceria com todo e qualquer governante, com atuação, repita-se, proativa e posicionamentos propositivos, no auxílio à boa governança e aos planos e políticas públicas, em última análise, realizando a defesa do regime democrático e da dignidade humana.

3 Conclusão e o referencial do pertencimento à OAB Não me furtarei da abordagem de temas da mais alta complexidade

e carregados de densa camada de polêmica, ainda que me utilizando de argumentos simples, porém não simplórios.

Tenho pleno respeito por aqueles que encaram a presente discussão como um minus em relação às demais conquistas necessárias e pendentes de consolidação constitucional, embora não as veja como excludentes.

Em primeiro lugar, penso que devemos acabar com a ideia ou qualquer ranço de dúvida de que nós somos “burocratas”, no sentido perverso e desvirtuado da expressão.

Confesso que saí da carreira da Advocacia de Estado federal, preci-samente por conta da vedação da advocacia fora dos limites institucionais e como eu, conheço dezenas de amigos. É verdade que, estatisticamente, muito mais que a metade dos quadros das Procuradorias de Estado que permitem o exercício concomitante da advocacia pública e privada optam por não fazê-lo. Imagino que, se a AGU modificasse a sua lei complementar, semelhante estatística se vislumbraria, mas certamente que a autoestima agregada iria afastar outra estatística nefasta, a de ser uma das mais “rotativas” carreiras, diante da sua grande “evasão”, tida como “carreira de passagem” por grande massa de “concurseiros de plantão”, muitos deles em busca apenas do vil metal, sem qualquer amor ao que fará em nome do interesse público primário e secundário do Estado.

1 LEMOS, Bruno Espiñeira. Advocacia de Estado e o atual quadrante da democracia brasileira. Jornal Estado de Direito, Porto Alegre, abr./maio 2008.

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Guardo comigo o sonho do caminho inverso, ou seja, quando magistrados e membros do Ministério Público deixarão suas carreiras para cerrar fileiras na Advocacia da União, como tem sido constante, com relação às Procuradorias do Estado e do Distrito Federal diante da maior “atratividade” das referidas carreiras.

Indaga-se então, quanto à razão da defesa de tal “privilégio”. Sim-ples, não se trata de proteção a interesse próprio e sim, o do respeito à vontade das “minorias”, aliás, preceito essencial a qualquer Democracia.

Sigo além e adentro no campo empírico. Não incorrerei em injustiças citando nomes, porém, são nomes públicos e de manifesta notoriedade e atuação acima de qualquer suspeita moral e jurídica, os dos procuradores de Estado espalhados por todo o país, verdadeiros juristas que engrandecem e tornam seus quadros funcionais verdadeiras ilhas de excelência no corpo do funcionalismo público, permitindo que o Estado desfrute de componentes que não permitem que as grandes bancas de advocacia, cada dia mais técnicas, “desbanquem” os cofres públicos.

Não tenho dúvidas que o amor com que defendem a coisa pública sucumbiria no momento de uma opção entre a vedação e a possibilidade de exercício da advocacia de foro privado. Por que razão? Por dinheiro? Certamente que não. Porque a liberdade do verdadeiro advogado não se vende nem se compra. A liberdade “potencial” para a qualquer tempo subir em uma Tribuna, adentrar no Tribunal do Júri e garantir a vida de um “inocente”. Repito. Não tem preço.

Ora, por que o Estado não pode ter nos seus quadros, todos eles submetidos a rigorosos concursos públicos, os melhores advogados do país defendendo o seu patrimônio e colaborando para a implementação das melhores políticas públicas? A quem interessa o enfraquecimento, o esvaziamento e o desmantelamento das carreiras da Advocacia de Estado? Não perderia tempo tratando das invejas perniciosas e tolas de outras carreiras, vejo sim, em alguns grandes escritórios que preten-dem se beneficiar desse quadro que seria lamentável para a coletividade.

E é precisamente do fundamento da independência ínsita do Advogado, refletida na aversão à hierarquia e a qualquer limite que atente contra as liberdades que lhes beneficia a garantia estampada no art. �33 da Constituição da República, isto é, são invioláveis por seus atos e mani-festações no exercício da profissão.

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Dessa independência surge o natural e necessário sentimento de “pertencimento” aos quadros da OAB. Afinal, o Advogado de Estado, inde-pendentemente do exercício ou não da advocacia fora das suas atribuições funcionais, tem o direito e o dever de compor e candidatar-se aos cargos disponíveis na OAB Nacional e em suas seccionais, de participar das suas comissões de estudos, de concorrer a vagas do quinto constitucional etc.

Recentemente, os Estados de Goiás, Maranhão e Santa Catarina que haviam restringido a advocacia dos seus Procuradores à esfera ins-titucional, modificaram suas leis de regência para permitir o exercício da advocacia privada.

Por consequência lógica e necessária do referido sentimento de “pertença”, é direito inalienável de todo qualquer advogado (art. 22, Lei nº 8.90�/9�), inclusive, os Advogados de Estado, o recebimento dos honorários advocatícios advindos da sucumbência da parte adversa.

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Parte IICombate à Corrupção

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Improbidade administrativa na Constituição de �988: uma ilegalidade qualificadaFábio Medina OsórioDoutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE). Ex-Promotor de Justiça/RS. Advogado.

Palavras-chave: Improbidade administrativa. Gestão pública. Agentes públicos.

Sumário: I O diagnóstico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública – 1 Os níveis de desonestidade e ineficiência funcionais dos agentes públicos desde uma perspectiva ético–normativa – 1.1 Boa gestão pública: observações gerais – 1.1.1 Imperativo ético da boa gestão pública na pós-modernidade e a perspectiva de responsabilidade dos agentes públicos – 1.1.2 Imperativo ético de imputação – 1.2 Má gestão pública: observações gerais – 1.2.1 Desonestidade funcional dos homens públicos e suas flutuações ético-normativas – 1.2.2 A ineficiência funcional dos homens públicos e suas flutuações ético-normativas – II O diagnóstico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública no Direito brasileiro – 1 Improbidade e desonra: a perspectiva da imorali-dade administrativa no sistema brasileiro – 1.1 Moral administrativa e as raízes da probidade dos agentes públicos – 1.1.1 Boa fé objetiva – 1.1.2 Formação das regras não escritas da Administração Pública e a avaliação dos deveres públicos existentes – 1.2 Moralidade subjetiva: os fundamentos da responsabilidade pessoal dos funcionários públicos – 1.2.1 Fundamentos gerais da responsabilidade pessoal – 1.2.2 Tipos de res-ponsabilidade pessoal dos agentes públicos – 2 O histórico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública no Direito brasileiro – 2.1 Perspectiva constitucional – 2.2 Perspectiva legal – III Improbidade administrativa na Constituição de �988 – Conclusões – Referências

I O diagnóstico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública

Nosso primeiro desafio é buscar situar a improbidade prevista no art. 37, par. �º, da Magna Carta, como espécie de má gestão pública, para percebermos a evolução de seu tratamento dogmático nesses vinte anos de Constituição.

Pensamos que uma fundamental premissa é de ser lançada neste trabalho: errar é humano. Juízes erram, Promotores de Justiça,

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Procuradores da República, Fiscais da Receita erram diariamente. Então, os gestores também têm direito ao erro juridicamente tolerável.

Resulta fundamental perceber os níveis distintos de transgressão tolerável no setor público e onde se situa a improbidade administrativa nesse contexto axiológico. Sem essa compreensão, é natural que os abu-sos fiscalizatórios e acusatórios proliferem, como vêm proliferando com espantosa naturalidade, porque os acusadores e julgadores, por melhores que sejam suas intenções, acabam atropelando os direitos fundamentais dos administrados e jurisdicionados, exigindo-lhes uma perfeição que não existe na vida prática de relações.

1 Os níveis de desonestidade e ineficiência funcionais dos agentes públicos desde uma perspectiva ético-normativa

Inicialmente, cumpre uma incursão histórica em busca da compre-ensão da improbidade como fenômeno ético-normativo.

Improbidade, aqui, não será vista como sinônimo de desonestidade, porque abarcará também a ineficiência. Improbitas traduz desonra, e esta abrange várias modalidades de comportamentos ofensivos. Essa abertura semântica, no plano ético-normativo, abre a possibilidade para construções que alargam em busca de ilícitos culposos.�

1.1 Boa gestão pública: observações geraisA noção jurídica, dentro do Direito Administrativo, de boa admi-

nistração ou gestão pública2 — e seu oposto, a má gestão pública — tem origem teórica mais precisa nas lições de Maurice Hauriou, jurista francês que anunciou pioneiramente o princípio da moralidade administrativa, descrevendo-o numa perspectiva funcionalmente alicerçada no ideário de boa gestão pública, independentemente do que resultasse ostensi-vamente programado pelo Direito legislado. Este autor, ao comentar a jurisprudência do Conselho de Estado francês, a começos do século XX, disse que existia uma moralidade administrativa segundo a qual o administrador ficava vinculado a regras de conduta inerentes à disci-plina interna da Administração Pública, o que significava a obediência 1 Ver Medina Osório (2007).2 A expressão “gestão pública” está muito bem articulada em Caetano (1997): a atividade jurídica da

Administração Pública, o que inclui tanto a atividade material quanto a subordinação necessária ao Direito.

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necessária a pautas de boa administração, transcendendo as minúcias ou previsões expressas nas regras legais. A boa administração comportaria, por esse ângulo, um universo de condutas eticamente exigíveis dos administradores públicos, tivessem ou não previsão expressa no orde-namento jurídico passivo. Ser bom administrador não equivaleria, em suas origens, apenas ao mero cumprimento da lei, da mesma forma como o mau administrador poderia descumprir preceitos ligados à Ética Institucional, à moral administrativa. Foi um ataque ao pensamento positivista estrito predominante naquele momento histórico.3

É possível encontrar vestígios da exigência de uma espécie de boa administração pública nas remotas culturas ocidentais, mas é na pós-modernidade que se consolida essa exigência ético-normativa através da mudança da Administração burocrática ao modelo gerencial, contexto no qual — já veremos muito claramente — aumentam os níveis de responsabi-lidade pessoal dos agentes públicos, suas liberdades, espaços discricionários e balizamentos éticos ligados a vetores de eficiência e boa gestão.�

Em todo caso, permitido o salto histórico, ninguém dúvida de que hoje em dia exista um princípio essencial de boa gestão pública nas Constituições democráticas, como disse muito acertadamente o Parlamento Europeu, ao anunciar que tal princípio suporta uma série de deveres de boa gestão, deveres imanentes ao sistema e não neces-sariamente explícitos. A confiança ou o trust entre administradores e administrados, que está no coração das Democracias contemporâneas, exige a boa gestão pública, já que os primeiros têm que prestar contas de seus atos aos segundos, como disse Garcia de Enterría, já menciona-do, numa relação contínua e permanente, que não pode se esgotar no

3 Consulte-se Hauriou (1938, p. 232 et seq.; 1931, p. 334 et seq.). Veja-se a referência em Jean-Pierre (1999, p. 46). Posteriormente, os italianos desenvolveram o princípio da boa administração ou bom andamento da Administração Pública, a partir de estudos de Guido Falzone e Raffaele Resta, figurando expressamente esse dever no art. 97 da Constituição italiana. Sobre o tema, consulte-se, ainda, Palma (1998, p. 471-477), Rodríguez-Arana Muñoz (1999, p. 173-182) e, no Brasil, Martins Junior (2002) e Moreira Neto (2001; 2005), dentre outros.

4 Finocchi (1994, p. 133 et seq.) recorda a importância da Ética Pública no controle da Corrupção. O dever de fidelidade ou lealdade está na Constituição italiana, arts. 97 e 98, impondo o dever de atuar para a satisfação dos interesses da Administração Pública, mas também significando o reconhecimento dos deveres de diligência e de imparcialidade. Ianotta (1999, p. 25 et seq.) indica a conexão entre a evolução normativa da Administração Pública Gerencial ou Dirigente e a ampliação das responsabilidades dos gestores públicos. O movimento tem seu início em princípios dos anos 70 na Itália, sob as conhecidas influências anglo-saxônicas, balizando, no Direito continental-europeu, as reformas posteriores que buscaram um novo perfil administrativo ao Estado.

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processo eleitoral, até porque o administrador não ganha um “cheque em branco” para governar.�

1.1.1 Imperativo ético da boa gestão pública na pós-modernidade e a perspectiva de responsabilidade dos agentes públicos

O conceito de legitimidade pertence tanto ao campo da ética quanto ao da teoria política. Inclui um julgamento de valor sobre um sistema considerado globalmente, que será, assim, tido como legítimo ou ilegítimo, bom ou mau, conforme as razões que impulsionam sua atuação e as necessidades sociais.� Esse julgamento se dirige a um fim último do

5 Disse brilhantemente García de Enterría (2000, p. 108-109): “Handler explica, siguiendo a Baier, que la base sólida de toda relación de trust (concepto que él usa en un sentido más amplio que el jurídico estricto, como ya notamos) está en la racionalidad, en el conocimiento por cada parte de las razones de la otra para confirmar la relación, razones que se consideren también dignas de confianza por el primero; es, pues, el mutuo conocimiento de las condiciones recíprocas de la confianza entre las partes o que eleva al trust por encima de recelos y hace de la dignidad de la confianza una virtud no sospechosa. De este modo, y por esta vía única, el trust se fortalece y produce sus efectos integradores insistituibles. He ahí por qué el fortaleciomento, el afinamiento, la operatividade práctica de la relación fiduciaria entre gobernados y gobernantes no puede consistir como algunos parecen pretender, en una fe ciega de los primeros en los segudos, una fe global expressada, además, de antemano en el momento de las elecciones que apuesta por el simple azar de acierto, no revisable ya hasta la siquience cita electoral. No es la fe ciega, sino la confianza racional, constantemente renovada, fruto del conocimiento personal y de la aceptación cotidiana y permanente de la actuación de los gobernantes (aunque no tenga que ser, naturalmente, una aceptación ni unánime ni que cubra la totalidade de sus decisiones), lo que únicamente puede ser la base eficaz de esa relción. Ahora bien, ese conocimiento de la racionalidad y de la objetividad de la actuación de los gobernantes exige transparencia absoluta en la actuación de éstos y justificación constante de sus motivos en cuando les sea exigid o puesta en duda. Pretender que todo eso ha de entenderse suplido por una opción global anticipada en las solemnidadeselectorales es, literalmente, una broma. El poder realiza miles, millones de actos, de decisiones entre alternativas. ¿Por qué canal misterioso há de entenderse que todos t cda uno de esos actos han quedado consentidos de antemano en su globalidad? ¿Em alguna de sus aplicaciones funcionan así las relaciones fiduciarias o de confianza o de mandato? ¿Por qué habría de ocurrir de outra manera a propósito de la magna fidúcia que es la democracia? Como cualquier otro administrador de lo ajeno, los gobernantes deben de rendir cuentas, es evidente. Sería absurdo pretender para esos agentes una dispsa de este deber elemental, que está necessariamente en la base de toda relació fiduciaria. El artículo 15 de la Declaración de Derechos del Hombre y del Ciudadano de 1789 así lo previó lucidamente: ‘La sociedad tiene el derecho de pedir cuentas a todo agente público de su administración’. (obsérvese, por cierto, cómo la posición de los agentes se califica de administrar, y de administración obligada a la rendición de cuentas, no de representación, que supone una actuación in loco et in jus del pueblo)”.

6 A racionalidade das decisões jurídicas é um tema constantemente visitado por Pennock (1962, p. 177-182; 1986, p. 291-306), inclusive no exame das razões do legislador (1964, p. 98-106), precisamente porque se insere, ainda hoje, num dos pilares mais importantes do conceito de legitimidade, decorrência de desdobramentos ainda contemporâneos do projeto moderno. O tema da legitimidade resulta muito ligado ao das razões e da justificação do poder político, não há dúvidas. A legitimidade do Estado pode ser vista, como objeto de discussões, também em: Michalon (1998, p. 289-313); Michelman (1986, p. 71-99); Radin (1986, p. 33-48); Torres (1993, p. 31-45); Wolker (1993, p. 25-31), percebendo-se diversos caminhos que conduzem à legitimação, invariavelmente sem descartar o tema da racionalidade, embora sem descartar níveis mais ricos de embasamento.

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sistema, tomados este e seus elementos como meios aptos para produzir aquele,7 desde uma perspectiva interna ou externa de balizamento.

Vemos a exigência de boa administração — tal e como funciona na atualidade — como produto específico da pós-modernidade, esse contexto no marco do qual os novos paradigmas ainda seguem abertos e os velhos em permanente questionamento crítico.8 É certo que, nesse universo, o discurso político tem muito a ver com o econômico, espe-cialmente no tocante aos paradigmas de qualidade, eficácia e eficiência dominantes no âmbito das atividades privadas.9

A gestão empresarial, entretanto, tem uns parâmetros próprios, distintos dos de conseguir exclusivamente satisfazer ao bem comum, o que produz paradoxos. Em relação às decisões públicas, o discurso ético da boa administração não se ocupa exclusivamente de resultados, mas também de condutas eticamente corretas. Os meios e os fins são relevantes e positivamente valorados dentro dos paradigmas do bom administrador, daí a processualidade das relações nesse setor.�0

Ninguém duvida que a Ética Institucional do setor público impõe o ideal de boa administração e por isso proíbe a má gestão pública. Em todo caso, os requisitos da boa administração pública no mundo

7 Estamos de acordo com Beyme (1989, p. 9-34) quando reconhece as íntimas conexões entre a Pós-modernidade e a teoria política contemporânea, até mesmo na perspectiva da legitimação do poder, que segue sendo um tema central no ambiente pós-moderno. Sobre Pós-modernidade, vejam-se os multifacetários trabalhos de Baudrillard (2002), Crimp (2002), Frampton (2002), Habermas (2002), Jameson (2002), Krauss (2002), Owens (2002), Said (2002), Ulmer (2002) e Foster (2002), em obra coletiva, com leituras que conduzem ao reconhecimento de novos paradigmas ligados à cultura da transgressão e da fragmentação da racionalidade, em busca de novos vetores de referência nos mais variados campos, desde a ética até a estética ou a arquitetura.

8 A Pós-modernidade é um termo que expressa, de acordo com a respeitada visão de Santos (1999, p. 70), uma época de transição incerta, na qual não temos muito claro o novo paradigma, mas sim que já não vivemos sob os paradigmas da modernidade. Esse mesmo autor tem optado por abordar a nova era que vivemos de “pós-colonialismo”, numa perspectiva mais construtiva, em que se acena com um horizonte povoado de novos paradigmas de justificação. Habermas (2002), sem embargo, defende a continuidade do projeto de modernidade, o qual estaria inacabado e, portanto, deveria ser apenas reajustado aos nossos tempos e exigências, sem descurar dos paradigmas que emergem na cultura contemporânea, ligados às novas necessidades sociais no plano comunicativo.

9 Em todo caso, não se nega a importância de o Estado gestor produzir eficazmente, responder às demandas que se expressam no mercado, tratar de obter benefícios mais elevados, diversificar investimentos, implementar políticas públicas eficazes, satisfazer às necessidades sociais, etc.

10 Curiosamente, esse é um dos paradigmas do setor público que se incorpora, paulatinamente, ao âmbito privado, dentro da tendência de aproximação crescente dos setores público, privado e público não estatal. Não há dúvidas de que tal paradigma, como deflui da leitura de Tascabili (1998) ou Taylor (1997), se incorpora à luta contra a corrupção. Aliás, na esteira do que preconiza Theobald (1997), é necessário inovar nos instrumentos contra a corrupção, avançando nas estratégias econômicas, o que significa uma abordagem cada vez mais comprometida com resultados.

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contemporâneo são muito cambiantes e variáveis.�� Este rótulo, como outros de natureza política, reflete o que acontece na sociedade, visto que são as exigências ético-sociais que estão chamadas a configurar os interesses gerais e as pautas das atividades públicas.�2

Os conteúdos da chamada “boa administração” costumam ser mais políticos, culturais e econômicos do que propriamente jurídicos, já que dificilmente o Poder Judiciário logra obter a imposição da eficiência administrativa pela via de sentenças ou acórdãos.�3 Diversamente, os conteúdos da má gestão pública podem ser melhor configurados juridi-camente, visto que o Direito Sancionador pode ocupar um importante lugar de destaque nas correções dos desvios e atos ilícitos.

1.1.2 Imperativo ético de imputaçãoA ideia de responsabilidade pessoal dos agentes públicos por atos

contrários a normas éticas é muito antiga e radica no imperativo ético

11 A redução do ótimo ao bom tem a ver com os limites das responsabilidades. A boa administração pode ser, dependendo das circunstâncias concretas, a ótima, mas as responsabilidades pessoais dos agentes públicos têm que ser cobradas a partir da má gestão pública, a qual, por sua vez, apresenta muitos matizes. Não se ignora que o exercício de cargos públicos, especialmente aqueles de tipo político, está exposto a exigências bastante específicas, talvez mais severas, dentro de uma ética peculiar, como já deixou de manifesto Thompson (1999).

12 Hoje nos encontramos em uma sociedade que exalta a cultura do êxito, mas o certo é que vivemos tempos de globalização e alta competitividade. O Estado e suas instituições, por óbvio, têm que ser competentes no marco da competição ou competitividade. E mais, o Estado tem que satisfazer às sofisticadas necessidades sociais e deve fazê-lo com retidão, aptidão, idoneidade e conhecimento, de modo a obter, em tempo hábil, a resolução dos problemas urgentes e complexos que aparecem dotados de enorme velocidade, dentro do campo ético-normativo vigente. Para tanto, as instituições se multiplicam, em todos os setores, emergindo um panorama organizacional complexo e diversificado, em busca de parcerias estratégicas por todos os lados, inclusive com o Estado. Daí a emergência de novos paradigmas teóricos que, entre outros, Powel e Dimaggio (1999) chamam de novo institucionalismo na análise organizacional.

13 Quando o faz, não raro entra em searas peculiares à Administração e acaba promovendo uma gestão pública ineficiente. Isso se dá, exemplificativamente, quando o Judiciário substitui atos privativos da Administração Pública por atos judiciais de conteúdo administrativo, ditando ordens que somente o Poder Executivo teria boas condições técnicas de ditar. Essa distorção se produz de forma crescente no cenário nacional. Juízes que, sob a capa da jurisdição, administram, ditando atos administrativos no lugar dos administradores. Um caso clássico é a substituição dos laudos psicotécnicos, em concursos públicos, por laudos dos peritos judiciais, os quais analisam o candidato em condições totalmente diferentes daquelas que foram analisadas pelas autoridades administrativas. É natural que haja uma massiva substituição de laudos administrativos por laudos judiciais, fulminando-se a competência originária do administrador. Ilustramos o assunto com tão significativo exemplo porque nem todo avanço do controle judicial sobre a Administração Pública significará solução mágica aos problemas, nem avanço da sociedade. Às vezes, a solução requer medidas mais sofisticadas, tais como o aprimoramento da Administração, reformas legais, debates mais amplos. No entanto, também cabe aduzir que é verdade o fato de que o Judiciário ainda se exime de níveis de controle que pode e deve exercer, sob o argumento genérico e falacioso de que não poderia adentrar o mérito dos atos administrativos. Assim, se é certo que existem distorções no controle abusivo e invasivo, também é verdade que existem omissões indesculpáveis. Formular um diagnóstico sobre essa realidade, qual a situação preponderante, ainda é uma tarefa por realizar. Não temos condições de perceber o modelo do sistema judicial vigente, a partir de análises qualitativas da jurisprudência e das sentenças, porque inexistem estudos estatísticos qualitativos nesses cenários. De modo que, hoje, não se pode arriscar uma opinião certeira: se o Judiciário invade ou não as competências administrativas, em matérias relevantes, de modo majoritário. Pode-se apenas apontar abusos que retratam distorções e patologias funcionais preocupantes, tanto num quanto noutro sentido, o que requer estudos mais aprofundados e, ademais, posicionamentos de gestão.

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de imputação. Já se disse que dos tempos mais remotos há notícias de responsabilidade dos homens públicos. O que trocou é o alcance das imu-nidades do poder. Mas a História registra delitos contra o Estado Romano e a correspondente responsabilidade pessoal do funcionário público.��

O que se nota é que a evolução traz um aumento gradativo e intenso de responsabilidades, reduzindo-se o campo das imunidades. O fortalecimento do imperativo de eficiência, sem lugar a dúvidas, conduz à ampliação desta tendência.��

A maior parte das normas de Ética Pública, vigentes em sociedades civilizadas e politicamente organizadas, conduz ao reconhecimento de pautas gerais de imputação. Dentro dessas pautas gerais, há domínios específicos, concentrados e especiais de imputados, variando os tipos e requisitos conforme sejam as classes de agentes atingidos,�� mas os nichos de imunidades são cada vez mais reduzidos.

1.2 Má gestão pública: observações geraisDiante dos paradigmas de boa gestão pública e de imputação dos

agentes públicos, vale reconhecer que há muitas classes de infrações ou faltas pessoais dos agentes públicos, além das (a) intencionais e (b) faltas graves por imprudência ou negligência, caracterizadoras de pressupos-tos de má gestão pública. É certo, acrescentamos, que existem faltas

14 A propósito de um histórico sobre os delitos dos funcionários públicos, desde a Roma Antiga, veja-se Hungria (1959, p. 313).

15 Sobre a responsabilidade do Estado: Blasco Esteve (1980, p. 195-241); Bon (1997, p. 1301-1310; 1994, p. 91-98); Bonichot, Dietsch e Guettier (1998, p. 569-583); Manzanares Samaniego (1999, p. 125-141); Soulier (1969, p. 1039-1103); Torchia (1999, p. 832-850); Torno Mas (1985, p. 71-122), todos apontando, em medidas distintas, um cenário de evolução e de crescentes perspectivas de responsabilização estatal na cultura continental-europeia, da qual somos herdeiros. Sobre o princípio de responsabilidade dos gestores públicos em Direito comparado, vejam-se: Banfi (1995, p. 143-154); Bon (1991, p. 141-148); Gaetano (1997, p. 2185-2188); Miele (1991, p. 421-435); Mor (1998, p. 411-417); Nannucci (1998, p. 533-549); Lignani (1998, p. 381-388); Lucibello (1998, p. 343-348); Massafra (1998, p. 399-410); Paci (1998, p. 389-398); Pastori (1998, p. 260-267); Pétrina (1997, p. 374-390); Richter (1998, p. 327-329); Sommovigo (1997, p. 931-938); Scoca (1997); Corpaci (1998, p. 239-250), todos reconhecendo a importância do princípio da responsabilidade em termos de fundamentação de uma cultura republicana, porque os agentes públicos, em especial, devem prestar contas de seus atos. Finalmente, Smith (1959), ao tratar do controle jurisdicional da ação administrativa, põe de manifesto a evolução dos remédios em Direito comparado, demonstrando tendências diversas, com claras discrepâncias entre os modelos civil law e common law, situação retratada com nitidez ímpar nos institutos desenvolvidos, a esse respeito, num e noutro sistema/modelo.

16 Em primeiro lugar, o agente público deve ser o causador do ato ilícito, ainda que o conceito de causa esteja longe de uma unanimidade doutrinal. Em segundo lugar, deve existir um mínimo elemento subjetivo no comportamento do agente, seja a intencionalidade, seja a culpa ou a negligência, conforme se vê em Thompson (1999, p. 7-17). Sem embargo, é notável a tendência à responsabilidade por descumprimento de deveres de ação ou de resultados. Recorde-se que condutas culposas já podiam encaixar-se em algum dos vícios capitais apontados por D’Aquino (1996).

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do Estado e do funcionário,�7 as quais devem ser tratadas, não raro, separadamente. Os níveis e tipos de má gestão pública são muito variados e distintos,�8 indicando, por sua vez, a necessidade de pautas de controle igualmente divididas em níveis diferentes, além de evidente variação de intensidade do controle e fiscalização.�9

É obvio que a corrupção não é a única forma de má gestão pública,20 ao contrário do que parece fluir nos meios de comunicação social, porque existem outras figuras jurídicas dignas de relevância e funcionalmente muito eficazes. Pensar de modo diverso equivaleria não apenas a ignorar a realidade, mas, sobretudo, a desprezá-la.

Como disse Jesus Gonzalez Perez, “é tal o nível de degradação dos valores éticos nas Administrações Públicas, que parece que a questão se centra na corrupção, quando esta constitui tão-somente um, embora seja o mais grave, dos atentados à Ética em que pode incorrer um servidor público. Mas existem outros muitos que, ante a generalidade daquela, ficaram relega-dos ao esquecimento ou considerados leves pecados veniais, ou até práticas administrativas que não vale a pena desterrar. Se se quiser, de verdade, regenerar a vida pública, se se quer confrontar com seriedade a tarefa de fazer uma Administração Pública que, não só não suscite a desconfiança e receio dos administrados, mas sim possa servir de exemplo às atividades 17 Jean Pierre (1999).18 Em geral, o tema que ocupa a pauta de preocupações internacionais é a Corrupção, uma espécie muito difundida

de Má Gestão Pública. Repare-se em alguns dos documentos internacionais que tratam do tema: Nações unidas (1996; 1997; 2000; 2000a; 2000b; 2000c); Conselho da Europa (1997; 1997a; 1997b; 1997c; 1998; 1999).

19 O fenômeno do controle jurídico dos poderes políticos e até ocultos nas sociedades pode ser visto sob muitos distintos prismas. Consultem-se: Groisman (1989, p. 35-45); Grossi i Picardi (1997, p. 668-680); Gutmann (1986, p. 165-177); Mantes (1998, p. 390-394). O tema da separação de poderes está muito bem posto em Martín-Retortillo Baquer (1989, p. 47-77), com ênfase nas funções, abandonando a surrada ideia da tripartição pura e simples de poderes políticos, nos cenários atuais, sobretudo na Espanha, com reflexos no funcionamento do Estado e na arquitetura dos controles recíprocos. Os desvios de poder podem ser vistos em: Maugüé (1999, p. 254-268); Maulin (1995, p. 79-105); Mavrinac (1964, p. 145-159); Mazzamuto (1998, p. 441-477); Melleray (1998, p. 1089-1129); Morebidelli (1998, p. 475-501); Nieto (1980, p. 7-73); Pérez de Tudela Velasco (1983, p. 91-117); Rossetti (1998, p. 181-188). O histórico de controle de outros tipos de enfermidades da Má Gestão Pública pode ser visto através da história do excesso de poder. Confiram-se: Garrido Falla (1995, p. 11-85); S. Martín-Retortillo Baquer (1957, p. 83-177).

20 Schwartz e Pouyaud (1997, p. 353-364) tratam do recurso por excesso de poder no âmbito dos contratos administrativos, anunciando fundamentos que, fora de dúvidas, integram a teoria geral do desvio ou excesso de poder, com aplicabilidade específica ao terreno contratual. Sciascia (1999, p. 466-515) trata de um outro tipo de controle da Administração Pública que resulta muito importante: o financeiro. Scoca (1997) trata da responsabilidade administrativa, que supõe um meio autônomo de controle, objetivo que tem sido perseguido pela nova gestão pública, dentro da ideia de construir pilares de independência interna, até mesmo considerando que os controles internos costumam ser os mais eficazes, quando exercidos seriamente. O certo é que há muitos tipos de controle, ou seja, remédios, porque há muitas enfermidades, como põe de manifesto, no Direito francês, Marcilhacy (1980), realçando a responsabilidade política de certos agentes públicos pelo recebimento indevido de presentes e outros benefícios. No Brasil, uma referência importante sobre o controle da Administração Pública é o trabalho de Ferraz (1992).

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privadas, é necessário que não nos limitemos a sancionar o nauseabundo mundo da corrupção, e recordar outros elementaríssimos deveres”.2�

A expressão má gestão pública, aqui usada, não é tão nova, embora assim o seja na perspectiva da improbidade administrativa.

Jones assinala: “there is a tendency to treat expressions of bureaucratic corruption and other patterns of maladministration as being analytically separate phenomena. They are simply different sides of the same coin. Furthermore, some of the factors which are identified as contributing to maladministration in the Third World would appear to lack both the comprehensiveness and the analytical power needed to make them discrete, causal factors that can point to meaningful corrective measures”.22

Kjellberg recorda das notícias na imprensa norueguesa nos anos 89/9� sobre “administrative malpractice and alleged corruption (...)”, assinalando que “even if valid, general allegations of corruption, as normally presented in the media may indeed obscure its wide variety of types and its complex relation to other forms of administrative and political malpractice”.23

Hope trata da corrupção burocrática e da má gestão pública no Terceiro Mundo, assinalando que “bureaucratic corruption has been regarded as a particularly viral form of bureaupathology. ‘Once it enter the blood of a public organization, it spreads quickly to all parts. If it is not diagnosed and treated it will eventually destroy public credibility and organizational effectiveness. Even if treated, there is no guarantee that it will be eliminated or that all infected areas will be reached. The posibilities of stamping it out altogether are remote as long as the machinery responsible for eliminating it is also corrupt as the case in the Third World”. Conclui dizendo que “the administrative machinery in the Third World is in a state of ineptness”. Isso inclui a politização partidária da máquina, as práticas corruptas e

21 Gonzalez Perez (1996, p. 31-32). O tema dos valores constitucionais ou dos objetivos de valor constitucional, no marco do Direito francês, está desenvolvido em Faure (1995), na perspectiva imanente à legalidade enquanto princípio forjado na jurisprudência constitucional e administrativa. Veja-se a orientação aberta e construtiva do Conselho Constitucional francês em Favoreu e Philip (1997).

22 Jones (1985, p. 20). Diz o autor, em nossa livre tradução, que “há uma tendência em tratar expressões de corrupção burocrática e outros padrões de má administração como sendo analiticamente fenômenos separados. Eles são simplesmente lados diferentes da mesma moeda. Além disso, alguns dos fatores que são identificados como contribuidores à má administração no Terceiro Mundo parecem não ter tanto a capacidade de compreensão e o poder analítico que são precisos para fazê-los discretos, fatores causais que podem apontar significantes medidas corretivas”.

23 Kjellberg (1995, p. 339 et seq.). Diz o autor, também em nossa tradução: “mesmo que válidas, alegações gerais de corrupção, como normalmente veiculadas na mídia, podem inclusive obscurecer sua ampla variedade de tipos e sua complexa relação com outras formas de má prática administrativa e política”.

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as estruturas centralizadoras de decisão, fatores decisivos na geração de inépcia ou ineficiência generalizada.2�

O Relatório Final da Comissão de Diagnóstico da Legislação Centro-americana no tema da corrupção,2� no marco da Cúpula Centro-americana contra essa patologia, disse que a “corrupção como tal representa uma das práticas humanas mais generalizadas e com efeitos tão perniciosos e devastadores que seu exercício impossibilita a saúde moral dos povos, impede o desenvolvimento econômico sustentável das nações e representa um poderoso obstáculo para obter a paz e a harmonia social”. Veja-se que a Comissão fala de saúde moral dos povos e, acrescentamos, instituições.

A má gestão pública, portanto, é uma categoria que abrange numerosos subtipos de enfermidades, em graus muito distintos, o que requer estudos especializados e remédios diferenciados.2� Note-se que as enfermidades se conectam reciprocamente.

Antes de entrar na análise estritamente legal da Improbidade no sistema brasileiro, convém assentar uma afirmação fundamental, pois a abordagem normativa da improbidade administrativa quer oferecer um novo modelo regulatório de certos tipos de má gestão pública, partindo da premissa segundo a qual os modelos vigentes de combate à corrupção pública são insuficientes e defasados para tratar de todos os atos que implicam grave desonestidade funcional ou grave ineficiência funcional dos agentes públicos.

Sustentamos que é importante construir um modelo teórico-norma-tivo mais geral que permita o tratamento unitário dos assuntos relativos aos atos dolosos e culposos, embora isso deva ocorrer preservando-se as

24 Hope (1985, p. 3). Diz o autor que a corrupção burocrática tem sido considerada como uma particular forma viral de buropatologia. Uma vez que entra no sangue de uma organização pública, se espalha rapidamente para todas as partes. Se não é diagnosticada e tratada irá eventualmente destruir a credibilidade pública e a efetividade organizacional. Mesmo se tratada, não há garantia que vai ser eliminada ou que todas as áreas infectadas serão alcançadas. As possibilidades de extingui-la de uma vez são remotas, tendo em vista que o maquinário responsável por eliminá-la também é corrupto, como no caso do Terceiro Mundo. Conclui dizendo que “a máquina administrativa no Terceiro Mundo está em um estado de inaptidão”.

25 Centro Americano da Legislação contra a Corrupção (2000). San José, Costa Rica, 2000. Encontro Regional Contra a Narcoatividade e a Corrupção.

26 Sobre a economia da corrupção e alguns mecanismos de controle, vejam-se: Bais (1999, p. 57-77); Cartier-Bresson (2000, p. 19-32; 1997a, p. 20-46; 1993, p. 26-32); Donatini i Grazzini (1999, p. 105-135); Fernández Díaz (1999); Hopkin (1997, p. 255-274), todos convergindo, em linhas gerais, em torno à importância do discurso econômico para estancar tais fenômenos desde uma vertente real, eficaz e vocacionada à tutela dos interesses dos atores envolvidos no processo. Percebe-se a importância de abordagens econômicas, com linguagem específica, do fenômeno em tela. Efetivamente, atacando-se o fluxo de dinheiro que sustenta e se alimenta dos negócios ilícitos, tem-se a possibilidade de estancar o mercado da corrupção, criando-se instrumentos impulsionadores da boa gestão pública a partir de um discurso econômico, não apenas jurídico ou político. Essa é a grande contribuição que os economistas ou os estudiosos dessa área podem aportar ao tema em análise, como, de fato, vêm aportando.

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diferenças e os matizes necessários entre grave desonestidade funcional e grave ineficiência funcional no marco das proibições pontuais e san-ções proporcionais, inclusive mantendo um uso mais restrito e preciso da corrupção pública como espécie de Improbidade, resgatando-se sua vocação originária de repressão à grave desonestidade funcional.

1.2.1 Desonestidade funcional dos homens públicos e suas flutuações ético-normativas

Uma das facetas da má gestão pública é, sem lugar a dúvidas, a desonestidade funcional dos homens públicos. Essa é uma das piores facetas da má gestão pública, pode dizer-se. Ao menos, trata-se, segura-mente, da faceta mais notória, antiga e evidente da má gestão pública, conectada à degradação moral de agentes do Estado.

A podridão da vida política e da Administração Pública na Antiga Roma tinha dimensões gigantescas, inclusive maiores — proporcionalmente — que as atuais, segundo o magistério autorizado e respeitado de Luciano Perelli.27

Em todo caso, cabe assinalar que as origens históricas da corrupção — aqui tomada em um sentido puramente sociológico como os maus costumes no setor público, equivalente à podridão moral dos homens públicos ou suas graves desonestidades funcionais — perdem-se no tempo. Todavia, é na formação do Estado Moderno que o fenômeno adquire dimensões mais dramáticas, a partir da ideia de separação das esferas pública e privada, bem assim das limitações jurídicas no exercício dos poderes públicos.28

27 Consulte-se a obra fundamental de Perelli (1999, p. 11-13), uma das mais respeitadas referências no assunto. Disse o autor que “se prima del III secolo avanti Cristo abbiamo scarze notizie di corruzione, ciò deriva del fatto che per quel período mancano testimonianze dirette, e annalisti e storici dei secoli successivi hanno avuto la tendenza a idealizzare il passato. Ma quando arriviamo alla prima produzione letteraria consistente che costituisce um documento diretto dei tempi, cioè alle commedie di Plauto, intorno al 200 A.C., troviamo amplia testimonianza di malcostume nella gestione degli affari privati e pubblici” (11). O que se supõe, portanto, com esta afirmação, é que a corrupção é um fenômeno dos homens, não dos tempos, como disse em sua época Seneca. Consulte-se ainda Jeanneney (1999) e Mirri (1988), para uma visão histórica sumária do fenômeno, sem discrepâncias fundamentais quanto à evolução do problema e suas novas dimensões no século XX.

28 Jiménez de Parga (1997, p. 139) situa a Corrupção Política como um assunto de Ética Social, o que, sabidamente, não invalida outros enfoques. A Corrupção apresenta a ideia de perversão e há aqueles, como Jeanneney (1999, p. 58), que visualizam as raízes históricas da Corrupção junto com o escândalo, ou seja, é o escândalo que, projetando a indignação do povo, revela o fenômeno desde sua dimensão ética, política e verdadeiramente social. Talvez aqui resida o cerne conceitual da podridão moral que domina os conceitos mais usuais de corrupção, eis que tal repúdio ou rechaço ético se insere nas entranhas da própria sociedade, que se sente nauseada e revoltada diante de determinadas modalidades de transgressões. Dominguez (1996, p. 59) recorda que desde o Direito Romano a Corrupção e a Concussão eram delitos, punidos inclusive com a pena de morte. Disse Passas (1998, p. 43) que nenhum sistema, regime ou país parece ser imune à Corrupção. Nota-se que a Lei das XII Tábuas disse: “Si judex aut arbiter jure datur ob rem judicandam pecuniam acceperit capite luito”. Sobre o tema Corrupção trataram as Leis Calpurnia, Servilia, Cornelia e Julia “de repetundis”. Justiniano disse: “pecunias ex officiis conquirere omnium flagitiorum principium est finis”. Hungria (1959, p. 367) fez um importante histórico do tema, ao qual estamos nos reportando. Em Espanha, vale a pena constatar, entre outros, Torres Aguilar (1992), quando trata do controle dos oficiais públicos na Castilla baixa medieval e moderna, levando em conta as influências do Direito Romano.

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Assim como a podridão moral do homem público, a corrupção pública tem um caráter universal e global, embora sua incidência nos países subdesenvolvidos seja mais facilmente endêmica, já que os ambientes costumam, por suas peculiares carências, ser mais propícios ao desenvolvimento sólido e impune das práticas corruptas e corruptoras.29 Isso se dá, sobretudo, pela ausência de fortes instituições fiscalizadoras

29 Moran (1998) centra seus estudos no fenômeno da corrupção nos países em desenvolvimento, focando o caso da Coreia do Sul, onde os níveis de transgressão chegaram a patamares elevados e, hoje, se encontram razoavelmente sob controle, segundo noticiários internacionais. A propósito do fenômeno da Corrupção Pública na Tanzânia, veja-se Pepinsky (1992, p. 25-51), denunciando as raízes profundas da patologia. Na Coreia do Sul, é interessante o ensaio de Moran (1998, p. 161-177), mostrando a abundância do fenômeno num regime totalitário, onde os controles revelam-se altamente discriminatórios e abusivos, embora, paradoxalmente, o afrouxamento da defesa dos direitos humanos possa viabilizar processos punitivos autoritários, rápidos e eficazes em seus objetivos, mesmo que eventualmente injustos ou arbitrários. Nigéria, um país que tem altíssimos graus de Corrupção Pública, mereceu importantes estudos já no decênio dos anos 80, como, por exemplo, o de Olowu (1985, p. 7-12), que trata da Corrupção Pública burocrática, denotando os laços que unem ineficiência e desonestidade. Em países como este, a corrosão institucional conduz a níveis absurdos de corrupção. Aina (1982, p. 70-76) pesquisou as causas e possíveis remédios à Corrupção Pública na Nigéria, mas, sem embargo, os altos índices desta enfermidade seguem vigentes ali, enraizado que está o fenômeno nas instituições públicas, em patamares endêmicos. Repare-se no que há de comum nessas regiões: o alto grau de erosão das instituições públicas, tanto pelas desonestidades, quanto pelas ineficiências funcionais dos funcionários públicos, em contextos de desgoverno. As cidades de Hong Kong e Singapura mereceram estudo comparativo de Quah (1995, p. 391-414), visualizando-se a relação entre uma considerável circulação de riquezas e a presença cada vez mais ostensiva de corruptores, o que, paradoxalmente, propiciou fenômenos mais intensos de corrupção. Fica clara a relação entre os dois pólos da patologia: corruptor e corrupto andam juntos, lado a lado, entrelaçados. Oudghiri (2000, p. 135-144) trata da Corrupção nas finanças públicas do Marrocos, com uma abordagem que não se afasta das ordinárias abordagens sobre o tema, identificando traços da patologia e deficiências institucionais básicas. Theobald (1997, p. 299-314), entre outros muitos, ocupou-se da África, um dos lugares mais corrompidos do mundo, para denunciar a fragilidade das instituições e a facilidade de acesso a ambientes corruptos. A propósito, recorde-se que Brogden e Nijhar (1998, p. 89-106) examinam a política adotada pelo Governo da África do Sul, mas não logram alcançar sugestões concretas de utilidade, restringindo-se a uma dimensão mais descritiva. Acrescente-se, no entanto, que a África já apresenta algumas experiências interessantes de fortalecimento de escritórios do Ministério Público, integrados com autoridades de múltiplas áreas, sinalizando passo decisivo para a paulatina superação dos problemas. Essa integração projeta influências, inclusive, no modelo de Ministério Público junto ao Tribunal Penal Internacional, cujo primeiro Procurador-Chefe, Luis Moreno-Ocampo, tem referido a experiência africana como algo positivo, tal como restou dito na 4ª Conferência Executiva para Segurança Pública da IACP (International Chiefs of Police) da América Latina, ocorrida em Porto Alegre, de 12 a 14 de setembro de 2004, da qual tivemos a honra de ser coordenador-geral. Na América Latina, cabe recordar Rehren (1997, p. 323-334), que tratou da Corrupção no Chile, assim como Pollack e Matear (1997, p. 371-382) que, acerca deste mesmo país, expõem expressamente as relações entre ditadura, democracia e Corrupção. Diga-se que as instituições chilenas, na América Latina, situam-se entre as mais desenvolvidas. Uma revitalização da Justiça tem permitido notáveis avanços, ao mesmo tempo que os órgãos policiais, inclusive em campos estratégicos como a inteligência criminal, têm evoluído notavelmente, alcançando estágios mais avançados de aperfeiçoamento funcional. A Corrupção privada, por seu turno, não faz discriminações, porque os grandes escândalos pipocam por toda parte. Suas raízes estão muito bem fixadas nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Para ficamos com duas referências, Andvig (1995, p. 289-313) trata da Corrupção na indústria do Óleo no Norte da Europa, ao passo que Bogdan (1979, p. 665-677) trata da Corrupção no mercado internacional de comércio, analisando medidas do governo sueco. É certo, ademais, que ambas, Corrupção Pública e Corrupção privada, mantêm íntimas conexões, porque a primeira muito frequentemente depende e tem seus pontos de contato com a segunda. Os escândalos internacionais, envolvendo simbiose entre setores público e privado em matéria de corrupção, não têm pátria, nem fronteiras, alcançando, de modo impactante, países como os Estados Unidos da América ou a Alemanha, a França, a Espanha ou a Inglaterra, a Itália, Portugal e outros.

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em ação e lacunas nos esquemas preventivos, afirmação que se aplica inclusive ao Brasil.30

A ideia de vício ou de podridão inerentes à corrupção, em um pla-no histórico-sociológico, pode apresentar numerosas raízes e variações. Temos alguns elementos básicos, como o são os desvios no manejo de atribuições públicas, os vícios ou abusos contra os interesses legítimos da sociedade, os favorecimentos movidos pela busca do enriquecimento ilícito, entre outros. Entretanto, a amplitude das definições é notável. Qualquer dos conceitos, em todo caso, remete-nos ao tema dos valores e fontes normativas, além do critério adotado. Não é possível valorar, desde pontos de vista objetivos, essas definições, visto que as normas culturais que as presidem atuam muito fortemente e as perspectivas analíticas tendem a variar.

O que podemos dizer, isso sim, é que os conceitos de corrupção pública não nos indicam elementos universais e seguros, nem mesmo à luz de um unitário ponto de vista e segundo idênticos critérios. O único critério que vemos como universal, na perspectiva dos deveres posicio-nais do sujeito, e que, não obstante, tem conteúdos diversos, é a nota da grave desonestidade funcional. Tampouco se trata de um conceito seguro, já que temos a variante daquela que seria a modalidade muito grave de desonestidade.

A corrupção se descreve, em geral, não só na literatura espe-cializada — e aqui temos possibilidade de fazer referência global a um importante e sólido conjunto de doutrinas — como também nos escritos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional,3� como toda aquela ação ou omissão do agente público que o leva a desviar-se

30 Está claro que a história da Corrupção no Brasil tem, entre outras, duas grandes vertentes: (a) a manipulação de decisões políticas para favorecer os interesses econômicos e (b) a apropriação de recursos e bens públicos pelos políticos, seja em seu próprio benefício, seja para o financiamento de campanhas eleitorais, seja para favorecimento de interesses privados de terceiros. O que estabelece Fleischer (1997, p. 311 et seq.) — e é sempre positivo ter em conta uma opinião de alguém que, sendo estrangeiro, se ocupa dos assuntos de nosso país como especialista, espécie de “brasilianista” — é que os sistemas de controle no Brasil são muito frouxos. Assinala o autor o tema da ausência de controles externos e internos. Sem embargo, já veremos que algumas instituições têm atribuições muito interessantes e até atuais acerca do controle da Má Gestão Pública. O que ocorre é que essas instituições não logram trabalhar de forma adequada, não têm estruturas materiais, pessoais e tecnológicas para o efetivo controle das práticas de Má Gestão Pública, nem têm desenvolvido um espírito de trabalho em equipe, coletivo, suficientemente sólido.

31 Tanto um como o outro definem a Corrupção como o abuso da função pública para obter benefícios privados <http://www1.worldbank.org e http://www.imf.org>.

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dos deveres formais e materiais de seu cargo, com o objetivo de obter benefícios privados.32

Os benefícios privados podem ser pecuniários, políticos, ou de posição social, assim como qualquer utilização em benefício pessoal ou político de informação privilegiada, influências, atribuições públicas ou oportunidades.

Fatores e fatos multicausais conduzem à corrupção. Destaca-se, en-tre muitos, o universo dos interesses conflitivos e das relações incestuosas que nascem em processos eleitorais marcados pela presença ostensiva ou não de grandes financiadores.33

32 Nieto (1997) assinala a importância dos benefícios ou interesses privados na corrupção. Segundo Rodríguez-Arana Muñoz (1996, p. 244), o termo “corrupção” admite distintas aproximações. Sem embargo, existe um denominador comum: “a utilização em proveito próprio dos poderes públicos” (215). Insiste o autor que a corrupção é a ocultação do público para favorecer elementos pessoais ou de grupo. Gardiner (2002) aponta o abuso de poder como nota essencial da corrupção. Esta é igual ao mau uso dos poderes públicos. Sob esta definição se encontram o nepotismo e o clientelismo, o conflito de interesses, já legislativo, já administrativo (216), e outras modalidades. Trata-se de definição insuficiente desde uma perspectiva estritamente jurídica, já que peca pela excessiva generalidade. Abuso de poder pode ser controlado através de outras categorias jurídicas ou éticas, não somente através de um encaixe na figura de corrupção. Pondera o autor que um dos perigos da definição jurídica da corrupção é que pode permitir identificar o legal com o ético. As dificuldades para um conceito jurídico de corrupção são sérias, porque podem existir atos ilegais que sejam éticos, se a lei é uma lei injusta (217). “Normalmente, quando se trata da corrupção, imediatamente se associa com determinadas condutas de responsáveis e funcionários públicos. Efetivamente, o professor de Harvard Nye, em 1967, definia a corrupção como uma conduta pessoal que supõe um desvio ou infração no cumprimento normal das normas da função pública em prol de benefícios econômicos para alguém ou um de seus próximos. Nesta definição se inclui o suborno (utilização de recompensas para condicionar as decisões políticas ou administrativas), o nepotismo ou a prevaricação. Em realidade, o decisivo, ao se falar de Corrupção Pública, é que a atuação ou a conduta se produza por quem está investido de poder público ou político e que beneficie ao funcionário ou responsável ou a pessoas próximas. Mas, na aproximação de Nye, não se contempla a possibilidade, nada infrequente, de que a finalidade da conduta seja beneficiar ao partido político no qual milita o funcionário ou cargo público. É a hipótese, por exemplo, do famoso caso Watergate. Mas não é esta a única limitação da definição do professor de Harvard, porque sua contribuição poderia ser interpretada em função do que é cumprimento normal em alguns países ou em outros e tendo em conta que nem em todos os lugares há codificações éticas, nem estão sancionadas estas práticas. Sem embargo, é conveniente assinalar que não é possível — nem justo — que a corrupção não esteja condenada em todas as partes do mundo. Possivelmente ainda em muitos lugares, sobretudo no entorno subdesenvolvido, é normal que os cargos eletivos e de designação mesclem os interesses públicos com os interesses particulares. Apesar disso, há que se comentar que enquanto se tolere que o cumprimento normal das obrigações de um funcionário inclua a aceitação de presentes ou a incursão em conflitos de interesse, a luta contra a corrupção seguirá sendo uma ilusão. Assim, como pergunta Gardiner, é admissível que um contratante convide um chefe de compras da Administração e sua família a passar férias na Riviera Francesa? Ou, está permitido que o Ministro de Obras Públicas outorgue um contrato a uma empresa que é, em parte, de sua propriedade? A resposta é não. E, ambas condutas correspondem ao que comumente se entende por corrupção: uso de poderes públicos em benefício próprio” (p. 215-216).

33 O tema do financiamento dos partidos políticos como uma das raízes mais profundas da Corrupção já está na pauta de discussão dos governantes e da doutrina especializada há bastante tempo, mas de forma particularmente intensa na década dos 90. A propósito do tema, vejam-se: Blanco Valdes (1995, p. 163-197); Caravale (1999, p. 59-75); G. Colombo (1994, p. 1031-1043); Clementi (1999, p. 119-130); De Petris (1999, p. 89-118); Di Andrea (1999, p. 139-156); Donatini i Grazzini (1999, p. 105-135); Forzati (1997, p. 266-282); Frosini (1999, p. 77-88); Gonzalez-Varas Ibañez (1992, p. 299-312); Lavagna (1999, p. 131-137); Touvet (1997, p. 59-72; 1998, p. 297-304) não há obra do ano de 1998 na bibliografia. Não obstante divergências notáveis sobre a pertinência maior ou menor dos modelos públicos, privados ou mistos, de financiamento das campanhas, não se tem dúvida acerca da universalidade do fenômeno da corrupção e dos desvios nessa seara, seja nos países em desenvolvimento, seja nos desenvolvidos. Daí a importância dos controles eficazes, que passam não apenas pelo instrumental legal ou jurídico, mas pela construção

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Desde um ponto de vista sociológico, está bem situada a definição aqui ventilada. Entretanto, num marco ético-normativo, não se vê em que medida a corrupção pública se diferencia de outras categorias, v.g., a pura e simples patologia do desvio de poder, que também admite, desde um ângulo conceitual, a figura genérica da utilização em proveito próprio das atribuições públicas.3�

É possível dizer, insista-se nisso, que a corrupção pública, por seu significado de alta podridão moral, não inclui a repressão a todos os atos de desonestidade dos servidores públicos ou dos cidadãos,3� nem sequer todos os atos de grave desonestidade funcional.

Não nos esqueçamos de que a corrupção não tem porquê, desde perspec-tivas ético-normativas, absorver por completo (aniquilar com) outras categorias funcionalmente úteis no campo ético, v.g., o desvio de poder, todos os vícios e abusos possíveis, a desonestidade em geral, as quais se ajustam à máxima da proporcionalidade, conforme se trate de um ou outro tipo de caso.

de mecanismos econômicos, burocráticos e institucionais, que possibilitem total transparência dos custos e aportes de uma campanha, com monitoramento em tempo real dos chamados sinais exteriores de poder econômico na campanha. Nesse sentido, cabe agregar que tampouco é suficiente direcionar controles aos candidatos ou partidos políticos, porque resulta indispensável desenvolver ferramentas que alcancem a conduta dos empresários que participam, ostensivamente ou não, das campanhas, no intuito de satisfazerem seus interesses. A estruturação de órgãos especializados para o monitoramento das campanhas eleitorais é uma das necessidades que se observa nos regimes democráticos. No Brasil, por razões administrativas, há um permanente rodízio na ocupação de vagas do Ministério Público e da Justiça Eleitorais. Raramente se encontram agentes especializados ativamente envolvidos no processo fiscalizatório. De outra banda, há que se reconhecer que também faltam estruturas estáveis, especializadas, para rápidas investigações e apurações de ilícitos, inclusive no período pós-eleitoral, abarcando a visualização do patrimônio dos candidatos, além de sua movimentação na campanha, v.g., uso de aviões, propaganda maciça e irregular, investimentos pesados, etc. Esse déficit alcança as estruturas policiais, evidentemente, ainda com maior vigor, visto que expostas ao poder político de plantão. Por tais razões, quando se cogita do chamado financiamento público de campanhas eleitorais, como panaceia para todos os males, há que se sublinhar que semelhante instrumento não inibiria, por certo, o conhecido “caixa 2” das campanhas, nem as doações “por fora”, apenas agregando ônus e custos aos contribuintes. A tutela do financiamento privado pode permitir níveis maiores de lisura no processo eleitoral, em conjunto com o barateamento dos custos e o monitoramento da competição de forma eficaz. De qualquer sorte, há que se reconhecer que as distorções inerentes ao financiamento das campanhas estão na origem de numerosos atos ímprobos, afetando a honestidade funcional dos gestores públicos, na contra-partida oculta que se oferece pelos “empréstimos”, de forma direta ou indireta. Não é raro, pois, constatar que boa parte da classe política fica guindada à condição subalterna de longa manus de uma parcela da classe empresarial, que não aparece, mas posiciona os políticos nos postos de comando, dando-lhes sustentação pessoal e partidária, tornando-se credores de favores pessoais ou institucionais, ao arrepio de controles públicos.

34 A partir de uma perspectiva ampla, o núcleo da prática corrupta seria o não cumprimento de um dever posicional em troca da obtenção de um benefício, conforme sustenta Malem Seña (2000). É importante ter em conta razões eticamente positivas para decidir. Determinados tipos de razões conduzem à Corrupção em suas distintas formas (79). Essa é uma abordagem das mais abrangentes, mas correta desde um ponto de vista ético. Isso porque, afinal, a decisão que se quer reputar corrupta, no sentido mais amplo possível, depende, para esse efeito, do tipo de razões que a sustentam.

35 Caiden (2000, p. 8-9) menciona numerosas modalidades de Corrupção Pública, desde o nepotismo à detenção ilícita, a tortura, o indulto e o perdão não merecidos. Convenhamos, uma categoria tão ampla deve, afinal, restar confusa, com precária senão nula utilidade.

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O que interessa notar é que a corrupção pública designava e segue designando um fenômeno ético-social muito antigo, ou seja, a grave desonestidade funcional dos homens públicos. E não cabe dúvida de que sempre existiram condutas proibidas, até desonestas, que, não obstante, tinham umas dimensões intermediárias, que não chegavam a ponto de qualificar-se como símbolos de podridão moral, mas eram reprováveis.

A realidade, em toda sua complexidade, demonstrou, sempre, a necessi-dade de ponderação e valoração concreta dos comportamentos, observando-se sua real nocividade social, além de outros elementos relevantes para a correta qualificação da conduta. O resultado do balanço, em todo caso, é contundente: as desonestidades assumem formas e conteúdos variáveis, sendo igualmente variáveis seus efeitos e sua valoração no meio social.

A expressão “corrupção”, nesse terreno, ficaria demasiado estreita para cobrir um fenômeno tão largo quanto aquele relativo às desones-tidades funcionais dos homens públicos, porquanto o indicativo de que estaríamos diante de uma patologia repugnante e digna dos mais severos remédios contrastava, frontalmente, com a amplitude do rol de casos encai-xáveis, segundo uma literatura de cunho sociológico, naquela categoria.

As oscilações dos fenômenos, tanto em sua tipologia, quanto em sua gravidade, recomendam a construção e o reconhecimento de uma nova categoria, mais apropriada, didática e analítica, ao efeito de per-mitir uma compreensão mais direta e menos ambígua da natureza das coisas, reposicionando, ao mesmo tempo, a corrupção em seu devido lugar político e cultural.

1.2.2 A ineficiência funcional dos homens públicos e suas flutuações ético-normativas

A ineficiência funcional é uma outra faceta básica e decisiva da má gestão pública. Importa ressaltar, no entanto, as flutuações dessa categoria, dando ensejo a distintas classificações e remédios, abrindo espaço a múltiplos níveis intermediários entre os extremos.

Não podemos esquecer que a intenção é o que move o homem durante a ação, e assim pode chegar-se a afirmar que é sua causa, mas o real é o realizado, o fato consumado. Chegar do “produzido” à “intenção” é um caminho complexo. Na Ética, o princípio formal da ação correta tem seu lugar garantido. É certo, em todo caso, que não se pode explicar

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a intenção só pelas consequências, visto que, ao avaliar uma conduta, há que se ter presentes os condicionamentos, e também a experiência do sujeito-agente, assim como a cooperação do destinatário, ingredientes todos eles do ato-ético — de desigual importância de um caso a outro — que, por dar-se entre homens livres, é consideração não fútil.3�

A eficiência, claro está, não é um valor absoluto, visto que inserida no universo de valores, ponderações e proporcionalidade da Ética Pública aqui tratada. Essa expressão traduz a virtude e a faculdade para obter um efeito determinado. Eficaz é a conduta que consegue fazer efetivo um intento determinado, mas o problema está em definir os caminhos prudentes que o sujeito decide seguir.37

De modo que resulta necessário recordar, uma vez mais, que uma atuação contra as regras éticas que presidem o setor público não pode ser eficiente, já que seus resultados e, mais do que isso, seus caminhos estão entranhados no conjunto de danos produzidos. Um agente público que, atropelando fórmulas ético-normativas, consegue obter resultados econômicos favoráveis, não será um sujeito eficiente na perspectiva da ética institucional aqui defendida. Desde essa perspectiva, pelo contrário, deve-se ter bem presente que os resultados de uma conduta carecem de valorações globais e que, portanto, o dever ético de eficiência funcional não representa somente a ambição por concretos e pragmáticos resultados políticos ou econômicos.38

36 Guerrero (2000, p. 10-56). A boa administração, já se disse, a partir de uma perspectiva ético-normativa, não vai exclusivamente no caminho dos bons resultados. Se os homens são essencialmente morais, recorda o mesmo autor, deve-se examinar o método que o homem segue para seu decidir responsável, segundo requer o ético. Este caminho pressupõe os passos de informação, ponderação, resolução e ação devida (ou não). O sujeito segue processos para resolver problemas, os quais soluciona quando tem claros os passos necessários. O estudo do proceder do homem público, à luz da boa administração, não pode se esgotar em um único campo do conhecimento científico. As exigências ético-sociais contemporâneas têm de ser satisfeitas através de complexos processos de decisão pública. Tenhamos presente que o decisor deve ser um homem razoável de seu tempo, um homem que fragmenta seu trabalho para melhor desenvolvê-lo e que, naturalmente, está vinculado a meios e resultados, formas e substâncias. Veja-se, nesse contexto, a fundamental relevância da dimensão processual das relações jurídico-administrativas, sem que isso signifique apego ao formalismo ou à burocracia inútil. Quer-se dizer que o processo decisional supõe formas e conteúdos obrigatórios, dentro da linha racional-burocrática e também gerencial, espelhando a transparência dos critérios e métodos do decisor.

37 Tampouco é o mesmo falar de eficiência no setor público ou no setor privado. A Ética se move no plano dos valores e, por certo, a eficiência eticamente valorada não se limita ao marco do resultado da ação, já o dissemos. Veja-se Parejo Alfonso (1999; 1989), com aportações em sentido similar.

38 Essa é a linha adotada no discurso de um dos maiores administrativistas italianos, Sabino Cassese (1998; 1997; 1993), o qual põe ênfase na importância e necessidade de múltiplos controles, tanto da ineficiência quanto da desonestidade, combinando, sem embargo, o conceito de eficiência com os parâmetros ético-normativos da conduta pública, de modo a não permitir a consumação ou legitimação de condutas economicamente úteis e eticamente nocivas à sociedade.

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Falar que um agente obrou ineficientemente num determinado momento, sem um olhar aprofundado sobre seu agir e seus resultados, pode significar pouco. Temos que avaliar se foi respeitada a margem humana de falibilidade funcional, dentro daquilo que se pode desig-nar como erro juridicamente tolerável. Isso porque ao sujeito é de ser outorgado um certo espaço tolerável de ineficiência, se considerarmos esse termo vinculado à ideia de metas e resultados. A frustração desses objetivos, embora possa constituir suporte de uma determinada inefi-ciência, certamente ficará fora do alcance de uma órbita punitiva ou correicional. Fora disso, temos que analisar o grau da falha apontada, bem assim sua repercussão nos valores jurídico-administrativos, inclusive para aquilatar o tipo e o tamanho da resposta a ser dada. Falhas de conteúdos e dimensões diferentes não podem ficar agrupadas dentro da mesma categoria ético-normativa, salvo do ponto de vista meramente nominal, devendo ser reconhecidos os diversos escalões da ilicitude. Da advertência às sanções que afetam direitos fundamentais, vai uma larga distância. Não obstante, normalmente estaremos sempre falando na “ineficiência”, numa ótica principiológica. Daí a importância de reconhecermos as flutuações ético-normativas dessa patologia — a inefi-ciência —, concluindo pela necessidade de trabalhar, dentro do conceito de improbidade, com aqueles fenômenos mais graves, aproximando-os dos casos de desonestidades funcionais.39

II O diagnóstico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública no Direito brasileiro

Assentadas as bases axiológicas, pretendemos defender a inserção da improbidade como espécie de má gestão pública no Direito brasileiro, à luz da Lei nº 8.�29/92, Lei Geral de Improbidade Administrativa (LGIA). Esse é o caminho que entendemos necessário à percepção da improbidade “in concreto”, como categoria ético-normativa que abriga, ou pode abrigar, fenômenos de grave desonestidade funcional ou grave ineficiência funcional dos agentes públicos.39 Leia-se Mariani (1997) quando aborda os novos parâmetros de qualidade no serviço público, exigências

cada vez mais atuais e imperiosas, tornando necessário o desenvolvimento de mecanismos não apenas premiais, mas sancionatórios, para sua implementação. O foco na eficiência sempre foi uma das principais preocupações de Moreira Neto (1992; 2001; 2000a; 2000b; 2005), inclusive no plano da moralidade administrativa, denotando suas flutuações de conteúdo e de intensidade, porquanto integra o tema contemporâneo da legitimidade, contraposto ao da legalidade pura e simples.

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1 Improbidade e desonra: a perspectiva da imoralidade administrativa no sistema brasileiro

A improbidade é uma espécie de imoralidade administrativa qualificada, eis uma noção jurídica que poderia nascer do senso comum. Pretendemos focar este assunto por um ângulo historicamente importante e ainda atual, demonstrando suas raízes conceituais. Porém, nossa visão vai em direção a outra premissa normalmente esquecida por boa parcela dos operadores jurí-dicos: a improbidade deve ser, antes de tudo, uma ilegalidade qualificada.

A improbidade sempre foi tida como sinônimo de desonra do homem público, numa perspectiva etimológica. Em realidade, essa patologia pode ser vista desde ângulos muito distintos, porém todos reconduzindo ao universo da honra funcional e da imoralidade admi-nistrativa, como especialização de uma imoralidade mais ampla.

Há quem veja a improbidade administrativa do ponto de vista da moral privada: eis aí o problema do indevido controle da vida privada dos agentes públicos e a distorção fundamental do conceito de probidade no campo éti-co-normativo. O Direito disciplinar é pródigo em criar tipos sancionadores da falta de probidade moral. E, não raro, o povo confunde esses conceitos, imaginando que probo seria o sujeito moralmente correto do ponto de vista de seus deveres privados, v.g., fidelidade num matrimônio, pagamento de uma dívida junto ao vizinho, cumprimento de deveres religiosos, ou mesmo frequência à Igreja, ajuda aos pobres que pedem esmolas, etc.�0

O dever de probidade administrativa não se confunde com algum genérico dever de probidade moral dos agentes públicos e particulares. Aos agentes públicos se assegura o supremo direito à imoralidade, den-tro de limites mais estreitos, é certo. Daí a incorreção da tese que busca identificar na improbidade uma imoralidade comum.

40 É claro que, em determinados espaços, tais como aqueles dominados pelos julgamentos políticos, pode haver guarida a normas disciplinadoras de condutas tipicamente privadas. Os juízos políticos têm essa peculiaridade: a abertura aos julgamentos morais. Costa Teixeira (1998) acentua que o julgamento político pode avaliar o caráter ou a retidão moral do indivíduo, o que, no Brasil, se dá desde a perspectiva do decoro parlamentar. Porém, tal abertura não nos permite confundir improbidade com imoralidade privada, porque o conceito de probo é fenômeno do Direito Público, sobretudo o Direito Administrativo, envolvendo não um juízo moral, mas um julgamento de censura ético-normativa, dentro dos pilares democráticos. Ocorre apenas que os julgamentos políticos, além de serem despidos de fundamentação, caracterizam soberanos juízos de valor, observado apenas o procedimento legalmente devido, das autoridades competentes. Por isso, o peso da opinião pública pode conduzir um acusado às malhas de uma decisão condenatória, sem que necessariamente haja provas ou consistência jurídica a respaldar tal orientação. Não são raros os casos que atestam essa realidade. Daí porque a defesa, nos julgamentos políticos, deve mover-se no cenário do discurso político, sensibilizando os julgadores e valorando intensamente a opinião pública.

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É certo, no entanto, que não se pode esquecer que os agentes públicos estão submetidos a um regime jurídico de Direito Público, mais severo e rigoroso que outros. Trata-se de um regime estatutário, onde, naturalmente, a vida privada desses funcionários se reduz consideravel-mente, em medidas variáveis. Daí que haja um desaparecimento da vida privada dos agentes públicos, todavia, vai uma longa distância, até mesmo porque isso é inviável. Por tal razão, a improbidade não se identifica com a mera imoralidade, mas requer, isto sim, uma imoralidade qualificada pelo Direito Administrativo.

Os agentes públicos gozam de direitos fundamentais, entre os quais está, é obvio, o direito à intimidade, à privacidade, ao desenvolvimento livre de seus privados estilos de vida e personalidades. Em todo caso, os agentes públicos têm, sem lugar a dúvidas, espaços privados nos quais podem praticar atos imorais, desde que esses atos não transcendam os estreitos limites da Ética Privada, não afetem bens jurídicos de terceiros. Os direitos humanos, fundamentais, do homem e do cidadão, protegem o indivíduo contra atuações abusivas, ilícitas, desnecessárias, do Estado.��

1.1 Moral administrativa e as raízes da probidade dos agentes públicos

Improbidade é uma imoralidade administrativa qualificada, eis uma assertiva básica a merecer justificação. A moral administrativa, noção jurídica que abrange específica forma de Ética Institucional, foi, desde um ângulo terminológico, importada de influências francesas do início do século XX, mais precisamente de Maurice Hauriou, consolidando-se na CF de �988. Daí a moral administrativa passou a ser considerada como fonte normativa de um novo paradigma comportamental dos homens públicos, incorporando exigências éticas e axiológicas mais intensas ao setor público, numa perspectiva talvez didática, talvez redundante de reforço à legalidade substancial.�2

41 Ferrajoli (1998) fala do direito fundamental à imoralidade como uma das consequências do garantismo. Veja-se também García Ferrer (1998) quando trata da perspectiva dos direitos humanos frente às atuações abusivas do Estado.

42 Sobre moralidade administrativa no sistema brasileiro, vejam-se: Franco Sobrinho (1994, p. 13-20); Moreira Neto (1992, p. 1-44); Mukai (1993, p. 211-215); Pereira (1994, p. 21-25); Quixadá (1997, p. 51-61) e Giacomuzzi (2002). Oddi (1997, p. 1149-1165) trata do controle da moralidade pública na Itália, mas, sem embargo, não aborda o tema da moralidade administrativa. A moralidade pode apresentar-se, assim, como um instituto jurídico muito específico e peculiar a determinado conjunto de normas.

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A perspectiva adotada no discurso da Assembleia Constituinte de �988 é a de crescente aproximação do Direito à Ética, ou vice-versa, assumindo certas normas morais uma dimensão jurídica, de forma con-trolada, respeitando-se níveis razoáveis de segurança jurídica.

O dever de probidade dos agentes públicos no tratamento da coisa pública, na prestação de serviços públicos ou, mais genericamente, no exercício das funções públicas, está plasmado no sistema constitucional que tutela a Administração Pública brasileira, projetando diretrizes funda-mentais do Estado Democrático de Direito, orientando o tratamento da res publica como um todo, alcançando frontalmente os agentes públicos.�3

Observa-se que, em vários textos, pela ótica da Constituinte de �988, foram coibidos a ilegalidade e o abuso de poder, circunstância que permite, pelo menos, um questionamento sobre o papel das leis num Estado Democrático de Direito e de outras fontes de deveres jurí-dicos, numa clara superação de um legalismo estrito como suposta fonte exclusiva de deveres públicos, já que a Lei está submetida a pautas muito intensas de valorações.

Em realidade, os preceitos do art. �º, incisos LXVIII, LXIX, e LXXIII, arts. 37, caput, §�º, ��2, VI, 72, §2º, 8�, V, �2, I, todos da CF, versam normas de ética institucional, ou de moralidade administrativa, como acentua a boa doutrina, além de outros tantos preceitos constitucio-nais que, indiretamente, absorvem contribuições da moral jurídica, como ocorre, por exemplo, com as exigências de idoneidade moral ou reputação retilínea para a ocupação de determinados postos de trabalho.��

Eis por que a Assembleia Constituinte de �988 procurou resguar-dar o bom nível moral dos que devem ocupar as altas magistraturas do Estado,�� “verbi gratia”, arts. 73, §�º, II, 9�, caput, �02, I, “n”, �23, parágrafo único, I, �3�, §�º, todos da CF.

A moralidade administrativa é algo mais específico e funcional-mente distinto que a moralidade dos homens públicos, já o dissemos à exaustão. Anote-se que a moral administrativa é considerada, pela dou-trina, como fonte do dever de probidade administrativa, que se encontra 43 Conferir os arts. 5º, LXXIII, 14, parágrafo 9º, 15, V, 37, caput, parágrafo 1º e 4º, 55, II, e parágrafo 1º,

85, caput e I, da CF.44 Veja-se Moreira Neto (1992) em seu magistral trabalho sobre o tema.45 Veja-se o mesmo Moreira Neto (1992, p. 23), quando descreve varias hipóteses constitucionais de uso da

moralidade. No Direito Espanhol, analisando preceitos morais que se incorporam ao direito administrativo, veja-se Jesús González Pérez (1995).

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no art. 37, §�º, CF, porque se trata — esse dever — de uma espécie de moralidade. Probidade é espécie do gênero moralidade administrativa. Improbidade é imoralidade qualificada.�� Essa é uma assertiva doutriná-ria bastante comum e geralmente aceita, salvo algumas exceções.

Toda improbidade deriva de uma imoralidade administrativa, mas nem toda imoralidade constitui uma improbidade administrativa. Já se disse que a ética administrativa está atada aos princípios da Administração Pública.�7 É correto afirmar que o dever de probidade descende de uma ética institucional peculiar ao setor público, traduzindo um ponto de encontro entre normas éticas e jurídicas, nos limites da segurança e da capacidade de serem previstas as decisões dos operadores do Direito.

A moralidade administrativa, entretanto, tem suas dimensões muito peculiares. Vale a pena conferir mais de perto a funcionalidade concreta do princípio em exame, o que nos permite, igualmente, uma melhor e mais adequada compreensão de seus limites e conteúdos conceituais, inclusive no tocante às relações que pode ou deve manter com o dever constitucional de probidade.

1.1.1 Boa fé objetivaHá quem diga que a moral administrativa traduz o dever de boa

fé objetiva, importado, este, do Direito Civil, com seus desdobramentos, exigindo-se da Administração Pública toda uma série de deveres para com os administrados.�8

Parece-nos razoável supor que a moralidade administrativa, na ótica de quem a criou, fosse instrumento de reconhecimento de deveres públicos implícitos relacionados com a boa fé objetiva da Administração Pública. Os deveres de lealdade institucional, de correção, de proibição de atos contrários ao comportamento anterior, no bojo de toda uma gama de deveres implícitos ou imanentes, demonstram as íntimas relações entre boa fé objetiva e moralidade administrativa.

46 Moreira Neto (1992, p. 29).47 Ferraz (1992, p. 67) A expressão “amarrada” é expressamente utilizada pelo autor, dando a ideia de

impossibilidade de dissociar-se a ética administrativa dos princípios constitucionais que presidem a administração pública.

48 Veja-se Giacomuzzi (2002), o qual busca, a nosso ver, adaptar — de modo legítimo, evidentemente — a obra de Menezes Cordeiro (1997) ao Direito Administrativo brasileiro. É claro que tal adaptação encontra limites inequívocos. No lado oposto a essa tentativa de reduzir a moralidade administrativa à boa fé, observa-se a clássica obra de González Pérez (1999), a qual ficou focada no fenômeno da boa-fé dentro dos cânones da moralidade pública, sem dissociar suas vertentes fundamentais.

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Certamente, no entanto, a moral administrativa não foi apenas uma faceta da boa fé objetiva, como tampouco o seria nos dias que cor-rem. O histórico da moralidade permite que se visualizem as funções, ao passo que sua realidade atual autoriza que se vislumbrem as concretas aplicações dessa norma jurídica. Tanto as funções históricas quanto as concretas aplicações principiológicas revelam um complexo feixe de papéis cumpridos pela moralidade administrativa, transcendendo, a toda evidência, os limites mais estreitos da boa fé objetiva. Sem dúvida que o feixe de papéis em jogo envolve uma funcionalidade compatível com os princípios da legalidade e da segurança jurídica, respeitando-se os círculos do Direito e da Moral.

O núcleo central da moralidade administrativa reside numa lacuna hermenêutica vigente ao final do século XIX, quando o apego à lite-ralidade das regras de Direito Administrativo conduzia, por distorções formais, às injustiças e deformações detectadas pelo inolvidável Maurice Hauriou e pelo Conselho de Estado francês, órgão a partir do qual se forma a jurisprudência que dá os modernos contornos científicos ao Direito Administrativo da família romano-germânica.

Se resgatarmos essa funcionalidade histórica do princípio em exame, mormente no bojo da própria origem do Direito Administrativo moderno, dentro de um esquema hermenêutico necessário, logramos compreender a razão pela qual resulta inaceitável incorporar a moralidade administrativa ao princípio da boa fé objetiva, no lugar de proceder o caminho inverso.

Não se deve deixar de referir, ainda, que a moralidade administra-tiva, nos tempos atuais, no cenário nacional, cumpre funções típicas muito peculiares, que não se confundem com as da boa fé objetiva idealizada pelo grande Menezes Cordeiro. Este renomado autor português costuma ser apontado como dos mais importantes teóricos contemporâneos em torno ao dever de boa fé no Direito Civil. Importar suas lições ao Direito Admi-nistrativo é tarefa delicada, que requer cautelas específicas, para que não se confundam categorias hierarquicamente situadas em níveis distintos.�9

Da moralidade administrativa nascem deveres, inclusive o de boa fé objetiva, além da boa fé subjetiva, entre outros. O universo da moralidade administrativa, respeitando suas origens teóricas, é ambíguo e permite a percepção de valores, a partir dos quais são construídos

49 Veja-se a obra de Menezes Cordeiro (1997).

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deveres e direitos. Não se pode pretender englobar o mais no menos, o círculo maior no menor.

Nem pretenderíamos discorrer sobre todas as potencialidades normativas do princípio da moralidade administrativa, porque não é este o objeto do presente estudo. Porém, desde um ponto de vista geral, pode-se deixar bem assentado que a moral administrativa engloba a funcionalidade da boa fé objetiva, mas nela não se esgota, avançando em outros domínios funcionais, para estabelecer consequências mais abrangentes, inclusive do ponto de vista da Teoria Geral do Direito, na medida em que permite uma funcionalidade mais aberta tanto às fontes jurídicas, quanto à interpretação, dando espaços mais livres de configuração das normas aos operadores. Talvez aí resida a essência da moralidade administrativa: reconfigurar a teoria das fontes do Direito Administrativo e permitir espaços mais amplos aos intérpretes, na leitura do sistema passivo do ordenamento jurídico.

1.1.2 Formação das regras não escritas da Administração Pública e a avaliação dos deveres públicos existentesAlertamos que a moral administrativa, além de ser inconfundí-

vel com a moralidade comum, tem uma funcionalidade histórica para alcançar, por um lado, as regras não escritas da Administração Pública, os objetivos gerais da Administração Pública, permitindo um campo maior de movimentos aos intérpretes, e, por outro, de exteriorizar cânones hermenêuticos para uma valoração do conjunto de deveres públicos relacionados com a clássica legalidade. Trata-se de constatar sua evolução histórica e sua funcionalidade normativa já à luz do Conselho de Estado francês, mas também na perspectiva do Direito brasileiro.

Insistimos em que a moral administrativa é uma expressão que, fundada por Maurice Hauriou, a princípios do século XX, indicava a existência de regras não escritas no funcionamento da Administração Pública, assim como apontava uma especial valoração ética das normas existentes, remodelando os caminhos hermenêuticos vigentes à época. Desse modo, permi-tiu-se uma maior profundidade analítica aos julgadores, tanto na avaliação do comportamento objetivo da Administração Pública, como no exame de suas intenções, quanto no aprofundamento do juízo de ilicitude inerente às condutas reprováveis, numa dimensão escalonada.

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Estamos a dizer que a moral administrativa impunha que os agentes públicos devessem observar não só uma legalidade formal, de pura fachada, mas, sobretudo, certas regras éticas que se incorporavam ao ambiente institucional e que se tornavam obrigatórias, juridicamente vinculantes, além de outras normas que, ao lado da legalidade, deveriam funcio-nar como parâmetros básicos da Administração Pública, integrando, obrigatoriamente, o conteúdo implícito das leis.

Pode dizer-se que, em suas origens, a moral administrativa exerceu uma dupla funcionalidade: por um lado, expressou o ideal de legalidade substancial da Administração Pública, desafiando o legalismo estrito vigente à época; por outro, (re)introduziu a necessidade de valoração das regras existentes, impulsionando o futuro da chamada legalidade substancial, desafiando os métodos hermenêuticos então usualmente empregados, muito especialmente a exegese meramente literal.

No sistema francês, berço da moralidade administrativa, posterior-mente, ela mesma perdeu vigor e intensidade, ganhando terreno a legalidade substancial, que absorveu suas lições e sua funcionalidade normativa.

O desaparecimento crescente de referências doutrinárias e jurisprudenciais ao princípio da moralidade administrativa, no modelo francês, tem raízes culturais, filosóficas e na Teoria Geral do Direito. Novos métodos interpretativos foram sendo consolidados e pacificados pelo Conselho de Estado francês, aceitando as clássicas contribuições substancialistas da moralidade administrativa, sempre debaixo da categoria que se passou a denominar de legalidade substancial, categoria reconfigurada e remodelada a partir dos influxos da moralidade. Quando se acena com o suposto desaparecimento do princípio em exame, por-tanto, resulta oportuno recordar que isso se deu apenas nominalmente, visto como suas potencialidades normativas seguiram sendo exploradas na perspectiva de um novo princípio da legalidade.�0

A moral administrativa cria, tanto aqui quanto no sistema francês, um ambiente de ética institucionalizada para a estruturação jurídica dos deveres públicos e para a valoração dos deveres explícitos e implícitos, não sendo uma norma oposta ou que se contraponha à legalidade.

50 A perspectiva dos direitos humanos, no tratamento dos remédios contra o excesso de poder, acabou definitivamente incorporada ao Direito francês, como se pode notar em Melleray (1998) ou Maugüe (1999). Para a boa noção de legalidade substancial no sistema francês, com uma visão crítica sobre o princípio da moralidade administrativa, recorde-se de Rivero e Waline (1965; 1995; 1998).

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Devemos examinar os deveres públicos no marco de uma escala de valores, isso é o que deriva, em última instância, da moralidade admi-nistrativa, que relativiza, ainda, o valor dos dispositivos e antecipa uma distinção contemporânea entre texto e norma.

Parece simples, e talvez seja, porém as grandes mudanças e revoluções científicas sempre trazem consigo o mérito da clareza e da simplicidade, explicando fenômenos antes obscuros. A moralidade admi-nistrativa, como espécie de conjunto de normas de ética institucional, é um princípio jurídico que nasce no final do século XIX, inícios do século XX, como ferramenta de rompimento do paradigma de um Direito esgo-tado na Lei, nos textos e nos dispositivos em seus conteúdos gramaticais estritos. As regras não escritas, que disciplinavam o funcionamento ideal da Administração Pública, foram reconhecidas debaixo de uma inédita ferramenta jurídica designada como moralidade administrativa.

Hoje, passados mais de �00 anos daquela formulação de um princípio jurídico tão vital quanto a moralidade administrativa, tem-se que está aceita a ideia, no plano da Teoria Geral do Direito, de que as regras e os princípios não estão reduzidos aos textos escritos e que, ademais, sua valoração, compreensão e configuração concreta cabem ao intérprete, no curso de um processo institucional decisório. Esse deslo-camento de competências, ou seu reconhecimento, abalou o positivismo jurídico, reconfigurando-o em novas bases, na medida em que elementos pretéritos, como a importância dos textos produzidos pelo legislador, permanecem válidos, redefinidos em termos mais funcionais. De sorte que esse impacto se dá, sobretudo, em terrenos abertos à intervenção mais criativa do intérprete, como é o caso da tutela do dever de probidade administrativa. Eis aí um campo no qual a moralidade administrativa segue ostentando uma funcionalidade dinâmica e decisiva, fundamen-tando responsabilidades em perspectiva republicana e valorando os deveres públicos exigíveis dos atores.

Não se pode olvidar que os movimentos de controle da legitimidade, não apenas da legalidade em sentido estrito, das ações ou omissões admi-nistrativas, são ou devem ser associados à ética institucional, vale dizer, a uma cultura aberta à moralidade administrativa, que revigora, revitaliza e recondiciona a legalidade e seus clássicos parâmetros. Não é por outra razão que certas doutrinas, mesmo que não o digam, refletem o estágio

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mais desenvolvido e amadurecido que encontra raízes nas múltiplas funcionalidades da moral administrativa dentro do sistema francês.��

Ignorar essa realidade funcional da moral administrativa, com reflexos e conexões na Teoria Geral do Direito, em homenagem a trans-plantes artificiais ou forçados de institutos do Direito Privado ao campo do Direito Público, pode mutilar este complexo panorama axiológico e normativo. As eventuais passagens flexíveis de institutos, de uma esfera a outra, resultam da própria conjugação desses institutos outrora circunscritos a determinadas esferas do Direito Privado ou do Direito Público, bem assim dos impactos sucessivos e intensos do Direito Cons-titucional em todos os domínios, aliando-se tais fatores à ductibilidade do próprio fenômeno jurídico. É dizer: os fluxos e intercâmbios mais intensos entre o Direito Administrativo e o Direito Privado resultam de uma complexa realidade constitucional e da própria Teoria Geral do Direito, que vê nos distintos cenários elementos convergentes, comuns, complexos, a reclamar soluções coerentes com uma racionalidade que foge à rigidez do Direito fragmentado em ramificações acadêmicas ou supostamente científicas.

Daí porque é imperioso notar: a funcionalidade da moral admi-nistrativa se associa, sem dúvida, à funcionalidade de outras vertentes éticas que se introduziram noutros domínios, inclusive no Direito Privado, autorizando paralelos criativos. Porém, no tocante à moral administrativa, sua institucionalização veio à tona numa vertente juris-prudencial, na formatação de um Direito calcado em regras não escritas previamente, nem codificadas, ao contrário do que veio a ocorrer no Direito Civil, cujas raízes modernas repousam mais precisamente nos Códigos, no centralismo jurídico, nas regras escritas pelo legislador. Aqui, a boa fé aparece como exigência de oxigenação do sistema legis-lado rigidamente, ao passo que no sistema administrativo a mesma boa fé aparece como instrumento da jurisprudência para definir regras ante a lacuna de um sólido Direito legislado. Num caso, rompe-se, pouco a pouco, a rigidez do sistema; noutro, cria-se o próprio sistema a partir de regras jurisprudenciais.

51 Banfi (1984) falava no controle de legitimidade como um dos novos pilares das competências jurisdicionais. Confira-se, no Brasil, Moreira Neto (2001; 2000; 2000a), sempre focado na perspectiva da legitimidade.

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1.2 Moralidade subjetiva: os fundamentos da responsabilidade pessoal dos funcionários públicos

A imoralidade, por todos os ângulos, é fundamento de responsa-bilidades. Fala-se no conteúdo ético do Direito a partir das exigências de responsabilidades subjetivas. É claro que a imoralidade jurídica, que se dá no interior do Direito Administrativo, a partir da violação de normas não escritas, ou eticamente valoradas de modo negativo, enseja base para responsabilidade do agente. Esta não chega a ser uma função da mora-lidade administrativa, mas uma consequência necessária à sua violação, pelo caráter mais acentuadamente grave que traduz uma vulneração de seus ditames. A moralização do Direito envolve uma valoração de suas normas. Se uma determinada norma é reputada conexa, ligada ou dependente da moralidade administrativa, sua violação há de ensejar alguma espécie de responsabilidade.

Do ângulo subjetivo, o dever de obediência à moralidade admi-nistrativa se insere no terreno da responsabilidade pessoal dos agentes públicos. Pode-se dizer que a imoralidade administrativa, qualificada pela lei como improbidade, dá lugar à responsabilidade dos funcionários públicos. Resulta necessário explorar os desdobramentos da imoralidade administrativa subjetiva.

1.2.1 Fundamentos gerais da responsabilidade pessoalEm um plano subjetivo, o princípio da moralidade administrativa tem

a ver com o tema da responsabilidade pessoal dos agentes públicos, porque atos juridicamente qualificados como imorais ensejam responsabilidades. Atos administrativamente imorais, pelo ângulo subjetivo, devem dar lugar a alguma forma de responsabilidade pessoal do infrator. Esse princípio da responsabilidade pessoal do sujeito há de ganhar corpo nos modelos de “civil law”. Trata-se de postulado basilar dos regimes democráticos, que impulsiona o bom funcionamento da Administração Pública, tanto no campo da honestidade quanto no da eficiência dos funcionários.

Aliás, os sistemas de “civil law” deveriam inspirar-se mais frequen-temente nos postulados de responsabilidade pessoal dos agentes públicos disponíveis na “common law”. Isso porque, em sua evolução garantista, o Direito Administrativo de corte francês conduziu a uma excessiva impessoalidade a Administração Pública europeia e, consequentemente,

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latino-americana. O reflexo negativo desse processo se percebe no enfraquecimento dos regimes de responsabilidades pessoais, consa-grando-se, crescentemente, uma espécie de quase-anonimato no qual o sujeito se esconde atrás do Estado, que fica responsável — como numa estrutura paternalista — por todos os prejuízos.

Um dos mais interessantes estudos sobre o tema é o de Galeotti, que pôs de manifesto numerosas formas de controle judicial da Adminis-tração Pública, desde uma perspectiva comparada (Itália e Inglaterra). O resultado da comparação é que, até a primeira metade do século XX, a Itália tinha esquemas teóricos mais avançados de controle, mas a prática das instituições britânicas era mais efetiva. Por outra parte, os funcionários públicos continentais — no marco do Civil Law — eram mais usualmente observados desde perspectivas impessoais, como órgãos da Administração Pública, enquanto os funcionários britânicos, ao contrário, eram pessoalmente responsáveis por seus atos ilícitos.

Embora seja certo que a responsabilidade do Estado ante os cida-dãos é muito conveniente a estes últimos, facilitando-lhes as demandas, o que não se pode ignorar é que a ausência de responsabilidade do fun-cionário é nociva ao bom andamento da Administração Pública, como referiu Galeotti: “Deproving public officials of the immediate check of their people liability towards the subjects affected, the exercise of administrative functions becomes something anonymous, wich is legally referred to the person of the State or of the other public authority. On the Continent the legal safeguards against public administration are focussed on the ‘act’, not on the person of the official who has does it”.�2

Eis aí o medo dos ingleses ao anonimato dos funcionários públicos. E esse anonimato seria o patamar máximo da impessoalidade, fator conducente, paradoxalmente, à irresponsabilidade do servidor e à impunidade, com todos seus nefastos efeitos perante a Administração Pública. O que parece ser uma virtude no “civil law” parece ser um defeito na “common law”: a impessoalidade da Administração e de seus funcionários anônimos. Daí a necessária busca de equilíbrio no manejo dos possíveis e virtuais conteúdos do princípio da impessoalidade.

Cabe dizer que os princípios democrático e republicano têm densidades normativas complexas e ambíguas. A Democracia é, além 52 Galeotti (1954, p. 247).

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de um regime de governo, uma ideia, uma construção histórica cuja caminhada se revela permanente. Assim, enquanto princípio constitucio-nal, o princípio democrático possui, entretanto, uns conteúdos mínimos, já amplamente reconhecidos na comunidade jurídica internacional, o que traduz consequências normativas de relevância indiscutível. O mesmo se passa com o princípio ou a ideia de República.�3

A responsabilidade dos agentes públicos e dos agentes particulares que prestam serviços públicos ou que entram em contato com as coisas públicas é uma das fundamentais consequências normativas dos prin-cípios em análise, quer dizer, os princípios democrático e republicano: trata-se do princípio da responsabilidade.��

Eis o princípio da responsabilidade dos homens públicos. Desde aí derivam múltiplas e variadas consequências. A irresponsabilidade é inadmissível. A eventual existência de agentes com total e absoluta imu-nidade (impunidade) frente aos Poderes Públicos seria uma realidade incompatível com o princípio democrático, que se apoia na igualdade de todos ante as leis e a Constituição, e frente ao princípio republicano, que supõe responsabilidades iguais, sempre na perspectiva da ideia de responsabilidade de quem detém parcelas do poder estatal.

Não ignoramos que, em casos muito excepcionais, determi-nadas figuras possuem uma responsabilidade limitada por seus atos e omissões. Entretanto, no que se refere à gestão pública, nenhum

53 A propósito da Democracia, na visualização de suas peculiaridades teóricas, consultem-se: Dahl (1999); Ross (1989); Bobbio (2000).

54 Nenhuma dúvida cabe a respeito da tendência crescente de responsabilidade pessoal dos agentes públicos. Mantovani (1983, p. 261-281) trata da responsabilidade objetiva e subjetiva em Direito Penal, mas resulta evidente que os vetores que recomendam rechaçar responsabilidade objetiva se encontram enraizados no Direito Punitivo, do qual o Direito Penal é apenas um dos braços. Os agentes públicos estão especialmente expostos à integralidade do Direito Punitivo, diante do princípio da responsabilidade. Mathieu (1993, p. 427-435; 1993, p. 601-610; 1990, p. 735-746) fala da responsabilidade penal de altos funcionários públicos franceses no tema da contaminação de sangue em Hospitais Públicos, um caso clássico, paradigmático. Vê-se que o princípio da responsabilidade mescla aspectos penais e políticos, em determinadas hipóteses. Mattos Neto (1997, p. 159-170) trata da responsabilidade por atos de improbidade e, no particular, reproduz pensamento básico da comunidade jurídica, ao enunciar conexões constitucionais entre probidade e responsabilidade. Hely Lopes Meirelles (1977) fala da responsabilidade dos prefeitos no Brasil, cuidando de municipalismo, como um dos pilares da expansão desse movimento interno ao pacto federativo: a responsabilidade dos Prefeitos aumentaria à medida que o municipalismo ganhasse terreno, o que culmina na Constituição de 1988, como sabemos bem. Pizzorusso (1997, p. 39-54) fala da responsabilidade penal dos altos funcionários públicos italianos. Em direito francês e comunitário, veja-se Vedel (1997, p. 31-37). A responsabilidade pessoal do agente público é uma tendência geral nos ordenamentos jurídicos democráticos, projetando-se em variadas vertentes. O Tribunal de Contas italiano costuma cobrar responsabilidades pessoais dos gestores públicos, dentro desse mesmo contexto republicano. Vejam-se: Italia (CORTE DEI CONTI, 1998); Italia (CORTE DEI CONTI, 1996); Italia (CORTE DEI CONTI, 1996a).

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governante, agente público ou particular, pode, validamente, invocar imunidades absolutas.��

Atos de má gestão pública, seja por corrupção, grave desones-tidade funcional ou grave ineficiência funcional, não importa, não têm o amparo das imunidades constitucionais, no Direito Comparado das Nações democráticas. Isso se dá porque, ao fim e ao cabo, é o princípio democrático que está em jogo, em conjunto com a ideia de República. A conexão da responsabilidade ao princípio democrático e à igualdade republicana ostenta, portanto, uma indiscutível importância teórica e pragmática.

1.2.2 Tipos de responsabilidade pessoal dos agentes públicosA responsabilidade pública — seja dos agentes públicos, seja dos

particulares submetidos a um regime jurídico de Direito Público — se divide em distintas dimensões. É necessário ter em conta, adequadamente, essa realidade, de modo que se perceba a totalidade dos instrumentos punitivos e repressores do Estado na tutela e amparo dos valores e prin-cípios que regem as Administrações Públicas.��

No trato do dever de probidade, valorado, formatado e aquilatado no bojo da moralidade administrativa, não se pode imaginar consequên-cias uniformes, até mesmo em decorrência das distintas e independentes instâncias de controle. Daí porque a moralidade permite aberturas axio-lógicas em termos de respostas punitivas ou controladoras distintas. As responsabilidades de tipo social, moral, política, jurídica não se misturam necessariamente. São categorias distintas e autônomas.

55 A Constituição Imperial brasileira (1824) consagrava a imunidade absoluta do Rei. Essa era a regra geral das Monarquias europeias, visto que a figura do Monarca refletia uma dimensão divina do Poder Político. As culturas republicanas, que predominam nas democracias ocidentais, rechaçam essa espécie de privilégio odioso.

56 Franzoni (1998, p. 251-256) trata da responsabilidade dos administradores públicos desde uma perspectiva do Direito comum e do Direito especial. A responsabilidade administrativa tem lugar em conjunto com a chamada responsabilidade contábil, como se nota na Italia (CORTE DEI CONTI, 10, 1996). Sem embargo, a importância dos simultâneos instrumentos de responsabilidade resulta também da expectativa acerca de uma rápida e eficaz proteção de bens jurídicos. O Conselho de Estado italiano reconhece e valoriza o poder cautelar da Administração Pública para afastar funcionários públicos de suas funções no marco de um juízo penal e outro administrativo, já que a absolvição pode ter lugar posteriormente e a remuneração não recebida no período deve ser estimada, valorada e analisada na perspectiva jurídica. Confira-se: Italia (CONSIGLIO DI STATO, 16.06.99). O sistema de responsabilidades tem de ser cumulativo, embora respeitando os direitos fundamentais relacionados à segurança jurídica, à proporcionalidade, à vedação ao bis in idem, à proibição de atuações contraditórias do Estado. Equacionar tais temas é um dos grandes desafios contemporâneos, conciliando os direitos fundamentais em jogo e rota de potencial colisão.

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2 O histórico da improbidade administrativa como espécie de má gestão pública no Direito brasileiro

Pretendemos desenvolver o panorama histórico da improbidade no Direito brasileiro, dentro da ideia de situá-la como espécie de má gestão pública especificamente contemplada nas Constituições pátrias ao longo da História. Veremos em que medida essa categoria tem sido manejada pelo legislador, tanto no plano constitucional, quanto no plano infraconstitucional, a partir das premissas axiológicas já desenhadas.

2.1 Perspectiva constitucionalTodas as Constituições brasileiras republicanas (�89�, art. ��, �º; �93�,

art. �7, “f ”; �937, art. 8�, “d”; �9��, art. 89, V; �9�7, art. 8�, V, e Emenda Constitucional número 0�/�9�9, art. 82, V; �988, 8�, V) contemplaram a improbidade como crime de responsabilidade do Presidente da República e dos altos funcionários do Estado,�7 o que não deixa de ser significativo e marcante, porque os ilícitos de responsabilidade, por atingirem o mais alto mandatário da Nação, revestem-se de uma gravidade peculiar.

A improbidade administrativa era, e é, um ilícito funcional de responsabilidade dos altos mandatários da Nação, transparecendo sua gravidade e os valores que lhe são subjacentes. Não é novidade, pois, o status constitucional do dever de probidade, nem sua singular impor-tância no Direito brasileiro, visto que se trata de obrigação máxima do Presidente da República e dos altos mandatários da Nação, com larga tradição no sistema constitucional. Essa espécie de constatação há de ser adequadamente valorada na Teoria da Improbidade.

É certo que as Constituições brasileiras, sem exceção alguma, também contemplaram o tema da responsabilidade pessoal dos agentes públicos por atos ilícitos. Os abusos e omissões eram já proibidos na Constituição de �82�, art. �78, número 29. E seguiu vigente a teoria da responsabilidade pessoal dos homens públicos em todas as Constitui-ções pátrias, talvez como corolário do princípio republicano. Como se vê, o princípio da responsabilidade tem assento constitucional antigo, tradicional, o que se conjuga com a ideia de crimes de responsabilidade e de probidade administrativa.

57 Não custa recordar que a Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, em seu artigo 99, contemplava a imunidade absoluta do imperador a qualquer espécie de responsabilidade. O Rei era irresponsável. Sem embargo, os Ministros eram responsáveis e podiam praticar delitos de responsabilidade.

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Observe-se que o tema da corrupção e do enriquecimento ilícito, dois tópicos claramente associados à improbidade, esteve muito frequente-mente na pauta de preocupações constitucionais, não apenas em regimes democráticos. Em seu art. ���, a Constituição de �9�7 contemplava a suspensão de direitos individuais aos que abusassem e agredissem a ordem democrática ou praticassem atos de corrupção. Além disso, no art. ��0, §��, a Constituição então vigente estabelecia que a lei iria dispor sobre a perda dos bens por danos causados ao erário ou nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de funções públicas.

A Constituição de �9�7, com a EC nº 0�/�9�9, no âmbito do Direito Eleitoral, previa, em seu art. ���, II e IV, que Lei Complementar estabeleceria os casos de falta de condições para alguém eleger-se, tendo em conta a necessidade de amparo da (II) probidade administrativa e da (IV) moralidade necessária ao exercício das funções. No art. ���, a Constituição tinha previsão no sentido de que o abuso do direito indivi-dual ou político, com o objetivo de subversão do regime “democrático” ou de corrupção, ocasionaria a suspensão dos direitos pelo período de dois a dez anos, sem prejuízo da ação civil ou penal que coubesse. E já em seu art. �� a mesma Carta Magna tinha previsão de intervenção dos Estados nos Municípios em casos de “corrupção” (§3º, letra “e”).

É novidade histórica, sem embargo, a previsão da improbidade no art. 37, par. �º, da CF, pela forma de tratamento dispensado à matéria. Destacamos o modelo brasileiro, no tratamento da improbidade adminis-trativa, à luz do Direito Administrativo, como um modelo centralizador, partindo da CF, uma forma original de encarar o problema, rompendo a tradição mais ou menos linear que as Constituições antecessoras mar-caram, na oscilação entre a perspectiva penal e a perspectiva puramente ressarcitória, encarada também como cível, além do enfoque infracons-titucional sempre voltado ao campo disciplinar. Daí, em boa medida, a origem da perplexidade da doutrina e jurisprudência pátrias, diante do assunto, considerando o desenho constitucional construído no aludido art. 37, par. �º, da Magna Carta.

Pode-se dizer que, na tradição constitucional pátria, no período anterior à Carta de �988, não havia um modelo de Direito Administra-tivo centralizador no tratamento da matéria, porque era muito disforme

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o tratamento legal dispensado à improbidade administrativa, centrada na figura do Presidente ou em legislações setoriais disciplinadoras, balançando, em realidade, entre o Direito Penal, o Direito Disciplinar e o Direito Civil, como se disse. As Constituições, além disso, não trata-ram do tema claramente a partir do Direito Administrativo, optando, ao contrário, pelo Direito Penal, Eleitoral ou Político.

O enfoque de todas as Constituições republicanas, desde �89�, salvo a de �988, foi o da improbidade como fenômeno político-penal, sem destacar seu nomen iure como modalidade autônoma de ilícito, indepen-dente dos delitos de responsabilidade. Esse era o sentido terminológico que se emprestava à improbidade administrativa, tratada singularmente como improbidade, no âmbito constitucional precedente a �988, mas somente en passant tratada também como ilícito distinto do campo da responsabilidade política.

Por um lado, tratava-se o assunto pelo ângulo da responsabilidade dos altos mandatários da Nação e, por outro, pelo enfoque penal, con-siderando os chamados crimes de responsabilidade na esfera do Direito Penal. Não era uma expressão usual na legislação infraconstitucional, porque não havia crimes contra a probidade na Administração Pública, como ocorre na França, por exemplo.�8

No plano estrito do Direito Administrativo, a improbidade administra-tiva era encarada como a desonra no exercício das funções públicas, muito especialmente visualizada partindo do controle da vida privada dos agentes públicos. Nesse ponto, a improbidade administrativa poderia ser encarada desde um ângulo descentralizado e de Direito Disciplinar, uma espécie de Direito Administrativo Sancionador descentralizado e fragmentário.

É na CF de �988, portanto, que a improbidade administrativa foi tratada como ilícito de responsabilidade e ilícito extra penal, num movimento inovador e desprendido da tradição constitucional. São duas definições distintas, diretamente inseridas na CF, a primeira seguindo a tradição das Constituições republicanas, denotando o fenômeno da responsabilidade dos altos mandatários do povo, ao passo que a segunda inaugurando uma inédita modalidade sancionadora, transcendendo os limites penais, intimamente ligada ao Direito Administrativo. Nada foi

58 Nettle, Connely e Loiseau (1997) apontam os delitos contra a probidade na Administração, à luz do Direito francês.

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mencionado para além disso, silenciando a CF a respeito da natureza da improbidade administrativa, ali no art. 37, §�º, ou no 8�, V, ambos da CF, neste último ressalvada a menção a crime de responsabilidade, o qual, por si só, suscita controvérsias autônomas.

2.2 Perspectiva legalAssim como o delito de responsabilidade, o histórico da impro-

bidade administrativa, num patamar legal, tem lugar, em um primeiro momento, no marco do Decreto nº 30, de 08 de janeiro de �892, o qual, em seu Capítulo VI, já apontava os atos de improbidade administrativa. É curioso notar o extenso rol de condutas proibidas, mas cabe aduzir que, além de uma série de desonestidades, a inaptidão notória ou a desídia habitual no exercício das funções era considerada conduta ímproba (art. �8), o que reforça, do ponto de vista histórico, a ideia de um conceito mais abrangente para o dever em exame.�9

É verdade que o Direito Penal se ocupa do dever de probidade administrativa, tanto no histórico quanto na vigência do sistema sanciona-dor brasileiro. Esse dever, quando violado, pode dar lugar a tipos penais protetores da Administração Pública, mais especialmente dos princípios que regem as Administrações Públicas. O bem jurídico protegido por esses tipos penais pode ser denominado “probidade administrativa” ou “mora-lidade administrativa”, ou, inclusive, “Administração Pública”, consoante tradição de Direito comparado.�0 Crime de responsabilidade e improbi-dade, pois, nessa perspectiva, sempre andaram juntos. Não impressiona que estejam englobados no sistema jurídico pátrio atualmente.

A Lei nº �.079, de �0 de abril de �9�0, em seu art. �º, V, estatuiu ser crime de responsabilidade praticar ato contra a probidade na Admi-nistração. Aqui, no Capítulo V, art. 9º e seguintes, o legislador tipificou alguns “delitos” de responsabilidade através da inserção de elementos normativos consubstanciados em atos de improbidade. Destacamos 59 A Lei de Responsabilidade dos Ministros e Secretários de Estado ou Conselheiros (15 de outubro de 1827)

já contemplava o embrião da Lei dos Crimes de Responsabilidade. Nesta Lei se falava de traição (art. 1º) e de confiança da Nação. Previa-se o tema da corrupção (art. 2º, parágrafos 1º e 2º) e do abuso de poder. A reparação do dano era considerada uma das penas.

60 Veja-se Nettle, Connely e Loiseau (1997), quando, em sua pesquisa, apontam o tratamento prevalentemente penal à tutela do dever de probidade, destacando-se países como Chile, Estados Unidos da América e França, entre outros. De fato, essa é uma tendência muito acentuada no Direito comparado, inclusive com o fenômeno da absorção do Direito Administrativo pelas instâncias penais, as quais passam a ostentar competências de imposição cumulativa de sanções penais e administrativas.

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o descumprimento da Constituição ou das Leis, além da conduta incompatível com a dignidade, a honra e o decoro das funções, conceitos abertos e sempre muito polêmicos, permitindo e até mesmo exigindo um conjunto imenso de elementos normativos integradores.

A improbidade, no contexto da Lei dos Crimes de Responsabilidade, era elemento normativo de tipos sancionadores ou o próprio bem jurídico em jogo. Sabe-se que um bem jurídico pode ser protegido de distintas formas e por diversos instrumentos normativos. E os elementos do tipo podem ganhar vida autônoma e recobrar vida própria noutros processos tipificatórios. A legislação que cuida dos crimes de responsabilidade é um específico instrumento para tratar de determinados bens jurídicos.

É possível dizer que a LGIA é um instrumento peculiar, distinto, destinado a cuidar da probidade administrativa. Não exclui nem elimina outros instrumentos. Ao contrário, com estribo na CF, desempenha um papel normativo especializado e contundente. Repare-se que a sistemá-tica da Lei dos Crimes de Responsabilidade é muito mais aberta que a da própria LGIA, aproximando-se da esfera política de responsabiliza-ção, onde a discricionariedade dos julgadores é fenômeno amplamente admitido. Os crimes de responsabilidade evidenciam as tênues fronteiras entre Direito Penal e Direito Político, ao passo que os atos de improbi-dade definidos na LGIA estão bem enquadrados na categoria do Direito Administrativo, na perspectiva judicial.

A Lei nº 3.�02, de 2� de dezembro de �9�8, de plausível influência anglo-saxônica, tratou dos casos de enriquecimento ilícito dos funcio-nários públicos, no exercício das funções. Não se tratou expressamente da improbidade, mas sim dos casos de corrupção, que julgamos ser uma espécie de improbidade administrativa, tipificando-se as condutas corruptas desde uma perspectiva extra penal. Seus tipos sancionadores constituem, entretanto, a base da legislação que posteriormente tratou do tema da improbidade. A única “sanção” prevista era a perda dos bens adquiridos ilicitamente e o ressarcimento ao erário. Bilac Pinto fora o autor dessa Lei, com nítida inspiração no Direito norte-americano, valen-do-se de cláusulas gerais e usando o modelo dos Códigos de Conduta.

Eis aí a Lei nº 8.�29, de 02 de junho de �992, fruto de um conjunto de contribuições, muitas delas oriundas de representantes do Ministério Público brasileiro. Diga-se que a LGIA, ao regulamentar o art. 37, §�º,

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CF, perto de 0� (quatro) anos depois do início de sua vigência, no que se relaciona com a improbidade administrativa, tratou o assunto como se fosse matéria estranha ao Direito Penal, respeitando a vontade explícita da Constituinte, mas sem esclarecer a natureza jurídica de seus tipos sancionadores.

A LGIA surgiu em substituição à Lei anterior, que se restringia ao combate ao enriquecimento ilícito, ostentando, agora, um objeto mais amplo. Entretanto, apesar de inegável amplitude de alcance, a deno-minação do preâmbulo da LGIA continuou inadequadamente restrita, como se fosse a Lei do Enriquecimento Ilícito, quando seria, era e é muito mais que isso.��

Em realidade, apesar da notória ambiguidade de sua natureza jurídica e de seus tipos excessivamente abertos, inaugura a LGIA, na catalogação das condutas proibidas, três grandes modelos de tipos sancionadores: (i) condutas de enriquecimento ilícito; (ii) condutas de lesão ao erário; (iii) condutas de lesão aos princípios que regem a gestão pública.

Cada bloco normativo se compõe de uma cláusula geral, inserida no caput, e de textos casuístas, previstos nos incisos. As condutas proibidas causaram e ainda causam grande perplexidade, ante a enorme vagueza semântica que se mostra peculiar aos tipos, atemorizando os gestores públicos e municiando os órgãos fiscalizadores com poderes imensos.

61 Na legislação federal, com caráter abarcador com relação às leis dos Estados e Municípios, é a primeira vez que se trata da Improbidade administrativa como fenômeno extra penal. A LGIA é criada no final do governo Fernando Collor de Mello que, como se sabe, acabou destituído do cargo por “impeachment” e prática de atos de Improbidade Administrativa, típica responsabilidade política. Vinha, inicialmente, como um projeto muito parecido ao anterior, a Lei de Enriquecimento Ilícito, de inspiração norte-americana, com suas cláusulas gerais e termos indeterminados, mas com um rol muito restrito de sanções, limitando-se a indenização dos cofres públicos e perda de bens adquiridos ilicitamente. A ideia original era defender a honra do Governo Collor, apresentando uma Lei contra a Improbidade que estava sendo criada pelo Congresso, por conta de iniciativa governamental. O que se averiguou é que a LGIA, nos moldes do projetado por seu ideólogo originário, não acrescentava nada em termos de novidades sancionadoras. Sem embargo, o Código comentado recebeu múltiplas emendas no Congresso Nacional e acabou ampliando seus tentáculos sancionadores. Curiosamente, a enorme quantidade de emendas se deveu, em boa medida, à motivação de importantes membros do Ministério Público brasileiro, como Antonio Hermann Benjamín e outros, que lançaram propostas que revigoraram a Lei então próxima de ser gerada. Essa lei, portanto, não foi fruto de boa vontade governamental, mas de numerosas colaborações de agentes políticos que, estando fora do cenário congressual, tiveram a oportunidade de participar ativamente desse processo. Não custa recordar que é natural, até previsível, em tempos de escândalos públicos que atingem Governos, que estes busquem lançar os chamados “pacotes anticorrupção”, para demonstrar à opinião pública seu engajamento nesta causa tão nobre. Deve-se, por um lado, lamentar que iniciativas tão importantes dependam, no mais das vezes, dessa espécie de ambiente de pressão. Por outro lado, pode-se celebrar que as denúncias e notícias venham à tona e que propiciem, assim, não apenas o debate crítico de ideias, mas a confecção de novos instrumentos normativos, os quais emergem como produtos legítimos da vontade popular, na medida em que esta pressiona os Governantes de plantão.

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Entretanto, a compreensão dos tipos e das características gerais da LGIA só é possível em um contexto mais amplo de má gestão pública. A improbidade administrativa é nada menos do que uma modalidade — a mais grave, na perspectiva do Direito Administrativo brasileiro — de má gestão pública. Daí a possibilidade de reconhecer os sintomas gerais da improbidade administrativa à luz de sua inserção neste universo normativo mais amplo.

Diga-se que a identificação da natureza jurídica do remédio que é o conjunto de sanções da Lei Federal nº 8.�29, de �992, tem que vir com um novo papel do Direito Administrativo Sancionador no sistema brasi-leiro, porque tal ramo jurídico não pode ser confundido com o Direito Disciplinar, nem com um Direito Sancionador despido de garantias.�2

III Improbidade administrativa na Constituição de 1988Um Código Geral de conduta tem características marcantes e

essenciais e pensamos que a Lei de Improbidade encaixa-se nessas carac-terísticas. Tomamos a ideia de Código não no sentido tradicional/clássico da expressão, fundada no Direito Codificado do século XIX, no berço francês, mas em sua acepção mais atual, herdeira dos valores inspiradores dos famosos Códigos norte-americanos de Direito, nos mais insuspeitos domínios sociais. Repare-se, aliás, na própria origem do Direito Admi-nistrativo por Agências, que é a marca peculiar daquele sistema jurídico no decorrer do século XX e que projeta influências notáveis nos regimes jurídicos democráticos da Europa e da América Latina, para ficarmos com estas referências singulares e marcantes.

Em realidade, há que se atentar ao fenômeno designado por García de Enterría como a “nova codificação” do Direito, processo muito recente que ganha impulsos extraordinários, nos cenários europeus, a partir de �989, apartado dos paradigmas clássicos do Direito continental-euro-peu, o qual carregava um pesado ideário político-normativo de certeza, unidade e segurança absolutas, bem assim supremacia sobre as demais normas do ordenamento. Era o ideário moderno. Sabemos todos, na esteira do que anota o jurista espanhol, que a Codificação napoleônica não subsiste dentro dos paradigmas originais, porque substituída pela

62 Em Medina Osório (2000) defendemos o conceito de sanção administrativa e os contornos do Direito Administrativo Sancionador brasileiro, de tal sorte que o alargamento conceitual proposto passou a alcançar o dever de probidade administrativa.

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fragmentação do Direito dos juristas. A “nova codificação”, segundo o “Maestro” espanhol, diferencia-se radicalmente do modelo napoleônico e tem múltiplas facetas, encontrando raízes mais diretas no Direito nor-te-americano e na expansão dos Estatutos, que resultam redefinidos por influências oriundas dos modelos romano-germânicos. Tais Códigos, revitalizados, exercem função sistematizadora de regras administrativas e legais pertinentes a determinadas áreas, sem impedir avanços setoriais e integradores, sem ambições políticas desmedidas ou irreais, no plano das realidades complexas e dinâmicas, como anotou o Catedrático europeu.

Não deixa de encarnar, este novo modelo de Código, num prisma específico, um ideal de racionalização e melhor visibilidade das nor-mas, dando contraponto ao fluxo veloz de arbitrariedades e incertezas associados ao decisionismo judicial e ao emaranhado legislativo. Esses Códigos não pretendem substituir outras normas que possam vir a ser integradas no sistema, repita-se, nem impedir os avanços legislativos ou normativos, mas apenas sinalizar soluções mais diretas aos proble-mas, com patamares mais adequados de certeza e segurança jurídicas, recuperando alguns valores perdidos na veloz pós-modernidade. Esse processo, de corte anglo-saxônico, ganhou corpo inclusive no Direito francês, berço maior da codificação clássica, onde há Códigos temáticos, aplicáveis a conjuntos de normas homogêneas e coerentes, inconfundíveis com qualquer espécie de aglomeração ou recopilação de normas. Essa tendência tem se alastrado também ao Direito Comunitário Europeu. Exemplo máximo desta técnica, conclui o Catedrático espanhol em seu inolvidável estudo sobre esse fenômeno, é o Texto consolidado do novo Tratado de Amsterdã que, firmado em 02 de outubro de �997, entraria em vigor a partir da ratificação dos Estados-membros, resultando num texto enxuto e claro, tido como a nova Constituição Europeia, denotando a ideia e a preocupação de recuperar um novo processo codificatório consentâneo com a dinâmica normativa integradora.�3

63 Leiam-se todas estas considerações em García de Enterría (1999). O fato de a União Europeia ofertar resistências políticas, em alguns importantes países, à homologação de uma Constituição Europeia, não indica a procedência da fragmentação política daquele organismo comunitário, nem a fragilidade dos instrumentos codificatórios. Há muitos tipos de “Códigos” e não se deve confundi-los com as “Constituições”, as quais, por sua natureza política, ofertam uma série de dificuldades no tocante aos paradigmas de consenso que devem nortear tais documentos. A União Europeia, inegavelmente, enfrenta obstáculos e dificuldades na consolidação de razoáveis patamares de consenso para produção de uma Carta Política unitária a todos os países membros, mormente diante do processo de ampliação da Comunidade, com o multiculturalismo inerente, bem assim os complexos interesses econômicos em jogo.

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A LGIA, em nosso entender, encaixa-se nesse conceito de “Código” e tem por objeto central regular a “conduta” de todos os agentes públicos bra-sileiros, cominando sanções às posturas transgressoras. Nesse passo, há uma aproximação a determinados modelos regulatórios que, vigentes em outros cenários, buscam primordialmente a implementação de valores éticos. Não obstante essa aproximação, diante da variedade das espécies codificatórias em jogo, a LGIA assume suas feições peculiares e sua própria identidade no sistema constitucional pátrio, reclamando o reconhecimento de seu regime jurídico e sua singularidade nos cenários de Direito comparado.

Estamos diante de um Código Geral de Conduta jurídica de todos os agentes públicos brasileiros, com alcance irrestrito, cujos deveres correlatos à legalidade são concretizados por autoridades “juristas”. É o Direito dos juristas que está em jogo.

Mais ainda, também sublinhamos, como já o fizemos reiteradas vezes, que a LGIA se compõe de normas sancionadoras em branco, técnica muito usada no Direito Punitivo como um todo e no Direito Pe-nal em particular. Isso equivale a dizer que outras autoridades podem complementá-la com normativas diversas.

Importa destacar, nesse contexto, que a probidade é um dever público que só pode compreender-se no marco de outros deveres públi-cos que lhe são inerentes. Daí a necessidade de um exame dos deveres públicos subjacentes à probidade, cuja vulneração é necessária para que se configure a patologia da improbidade administrativa.

Outra decorrência lógica da estrutura da LGIA é que não cabe imputar improbidade a alguém tão-somente com base em violação a princípios, sejam legais, infra-legais ou constitucionais. A ideia de prin-cípios, que se opõe à de regras, na doutrina,�� delimita uma abrangência muito maior no raio de alcance da norma. As regras têm pretensão de decidibilidade maior e ofertam segurança jurídica em maior grau ao destinatário. O compromisso dos princípios é com outro tipo de valor: é com a funcionalidade sistêmica, embasamento hermenêutico, alcance finalístico. Os princípios devem ser invocados na fundamentação das regras, tal como ocorre no Direito Penal, no bojo da narrativa da peça inicial. Não se pode admitir tal invocação solta, dissociada das regras, como fundamento isolado para o exercício do direito de punir.64 Ávila (2003).

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Recorde-se que a Lei Federal nº 8.�29/92, em seu art. �º, estabelece que “os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia estão obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impesso-alidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhes são afetos”. É certo que o legislador não pretendeu esgotar os princípios que presidem a Administração Pública. Veja-se que também a moralidade, publicidade, eficiência, legitimidade, além dos demais já mencionados, são outros princípios constitucionais que presidem a Administração Pública. O conjunto de deveres é grande e complexo e perpassa a cha-mada Lei Federal do Processo Administrativo.

Na ponta da improbidade administrativa estão direitos fundamen-tais difusos da sociedade. Não se pode olvidar da importância da Teoria dos Direitos Fundamentais para a compreensão dos tipos sancionadores da improbidade administrativa, seja no tocante à defesa dos direitos dos acusados em geral, seja no tocante à defesa dos direitos das vítimas dos atos ímprobos. Se um determinado ato formalmente típico não atingir materialmente um direito fundamental, não há falar na improbidade administrativa propriamente dita.

Outra base axiológica importante para incidência de um tipo sancionador da improbidade reside no conjunto das normas culturais da chamada política-administrativa ou cultura político-administrativa. As normas culturais permitem a conformação correta dos contornos dos institutos jurídicos.

O dever de obediência à legalidade, na moral administrativa, ganha pautas mais densas de ponderação e de visualização da conduta adminis-trativa, numa perspectiva substancial. Isso explica, em boa medida, a noção de que a improbidade administrativa seria uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa não guardaria relação com a dimensão puramente objetiva da moral administrativa, tanto que nem toda imoralidade administrativa seria uma improbidade, mas sim com seus aspectos de censura ética e de valoração de comportamentos proibidos, quer dizer, com a dimensão subjetiva da imoralidade administrativa.��

O dever de lealdade institucional traduz exigências de obediência à moral administrativa em âmbitos mais concentrados. A qualificação que se dá à improbidade administrativa, como imoralidade administrativa,

65 Nesse sentido é o parecer de Giacomuzzi (2002), ao diferenciar moral subjetiva e moral objetiva.

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não é a que resulta tão-somente da desonestidade, mas da peculiar possibilidade de censurar o comportamento administrativo, numa dimensão de reprovação rigorosa, culminando na urgência de uma sanção jurídica à conduta contrária aos preceitos éticos revestidos de legalidade. Por isso se diz que a probidade descende da moralidade administrativa, porque se trata de penetrar no universo da Ética Institucional da deso-nestidade e da eficiência, em níveis mínimos.

Ousamos dizer que probo não é só o agente perfeito, impecável, que não comete nenhuma ilegalidade ou que jamais quebra os esquemas de eficiência ou de impessoalidade. O sujeito pode errar, praticar ilega-lidades ou ainda incorrer no vício da ineficiência, além de romper com a impessoalidade, ou inclusive com a publicidade, sem que, com isso, torne-se necessariamente “improbus”. O sujeito pode não ser um agente público paradigmático ou exemplar, mas, ainda assim, mostrar-se digno da probidade, mesmo que enquadrado na categoria dos inoperantes ou profissionalmente fracos.��

Esse raciocínio vale tanto para a compreensão da LGIA, quanto para o entendimento correto de tipos sancionadores de delitos contra a probidade, espalhados pelo ordenamento jurídico-penal. Não se pode adotar uma visão demasiado rígida ou formalista para embasar o enqua-dramento punitivo ou a improcedência de uma imputação.

Inserir o dever de probidade no universo da moral administrativa equivale a reconhecer sua dimensão ética e, portanto, sua submissão a valo-rações pontuais. O diagnóstico da enfermidade percorre um caminho lógico que vai da moralidade administrativa até o dever de lealdade institucional, culminando na patologia da improbidade administrativa. A legalidade, em todo caso, é o marco básico no qual se movem as regras de probidade.

Neste mesmo contexto normativo, no art. �º, a LGIA assentou que, concorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, procederá o integral ressarcimento do dano. E mais, disse a Lei Federal nº 8.�29/92, no art. �º, que, no caso de enriquecimento ilícito, perderá o agente público ou o terceiro beneficiário os bens ou valores acrescidos a seu patrimônio.66 São muito oportunas, sempre, as aproximações com o princípio da eficiência e seus distintos níveis de

otimização e densidade normativa. Repare-se no raciocínio de J. López González (1989), o qual maneja o princípio da eficácia como “guia de ação” dos gestores públicos. A infração a esse guia, certamente, não dá lugar a respostas uniformes.

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Poder-se-ia dizer que a improbidade administrativa está, para o Direito Administrativo, na mesma proporção que os crimes mais graves estão para o Direito Penal, se considerarmos que o Direito Administra-tivo abrange outras infrações. A improbidade administrativa é a última “ratio” do Direito Administrativo Sancionador, já o dissemos à exaustão, até mesmo pelo status constitucional e o tratamento rigoroso dispensado à matéria. Cabe sublinhar, portanto, modo reiterado, que o agente público leal, na perspectiva da probidade, não é unicamente quem jamais infringe quaisquer de seus deveres públicos, mas quem não chega a certos níveis ou degraus de agressão, culposa ou dolosamente.

ConclusõesEm síntese, concluímos:1 Os fenômenos de graves desonestidades e ineficiências funcionais

dos homens públicos, dentro da má gestão pública, apresentam dimen-sões sociológicas, éticas e históricas que se perdem nos tempos, mas que se transformam e adquirem novos significados a partir da formação do Estado Moderno e, sobretudo, a partir dos paradigmas da pós-moder-nidade, demandando remédios diferenciados e proporcionais, embora numa perspectiva crescentemente unitária e coerente.

2 A categoria ético-normativa designada como Corrupção — frequentemente utilizada no Direito Internacional e na literatura espe-cializada como o uso indevido de atribuições públicas para obtenção de benefícios privados —, não abrange a complexidade e os matizes das desonestidades e ineficiências intoleráveis no setor público, mas apenas de uma faceta da má gestão pública, possivelmente a menos frequente, ou seja, aquela que engloba as gravíssimas desonestidades, além de revelar-se incapaz de assinalar fenômenos que, embora não se encaixem na ideia de podridão moral do homem público, indicam altos níveis de reprovação ético-social. De modo que resulta aconselhável inserir o tra-tamento da Corrupção como espécie de outra patologia, esta tida como mais ampla, e a corrupção, ao revés, situada num nível de detalhamento das desonestidades funcionais mais graves.

3 A categoria ético-normativa que se designa como Improbidade guarda relações com a ideia de honra no setor público, no marco de uma moralidade institucional republicana, abrangendo as patologias

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de graves desonestidades e graves ineficiências funcionais dos homens públicos, como espécie de má gestão pública. A honra profissional pode ser afetada não apenas por atos dolosos, mas também por atos culpo-sos. Desonrado, no setor público, pode ser tanto o desonesto, quanto o intoleravelmente ineficiente.

4 A Improbidade é uma categoria de ilícito que traduz a última “ratio” no Direito Administrativo brasileiro, já que sua configuração exige a violação de deveres públicos em níveis especialmente altos e intensos, de modo que ao agente ímprobo se lhe deve deixar de reconhecer a honra de servir ao coletivo ou, como mínimo, impondo-lhe sanção que vai além da mera reparação de danos.

5 As sanções previstas para os atos de improbidade têm a natureza jurídica de sanções administrativas, já que, no Direito brasileiro, o conceito de sanção administrativa há que ser visto desde perspectivas formais e materiais, sendo possível que autoridades judiciais imponham sanções de Direito Administrativo aos ilícitos de Improbidade e, assim, o regime jurídico aplicável é do Direito Administrativo Sancionador brasileiro, com todas suas garantias derivadas do devido processo legal.

6 A Lei nº 8.�29/92 é um Código Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros, alcançando inclusive os agentes políticos e, como Lei Geral, ostentando alcance nacional, compondo-se de normas de Direito Administrativo e Processual. Suas normas espelham Direito nacional, dando densidade aos princípios constitucionais que dominam a Admi-nistração Pública brasileira, em qualquer de suas esferas e também em sua dimensão funcional. O fato de ser um Código Geral não torna a Lei de Improbidade infensa às peculiaridades das legislações setoriais que a integram, permitindo que sua incidência seja isonômica, é dizer, trate desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. A descen-tralização se dá, nesse caso, pela via das leis setoriais e da hermenêutica dos juristas e operadores jurídicos. Alterações ou criações de novos tipos sancionadores, por seu turno, através de legislação extravagante, se integram à Lei Geral, submetendo-se ao seu império, respeitadas as peculiaridades normativas setoriais pertinentes.

7 A Improbidade Administrativa, no marco da Lei Geral brasileira, está tipificada em três grandes blocos normativos de condutas dolosas e culposas, exigindo-se que o agente público — sujeito ativo — viole textos

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legais subjacentes aos tipos sancionadores, os quais constituem normas punitivas em branco. Não é admissível cogitar-se de improbidade em razão da pura violação a princípios, sendo imprescindível que ocorra violação a regras completivas. Tampouco se tolera configuração de improbidade a partir de vulneração direta aos dispositivos da Lei Geral, sendo necessário constatar agressão a outros dispositivos complementa-res, inclusive com assento constitucional.

O conceito de improbidade administrativa, tal como desenhada na Carta Magna, art. 37, par. �º, portanto, decorrente das reflexões alinhavadas neste trabalho, resulta estruturado de forma analítica, a partir do somatório das seguintes assertivas, todas fundamentadas no decorrer do trabalho:

(A) Categoria ético-normativa ligada à ideia de honra institucio-nal, no marco de uma moralidade institucional republicana, que abarca patologias e transgressões normativas consubstanciadas em graves deso-nestidades e ineficiências funcionais dos agentes públicos, nas flutuações pertinentes à proporcionalidade enquanto postulado normativo.

(B) Espécie de Má Gestão Pública, onde podem existir múltiplas categorias, revestindo-se das notas da desonestidade ou ineficiência gra-ves, passível de cometimento por ações ou omissões, dolosas ou culposas, de parte de agentes públicos no exercício de suas funções, ou em razão delas, com ou sem a participação de particulares.

(C) Exige vulneração de regras legais e princípios (ou regras) constitucionais que presidem as funções públicas, com grave agressão a direitos fundamentais e a normas de cultura administrativa vigentes.

(D) Se perfectibiliza preponderantemente a partir de normas sancionadoras em branco, que se integram e complementam por outras normas, e jamais pela simples violação a princípios.

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La lotta alla corruzione in Europa e in Italia*Giuseppe AlbenzioAvvocato dello Stato in Italia.

Sintesi della relazione: I La dimensione internazionale ed europea – 1 La “globalizzazione della corruzione – 2 Convenzione contro la corruzione dell’Organizzazione delle Nazioni Unite – 3 Le iniziative del Consiglio d’Europa – 4 Le iniziative dell’Unione Europea – 5 Le iniziative dell’Organizzazione per la Cooperazione e lo Sviluppo Economico – 6 Conclusioni – II La realtà italiana – 1 I primi anni novanta e l’inchiesta “mani pulite” – 2 L’Alto Commissario per la lotta alla corruzione – 3 Il nuovo Servizio Anticorruzione e Trasparenza – 4 Conclusioni

I La dimensione internazionale ed europea1 La piaga della corruzione negli apparati pubblici degli Stati

ha assunto da tempo dimensioni internazionali in parallelo alla “globalizzazione” dell’economia, all’intensificazione degli scambi commerciali fra le nazioni, alla crescente mobilità di persone, capitali finanziari e beni patrimoniali.

Possiamo dire che oggi nessuno Stato può ritenersi esente dalla minaccia alla stabilità politica, economica e sociale che il fenomeno della corruzione rappresenta in termini preoccupanti.

Una corruzione che non è più limitata a rapporti personali ed occasionali fra il cittadino e il pubblico funzionario ma che è elevata a sistema, a modus operandi di chiunque, operatore commerciale o singolo imprenditore, entri in contatto con apparati pubblici, sia per eseguire opere di interesse pubblico sia per conseguire finanziamenti pubblici sia per ottenere autorizzazioni o licenze; la corruzione oggi costituisce un pericolo “globale”: per la correttezza degli scambi economici, per il rispetto delle regole della concorrenza, per lo sviluppo dell’attività imprenditoriale e dell’economia nazionale, per la giusta distribuzione della ricchezza fra i cittadini e, last but non least, per la stessa stabilità politica dello Stato.

* IX ENAU – Incontro Nacional dos Advocados da Uniao; V Seminario Nacional de Advocacia de Estado; Maceiò (AL), Brasil, 3-8 de novembro de 2008.

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La consapevolezza dell’estensione sopranazionale del fenomeno ha portato gli Stati a ricercare forme di cooperazione, intervento e consultazione nella lotta alla corruzione.

La “globalizzazione” della lotta alla corruzione comporta, infatti, una uniformità delle normative nazionali sui principi di base per la identificazione delle fattispecie di reato e per la loro punizione, una cooperazione per l’attività di prevenzione, verifica e repressione ad opera delle forze investigative nazionali, uno scambio di informazioni ed esperienze, una comunità di intenti ed un controllo super partes del puntuale adempimento degli impegni assunti in sede internazionale e nazionale.

E’ evidente che una diversità fra gli ordinamenti giuridici interni ostacola l’attività di accertamento e repressione del reato ed impedisce l’incriminazione di tutti i responsabili dell’attività illecita che abbia coinvolto soggetti appartenenti a più Stati, consentendo spesso l’impunità per i criminali che agiscono in Paesi diversi da quello che conduce l’attività istruttoria e punitiva; è, altresì, evidente che una minore severità di legislazione in uno Stato comporta “zone franche” ove si possono insediare criminali che estendono la propria attività corruttiva al di fuori dei confini di quello Stato, trincerandosi poi dietro situazioni di favore, impedimenti alle indagini (ad esempio, per il segreto bancario opposto agli inquirenti) e sacche di non punibilità.

Addirittura, alcuni Stati concedono la deduzione fiscale dal reddito dell’imprenditore per le tangenti pagate all’estero!

L’azione comune degli Stati per essere efficiente e raggiungere l’ambizioso risultato del ridimensionamento dell’incidenza economica della corruzione e della sua riduzione a fenomeno occasionale e non di sistema deve, quindi, svilupparsi su due livelli: la individuazione di normative e strategie comuni ed il controllo del rispetto degli impegni assunti e delle indicazioni dettate dagli organismi sopranazionali.

2 Queste forme di organizzazione e collaborazione fra gli Stati hanno raggiunto la massima espressione con la Convenzione contro la corruzione dell’Organizzazione delle Nazioni Unite, stipulata a Merida il 9 dicembre 2003, ad oggi ratificata da molti Paesi ma non ancora da tutti.

I criteri fondamentali di tale convenzione possono individuarsi nei seguenti:

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- prevenzione: con l’impegno della costituzione di organismi anticorruzione in ciascuno Stato, di adozione di criteri di merito per l’assunzione e le carriere dei pubblici funzionari, di predisposizione di codici etici per l’attività dei pubblici uffici, di controllo della trasparenza dell’azione della magistratura;

- criminalizzazione della corruzione: con la descrizione delle caratteristiche minime comuni delle fattispecie di reato da recepire da parte degli ordinamenti nazionali e la previsione di un comune quadro di riferimento sanzionatorio;

- cooperazione internazionale: con il divieto per gli Stati di appellarsi al segreto bancario e di collaborare attivamente alle indagini richieste da un altro Stato;

- recupero delle risorse: con l’obbligo per gli Stati di restituire i capitali finanziari ed i beni patrimoniali che costituiscono il provento della corruzione e con l’impegno ad adottare misure per la confisca dei beni provenienti dall’attività illecita;

- assistenza tecnica e scambio di informazioni: con l’assistenza reciproca in materia di indagine e assistenza legale, lo scambio di informazioni e lo sviluppo di metodologie e strategie comuni;

- attuazione della Convenzione: con la previsione di conferenze fra gli Stati per facilitare il raggiungimento degli obiettivi prefissati e verificare il rispetto degli impegni assunti.

Quando tutti gli Stati avranno ratificato la convenzione la lotta all’evasione avrà fatto veramente un gran balzo in avanti, ma la strada è ancora molto lunga...

3 A livello europeo le esigenze perseguite dalla Convenzione ONU del 2003 sono state attuate a mezzo di numerose iniziative degli organi a dimensione sopranazionale esistenti, cioè il Consiglio d’Europa, l’Unione Europea e l’OCSE (Organizzazione per la cooperazione e lo sviluppo economico).

Il Consiglio d’Europa è un organismo, con sede a Strasburgo, che raggruppa la quasi totalità delle nazioni europee (attualmente, �� su �7) ed è finalizzato alla attuazione della Convenzione europea per la salvaguardia dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali (omologa della Dichiarazione universale dei diritti dell’uomo), anche mediante la Corte Europea dei Diritti dell’Uomo.

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Poiché la corruzione costituisce una minaccia per lo Stato di diritto, il sistema democratico e la completa realizzazione dei diritti fondamentali dell’uomo, il Consiglio d’Europa ha, in primo luogo, adottato dei testi normativi comuni cui i singoli Stati sono obbligati ad adeguarsi, in particolare la Convenzione penale sulla corruzione, la Convenzione civile sulla corruzione, i Venti principi direttori per la lotta contro la corruzione, la Raccomandazione sui codici di condotta per gli agenti pubblici, la Raccomandazione sulle regole comuni contro la corruzione nel finanziamento dei partiti e delle campagne elettorali.

In secondo luogo, il Consiglio d’Europa ha istituito un organo di controllo e aiuto per l’attività degli Stati, il Gruppo degli Stati contro la corruzione – GRECO, che ha il compito di migliorare la capacità dei suoi membri nella lotta contro la corruzione, identificare le lacune normative degli ordinamenti nazionali, controllare il recepimento nelle legislazioni nazionali delle indicazioni contenute nei testi normativi generali adottati, promuovere lo scambio di esperienze e di collaborazione.

Al gruppo possono aderire anche altre nazioni e, infatti, vi hanno successivamente aderito gli Stati Uniti d’America.

4 L’Unione Europea, attualmente composta da 27 Paesi, ha posto anch’essa molta attenzione alla lotta alla corruzione, emanando direttive cogenti per gli Stati (i quali, in base al Trattato istitutivo dell’Unione, sono tenuti a rispettare ed applicare le disposizioni adottate dagli organi europei anche se in contrasto con le normative nazionali) per la salvaguardia degli interessi finanziari dell’Unione fondata, come è noto, su un mercato comune ed una libertà di circolazione di persone e di capitali, secondo le regole della libera concorrenza.

Ricordiamo, fra le più importanti, la Convenzione sulla lotta contro la corruzione nella quale sono coinvolti funzionari delle comunità europee o degli Stati membri dell’Unione europea e la Direttiva relativa alla tutela penale degli interessi finanziari della Comunità che costituiscono strumenti vincolanti per gli Stati membri ai fini della individuazione di figure comuni di illecito penale ed impongono l’obbligo di incriminazione dei funzionari coinvolti nella corruzione, sia nazionali che stranieri; questi atti si preoccupano di dettare indicazioni comuni anche contro il riciclaggio del danaro proveniente dalle attività delittuose.

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La lotta alla corruzione in Europa e in Italia 99

Infine, l’Unione Europea si è determinata ad aderire direttamente alla Convenzione delle Nazioni Unite contro la Corruzione del 2003, indipendentemente dalle iniziative degli Stati membri, così da superare gli effetti della eventuale mancata ratifica da parte di questi, a sottolineare che l’interesse a combattere la corruzione supera il confine dei singoli Stati e coinvolge tutto il mercato comune.

5 L’Organizzazione per la Cooperazione e lo Sviluppo Economico-OCSE/OECD/OCDE è nata per promuovere la cooperazione e il coordinamento in campo economico fra le nazioni europee nel periodo successivo alla seconda guerra mondiale ma ha poi allargato i suoi orizzonti aprendosi all’ingresso nell’organizzazione di molti stati extra-europei (quali Stati Uniti, Canada, Giappone, Nuova Zelanda, Messico ecc.) man mano che l’economia degli Stati fondatori si sviluppava ed assumeva dimensioni intercontinentali, adeguandosi ai mutati tempi ed alla “globalizzazione” dell’economia.

Per il raggiungimento dei suoi obiettivi, l’OCSE ha promosso la sottoscrizione della Convenzione sulla lotta alla corruzione di pubblici ufficiali stranieri nelle transazioni economiche internazionali; in questo atto è stato dettato lo standard di definizione del reato di corruzione del pubblico funzionario estero e stabilita la responsabilità delle persone giuridiche beneficiare dell’attività corruttiva, con la previsione di sanzioni penali ed amministrative; la convenzione contiene, inoltre, disposizioni in materia di riciclaggio di danaro, di mutua assistenza legale, di disciplina contabile e dei bilanci, così da rendere più difficile l’occultamento del pagamento delle tangenti.

Anche questa convenzione è aperta all’adesione di altri Stati non membri OCSE ed attualmente i Paesi firmatari sono 3�.

Per il controllo del rispetto degli impegni assunti dagli Stati firmatari, è stato istituito un Gruppo di lavoro (WGB) che effettua una costante azione di monitoraggio e periodiche missioni di controllo nei singoli Paesi.

L’OCSE ha anche emanato disposizioni comuni per la regolamentazione delle attività economiche al fine di prevenire i fenomeni di corruzione; in particolare, la recente Raccomandazione sul rafforzamento dell’integrità negli appalti pubblici, ove maggiormente si verificano ipotesi

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di corruzione, con grave danno per l’economia degli Stati, intendendo per integrità l’utilizzazione dei finanziamenti, delle risorse, delle attività e delle potestà in modo conforme alle finalità ufficiali e tenendo conto dell’interesse pubblico.

6 Possiamo dire, quindi, che i Paesi europei sono molto attivi, a partire dai primi anni novanta, nella lotta alla corruzione e nel coordinamento delle attività e delle risorse dei vari Stati, anche coinvolgendo gli Stati extra-europei più importanti nello scenario economico mondiale.

Il sistema europeo non presenta, in linea di massima, lacune negli strumenti a disposizione dei singoli Stati e nel loro coordinamento; tuttavia problemi operativi sorgono a causa del ritardo di alcuni Paesi nel recepimento delle disposizioni dettate dagli organismi sopranazionali e nella incompleta attuazione degli impegni assunti.

Sotto questo profilo va esaminata la situazione dell’Italia.

II La realtà italiana1 In Italia, nei primi anni novanta, una complessa inchiesta

giudiziaria denominata “mani pulite” portò alla luce un ampio sistema di corruzione diffuso nel mondo politico e finanziario, sia a livello locale che statale, che coinvolgeva direttamente anche i partiti politici, finanziati illegittimamente con le tangenti che ogni imprenditore era costretto a versare se voleva lavorare con la pubblica amministrazione.

La corruzione, cioè, era stata elevata a sistema, divenendo una pratica usuale ed accettata da tutti, per scelta o per rassegnazione.

L’inchiesta toccò i vertici degli apparati dello Stato ed ebbe pesanti ripercussioni sul tessuto politico e istituzionale, provocando l’uscita di scena dei partiti politici maggiori e dei loro capi ed una vera rivoluzione non cruenta, con l’emergere di nuove formazioni politiche che assunsero il potere vincendo le elezioni che seguirono a quello stravolgimento, dando l’avvio alla cosiddetta “seconda repubblica”.

Il collasso di tale sistema di corruzione fu dovuto, secondo alcuni economisti, sia al fatto che la corruzione aveva ormai raggiunto un limite insuperabile, quello del debito pubblico, e non poteva più espandersi sia all’appartenenza dell’Italia all’Unione europea ed al sistema monetario dell’euro, con gli obblighi che ne derivavano; il grande consenso

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popolare, invece, fu dovuto oltre che a ragioni morali alla grande pressione fiscale che dalla corruzione era causata (atteso che il peso della tangente viene scaricato dall’imprenditore sulla stessa amministrazione attraverso l’aumento del costo finale dell’opera o del servizio) ed alla bassa qualità delle opere e dei servizi pubblici offerti.

Purtroppo, nessun intervento strutturale è stato adottato in sede legislativa e amministrativa per impedire il ritorno di quel sistema criminale, avendo ritenuto i Governi che si sono succeduti alla guida del Paese che gli strumenti ordinari a disposizione fossero sufficienti, in coordinamento con la normativa speciale per la repressione della criminalità organizzata.

Cosa che non è stata, perché i capi della mafia e delle altre organizzazioni criminali che si erano impadronite del sistema degli appalti pubblici non hanno abbandonato il campo, riorganizzandosi ed evolvendosi, così da affinare strumenti di corruzione più difficili da scoprire (secondo il principio naturale dell’evoluzione della specie...).

Questa “restaurazione” del sistema è stata favorita, oltre cha dalla mancanza di una legislazione speciale, dalle caratteristiche della struttura ordinamentale italiana, caratterizzata da notevole discrezionalità regolativa locale a fronte di un complesso e poco chiaro quadro normativo generale, più volte riformato e disarticolato dai governi di opposto colore che si sono succeduti nel giro di pochi anni.

In quest’ultimo periodo, è stato riscontrato un incremento significativo dell’attività criminale verso la indebita percezione di erogazioni di danaro dello Stato e della Comunità europea destinato a sorreggere e promuovere particolari settori dell’attività imprenditoriale o sociale, ad esempio per gli aiuti all’agricoltura o per l’assistenza sanitaria.

In questa situazione non proprio incoraggiante, l’apparato istituzionale della Nazione sembra essere in ritardo nell’adozione di nuovi strumenti per combattere le evolute forme di corruzione che si stanno sviluppando.

2 L’Italia non ha ancora ratificato la Convenzione ONU di Merida del 2003 ma, nel rispetto degli impegni assunti in sede europea, aveva istituito un organismo indipendente per la lotta alla corruzione: l’Alto Commissario per la prevenzione e il contrasto della corruzione e delle altre forme di illecito all’interno della pubblica amministrazione (art. � legge n. 3 del 2003).

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Questo Commissario era dotato di una certa indipendenza, in quanto scelto fra alte personalità dello Stato dal Presidente del Consiglio dei Ministri, e poteva svolgere indagini, anche di natura conoscitiva, d’ufficio o su richiesta della pubblica amministrazione, per accertare l’esistenza, le cause e le concause dei fenomeni di corruzione e di illecito o di pericolo di condizionamento da parte di organizzazioni criminali all’interno dell’amministrazione; poteva, altresì, promuovere analisi e studi della corruzione al fine di valutare l’adeguatezza del quadro normativo e formulare proposte al Governo e poteva, infine, monitorare le procedure contrattuali e di appalto per prevenire danni allo Stato.

Per esercitare i suoi compiti, il Commissario poteva accedere a tutti i documenti e banche dati della pubblica amministrazione ed assumere le informazioni presso i privati a mezzo di un apposito nucleo della Guardia di Finanza (Nucleo speciale tutela pubblica amministrazione); oltre a presentare denunzie all’Autorità Giudiziaria e Contabile per i fatti emersi dalle indagini, il Commissario doveva presentare ogni sei mesi una relazione al Presidente del Consiglio che ne riferiva alle Camere.

Dopo pochi anni di attività, con risorse economiche molto limitate, l’Alto Commissario è stato soppresso con il decreto-legge 2� giugno 2008 n. ��2 (art. �8), nell’ambito della manovra di riduzione degli organismi collegiali e di eliminazione delle duplicazioni di strutture amministrative, attuata per finalità di bilancio dall’attuale governo.

3 I compiti del Commissario sono stati affidati ad un apposito Servizio (Servizio Anticorruzione e Trasparenza) istituito presso il Dipartimento della Funzione Pubblica della Presidenza del Consiglio con decreto del Presidente del Consiglio in data 28 ottobre 2008; tale Servizio dovrà raggruppare e coordinare il lavoro svolto da tutti gli altri soggetti pubblici istituzionalmente competenti in materia di trasparenza e prevenzione della corruzione, supportare l’azione delle pubbliche amministrazioni impegnate a contrastare la corruzione, effettuare analisi, studi e indagini sugli illeciti nella pubblica amministrazione, realizzare una mappa dei fenomeni corruttivi all’interno della pubblica amministrazione, un piano annuale nazionale per la trasparenza dell’azione amministrativa, proposte di linee-guida di comportamento per il Ministero per la pubblica amministrazione e l’innovazione (in

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buona sostanza le stesse competenze e gli stessi scopi del soppresso Alto Commissario).

L’intervento del Legislatore ha destato molta sorpresa e preoccupazione, anche a livello europeo (il GRECO ha diramato una nota formale di rammarico, richiamando le autorità italiane al rispetto degli obblighi assunti con la partecipazione al Gruppo ed al Consiglio d’Europa), ed effettivamente la ridotta sfera di attività e di autonomia potrebbe compromettere il raggiungimento della finalità della lotta alla corruzione che il Governo non ha inteso abbandonare con la modifica normativa, come dimostrato dal decreto 28 ottobre 2008 che ha istituito il nuovo Servizio; certo non è incoraggiante pensare che esigenze di bilancio possano prevalere sulla necessità di combattere un fenomeno che ha, fra i suoi effetti più rilevanti, lo scardinamento dell’economia nazionale e la dispersione delle risorse imprenditoriali, con conseguenze finanziarie sul lungo periodo ben più negative del risparmio conseguito al momento.

4 Occorre un intervento deciso per far risalire l’Italia nella classifica delle Nazioni per l’impegno ed i risultati della lotta alla corruzione nella pubblica amministrazione (attualmente è negli ultimi posti fra gli Stati europei e fra quelli maggiormente industrializzati); questo intervento dovrà comportare la ratifica della Convenzione ONU di Merida e la precisa applicazione delle iniziative assunte dagli organismi europei che sopra abbiamo esaminato.

Per ora, in Italia sembra prevalere l’idea che “L’etica è bella ma gli affari sono affari”, come ha detto F. Vince nell’opera The State and the Civil Society in the Fight against Corruption.

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Cooperación jurídica internacional y combate de la corrupción: experiencia europeaLuis Banciella Rodríguez-MiñónAbogado del Estado.

Sumario: I Derecho interno – II Cooperación en el ámbito de la Unión Europea

Con objeto de abordar el tema propuesto, parece necesario, a juicio de quien suscribe, que se aborde, primeramente, los aspectos puramente del Derecho interno para, explicitados los mismos, analizar la coopera-ción jurídica entre los países del ámbito de la Unión Europea.

A tal efecto, procederemos a continuación a exponer los tipos penales del Derecho español directamente relacionados con la corrup-ción (cuya regulación jurídica se contiene en los artículos �0�-��� del Código Penal español, aprobado por L.O. �0/�99�, de 23 de noviembre); a continuación aludiremos someramente a los aspectos procesales — contenidos en nuestra LECr. — que facilitan la persecución de estos delitos y finalizaremos la exposición del Derecho español aludiendo a los aspectos más relevantes de la defensa de funcionarios, según se regula en la Ley �2/�997, de 27 de noviembre, de Asistencia Jurídica al Estado e Instituciones Públicas y Reglamento Jurídico del Estado, aprobado por R.D. 997/2003, de 2� de julio, y de desarrollo de la anterior.

I Derecho internoA) Código Penal español

En el ámbito del Derecho español, los tipos previstos dentro de los delitos de corrupción se regulan en el Título XIX (Delitos contra la Administración Pública) del Libro II (Delitos y sus penas) del Código Penal de �99�, debiendo referirnos brevemente a los siguientes:

A) Prevaricación y otros comportamientos injustos• Artículo �0�: [Prevaricación administrativa] “A la autoridad

o funcionario público que, a sabiendas de su injusticia, dictare una

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resolución arbitraria en un asunto administrativo se le castigará con la pena de inhabilitación especial para empleo o cargo público por tiempo de siete a diez años”.

• Artículo �0�: [Nombramientos ilegales] “A la autoridad o funcio-nario público que, en el ejercicio de su competencia y a sabiendas de su ilegalidad, propusiere, nombrare o diere posesión para el ejercicio de un determinado cargo público a cualquier persona sin que concurran los requisitos legalmente establecidos para ello, se le castigará con las penas de multa de tres a ocho meses y suspensión de empleo o cargo público por tiempo de seis meses a dos años”.

• Artículo �0�: [Aceptación de nombramiento ilegal] “La misma pena de multa se impondrá a la persona que acepte la propuesta, nombramiento o toma de posesión mencionada en el artículo anterior, sabiendo que carece de los requisitos legalmente exigibles”.

B) Abandono de destino y omisión del deber de perseguir delitos• El artículo �07 define el tipo como sigue: “1. A la autoridad o

funcionario público que abandonare su destino con el propósito de no impedir o no perseguir cualquiera de los delitos comprendidos en los Títulos XXI, XXII, XXIII y XXIV se le castigará con la pena de prisión de uno a cuatro años e inhabilitación absoluta para empleo o cargo público por tiempo de seis a diez años” (delitos contra la Constitución, contra el orden público, traición y contra la paz o independencia del Estado y relativos a la defensa nacional y delitos contra la comunidad internacional).

• El artículo �08, por su parte, establece otro tipo para “La auto-ridad o funcionario que, faltando a la obligación de su cargo, dejare intencionadamente de promover la persecución de los delitos de que tenga noticia o de sus responsables...”

• Y el artículo �09 sanciona “A las autoridades o funcionarios públi-cos que promovieren, dirigieren u organizaren el abandono colectivo y manifiestamente ilegal de un servicio público”.

C) Desobediencia y denegación de auxilio• Artículo ��0: Desobediencia: “�. Las autoridades o funcionarios

públicos que se negaren abiertamente a dar el debido cumplimiento a

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resoluciones judiciales, decisiones u órdenes de la autoridad superior, dictadas dentro del ámbito de su respectiva competencia y revestidas de las formalidades legales...”

• Artículo ��2: Denegación de auxilio: “1. El funcionario público que, requerido por autoridad competente, no prestare el auxilio debido para la Administración de Justicia u otro servicio público...”

D) De la infidelidad en la custodia de documentos y la violación de secretos• Artículo ��3: [Sustraer, destruir, inutilizar u ocultar documen-

tos] “La autoridad o funcionario público que, a sabiendas, sustrajere, destruyere, inutilizare u ocultare, total o parcialmente, documentos cuya custodia le esté encomendada por razón de su cargo...”

• Artículo ��7: “La autoridad o funcionario público que revelare secretos o informaciones de los que tenga conocimiento por razón de su oficio o cargo y que no deban ser divulgados...”

E) CohechoEs éste, sin lugar a dudas el tipo más importante de los que re-

gula el Código Penal atinente a la materia de la que nos ocupamos, la corrupción, debiendo mencionarse los siguientes artículos de nuestro texto legal:

• 419 (tipo general): “La autoridad o funcionario público que, en provecho propio o de un tercero, solicitare o recibiere, por sí o por persona interpuesta, dádiva o presente o aceptare ofrecimiento o promesa para realizar en el ejercicio de su cargo una acción u omisión constitutivas de delito...”

• 420: “La autoridad o funcionario público que, en provecho propio o de un tercero, solicite o reciba, por sí o por persona interpuesta, dádiva o promesa por ejecutar un acto injusto relativo al ejercicio de su cargo que no constituya delito, y lo ejecute...”

• 421: “Cuando la dádiva solicitada, recibida o prometida tenga por objeto que la autoridad o funcionario público se abstenga de un acto que debiera practicar en el ejercicio de su cargo...”

• 425: “1. La autoridad o funcionario público que solicitare dádiva o presente o admitiere ofrecimiento o promesa para realizar un acto propio de su cargo o como recompensa del ya realizado...”

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• 426: “La autoridad o funcionario público que admitiere dádiva o regalo que le fueren ofrecidos en consideración a su función o para la consecución de un acto no prohibido legalmente...”

• 427: “Quedará exento de pena por el delito de cohecho el particular que haya accedido ocasionalmente a la solicitud de dádiva o presente realizada por autoridad o funcionario público y denunciare el hecho a la autoridad que tenga el deber de proceder a su averiguación, antes de la apertura del correspondiente procedimiento, siempre que no hayan transcurrido más de diez días desde la fecha de los hechos”.

Debemos tener presente pues, que para que se cometa cohecho, han de concurrir las siguientes circunstancias:

- Acción típica: El C.P. para referirse a las acciones que pueden dar lugar a la apreciación de este delito emplea los términos solicitar, recibir dádivas o presentes o aceptar ofrecimiento o promesa. Las acciones típicas de este tipo demandan la intervención de un tercero, distinto del funcionario. Sin embargo, respecto a cada una de ellas, la intensidad de la participación del otro sujeto es distinta, de lo cual dependerá la punición.

- Medios para obtener la resolución del funcionario: dádivas o presentes. En este sentido, mientras que en el ámbito propio del delito de cohecho tendrían cabida la solicitud o recepción de ventajas de naturaleza material, cuya obtención suponga una objetiva y mesurable mejora de la situación económica del funcionario (como por ejemplo, la entrega de una cantidad de dinero, la prestación de un servicio valorable econó-micamente, el otorgamiento de un préstamo facilitando las condiciones de la devolución, la cesión de un coche, proporcionar un empleo en el que se gane más o incluso facilitar un empleo a un tercero, casos, todos ellos, analizados por el Tribunal Supremo), por el contrario, quedarían relegadas al ámbito del delito del tráfico de influencias el resto de ventajas de carácter inmaterial y subjetivas. Así por ejemplo, la conducta de un funcionario que emite una resolución que favorece al particular o a otro funcionario que ha ejercido sobre él influencias con la finalidad de asegurar un posible ascenso — si el que influyó sobre él era un superior jerárquico.

- El objeto de la acción requiere que el acto constitutivo de delito se realice en el ejercicio del cargo. La contraprestación ofrecida por el funcionario en contrapartida a las dádivas o presentes debe ser, por tanto, un acto

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para el que es genéricamente competente, debe estar comprendido entre sus competencias, cuanto menos, de hecho. De resultar completamente ajeno a las facultades legalmente asignadas al funcionario, el Tribunal Supremo ha considerado excluido el delito de cohecho a favor del delito de estafa (STS 29 de febrero de 1993).

- Elemento subjetivo: el funcionario o autoridad que solicita, recibe o acepta la promesa u ofrecimiento de dádivas o presentes a cambio de la realización, en el ejercicio de sus funciones, de una acción u omisión delictiva debe, para responder del delito de cohecho, actuar dolosamente. Es decir, el funcionario ha de conocer que solicita o acepta una dádiva que no le es debida y, además, que condiciona su recepción a la práctica de una acción u omisión constitutiva de delito.

- Consumación: se produce cuando la declaración de voluntad del autor llega a conocimiento de la otra parte, o bien cuando se alcanza el acuerdo entre el funcionario y el particular, aunque, por ejemplo, no se haya concretado definitivamente el “quantum” de la dádiva o la precisa forma en que va a revestir la acción u omisión del delito de cohecho (STS 16 de marzo de 1998).

F) Tráfico de influencias• El artículo 428 del C.P. lo define como aquél en que: “El funcionario público

o autoridad que influyere en otro funcionario público o autoridad prevalién-dose del ejercicio de las facultades de su cargo o de cualquier otra situación derivada de su relación personal o jerárquica con éste o con otro funcionario o autoridad para conseguir una resolución que le pueda generar directa o indirectamente un beneficio económico para sí o para un tercero”.

G) Malversación de caudales públicosSobre este tipo, se han de destacar los siguientes preceptos:• 432.1: “La autoridad o funcionario público que, con ánimo de lucro, sus-

trajere o consintiere que un tercero, con igual ánimo, sustraiga los caudales o efectos públicos que tenga a su cargo por razón de sus funciones.”

• 433.1 (destinarlo a usos ajenos a la función pública): “La autoridad o funcionario público que destinare a usos ajenos a la función pública los caudales o efectos puestos a su cargo por razón de sus funciones...”

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• 434 (dar una aplicación privada a los bienes de la Administración): “La autoridad o funcionario público que destinare a usos ajenos a la función pública los caudales o efectos puestos a su cargo por razón de sus funciones...”

H) Fraudes y exacciones ilegales• 436: “La autoridad o funcionario público que, interviniendo por razón

de su cargo en cualquiera de los actos de las modalidades de contratación pública o en liquidaciones de efectos o haberes públicos, se concertara con los interesados o usase de cualquier otro artificio para defraudar a cualquier ente público...”

• 437: “La autoridad o funcionario público que exigiere, directa o indirectamente, derechos, tarifas por aranceles o minutas que no sean debidos o en cuantía mayor a la legalmente señalada...”

I) Negociaciones y actividades prohibidas a los funcionarios y abusos en el ejercicio de su función

• 439: “La autoridad o funcionario público que, debiendo informar, por razón de su cargo, en cualquier clase de contrato, asunto, operación o actividad, se aproveche de tal circunstancia para forzar o facilitarse cualquier forma de participación, directa o por persona interpuesta, en tales negocios o actuaciones...”

• 441 (realización de actividad profesional o de asesoramiento): “La autoridad o funcionario público que, fuera de los casos admitidos en las Leyes o Reglamentos, realizare, por sí o por persona interpuesta, una actividad profesional o de asesoramiento permanente o accidental, bajo la dependencia o al servicio de entidades privadas o de particulares, en asunto en que deba intervenir o haya intervenido por razón de su cargo, o en los que se tramiten, informen o resuelvan en la oficina o centro directivo en que estuviere destinado o del que dependa...”

• 442 (uso de secreto o de información privilegiada): “La autoridad o fun-cionario público que haga uso de un secreto del que tenga conocimiento por razón de su oficio o cargo, o de una información privilegiada, con ánimo de obtener un beneficio económico para sí o para un tercero...”

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J) De los delitos de corrupción en las transacciones comerciales internacionales• 445: 1: “Los que con dádivas, presentes, ofrecimientos o promesas,

corrompieren o intentaren corromper, por sí o por persona interpuesta, a las autoridades o funcionarios públicos extranjeros o de organizaciones internacionales en el ejercicio de su cargo en beneficio de éstos o de un tercero, o atendieran a sus solicitudes al respecto, con el fin de que actúen o se abstengan de actuar en relación con el ejercicio de funciones públicas para conseguir o conservar un contrato u otro beneficio irregular en la realización de actividades económicas internacionales, serán castigados con las penas previstas en el artículo 423, en sus respectivos casos”.

B) Aspectos procesales relevantes en la lucha contra la corrupciónEs necesario dejar claro que la comisión de estos delitos — más

arriba descritos —, se lleva a cabo de forma oculta o privada, es decir, que es consustancial a los mismos su falta de proyección pública, al menos aparentemente. En consecuencia, son fundamentales las diligencias que adopta la policía con autorización judicial, en orden a la obtención de pruebas con que posteriormente incriminar a los presuntos culpables.

En consecuencia con lo expuesto, la LECr. otorga un papel pre-ponderante a la Policía Judicial, que, según el art. 282 de la misma, es la encargada de “averiguar los delitos públicos que se cometieren en su territorio o demarcación; practicar, según sus atribuciones, las diligencias necesarias para comprobarlos y descubrir a los delincuentes, y recoger todos los efectos, instrumentos o pruebas del delito de cuya desaparición hubiere peligro, poniéndolos a disposición de la Autoridad judicial”; ahora bien, los funcionarios de la Policía Judicial no sólo actúan a instancias y bajo la autorización de la Autoridad Judi-cial, sino también del Ministerio Fiscal, tal y como resulta del art. 287 de la LECr., debiendo poner en conocimiento en un plazo máximo de 2� horas las diligencias que hubieren practicado, bien de la Autoridad Judicial, bien del Ministerio Fiscal, bajo apercibimiento de sanción, según dispone el art. 29� LECr. Es preciso hacer constar que cuando el Juez de Instrucción procediere a formar sumario cesarán las diligencias de prevención que estuviere practicando cualquiera Autoridad o agente de policía; debiendo éstos entregarlas en el acto a dicho Juez, así como los efectos relativos al delito que se hubiesen recogido, y poniendo a su disposición a los detenidos, si los hubiese (art. 28� LECr.).

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¿Cuáles son los principales medios — procesalmente hablando — con que contamos para el combate de la corrupción? Además del los medios personales citados (Autoridad Judicial, Ministerio Fiscal y Policía Judicial), debemos mencionar dos instrumentos esenciales:

�º. El secreto de sumario. En efecto, el art. 30� LECr. señala que “Las diligencias del sumario serán secretas hasta que se abra el juicio oral, con las excepciones determinadas en la presente Ley”. Este es un medio muy eficaz que permite realizar una adecuada instrucción del caso por parte de las autoridades competentes, evitando los riesgos que se producirían de no ser las diligencias secretas (vgr. Sustracción de los presuntos criminales a la acción de la Justicia).

2º. La posibilidad de solicitar la intervención de las comunicaciones, con especial importancia de las telefónicas. Así es, el art. �79 LECr. se refiere a este eficaz medio en los siguientes términos:

2. Asimismo, el Juez podrá acordar, en resolución motivada, la intervención de las comunicaciones telefónicas del procesado, si hubiere indicios de obtener por estos medios el descubrimiento o la comprobación de algún hecho o circunstancia importante de la causa.

3. De igual forma, el Juez podrá acordar, en resolución motivada, por un plazo de hasta tres meses, prorrogable por iguales períodos, la observación de las comunicaciones postales, telegráficas o telefónicas de las personas sobre las que existan indicios de responsabilidad criminal, así como de las comunicaciones de las que se sirvan para la realización de sus fines delictivos.

Repárese en la importancia del secreto del sumario para la debida efica-cia de la diligencia que se acaba de citar, máxime en unos delitos como los que contemplamos, en los que la serie de tratos que configuran, como elemento esencial, el tipo (vgr. cohecho o trafico de influencias), hace necesario que la labor previa de investigación por la Policía Judicial se haga con la mayor discreción posible en aras a asegurar la efectividad de la instrucción.

Pues bien, de esta labor previa de investigación, la Policía Judicial levanta — si se dan indicios racionales de criminalidad —, los correspon-dientes atestados, que tienen el valor de denuncias a todos los efectos legales (art. 297 LECr.).

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C) Defensa de funcionariosLa Abogacía del Estado, asume la representación y defensa de

las autoridades y empleados públicos cualquiera que sea su posición procesal, cuando los procedimientos se sigan por actos u omisiones relacionados con el cargo, según establece nuestra norma reguladora, la Ley �2/�997, de 27 de noviembre de Asistencia Jurídica del Estado e Instituciones Públicas. Añade el artículo �� del Real Decreto 997/2003, de 2� de julio, por el que se aprueba el Reglamento del Servicio Jurídico del Estado, que tal representación y defensa se extiende también al caso de que hubieran cumplido orden de autoridad competente.

Ahora bien, para que esto suceda, es necesario que se den una serie de requisitos (art. �� R.D. 997/2003):

�º. Que la autoridad o funcionario público no prefiera comparecer en el procedimiento bajo su propia representación y defensa y se enten-derá que se renuncia a la asistencia jurídica por parte del Abogado del Estado desde el momento en que la autoridad, funcionario o empleado público comparezca o se dirija al órgano jurisdiccional mediante cual-quier otra representación.

2º. Para asumir la representación y defensa de autoridades, fun-cionarios y empleados públicos, los Abogados del Estado deberán estar previamente habilitados por resolución expresa del Abogado General del Estado-Director del Servicio Jurídico del Estado.

3º. La habilitación será acordada previa propuesta razonada del órgano del que dependa la autoridad, funcionario o empleado público de que se trate, en la que deberán contenerse los antecedentes impres-cindibles para que la Abogacía General del Estado-Dirección del Servicio Jurídico del Estado pueda verificar la concurrencia de los requisitos expuestos en los apartados anteriores.

Además, es preciso tener presente una serie de supuestos especiales (arts. �� y �8 del R.D. 997/2003):

a) En casos de detención, prisión o cualquier otra medida cautelar por actos u omisiones relacionados con el ejercicio del cargo o habiendo cumplido orden de la autoridad competente, las autoridades, funciona-rios o empleados públicos podrán solicitar directamente de la Abogacía del Estado correspondiente ser asistidos por el Abogado del Estado.

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b) Cuando se siga procedimiento contra una autoridad, funcionario o empleado público español ante un tribunal extranjero, podrá ser defendido por un Abogado del Estado en los términos que acabamos de describir. Todo ello sin perjucio, obviamente, de que el funcionario pueda comparecer en el proceso mediante su propia representación y defensa.

c) En el caso de que el Abogado del Estado advirtiese la existen-cia de intereses contrapuestos entre el Estado, organismos o entidades públicas cuya representación legal o convencionalmente ostenta y sus autoridades, funcionarios o empleados, se abstendrá de actuar en representación de éstos, pondrá tal circunstancia en conocimiento de la Abogacía General del Estado-Dirección del Servicio Jurídico del Estado y se atendrá, en cuanto a las sucesivas actuaciones, a lo que el centro directivo disponga.

Por último, no podemos dejar de hacer constar que la Abogacía del Estado no asume exclusivamente una posición pasiva en la defensa de funcionarios, sino, antes bien, igualmente activa por expresa habili-tación del art. �9 del R.D. 997/2003, que prevé el ejercicio de acciones por el Abogado del Estado en nombre de autoridades, funcionarios o empleados públicos, lo que requiere la autorización expresa del Ministro de Justicia, a propuesta razonada del titular del departamento, presidente o director general del organismo o entidad pública de quien dependa la persona en cuyo nombre se pretendan ejercitar dichas acciones y pre-vio informe de la Abogacía General del Estado-Dirección del Servicio Jurídico del Estado.

Concluir este apartado señalando que el compromiso asumido por la Abogacía del Estado en la defensa de funcionarios es firme, es decir, que incluso en aquellos supuestos en que se tiene constancia de la culpabilidad del mismo se continúa con su defensa. En tal sentido, hacer igualmente constar que obtenida una sentencia condenatoria firme del funcionario público, como quiera que la pena lleva aparejada la inhabilitación del mismo para el desempeño de cargo público por el tiempo establecido en el correspondiente tipo penal, dicha circunstancia conlleva que en el ámbito de la Administración General del Estado no se incoe en vía administrativa un procedimiento disciplinario que, como excepción al principio del non bis in idem se permite sustanciar con los funcionarios públicos, dada la especial reprochabilidad de su conducta.

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II Cooperación en el ámbito de la Unión Europea¿Cómo es posible que colaboremos en la persecución de los

delitos de corrupción en el ámbito de la Unión Europea? La respuesta, aun siendo obvia, exige hacer una brevísima referencia a la habilitación normativa de tal cooperación. Así es, España se adhirió a la actual Unión Europea — antes Comunidad Económica Europea — merced al Acta de Adhesión suscrita en Madrid el �2 de junio de �98� (con efectos a partir de �º de enero de �98�), y en virtud de las previsiones contenidas en la Constitución española de 27 de diciembre de �978 (arts. 93 y 9�) que prevén la adhesión de España a esta organización supranacional que ha supuesto, evidentemente, cesión de soberanía.

Por tanto, con pleno respeto al principio de territorialidad de las leyes penales, consagrado en el art. 8.� CC (“las leyes penales… obligan a todos los que se hallen en territorio español”), y teniendo siempre presente determinadas excepciones a la aplicación absoluta de este principio (extradición, sobre la que más adelante volveremos), los Estados de la Unión Europea se han provisto de una serie de instrumentos norma-tivos con el fin de hacer efectivo el principio de justicia universal en la persecución de determinados delitos.

No existe en el ámbito de la Unión Europea una jurisdicción penal comunitaria, a diferencia de lo que sucede, por ejemplo, y en relación a determinados delitos, en el seno de la Organización de Naciones Unidas (O.N.U.) con la Corte Penal Internacional de La Haya, que ha supuesto un impulso al principio de justicia universal, ejerciendo una jurisdicción subsidiaria respecto de los Tribunales nacionales sobre los crímenes de guerra, crímenes contra la humanidad y genocidios. En el ámbito de la Unión Europea, a falta de una jurisdicción penal comunitaria, el Tratado de Niza, de 2� febrero 200�, refuerza la cooperación policial y judicial en materia penal a través de los siguientes instrumentos:

1º. Eurojust (aprobado por Decisión 2003/��9/JAI). La Unión Europea (UE) desea intensificar la cooperación en la lucha contra la delincuencia. Para ello, el Consejo creó Eurojust, órgano de la Unión competente en investigaciones y actuaciones relativas a la delincuencia grave que afecta al menos a dos Estados miembros.

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Composición, competencias y tareas de Eurojust Por la presente Decisión, Eurojust se constituye como órgano de la Unión

dotado con personalidad jurídica propia. Cada Estado miembro debe nombrar a un miembro nacional de Eurojust que tendrá la calidad de fiscal, juez o policía (este último debe tener competencias equivalentes a las de juez o fiscal).

Eurojust es competente por lo que se refiere a las investigaciones y las actuaciones (en relación con al menos dos Estados miembros) relativas a las formas graves de delincuencia para:

• promover la coordinación entre las autoridades competentes de los distintos Estados miembros;

• facilitar la aplicación de la cooperación judicial internacional y la ejecución de las solicitudes de extradición.

Entre otras cosas, la competencia de Eurojust cubre los tipos de delincuencia y las infracciones de los que es competente Europol (por ej.: terrorismo, tráfico ilícito de estupefacientes, trata de seres humanos, falsificación de monedas, blanqueo de dinero), y además la ciberde-lincuencia, el fraude y la corrupción, el blanqueo de los productos del crimen, la participación en una organización criminal.

Cada Estado miembro podrá nombrar a uno o más corresponsales nacionales (a la luz de las prioridades en materia de lucha contra el terrorismo), que podrían constituir un punto de contacto de la red judicial europea.

Datos de carácter personal Para la realización de sus objetivos, Eurojust debe poder intercam-

biar la información pertinente con las autoridades competentes. A este respecto, debe garantizarse la aplicación de los principios del Convenio del Consejo de Europa de �98� sobre la protección de las personas res-pecto al tratamiento automatizado de los datos de carácter personal.

Eurojust puede solamente tratar los datos relativos a las personas que son objeto de una investigación, las víctimas y los testigos. Los datos sólo se conservan durante el período estrictamente necesario para la conclusión de la actividad de Eurojust.

Relación con otras instancias Con el fin de realizar sus tareas, Eurojust mantiene relaciones

privilegiadas con la Red judicial europea, la Oficina Europea de Lucha

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contra el Fraude (OLAF) y el juez de enlace de los Estados miembros. Además, Eurojust podrá celebrar acuerdos de cooperación con Estados terceros y con las organizaciones u organismos internacionales por medio del Consejo, acuerdos en los que estará previsto el intercambio de información o el traslado de funcionarios.

Disposiciones finales El Consejo y el Parlamento Europeo serán informados periódi-

camente de las actividades realizadas por Eurojust y del estado de la delincuencia en la Unión. En el informe anual dirigido al Consejo, Eurojust puede formular, por medio de su Presidente, propuestas desti-nadas a mejorar la cooperación judicial en materia penal.

2º. Eurorden u orden de detención europea (Decisión marco 2002/�8�/JAI del Consejo de �3 de junio de 2002 relativa a la orden de detención europea y a los procedimientos de entrega entre Estados miembros). En cumplimiento de los compromisos contraídos en el seno de la Unión Europea, se dictó la Ley 3/2003, de �� marzo, sobre la orden europea de detención y entrega y la LO 2/2003, de �� marzo, complementaria de la anterior. La reforma de la LOPJ por LO 2/2003 tiene por objeto atribuir a la Audiencia Nacional la tramitación pasiva de la orden europea de detención y entrega, art.�� LOPJ.

El Consejo Europeo de Tampere invitó a los Estados miembros a convertir el principio del reconocimiento mutuo en la “piedra angular” de un verdadero espacio judicial europeo. La orden de detención europea propuesta por la Comisión tiene por objeto sustituir al sistema actual de extradición imponiendo a cada autoridad judicial nacional (autoridad judicial de ejecución) reconocer, ipso facto, y con controles mínimos, la solicitud de entrega de una persona formulada por la autoridad judicial de otro Estado miembro (autoridad judicial de emisión). Sin embargo los Estados miembros siguen siendo libres para aplicar y concluir acuerdos bilaterales o multilaterales en la medida en que faciliten o simplifiquen los procedimientos. La aplicación de estos acuerdos no debe en ningún caso perjudicar las relaciones con los otros Estados miembros que no forman parte del acuerdo.

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Principios generalesLa decisión define la “orden de detención europea” como cualquier

decisión judicial adoptada por un Estado miembro para la detención o la entrega por otro Estado miembro de una persona a efectos de:

• el ejercicio de actuaciones penales; • la ejecución de una pena; • la ejecución de una medida policial de privación de libertad. La orden será aplicable en los casos de:• una condena definitiva a una pena de cárcel o medida policial

que tenga, al menos, una duración de � meses; • una infracción para la cual una pena de encarcelamiento o una

policial superior a un año esté prevista. A condición de que estén penadas en el Estado miembro de emisión

por una pena de un máximo de al menos tres años, las infracciones que puedan dar lugar a entrega sin control de la doble incriminación de hecho son, entre otras: terrorismo, trata de seres humanos, corrupción, participación en una organización criminal, falsificación de moneda, homicidio, racismo y xenofobia, violación, tráfico de vehículos robados y fraude, incluido el fraude en detrimento de los intereses financieros comunitarios.

Para actos delictivos distintos de los citados, la entrega podrá subordinarse a la condición de que el hecho por el cual se pide la entrega constituya una infracción en aplicación del derecho del Estado miembro de ejecución (regla de la doble incriminación).

Los Estados miembros designarán a las autoridades judiciales competentes de emisión y ejecución en la materia e informarán a la Secretaría General del Consejo.

ProcedimientosGeneralmente la autoridad de emisión comunicará la orden de

detención europea directamente a la autoridad judicial de ejecución. La colaboración con el sistema de información de Schengen (SIS) y con Interpol está prevista.

Todo Estado miembro podrá adoptar las medidas coercitivas nece-sarias y proporcionadas contra una persona buscada. Cuando la persona buscada sea detenida, tendrá derecho a ser informada del contenido

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de la orden así como de contar con la asistencia de un abogado y un intérprete. En cualquier caso, la autoridad de ejecución tendrá derecho a decidir mantener a la persona en detención o a ponerla en libertad pero bajo determinadas condiciones.

A la espera de una decisión, la autoridad de ejecución (con arreglo a las disposiciones nacionales) procederá a oír a la persona afectada. A más tardar en los �0 días siguientes a la detención, la autoridad judicial de ejecución debe tomar una decisión definitiva sobre la ejecución de la orden de detención europea. Posteriormente lo notificará inmediata-mente a la autoridad de emisión.

Todo período de detención relativo a la orden de detención europea deberá deducirse de la duración total de la privación de libertad eventualmente infligida.

La persona interesada deberá expresar su consentimiento a la entrega, de forma irrevocable y habiendo sido plenamente informada. En este caso concreto la autoridad judicial de ejecución debe adoptar una decisión definitiva sobre la ejecución del mandato en un plazo de �0 días tras el consentimiento. Cada Estado miembro sigue siendo libre para establecer que, bajo determinadas condiciones, el consentimiento sea revocable. Al respecto, debe añadir una declaración al acto de adop-ción de la presente decisión indicando las modalidades prácticas que permitan la revocación del consentimiento.

Motivos de denegación de la ejecución y la entregaUn Estado miembro podrá no dar ejecución a la orden europea

de detención si:• ya se pronunció una sentencia definitiva para la misma infracción

y la misma persona (principio “ne bis in idem”); • la infracción está cubierta por una amnistía en el Estado miembro

de ejecución; • la persona interesada no puede ser considerada responsable por

el Estado miembro de ejecución debido a su edad. • En caso de que existan otras condiciones (prescripción de la

acción penal o de la pena en aplicación de las disposiciones del Estado miembro de ejecución, sentencia definitiva por un mismo

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hecho emitida por un país tercero, etc.) el Estado miembro de ejecución puede rechazar dar ejecución a la orden.

No obstante la vigencia e importancia adquirida por los dos instru-mentos normativos a que nos hemos referido, sigue vigente, en el Derecho español, con carácter general para todos los casos (y especialmente para su aplicación fuera del ámbito de la Unión Europea) la extradición activa, regulada por la Lecrim (arts. 82� y ss) y la pasiva — así como la extradición en tránsito a la que se asimila — por la Ley de 2� marzo �98� y el art. �3.3 Const.

3º. Reconocimiento de las resoluciones judiciales en materia penal: fortalecer la confianza mutua Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo: Comunicación sobre el reconocimiento mutuo de las resoluciones judiciales en materia penal y el fortalecimiento de la confianza mutua entre los Estados miembros [COM (200�) �9� final — no publicada en el Diario Oficial].

El reconocimiento mutuo de las decisiones penales entre Estados miembros constituye la base del espacio judicial europeo. En la práctica, la Comisión constata que los Estados se muestran todavía reticentes a reconocer las resoluciones judiciales en materia penal procedentes de otro Estado miembro de la Unión. La presente Comunicación hace un llamamiento en favor del fortalecimiento de la confianza mutua, una necesidad incontrovertible para realizar el espacio judicial europeo.

Reconocimiento mutuo de las resoluciones judiciales definitivasEl reconocimiento de la resolución definitiva de un Estado miembro

implica un entramado de consecuencias en los demás Estados miembros de la Unión. En la presente Comunicación, la Comisión examina varios aspectos básicos importantes para que el reconocimiento mutuo sea efectivo, es decir:

• Información mutua de las condenas. La condición previa al recono-cimiento mutuo es informar de las condenas. En el marco del programa de La Haya, en enero de 200� la Comisión presentó un Libro Blanco en el que se analizan las principales dificultades del intercambio de información relativa a las condenas penales.

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• El principio de “non bis in idem” significa que nadie podrá ser juzgado o condenado penalmente por una infracción respecto de la cual ya haya sido absuelto o condenado en la Unión mediante sentencia penal firme conforme a la ley. Este principio figura en el Artículo �0 de la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea.

• La ejecución de una decisión condenatoria pronunciada por uno de los Estados miembros debe poder ser efectiva en todo el territorio de la Unión. En abril de 200�, la Comisión procedió a una consulta sobre la aproximación, el reconocimiento mutuo y la ejecución de penas en la Unión Europea sobre la base de un Libro Verde [COM (200�) 33�]. Más concretamente, una iniciativa de Austria, Suecia y Finlandia se propone permitir la ejecución de una condena no en el Estado que haya pronunciado la sentencia, sino en el Estado de naciona-lidad o de residencia. Este texto debiera facilitar la aplicación de determinadas disposiciones de la orden de detención europea.

• Reconocimiento mutuo de la inhabilitación. Con frecuencia, las con-denas penales implican la inhabilitación o privación de derechos, como la privación del derecho de trabajar con menores, participar en concursos públicos, conducir, etc. Las inhabilitaciones son de naturaleza considerablemente diversa, pero las dificultades para intercambiar información sobre este tema son más considerables todavía. La Comisión considera que es posible progresar mediante un sistema informático de intercambio de información sobre las condenas penales. En este ámbito la Comisión preconiza adoptar un enfoque sectorial por tipos de delito penal.

4º. Otras disposiciones- Decisión 2005/876/JAI del Consejo, de 21 de noviembre de 2005,

relativa al intercambio de información de los registros de antecedentes penales. La presente decisión tiene como objetivo facilitar el intercambio de informa-ción acerca de los registros de antecedentes penales nacionales. El texto prevé, en particular, la creación de autoridades centrales encargadas de remitir y recibir las solicitudes presentadas a un Estado miembro. Prevé también un plazo para las respuestas.

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- Acción común 96/277/JAI, de 22 de abril de 1996, adoptada por el Consejo en virtud del artículo K.3 del Tratado de la Unión Europea, para la creación de un marco de intercambio de magistrados de enlace que permita mejorar la cooperación judicial entre los Estados miembros de la Unión Europea [Diario Oficial L �0� de 27.0�.�99�]. Los sistemas jurídicos y judiciales de los Estados Miembros son diferentes. El Consejo adopta el presente acto en vistas de incrementar la rapidez y la eficacia de la cooperación judicial, y de contribuir a una mayor comprensión recíproca entre dichos sistemas. La cooperación judicial es el eslabón central en la lucha contra la delincuencia transnacional y el fraude, en particular el cometido en detrimento de los intereses financieros de la Comunidad.

- Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo, de 10 de mayo de 2005, “Programa de La Haya: Diez prioridades para los próxi-mos cinco años. Una asociación para la renovación europea en el ámbito de la libertad, la seguridad y la justicia” [COM (200�) �8� final]. En cuanto a la justicia penal, la aproximación de la legislación y la creación de normas mínimas de procedimiento penal resultan a veces indispensables para reforzar la confianza mutua entre Estados miembros. Eurojust es la clave del desarrollo de la cooperación judicial en materia penal.

Madrid, 3� de octubre de 2008.

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Combate à lavagem de dinheiro e à corrupção – Os frutos da parceria entre o Ministério da Justiça, a Advocacia-Geral da União e outros órgãos do Estado brasileiroRomeu Tuma JuniorSecretário Nacional de Justiça.

Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Corrupção. Ministério da Justiça. Advocacia-Geral da União.

A prisão e a condenação de integrantes de organizações criminosas são medidas necessárias, mas insuficientes para reduzir os nefastos efeitos da criminalidade organizada.

As organizações criminosas, da mesma maneira que as empresas, necessitam de suporte financeiro para suas atividades. Desestruturá-las depende do corte do fluxo de recursos financeiros que as mantém funcionando.

Ao mesmo tempo, os indivíduos que integram essas organizações buscam resultados financeiros de suas ações. O criminoso almeja, em algum momento, usufruir do produto do crime.

O crime, especialmente aquele de natureza organizada, geralmente visa ao lucro. É, portanto, responsabilidade das autoridades governa-mentais impedir que os criminosos obtenham retorno financeiro dessas atividades, garantindo que o crime não compense.

Seguindo na comparação das organizações criminosas com o mundo empresarial, quando os Estados as combatem simplesmente pelo aprisio-namento de seus membros, suas operações geralmente podem seguir sem maiores sobressaltos. Isso ocorre porque o passo natural seguinte desses grupos será iniciar processo de recrutamento para o cargo vacante.

Isso nos leva à conclusão de que, se o fluxo financeiro da organi-zação criminosa não for interrompido ou severamente afetado pela ação repressiva do Estado, o encarceramento dos criminosos não terá efeito relevante em suas atividades.

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Desta forma, modificou-se, em nível mundial, a visão tradicional de focar a punição dos criminosos apenas por meio da prisão, passando-se à efetiva supressão dos seus meios de funcionamento pela privação do seu suporte financeiro.

Esta estratégia tem ganhado corpo no cenário internacional nas duas últimas décadas, aproximadamente, tendo sido plasmada nas prin-cipais convenções internacionais negociadas nesse período. Os textos convencionais têm dedicado especial atenção ao combate à lavagem de dinheiro, às organizações criminosas e à corrupção.

Neste contexto, merecem destaque: (i) a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotró-picas, promulgada pelo Decreto nº ���, de 2� de julho de �99�; (ii) a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacio-nal, promulgada pelo Decreto nº �.0��, de �2 de março de 200�; e (iii) a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº �.�87, de 3� de janeiro de 200�.

É importante também mencionar que grande parte dos padrões de combate à lavagem de dinheiro que permeiam as convenções supramencionadas teve origem nas Recomendações do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terro-rismo (GAFI/FATF). O GAFI/FATF é um organismo intergovernamental criado pelo G7, o qual reúne os sete países mais industrializados do mundo, e secretariado pela Organização para a Cooperação e Desenvol-vimento Econômico (OCDE). O Brasil é membro pleno do GAFI/FATF, o qual, para nossa honra, atualmente é presidido pelo Sr. Antonio Gustavo Rodrigues, que também preside a unidade de inteligência financeira brasileira, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

É importante relembrar que, em �998, com a edição da Lei nº 9.��3, o combate à lavagem de dinheiro ganhou novo impulso no Brasil. A tipificação do crime e a criação do COAF representaram a con-cretização de importantes recomendações internacionais, em especial aquelas oriundas do GAFI/FATF.

No mesmo diapasão, o Ministério da Justiça resolveu fortalecer sua contribuição para o combate sistemático à lavagem de dinheiro, que passou a ser uma das principais políticas públicas da Pasta para a

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desestruturação da criminalidade organizada. Criaram-se então, em 2003, a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro (ENCLA) e o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional de Justiça (DRCI/SNJ), incumbido da sua organização e secretariado. A Estratégia destinava-se, então, apenas ao tema da lavagem de dinheiro, com o objetivo de apro-fundar a coordenação dos atores governamentais envolvidos nas várias etapas relacionadas à prevenção desse crime.

Em 2007, por recomendação do Tribunal de Contas da União, foi decidido em conjunto com a Controladoria-Geral da União (CGU) que, a partir daquele ano, a Estratégia incluiria o tema de combate à corrupção, passando a se denominar Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA).

Desde os primórdios da Estratégia, o Ministério da Justiça contou com os esforços de diversos órgãos governamentais, que se apresentaram como parceiros de primeira hora. Dentre esses, a Advocacia-Geral da União (AGU) figura destacadamente, uma vez que, desde a primeira edição da ENCCLA, a participação ativa da AGU tem ajudado a forjar esta bem-sucedida experiência de coordenação intragovernamental.

O modelo de articulação dos órgãos então inaugurado foi forta-lecido e repetido com sucesso nos anos seguintes, sempre com a indis-pensável participação de todos os órgãos relevantes para o combate à lavagem de dinheiro no Brasil, dentre os quais a AGU sempre atuou com grande destaque.

Por meio da ENCCLA, os diversos órgãos participantes conjugam esforços para otimizar os recursos públicos e difundir informações. Sua missão é oferecer um espaço onde os diversos órgãos possam coordenar políticas públicas consistentes e eficazes para o combate à criminalidade, de modo que o Estado se organize para enfrentar o crime organizado.

A Estratégia compreende a definição de planos de ação revistos anualmente. Resultados de estudos e discussões que se desenvolvem ao longo do ano são apresentados em Reunião Plenária, ocorrida no fim de cada ano. Na ocasião, os representantes dos órgãos identificam problemas e definem os principais objetivos da estratégia. O documento final desses encontros estabelece ações ou metas a serem cumpridas a partir do ano

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seguinte, com a escolha do órgão responsável e dos órgãos envolvidos no seu desenvolvimento. Em 2009, as ações foram alocadas aos Grupos Temáticos da ENCCLA: Grupo Jurídico, Grupo de Tecnologia da Infor-mação e Grupo Operacional e Estratégico. Incumbe a esses três grupos a produção de estudos para identificar melhores práticas e tendências para o combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, além do auxílio para o cumprimento das ações e metas aprovadas nas plenárias anuais.

Merece destaque, ainda, a criação, nesse ínterim, do Departa-mento de Combate a Ilícitos Cambiais e Financeiros do Banco Central do Brasil e das varas especializadas em crimes financeiros e lavagem de dinheiro.

A ENCCLA contou, desde sua primeira edição, com o firme e decidido apoio da AGU, que sempre participou das reuniões e se envolveu na implementação de diversas metas, inclusive qualificando-se como a principal responsável por seu cumprimento em diversas ocasiões.

A AGU se responsabilizou, na ENCCLA 200�, pelo cumprimento da meta 3� (Apresentar projeto de alteração das normas de contratação, pelo Estado brasileiro, de escritórios de advocacia no exterior). Atualmente, a con-tratação de escritórios de advocacia no exterior é prevista apenas por dispositivo esparso. Não existem, por exemplo, regras sobre as formas de pagamento de honorários e a previsão orçamentária para a contratação. Infelizmente, esse projeto de lei não chegou a seu termo. Contudo, diante da importância do tema, o texto do anteprojeto deverá ser analisado pelo Grupo Jurídico da ENCCLA.

Já em 2007, a AGU se incumbiu do cumprimento das metas 09 (Elaborar parecer padronizando a interpretação sobre sigilo e compartilhamento de dados cadastrais do poder público, suas concessionárias e autorizatárias e submetê-lo ao Sr. Presidente da República) e �0 (Emitir parecer sobre o acesso da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, Ministérios Públicos Estaduais, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da União e Tribunal de Con-tas da União a dados fiscais e dados bancários cadastrais para investigação criminal e administrativa, recuperação de ativos, inquéritos civis e ações de improbidade administrativa e submetê-lo ao Sr. Presidente da República). Neste particular, é relevante lembrar que não se está tratando de informações sigilosas, mas sim de dados meramente cadastrais. Aqueles, tais como

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movimentações financeiras ou o detalhamento de ligações telefônicas, contam com salvaguarda legal. Já os dados cadastrais, aos quais regras estritas de sigilo não se aplicam, representariam aporte de grande relevância para as autoridades responsáveis pelas investigações e pela persecução penal, de modo a robustecer o combate à criminalidade, especialmente aquela de natureza organizada.

Em 2008, a AGU assumiu a responsabilidade pela Meta 8 (Elaborar anteprojeto de lei que viabilize medidas assecuratórias de urgência — patrimo-niais, restritivas da atuação — tomadas em processos administrativos), a qual foi plenamente cumprida e cujo resultado será avaliado pelo Grupo Jurídico em 2009. A proposta é de criar mecanismos para possibilitar o bloqueio de bens ainda durante o processo administrativo, com vistas a assegurar o ressarcimento e a perda do bem após a conclusão do processo judicial, evitando-se assim que o processado dissipe seu patrimônio, garantindo a efetividade da decisão judicial.

Merece também menção o fato de que a Associação Nacional dos Advogados da União (ANAUNI) somou-se à ENCCLA na sua edição de 2009, participando de forma atuante e relevante nas discussões referentes à Estratégia.

A estrutura da ENCCLA conta, além da Reunião Plenária anual e da organização e secretariado a cargo da Secretaria Nacional de Justiça, com o Gabinete de Gestão Integrada de Prevenção e Combate à Cor-rupção e à Lavagem de Dinheiro (GGI-LD), instalado em dezembro de 2003, em atendimento à Meta � da primeira ENCLA. Da mesma forma, incumbe à Secretaria Nacional de Justiça a organização e secretariado das atividades do GGI-LD, cuja missão é acompanhar o andamento das ações e metas definidas pela ENCCLA, bem como manter a constante articulação das instituições governamentais envolvidas no combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado.

Também no âmbito do GGI-LD tem sido de grande rele-vância a participação ativa da AGU, sempre atuante e propositiva, representando importante liderança e trazendo inestimável aporte jurídico aos debates, o que reafirma o fato de que a ação do Estado para a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro e à corrupção requer cooperação e interação entre os diversos órgãos e instituições.

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O GGI-LD� corresponde ao espaço onde se estruturam as linhas de ação contra a lavagem de dinheiro no Brasil. Seu alicerce é o compromisso de cada órgão com a construção de sistema eficiente contra a lavagem de dinheiro, representando o núcleo funcional desta importante expe-riência de transversalidade.

Entre os resultados mais relevantes da ENCCLA pode-se destacar a criação do Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS), resultado da Meta 2 da ENCLA 200�. Trata-se de sistema informatizado que permite indicar onde os clientes de instituições financeiras mantêm contas de depósitos à vista, depósitos de poupança, depósitos a prazo e outros bens, direitos e valores, diretamente ou por intermédio de seus representantes legais e procuradores. Importante ressaltar que o Cadastro não contém dados de valor, de movimentação financeira ou de saldos de contas e aplicações, protegidos por sigilo.

O Cadastro dá cumprimento ao artigo 3º da Lei nº �0.70�, de 9.7.2003, que incluiu dispositivo na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.��3/98, artigo �0A), o qual determina que o Banco Central “manterá registro centralizado formando o cadastro geral de correntistas e clientes de instituições financeiras, bem como de seus procuradores”.

O principal objetivo do CCS é auxiliar as investigações financei-ras conduzidas pelas autoridades competentes, mediante requisição

1 Órgãos participantes: Advocacia-Geral da União (AGU); Agência Brasileira de Inteligência (ABIN); Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL); Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE); Associação Nacional dos Advogados da União (ANAUNI); Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR); Banco Central do Brasil (BACEN); Câmara dos Deputados; Casa Civil da Presidência da República; Colégio dos Corregedores Gerais de Justiça (CCGJ); Comissão de Valores Mobiliários (CVM); Conselho da Justiça Federal (CJF); Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF); Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil (CNCPC); Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG); Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça (CONJUR/MJ); Controladoria-Geral da União (CGU); Departamento de Polícia Federal (DPF); Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR); Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); Ministério da Fazenda (MF); Ministério da Justiça (MJ); Ministério do Planejamento (MPOG); Ministério da Previdência Social (MPS); Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP/RJ); Ministério Público do Estado de São Paulo (MP/SP); Ministério Público Federal (MPF); Ministério das Relações Exteriores (MRE); Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN); Receita Federal do Brasil (RFB); Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL); Secretaria de Direito Econômico (SDE); Secretaria de Gestão (SEGES); Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD); Secretaria Nacional de Justiça (SNJ); Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP); Secretaria de Previdência Complementar (SPC); Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ); Secretaria do Orçamento Federal (SOF); Senado Federal; Superintendência de Seguros Privados (SUSEP); Tribunal de Contas da União (TCU); Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Convidados especiais da ENCCLA 2009: Banco do Brasil (BB); Caixa Econômica Federal (CEF); Colégio de Diretores de Escolas dos Ministérios Públicos do Brasil (CDEMP); Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN); Grupo Nacional de Combate a Organizações Criminosas (GNCOC).

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de informações pelo Poder Judiciário (ofício eletrônico), ou por outras autoridades, quando devidamente legitimadas.

A carência de controle sobre o volume e espécie de bens apreen-didos em procedimentos judiciais foi considerada pelos membros da ENCLA 200� como um dos grandes entraves à transparência da admi-nistração desses bens pelo Judiciário. Assim, durante aquela edição da Estratégia, os órgãos presentes decidiram criar o Cadastro Nacional de Bens Apreendidos (CNBA, de modo a indicar a quantidade e a localização de todos os bens sujeitos a medidas assecuratórias no país.

Em 2007, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assumiu a direção dos trabalhos para o cumprimento dessa Meta e desde então já obteve avanços expressivos na aprovação de tabela única de cadastramento de bens a ser utilizada pelo Departamento de Polícia Federal, geralmente responsável pelas apreensões, e por todo Poder Judiciário Nacional, bem como no desenvolvimento de projeto-piloto de sistema, que entrou em funcionamento em julho de 2008. Em dezembro daquele ano, por meio da Resolução nº �3 do CNJ, foi instituído formalmente o Sistema Nacional de Bens Apreendidos (SNBA).

Outra preocupação dos membros da ENCCLA foi a de regulamen-tar as obrigações do sistema financeiro de reportar operações envolvendo Pessoas Politicamente Expostas (PEPs). Essa iniciativa, compartilhada em âmbito internacional pelos membros do GAFI/FATF, objetiva monitorar as operações realizadas por ocupantes de função pública proeminente de forma a identificar se a origem dos recursos dessas operações é compatível com o patrimônio constante dos cadastros respectivos. Por outro lado, tal iniciativa visa igualmente à proteção da idoneidade desses agentes públicos.

Assim, o primeiro passo para cumprimento desses padrões inter-nacionais foi o resultado dos trabalhos do Grupo da Meta 0� da ENCLA 200�, que definiu Pessoa Politicamente Exposta:

Indivíduos que desempenham ou tenham desempenhado, nos últimos cinco anos, no Brasil ou em países, territórios e dependências estrangeiras, funções públicas relevantes, assim como seus familiares e outras pessoas de seu relacionamento próximo.

As PEPS seriam:

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I - os detentores de mandatos eletivos dos Poderes Executivo e Legislativo da União;

II - os ocupantes de cargo, no Poder Executivo da União:

a) de ministro de estado ou equiparado;

b) de natureza especial ou equivalente;

c) de presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista;

d) do Grupo Direção e Assessoramento Superiores - DAS, nível �, e equivalentes;

III - os membros do Conselho Nacional de Justiça, do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores;

IV - os membros do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República, o Vice-Procurador-Geral da República, o Procurador-Geral do Trabalho, o Procurador-Geral da Justiça Militar, os Subprocuradores-Gerais da República e os Procuradores-Gerais de Justiça dos estados e do Distrito Federal;

V - os membros do Tribunal de Contas da União e o Procurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União;

VI - os governadores de estado e do Distrito Federal, os presidentes de tribunal de justiça, de assembléia legislativa e de câmara distrital e os presidentes de tribunal e de conselho de contas de estado, de municípios e do Distrito Federal;

VII - os prefeitos e presidentes de câmara municipal de capitais de estados.

Após a elaboração do conceito de PEPs, o Banco Central do Brasil, o COAF, a Comissão de Valores Mobiliários, a Superintendência de Seguros Privados e a Secretaria de Previdência Complementar emitiram atos norma-tivos regulando a obrigação de reportar, pelos respectivos setores regulados, operações atípicas envolvendo pessoas politicamente expostas.

Os órgãos componentes da ENCCLA cooperam, ainda, em esforço compartilhado em âmbito internacional com os membros do GAFI/FATF para o combate ao financiamento do terrorismo. Assim como ocorreu na regulamentação das PEPs, como resultado da Meta 3 da ENCCLA 2007, os órgãos de regulação e fiscalização dos mercados financeiro, de capitais, de seguros, de previdência e capitalização se coordenaram para emitir atos normativos, no âmbito das respectivas competências, regulamentando a obrigação de reportar operações suspeitas de estarem ligadas ao terrorismo e ao seu financiamento.

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Podemos citar também, como fruto da ENCCLA, a criação do Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD). O Programa visa a for-talecer a coordenação entre os agentes públicos, a partir de cursos e treinamentos referentes às capacidades e habilidades necessárias para a adoção de medidas preventivas e para a condução de inquéritos e ações penais relacionados ao crime de lavagem de dinheiro.

O PNLD tem explorado, de modo integrado e racional, as ini-ciativas de capacitação e de treinamento de cada órgão participante da ENCCLA. O Programa foi estruturado em cursos modulares, minis-trados por servidores dos diversos órgãos que compõem a ENCCLA e por convidados da academia e de outras entidades, de acordo com suas especialidades. Desde sua implementação, o PNLD já capacitou mais de 3.700 agentes públicos, nas mais diversas Unidades da Federação.

Com a experiência adquirida a partir dos inúmeros cursos de capacitação requisitados, os órgãos responsáveis pela implementação do Programa identificaram a necessidade de aperfeiçoar a organização e a definição de conteúdo dos cursos, conferindo maior uniformidade aos conteúdos, definindo padrões mínimos de qualidade e evitando a superposição de público-alvo.

Assim, a partir da Meta �3 da ENCLA 200�, criou-se o SELO ENCCLA, baseado em critérios mínimos para a certificação da qualidade dos cursos de capacitação. O SELO ENCCLA também certifica, como profissionais ou especialistas, os agentes que tenham frequentado número previamente determinado de horas-aula do PNLD.

Outro aspecto que chamou a atenção da ENCCLA foi a investigação no âmbito da sociedade da informação, em que o volume de informações tende a crescer, ampliando o número de fontes existentes, o que exige o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das técnicas de análise de dados e informações.

Nesse sentido, foi criado o Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (LAB-LD), iniciativa inovadora da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), cuja implantação no DRCI/SNJ é resultado do cumprimento da Meta �� da ENCLA 200�. A iniciativa conta com a colaboração dos órgãos e instituições que compõem a Estratégia,

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especialmente com o apoio do Tribunal de Contas da União, da Controladoria-Geral da União e do Banco do Brasil S.A., este último com grande destaque, tendo em conta os aportes de pessoal, equipamentos e local para instalação do LAB-LD.

O LAB-LD é um modelo de centro capaz de analisar rapidamente grandes volumes de informação, utilizando ferramentas de tecnologia da informação, aliadas a um avançado método de trabalho. O principal objetivo do LAB-LD é criar e difundir metodologia capaz de dar resposta tempestiva aos processos, por meio de relatórios consistentes e sucintos sobre hipóteses referentes a casos sob investigação ou persecução.

A atuação em conjunto com órgãos parceiros, para a produção de informações estratégicas ou para a comprovação de hipóteses de traba-lho referentes a investigações ou persecuções em andamento, possibilita verificar a eficácia do LAB-LD no combate à lavagem de dinheiro. Apenas de janeiro de 2008 até maio deste ano foram produzidos �� relatórios, que permitiram a agregação de valor ao trabalho dos órgãos parceiros.

Ademais, o Laboratório produz pesquisa aplicada para a tomada de decisão nas instâncias de planejamento de casos, estatísticas para novas estratégias e treinamento e capacitação de agentes públicos. Configura-se assim como replicador de melhores práticas, tecnologias e metodologias avançadas a serem empregadas no equacionamento de casos de grande repercussão nacional.

Deste modo, a replicação do modelo de Laboratório do DRCI/SNJ é fundamental para a ampliação da capacidade de prevenção e combate à lavagem de dinheiro. Nesse sentido, o Projeto denominado “Instala-ção de Laboratório de Tecnologia contra a Lavagem de Dinheiro nas regiões do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI” já permitiu replicar em outros nove órgãos governamen-tais o modelo desenvolvido e implementado pela unidade pioneira instalada no DRCI/SNJ. O principal objetivo do projeto é criar centros produtores de informações estratégicas para casos complexos nas regiões do PRONASCI.

Desenvolvido pelo Ministério da Justiça, o PRONASCI marca uma iniciativa inédita no enfrentamento à criminalidade no país. O programa articula políticas de segurança com ações sociais; prioriza a prevenção

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e busca atingir as causas que levam à violência, sem prescindir das estratégias de ordenamento social e segurança pública.

No que tange à contribuição ao marco legal existente, os integran-tes da ENCCLA contribuíram para a redação de alguns dos principais projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional a respeito dos temas de que trata. O Projeto de Lei de Alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro (PL nº 3.��3, de 2008) reflete grande parte das modificações sugeridas pelo Grupo responsável pela Meta 20 da ENCLA 200�. Entre as principais alterações propostas está a exclusão do rol exaustivo de crimes antecedentes, a previsão de fiança e o procedimento de alienação antecipada de bens apreendidos.

A definição de organizações criminosas, incorporada ao Projeto de Lei do Senado ��0, de 200�, também foi redigida por Grupo de Trabalho constituído na ENCCLA 200�. Outras contribuições de cunho legislativo são os projetos referentes à tipificação do enriquecimento ilícito e sobre o conflito de interesses. Além disso, a ENCCLA tem acompanhado diver-sos projetos de lei ligados aos temas do combate à lavagem de dinheiro e à corrupção em trâmite no Congresso Nacional, mantendo estreita interlocução com os parlamentares.

Finalmente, é importante notar que o sistema brasileiro de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo está prestes a ser reavaliado pelo GAFI/FATF. A importância que o Governo brasileiro dedica às suas políticas neste particular e a esta avaliação pode ser medida pela edição da Portaria Interministerial Conjunta nº ���, de 2�.03.2009, firmada conjuntamente pelos Ministérios da Justiça, da Fazenda e da Previdência Social, além do Banco Central do Brasil. Essa Portaria criou Grupo de Trabalho Interministerial para coordenar as atividades de preparação para a avaliação, que se revela excelente ferramenta para examinar, em alto grau de detalhe, o marco institucional, legal e prá-tico em determinado país para o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.

A dedicação do Governo brasileiro para o combate à lavagem de dinheiro, portanto, é a maior possível. É inegável a existência de esforços coordenados e continuados e o total comprometimento de todos os órgãos governamentais que detêm competências ligadas a esses temas. Esses

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esforços têm sido apoiados pelos mais altos níveis hierárquicos dessas instituições, o que tem levado a políticas bem-sucedidas e consistentes ao longo dos anos. A Secretaria Nacional de Justiça, enquanto órgão responsável pela organização da ENCCLA, reconhece a relevância do decidido apoio da AGU e da ANAUNI a essas iniciativas.

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Luiz Augusto Fraga Navarro de Britto FilhoSecretário-Executivo da Controladoria-Geral da União.

Palavras-chave: Combate à corrupção. Lavagem de dinheiro. Controla-doria-Geral da União (CGU). Lei de Proteção às Testemunhas.

Bom, eu queria saudar meus colegas de mesa, a Ana Valéria, a Tânia Patrícia, meus amigos Romeu Tuma, Luís Henrique dos Anjos, agradecer também ao Kozima, pelo convite. Eu participei do ENAU do ano passado, e certamente não estarei no ano que vem porque a organização não vai querer que vocês enjoem da minha presença. Mas talvez eu tente par-ticipar de uma forma clandestina porque vocês sempre sabem escolher muito bem os lugares que vocês organizam, e não só por isso, mas porque é um encontro muito agradável, porque a gente tem a oportunidade de discutir com pessoas inteligentes e realmente dedicadas na defesa do Estado e da coisa pública. Eu queria secundar as palavras do Romeu Tuma e dizer que realmente não dá para mensurar a corrupção. É mais difícil mensurar a corrupção do que o tráfico de armas, o tráfico de drogas ou o tráfico de pessoas. Até porque a corrupção está presente no tráfico de drogas, no tráfico de armas e no tráfico de pessoas. O Banco Mundial chegou a mensurar a corrupção em cerca de US$� trilhão de dólares ao ano. E isso não é assim um número confiável. Até porque tem coisas que não são perceptíveis, dependendo de onde você se encontre, do país que você se encontre, como corrupção. Como falava hoje o palestrante que nos antecedeu, no painel anterior, um dos temais mais sensíveis é o trá-fico de influência, que muitas vezes alguns consideram legítimo, outros não consideram legítimo. E como eu cheguei na Controladoria-Geral da União (CGU) desde o primeiro dia de 2003, e talvez um pouco antes, porque eu participei da transição da CGU, da administração anterior, eu também participo da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) desde a sua primeira edição, e tenho

1 Palestra proferida no IX Encontro Nacional dos Advogados da União (ENAU) e V Seminário Nacional sobre Advocacia do Estado realizado em Maceió, Alagoas, em 05 de novembro de 2008.

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que dar o testemunho de que para a Controladoria, a ENCCLA foi um instrumento importantíssimo e fundamental para que a gente pudesse alcançar vários dos objetivos e vários das realizações que nós conseguimos ao longo desses anos.

Queria primeiro, falar de algumas metas da ENCCLA que estão sob a responsabilidade da coordenação da CGU. Uma delas é a questão do Cadastro de Pessoas Sancionadas — que é a meta 2� de 2008 — que é a viabilização de um cadastro público unificado de pessoas sancionadas em última instância administrativa relevante para o combate à corrup-ção e à lavagem de dinheiro. A ideia aí era ter um grande cadastro de todas as pessoas punidas administrativamente, e talvez para além disso, também pessoas condenadas em ações de improbidade administrativa, de forma, sobretudo, a evitar o reingresso dessas pessoas em outras ins-tâncias de governo. Ou seja, um indivíduo que foi exonerado aqui, ou na verdade foi demitido no Governo Federal, ou lhe foi aplicado alguma penalidade pelo Tribunal de Contas, ou pela CVM, ou mesmo em uma ação de improbidade, e que passa a exercer um cargo no estado, que passar a exercer um cargo no município. Ou seja, dar visibilidade a isso, se não houver visibilidade externa, e isso é uma discussão que se tem, pela visibilidade para todos os órgãos que trabalham nesse esforço de combate à corrupção. Mas não tem sido fácil avançar para a construção desse cadastro. Sobretudo pela dificuldade de linguagem dos cadastros, e pela carência muitas vezes da informação adequada. Porque também você não pode expor as pessoas à determinado tipo de informação que esteja incompleta, ou que não esteja adequada, o que pode gerar sérios problemas. Mas a forma como nós pensamos em viabilizar isso é que nós já temos um sistema, que se chama CGU-PAD, que é um sistema em que são alimentadas todas as informações acerca de sindicâncias de processos administrativos disciplinares em curso em todo o Poder Execu-tivo Federal, e esse sistema já traz essas informações com relação, vamos dizer assim, às sanções administrativas. Então nós pretendemos, dentro deste sistema, permitir que outros órgãos agreguem informações sobre as penalidades, que porventura também tenham aplicado. E uma outra informação interessante é que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ele está construindo um cadastro de improbidade, de pessoas condenadas

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por improbidade administrativa, para que em um primeiro momento, se nós formos pegar as pessoas condenadas, transitadas e julgadas, o cadastro vai ficar meio pobre, mas a esperança é que ele vá crescendo, e é uma iniciativa muito importante. Nós somos muito carentes de informa-ção. O Tuma falou da representação da CGU perante alguns organismos internacionais. Nós, na verdade, somos encarregados, claro que com o auxílio de diversos outros órgãos, de cuidar das implementações das convenções contra a corrupção. E uma das maiores dificuldades, que nós observamos, é que antes de 2003 era a falta de informações. Nós estamos preenchendo agora um relatório para avaliação que o Brasil se submeterá com relação à convenção da OEA Contra a Corrupção, que será agora em dezembro, e realmente é prazeroso ver como nós conseguimos reunir informações e dados. Isso sem dúvida é resultante do trabalho e grande parte ENCCLA, porque não foi a CGU que reuniu todos os dados, os dados vieram do Tribunal de Contas, do Ministério Público, da CGU, da Polícia Federal, do Ministério do Planejamento, em relação a dados de licitação, de contratos, é um esforço também do Conselho da Justiça Federal. Então realmente, se você verificar o primeiro relatório que nós apresentamos na OEA e o de agora, está muito mais objetivo, e muito mais consistente, o que nos dá grandes esperanças de que estamos no caminho certo.

Outra iniciativa, ainda mais complicada, e que por isso ainda é uma meta de 2007, é a criação de um Cadastro de Idoneidade, nós pretendemos lançar este cadastro até o final do ano — na verdade, no Dia Internacional de Combate à Corrupção, que se celebra no dia 9 de dezembro. É importante dizer que o dia 9 de dezembro, que foi assumido pela ONU como Dia Internacional de Combate à Corrupção, foi uma sugestão da delegação brasileira à Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. Então essa meta do Cadastro de Idoneidade é uma meta desafiadora e novamente nós temos problemas porque há toda sorte de declaração de idoneidade, seja na via judicial, seja pelos tribunais de contas, seja pela própria Administração nas três esferas de governo e nos três poderes. O Legislativo declara pessoas jurídicas inidôneas para contratar, assim como o Executivo e o Judiciário. Mas o fato é que, pri-meiro, nós fizemos um levantamento em todos os estados brasileiros, e

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somente cinco têm cadastros na internet, ou seja, tem essa promulgação na internet. Portanto para a construção desse cadastro nacional nós vamos ter que evoluir muito. E por quê? Qual a importância disso? É na linha que disse o Tuma. Olha, eu fico imaginando a quantidade de operações que nós participamos com a polícia, desde Vampiros, Correios, Mão de Obra, enfim, uma infinidade de nomes de operações policiais, e nós nos demos conta em determinado momento que essas empresas todas que tinham sido flagradas nessas operações não estava sendo declaradas idô-neas para contratar pela Administração Pública. Além disso, há uma outra importância desse Cadastro de Idoneidade. Nós temos uma parceria com o Instituto ETOS, que tem uma campanha chamada “Empresa Limpa”. As pessoas acham que essas coisas não funcionam, que a empresa vai lá, assina e agora eu participo da campanha da “Empresa Limpa”. Não vou mais subornar ninguém, não vou mais participar de estratégia de corrupção e em muitos casos é verdade, não funciona. Mas ao mesmo tempo que ela assina esse compromisso de ser uma “Empresa Limpa”, ela assume também o compromisso de adotar uma série de instrumentos que são sem dúvidas importantes, representam avanços. Ela se compromete a ter um código de ética, ela compromete a dizer a seus servidores que eles não estão autorizados a pagar propina. O Instituto ETOS tem uma ideia de que uma vez tendo um cadastro de idoneidade eles farão algo similar com o que eles fazem com a questão do trabalho escravo. Ou seja, as empresas que entrarem no projeto da “Empresa Limpa” ela se compromete a não fazer negócios com empresas que estão no cadastro de inidoneidade, a não fazer negócios com empresas que foram conde-nadas por trabalho escravo. Então daí a importância da construção deste cadastro. Só que como eu disse, é um cadastro difícil, porque há pouca informação disponível na internet, além disso, os cadastros não estão construídos da mesma forma, por evidente, muitos contêm problemas, como não dizer por quanto tempo é a penalidade, por quanto tempo foi aplicada a penalidade de inidoneidade. Então é um desafio, que nós vamos colocar no ar, da maneira que conseguirmos, porque nós acredita-mos que com essa iniciativa agregar mais esforços dos tribunais de contas, e dos estados, e de grandes prefeituras. Mas a questão da declaração da inidoneidade é uma questão que inclusive que, muitos de vocês vão

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ter que se defrontar em breve, acredito eu que, pelo menos aqueles que atuam nas Consultorias Jurídicas. Porque a CGU ela constituiu uma comissão para examinar justamente, processar, fornecedores, que nós chamamos de Comissão de Processo Administrativo de Fornecedores, e com vista de declarar a idoneidade daqueles que evidentemente parti-ciparam de ações de corrupção. Nessa linha, nós condenamos já essas empresas, as empresas lá do grupo Planam, a construtora Gautama, mais recentemente a Conservo, que é uma empresa de terceirização. Temos em curso mais alguns processos contra as empresas de terceirização que participaram da operação Mão de Obra, e estamos analisando também empresas que estavam envolvidas na operação Selo e operação dos Correios. Mas as questões que se põem aí, jurídicas, com relação a decla-ração de idoneidade são questões importantes e relevantes. E inclusive já tivemos a defesa da Advocacia Geral da União perante o STJ com relação aos efeitos da declaração de idoneidade, se os efeitos alcançam os contratos em curso, ou se só alcançam os contratos futuros. Como também outra questão que é fundamental, e que não foi articulada nesse mandato de segurança específico, mas que é uma questão fundamen-tal, é se há repercussão para outras esferas de governo. Nós temos um posicionamento que ele alcança sim os contratos em curso. Veja que essa declaração de inidoneidade feita pela CGU não se baseia no descumpri-mento do contrato em si, ela se baseia na verdade nos incisos segundo e terceiro do artigo 88 da Lei nº 8.���, que diz que incorrerão nas sanções previstas na lei as empresas que tenham praticado atos ilícitos, visando a frustrar os objetivos da licitação e terceiro, que demonstram não possuir idoneidade para contratar com a Administração Pública em virtude de atos ilícitos praticados. Então nós estamos declarando a idoneidade das empresas com base nisso. Uma vez declarada, o Ministro Jorge Hadd comunica a todos os outros ministros, e a seus órgãos vinculados. E essas questões começam a aparecer. Por exemplo, já começamos a atender pessoas de vários ministérios exatamente com essa preocupação: Como é que eu faço com esse contrato em curso? Eu tenho que rescindir esse contrato, qual vai ser a repercussão disso? E realmente, a jurisprudência, a doutrina são claudicantes em relação a essa questão. E, portanto, creio que é uma questão que nós vamos precisar dedicar alguma atenção,

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porque nós pretendemos intensificar bastante essa questão de idoneidade de empresas. Porque veja que no caso da Conservo, havia todos os elementos, o parecer, e a nota técnica da comissão, e o parecer de nossa assessoria jurídica, e aí nossos analistas de controle e os Advo-gados da União, fizeram um trabalho brilhante. Eu tenho total confiança de que isso aqui não se reverte no Judiciário.

Outras coisas da ENCCLA, que nós temos discutido, esse aqui é só um relato, no ENAU do ano passado eu falei sobre a sindicância patrimonial. Eu apresentei um caso concreto de sindicância patrimonial que nós iniciamos com muita, com muita dificuldade declarar, demitir as pessoas com base no enriquecimento ilícito apenas. A verdade é que nós contamos com o apoio da AGU nos primeiros pedidos de afastamento de sigilo bancário que nós articulamos, quer dizer, o pedido feito pelas comissões de processo administrativo disciplinar, e também, a verdade é que aqueles casos que têm o maior potencial de se poder chegar a uma sanção. Porque na hora que o COAF nos comunica, ele já fez todo um exame prévio daquela situação, e de fato, é muito difícil depois o agente público conseguir explicar a origem daqueles recursos que ele estava movimentando. E nós temos a expectativa de conclusão, nós concluímos que duas apenas até hoje, então nós temos a expectativa de concluir mais �� nos próximos meses.

Outra meta importante em relação ao Lobby. Nós vamos fazer um seminário agora, em Brasília, no início da semana que vem, estão todos convidados, sobre Lobby, foi algo que causou certa polêmica na ENCCLA do ano passado, ou seja, regulamentar ou não o Lobby. Nós, é claro que não temos toda as respostas. A verdade é que nós achamos que Lobby já há, ele apenas não é transparente, ele apenas não segue regras preesta-belecidas, mas é óbvio que nós sabemos que existe tráfico de influência, que existe pressão, que existe defesa de direitos legítimos ou não. Então, portanto, essa é uma discussão que nós queremos entabular, e estamos entabulando. Há um projeto, chamando “Pensando Direito”, que é um projeto da SAL, que ela seleciona propostas de Universidades, para discutir determinadas matérias, a SAL é a Secretaria de Assuntos Legis-lativos do Ministério da Justiça, e ela selecionou um projeto justamente para discutir o lobby, um projeto do Uniceub. E o nosso Seminário,

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juntamente com a SAL e com a Casa Civil, é que nós vamos participar entre os dias �0 e �2 de novembro a partir do que nós pretendemos dar cumprimento à meta da ENCCLA que é apresentar um anteprojeto, uma consolidação de anteprojetos já existentes no Congresso Nacional sobre a regulamentação do Lobby.

Outro assunto que nos inquieta bastante, porque tem sido cobrado em todas as convenções internacionais de combate à corrupção é a ques-tão da proteção ao denunciante. Nós temos recebido reiteradas recomen-dações para que a gente tenha não só a proteção, porque nós já temos evidentemente a Lei de Proteção às Testemunhas, mas não expressamente a proteção aos denunciantes, só para os denunciantes de modo geral, mas não para o servidor público denunciante em especial.

Eu queria lhes falar também de um projeto que nós temos e que não é totalmente relacionado diretamente com a ENCCLA, mas faz parte de toda essa estratégia eu acho, da gente ir construindo todas essas barreiras de proteção ao Estado, de integridade do Estado. Porque evidentemente os desafios são cada vez maiores. Cada muro que a gente vai progredindo, o crime organizado também procura outras estratégias para ultrapassar essas barreiras. Mas nós estamos construindo na CGU o Observatório da Despesa Pública. E como se fosse a malha fina da despesa. Porque nós temos a malha fina da receita, ou seja, as pessoas que fogem de determinados padrões, caem na malha fina de acordo com as tipologias construídas pela Receita Federal então nós estamos construindo também a malha fina da despesa. Neste país, sempre foi mais fácil arrecadar do que gastar. Quer dizer, gastar é fácil, gastar bem que é muito difícil. O observatório da despesa ele trabalha com um conjunto de software, de software minerador, com software de estatística, com software de leitura de texto. Inicialmente nós estamos prevendo a utilização nessas quatro linhas: para o acompanhamento das despesas com cartão de crédito do Governo Federal, o cartão corporativo; de tipologias de licitação, ou seja, eu construo as tipologias e depois aplico no observatório, é o exemplo que depois eu vou dar; a questão da análise de editais de licitação, ten-tar fazer uma análise e buscar direcionamento em editais de licitação, que é algo que eu acho que devemos ter uma parceria muito grande com a Advocacia-Geral da União, com os Advogados da União, afinal

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de contas, os editais transitam pelas Consultorias Jurídicas; e a questão de comparativos de preços unitários, ou seja, é lamentável que a gente não possa ainda hoje comparar por quanto compra o ministério, por quanto compra o outro ministério, por quanto compra o estado, por quanto compra o município e saber se as pessoas estão comprando pelo mesmo preço, ou pelo preço semelhante e saber se tem gente pagando de mais, gente pagando de menos, não só produtos como serviços. Os cartões de pagamentos, eu trouxe um exemplo, temos acompanhando a evolução, e o que nós notamos é que depois de todo aquele tumulto de início de ano, houve uma redução grande dos gastos com cartão, e é isso que está expresso neste gráfico. E o que nós estamos acompanhando, praticamente diariamente na CGU, para ver os eventuais desvios, os eventuais problemas.

Mas o que eu queria falar um pouco mais é de outro projeto, que é o projeto de tipologia de licitação. Nós pegamos o Comprasnet, e fizemos uma verificação a partir das tipologias, que nós construímos de �998 a 2008. Para vocês terem ideia, cerca de 9 bilhões de reais caíram nas tipo-logias que nós construímos, ou concebemos, e eram �� tipologias. Que tipo de tipologia: bom, a questão de conluio entre os licitantes, ou seja, verificar se os licitantes tinham, na sua composição societária, pessoas em comum. Isso é absolutamente frequente, absolutamente frequente, o que existe de empresas onde o pai é dono de uma empresa, e o filho é dono de outra empresa, a irmã é dona de uma terceira, e os três participam de uma licitação, evidentemente é difícil acreditar que eles não tenham combinado o jogo na hora de participarem da licitação; a questão do fracionamento para dispensar. É também muito frequente, ou seja, eu quero fazer a dispensa, a dispensa tem um limite, para que eu possa fugir do convite, eu fraciono a despesa. Olha que nós fizemos uma regra bem rígida, uma tipologia bem rígida, porque nós fizemos o fracionamento na mesma semana. Se o indivíduo teria que gastar no mesmo produto, no mesmo órgão, na mesma semana, comprando a mesma coisa em um valor que ultrapassasse a dispensa. Ou seja, nós nem levamos em consi-deração, o fracionamento que ele poderia fazer ao longo de um mês. Ou seja, comprar no início do mês. Não, nós fizemos na mesma semana; a questão de aditivos, com limites excedidos, por incrível que pareça, isso

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existe. Acima do que a lei permite, acima dos 2�% que a lei permite é outra tipologia; mais de um fornecedor exclusivo, isso é absolutamente fantástico. Compras feitas no mesmo período, no mesmo município mas algumas foram com inexigibilidade de licitação, por alegação de fornecedor exclusivo, e aquele mesmo produto foi comprado no mesmo município, com licitação, e portanto, não se justificaria a não realização de licitação; outra tipologia que é o fracionamento para escapar de uma nulidade mais complexa, assim como há o fracionamento para dispensar, eu também fraciono o convite para não chegar na nulidade de tomada de preço, eu fraciono a tomada de preço para não chegar na concor-rência e claro que isso vai desaparecendo um pouco com os pregões. Empresas recém criadas, às vezes isso é um colosso, elas se constituem as vezes 30 dias, �� dias antes da licitação, o que no mínimo causa grande estranheza. E aqui eu tenho alguns exemplos: Foram retirados os nomes, porque inclusive o observatório ainda não está lançado, mas é isso que o sistema faz, ele vai em uma licitação, identifica quem são as empresas que participaram, e aí o bando de dados vai na composição societária da empresa e verifica que as empresas estão registradas no mesmo ende-reço, e de fato, é aquela situação que lhes falei, tem o nome, endereço, CPF, como eu caracterizei, eram duas irmãs, que concorreram à mesma licitação, e as empresas tinham o mesmo endereço. Outro exemplo de fracionamento: Para fazer dispensa, em uma mesma semana, num determinado órgão, se fez aquisição de óculos por 7,� mil reais, e veja a numeração da solicitação, e aí se fez, a mesma compra, dos mesmos óculos, por 3,� mil reais, porque ambas as compras, se fossem somadas, não seria possível fazer a dispensa. Eu quero dizer que isso aí é feito sem nenhuma interferência, é claro que é passível de erro, porque os próprios sistemas podem conter sujeira, o Comprasnet pode conter sujeira, mas isso é feito sem nenhuma interferência humana.

E aqui, só terminando, são os gráficos que a gente produz, como um monitoramento das tipologias, a análise gráfica por valores, a análise geográfica por quantidades, e a análise focada em órgãos, para ver se em algum órgão está acontecendo mais do que o outro, por unidade da Federação, e assim por diante. A análise temporal também, para ver se há mais problemas de um ano para o outro, e assim por diante.

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Eu só queria finalizar, dizendo que, muitas vezes a gente tem essa sensação de enxugar gelo. Essa semana, semana passada, aliás, o minis-tro Jorge Hadd me deu a tarefa de ir para um seminário com prefeitos eleitos, que é bem assim o território apropriado para você fazer uma exposição da CGU. E em determinado momento, eles foram bastante respeitos, e eu mostrava a variedade de cenas da nossa fiscalização. Cenas positivas e cenas negativas e ao final do debate, levantou um pre-feito e disse assim: Olha, o que eu acho é que nós temos que lutar pela repartição de receitas. Ou seja, no dia em que 33,3% for da União, 33,3% for dos Estados e 33,�% for dos Municípios, o problema está resolvido. Porque a CGU não vai ter competência para fiscalizar os recursos que não são federais. Então isso de certa forma mostra que o trabalho tem avançado. O que o Tuma falou é absolutamente verdadeiro. A CGU, a AGU, a Receita, o Ministério Público, o COAF, o Ministério da Justiça, o DRCI, a Secretaria Nacional de Justiça, todos têm feito um trabalho cada vez melhor. Agora nós temos que acabar com essa cultura da impunidade. É absolutamente inaceitável que as pessoas não sejam presas, é absolutamente inaceitável que a gente não consiga asfixiar os recursos da corrupção. E essa é nossa luta.

Queria dar um último recado antes que me expulsem, porque eu acho importante, na CGU, a gente também tem uma defesa muito forte, e os analistas, e as carreiras têm uma defesa muito forte, de considerar que a CGU seja um órgão de Estado. E essa é uma luta importante, mas uma coisa que a gente não pode descurar é que a gente tem que defender a legalidade; sem dúvida, mas a gente também tem que defen-der a eficiência. E nisso eu acho que CGU e AGU têm um papel muito importante a fazer. Ou seja, melhorar o Estado brasileiro, seja na questão da legalidade, seja na questão da eficiência. Muito obrigado!

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Advocacia de Estado como responsável pelo combate à corrupçãoLuís Henrique Martins dos AnjosAdvogado da União. Ex-Procurador-Geral da União. Mestre e Doutorando em Direito Público (UFRGS).

Resumo: Apresenta as proposições defendidas no IX Encontro Nacional dos Advogados da União e na XX Conferência Nacional dos Advogados do Brasil, que visam ao aprimoramento da Advocacia de Estado e dos instrumentos de combate à corrupção.

Palavras-chave: Advocacia de Estado. Advogados públicos. Combate à corrupção.

Sumário: Introdução – 1 A Advocacia de Estado como instituição repu-blicana – 2 Proposições debatidas no IX ENAU – 3 Resoluções aprovadas na XX Conferência Nacional dos Advogados – Conclusão

IntroduçãoDe 03 a 07 de novembro de 2008, os Advogados da União reunidos

no IX Encontro Nacional do Advogados da União (ENAU), promovido pela Associação Nacional dos Advogados da União (ANAUNI), na cidade de Maceió, Alagoas, debateram o tema da Advocacia de Estado e o combate à corrupção ao longo de sete painéis do V Seminário Nacional sobre Advocacia de Estado.

As proposições de combate à corrupção debatidas no IX ENAU foram apreciadas e aprovadas pela XX Conferência Nacional dos Advogados do Brasil, promovida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de �� a �� de novembro de 2008, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte.

1 A Advocacia de Estado como instituição republicanaA compreensão da Advocacia de Estado como instituição repu-

blicana de um Estado Democrático de Direito é imprescindível para estruturá-la de modo que possa contribuir decisivamente ao combate à corrupção. Assim, o espaço institucional da Advocacia de Estado ganha importância dentro da dimensão ética que deve orientar a ação do Poder Público.

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Trata-se de reforçarmos o controle social do Poder Público e de todas as suas esferas de atuação institucional sob a ótica da cidadania, para que não se permita que esta se torne um mero instrumento do poder e o ser humano se feche no individualismo alienante e socialmente descompromissado. Neste exato sentido, andou o constituinte ao firmar os comandos dos artigos �3� e �32 de nossa CF, onde, ao tratar da Advocacia Pública, consagrou um verdadeiro monopólio da representação judicial e extrajudicial dos Entes Públicos e dos Poderes da República, bem como de sua consultoria e assessoramento jurídico, instituindo uma Advocacia de Estado.

Na realidade, a reflexão sobre o Direito e seus fundamentos revi-gora a ideia de legitimidade do poder na construção de uma nova praxis, definidora do papel da institucionalidade e dos Advogados de Estado, enquanto integrantes de uma instituição defensora do interesse público. Os Advogados de Estado são mais do que profissionais do Direito a serviço da Justiça, visto que com a enormidade de atividades estatais, sempre desenvolvidas nos quadros do Direito, são essenciais para o próprio funcionamento do Estado Democrático de Direito. Para o seu bom desempenho, ganhou a Advocacia de Estado o status de instituição autônoma, equidistante aos Poderes da República, significando dizer que possui discernimento próprio, independência intelectual, estabi-lidade funcional e sustentabilidade administrativa-financeira, as quais constituem garantias de tal intento, sem afastar o dever de assegurar o contraditório e a ampla defesa do Poder Público, bem como o dever de sustentar, nos marcos do Estado Democrático de Direito, as políticas públicas legitimamente aprovadas.

Para tanto, além de um patamar de excelência na defesa do inte-resse público, o desafio de instituições orgânicas do Estado, como essa Advocacia de Estado, exige uma consciência redobrada de seus agentes diante da precarização do mundo do trabalho, da agressão ambiental, do emperramento ao desenvolvimento sustentável, das práticas econô-micas de concentração e de manipulação de preços, da corrupção, da lavagem de dinheiro e demais práticas contrárias ao Sistema Financeiro Nacional. Desafios que são enfrentados de forma cotidiana pelo Poder Público e que se tornariam inócuos sem um adequado suporte jurídico e

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institucional. Assim, a Advocacia de Estado cada vez mais consolida um conceito enquanto instituição: a defesa substantiva do interesse público. Compreendo interesse público como a ética, a cidadania, os direitos humanos, a democracia e os demais valores previstos constitucionalmente. A Advocacia de Estado é imprescindível na constituição desse projeto que visa à inclusão da cidadania, buscando a concretização de um Estado Democrático de Direito, do qual surja uma ampliação da legitimidade para exercício do poder.

O verdadeiro sentimento da Constituição deve ser vivido solida-riamente pelo povo, de quem emana todo o poder. E esse sentimento da Constituição também deve existir no protagonismo do Advogado de Estado enquanto integrante de um serviço público essencial institucio-nalizado, verdadeiro princípio constitucional garantidor dos valores do Estado Democrático de Direito.

A República apenas começa, mas não se realiza plenamente, na afirmação do Estado tão somente como um Estado de Direito formal. No esforço de construção de uma autêntica justiça social esta tem sido a primeira missão de todos que buscam incidir na institucionalidade para afirmar uma consciência republicana que supere em definitivo o patrimonialismo da administração pública e permita a construção de políticas públicas que combatam a corrupção, a exclusão social e rea-firmem um compromisso com o processo democrático e civilizatório. Daí compete, ao Advogado de Estado, fazer de seu ofício de defesa da justiça, acima de tudo, um movimento real de consolidação dos valores do Estado Democrático de Direito que viabilize, de forma consciente, socialmente comprometida, as políticas públicas consagradas pelos admi-nistradores legitimamente investidos pelo regime democrático dentro dos marcos constitucionais.

Desse cenário, também surge à necessidade de uma nova catego-rização quanto ao regime jurídico dos Advogados de Estado, enquanto Agentes Institucionais à Justiça que são titulares de cargos públicos organizados em carreira provida mediante concurso público, ligados por vínculo profissional, que exercem missão, por força constitucional, de garantia dos contornos da constitucionalidade e da legalidade dos atos da vida em sociedade, em especial, dos decorrentes da vontade superior

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do Estado. Portanto, é fundamental a defesa da exclusividade das atribuições das carreiras da Advocacia Pública, providas através de con-curso público, na representação judicial e extrajudicial do Ente Público e da consultoria e assessoria jurídica dos Poderes da República.

A partir dessa concepção de Advocacia de Estado é que se pode considerar como viável o efetivo exercício dos advogados públicos no combate a corrupção.

2 Proposições debatidas no IX ENAUNo painel “A estratégia nacional de combate à corrupção e à lava-

gem de dinheiro” realizado no V Seminário Nacional da Advocacia de Estado no âmbito do IX ENAU, sustentei a necessidade de implementa-ção das seguintes proposições que visam o aprimoramento da Advocacia de Estado e dos instrumentos de combate à corrupção.

�. Reconhecer a Advocacia de Estado o status de instituição autônoma, equidistante aos Poderes da República, significando dizer que possui discernimento próprio, independência intelec-tual, estabilidade funcional e sustentabilidade administrativa- financeira, as quais constituem garantias de tal intento, sem afastar o dever de assegurar o contraditório e a ampla defesa do Poder Público, bem como o dever de defender, nos marcos do Estado Democrático de Direito, as políticas públicas legi-timamente aprovadas.

2. Envidar esforços na implementação de uma nova sistemática de defesa da probidade e de recuperação do patrimônio público, destacando-se duas diretrizes: aproximação das medidas de preservação da probidade e de recuperação do patrimônio à época do fato que se está apurando; medidas efetivas de maior integração dos órgãos públicos entre si e destes com a sociedade.

3. Reconhecer a atividade de consultoria e de assessoramento jurídicos dos Entes Públicos como essencial à prevenção de litígios e ao controle da legalidade dos atos administrati-vos, dotando-a das prerrogativas necessárias ao exercício de seus misteres.

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�. Defender a utilização processual dos institutos da alienação antecipada do bem para preservação do seu valor monetário — tão logo seja decretada a indisponibilidade — e o depósito dos valores arrecadados em conta judicial remunerada, bem como a do leilão eletrônico judicial e extrajudicial de forma a garantir o resultado útil dos procedimentos judiciais e administrativos de efetiva punição e de recomposição do patrimônio público, respeitado o contraditório e ampla defesa.

�. Defender a interligação dos sistemas do Poder Público que gerenciam dados pessoais e de bens, viabilizando o acesso destes pelos órgãos da Advocacia de Estado, mantido o dever de proteção das informações sigilosas.

�. Apoiar o cumprimento das metas e a concretização dos objetivos da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA).

7. Reconhecer que a defesa da probidade também está na defesa dos agentes públicos, quando no exercício das suas atribuições e no interesse público.

8. Propor anteprojeto de medida legislativa que atribua aos órgãos da Advocacia de Estado o poder de requisitar infor-mações e dados, garantindo maior efetividade na defesa da probidade administrativa e na recuperação do patrimônio público desviado.

9. Envidar esforços para implementar uma nova sistemática de responsabilização civil dos servidores públicos que causarem danos aos administrados, mediante a prática de atos culposos ou dolosos, com o incremento de uma cultura que fortaleça o ajuizamento de ações de regresso e/ou denunciação da lide.

�0. Apoiar projeto de redução de litigiosidade do Poder Público.��. Estimular a adoção de “teses institucionais da Advocacia de

Estado” nas causas em que não há possibilidade de transigência quanto ao entendimento jurídico, aguardando que a jurispru-dência dos Tribunais Superiores se pronuncie definitivamente sobre a matéria.

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�2. Conferir, descentralizadamente, à Advocacia de Estado instrumentos e poderes para decidir sobre o reconhecimento, ou não, da procedência dos pedidos em processos administrati-vos e judiciais, fundados em fatos incontroversos, estimulando a formalização de acordos.

�3. Incentivar a adoção de enunciados de súmulas dos órgãos superiores da Advocacia de Estado que dispensem o recurso em matérias em que há jurisprudência pacífica dos Tribu-nais Superiores.

��. Defender a adoção de um procedimento administrativo e insti-tucional que vise a escolha de Advogados Públicos da respectiva carreira para os cargos de chefia dos órgãos que integram a Advocacia Pública, realizado periodicamente, através do voto dos membros da carreira, compondo listas dos mais votados, como sugestão coletiva, para serem encaminhadas à autoridade competente para nomeação.

��. Lançar campanha nacional que demonstre a necessidade de fortalecimento das prerrogativas e garantias institucionais da advocacia pública para o adequado combate à corrupção o que visa economizar recursos públicos e permitir maiores investimentos no desenvolvimento de políticas sociais do Estado brasileiro.

��. Defender a exclusividade das atribuições das carreiras da Advocacia Pública, providas através de concurso público, na representação judicial e extrajudical do Ente Público e da consultoria e assessoria jurídica dos Poderes da República.

3 Resoluções aprovadas na XX Conferência Nacional dos Advogados

No painel “Corrupção como subtração de direitos fundamentais” realizado na XX Conferência Nacional dos Advogados, promovida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, apresentei a palestra “Advocacia de Estado, implementação de políticas públicas e o combate a corrupção”,� oportunidade em que defendi a aprovação das

1 Anais da Conferência Nacional dos Advogados do Brasil. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2009. v. 2, p. 1153-1170.

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�� (dezesseis) proposições defendidas no IX ENAU acima listadas. Todas foram acolhidas, sendo �� (onze) reproduzidas na íntegra (resoluções de números � a �� do relatório a seguir), � (cinco) foram reescritas e condensadas em 3 (três) resoluções (as de números �7, �8 e �9) e outras � (cinco) resoluções (as de números � a � do relatório) foram acrescidas por proposições dos demais participantes do painel.

As propostas que foram subsumidas em resoluções mais genéricas para evitar que fossem mal compreendidas por parecer que se estaria excluindo outras prerrogativas e garantias são: “reconhecer a atividade de consultoria e de assessoramento jurídicos dos Entes Públicos como essencial à prevenção de litígios e ao controle da legalidade dos atos administrativos, dotando-a das prerrogativas necessárias ao exercício de seus misteres.”; “estimular a adoção de teses institucionais da Advocacia de Estado nas causas em que não há possibilidade de transigência quanto ao entendimento jurídico, aguardando que a jurisprudência dos Tribunais Superiores se pronuncie definitivamente sobre a matéria”; “envidar esfor-ços para implementar uma nova sistemática de responsabilização civil dos servidores públicos que causarem danos aos administrados, mediante a prática de atos culposos ou dolosos, com o incremento de uma cultura que fortaleça o ajuizamento de ações de regresso e/ou denunciação da lide”; “conferir, descentralizadamente, à Advocacia de Estado instrumentos e poderes para decidir sobre o reconhecimento, ou não, da procedência dos pedidos em processos administrativos e judiciais, fundados em fatos incontroversos, estimulando a formalização de acordos.”; “incentivar a adoção de enunciados de súmulas dos órgãos superiores da Advocacia de Estado que dispensem o recurso em matérias em que há jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores”.

Portanto, a essência das teses sobre o aprimoramento da Advocacia de Estado e do instrumento de combate à corrupção defendidas no IX ENAU foi referendada pela XX Conferência Nacional dos Advogados e transformadas em resoluções do Conselho Federal da OAB. Vejamos a íntegra do relatório do painel.

RELATÓRIO

�. Que as regras de transparência e de controle das campanhas eleitorais sejam aprimoradas, com a criação de comitês, vinculados como auxiliares da justiça

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eleitoral, compostos por pessoas dispostas a colaborar, como voluntários, para exercer esse papel de fiscalização das campanhas eleitorais, em todos os níveis, ou seja, municipal, estadual e federal, para identificação de sinais exteriores de dispêndios nas campanhas eleitorais, por exemplo, pode permitir apuração concreta de excessos e de desrespeito as regras eleitorais, bem como permitir ao eleitor identificar aqueles candidatos que assumiram compromissos prévios com financiadores de campanha.

2. Que se apoie a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário no combate e na punição da corrupção contra quem quer que seja, respeitadas as garantias constitucionais.

3. Que sejam condenados os excessos que se vêm praticando em nome do combate à corrupção e à criminalidade em geral.

�. Que se condenem as interceptações telefônicas indiscriminadas e exija-se que se restrinjam a casos excepcionais, sempre sob autorização judicial.

�. Que sejam condenadas, sobretudo, as restrições e impedimentos ao exercício da advocacia criminal.

�. Que se reconheça à Advocacia de Estado o status de instituição autônoma, equidistante aos Poderes da República, significando dizer que possui discernimento próprio, independência intelectual, estabilidade funcional e sustentabilidade administrativa-financeira, as quais constituem garantias de tal intento, sem afastar o dever de assegurar o contraditório e a ampla defesa do Poder Público, bem como o dever de defender, nos marcos do Estado Democrático de Direito, as políticas públicas legitimamente aprovadas.

7. Que se envide esforços na implementação de uma nova sistemática de defesa da probidade e de recuperação do patrimônio público, destacando-se duas diretrizes: aproximação das medidas de preservação da probidade e de recuperação do patrimônio à época do fato que se está apurando; medidas efetivas de maior integração dos órgãos públicos entre si e destes com a sociedade.

8. Que se defenda a utilização processual dos institutos da alienação antecipada do bem para preservação do seu valor monetário — tão logo seja decretada a indisponibilidade — e o depósito dos valores arrecadados em conta judicial remunerada, bem como a do leilão eletrônico judicial e extrajudicial de forma a garantir o resultado útil dos procedimentos judiciais e administrativos de efetiva punição e de recomposição do patrimônio público, respeitado o contraditório e ampla defesa.

9. Que se defenda a interligação dos sistemas do Poder Público que gerenciam dados pessoais e de bens, viabilizando o acesso destes pelos órgãos da Advocacia de Estado, mantido o dever de proteção das informações sigilosas.

�0. Que se apoie o cumprimento das metas e a concretização dos objetivos da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA.

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��. Que se reconheça que a defesa da probidade também está na defesa dos agentes públicos, quando no exercício das suas atribuições e no interesse público.

�2. Que seja proposto anteprojeto de medida legislativa que atribua aos órgãos da Advocacia de Estado o poder de requisitar informações e dados, garantindo maior efetividade na defesa da probidade administrativa e na recuperação do patrimônio público desviado.

�3. Que se apoie projeto de redução de litigiosidade do Poder Público.

��. Que se defenda a adoção de um procedimento administrativo e institucional que vise a escolha de Advogados Públicos da respectiva carreira para os cargos de chefia dos órgãos que integram a Advocacia Pública, realizado periodicamente, através do voto dos membros da carreira, compondo listas dos mais votados, como sugestão coletiva, para serem encaminhadas à autoridade competente para nomeação.

��. Que seja lançada campanha nacional que demonstre a necessidade de fortalecimento das prerrogativas e garantias institucionais da advocacia pública para o adequado combate à corrupção o que visa economizar recursos públicos e permitir maiores investimentos no desenvolvimento de políticas sociais do Estado brasileiro.

��. Que se defenda a exclusividade das atribuições das carreiras da Advocacia Pública, providas através de concurso público, na representação judicial e extrajudical do Ente Público e da consultoria e assessoria jurídica dos Poderes da República.

�7. Que se reafirme a independência técnica dos advogados de Estado, e envidar esforços na implementação de uma nova sistemática de defesa da probidade e recuperação do patrimônio público.

�8. Que se defenda a exclusividade de provimento das atribuições na carreira da advocacia de Estado por concurso público;

�9. Que se registre a necessidade de fortalecimento das prerrogativas e garantias institucionais da advocacia pública para o adequado combate à corrupção, que visa economizar recursos públicos e permitir maiores investimentos em políticas sociais.

ConclusãoNotamos que a essência das �� (dezesseis) proposições apre-

sentadas foi aprovada pela XX Conferência Nacional dos Advogados, tendo a quase totalidade dessas propostas reproduzidas como reso-luções em seu relatório final e publicadas nos anais da Conferência da OAB.

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A implementação dessas propostas visa o aprimoramento da Advocacia de Estado e dos instrumentos de combate à corrupção. Apri-moramento da Advocacia de Estado entendido para que esta cumpra o seu mister de viabilizar o livre funcionamento dos Poderes da República, desde a defesa de suas prerrogativas, passando pelo seu adequado fun-cionamento e de suas funções essenciais à justiça, além de importantes políticas públicas legitimamente aprovadas pelo processo democrático, incluído neste contexto o combate à corrupção como verdadeiro antídoto a essa mazela sócio-político-econômica mundial.

Ocorre que muitas vezes nessa sua atuação a Advocacia de Estado deve agir para arbitrar colisões de interesses, seja no plano da sociedade, seja no plano federativo; ou entre os Poderes da República, ou interna-mente na administração pública de uma das esferas de governo. Diante disso, o Advogado de Estado deve utilizar uma hermenêutica jurídica material e renovada, que busque a concordância prática, fundada na ponderação de valores, para alcançar a harmonização da colisão dos direitos que se apresentam no dia a dia do seu trabalho.

Para tanto, é imprescindível compreendermos a Constituição como o centro do sistema jurídico, estabelecendo o mínimo de direitos e garantias da esfera pública e o mínimo de direitos e garantias da esfera privada, ficando a critério do jogo político ampliar um ou outro lado. Já, em relação ao intérprete da norma fundamental, dessa concepção constitucional, resulta o princípio da unidade da Constituição, enquanto unidade hierárquico-normativa, o que afasta a possibilidade de antino-mias normativas ou a possibilidade de normas constitucionais originárias serem inconstitucionais. Assim, é exigida coerência narrativa do sistema jurídico. E, no particular da atuação do Advogado de Estado, compete, a partir dessa coerência, defender a política pública democraticamente eleita, que respeite aqueles mínimos da esfera privada e pública, mas que decididamente direciona a atuação estatal em um ou noutro sentido.

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Princípio da moralidade e improbidade administrativa�

Márcio CammarosanoProfessor da PUC/SP.

Palavras-chave: Corrupção. Princípios formadores da Administração Pública. Princípio de moralidade. Improbidade administrativa.

Boa tarde a todos. Eu me permito saudar todos os integrantes desta mesa, e agradecer aos organizadores e colaboradores deste evento, pela generosidade de me haverem convidado, para tecer algumas rápidas palavras a respeito do tema que me foi assinalado. Permito-me também registrar um dado do meu currículo, que é aquele do qual eu mais me orgulho. Sou também integrante, embora aposentado agora, da Advocacia Pública. Aposentei-me como Procurador do Município de Santo André, no estado de São Paulo. E, portanto, toda a minha primeira formação e o meu estudo inicial pelo direito administrativo, foi ao ensejo do exercício no cargo de Procurador Municipal, como titular de cargo de provimento em caráter efetivo, o que não foi do agrado de alguns administradores, que já aquela época, e eu com 2� anos, imaginavam que eu estivesse a serviço do administrador de plantão, e não a serviço do município que servi por mais de 30 anos. E, portanto, fica aqui o registro da minha satisfação, do meu regozijo, por poder falar a colegas da Advocacia Pública, embora na condição humilde de ex-procurador de um município da grande São Paulo. Permito-me registrar também, a minha satisfação e o meu privilégio de poder ter ouvido aqui, dentre tantos ilustres expositores, dois dos maiores administrativistas deste país: Professor Almiro do Couto Costa e Silva e o professor Diogo de Figueiredo Neto, em rigor, são dois ilustres juristas, cujos livros procurei estudar e encontrar as primeiras, as segundas, e as terceiras respostas, que fui procurando no ensejo do exercício da advocacia, sobretudo na Advocacia Pública, e depois, como referências, no estudo acadêmico nos principais temas de Direito Administrativo e Constitucional. Como

1 Palestra proferida no IX Encontro Nacional dos Advogados da União (ENAU) e V Seminário Nacional sobre Advocacia do Estado realizado em Maceió, Alagoas, em 04 de novembro de 2008.

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esse tema, com o qual nos deparamos. E não deixa de ser uma missão ingrata, procurar reduzir meu pensamento, a respeito dessa matéria, em apenas 30 minutos. Digo em apenas 30 minutos, porque minha tese de doutorado, já há mais de �0 anos, mas só recentemente objeto de publi-cação, versa sobre o tema: O Princípio Constitucional da Moralidade, e o Exercício da Função Administrativa. Uma pequena obra que vale menos pelo o autor que a subscreve, e muito mais pela editora que a publica, que é a nossa Editora Fórum. Pois bem, sem ter recebido cachê algum a esse merchandising, no que diz respeito à Editora, porque no que diz respeito ao meu livro os senhores sabem que recebo polpudas partici-pações a título de direitos autorais, tanto é que estou, com base neles, estou querendo me erradicar aqui em Maceió, terra tão hospitaleira e bonita por todos os títulos.

Pois bem, a Advocacia do Estado, e o tema é: no Combate à Cor-rupção. Princípio da Moralidade e Improbidade Administrativa. Apenas rapidamente, nós todos sabemos para que existe o Estado: O Estado existe para a concepção dos objetivos assinalados na Constituição da República, e portanto, há resultados a serem alcançados, a serem perseguidos. E Portanto, é imperioso o controle dos resultados, muito ao gosto do profes-sor que nos honra com a sua presença, o professor Diogo. Mas é preciso assinalar também que o Direito não prescreve apenas os fins a alcançar, mas também os meios a serem adotados. O Direito, portanto, regula também, o processo de formação da vontade do administrador público. Por isso, é da maior importância não apenas o controle dos resultados, que modernamente se enfatiza, mas o controle dos meios, mesmo porque estou convencido, pela experiência na administração pública, e também pelos vários anos como advogado liberal, a experiência me demonstrou que o campo mais fértil para a corrupção é exatamente o campo dos meios, e não propriamente o campo dos resultados. Imaginem os senho-res, que quando da realização de uma obra pública, o que se espera no afinal, com o contrato, o que se espera como resultado final é a melhor obra. E a melhor obra é com o preço vigente no mercado. Mas é isto que basta em termos de controle da Administração Pública? O que nós poderíamos dizer da execução de uma obra pública por alguém, com uma empresa que havia sido contratada, que tenha executada a obra

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com perfeição, e até mesmo, supostamente de acordo com os preços vigentes no mercado, se a licitação foi dirigida, se não foi assegurada um tratamento isonômico aos eventuais interessados? E mais: se um edital dirigido, se uma licitação, dessa forma viciada, o foi intencionalmente, com o objetivo de possibilitar a terceiros auferir vantagens, nós estaría-mos rigorosamente, diante de corrupção, no que diz respeito aos meios adotados. Ainda que o fim último alcançado, considerado isoladamente, se apresentasse como adequado. E é, portanto, por tudo isso que nós devemos estar atentos, sobretudo nós, integrantes da Advocacia Pública, e em cujos ombros recai a responsabilidade, sobretudo, pelo controle da legalidade dos atos da Administração. Nós sabemos, do dever da boa administração, que os fins e meios que reclamam controle. E nós sabemos também o que seja corrupção. A corrupção se apresenta, em termos de direito público, como a violação mais grave do ordenamento jurídico. Tanto é que, atos de corrupção, configuram variados crimes. Consoantes à tipologia da legislação penal. Portanto, não há corrupção se não houver violação da ordem jurídica, da ordem jurídica integrada, não apenas por regras, mas por princípios. E no que diz respeito a crimes, por regras jurídicas, que qualificam determinados crimes, ou determinados comportamentos, como sendo crime, fato típico, antijurídico, e culpável, independentemente das divergências teóricas a respeito da definição do que seja crime. É importante, me parece importante assinalar, que para a configuração do crime, basta a prova de fato, e o juízo de subsunção do fato à regra de direito que descreve aquele fato como sendo infração penal. Ainda que tenhamos de nos valer de todos os métodos de inter-pretação, ainda que tenhamos de nos valer o que é de transcendental importância dos princípios informantes da ordem jurídica a considerar. A corrupção graça tanto nos meios quanto nos fins. Imaginemos, como já havia dito, que uma licitação viciada, com promessa de recompensa, criando dificuldades, para vender facilidades. Crime, corrupção quanto ao meio. E imaginemos uma rodovia, com um traçado que enriquece os donos das terras por onde passa, que as tenha adquirido com informação privilegiada. É o resultado da execução de um contrato em decorrência ou não de um processo licitatório como instrumento de favorecimento ilegal, caracterizador de crime.

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Sabemos também que o combate à corrupção se faz preventivamente, para que não ocorra, e repressivamente para sancionar, para promover a responsabilidade daqueles que violam ordem jurídica, sobretudo penal. Mas aí é importante, para nós ope-radores do direito, conhecermos algumas diferenças conceituais. Nós costumamos muitas vezes, alguns de nós, mais inadvertidamente, em tratar como se fossem expressões absolutamente sinônimas, corrupção, ato de improbidade, ato de imoralidade administrativa, e a ilegalidade, por mera inadvertência, ou erro do administrador mal informado. A corrupção é crime, é sempre um crime. Atos de improbidade há, que constituem crime também. Como previsto no artigo 8�, inciso V da Constituição da República. Porque atos de improbidade do Presidente da República constituem crime de responsabilidade. Já nem todos os atos, que se caracterizam como atos de improbidade, são tipificados como sendo crime. Há atos de improbidade, que ensejam responsabilização sim, mas nos termos da Lei nº 8.�29, de �992, única e exclusivamente. O que já não é pouca coisa, porque dentre as sanções previstas no orde-namento jurídico, talvez estas previstas na Lei da Improbidade, sejam a de maior gravidade, exceção feita àquelas penas privativas de liberdade, portanto de natureza criminal, a menos que se obtenha o benefício da suspensão da pena, ou o cumprimento de uma prestação social alter-nativa. Para nesses casos, quem exerce há 20 anos um cargo público, a perda do cargo é muito mais danosa, e prejudicial aos interesses de quem a sofre, do que a obrigatoriedade, por conta de uma infração penal, do fornecimento de duas, três, quatro, cinco ou dez cestas básicas.

E a imoralidade administrativa? A questão da moralidade admi-nistrativa implica a reconstrução de uma história. Mais resumindo, atos de improbidade podem atos que ofendem a moralidade administrativa, podem configurar crime! Podem configurar apenas improbidade admi-nistrativa, se é possível falar em “apenas” improbidade, podem configurar ilegalidade, qualificada pela violação a valores morais juridicizados. E também é preciso considerar que a violação a ordem jurídica, por erro, por ausência de dolo ou de má fé, que implicam apenas a anulação do ato, sem que tenha qualquer outra responsabilização. Há aqueles que, interpretando, de forma desarrazoada, um dos dispositivos da Lei de

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Improbidade, que descaracteriza improbidade, a violação de princípios formadores da Administração, imaginam que violando a lei, está se violando o princípio da legalidade, e, portanto, se está diante de imo-ralidade administrativa. O que não é correto dizer. Porque o que nós temos é que, um ato ofensivo à ordem jurídica, mesmo que levado a efeito, com o entendimento de boa fé do administrador, está aplicando adequadamente a lei ao caso concreto, pode ensejar a propositura ou a impetração de um mandato de segurança. E se a mera violação à ordem jurídica implicasse ypisile facto improbidade administrativa, toda vez que o Judiciário, com uma decisão transitada e julgada, concedesse uma segurança, deveria ir imediatamente remeter os autos ao Ministério Público, para a propositura das demais ações cabíveis. Portanto é preciso, até para não desprestigiar o conceito, fazer as distinções que impõem aos operadores do Direito.

Pois bem, vejamos os Princípios Formadores da Administração Pública. Nós sabemos já há muito tempo, que o ordenamento jurídico é composto por regras e por princípios. E sem entrar em maiores diva-gações teóricas, princípios se diferem das regras pelo elevadíssimo grau de generalidade e abstração que os informa. Sem entrarmos aqui em discussões mais aprofundadas a respeito da Teoria Geral dos Princípios. O princípio da moralidade, porque decidi tratar deste princípio, inclu-sive em obra que escrevi, porque percorrendo a maioria esmagadora dos autores nacionais que trataram da matéria, vi que quase todos dizem que viola-se a moralidade administrativa, quando há simplesmente uma ofensa à ordem moral de comportamento, a valores morais que preva-lecem no seio da sociedade num dado momento histórico. E constatei que esse entendimento vem em prestígio e desprestígio do próprio Direito as exigências de segurança jurídica. O princípio de moralidade esculpido na Constituição, no artigo 37 caput, veio em rigor, com mais de um século de atraso. Quando é que surgiu o princípio da moralidade? Resumindo, numa construção francesa, para fornecer uma fundamen-tação teórica ao controle, pelo conselho do Estado, dos atos expedidos ao ensejo de competência discricionária, eivados de desvio de poder, de desvio de finalidade. E por quê? Porque naquela época, falar em con-trole de legalidade, era controlar à luz da letra da lei, em uma postura

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de formalismo exarcebado. Falar em espírito da lei, falar em finalidade da lei era discordar dos limites do controle da legalidade, e o conselho de Estado só podia fazer o controle da legalidade. Então era muito fácil aqueles que, eventualmente, valendo-se de competência discricionária, em rigor, usassem sua competência por razões de favoritismo e perse-guição, furtarem-se ao controle do conselho de Estado, dizendo que o ato guardava estrita correspondência com a letra fria da lei, e controle de legalidade era verificar atos de adequação ou não à letra da lei. Mas o conselho de Estado começou a ir além, alargando o conceito de lega-lidade, e Oriu, e depois seus seguidores, trataram de desenvolver a teo-ria da moralidade administrativa, como moral jurídica, jamais como moral comum. Assim como havia o espírito da lei civil, era preciso falar no espírito da lei administrativa. E, portanto, estavam também, ofen-dendo o direito os atos que embora, conforme a letra da lei, estivessem em descompasso com a finalidade da lei, com o espírito da lei, ofendendo, portanto, a moralidade administrativa. Há quantas décadas, não sabemos nós, que falar de controle de legalidade no sentido amplo, implica fazer um controle do abuso de poder do desvio da finalidade. Basta uma observação da letra da lei, ou se exige, que o administrador haja de modo a evitar favoritismos e perseguições, devendo atender, sobretudo à fina-lidade, mais que a letra da lei, no cumprimento das suas funções. Por-tanto, quando se recolheu o princípio da moralidade administrativa, deu asas para que muitos dissessem: Agora, o administrador, além da obe-diência ao direito, deve obedecer a regras morais de comportamento. E aí nós caímos no terreno de areia movediça das concepções morais da ordem de comportamento, como se existisse apenas uma ordem moral de comportamento. E aí nós caímos na insegurança jurídica. Tanto é verdade que existe o código de ética, no exercício da advocacia, porque não basta dizer que o advogado tem que ter comportamento ético. Existe um código de ética, no exercício da função pública, porque não basta dizer o agente público tem que se conduzir de acordo com a ética, por-que salvo casos extremos, já sancionados pelo Direito, o que atende as exigências de ordem ética para uns, não é o que atende a exigência ética para outros. Querem ver os senhores uma prova disso? Como é que o direito reage à determinados comportamentos, que nós poderíamos

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dizer, suponho em um consenso, ofensivos à ordem moral de comportamento, pelo menos aquela ditada pela Igreja Católica Apos-tólica Romana. É moral mentir? Suponho que muitos dirão “não”. Pergunto eu, como o direito reage à mentira? A mentira da testemunha é crime. A mentira do réu, interrogado até mesmo perante autoridades, é exercício de direito. O aborto é imoral? Para a Igreja Católica Apostó-lica Romana, e não estou tomando partido, não me atreveria a tanto, o aborto é imoral, em quaisquer situações. Como trata o direito posto, quando trata o aborto? O aborto é crime. Salvo quando a gravidez é resultante de estupro, ou não há outro meio de salvar a vida da partu-riente. Como é que o direito reage ao homossexualismo? Comporta-mento permitido, desde que não haja escândalo público. Como é que o direito reage à pena de morte? Como é que o direito reage à eutanásia? Como é que o direito reage com experiências com células-tronco embrionárias? Recordam-se os senhores, que há pouco tempo o Supremo foi chamado a decidir essa matéria. E sabem os senhores, o resultado da votação. O Supremo, por maioria escassa de um voto, deu por constitu-cional a lei que permitia experiências com células-tronco embrionárias. Seis votos a favor e cinco votos foram pela inconstitucionalidade das experiências com células-tronco embrionárias. E os senhores se recordam, qual foi o argumento fundamental, utilizado por ambas as correntes do Supremo Tribunal Federal? O princípio da dignidade da pessoa humana. Que foi utilizado igualmente, pelos que deram a constitucionalidade, e pelos que deram a inconstitucionalidade. Porque uns invocaram o prin-cipio da dignidade humana como residente naqueles doentes, necessi-tados pelo avanço da medicina. E outros foram alocar o principio da dignidade humana no embrião, produto da concepção, e, portanto, já protegido na sua dignidade. Todos são a favor da dignidade da pessoa humana, mas uns são a favor da pena de morte, outros são contrários à pena de morte, há até aqueles que se proclamam favoráveis à dignidade da pessoa humana, mas alguns, dentre estes, que declaram isto formal-mente, admitem a tortura em determinadas circunstâncias, invadem países e exploram o povo, dizendo-se em guerras permanente, declarada com base em falsidades inomináveis. Já vieram a público. Perguntem a George W. Bush se ele é a favor ou contra o princípio da dignidade da

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pessoa humana. Ele dirá: ”Sou a favor”, e comete verdadeiro genocídio, como temos assistido. O que quero dizer aos senhores, companheiros da Advocacia Pública, é que a medida que nos passamos a todo instante de ver que é preciso ética na Administração, e é preciso ética, nós ficamos a dar a impressão que esses comportamentos que estamos cansados de ver não são ofensivos já à ordem jurídica estabelecida. Costumo lançar um desafio: me apontem um comportamento que os senhores conside-ram ofensivos à ética na Administração, que já não esteja vedado pelo direito posto, como já estabelecido. Acaso o nepotismo não está vedado pelos princípios consubstanciados pela Constituição? Caso a corrupção já não está verberada pela legislação penal em vigor neste país? Pensem nos exemplos que quiserem. Isto não está a significar que isto seja con-trário ao controle da Administração também no que concerne a proce-dimentos que se considerem antiéticos. Mais vejam o seguinte raciocínio jurídico: imaginem que ordem moral de comportamento tenha sido toda ela juridicizada pelo princípio da moralidade administrativa. Como se estivesse ele reportado direto e imediatamente a moral comum. Nós teríamos a moral comum — que moral não sei — incorporada pelo princípio constitucional da moralidade. Na Constituição da República e com status de norma constitucional. E, portanto, teríamos que fazer uma revisão geral de toda legislação existente, porque aquela legislação que consubstancia o preceito ofensivo à moral que se pensa, prevalente na sociedade num dado momento histórico, lei que precedeu a Consti-tuição de 88, foi por ela revogada. E as que estejam em conflito com a moral que teria sido juridicizada, e produzida, depois da Constituição de 88, padece do vício de inconstitucionalidade.

Quais os preceitos morais juridicizados? Com que intensidade? Com que formatação? E onde fica a segurança jurídica? Não vou invocar aqui, nenhum autor positivista — embora me proclame confessada-mente positivista, mas não formalista, um positivismo metódico, e não doutrinário, um positivista que não se conforma com o formalista. Mas vamos invocar um filósofo do Direito Nacional não positivista. Teoria Tridimensional Específica — Dinâmica do Direito: Miguel Reale, que já advertia quanto ao perigo da perda de confiança nas soluções nor-mativas. Nas exigências de pré-determinação formal do direito. Como

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um dos critérios distintivos por excelência, do direito e da moral. Pois bem, quando se fala em princípio da moralidade administrativa estamos nos referindo a valores morais sim, mas juridicizados, e como juridici-zados. Portanto, viola a moralidade administrativa quem age com falta de lealdade, quem age de má fé, quem age mediante subterfúgios. Mas tudo isso, dirão os senhores, já não está contemplado nas entranhas da nossa Constituição, ao apresentar os princípios implícitos e explícitos condicionadores da atividade da Administração Pública? Diria eu sim. Qual é a vantagem então, o que há de se extrair da Constituição da República, trazendo com um século de atraso o princípio da morali-dade, e que não pode, pelo menos no meu modo de compreender, ser considerado como referido, direto e imediatamente à moral comum, como se por ele, todas as regras da moral comum prevalentes na sociedade num dado momento histórico, tivessem sido juridicizados, e como status constitucional? É que a Constituição deu outro passo importantíssimo. Disse que a moralidade administrativa, e basta uma ofensa a ela, enseja propositura de ação popular por qualquer cidadão. Antes da Constituição de 88, se um administrador mal intencionado, ou até bem intencionado, achando que com a cobrança de tributos que se sabe, indevidos, estaria abastecendo os cofres públicos para a construção de mais escolas, ensejaria a impetração de mandato de segurança, por aquele que indevidamente foi o destinatário do lançamento tributário. Mas só o titular desse direito violado é que poderia postular a defesa dele em juízo. Mas nós sabemos quão difícil é o acesso à justiça. E como incutem temor, se não terror nos administrados determinados agentes públicos. E, portanto, aquele que não teve o direito violado, mas que assiste à violação do direito, porque a autoridade agiu de má-fé, com dolo, com destempero indevidamente, pode ele mesmo ir em socorro de outro cidadão, propondo a ação popular, para anulação do ato, por violação à moralidade administrativa, que se configura com a atuação desonesta, com a atuação, ainda que seja meramente desleal, eivada de má-fé, do agente público em geral. E, portanto, é preciso que nós apre-ciemos sim o princípio da moralidade administrativa, mesmo porque esculpido na Constituição da República de 88, mas não nos iludamos, no sentido de imaginar, que por força dele, qualquer valor moral, que

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supomos prevalecer no seio da sociedade, num dado momento histórico, em sendo violado pela autoridade, configura imoralidade administra-tiva. Verifiquem os senhores. Pelo menos de acordo com a concepção, se me permitem, da tradicional família mineira, quão determinados momentos, que graças hoje em dia são considerados ofensivos à moral, mas nem por isso autorizam a intervenção da autoridade pública. E costumo apontar alguns exemplos que podem eventualmente chocar algumas pessoas. Faço-o sem receio, e sem manifestar aqui qualquer opinião de ordem pessoal: Com o respeito devido aos representantes aqui, das alterosas das Minas Gerais, nós poderíamos dizer o quê? Que não atende, ao que se supõe moral, pelo menos na concepção da tradi-cional família mineira, na moral acolhida pela Igreja Católica Apostólica Romana, a passeata do orgulho gay, na Avenida Paulista em São Paulo, que há alguns anos para cá, vem obtendo um verdadeiro patrocínio do prefeito, ou da prefeita de São Paulo, estimulando a sua realização, talvez menos com o objetivo de reduzir resistências preconceituosas, e talvez mais com o objetivo de angariar votos para as próximas eleições. Mas pergunto eu: o Direito, como reage a este comportamento, ou a estas atividades? A prostituição é proibida no Brasil. Uma pessoa maior de idade, em quatro paredes, mediante mútuo consentimento, e, portanto, sem violência, a não ser violência leve, por ambos tolerados, e mediante paga, ou promessa de recompensa, viola a ordem jurídica? É evidente que não. Constitui crime impedir que se abandone a prostituição. Mas a prostituição em si mesma, nessas condições, que aventei, e outras mais condições que pululam por ai, não há nenhuma ofensa à ordem jurídica. A autoridade pública que deve obediência à moralidade administrativa deve interferir, para fazer respeitar a moralidade pública? Ou deve compulsar a população com códigos, adequadamente interpretados, à luz dos princípios, e até mesmo, professor Diogo, com uma interpre-tação prospectiva que desejamos por todos os títulos. Haverá de coibir manu militari o referido comportamento? Parece-me que a resposta só pode ser uma: não. Fala-se, se não me engano, em código de éticas em outros poderes, como no Judiciário. Para quê código de ética, se todos nós estamos, supostamente, de acordo quanto ao que, no varejo, é moral ou imoral.

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Esta manifestação, e me encerro aqui, não é no sentido de arrefecer o combate à corrupção. Ao contrário, é de nos estimularmos, nós, da Advocacia Pública, que fazemos o controle da legalidade no sentido amplo, da juridicidade dos atos da administração, que nós sejamos cada vez mais destemidos, mesmo porque a Constituição da República, não obstante a má vontade de alguns moderninhos, continua assegurando a nós aquelas garantias constitucionais, que nos permitem zelar pelos direitos, e pelos superiores interesses do povo brasileiro, e não do administrador de plantão. Mas para isto, nós não precisamos invocar nenhuma ética na administração. Nós devemos e podemos manejar a legislação existente, porque a corrupção é crime, e, portanto, e da legislação que nos devemos valer. Para que o nosso combate à corrupção seja um combate constitucionalmente sustentável, e não venhamos aí, a começar com base em invocações de preceitos éticos, não venhamos a começar a dar tiros para tudo quanto é lado, desprestigiando o direito, desprestigiando as normas jurídicas estabelecidas, pelos representantes, bem ou mal, do povo brasileiro, com acento no Congresso Nacional, e não em uma Presidência da República, como se por medida provisória, pudessem fazer aquilo que melhor lhes venha a aprovar, ou melhor lhes aprouve. Portanto, fica aqui essa manifestação de uma posição, sabida-mente minoritária, flagrantemente minoritária, qual seja o princípio da moralidade administrativa, inscrito no artigo 37, caput da Constituição, e no artigo quinto, inciso 73 da Constituição, que trata da ação popular, não está referido direta e imediatamente à moral comum, mas sim a valores morais juridicizados, e como juridicizados, ampliando a possibilidade do cidadão fazer uso da ação popular, e em nada prejudicando, e em rigor nada acrescentando ao nosso dever de combate incessante à corrupção, que é a maior e verdadeira desgraça deste país. Muito obrigado.

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Parte IIIDesenvolvimento Social

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Desenvolvimento social e combate à corrupção: sobre o atendimento das necessidades básicas e a prática das virtudes cívicas*Patrus AnaniasMinistro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Palavras-chave: Desenvolvimento social. Corrupção (combate).

Estamos vivenciando um momento político muito rico no Brasil, com movimentos claros de aprofundamento dos princípios democráticos de nossa experiência, e algumas iniciativas refletem bem isso. É o caso da organização do IX Encontro Nacional de Advogados da União e V Seminário Nacional sobre Advocacia de Estado. Além da importância do evento em si, ao promover o diálogo entre a carreira dos advogados da União e a comunidade jurídica, demonstra uma abertura e sensibilidade de incluir temas sociais, reconhecendo a ampla dimensão na vida pública do país. Por isso, agradeço pela oportunidade de discutir o tema Desenvolvimento Social e Combate à Corrupção, que é um assunto pertinente e oportuno, ao mesmo tempo que nos permite fazer chegar a mais pessoas informações sobre a ampla rede de proteção e promoção social que estamos cons-truindo, com efeitos transformadores sobre a vida das pessoas que mais precisam — as famílias pobres e vulneráveis —, mas também com reflexos na organização de toda a sociedade. Além disso, é importante tratar da fundamental parceria entre a Advocacia da União e os ministérios da área social, pois ilustres Advogados da União estão na linha de frente da defesa da execução republicana e democrática das políticas públicas, quando surgem os eventuais questionamentos jurídicos.

A maior forma de corrupção, de desvio ético e moral que pode existir é a aceitação passiva da existência da fome e a miséria. Portanto, penso que o ponto de partida necessário para qualquer discussão sobre

* Texto elaborado a partir da palestra proferida no IX Encontro Nacional de Advogados da União e V Seminário Nacional sobre Advocacia de Estado.

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o desenvolvimento social em nosso país é enorme dívida social que o Brasil acumulou ao longo de sua história. Essa trajetória começa com as Capitanias Hereditárias, propiciando uma relação comprometedora que ainda repercute nos nossos dias entre o público e o privado, na qual os donatários tinham poderes públicos, mas se apropriavam privadamente da exploração — muitas vezes predatória — de seus domínios. Posterior-mente, tivemos o coronelismo, com espaços muitas vezes de poder e de mando dentro ou até mesmo acima do próprio Estado.

Nossa dívida tem a marca da exclusão de muitos que deu susten-tação a uma situação de privilégios. Abolimos tardiamente a escravidão e, quando a abolimos, não tomamos medidas para integrar, na vida nacional, nos direitos e deveres da cidadania, os nossos antepassados escravos, o que, como bem analisou Florestan Fernandes, nos deu uma ordem social incompleta. Carregamos uma dívida também com nossos antepassados indígenas.

O fato é que a questão social no Brasil, até pouco antes da Revolução de �930, era considerada como uma questão não de política pública, mas de polícia. O governo do Presidente Getúlio Vargas, com suas contradições, representou a bem da verdade um marco histórico no Brasil, ao colocar a questão social na agenda nacional, ainda que sob uma perspectiva corporativista e autoritária, sobretudo a partir de �937 e, mesmo assim, restrita a algumas categorias profissionais.

Foi somente com nossa Constituição Federal de �988 que as políti-cas sociais foram colocadas no campo das políticas públicas. Nossa Carta incorporou uma concepção de Estado que busca uma síntese superior de integração e transcendência entre as conquistas do estado liberal, os direitos e garantias individuais, a afirmação da dignidade da pessoa humana e dos grupos intermediários como a família, as comunidades, o compromisso com as liberdades públicas e democráticas.

Ao mesmo tempo, incorporou as grandes conquistas do Estado de Bem-Estar Social, no que se refere aos direitos dos trabalhadores, dos pobres, das minorias, dos mais fragilizados, apontando também para vigorosas políticas de inclusão, de justiça social — como as que nós esta-mos, hoje, implementando no Brasil. Foi com base na Constituição que se desdobraram, posteriormente, sistemas normativos importantes para

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a garantia dos direitos sociais, como o SUS (Sistema Único de Saúde), o SUAS (Sistema Único de Assistência Social), o SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), o Estatuto da Criança e do Adoles-cente, a Lei Orgânica da Assistência Social, a lei que instituiu o Programa Bolsa Família, o Estatuto do Idoso, todas que regulamentam e traduzem na prática os princípios, os valores e as normas constitucionais.

Portanto, sobre os alicerces lançados pela Constituição de �988, estamos construindo, pela primeira vez, o edifício da proteção e da pro-moção social em nosso país, por meio de políticas públicas de Estado. Estamos construindo um marco institucional voltado para a garantia e a efetivação dos direitos sociais, que foram negados à maioria da popula-ção brasileira, ao longo de toda a nossa história. Estamos substituindo o assistencialismo pelo direito à assistência, e essa é uma inovação funda-mental, por substituir as práticas clientelistas e patrimonialistas, que eram tão presentes em nosso país, por um arcabouço sólido que regulamenta a prestação de serviços sociais e a concessão de benefícios sociais. Essa mudança é significativa do ponto de vista do cidadão, que, em vez de ser colocado numa posição submissa aos desígnios e às vontades pessoais dos governantes, passa a assumir um papel de agente, detentor de direitos sociais, que são obrigação do Estado. Mas é igualmente uma mudança de grande magnitude do ponto de vista dos gestores públicos, que têm o dever de implementar políticas para a garantia desses direitos.

Em especial, a Constituição de �988 deu um tratamento especial aos municípios colocando-os como entes constitutivos da federação brasileira. Nossa Carta Magna reuniu um conjunto de normas que fazem com que o município tenha hoje um espaço importante na imple-mentação das políticas sociais no país. Por isso, a execução das políticas de desenvolvimento social requer o estabelecimento de parcerias com estados, municípios e entidades da sociedade civil. Dado um contexto em que os municípios são dotados de variados graus de capacidade administrativa, a execução descentralizada de políticas reveste-se de importantes desafios.

Para evitar desvios na aplicação dos recursos, estamos sempre atentos para o controle, o estabelecimento de normas e procedimentos, a prestação de contas, o monitoramento e a avaliação dos resultados.

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Isso vale para recurso público de qualquer natureza, quanto mais para recursos destinados aos mais pobres. Estes merecem nosso maior zelo para que os investimentos sociais sejam aplicados da forma mais efetiva possível, dentro dos princípios éticos mais rigorosos.

O Programa Bolsa Família é um bom exemplo que ilustra como esta-mos conseguindo avançar rumo a um modelo republicano e democrático de execução de políticas sociais. Este programa é o eixo de integração do nosso conjunto de políticas de desenvolvimento social. Ele ampliou de forma significativa e colocou as políticas de transferência de renda no Brasil em um patamar superior, visando a universalizar o recebimento do benefício entre os pobres. Com o Bolsa Família — presente em todos os �.��3 muni-cípios brasileiros e mais o Distrito Federal — foi possível dar um mínimo de dignidade a mais de �� milhões de famílias pobres — cerca de �� milhões de pessoas. Cada família recebe, em média, R$8� por mês, e os recursos transferidos têm efeitos imediatos e significativos sobre as condições de vida da população pobre, promovendo o acesso a alimentos e o atendimento de outras necessidades básicas. Além dos benefícios financeiros, as famílias devem observar a frequência das crianças na escola e observar o calendário de saúde de crianças e gestantes, que são o que chamamos de contrapartidas de saúde e educação, voltadas para ampliar suas capacidades e contribuindo para romper o ciclo intergeracional da pobreza.

Quando o programa foi lançado, em outubro de 2003, e também durante seu primeiro ano de existência, não faltaram críticas e acusa-ções. Diziam que o programa estava cercado de fraudes. Ou que era eleitoreiro. Em contraste, hoje é interessante observar que, logo após o primeiro turno das eleições de 2008, alguns meios de comunicação compararam os dados do Programa Bolsa Família com o balanço dos resultados eleitorais e concluíram: o programa não rende votos. Nos �00 municípios com maior percentual de beneficiários, o índice de reeleição dos prefeitos seguiu a média nacional. Ao analisar também os partidos vencedores, o fato de serem cidades contempladas pelo programa não significou favoritismo do Partido dos Trabalhadores: o partido lançou nesses lugares �� candidatos e elegeu quatro.

Isto nada mais é do que um exemplo concreto de como estamos conseguindo estruturar as políticas de desenvolvimento social dentro de

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um processo republicano e democrático. O Bolsa Família foi construído em parceria com todos os governos estaduais e municipais e com os con-selhos de assistência social. Ancorado em texto legal, votado e aprovado pelo Congresso Nacional, o Bolsa Família marca, junto a outras ações governamentais, a era em que as políticas sociais deixam o campo do clientelismo para ancorar no porto das políticas públicas normatizadas, com critérios, transparência e prestação de contas.

Já na eleição passada de 200�, um relatório do Tribunal de Contas da União atestava o caráter público e a solidez dos critérios do Bolsa Família, por meio de uma auditoria que avaliou o processo de concessão de benefícios. Ficou comprovado que a seleção dos beneficiários atende a uma ordem de procedimentos universais predefinidos, sem vínculo partidário. Na avaliação que faz do programa, o Banco Mundial destaca a focalização como um de seus pontos positivos. Temos investido numa ampla rede de fiscalização e controle do programa, trabalhando com mecanismos internos e contando com uma rede pública com participação da Corregedoria da União e do Ministério Público.

Nesse processo de aperfeiçoamento da gestão das políticas sociais, nosso grande marco é o Cadastro Único, que reúne informações sobre as famílias de baixa renda no país, oferecendo um completo diagnóstico socioeconômico dos cadastrados. O controle e monitoramento do Bolsa Família emprega de forma intensiva as tecnologias de informação, cru-zando dados do Cadastro Único com outras bases de dados do Governo Federal para averiguar a existência de família com renda per capita acima de R$�20,00, que é o valor limite para recebimento do Bolsa Família.

Mas, para além do controle, o Cadastro Único também pode ser uti-lizado pelos municípios, Estado e União para planejamento das políticas públicas, a partir da identificação das demandas. Essa divisão de tarefas segue as orientações da Constituição Federal e das leis infraconstitucio-nais que regulamentam nossos programas. O município, na definição constitucional, é um lócus administrativo e político importante, um ente federativo autônomo e, como tal, deve ser tratado nos planejamentos das políticas públicas.

Nos seus cinco anos de existência, o Bolsa Família já se consoli-dou, em seus princípios, como um programa integrado a nossa rede de

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proteção e promoção social. No passado, pessoas, famílias, comunidades inteiras que não receberam a atenção e os cuidados devidos dos poderes públicos tornaram-se alvo fácil de candidatos inescrupulosos, na forma mais perversa de corrupção que é a compra de votos. Hoje, nossa ampla rede de proteção e promoção social está conseguindo captar e canalizar as melhores energias de nossa gente, fazendo da dignidade humana um valor comum a todos.

Os mesmos princípios éticos, democráticos e republicanos que norteiam o desenho e a implementação do Bolsa Família também regem os demais programas de desenvolvimento social e combate à fome. Na área da Assistência Social, implementamos o Sistema Único da Assistência Social (SUAS), que institui um novo modelo de organização dos serviços socioassistenciais e da gestão da política de assistência social de forma unificada em todo o território nacional, articulando as ações do Governo Federal, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal.

O SUAS está estruturado em diversos níveis de complexidade. Na Proteção Social Básica, destaca-se o Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF), cujos serviços são prestados nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Nos CRAS, as famílias em situação de vul-nerabilidade social são atendidas com orientação social e psicológica. Atualmente, 3,� mil municípios recebem cofinanciamento do Programa de Atenção Integral às Famílias em 3,7 mil CRAS.

Na Proteção Social Especial, o Programa de Erradicação do Tra-balho (PETI), implementado de forma articulada ao Programa Bolsa Família, transfere renda às famílias, tendo como contrapartida as condi-cionalidades do Bolsa Família e a participação em ações socioeducativas no contraturno escolar. Atualmente, o PETI atende a 87� mil crianças.

Ainda no âmbito da Assistência Social, é concedido o Benefício de Prestação Continuada (BPC), uma importante transferência de renda que paga um salário mínimo mensal a idosos com mais de �� anos e a pessoas portadoras de deficiências com renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo que estejam incapacitadas para o trabalho. O BPC atende hoje a �,7 milhão de pessoas com deficiência e �,� milhão de idosos em todo o Brasil. Os recursos transferidos são vultosos: no ano de 2008, serão investidos R$�� bilhões.

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Na área da Segurança Alimentar e Nutricional — que visa a garantir um dos mais elementares direitos humanos, o direito humano à alimentação adequada —, o combate à fome teve uma prioridade inques-tionável, desde o início do primeiro mandato do Presidente Lula, com o lançamento do Fome Zero. O Sistema Nacional de Segurança Alimen-tar e Nutricional (SISAN) foi instituído em 200� pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) e reúne ações intersetoriais centradas na garantia do direito humano à alimentação adequada.

Destaco o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), gerido pelo MDS. Trata-se de um programa voltado à aquisição de alimentos de agricultores familiares, com isenção de licita-ção, por valores referenciados pelos mercados regionais. Os alimentos adquiridos pelo PAA são destinados a pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. Portanto, considero que esse é um dos programas mais representativos do Fome Zero: de um lado, promove a autonomia e a emancipação de pequenos produtores ao garantir a compra de alimentos; e, de outro, atende àqueles que ainda experimentam o flagelo da fome. Atualmente, com investimento de R$�0� milhões, 70 mil agricultores familiares venderam sua produção por meio do PAA.

Não posso deixar de mencionar, ainda, a importância do programa de construção de cisternas na região do semiárido brasileiro. Cada vez mais, o acesso à água configura-se como um elemento indispensável para a segurança alimentar e nutricional, especialmente nas regiões de maior escassez. Atualmente, já temos 2�8 mil cisternas construídas, sendo que �99 mil delas com recursos do MDS; e o restante, de parceiros.

Desde o princípio, nosso objetivo tem sido a implementação das políticas sociais sob uma perspectiva republicana, de políticas públicas garantidoras de direitos sociais, visando à redução de dois problemas que caminham juntos no Brasil, desde os tempos iniciais da colonização até nossos dias: a pobreza e a desigualdade social. Desta forma, traba-lhamos incessantemente pela transparência, pela prestação de contas, pelo acompanhamento e pela fiscalização. Tudo isso é muito importante não só do ponto de vista do controle, da auditoria e do combate à cor-rupção, mas também do ponto de vista da informação aos cidadãos e cidadãs sobre como os recursos públicos estão sendo aplicados. Além de

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aprimorarmos incessantemente nossas ações, temos que ser capazes de oferecer à sociedade informações sobre seus resultados.

É importante lembrar que os pobres pagam impostos, assim como a sociedade como um todo. Todos os contribuintes têm o direito de saber onde e como estão sendo aplicados os seus recursos e o retorno desses investimentos sociais. Daí a importância dos indicadores, da avaliação constante. Quando as pessoas sabem quantas famílias estão sendo aten-didas ou quantas crianças já não passam fome, é muito mais fácil que elas entendam a importância da permanência das políticas e programas sociais. Tudo isso para que possamos, cada vez, trabalharmos juntos e dividirmos as conquistas e o período virtuoso e inédito que o nosso país vem vivendo.

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Entidade beneficente de assistência social e regulamentação do §7º do art. �9� da Constituição Federal Idervânio da Silva CostaAdvogado da União. Ex-Consultor Jurídico do Ministério da Previdência Social. Consultor Jurídico do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Especialista em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Palavras-chave: Entidade beneficente de assistência social. Art. �9�, §7º, da Constituição Federal.

Sumário: 1 Introdução – 2 Entidade beneficente de assistência social – 3 Art. �9�, §7º, da Constituição Federal: regra de isenção ou imunidade – 4 Regulamentação por lei complementar ou por lei ordinária – 5 Mandado de Injunção nº 232/RJ: entendimento do Supremo Tribunal Federal – 6 Posição do Poder Legislativo – 7 Aplicação subsidiária do Código Tributário Nacional – 8 Conclusão – Referências

1 IntroduçãoO tema referente à isenção tributária das contribuições para a

seguridade social relativas às entidades beneficentes de assistência social e sua regulamentação infraconstitucional tem despertado o interesse dos estudiosos do direito e constitui objeto de discussão permanente no âmbito da Administração Pública e do Poder Judiciário.

O legislador constituinte, reconhecendo a utilidade e a importância do trabalho a ser desenvolvido pelas entidades beneficentes de assistência social, resolveu dispensá-las do pagamento das contribuições para a seguridade social, conforme previsão do §7º do art. �9� da Constituição Federal.

A concepção ontológica que inspirou a concessão de tal benesse fiscal fundamenta-se na seguinte questão: uma vez que as entidades beneficentes de assistência social desenvolvem ações e executam serviços inseridos nas políticas da seguridade social, em atividade complementar às obrigações do próprio Estado, por que tributá-las para, em seguida, aplicar os recursos na mesma área. Assim, em reconhecimento aos relevantes serviços a serem prestados pelas entidades beneficentes de assistência social, o Estado fica impedido de tributar estas pessoas jurídi-cas de direito privado. Contudo, sobre estas entidades recaem a obrigação

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e a responsabilidade de prestar um serviço público de qualidade à mesma população que o Estado atenderia, ou seja, às pessoas em situação de vulnerabilidade social.

No entanto, o legislador constituinte não excluiu da tributação, irrestritamente, todas as entidades beneficentes de assistência social, mas apenas aquelas que atendessem às exigências estabelecidas em lei.

Portanto, a Constituição Federal não estabelece um direito absoluto às entidades beneficentes de assistência social. Neste ponto, estabelece apenas a possibilidade de que a entidade beneficente de assistência social que atender às exigências legais possa gozar do benefício fiscal.

Assim, o presente estudo pretende aclarar quem são as entidades beneficentes de assistência social beneficiárias da isenção fiscal consti-tucional e qual o instrumento legal adequado para regulamentar o §7º do art. �9� da Constituição Federal: lei ordinária ou lei complementar.

2 Entidade beneficente de assistência socialA Constituição Federal de �988 agraciou a entidade beneficente

de assistência social com a dispensa do pagamento das contribuições para a seguridade social (que engloba previdência, saúde e assistência social), nos seguintes termos:

Art. �9� (...)

§7º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.

Portanto, como se trata de regra de natureza tributária, é preciso definir quem é o contribuinte beneficiário da norma constitucional, ou seja, é imprescindível saber o que é uma entidade beneficente de assis-tência social.

Num primeiro momento, faz imprescindível estabelecer a diferença entre entidade beneficente de assistência social e entidade filantrópica, uma vez que possuem campos de atuação distintos.

Entidade beneficente de assistência social é aquela instituição que, desprovida do intuito de lucro e sem praticar a mercancia, tem por objetivo o desempenho de ações, atividades e serviços voltados ao

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atendimento das necessidades básicas, mínimas e prementes das pessoas naturais carentes, necessitadas e hipossuficientes, com vistas à erradicação da miséria e à manutenção da dignidade da pessoa humana.

Entidade filantrópica, embora também não tenha fins lucrativos, tem como finalidade o desempenho de ações, atividades e serviços voltados para o bem das pessoas, que de alguma forma proporcione um benefício ao indivíduo, com vistas à promoção do bem de todos e proporcionar o bem-estar da pessoa humana.

Diante da conceituação acima, pode-se afirmar que toda entidade beneficente de assistência social é uma instituição filantrópica, mas nem toda instituição filantrópica é uma entidade beneficente de assistência social. A diferença resume-se ao campo de atuação, onde a filantropia é muito mais abrangente do que a beneficência de assistência social.

Quanto a este ponto, destaca-se a lição de Celso Barroso Leite,� que ensina com precisão a distinção entre a filantropia e a assistência social:

(...)

Em última análise o objetivo de uma e a finalidade da outra consistem em prestar ajuda, das mais variadas maneiras e em diferentes níveis, no tocante a necessidades básicas, vitais, ou tendo em vista melhorar a qualidade de vida; e em ambos os casos está presente a noção de fraternidade humana, de solidariedade, embora podendo não ser a única.

O conceito de filantropia é amplo, complexo, voltado em geral para ações de maior porte e por vezes de efeitos menos objetivos e menos diretos, destinadas inclusive a pessoas que desfrutam de satisfatórias condições de vida. O de assistência social, mais modesto, diz respeito sobretudo a programas essenciais ou até emergenciais, destinados a pessoas que dependem deles para a própria subsistência ou pouco mais, isto é, pessoas necessitadas, carentes.

A diferença que mais nos interessa aqui é que filantropia é gênero e assistência social uma das suas espécies, donde resulta que toda entidade de assistência é filantrópica, mas nem toda entidade filantrópica é de assistência social. Já registrei essa distinção e terei que repeti-la em outras passagens do livro.

Percebe-se, então, que a atuação da entidade beneficente de assis-tência social é bem mais restrita que a da entidade filantrópica. Enquanto a filantropia abarca toda e qualquer atividade ou ação praticada em benefício e para o engrandecimento do ser humano, a assistência social

1 LEITE. Filantropia e contribuição social, p. 31.

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limita-se às ações e atividades que preencham e satisfaçam as necessidades prementes e vitais do indivíduo.

Nos termos da nossa legislação atual, para serem consideradas entidades beneficentes de assistência social precisam demonstrar o cum-primento de determinadas exigências legais, quais sejam:

�) direcionar suas atividades para o atendimento das necessi-dades básicas do ser humano e para o assessoramento dos legítimos beneficiários da assistência social, a saber, as pessoas socialmente excluídas, seja por questão econômica, biológica ou física, assim como para a defesa e garantia de seus direitos (art. 3º da Lei nº 8.7�2/93);

2) ser pessoa jurídica de direito privado, sem qualquer finalidade lucrativa, ou seja, sem pretender, de alguma forma, desenvol-ver atividade mercantil (art. 3º da Lei nº 8.7�2/93 e art. 2º do Decreto nº 2.�3�/98);

3) prestar serviços gratuitos de forma permanente (§�º do art. 3º do Decreto nº 2.�3�/98);

�) atender a todos os necessitados e carentes sem qualquer res-trição, ou seja, sem qualquer discriminação de clientela (§�º do art. 3º do Decreto nº 2.�3�/98);

�) possuir prévia inscrição no Conselho Municipal de Assis-tência Social — quando inexiste, no Conselho Estadual de Assistência Social —, ou no Conselho de Assistência Social do Distrito Federal, conforme o caso, que constitui o passo inicial para pleitear a referida titulação (art. 9º, caput e §3º, da Lei nº 8.7�2/93 e art. 3º, inciso II, do Decreto nº 2.�3�/98);

�) deter a condição de entidade de utilidade pública federal (art. 3º, XI, do Decreto nº 2.�3�/98);

7) obter prévio atestado de registro no Conselho Nacional de Assis-tência Social – CNAS (art. �8, inciso IV, da Lei nº 8.7�2/93);

8) não cometer nenhuma irregularidade na aplicação dos recursos que lhes forem repassados pelos poderes públicos (art. 3� da Lei nº 8.7�2/93);

9) estar legalmente constituída no País e em efetivo funciona-mento nos três anos anteriores ao requerimento do Certificado (art. 3º, I, do Decreto nº 2.�3�/98);

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�0) aplicar suas rendas, seus recursos e eventual resultado operacional integralmente no território nacional e na manu-tenção e no desenvolvimento de seus objetivos institucionais (art. 3º, IV, do Decreto nº 2.�3�/98);

��) aplicar as subvenções e doações recebidas nas finalidades a que estejam vinculadas (art. 3º, V, do Decreto nº 2.�3�/98);

�2) aplicar anualmente, em gratuidade, pelo menos vinte por cento da receita bruta proveniente da venda de serviços,2 acrescida da receita decorrente de aplicações financeiras, de locação de bens, de venda de bens não integrantes do ativo imobilizado e de doações particulares, cujo montante nunca será inferior à isenção de contribuições sociais usufruídas (art. 3º, VI, do Decreto nº 2.�3�/98);

�3) não distribuir resultados, dividendos, bonificações, participa-ções ou parcelas do seu patrimônio, sob nenhuma forma ou pretexto (art. 3º, VII, do Decreto nº 2.�3�/98);

��) não perceberem seus diretores, conselheiros, sócios, institui-dores, benfeitores ou equivalentes, remuneração, vantagens ou benefícios, direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título, em razão das competências, funções ou atividades que lhes sejam atribuídas pelos respectivos atos constitutivos (art. 3º, VIII, do Decreto nº 2.�3�/98);

��) destinar, em seus atos constitutivos, em caso de dissolução ou extinção, o eventual patrimônio remanescente a entida-des congêneres registradas no CNAS ou a entidade pública (art. 3º, IX, do Decreto nº 2.�3�/98);

��) não constituir patrimônio de indivíduo ou de sociedade sem caráter beneficente de assistência social (art. 3º, X, do Decreto nº 2.�3�/98).

2 “Neste quadro fragmentado, desarticulado, onde não se expressam claramente a atribuição estatal e a participação da iniciativa privada há ainda outro agravante: a burocratização.

A definição destes serviços como não exigindo a ‘contraprestação direta do assistido’ termina por acarretar um aparato comprobatório de despesas, auxílios etc., para que não configurem a chamada ‘dilapidação do patrimônio público’”.

Com isto, a burocracia contábil estabelece limites reais à criatividade e elasticidade no uso de recursos, processos e instrumentos de ação, pressionando por um reducionismo do atendimento assistencial a ajudas parciais e fragmentadas” (SPOSATI; BONETTI; YAZBEK; FALCÃO. A assistência social na trajetória das políticas sociais brasileiras).

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A competência para certificar uma entidade como beneficente de assistência social pertence ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), nos termos da Lei nº 8.7�2, de �993.

Neste ponto, convém registrar que tramita no Congresso Nacio-nal o Projeto de Lei nº 3.02�/2008, proposto pelo Poder Executivo,3 no sentido de alterar sistematicamente as exigências e o mecanismo de reconhecimento de entidade beneficente de assistência social, bem como de concessão da isenção das contribuições para a seguridade social.

3 Art. 195, §7º, da Constituição Federal: regra de isenção ou imunidade

A primeira questão que se apresenta quando se pretende estudar a norma do §7º do art. �9� da Constituição Federal é verificar se se trata de uma regra de isenção ou de imunidade.

Os institutos da imunidade e da isenção tributária possuem con-ceitos e alcances distintos, que refletem na atuação do fisco.

O instituto da imunidade tributária trata-se de uma limitação cons-titucional ao poder de tributar, onde a própria Constituição Federal exclui um fato da competência tributária do Estado. Trata-se de uma forma de não incidência pela retirada da competência do poder de tributar.

Assim, determinadas relações, fatos, pessoas e situações, quando reconhecidas pela Constituição Federal como imunes, adquirem um escudo contra a hipótese de incidência tributária e, desde que atendam aos pressupostos legais, não podem ser tributados.

Por sua vez, Paulo de Barros Carvalho� assim conceitua o instituto da imunidade:

Classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a

3 Na Exposição de Motivos que acompanha o Projeto de Lei nº 3.021/2008 destaca-se a seguinte justificativa: (...) Observa-se que a situação é crítica e não pode ser perpetuada, impondo-se a reformulação da atual

sistemática relativa à certificação e à isenção, de forma a permitir um julgamento rápido e eficaz por parte do Poder Público.

Assim, a solução encontrada passa, obrigatoriamente, pela extinção da figura do Cebas da forma como existe hoje, substituindo-o pela certificação das entidades beneficentes de acordo com sua área de atuação — saúde, educação e assistência social. Há a preocupação de separar os requisitos da certificação, que resultam no reconhecimento do caráter beneficente das entidades de saúde, educação e assistência social, dos requisitos da isenção. Embora a certificação seja pressuposto da fruição da isenção, esta exige outros requisitos que serão fiscalizados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, do Ministério da Fazenda.

4 CARVALHO. Curso de direito tributário. 18. ed., p. 116.

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incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas.

Por sua vez, a isenção, conceitualmente, cuida-se de uma hipótese de exclusão do crédito tributário, ou seja, é um benefício fiscal decorrente de previsão legal que não permite a constituição do crédito tributário. Cuida-se de dispensa do pagamento do tributo devido, nos termos do art. �7�, inciso I, do Código Tributário Nacional.

Conceitualmente, a imunidade não é uma renúncia fiscal, mas uma limitação ao poder de tributar, enquanto a isenção é uma renúncia em que o Estado pode tributar, mas deixa de fazê-lo por razões diversas de interesse público.

No sentido de demonstrar a diferença entre isenção e imunidade, Luciano Amaro� disciplina que:

Basicamente, a diferença entre a imunidade e a isenção está em que a primeira atua no plano da definição de competência, e a segunda opera no plano do exercício da competência. Ou seja, a Constituição, ao definir a competência, excepciona determinadas situações que, não fosse a imunidade, quedariam dentro do campo de competência, mas, por força da norma da imunidade, permanecem fora do alcance do poder de tributar outorgado pela Constituição. Já a isenção atua noutro plano, qual seja, o do exercício do poder de tributar: quando a pessoa política competente exerce esse poder, editando a lei instituidora do tributo, essa lei pode, usando a técnica de isenção, excluir determinadas situações, que, não fosse a isenção, estariam dentro do campo de incidência da lei de tributação, mas, por força da norma isentiva, permanece fora desse campo

Diante desta diferença conceitual, surge a dúvida se a regra do §7º do art. �9� da Constituição Federal é uma isenção ou imunidade tributária, tendo em vista a utilização do termo “isenção”.

Na verdade, trata-se de uma imunidade tributária, conforme já definiu o Supremo Tribunal Federal, nos termos do julgado a seguir transcrito:

Ementa: Mandado de segurança. Contribuição previdenciária. Quota patronal. Entidade de fins assistenciais, filantrópicos e educacionais. Imunidade (CF, art. �9�, §7º). Recurso conhecido e provido.

5 AMARO. Direito tributário brasileiro. 18. ed., p. 152.

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A Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia, por qualificar-se como entidade beneficente de assistência social — e por também atender, de modo integral, as exigências estabelecidas em lei — tem direito irrecusável ao benefício extraordinário da imunidade subjetiva relativa às contribuições pertinentes à seguridade social.

A cláusula inscrita no art. �9�, §7º, da Carta Política — não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social —, contemplou as entidades beneficentes de assistência social, com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei.

A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal já identificou, na cláusula inscrita no art. �9�, §7º, da Constituição da República, a existência de uma típica garantia de imunidade (e não de simples isenção) estabelecida em favor das entidades beneficentes de assistência social. Precedente: RTJ �37/9��.

Tratando-se de imunidade — que decorre, em função de sua natureza mesma, do próprio texto constitucional —, revela-se evidente a absoluta impossibilidade jurídica de a autoridade executiva, mediante deliberação de índole administrativa, restringir a eficácia do preceito inscrito no art. �9�, §7º, da Carta Política, para, em função de exegese que claramente distorce a teleologia da prerrogativa fundamental em Referência, negar, à entidade beneficente de assistência social que satisfaz os requisitos da lei, o benefício que lhe é assegurado no mais elevado plano normativo. (RMS nº 22.�92/DF, �ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello. DJ, �9 dez. �99�)

Sendo assim, uma vez que o guardião e intérprete maior da Constitui-ção Federal já definiu que se trata de imunidade tributária e não de isenção, entende-se que é desnecessário maiores divagações sobre esta questão.

4 Regulamentação por lei complementar ou por lei ordináriaO tema relativo à regulamentação do §7º do art. �9� da Constitui-

ção Federal provoca acalorado debate entre os doutrinadores que, em sua maioria, defendem a tese de que a regulamentação da imunidade das contribuições sociais das entidades beneficentes de assistência social deveria ocorrer por meio de lei complementar.

Para este grupo de juristas prevalece o entendimento de que o §7º do art. �9� da Constituição cuida de uma limitação constitucional ao poder de tributar, portanto, deve ser regulamentado por lei complementar, em razão do disposto no art. ���, inciso II, da Constituição Federal.

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Os defensores da tese da necessidade de regulamentação através de lei complementar prendem-se ao argumento de que, como o legislador constituinte não mencionou no art. �9�, §7º, que os requisitos para o gozo da imunidade seriam estipulados por lei ordinária, da mesma forma que não o fez no art. ��0, inciso VI, alínea “c”, ambos da Constituição Federal, houve por parte do constituinte um silêncio eloqüente a respeito da espécie legislativa a ser utilizada.

Neste sentido, em defesa da necessidade de lei complementar, leciona Edgard Neves da Silva:�

A primeira baseia-se no inciso II do artigo ��� da Constituição, ao determinar que cabe à lei complementar “regular as limitações ao poder de tributar”. Em sendo a imunidade uma limitação constitucional, sua regulamentação somente poderá ser veiculada por lei complementar. A outra refere-se às possíveis conseqüências, se lei ordinária fosse a reguladora, pois seria afetada sua origem constitucional. Pela lei complementar, os requisitos exigidos seriam iguais e obrigatórios para todas as ordens de governo, o que não ocorreria se a norma fosse ordinária, submetida que ficaria ao critério de cada uma das esferas de competência, podendo chegar ao absurdo de uma entidade de educação, por exemplo, ser imune em um município e não em outro, em face da possibilidade de haver requisitos diferentes em cada legislação.

Deste modo, aplicar-se-ia o princípio geral estatuído para o sistema tributário nacional, ou seja, obrigatoriedade de lei complementar para “regular as limitações ao poder de tributar”.

Em razão deste dispositivo, a imunidade de que trata o art. �9�, §7º, da Constituição, não teria como não ser regulamentada por lei complementar.

De outro lado, perfila alguns doutrinadores que defendem a tese de que a regulamentação do §7º do art. �9� da Constituição Federal deve ocorrer por lei ordinária. A Constituição é bem clara quando diz que a regulamentação dessa imunidade dar-se-á através de lei, sem qualquer adjetivação, o que denota ser suficiente a edição de lei ordinária.

Quando o legislador constituinte quis que se utilizasse lei com-plementar ele expressamente e explicitamente restou consignado no próprio texto constitucional, como, por exemplo, no inciso VII do

6 In: MARTINS (Coord.). Curso de direito tributário.

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art. ��3 da Constituição, que diz que compete à União instituir impostos sobre: grandes fortunas, nos termos de lei complementar.

Esta afirmação é corroborada pela jurisprudência pacífica e uni-forme do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual lei complementar só é exigível quando a própria Carta Magna expressamente assim o determina. Destacam-se os julgados a seguir:

Ementa: Agravo Regimental em Recurso Extraordinário. Constitucional. Tributário. Imposto de Importação. Majoração de Alíquota. Decreto. Ausência de motivação e inadequação da via legislativa. Exigência de lei complementar. Alegações improcedentes.

�. A lei que estabelece condições e limites para a majoração da alíquota do imposto de importação, a que se refere o artigo ��3, §�º, da Constituição Federal, é a ordinária. A lei complementar somente é exigível quando a própria Constituição expressamente assim o determina. Aplicabilidade da Lei nº 3.2��/�7 e suas alterações posteriores.

2. Decreto. Majoração de alíquotas do imposto de importação. Motivação no seu bojo. Exigibilidade. Alegação insubsistente. A motivação do decreto que alterou as alíquotas encontra-se no procedimento administrativo de sua formação e não no diploma legal.

3. Majoração de alíquota. Inaplicabilidade sobre os bens descritos na guia de importação. Improcedência. A vigência da norma legal que alterou a alíquota do imposto de importação é anterior à ocorrência do fato gerador, que se realizou com a entrada da mercadoria no território nacional.

Agravo regimental não provido. (AGRRE nº 2�987�/CE, 2ª Turma, Ministro Maurício Corrêa. DJ, � jun. 99)

Ementa: ADIn – Lei nº 8.��3/92 – Ministério Público junto ao TCU – Instituição que não integra o Ministério Público da União – Taxatividade do rol inscrito no art. �28, I, da Constituição – Vinculação administrativa a corte de contas – competência do TCU para fazer instaurar o processo legislativo concernente a estruturação orgânica do Ministério Público que perante ele atua (CF art. 73, caput, in fine) – Matéria sujeita ao domínio normativo de legislação ordinária – Enumeração exaustiva das hipóteses constitucionais de regramento mediante lei complementar – Inteligência da norma inscrita no art. �30 da constituição – Ação Direta Improcedente.

(...)

Só cabe lei complementar, no sistema de direito positivo brasileiro, quando formalmente reclamada a sua edição por norma constitucional explícita.

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A especificidade do Ministério Público que atua perante TCU, e cuja existência se projeta num domínio institucional absolutamente diverso daquele em que se insere o Ministério Público da União, faz com que a regulação de sua organização, a discriminação de suas atribuições e a definição de seu estatuto sejam passíveis de veiculação mediante simples lei ordinária, eis que a edição de lei complementar e reclamada, no que concerne ao Parquet, tão-somente para a disciplinação normativa do Ministério Público Comum (CF, art. �28, par. �). (ADIn nº 789-DF, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello. DJU, �9 dez. 9�, p. 3��80 — destaquei)

A jurisprudência pacífica do STF firmou a tese de que a lei comple-mentar somente é exigível quando a própria Constituição expressamente assim o determina, ou melhor, quando formalmente reclamada a sua edição por norma constitucional explícita.

Nessa linha de intelecção, é incontroverso que a Constituição criou uma regra geral, qual seja: lei complementar regula as limitações consti-tucionais ao poder de tributar, imunidade inclusive; e uma exceção: são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficen-tes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei (art. �9�, §7º), lei ordinária no caso.

Em complemento, tem-se que o constituinte não exigiu a observân-cia de lei complementar nem mesmo quando tratou, de forma geral, das contribuições sociais, uma vez que o art. ��9, caput, da Constituição Fede-ral, ao determinar que as contribuições lá referidas deveriam observar os princípios aplicáveis aos demais tributos, não mencionou o inciso II do art. ���, também da Constituição Federal, conforme se verifica abaixo:

Art. ��9. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômica, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. ���, III e ��0, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. �9�, §�º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.

Neste ponto, o art. ��9 da Constituição Federal exclui, intencio-nalmente, as contribuições sociais da submissão à regra do art. ���, II — precisamente o inciso que exige lei complementar para regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.

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Portanto, a interpretação gramatical e a lógica levam à conclusão de que a expressão “em lei” foi tomada no sentido de indeterminação. Não é uma lei especial como é a complementar, nem uma lei específica que trate isoladamente da matéria.

Por fim, numa interpretação teleológica, é cediço que a mens legis-latori, ou melhor, o desejo do legislador constituinte não foi de misturar lei ordinária com lei complementar, sendo esta última exigida somente quando a Constituição expressa e explicitamente a reclama.

Em conclusão, no caso específico da imunidade das entidades beneficentes de assistência social, a lei de que trata o art. �9�, §7º é a ordinária. E a lei ordinária consiste na Lei nº 8.2�2, de 2� de julho de �99�, publicada no DOU, 2� jul. �99�, cujo art. �� trouxe as exigências a que se refere o art. �9�, §7º da Constituição.

5 Mandado de Injunção nº 232/RJ: entendimento do Supremo Tribunal Federal

Em contraposição à tese dos doutrinadores que defendem a exigência de lei complementar para regulamentar o §7º do art. �9� da Constituição Federal, destaca-se aqui que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Mandado de Injunção nº 232/RJ, já manifes-taram expressamente que o §7º do art. �9� exige apenas lei ordinária para sua regulamentação.

Por se tratar de um relato fático e histórico, pede-se especial aten-ção para os trechos e para as datas dos votos proferidos no julgamento do Mandado de Injunção nº 232/RJ a seguir transcritos:

(...)

2. Sucede, porém, que, no caso, o parágrafo 7º do artigo �9� não concedeu o direito de imunidade às entidades beneficentes de assistência social, direito esse que apenas não pudesse ser exercido por falta de regulamentação, mas somente lhes outorgou a expectativa de, se vierem a atender as exigências a ser estabelecidas em lei, verão nascer, para si, o direito em causa. O que implica dizer que esse direito não nasce apenas do preenchimento da hipótese de incidência contida na norma constitucional, mas, depende, ainda, das exigências fixadas pela lei ordinária, como resulta claramente do disposto no referido parágrafo 7º:

(...)

Se já existe o direito constitucionalmente outorgado, essa entidade já tem esse direito, não há dúvida. Quer dizer, não pode vir a lei a exigir um requisito

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que ela não possa preencher, como, por exemplo, o de ser ela uma entidade fechada e a lei só concede a entidades abertas. Então estamos admitindo que a lei posterior possa vir retirar um direito que já reconhecemos em abstrato para ela. O que mostra, obviamente, que não é caso de mandado de injunção. Estamos permitindo que a lei ordinária possa restringir a Constituição.

(...)

Não há dúvida de que ainda não foi editada a lei a que alude o §7º do artigo �9� da Constituição, consignando as informações apenas a existência de projetos de lei que dizem respeito a essa matéria especificamente, ou que dela cuidam entre outras normas relativas à seguridade social.

Por isso, e tendo em vista o disposto no artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, está caracterizada a mora inconstitucional do Congresso. (Ministro Rel. Moreira Alves. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

E a partir do momento em que concluímos que a eficácia do §7º do artigo 195, quanto à isenção nele contemplada, de uma legislação ordinária, é preciso que se dê alcance à previsão relativa ao mandado de injunção.

Com isso, concluo pelo acolhimento do pedido e estabeleço os requisitos que poderão vir a ser substituídos por uma outra legislação específica, tomando de empréstimo o que se contém no CTN quanto à imunidade relativa aos tributos e que beneficia as entidades mencionadas no §7º do artigo �9� da Carta. (Ministro Marco Aurélio Melo. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

Sr. Presidente, com a vênia do Ministro Relator, penso que a disposição inscrita no §7º do art. �9� difere daquela inscrita no §9º do art. �2 da Constituição Federal.

No §9º do art. �2 há como que uma delegação do constituinte ao legislador ordinário; já no §7º do art. �9�, estabelece-se que, atendidas as exigências inscritas na lei, as entidades beneficentes de assistência social gozam de isenção da contribuição para a seguridade social.

O direito está concedido desde que atendidas as condições e os requisitos inscritos em lei. (Ministro Carlos Velloso. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

A norma consubstanciada no art. �9�, §7º, da Constituição, instituiu, claramente, em favor das entidades beneficentes de assistência social, uma situação subjetiva de vantagem no plano jurídico.

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Reconheceu-lhes, de modo efetivo e indisputável, direito público subjetivo à imunidade, em face das contribuições para a seguridade social, uma vez atendidas as exigências estabelecidas em lei, que constitui, na espécie, o instrumento jurídico-normativo de concretização da vontade do legislador constituinte. (Ministro Celso de Mello. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

Agora, outra coisa, a meu ver, está no art. �9�, §7º, e o Ministro Celso de Mello, usando das categorias teóricas da elaboração de Canotilho, o demonstrou com absoluta precisão: é óbvio que, também nele se deixou ao legislador certa liberdade decisória. Mas não a liberdade para conceder ou não, eventualmente, um direito, segundo a livre valoração do legislador. O que se demandou do legislador foi a concretização de requisitos legais adequados ao propósito da norma constitucional de tornar imune da contribuição previdenciária o que seja entidade beneficente, segundo conceito adequado a essa regra de imunidade e ás inspirações. (Ministro Sepúlveda Pertence. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

Mostrou bem o Ministro CELSO DE MELLO, com base em categorias teóricas muito recentes, do Professor Canotilho, que não tem aí o legislador ordinário uma discrição absoluta para modificar o conceito dado pelo constituinte. Daí decorre uma conseqüência de ordem prática: se o legislador, porventura, desnatura o conceito de entidade de assistência social, nasce para o prejudicado o direito à proteção judicial. Caso contrário, não. (Ministro Célio Borja. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

Abstratamente, o sujeito da imunidade é conhecido, e a identidade dos sujeitos possíveis é verificável pelo aplicador da norma que a concede.

Para fruí-la, contudo, esses sujeitos que o constituinte definiu, atenderão “às exigências estabelecidas em lei.” Isto quer dizer que o legislador ordinário pode acautelar o reconhecimento por ato declaratório não constitutivo da imunidade, exigindo a satisfação de certos requisitos que visam à identificação do sujeito da imunidade, quase-imunidade o isenção, ao tipo da norma constitucional.

(...)

Entendendo, como procurei demonstrar, que a associação civil requerente, é titular do direito à imunidade, quase-imunidade ou isenção constitucional da contribuição previdenciária que, como empregadora, lhe toca, vê-se, contudo, impossibilitada de fruí-la porque o legislador ordinário não dispôs, até aqui,

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sobre as EXIGÊNCIAS que terá de atender para demonstrar que é entidade BENEFICENTE de assistência social (art. �9�, §7º, Const.). (Ministro Célio Borja. Voto datado de 02.08.�99�)

(...)

Este, Sr. Presidente, é também o caso dos autos. Parece havê-lo demonstrado o eminente Ministro Relator. Pondera o eminente Ministro Célio Borja, que a lei ordinária não poderá vir a desnaturar o conceito de entidade beneficente de assistência social. Poderá, entretanto, estabelecer requisitos e distinguir entre aquelas que devam, ou não, ser enquadradas na imunidade. (Ministro Octávio Gallotti. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

Na verdade, a Constituição remeteu à lei a criação do próprio direito, segundo as exigências que fizer.

Aliás, o que a lei não pode fazer é conferir imunidade a qualquer entidade de assistência social, sem fazer qualquer exigências.

Enquanto não o fizer, não há direito da autora, cujo exercício dependa de regulamentação.

Até porque a lei poderá estabelecer exigências que ela não atende. (Ministro Sydney Sanches. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

A própria caracterização, portanto, da pessoa que deve exercer esse direito ainda está indefinida, precisando de lei que a regulamente. Parece que assim, sem que a lei estabeleça exatamente as características básicas que devem ser atendidas por aquelas entidades de assistência social para que possa obter esse benefício, não podemos admitir, de pronto, sua legitimidade “ad causam”, se essa própria caracterização da pessoa jurídica que exercerá esse direito não está definida. (Ministro Aldir Passarinho. Voto datado de 0�.02.�99�)

(...)

A meu ver, não há, aqui, espaço a mandado de injunção. A lei, de que cuida o §7º do art. �9� referido, é que disporá a respeito dos requisitos que devam preencher as entidades beneficentes de assistência social, em ordem a poderem gozar desse direito que se prevê na Constituição. Assim sendo, não há, ainda, um direito assegurado na Constituição, cujo exercício dependa de regulamentação. Há necessidade de lei que defina quais os requisitos que devem ter certas

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entidades beneficentes de assistência social, a fim de gozar desse benefício consignado §7º do art. �9�, da Constituição Federal. (Ministro Pres. Néri da Silveira. Voto datado de 0�.02.�99� — todos os destaques são meus)

Percebe-se que, em momento algum, nenhum dos Ministros do Supremo Tribunal Federal faz qualquer menção à lei complementar. Sempre se reportaram somente à lei e, muitas vezes, referiram-se expressamente à “lei ordinária” e ao “legislador ordinário”.

Portanto, conclusão lógica que se extrai do julgado supracitado, é que o STF já se posicionou no sentido de que a regulamentação do §7º do art. �9� da Constituição não exige lei complementar e pode ser realizada por lei ordinária.

Outro ponto que confirma a possibilidade do §7º do art. �9� da Constituição ser regulamentado por lei ordinária assenta-se na questão de que o Mandado de Injunção nº 232/RJ fundamentou-se na mora do Congresso Nacional, em razão do decurso do prazo fixado no art. �9 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que prevê:

Art. �9. Os projetos de lei relativos à organização da seguridade social e aos planos de custeio e de benefício serão apresentados no prazo máximo de seis meses da promulgação da Constituição ao Congresso Nacional, que terá seis messes para apreciá-los:

O próprio STF, inclusive, para declarar a mora do Congresso Nacio-nal em relação à regulamentação do §7º do art. �9� da Constituição Federal, fundamentou-se no referido art. �9 do ADCT, que trata indubitavelmente de lei ordinária. Segue transcrita parte da ementa do MI nº 232/RJ:

Ementa: Mandado de Injunção.

Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no §7º do artigo �9� da Constituição Federal.

Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo �9 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional.

Para adequado entendimento da questão fática ocorrida naquele julgamento histórico do Mandado de Injunção nº 232/RJ, convém des-crever uma sequência cronológica e chamar a atenção para as datas:

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�) o mandado de injunção foi distribuído em 2�.03.�990;2) o julgamento iniciou no dia 0�.02.�99�, com rejeição da prelimi-

nar de ilegitimidade ativa, por maioria, com votos dos Ministros Moreira Alves (Relator), Marco Aurélio, Carlos Velloso, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Célio Borja, Octavio Gallotti, Sydney Sanches, Aldir Passarinho e Néri da Silveira (não admitiu o MI);

3) também no dia 0�.02.�99� iniciou-se o julgamento do mérito com votos dos Ministros Moreira Alves, Marco Aurélio, Carlos Velloso, suspenso em virtude do pedido de vista do Ministro Célio Borja;

�) o feito foi apresentado em mesa no dia �º.07.�99�, entretanto, o julgamento foi adiado em virtude do adiantado da hora;

�) prosseguiu o julgamento no dia 02.08.�99� com votos dos Ministros Célio Borja, Sepúlveda Pertence, Octavio Gallotti, Sydney Sanches e Moreira Alves (este apenas confirmou seu voto).

Destaca-se que o julgamento do mandado de injunção iniciou-se antes do advento da Lei nº 8.2�2, de 2� de julho de �99�, publicada no Diário Oficial da União, de 2� jul. �99�, e terminou logo em seguida à sua edição, mais precisamente, 08 (oito) dias após sua publicação.

Infere-se, portanto, que houve um equívoco por parte do STF — uma vez que já entendia que a regulamentação do §7º do art. �9� da CF/88 recla-mava apenas lei ordinária — ao não atentar para o fato de que a Lei nº 8.2�2, de 2� de julho de �99�, regulamentou o referido dispositivo constitucional (o que culminaria, logicamente, na perda do objeto do referido mandado de injunção) e prosseguiram no julgamento do mérito imediatamente após o retorno das férias forense, no dia 02 de agosto de �99�.

Pois bem, muito embora o STF tenha prosseguido no julgamento do supracitado mandado de injunção logo após o advento da Lei nº 8.2�2, de 2� de julho de �99�, o certo é que esta lei regulamentou o §7º do art. �9� da CF/88 e estabeleceu os requisitos para que as entidades beneficentes pudessem gozar da imunidade das contribuições para a seguridade social.

De toda sorte, em que pese o STF já ter admitido a utilização de lei ordinária, a discussão em torno da necessidade de lei complementar para regulamentar o §7º do art. �9� da Constituição Federal, atualmente, constitui objeto da ADI nº 2028/DF, em tramitação no Supremo Tribunal

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Federal, a qual já tem parecer da Procuradoria-Geral da República, opinando pelo não conhecimento da referida ação direta de inconstitu-cionalidade, mas, se conhecida, pela sua improcedência, e encontra-se aguardando voto do Min. Joaquim Barbosa.

Contudo, no bojo da ADI nº 2028/DF houve concessão de medida cautelar no sentido de suspender a eficácia do art. �º, na parte em que alterou a redação do art. ��, III, da Lei 8.2�2, de �99�, e acrescentou-lhes os §§3º, �º e �º, e dos arts. �º, �º e 7º, todos da Lei 9.732, de �� de dezembro de �998, que, consequentemente, revigorou a Lei nº 8.2�2, de �99�, e determinou sua aplicação com a redação anterior.

Por conseguinte, depreende-se da medida cautelar concedida na ADI nº 2028/DF, referendada pelo plenário em ��.��.�999, que o STF determinou a aplicação do art. �� da Lei nº 8.2�2, de �99�, como norma regulamentar do §7º do art. �9� da CF/88, com sua redação anterior à edição da Lei nº 9.732, de �998, até julgamento final do mérito da referida ação direta de inconstitucionalidade.7

6 Posição do Poder LegislativoComo dito alhures, o Supremo Tribunal Federal julgou o Mandado

de Injunção nº 232/RJ e declarou em mora o Congresso Nacional quanto ao seu dever institucional de regulamentar o §7º do art. �9� da Cons-tituição Federal.

Após a conclusão do julgamento, a Presidência do Supremo Tri-bunal Federal encaminhou o Ofício nº ��3/P ao Congresso Nacional comunicando àquela casa legislativa a decisão proferida no Mandado de Injunção nº 232/RJ.

Em resposta ao referido Ofício nº ��3/P, que comunicou oficialmente a declaração de mora do Congresso Nacional, o Presidente do Congres-so Nacional encaminhou ao Supremo Tribunal Federal o expediente SM/Nº 80�/9�, de �2 de agosto de �99�, informando ao Presidente do STF que “o §7º do art. �9� da Constituição Federal foi regulamentado pelo art. �� da Lei nº 8.2�2, de 2� de julho de �99�”, in verbis:

SENADO FEDERAL

SM/Nº 80�/9�

7 (...) Tudo recomenda, assim, sejam mantidos, até a decisão final desta Ação Direta de Inconstitucionalidade, os parâmetros da Lei nº 8.212/91, na redação primitiva.

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Entidade beneficente de assistência social e regulamentação do §7º do art. 195 da Constituição Federal 195

Em �2 de agosto de �99�.

Senhor Ministro

Com referência ao ofício nº ��3/P, de 7 de agosto corrente, desse Tribunal, cumpre-me comunicar a Vossa Excelência que o §7º do art. �9� da Constituição Federal foi regulamento pelo art. �� da Lei nº 8.2�2, de 2� de julho de �99�, publicada no Diário Oficial da União do dia seguinte.

Aproveito a oportunidade para apresentar a Vossa Excelência protestos de estima e consideração.

Senador MAURO BENEVIDES

Presidente

Em arremate, após o comunicado oficial do Senado Federal, ainda que persistisse alguma dúvida sobre a regulamentação do §7º do art. �9� da Constituição pelo art. �� da Lei nº 8.2�2, de �99�, o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Injunção nº ���/SP, veio confirmar que o referido dispositivo constitucional já foi regulamentado pelo art. �� da Lei nº 8.2�2, de �99�, conforme ementa a seguir:

Constitucional. Entidade civil, sem fins lucrativos. pretende que lei complementar disponha sobre a imunidade à tributação de impostos e contribuição para a seguridade social, como regulamentação do art. �9�, §7º, da CF. A hipótese é de isenção. A matéria já foi regulamentada pelo art. �� da Lei nº 8.2�2/9�, com as alterações da Lei 9.732/98. Precedente. Impetrante julgada carecedora de ação. (STF, MI, Tribunal Pleno, Rel. Min. Nelson Jobim. DJ, 2� out. 2002)

Deste modo, tem-se a certeza de que o art. �� da Lei nº 8.2�2, de �99�, regulamentou o §7º do art. �9� da Constituição Federal, haja vista a confirmação por ato oficial do Senado Federal e confirmação pelo Supremo Tribunal Federal.

7 Aplicação subsidiária do Código Tributário NacionalCom relação ao tema da regulamentação do §7º do art. �9� da

Constituição, existe ainda a tese doutrinária de que esta limitação consti-tucional ao poder de tributar já se encontra regulamentada pelo Código Tributário Nacional (CTN).

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Tal tese veio à luz pelo voto do Min. Marco Aurélio, proferido no julgamento do Mandado de Injunção nº 232/RJ em 06.02.1991 — que contou com a adesão dos Ministros Carlos Velloso e Célio Borja —, que, em razão da ausência de lei ordinária — naquele momento — , acolheu o Mandado de Injunção e admitiu, apenas por empréstimo, os requisitos previstos no Código Tributário Nacional, até que viessem a ser substitu-ídos por uma outra legislação específica, nos seguintes termos:

(...)

Com isso concluo pelo acolhimento do pedido e estabeleço os requisitos que poderão vir a ser substituídos por uma outra Legislação específica, tomando por empréstimo o que se contém no CTN quanto à imunidade relativa aos tributos e que beneficia as entidades mencionadas no §7º do art. �9�, da Carta.

Em seus votos, os Srs. Ministros vencidos concluem, expressamente, pela necessidade de norma ordinária para disciplinar as exigências para concessão da imunidade estabelecida no §7º do art. �9� da Constituição, conforme abaixo será demonstrado. Contudo, admitiram apenas por empréstimo, em face da ausência de qualquer outra norma, a aplicação dos mesmos requisitos previstos no Código Tributário Nacional quanto à imunidade relativa aos tributos.

Deste modo, percebe-se que a questão relativa a aplicação analógica do Código Tributário Nacional como norma regulamentar da isenção/imunidade das contribuições para a seguridade social já foi apreciada e decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em votação plená-ria, quando do julgamento do Mandado de Injunção nº 232/RJ (RTJ, n. �37/9��), que pleiteava a declaração de mora do Congresso Nacional em razão da não regulamentação do §7º do art. �9� da Constituição.

Naquele julgamento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, não admitiu sequer a utilização por empréstimo do Código Tri-butário Nacional e rejeitou a tese de sua aplicação subsidiária, julgando procedente o mandado de injunção para declarar o Congresso Nacional em mora na regulamentação do §7º do art. �9� da Constituição Federal.8

8 Decisão do Mandado de Injunção nº 323/RJ: “Ementa: Mandado de Injunção. Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no §7º do artigo 195 da Constituição Federal. Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido par declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõe para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, §7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo em que essa obrigação se cumprirá, passar o requerente a gozar da imunidade requerida”.

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Entidade beneficente de assistência social e regulamentação do §7º do art. 195 da Constituição Federal 197

8 ConclusãoA regra do art. �9�, §7º, da Constituição Federal que isenta as entida-

des beneficentes de assistência social do pagamento das contribuições para a seguridade social, exige uma lei para produzir os efeitos desejados.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Mandado de Injunção nº 232/RJ já teve a oportunidade de, no pas-sado, declarar a mora do Congresso Nacional quanto à necessidade de regulamentação do referido dispositivo.

Por sua vez, o Congresso Nacional declarou oficialmente que já promoveu a regulamentação do art. �9�, §7º, da Constituição Federal, mediante a aprovação da Lei nº 8.2�2, de �99�, que dispõe sobre o Plano de Custeio da Seguridade Social.

Em que pese a insistência de muitos doutrinadores e juristas de defender a tese de que a regulamentação do §7º do art. �9� da Constitui-ção devesse ocorrer mediante a edição de lei complementar, nota-se que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional já se posicionaram no sentido de que a regulamentação exige apenas lei ordinária.

Além do mais, o texto da Constituição é bastante claro quando diz que as exigências para fruição do benefício fiscal serão estabelecidas em lei.

O benefício fiscal em questão, embora a Constituição utilize a ex-pressão “isenção”, possui natureza jurídica de imunidade tributária.

Mesmo sendo caracterizada como uma imunidade, a Constituição con-dicionou sua fruição ao atendimento das exigências estabelecidas em lei.

Embora os doutrinadores defendam a tese de que a imunidade tributária é absoluta, a Constituição tem a autoridade de estabelecer uma imunidade tributária condicionada e esse comando não pode ser afastado por simples interpretações jurídicas.

Assim, é imperioso concluir que a regra do §7º do art. �9� da Constituição trata, na prática, de uma imunidade tributária, contudo, condicionada às exigências estabelecidas por lei ordinária, que, no caso, são as exigências previstas no art. �� da Lei nº 8.2�2, de �99�.

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Idervânio da Silva Costa198

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Direitos fundamentais sociais e a cláusula da reserva do possível: limites à atuação estatalMarcio Pereira de AndradeAdvogado da União. Especialista em Direito Constitucional pelo IDP.

Palavras-chave: Direitos sociais fundamentais. Reserva do possível. Limites do poder público.

Sumário: Introdução – 1 Direitos fundamentais sociais – 1.1 Conceito – 1.2 A efetividade das normas constitucionais – 1.3 Direitos fundamentais sociais como regras e princípios – 1.4 Direitos fundamentais sociais e princípio da proporcionalidade – 2 Cláusula da reserva do possível – 2.1 Introdução – 2.2 Políticas públicas e orçamento: breve noção – 2.3 Natureza jurídica da cláusula da reserva do possível – 2.3 Natureza jurídica da cláusula da reserva do possível – 2.4 Origem da cláusula do reserva do possível – 2.5 A reserva do possível no Judiciário brasileiro – 2.6 O princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial – Conclusão – Referências

IntroduçãoO texto constitucional impõe ao poder público uma grande tarefa,

a efetivação dos direitos sociais fundamentais, que via de regra se con-cretiza com o dispêndio de elevadas somas de recursos públicos, mas até que ponto esses direitos são exigíveis? Poderia o Estado se esquivar de seus deveres a pretexto da escassez de recursos? Quais os limites da ação estatal e do incremento das políticas públicas?

A efetividade dos direitos fundamentais sociais no Brasil sempre foi tema polêmico, diante, de um lado, de um país em desenvolvimento cujo orçamento público é limitado, e de outro, de um país cujas mazelas sociais parecem inesgotáveis.

Diante desse quadro, cabe analisar os postulados Constitucio-nais máximos que orientam o Estado Democrático de Direito diante da efetividade dos direitos sociais fundamentais e os limites da ação governamental.

O presente artigo procura, assim, desenvolver uma reflexão teórica a respeito efetividade dos direitos sociais fundamentais, a cláusula da

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reserva do possível e a limitação da atuação do poder público diante da escassez de recursos.

1 Direitos fundamentais sociais1.1 Conceito

Discorrer sobre o conceito de direitos fundamentais sociais não é tarefa tão simples, diante do quadro de proposições existentes na doutrina. Numa definição genérica, Robert Alexy� define os direitos fundamentais sociais como:

Os direitos a prestações em sentido estrito (direitos sociais fundamentais) são direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que — se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e se encontrasse no mercado uma oferta suficiente — poderia obter também de particulares.

Esse conceito, contudo, não é suficiente para identificar os direitos sociais fundamentais na Constituição Brasileira. Assim, a doutrina ainda costuma distinguir um conceito formal e um conceito material.

Ensina Ana Carolina L. Olsen2 que os direitos fundamentais sociais em sentido formal são “todos aqueles previstos no Capítulo II do Título II, expressamente chamados ‘Direitos Sociais’, e pertencentes ao catálogo dos ‘Direitos e Garantias Fundamentais’”. Entretanto, enfatiza que não são os únicos, pois se deve levar em conta a concepção material de direitos fundamentais.

Em concepção material Paulo Bonavides3 é quem melhor sintetiza os direitos sociais fundamentais ao afirmar que “não há diferença de valor entre direitos sociais e os direitos individuais, pois ambos estão conectados a um valor maior: a dignidade da pessoa humana”.

A dignidade da pessoa humana, portanto, é o critério que identifica a fundamentalidade de um direito social. Contudo, como bem conclui Ana Carolina L. Olsen:�

1 Apud COELHO, Helena B. C. M. Direitos fundamentais sociais: reserva do possível e controle jurisdicional. Revista da Procuradoria Geral do Estado/Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 30, n. 63, p. 124, jan./jun. 2006.

2 OLSEN, Ana Carolina L. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente a reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 38.

3 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 562.4 OLSEN, A. C. L. Op. cit., p. 45.

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ainda que o princípio da dignidade da pessoa humana não seja o único critério material de valor significativo para a elaboração de um conceito material de direitos fundamentais sociais, e para identificação daqueles direitos fundamentais fora do catálogo constitucional, sua relevância se impõe a ponto de tornar possível sua assunção como critério material basilar.

A seguir tratar-se-á do tema sobre a efetividade das normas constitucionais, por ser correlato e inerente à abordagem dos direitos fundamentais sociais.

1.2 A efetividade das normas constitucionaisTendo-se em vista que os direitos fundamentais estão previstos pri-

mordialmente em normas constitucionais ou em tratados internacionais, é imperioso abordar o tema da efetividade das normas constitucionais, antes de adentrar o tema do trabalho propriamente dito.

A doutrina classicamente distinguiu a efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais individuais — direitos de defesa —, dos direitos sociais — direitos a prestação em sentido estrito. Assim, os direitos individuais — direitos de defesa — são entendidos como aqueles do qual não se exige uma atuação do Estado; ao contrário, exige-se sua não interferência na autonomia privada, enquanto que os direitos fundamentais sociais — direitos a prestação em sentido estrito — exigem uma atuação do Estado voltada para a materialização desses direitos.

Com base nessa premissa, diferençou-se também a efetividade das normas que definem esses direitos: os primeiros, como exigem apenas uma abstenção do Estado, seriam autoaplicáveis; os segundos, como exigem uma intervenção positiva e direta do Estado, sua aplicabilidade dependeria de integração legislativa e ainda estariam sujeitos à discri-cionariedade do administrador.� �

Nesse sentido, nas palavras de Paulo Bonavides:7

5 MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas. Revista Brasileira e Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 169-187, jul./set. 2007.

6 Essa diferenciação de certa forma encontra-se superada tendo em vista a publicação de diversos estudos a cerca dos custos dos direitos fundamentais de defesa, como em The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes, de Stephen Holmes e Cass Sunstein.

7 BONAVIDES, P. Op. cit., p. 564.

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Com a queda do positivismo e o advento da teoria material da Constituição, o centro de gravidade dos estudos constitucionais, que dantes ficava na parte organizacional da Lei Magna — separação de poderes e distribuição de competências, enquanto forma jurídica de neutralidade aparente, típica do constitucionalismo do Estado liberal — se transportou para a parte substantiva, de fundo e conteúdo, que entende com os direitos fundamentais e as garantias processuais da liberdade, sob a égide do Estado social.

No constitucionalismo contemporâneo, do qual Paulo Bonavides é expoente, deve ser destacado o grande avanço que se deu com a doutrina da efetividade das normas constitucionais. Tal doutrina veio a pregar que as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Assim a normas constitucionais contém comandos que devem ser cumpridos. O descumprimento de uma norma constitucional, quer seja por ação, quer seja por omissão, deve ser tutelado visando à restauração da ordem jurídica, tudo com vistas a dar efetividade às normas constitucionais.8

A discussão sobre a efetividade das normas constitucionais, por certo, não pode passar ao largo da distinção entre princípios e regras, o que se faz no próximo item.

1.3 Direitos fundamentais sociais como regras e princípiosAntes de adentrarmos ao tema do trabalho propriamente dito,

faz-se necessário investigar a natureza das normas que veiculam os direitos fundamentais sociais, dentro da já clássica distinção feita pela doutrina que diferencias dois tipos de normas: regras e princípios.

Uma primeira concepção acerca de princípio é trazida por Paulo Bonavides,9 seguindo os ensinamentos de F. de Castro, “os princípios são verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade”.

Conforme mostra Ana Carolina L. Olsen,�0 Ronald Dworkin pode ser apontado como um dos primeiros autores a fazer tal distinção, veja:

8 BARROSO, Luís R. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público, Porto Alegre, ano IX , n. 46, p. 31-61, 2007.

9 BONAVIDES, P. Op. cit., p. 256.10 OLSEN, A. C. L. Op. cit., p. 64.

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Segundo Dworkin, a diferença que se estabelece entre regras e princípios seriam de natureza lógica, sendo que ‘as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada’, cabendo sobre elas tão somente um juízo de validade, de modo que, se válidas, deverão ser aplicadas ao caso concreto; se inválidas, não poderão ser utilizada no processo decisório. Já os princípios atuam como razões que poderão levar a uma determinada decisão, e são aplicados segundo uma dimensão de peso ou importância, de modo que podem influenciar na decisão em maior ou menor grau. Interessante observar que Dworkin, em crítica aberta ao positivismo jurídico, já defendia que não só as regras, mas também os princípios eram obrigatórios e vinculavam o juiz.

A distinção entre regras e princípios também foi reconhecida por Robert Alexy,�� o qual expõe que a diferença básica entre princípios e regras é o grau de generalidade: enquanto os princípios são normas do mais alto grau de abstração, as regras têm uma graduação menor.

J.J. Gomes Canotilho,�2 por sua vez, recepcionou a teoria desenvol-vida por Alexy, também reconhecendo que o melhor critério de distinção entre regras e princípios é o critério qualitativo. Para ele, “os princípios são normas jurídicas impositivas de optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos. Já as regras correspondem a imperativos de conduta que não aceitam graus de efetividade — ou são cumpridas ou são violadas, de modo que sua convivência no sistema jurídico é antinômica”.

Com normas de otimização, quer-se dizer, segundo Canotilho,�3 o balanceamento na aplicação dos princípios para a realização de algo da melhor forma possível. Aplica-se um princípio no lugar do outro, devido a sua relevância, sem anular o excluído. Afinal, a anulação geraria uma antinomia, característica própria de regras.

Canotilho14 afirma, também, que os princípios têm as funções de fazer o sistema jurídico respirar, legitimar, enraizar e caminhar. A res-piração tem vez no caráter generalista dos princípios. A legitimidade perfaz-se na consagração de valores fundamentadores da ordem jurídica. O enraizamento refere-se ao caráter sociológico dos princípios, que se perfazem por meios processuais adequados. O caminho significa o desenvolvimento constitucional principiológico.

11 Apud BONAVIDES, P. Op. cit., p. 277.12 Apud OLSEN, A. C. L. Op. cit., p. 65.13 Apud BONAVIDES, P. Op. cit., p. 278.14 Idem, p. 278.

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Para Gilmar Ferreira Mendes et al.,�� os princípios servem, além de norte para a produção normativa, como prevenção para o conflito de normas. Isto é, as normas, enquanto regras, são aplicadas umas em lugar das outras, gerando antinomia. Tal conflito é suprimido por critérios cronológico, hierárquico e da especialidade.

Mas, para estes autores, o que realmente diferencia tais tipos nor-mativos é a relação fixidez/generalidade. Enquanto as regras possuem hipóteses de incidência fixas e consequência jurídicas determinadas — umas e outras reciprocamente excludentes —,�� os princípios têm um alto grau de generalidade, orientando a interpretação e a produção normativas.

A diferenciação entre regras e princípios está longe ser pacífica; não obstante isso, certo é que os princípios possuem duas características: servem de norte para a produção normativa e impõem certa conduta, seja ao legislador, seja ao particular. Portanto, apesar do alto grau de generalidade, possuem conteúdo normativo próprio, obrigando deter-minados comportamentos.

Os direitos sociais fundamentais, por seu turno, ora vão assumir a feição de princípio, ora a de regra, não podendo ser taxados de antemão como uma coisa ou outra.

Nesse sentido, o entendimento de Ana Carolina L. Olsen:�7

Tanto no caso dos direitos sociais previstos como regras, como no caso de sua previsão enquanto princípios, o resultado final da atividade hermenêutica poderá levar a um mandamento definitivo para o caso concreto. Além disso, uma mesma norma de direito fundamental social poderá funcionar como regra para um determinado caso concreto, e como princípio em outro, já que não se trata de tipos normativos fechados, mas sim de normas abertas à interpretação.

A partir da constatação de que os direitos fundamentais sociais se enquadram em um modelo normativo de regras e princípios, faz-se necessário observar que, enquanto princípios, sua aplicação será feita pelo mecanismo da ponderação de valores. Assim, após o balanceamento com

15 MENDES, Gilmar F.; COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo G. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 46.

16 Idem, p. 46-47.17 OLSEN, A. C. L. Op. cit., p. 69.

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outros bens jurídicos, será dado lugar a uma posição jurídica definitiva na solução do caso concreto.

Nesse processo de ponderação e balanceamento de bens jurídicos não poderá o aplicador de direito deixar de atentar para o preceito da proporcionalidade, instrumento essencial na resolução de conflitos dessa natureza. Tema este que será abordado a seguir.

1.4 Direitos fundamentais sociais e princípio da proporcionalidadeO princípio da proporcionalidade, por si só, mereceria grande

aprofundamento, contudo, este trabalho não comportaria tal análise. Não obstante isso, traçar-se-ão em linhas gerais alguns aspectos desse princípio e sua relação com os direitos sociais fundamentais.

Apesar de não estar expressamente previsto no Texto Constitucio-nal, o princípio da proporcionalidade vem sendo admitido pela doutrina e pela jurisprudência�8 como exigência da própria estrutura dos direitos fundamentais, pois é esse princípio que vai mensurar e legitimar as intervenções de um princípio de direito fundamental em outro.

A respeito da função principiológica do preceito da proporciona-lidade José Roberto Pimenta Oliveira�9 bem elucida:

Para o direito administrativo brasileiro, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, com sua força constitucional e efeito estruturante do regime administrativo, exercem todas as funções cuidadosamente esquadrinhadas por Moreira Neto. Cumpre, assim, uma função axiológica, teleológica, sistêmica, integrativa, irradiante, provocativa e limitativa no surgimento, desenvolvimento e extinção de toda e qualquer relação jurídica travada entre a Administração e o administrado, o que inclui em seu campo de abrangência o lineamento do exercício de competências normativas infralegais outorgadas à órbita administrativa.

Cabe distinguir, ainda, que o princípio, ora em voga, terminou por ser dividido em três subprincípios, quais foram: o da adequação,

18 No STJ: MS nº 1.752-DF, 1ª Seção, rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJU, 30 nov. 1992, p.22.546; MS nº 2130-CE, 1ª Seção, rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJU, 25 abr. 1994, p.9185; STJ, MS nº 3551-DF, 1ª Seção, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU, 1º ago. 1994, p. 18.572, entre outros.

No STF: RMS nº 22.096-DF, 2ª T., rel. Min. Neri da Silveira, informativo STF nº 225; RE nº 203.954-CE, Tribunal Pleno, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ, 20 nov. 1996; STF.

19 OLIVEIRA, José R. P. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 34. (Col. Temas de Direito Administrativo).

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o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito, como consequência dos avanços doutrinários nesta área.

Neste sentido, Zavascki20 enumera:

a) ‘princípio da necessidade’, segundo o qual a regra de solução (que é limitadora de direito fundamental) somente será legítima quando for real o conflito, ou seja, quando efetivamente não foi possível estabelecer um modo de convivência simultânea dos direitos fundamentais sob tensão;

b) ‘princípio da menor restrição possível’, também chamado de ‘princípio da proibição de excessos’ que está associado, sob certo aspecto, também ao ‘princípio da proporcionalidade’, segundo o qual a restrição a direito fundamental, operada pela regra de solução, não poderá ir além do limite mínimo indispensável à harmonização pretendida;

c) ‘princípio da salvaguarda do núcleo essencial’, a rigor já contido no princípio anterior segundo o qual não é legítima a regra de solução, a pretexto de harmonizar a convivência entre direitos fundamentais, opera a eliminação de um deles, ou lhe retira a sua substância elementar.

Na interpretação e aplicação dos direitos fundamentais sociais, o operador do direito poderá se deparar com o confronto de direitos fundamentais entre si ou com outros valores e bens jurídicos. Daí a relevância de se explorar esse tema dentro deste trabalho.

O princípio da proporcionalidade, portanto, será sempre um parâmetro de valoração dos atos do poder público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça.

2 Cláusula da reserva do possível2.1 Introdução

Sabe-se que os direitos fundamentais sociais são demasiadamente amplos no texto constitucional. O mesmo não se pode dizer dos recur-sos de que o Poder Público dispõe para lhes suprir. O Estado não pode, pois, comportar toda a demanda de interesses cobrados pela sociedade. Deverá priorizar os mais relevantes aos interesses sociais.

A efetivação dos direitos fundamentais sociais exige dispêndio de verbas públicas. Direitos como educação, saúde, moradia, cultura,

20 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação e colisão de direitos fundamentais. Ajuris, Porto Alegre, v. XXII, n. 64, p. 395-417, jul. 1995.

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previdência social, lazer, entre outros, para serem efetivados, vão demandar do Estado enorme vulto de investimentos. Ocorre que nem sempre há recursos para cumprir todos os compromissos.

Verifica-se, então, uma série de demandas para efetivação dos direitos sociais fundamentais que não são atendidas pelo poder público, mas que são exigidas pela sociedade. Surge, assim, o poder judiciário como último refúgio do cidadão, que se socorre de ações judiciais para ver efetivados seus direitos.

Instaura-se um impasse: os direitos sociais fundamentais têm, do ponto de vista jurídico, aplicabilidade imediata, mas, por outro lado, o poder público encontra limitações materiais para efetivá-los.

Nesse contexto, surge o desafio de aplicação da cláusula da reserva do possível e os limites de atuação do poder público. Entretanto antes de abordarmos o tema diretamente, imprescindível se faz o entendimento de algumas noções, como as de políticas públicas e orçamento.

2.2 Políticas públicas e orçamento: breve noçãoComo já ressaltado, com o advento do Estado social surge para

o Poder Público o dever de intervenção positiva na ordem social. Os instrumentos e ações que o poder público tem para intervir na ordem social são conhecidos como políticas públicas.

Para Régis Fernandes de Oliveira,2� políticas públicas referem-se às “providências para que os direitos de realizem, para que as satisfações sejam atendidas, para que as determinações constitucionais e legais saiam do papel e se transformem em utilidades aos governados”.

No entendimento de Maria Paula Dallari Bucci,22 “políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do estado e as atividades privadas, para a realização de obje-tivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.

Falar em políticas públicas, assim, é pressupor gastos de dinheiro público com o objetivo de alcançar e garantir direitos individuais e sociais assegurados pela Constituição. No Estado Social e Democrá-tico de Direito, o orçamento público é o instrumento que concretiza a alocação de recursos — previsão e autorização de despesas —

21 OLIVEIRA, Régis F. Curso de direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 251.22 BUCCI, Maria P. D. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 241.

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para a realização dos gastos públicos com o fim de alcançar os objetivos fundamentais do Estado previstos na Constituição e no ordenamento infraconstitucional.23

Sobre o orçamento público, muitas coisas poderiam ser ditas, entretanto, cabe destacar o tratamento constitucional dado à matéria, especialmente às espécies normativas que formam o orçamento público, conforme a lição de Fernando Facury Scaff:2�

No âmbito orçamentário, fundamental para que o Estado demonstre a origem das receitas (oriundas de seu patrimônio, de imposições fiscais e de empréstimos) e o destino das despesas e investimentos, foi estabelecido um sistema de planejamento constituído por um conjunto de três leis que se sucedem e se complementam: a Lei do Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Todos os Planos e Programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição deverão ser elaborados em consonância com o plano plurianual (art.���, §�º, da CF), e a LDO deverá estar sempre em consonância com o PPA (art.���, §�º, da CF);

Importante, ainda, destacar que o orçamento público nada mais é do que uma decisão política, de iniciativa do Poder Executivo, com aprovação e possibilidade de emenda pelo Poder Legislativo, pode-res estes cujos representantes foram eleitos democraticamente por escrutínio popular.

Os recursos financeiros do Estado, contudo, encontram limites na arrecadação de tributos e demais fontes de recursos que abastecem os cofres públicos. Portanto, ao Poder Público serão impostos limites financeiros na consecução de seus objetivos, numa difícil tarefa de ter que priorizar algumas demandas sociais dentro de um universo ainda maior de pleitos existentes.

Dessa forma, a atuação estatal limita-se ao mínimo existencial, correspondente ao conjunto de situações materiais indispensáveis à dignidade da pessoa humana e, nesse contexto, dá-se a aplicação da cláusula da reserva do possível.

23 OLIVEIRA, Op. cit., p. 243.24 SCAFF, Fernando F. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. Interesse Público, Porto

Alegre, ano 7, n. 32, p. 220, jul./ago. 2005.

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2.3 Natureza jurídica da cláusula da reserva do possívelNão existe um consenso em relação à sua natureza jurídica e o

significado de aplicação da cláusula da reserva do possível diante das normas constitucionais. Seria um princípio, ou seja, teria natureza nor-mativa, ou seria uma condição da realidade, um elemento extrajurídico, que exerce sua influência na aplicação das normas jurídicas?

Diante da análise empreendida no tópico anterior sobre princípios e regras, fica difícil conceber a cláusula da reserva do possível como princípio.

Como pondera Ana Carolina L. Olsen:2�

...parece inadequado conceber a reserva do possível como esta espécie normativa. A reserva do possível não prescreve um determinado estado de coisas a ser atingido, não corresponde a um mandado de otimização. Ainda que se admita a possibilidade de ponderação de reserva do possível, este elemento por si só, não parece suficiente para identificá-la como um princípio, já que mesmo bens jurídicos podem ser ponderados. Em verdade, o que se pondera é a escassez de recursos apresentada pela reserva do possível, com o comando normativo do direito fundamental social.

Nessa senda, a reserva do possível se aproxima de condição de realidade, pois não se pode negar que a efetivação dos direitos prestacio-nais é influenciada por determinadas condições de fato, quer sejam de ordem material, quer sejam de ordem política — na tomada de decisão de alocação dos recursos públicos.

Mais uma vez, Ana Carolina L. Olsen26 arremata:

De fato, não se pode negar que nem sempre a realidade se curva, pura e simplesmente, ao comando das normas. O elemento prescritivo do direito — e no caso, a normatividade da Constituição ao prever determinadas condutas materiais por parte dos agentes públicos — depende de uma certa correspondência entre norma e realidade. Não se pode prescrever o impossível sob pena de se subjulgar o texto constitucional à força dos fatos, tornando-o uma mera “folha de papel” como previra Lassale.

É externa, portanto, a atuação que os direitos sociais fundamentais sofrem da reserva do possível, podendo até mesmo reduzi-los ou eliminá-los, confirmando sua natureza de condição de realidade.

25 OLSEN, A. C. L. Op. cit., p. 200.26 Idem, p. 202.

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2.4 Origem da cláusula do reserva do possívelA doutrina é unânime em apontar que a cláusula da reserva do

possível tem origem no direito alemão.Sobre o tema, é elucidativo o ensinamento de Mariana Filchtiner

Figueiredo,27 citando lição de Canotilho:

A teoria da reserva do possível tem origem, sobretudo nas formulações de dois juristas alemães, propostas no início do anos de �970 e depois acolhidas pela jurisprudência constitucional daquele país. Ensina Canotilho que Harbele concebeu a “reserva de caixas financeiras” para exprimir a idéia de que os direitos sociais a prestações materiais estariam sob reserva das capacidades financeiras do Estado, se e na medida em que consistem em direitos a prestações financiadas pelos cofres públicos.

Sobre o caso que deu origem ao julgamento na Corte Constitucio-nal alemã, conhecido como Numerus Clausulus (BverfGE n. 33, S. 333), Fernando Borges Mânica28 esclarece:

No caso, a Corte alemã analisou a demanda judicial proposta por estudantes que não haviam sido admitidos em escolas de medicina de Hamburgo e Munique em face da política de limitação do número de vagas em cursos superiores adotada pela Alemanha em �9�0. A pretensão foi fundamentada no art. �2 da Lei Fundamental daquele Estado, segundo a qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”.

Ao decidir a questão o Tribunal Constitucional entendeu que o direito à prestação positiva — no caso aumento do número de vagas na universidade — encontra-se sujeito à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode esperar de maneira racional da sociedade.

É de se observar que em sua origem a reserva do possível foi evocada no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira razoável, pode esperar da sociedade. Portanto, não se refere exclusivamente à existência de recursos financeiros suficientes para a efetivação do direito, mas também, à razoabilidade de se exigir uma determinada prestação do Estado.

A cláusula da reserva do possível já foi aplicada pelas cortes bra-sileiras, tema que será adiante enfrentado.

27 FIGUEIREDO, Mariana F. Direito fundamental à saúde: parâmetro para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007. p. 131-132.

28 MÂNICA, F. B. Op. cit., p. 180.

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2.5 A reserva do possível no Judiciário brasileiroA evocação da cláusula da reserva do possível no Poder Judiciá-

rio brasileiro sofreu uma limitação em relação à sua origem na Corte Constitucional alemã. Assim, a reserva do possível vem sendo entendida pelo Judiciário brasileiro como a reserva do financeiramente possível no entendimento do Prof. Canotilho.

Andreas Joachin Krell29 enfrenta bem essa questão ao apontar que:

O português Canotilho vê a efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais dentro de uma “reserva do possível” e aponta a sua dependência dos recursos econômicos. A elevação do nível da sua realização estaria sempre condicionada pelo volume de recursos suscetível de ser mobilizado para esse efeito. Nessa visão, a limitação dos recursos públicos passa a ser considerada verdadeiro limite fático à efetivação dos direitos prestacionais.

Essa teoria, na verdade, representa uma adaptação de um tópos da jurisprudência constitucional alemã (Der Vorbehalt des Müglichen), que entende que a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos. Ao mesmo tempo, a decisão sobre a disponibilidade dos mesmos estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e dos parlamentos, através da composição de orçamentos públicos.

De fato, a importação da doutrina alemã para a realidade brasileira merece ser feita com ressalvas. Isso porque naquele Estado é costume se fazer o que efetivamente está ao seu alcance na busca pela efetivação dos direitos fundamentais sociais. Assim, a cláusula da reserva do possível funciona como limite à pretensão de particulares, na medida em que não lhes cabe requerer além daquilo que o Estado já prestou dentro de sua capacidade, cumprindo com seus deveres constitucionais.30

Sobre a realidade brasileira Ana Carolina L. Olsen3� mais uma vez esclarece a questão:

A reserva do possível deve ser trazida para o contexto sócio-político-econômico brasileiro: aqui, o Estado não faz tudo que está ao seu alcance para cumprir os mandamentos constitucionais. Muito pelo contrário, ele cria mecanismos para burlar as exigências dos direitos fundamentais prestacionais.

29 KRELL, A. J. Op cit., p. 51-52.30 OLSEN, A. N. P. Op. cit., p. 223.31 OLSEN, A. C. L. Op. cit., p. 223-224.

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É certo que a economia brasileira não pode ser comparada à alemã, mas isso não afasta a obrigação de dotação orçamentária para o cumprimento dos mandados constitucionais.

Nesse diapasão, Andreas Joachin Krell32 arremata:

a discussão européia sobre os limites do Estado Social e a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode absolutamente ser transferida para o Brasil, onde o Estado Providência nunca foi implantado.

De fato, essa posição reforça o entendimento de que o Judiciário no Brasil estaria a adaptar um preceito importado às suas particulari-dades e mazelas.

O fato é que a reserva do possível já foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº �� MC/DF, ocor-rido em 29.0�.200�, com relatoria do Ministro Celso de Mello, cujos trechos se transcrevem:33

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, �999, Norton, New York),

32 KRELL, A. J. Op. cit., p. 63.33 Brasil. STF. ADPF nº 45 MC/DF. rel. Min. Celso Mello. Distrito Federal, DJ, 04 maio 2004.

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notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais — além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização — depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese — mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” — ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 2��-2��, 2002, Renovar):

“Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de �988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros

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projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.”

Da decisão acima transcrita surge a discussão de um tema especial-mente relevante para o melhor entendimento da reserva do possível, a preservação de um mínimo existencial, tema que se passa a analisar.

2.6 O princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencialHistoricamente, na tradição ocidental, podem-se apontar dois

aportes teóricos do princípio da dignidade da pessoa humana, como mostra Mariana Filchtiner Figueiredo:34

O primeiro deles teria origem na filosofia estóica, quando a dignidade foi compreendida como qualidade inerente ao ser humano, capaz de distingui-lo da demais criaturas, a justificar a tese de que todos seres humanos seriam dotados de igual dignidade. O segundo estaria na concepção cristã de dignidade humana: se o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, é igualmente dotado de valor próprio e intrínseco, que impede seja tomado como objeto.

Na sucessão das sociedades ao longo do tempo, o princípio da dig-nidade humana passou por altos e baixos, por vezes até mesmo mudando sua conformação. Contudo, com a universalização dos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial, com a proclamação da Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos em �9�8, a dignidade da pessoa humana foi consagrada como valor fundamental da ordem jurídica, passando a ser o marco das nações democráticas contemporâneas.

Entre nós, o princípio da dignidade da pessoa humana foi ins-culpido expressamente no art.�º, inciso III, da Constituição Federal, podendo ainda ser identificado reflexamente em outros dispositivos constitucionais. Afora isso, a República Federativa Brasileira é signatária de diversos tratados internacionais que se somam ao texto constitucional para reforçar e alçar a dignidade humana ao patamar de valor funda-mental da ordem jurídica nacional.

34 FIGUIREDO, M. F. Op. cit., p. 48.

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Sobre os efeitos da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana Cármen Lúcia Antunes Rocha3� ensina:

Como princípio constitucional, a dignidade gera obrigações que se espraiam em todos os subsistemas que compõem a estrutura jurídica de um Estado ou de uma sociedade democrática. Obriga ele a inação — de práticas que o contrariem — tanto quanto obriga as ações – de comportamento que o dotem de densidade de concretude.

Nesse mesmo sentido a lição de Luiz Nunes Pegoraro:36

O conteúdo valorativo da Constituição implica dever negativo do Estado em não tocar certas esferas de subjetividade do cidadão, bem como tem o dever de implementar ações positivas visando a concretização dos valores constitucionais albergados.

Sobre o dever do Estado de implementar ações positivas para concretizar o princípio da dignidade Cármen Lúcia Antunes Rocha37 discorre que:

Se a dignidade é o que diz respeito ao ser humano, ao que lhe assegura a condição de viver segundo a sua humana natureza, segundo condições que lhe enalteçam as qualidades de ser com o outro; se é ela o que não tem preço por ser exclusivo do homem e insubstituível em sua individualidade, na fórmula kantiana ainda hoje aproveitada largamente, faz-se patenteado, muito mais na atualidade, que o atendimento à dignidade da pessoa humana de pende de dados externos ao homem e que são apreçados. Assim, serviços, obras, bens, que são úteis ao homem para que este se lance mais a mais na amplitude de sua recriação permanente hão de ser assumidos, inclusive materialmente, pela sociedade e pelo Estado.

Dessa noção de obrigação do Estado de promover ações para concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, surge o debate sobre o mínimo existencial.

Diversos conceitos e formulações foram feitos sobre o mínimo existencial, não só no Brasil, mas alhures. Convém destacar,

35 ROCHA, Cármen L. A. O mínimo existencial e o princípio da reserva do possível. Revista Latino Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 5, p. 439-461, jan./jun. 2005.

36 PEGORARO, Luiz N. O controle da administração pública e a cláusula da “reserva do possível”. Revista IOB de Direito Administrativo, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 88-101, jan. 2006.

37 Idem, p. 441.

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contudo, a aceitação dessa premissa como um valor fundamental das sociedades contemporâneas.

Como observou Andreas Joachin Krell:38

... praticamente todos os autores alemães concordam que o Estado Social deve garantir aos cidadãos sua existência física com dignidade, ou seja, um “mínimo social”. Este mínimo foi extraído do princípio da dignidade humana e do direito à vida e à integridade física, direitos positivados na Lei Fundamental. A partir daí, a jurisprudência alemã tem defendido a garantia de um mínimo vital.

Na tentativa de conceituar o mínimo existencial e ampliando o debate a esse respeito Mariana Filchtiner Figueiredo,39 apoiada em Ricardo Lobo Torres, ensina:

Além de derivar da noção de dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial também se funda no princípio da liberdade; em princípios constitucionais como a igualdade, o devido processo jurídico e a livre iniciativa; nos direitos humanos; e nas imunidades e privilégios do cidadão. É delineado em termos qualitativos, como proteção daquilo que seja necessário à manutenção das mínimas condições de vida condigna, enquanto condições iniciais da liberdade, isto é, da garantia de pressupostos fáticos que permitam ao indivíduo agir com autonomia. Abrange qualquer direito, no que represente de essencial e inalienável, bem como compreende outras noções, entre as quais a idéia de felicidade do homem. Não se trata pois de mera liberdade abstrata.

Sobre o conteúdo de um mínimo existencial, mais uma vez é Andreas Joachin Krell40 quem ensina:

O referido “padrão mínimo social” para sobrevivência incluirá sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso a uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de uma moradia: o conteúdo concreto desse mínimo, no entanto, variará de país para país.

No Brasil, Vicenzo Demetrio Florenzano, nas palavras de Ana Carolina Lopes Olsen,41 entende que o mínimo existencial corresponde ao salário mínimo constitucionalmente previsto, assim:38 KRELL, J. A. Op. cit., p. 60-61.39 FIGUEIREDO, M. F. Op. cit., p. 189.40 KRELL, J. A. Op. cit., p. 61.41 OLSEN, A. C. L. Op. cit., p. 316.

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Outra possibilidade de definição de quais seriam as necessidades básicas de todo ser humano a serem englobadas pela noção de mínimo existencial, segundo Vicenzo Demetrio Florenzano, está na sua relação com o disposto no art.7º, IV, da Constituição Federal, que prevê um salário mínimo “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Essa posição não é pacífica. Contudo, para o presente trabalho, é suficiente ressaltar a importância do mínimo existencial como valor com raízes constitucionais e que permeia o conteúdo de reserva do possível e a limitação dos direitos fundamentais sociais.

ConclusãoOs direitos sociais, a par de outros fundamentos, encontram sua

fundamentalidade no princípio da dignidade da pessoa humana. Obser-vou-se também que, por serem fundamentais, devem ter aplicabilidade imediata, conforme corrente constitucionalista contemporânea (pós-posi-tivista). Ressaltou-se ainda que em relação a sua normatividade, os direitos sociais fundamentais devem ser lidos como princípios constitucionais.

Ao Estado caberá a missão de efetivar os direitos sociais presta-cionais, devendo sempre estar pautado em sua atuação por um valor fundamental que permeia o texto constitucional, que é o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

Por certo, a amplitude dos direitos sociais fundamentais consti-tucionalmente assegurados dificulta a tarefa do Estado de efetivá-los. Isso vai exigir do poder público planejamento, determinação e dis-pêndio de grandes somas em dinheiro, o que se dará por meio de previsão orçamentária e políticas públicas voltadas para concretização desses direitos. Não é ocioso ressaltar que a disponibilidade destes recursos é oriunda de decisões políticas, tomadas por representantes democraticamente eleitos.

O Estado, contudo, a par da escassez de recursos, deve atender ao o mínimo existencial como forma de concretizar a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa Brasileira e princípio constitucional que exerce efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e sobre ações de governo.

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A reserva do possível, por outro lado, não se dissocia dessa discussão; ao contrário, deve acompanhar a execução das políticas públi-cas. Na esfera das decisões a serem tomadas, o Executivo e o Legislativo observarão quais caberão dentro do orçamento, priorizando, ante o quadro de limitação material, as ações mais relevantes à dignidade da pessoa humana e a garantir um mínimo existencial.

Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos pela cláusula da reserva do possível ao processo de concretização dos direitos sociais fundamentais, ou, como preferem alguns, direitos de segunda geração — de implantação sempre onerosa —, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (�) a razoabilidade da pretensão individual/ social deduzida em face do Poder Público; e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Portanto, a reserva do possível é um limite à liberdade da atuação do Poder Público na implementação das políticas públicas, que não poderá nela amparar-se para se eximir de priorizar os direitos sociais fundamentais, mas que, por outro lado, deverá ater-se à receita do Estado. Dentro dos limites desta receita, verificar-se-á obrigatoriamente o respeito ao mínimo existencial, a dar concretude ao princípio da dig-nidade da pessoa humana.

Referências

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Direito à saúde e constitucionalização simbólica: perspectivas de concretização de um direito fundamentalCiro Carvalho MirandaAdvogado da União. Coordenador de Assuntos Judiciais da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Palavras-chave: Direito Constitucional. Saúde. SUS (Sistema Único de Saúde). Constitucionalização Simbólica. Democracia-material. Participa-ção Popular.

Sumário: 1 Introdução – 2 Legislação Simbólica e suas espécies – 3 Cons-titucionalização Simbólica – 4 Constitucionalização Simbólica e serviço público de saúde na ordem de �988 – Referências

1 IntroduçãoA Constituição Federal de �988 previu expressamente em seu

artigo �9� que “a Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Embora a palavra saúde seja polissêmica e tomada de forte sub-jetivismo semântico, eis que não há consenso universal no que venha a constituí-la integralmente, é certo que numa busca do “Welfare State” o Poder Constituinte originário obrigou o Estado a efetivar prestações positivas tendentes a oferecer serviço público na área sanitária e médica.

A concepção de um sistema público e universal de saúde como obrigação do Estado não foi um pensamento instantâneo quando da confecção da Carta de �988, porque o conteúdo e o significado de seu âmbito semântico sofrem mutações “de acordo apenas com os valores par-ticulares dos respectivos grupos e o contexto histórico correspondente” (NEVES, 200�, p. 2).

A previsão no texto Constitucional e a efetiva institucionalização da saúde pública foi o resultado de um forte movimento denominado

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“Reforma Sanitarista” desencadeada principalmente na 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em �98�, quando ficou evidenciado que as modificações no setor da saúde transcendiam os marcos de uma simples reforma administrativa e financeira, havendo a necessidade de uma reformulação mais profunda com a ampliação do conceito de saúde e sua correspondente incorporação ao plano de governo. Aliás, numa tentativa de delimitação, ficou consignado no relatório final da mencio-nada Conferência o conceito de saúde como “resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde” (CONASS, 2007, p. 23).

Esta visão se originou da crise do modelo médico assistencial pri-vatista e hospitalocêntrico� (conduta reativa), que era o principal foco da antiga política pública, evoluindo para um conceito amplo de Saúde, com promoção de políticas tendentes a prevenir doenças e agravos (conduta proativa) e não somente de assistência ao doente.

Outra salutar previsão feita pelo Constituinte e erigida a diretriz do SUS foi a descentralização do sistema, novidade que criou a possi-bilidade dos Municípios e dos Estados de efetivamente atuarem como gestores/administradores dos serviços de saúde existentes em seus limites territoriais (art. �98, I da Constituição Federal) atendendo às necessida-des específicas de cada um.

A esperança depositada pelos administradores no novo modelo gerencial da saúde pública então inaugurado e a tentativa de rompimento com as antigas práticas pode ser vislumbrado na seguinte publicação do Ministério da Saúde, datada de �990, ao esclarecer no que consistia o SUS: “é uma nova formulação pública e organizacional para o reorde-namento dos serviços e ações de saúde estabelecida pela Constituição de �988. O SUS não é o sucessor do INAMPS e nem tampouco do SUDS. O SUS é o novo sistema de saúde que está em construção” (�990, p. 9).

Cumpre ressaltar que embora topologicamente não esteja inserido nos artigos �º e �º2 da Constituição Federal, pode-se considerar o acesso a serviços de saúde como direito fundamental do cidadão, diante de

1 Sistema baseado estruturalmente no hospital e no tratamento da doença, deixando em segundo plano a busca pela prevenção das patologias.

2 Embora o caput faça menção à saúde, não há uma previsão de acesso a serviços médicos e sanitários como obrigação do Estado.

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sua íntima imbricação com a ideia de Dignidade da Pessoa Humana. Reconhecendo a dificuldade de definir em termos absolutos o conteúdo deste princípio, eis que “já se afirmou até mesmo ser mais fácil desvendar e dizer o que a dignidade não é do que expressar o que ela é” (SARLET, 2002, p. 39-�0), cabe pontuar que o “paradoxo reside no fato de que os direitos humanos são tanto mais conhecidos e afirmados quanto mais graves e freqüentes as violações dos mesmos” (NEVES, 200�, p. ��). Trocando em miúdos, não prestar qualquer auxílio ao desenvolvimento de uma vida saudável importa em violação ao princípio em foco.

Neste particular cumpre evidenciar que os direitos fundamentais são reconhecidos em três gerações3 � como leciona Sarlet (2007, p. �2-��), principalmente.� A primeira refere-se aos direitos ligados ao ideário burguês do século XVIII, marcadamente individualistas e caracterizados como direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado, ou seja, de não intervenção do poder público no privado, sendo portanto apresentados como direitos de cunho negativo,� eis que direcionados a uma abstenção, verbi gratia, o direito à propriedade, à liberdade e à igualdade. A segunda geração adveio do reconhecimento dos problemas sociais e econômi-cos ensejados pela industrialização, demonstrando a necessidade da intervenção do Estado para promoção da justiça social e transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas, for-temente influenciada pela doutrina socialista, sendo o traço primordial a prestação positiva — o agir —, tendo como exemplos a assistência social, educação, trabalho e saúde. Finalmente, a terceira geração dos direitos fundamentais é associada à ideia de solidariedade e fraternidade,

3 Para Paulo Bonavides (2007, p. 571) a utilização do termo “geração” é inadequada porque pode ensejar uma falsa impressão de substituição de uma geração posterior em detrimento da anterior, descuidando do caráter de complementaridade entre todas, preferindo, portanto, a utilização do termo “dimensão”.

4 Não parece incorreto fazer uma correlação entre a evolução dos direitos fundamentais com o sentido da “compreensão” para Gadamer, quando leciona que “quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido” (2005, p. 356).

5 Para Paulo Bonavides (2007, p. 571) existe uma quarta dimensão dos direitos fundamentais, fundamentada na institucionalização do Estado social, tais como a democracia, o direito à informação e ao pluralismo. No mesmo sentido José Joaquim Gomes Canotilho (1991, p. 558) citando a doutrina de Peter Häberle, consigna que certos direitos fundamentais adquiririam maior consistência se os próprios cidadãos participassem nas estruturas de decisão.

6 Para Stephen Holmes e Cass R. Sunstein (1999) até mesmo os direitos ditos de primeira geração demandam condutas positivas do Estado. Como exemplo, o aparato policial para proteger a propriedade, com a consequente necessidade da existência dos impostos.

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trazendo como ponto peculiar a relevância da coletividade como destinatária de sua proteção, caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa, tendo como exemplo o direito ao meio ambiente sadio, à preservação do patrimônio histórico.

A relevância do estudo dos direitos fundamentais é tamanha na atualidade que Moreira (200�, p. 322) ressalta que “a história do Cons-titucionalismo é a história dos direitos fundamentais, ou seja, a história da sua afirmação inicial e depois do seu alargamento e da construção e aperfeiçoamento dos mecanismos de tutela. O Estado Constitucional moderno é cada vez mais um ‘Estado de direitos fundamentais’.”

Todavia, como adverte Neves (200�, p. �) “o direito não é uma esfera isolada no mundo social, havendo uma variedade de pressu-postos não-jurídicos (econômicos, políticos, culturais, científicos, téc-nicos, educacionais etc.) do jurídico” que influenciam sobremaneira a concretização da previsão constitucional, sem descuidar também dos casos em que (NEVES, 2007, p. 30) “uma quantidade considerável de leis desempenham funções sociais latentes em contradição com sua efi-cácia normativo-jurídica, ou seja, em oposição ao seu sentido jurídico manifesto”. Assim, deve-se analisar as previsões contidas na Magna Carta em cotejo com os fatores sociais que determinam a conduta do Estado enquanto órgão, tendo a compreensão de que ela é “expressão parcial de um todo. Embora dever ideal, apresenta-se também como expres-são das relações de poder tanto físicas como psíquicas” (NEVES, 2007, p. �3) e com múltiplas funções, a fim de que não se empreste significado meramente simbólico ao texto.

Diante do quadro esboçado o presente artigo busca analisar a pre-visão Constitucional que assegura o direito à saúde dentro da perspec-tiva da teoria da “Constitucionalização Simbólica” elaborada por Neves (2007), com a análise da prevalência hipertrófica ou não do sentido político sobre o normativo-jurídico.

2 Legislação Simbólica e suas espéciesA hipercomplexidade da sociedade contemporânea determinou

a superação da concepção de que a única finalidade da lei é direcio-nar condutas (função instrumental) e regular situações antevistas pelo

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legislador, sendo atribuído ao Direito Positivo uma diversidade de funções não só normativo-jurídicas, mas também de harmonização social e de redução de tensões. O papel do direito passa a ser, então, o de um “sistema garantidor de expectativas normativas e regulador de condutas” (NEVES, 2007, p. ��).

Com estes apontamentos não se pretende defender a eliminação da primeira concepção de lei como meio lídimo de direcionar condutas, mas ressaltar a sua utilização para finalidades outras também.

Aliás, é justamente na falta de consistência da função instrumen-tal da lei e da adoção de meios catalisadores para a sua eficácia que a caracteriza como simbólica, podendo-se definir então a “legislação sim-bólica como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico” (NEVES, 2007, p. 30).

Com base nestas múltiplas atribuições Neves (2007), fundamentado no artigo “Symbolische Gesetzgegung”, de Harald Kindermann, propõe que o conteúdo da lei simbólica pode ser analisado sob as seguintes óti-cas: a) confirmação de valores sociais, b) legislação-álibi, e c) legislação como fórmula de compromissos dilatórios, cabendo fazer a seguir uma análise pormenorizada de cada uma, diante da importância do tema para desenvolvimento deste trabalho.

a) Confirmação de valores sociaisDiante da pluralidade que forma a atual sociedade com dife-

rentes valores, crenças e hábitos, a previsão legislativa positivando determinados pontos que identificam segmentos sociais é vista como consagração e sobreposição de valores, atestando a hegemonia de um grupo sobre os demais, através da “vitória legislativa” demonstrando status e prestígio. Ainda nesta vertente busca-se também através da legislação proibir as condutas específicas dos perdedores. Em ambas as situações a mera expedição da lei é o bastante para afirmar a ideologia vencedora.

Esta possibilidade já era prevista por Marx e Engels (apud Villoro, �98�, p. �2-�3) ao asseverarem que

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toda nova classe, que toma o lugar de outra que até então era a dominante, para cumprir seu objetivo está obrigada, simplesmente, a apresentar seu interesse particular como interesse de todos os membros da sociedade, ou, dizendo melhor, a dar atributos de generalidade aos seus pensamentos, a apresentá-los como os únicos racionais e válidos universalmente.

Entretanto, esta confirmação de valores através do direito positivo pode servir também como meio de promover a coesão da sociedade em torno de ideais, principalmente os nacionais quando há a necessidade de diferenciação em relação aos internacionais.

No âmbito nacional, em certa medida, serve de exemplo para o tipo a Lei que prevê a possibilidade de utilização de células-tronco inservíveis para a reprodução humana em experimentos científicos. No mesmo sentido a Portaria do Ministério da Saúde que viabiliza a realização de cirurgia de mudança de sexo, a ser custeada pelo Sistema Único de Saúde.

b) Legislação-álibiEm casos de situações emergenciais e excepcionais a população

insatisfeita promove forte pressão para que os agentes estatais adotem uma conduta que irá debelar a insegurança ou o problema. Em tais momentos, embora dificilmente a mera edição de uma lei seja insuficiente para resolver o entrave, o Estado legisla para satisfazer as expectativas dos cidadãos sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas.

Trata-se de assegurar a confiança dos súditos nos sistemas político e jurídico, a partir de uma “imagem de Estado que reponde normativa-mente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normatizadas de maneira conseqüente con-forme o respectivo texto legal” (NEVES, 2007, p. 39). Neste contexto, não havendo os pressupostos físicos e materiais para que o ordenamento jurídico funcione efetivamente como um sistema garantidor de condutas no plano real, a legislação-álibi “não apenas deixa os problemas sem solução, mas além disso obstrui o caminho para que eles sejam resolvi-dos” (NEVES, 2007, p. 39).

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Exemplo reiterado desta prática no Brasil consiste na infindável majoração das penas restritivas de liberdade no ordenamento jurídico sem que, na prática, exista aparato burocrático suficiente para uma cor-reta persecução penal.

c) Legislação como fórmula de compromisso dilatórioA pluralidade de valores que formam a sociedade é também

refletida nos congressistas, sendo certo que cada qual busca, geralmente, defender os interesses da localidade da qual é egresso, da classe pro-fissional que representa, da ideologia que defende e das indústrias e empresários que patrocinam suas campanhas.

Por vezes é impossível obter consenso em determinadas matérias, diante da variedade de pensamentos. Todavia, o ato legislativo será “aprovado consensualmente pelas partes envolvidas, exatamente porque está presente a perspectiva da ineficácia da respectiva lei. O acordo não se funda então no conteúdo do diploma normativo, mas sim na transfe-rência da solução do conflito para um futuro indeterminado” (NEVES, 2007, p. ��).

Pode-se pontuar como caracterizador desta tipologia a previsão constitucional de tributação sobre grandes fortunas, diante da sua total falta de regulamentação até a presente data, embora já tenham sido criadas outras exações fiscais inclusive sobre a modalidade de contribuição.

3 Constitucionalização SimbólicaNo intuito de se definir o que é a Constitucionalização Simbólica

torna-se necessário olhar além dos clássicos conceitos estanques de Cons-tituição sociológica, jurídico-normativa e ideal, e, também, do conceito dinâmico cultural-dialético, sendo valioso identificar, em síntese, o que comporta cada um.

Uma ótica precipuamente sociológica é aquela que atribui à Constituição o símbolo de mera “folha de papel” quando suas previsões estão divorciadas dos “fatores reais de poder”, não funcionando o texto constitucional como indutor de condutas socialmente relevantes. Seu célebre representante é Lassalle que “desconhece que o ordenamento

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(normativo-jurídico) constitucional tem uma relativa autonomia em face do processo real de poder, condicionando-o em certa medida” (NEVES, 2007, p. �9).

A concepção jurídico-normativa, cujo principal expoente é Hans Kelsen, surge como contraponto ao pensamento meramente sociológico, defendendo a independência do texto frente à influência da sociedade, inclusive axiológica quando da interpretação/aplicação, existindo uma veneração do ritualismo de produção da lei e de sua compatibilidade com as normas hierarquicamente superiores, como se o produto final fosse um objeto ideal.7 Nesta visão a constituição é um objeto hermetica-mente fechado que se encontra apartado da vida que pretende regular, desconhecendo que

su fuerza vital y operativa se basa en su capacidad para conectar con las fuerzas espontáneas y las tendencias vivas de la época, de su capacidad para desarrollar y coordinar estas fuerzas, para ser, en razón de su objeto, el orden global específico de relaciones vitales concretas. (HESSE, �983, p. 27)

Já a perspectiva ideal de Constituição encontra-se intimamente ligada à necessidade de positivação no texto dos valores e princípios do ideário burguês, sem a qual se desconhece inclusive a qualidade da Norma Fundamental do Estado como tal. Neste contexto vale ressaltar que, embora se reconheça a importância das previsões que asseguram os direitos fundamentais de primeira dimensão, há que se consignar também na atualidade o fundamento para a formação e desenvolvimento do Estado que fomente o aprimoramento democrático dos direitos fun-damentais ditos de segunda e terceira geração.

Aparecendo como uma evolução dos conceitos antes delineados e focados em mais de uma premissa, a doutrina dialético-cultural propõe a conjugação das concepções sociológica, jurídico-normativa e ideal para a formação de uma Constituição de caráter amplo e “compreendida como expressão parcial de um todo” (NEVES, 2007, p. �3), “resultado da

7 Vale ressaltar que em publicação posterior à obra Teoria Pura do Direito, Kelsen reconhece a influência da conduta humana sobre o ordenamento jurídico, principalmente sobre a figura da “Dessuetude” que é o “efeito jurídico negativo do costume” que consiste na total descompatibilidade entre a previsão textual da norma e a conduta da sociedade (In: Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, p. 124).

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relação recíproca entre dever-ser constitucional (ideal) e ser constitucional (real)” (NEVES, 2007, p. �2).

A atual concepção de Constituição, baseado nas lições de Niklas Luhmann na obra “Der Gleichheitssatz als Form und als Norm” segundo Neves (2007), deve ser entendida como uma estrutura que condensa e filtra a conjugação de dois sistemas sociais autorreferenciais, o jurídico e político, implicando em relações recíprocas de dependência e interde-pendência, sem contudo importar em quebra da autonomia de qualquer um deles por ingerência de um sobre o outro, diante do “acoplamento estrutural”. É requisito para a perfeita ocorrência deste fenômeno a não prevalência hierárquica e/ou subordinação entre eles, possibilitando, assim, “uma solução jurídica do problema de auto-referência do sistema político e, ao mesmo tempo, uma solução política do problema de auto-referência do sistema jurídico” (NEVES, 2007, p. ��).

Neste sentido, leciona Neves ser

através da Constituição como acoplamento estrutural, as ingerências da política no direito não mediatizadas por mecanismos especificamente jurídicos são excluídos e vice-versa. A autonomia operacional de ambos os sistemas é condição e resultado da existência desse “acoplamento estrutural”. Entretanto, por meio dela, cresce imensamente a possibilidade de influência recíproca e condensam-se as “chances de aprendizado” (capacidade cognitiva) para os sistemas participantes. Assim sendo, a Constituição serve à interpenetração e interferência de dois sistemas auto-referências, o que implica, simultaneamente, relações recíprocas de dependência e independência, que, por sua vez, só se tornam possíveis com base na formação auto-referencial de cada um dos sistemas. (NEVES, 2007, p. ��-�7)

A Constitucionalização Simbólica surgirá da quebra do “acoplamento estrutural” evidenciado a partir da demasiada exploração do sistema jurídico pelo político nas formas tipológicas da legislação simbólica alhures descrita, de tal maneira que a própria autonomia operacional do sistema normativo restaria prejudicada, pois não mais serviria como disseminador de expectativas normativas e regulador de condutas. Neste contexto, vale ressaltar que a constitucionalização simbólica vai diferenciar-se da legislação simbólica pela sua maior abrangência e, via de consequência, relevância.

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4 Constitucionalização Simbólica e serviço público de saúde na ordem de 1988

As previsões contidas na Carta de �988 devem ser interpretadas levando em consideração o momento histórico de sua confecção, no meio de uma manifesta emancipação política e jurídica com pretensão de rompimento com o antigo regime autoritário, principalmente no campo dos direitos fundamentais de segunda geração entusiasmada-mente assegurados pelo Constituinte de �988, a fim de não entendê-los como mera retórica política.

Certamente, no início, a Carta teve eminente conteúdo simbólico por servir de instrumento da deliberada vontade das várias camadas que compunham a sociedade brasileira de assegurar a sua “fatia” de “segu-rança jurídica”, com a aposição de seus valores no texto recém editado, e de efetiva participação no processo democrático. Neste contexto, em um só momento, a Carta Magna serviu para confirmar valores sociais, reduzir as tensões advindas da modificação do regime (mesmo que tenha sido uma modificação “lenta e gradual”) e, finalmente, promessa de um futuro promissor.

Sob este influxo de ideias e como forma de modificação da anterior política de saúde pública censitária (porque somente havia atendimento para os trabalhadores que contribuíssem para o sistema — “a carteiri-nha”) a Reforma Sanitarista assegurou no texto constitucional a criação do sistema universal e público de saúde.

Entretanto, a mera previsão legal não é o bastante para que os cidadãos usufruam dos serviços criados, se considerarmos o tama-nho continental do Brasil e a abissal assimetria entre as regiões que o integram. Aliás, vale ressaltar conforme Sarlet (2007, p. 30�), que

justamente pelo fato de os direitos sociais prestacionais terem por objeto — em regra — prestações do Estado diretamente vinculadas à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante, ainda que se saiba, como já frisado alhures, que todos os direitos fundamentais possuem uma dimensão positiva e, portanto, alguma relevância econômica.

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Neste mesmo diapasão se reconhece que “a força normativa não decorre diretamente da textualização em documentos constitucionais. Esta já implica uma estrutura jurídica seletiva de expectativas normativas textualizadas nas declarações políticas” (NEVES, 200�, p. �8).

Mas ressalte-se que não somente das expectativas jurídicas decorre a possibilidade de fruição de um direito social fundamental, porque

a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada — subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem. (Ministro Sepúlveda Pertence no RE nº ��7.77�/SP)

Ao que parece, toda celeuma que envolve a compreensão do sentido do artigo �9� da Constituição Federal decorre do fato de que

não se trata de interpretação do direito, mas sim do problema referente à concretização da norma jurídica, que, nessa perspectiva, não se confunde com o seu texto. Conforme Müller, a norma jurídica compõe-se do programa normativo [Normprogramm], que é construído do ponto de vista interpretativo mediante a assimilação de dados primariamente lingüísticos, e do âmbito normativo [Normbereich], que é contruído pela intermediação lingüístico-jurídica de dados reais, primariamente não lingüísticos. A estrutura da norma [Normstruktur] resulta da implicação recíproca desses dois componentes. Portanto, a concretização da norma jurídica, sobretudo da norma constitucional, não pode ser reduzida à “interpretação aplicadora” do respectivo texto normativo, o qual oferece diversas possibilidades de compreensão e constitui apenas um aspecto parcial do programa da norma; ela inclui, além do programa, o âmbito da norma como “o conjunto dos dados reais normativamente relevantes para a concretização individual. (NEVES, 200�, p. 200)

Diante da dimensão eminentemente prestacional, da dependên-cia material para a sua efetiva concretização e das particularidades que envolvem a implementação dos serviços e o fornecimento de insumos para a saúde, não se mostra irracional dizer que a norma sob análise está em contínuo processo de constitucionalização. Neste particular mostra-se como critério razoável para a aferição do caráter hipertroficamente simbólico da linguagem sobre a perspectiva jurídica, a avaliação da

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ampliação dos serviços e o aumento no fornecimento de insumos como meio de inclusão do maior número possível de pessoas.

Nesta perspectiva busca-se atingir o que Moreira Neto (200�, p. ��-��) denomina de “democracia material”, caracterizada pela progressiva legitimação da política pública através da participação e do controle pela sociedade da eficiência dos resultados obtidos, não se tratando de um consenso presumido pela simples eleição dos governantes, podendo ser considerado como o terceiro momento evolutivo da concepção de demo-cracia. Se, inicialmente, para os atenienses a democracia era concebida como isonomia entre o restrito universo dos cidadãos e para o ideário liberal a livre votação, atualmente ela é entendida como a promoção contínua de ações para satisfação do resultado almejado. Neste sentido, consigna o referido jurista que

uma democracia, para ser efetiva, não pode repousar apenas na legitimidade originária ou, mesmo, na teleológica, por serem construídas sobre presunções, nem sempre confirmadas pelos fatos, e, por vezes, nem mesmo efetivamente confirmáveis, ela necessita ser, nesta Era da Informação, como a denominou Manuel Castells, uma democracia corrente (usque effectus), ou seja: uma modalidade que confirme materialmente, nas realizações concretas dos governos eleitos, as presunções formais que precederam à investidura política, o que, afinal, se revela no consenso popular contemporâneo sobre o resultado do emprego do poder.

Esta é, pois, a legitimidade material, que é caracterizadora das democracias maduras, pois configura um terceiro e atual passo evolutivo que emergiu da estrepitosa falência das duas técnicas anteriores de legitimidade — a originária e a teleológica, por ser apenas presumidas. (MOREIRA NETO, 200�, p. ��)

Neste contexto, a omissão do administrador de adotar medidas para a promoção dos serviços de saúde mostra-se contrária ao texto constitucional e, também, ao atual conceito de democracia, se tradu-zindo em conduta que afronta o consenso social formado em torno do próprio poder político. Todavia, por outro lado, deve ser observado que a nem todo serviço e insumo de saúde será disponibilizado de forma instantânea pelo novel sistema público de saúde, devendo-se aquilatar a sua constante evolução e aprimoramento, a fim de se avaliar a eficiência do trabalho do gestor.

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Direito à saúde e constitucionalização simbólica: perspectivas de concretização de um direito fundamental 233

Nesta quadra, a partir dos gráficos disponibilizados ao final da presente exposição que demonstram um expressivo aumento no número de atendimentos e da satisfação dos consumidores/cidadãos com os serviços de saúde prestados pelo poder público através do Sistema Único de Saúde, não se mostra lídimo emprestar à previsão do artigo �9� da Constituição Federal de �988 o jaez de simbólica e, tampouco, a conduta dos gestores do sistema como antidemocrática.

GRÁFICO �: NÚMERO DE EQUIPES DO PSF (SUS) – PERÍODO DE �99�-200�

30

25

20

15

10

5

0

(x 1.000)

19940,30,3

19950,70,7

19960,80,8

19971,61,6

19984

3,1

19995

4,3

200010,58,6

200117

13,2

200220

16,7

200321

19,1

200423

21,2

200525

24,6

20062626

200730META

REALIZADO

Fonte: Ministério da Saúde: DAB (2006).

GRÁFICO 2: NÚMERO DE EXAMES DE IMAGENS POR MIL HABITANTES (SUS) – PERÍODO DE �99�-200�

400

350

300

250

200

150

100

50

0

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Variação percentual 2004/1995: 43,43%

215,23 219,84 232 242,08253,5 249,21 264,86

278,99309,26 308,69

Fonte: Ministério da Saúde: (2005a).

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Ciro Carvalho Miranda234

GRÁFICO 3: PROCEDIMENTOS DE HEMODIÁLISE POR MIL HABITANTES (SUS) – PERÍODO �99�-200�

50

45

40

35

30

25

20

15

10

5

01995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Variação percentual 2004/1995: 104,15%

21,724,4 25,2

29,1

32,935,6

38,2 39,3

44,9 44,3

Fonte: Ministério da Saúde: SAS: TABNET. IBGE: Censos demográficos e contagem popula-

cional (estimativa anual com base na produção registrada no 1º semestre de 2004).

GRÁFICO �: NÚMERO DE INTERNAÇÕES PSIQUIÁTRICAS E DE ATENDIMENTOS PSICO-SOCIAIS EM AMBULATÓRIOS POR

MIL HABITANTES (SUS) – PERÍODO �99�-200�

30,0

27,0

24,0

21,0

18,0

15,0

12,0

9,0

6,0

3,0

0,01995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Variação percentual 2004/1995: -46,43%

INTERNAÇÕES EM PSIQUIATRIAASSISTÊNCIA PSICO-SOCIAL AMBULATORIAL

Variação percentual 2004/1995: 765,67%

Fonte: Ministério da Saúde: SAS: TABNET. IBGE: Censos demográficos e contagem popula-

cional (estimativa anual com base na produção registrada no 1º semestre de 2004).

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Direito à saúde e constitucionalização simbólica: perspectivas de concretização de um direito fundamental 235

GRÁFICO �: PROPORÇÃO DE PESSOAS QUE AUTO-AVALIARAM O SEU ESTADO DE SAÚDE COMO MUITO RUIM POR IDADE.

BRASIL, �998/2003

20,0

18,0

16,0

14,0

12,0

10,0

8,0

6,0

4,0

2,0

0,0

TOTAL 0 A 4 ANOS

5 A 9 ANOS

14 A 19 ANOS

20 A 30 ANOS

40 A 40 ANOS

50 A 84 ANOS

85 ANOS OU MAIS

3,6 3,4

0,9 0,8 0,7 0,8 0,9 0,82 1,8

4,7 4,8

10,2

8,5

18,3

15

1998 2003

Fonte: Travassos (2005).

GRÁFICO �: PROPORÇÃO DE PESSOAS QUE REFERIRAM TER SERVIÇO DE SAÚDE DE USO REGULAR POR CLASSE DE

RENDIMENTO FAMILIAR MENSAL. BRASIL �998/2003

85,0

80,0

75,0

70,0

65,0

60,0TOTAL MAIS DE 20 SMDE 5 SM ATÉ 20 SMATÉ SM

71,2

79,3

69,2

79,273,2

79,8 79,1 81,5

1998 2003

Fonte: Travassos (2005).

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Ciro Carvalho Miranda236

GRÁFICO 7: PROPORÇÃO DE PESSOAS QUE PROCURARAM SERVIÇO DE SAÚDE NAS DUAS SEMANAS ANTERIORES À

ENTREVISTA POR IDADE. BRASIL, �998/2003

30,0

25,0

20,0

15,0

10,0

5,0

0TOTAL 0 A 4 ANOS 5 A 19 20 A 39 40 A 49 50 A 64 65 ANOS OU

MAIS

13,014,6

17,219,0

8,5 9,612,0 12,7

14,916,5

18,320,5

22,1

25,1

1998 2003

Fonte: Travassos (2005).

GRÁFICO 8: FONTES DE FINANCIAMENTO DA UTILIZAÇÃO DE SERVIÇOS NAS DUAS SEMANAS ANTERIORES À ENTREVISTA.

BRASIL, �998/2003

70,0

60,0

50,0

40,0

30,0

20,0

10,0

0,0SUS PLANO DE SAÚDE PAGAMENTO DO PRÓPRIO

BOLSO

49,3

57,2

26,0 26,0

15,8 14,8

1998 2003

Fonte: Travassos (2005).

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Direito à saúde e constitucionalização simbólica: perspectivas de concretização de um direito fundamental 237

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Ciro Carvalho Miranda238

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Parte IVPrática Jurídica

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Petição Inicial de Ação Civil Pública (com pedido de antecipação de tutela)

EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) JUI(Í)Z (A) FEDERAL DA *** VARA AMBIENTAL, AGRÁRIA E RESIDUAL DA SUBSEÇÃO JUDI-CIÁRIA DE PORTO ALEGRE SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.

A UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, por conduto da ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, nos termos do art. �3� da Constituição da República de �988 e da Lei Complementar 73/90, por seus Advogados da União infra-assinados, todos integrantes da Procuradoria-Regional da �ª Região, com sede na Rua Mostardeiro, nº �83, Moinhos de Vento, Porto Alegre, nesta cidade, vem, perante V. Exa, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA,(com pedido de antecipação de tutela)

com fulcro no art. �º, incisos I, III e V, bem como no art. �º, todos da Lei nº 7.3�7, de 2� de julho de �98�, em desfavor de

[RÉU A], ocupante da propriedade da União, em Balneário Pinhal, sito *** (casa 14 do cadastro da Prefeitura Municipal de Balneário Pinhal);

[RÉU B], ocupante da propriedade da União, em Balneário Pinhal, sito *** (casa 19 do cadastro da Prefeitura Municipal de Balneário Pinhal);

[RÉU C], ocupante da propriedade da União, em Balneário Pinhal, sito *** (casa 29 do cadastro da Prefeitura Municipal de Balneário Pinhal);

[RÉU D], ocupante da propriedade da União, em Balneário Pinhal, sito *** (casa 37 do cadastro da Prefeitura Municipal de Balneário Pinhal);

[RÉU E], ocupante da propriedade da União, em Balneário Pinhal, sito *** (casa 55 do cadastro da Prefeitura Municipal de Balneário Pinhal);

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Sandro S. Schwinden, Jair F. K. Alves, Márcia B. David, Lisiane F. Ribeiro, César J. Griza Jr.242

[RÉU F], ocupante da propriedade da União, em Balneário Pinhal, sito *** (casa 56 do cadastro da Prefeitura Municipal de Balneário Pinhal);

pelos fundamentos de fato e de direito a seguir aduzidos.

1 BREVE SINOPSE DOS FATOSO Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e o Município

de Balneário Pinhal firmaram, em 02 de novembro de 200�, um Termo de Ajustamento de Conduta� objetivando a fiscalização da ocupação irregular das áreas de preservação permanente, mediante embargos de obras, serviços, empreendimentos ou atividades novas que se caracteri-zassem como ilegais.

Esse termo listou uma série medidas que deveriam ser providen-ciadas pela municipalidade, dentre as quais a manutenção de um corpo técnico de fiscalização e coibição de atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente. Essa equipe deveria realizar constantes vistorias junto às áreas de preservação permanente, especialmente nas margens dos recursos hídricos e junto à faixa de dunas e orla marítima compreendidos na base territorial do município.

Para a execução das providências acima referidas, o Município de Pinhal publicou um edital de notificação2 determinando aos invasores/posseiros de áreas de áreas de marinha, ruas fronteiras ao mar e dunas que providenciassem as suas desocupações.

Em momento posterior, a citada municipalidade figurou como signatária de um novo Termo de Ajustamento de Conduta,3 em �� de dezembro de 200�, desta vez com a participação do Ministério Público Federal na condição de compromitente. O documento fez referência ao Inquérito Civil nº 2���/200�, que teria como objetivo “acompanhar as medidas adotadas pelo Município de Balneário Pinhal para retirar as ocupações irregulares localizadas sobre o cordão de dunas e faixa de praia daquele Município”.

1 Documento 01 (minuta em anexo, cujo conteúdo foi encaminhado pelo Município de Pinhal a esta PRU em arquivo).

2 Documento 02.3 Documento 03 (minuta em anexo, cujo conteúdo foi encaminhado pelo Município de Pinhal a esta PRU

em arquivo PDF).

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Petição Inicial de Ação Civil Pública (com pedido de antecipação de tutela) 243

Nessa ocasião, ficou informado pela municipalidade que o levantamento efetuado permitiu constar a existência de cerca de 200 (duzentas) habitações irregulares na faixa de praia inserida nos seus limites geográficos. Em razão disso, comprometeu-se o município, a partir de janeiro de 2007, a providenciar a retirada das residências edi-ficadas na faixa de praia e dunas. Tal intento seria realizado de acordo com a cláusula segunda do referenciado instrumento.

As disposições do aludido TAC deram origem ao Plano de Execução da Remoção das Construções das Dunas Frontais de Balneário Pinhal no qual se afirmou que “visto que a área onde estão localizadas estas 204 residências é propriedade da União bem como constitui Área de Preservação Permanente (APP), foi iniciado em 200� um projeto para reassentamento das famílias (...) e remoção das construções”.�

Além disso, o plano de execução fixou um cronograma detalhando que “conforme redação contida no Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre o Poder Executivo Municipal e o Ministério Público Fede-ral e Estadual, as primeiras 42 construções deverão ser removidas até janeiro de 2008, enquanto as demais 162 construções deverão ser removidas até janeiro de 2009”.

Paralelamente ao cronograma de execução das remoções, as autoridades locais tomaram outras providências no sentido de evitar a proliferação das obras. Os comerciantes de matérias de construção foram alertados a evitar a venda de materiais destinados às ocupações irregulares e ilegais.�

O citado projeto de desocupação da orla, aprovado pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), conforme se depreende do Of. nº FEPAM/GERLIT – ��27/2008,� datado de 2� de abril de 2008, listou 20� ocupações irregulares. Do cadastramento, assim como das tratativas promovidas com esses ocupantes, ficou consignado que �2� eram veranistas e 79 residentes. Entre esses 79 (setenta e nove) últi-mos, 37 (tinta e sete) não aceitaram a nova moradia e 42 (quarenta e dois) aceitaram.

4 Documento 04 (Encaminhado pelo Município de Pinhal a esta PRU em arquivo).5 Documento 05.6 Documento 06.

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Sandro S. Schwinden, Jair F. K. Alves, Márcia B. David, Lisiane F. Ribeiro, César J. Griza Jr.244

Posteriormente, aos 2� de setembro de 2008, foi realizada uma reunião da Procuradoria do Município com os Ministérios Públicos, Federal e Estadual,7 oportunidade na qual ficou consignado que:

“(...) 31 famílias já aceitaram o reassentamento pelo Município e a demolição da construção;

Que são cerca de 38 famílias de moradores que não aceitaram o reassentamento e a demolição. (...)

Que são cerca de �30 veranistas e comerciantes irregulares na área, os quais serão réus de ações civis públicas em litisconsórcio ajuizadas pelo Ministério Público Federal e Estadual e pelo Município.

(...).” (Destaques daqui)

Em razão da assunção das obrigações acima relatadas, o Município de Pinhal providenciou a publicação de editais de notificação8 alertando “aos invasores/posseiros de áreas de marinha ou limítrofes à faixa de marinha, bem como de áreas de ruas fronteiras ao mar ou dunas frontais, a desocuparem as ditas áreas no prazo máximo e impreterível de janeiro de 2008, sob pena de terem ajuizadas contra si, as competentes ações judiciais”.

E, conforme documentos encaminhados pela Prefeitura Munici-pal, o processo de desocupação foi gradual e teve êxito parcial na via administrativa (os arquivos do CD detalham as ocupações removidas, com cadastros e fotos).

Rememora-se que o Projeto de Desocupação da Orla previu a subs-tituição da moradia para 79 (setenta e nove) residentes da localidade, as quais seriam, e posteriormente foram para os que aceitaram a nova moradia, realizadas com recursos destinados por meio de convênio celebrado com o Ministério das Cidades. O Portal da Transparência descreve os citados convênios9 realizados por intermédio do Ministério das Cidades com o Município de Balneário Pinhal para a melhoria das condições de habitabilidade de assentamentos precários. Para tanto, veja-se:

7 Documento 07 (Termo de Audiência).8 Documento 08, Editais de Notificação publicados em janeiro de 2008, nos periódicos “A Colméia”; “Folha

do Litoral” e “Balneário-Pinhalense”.9 Documentos 09.

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Petição Inicial de Ação Civil Pública (com pedido de antecipação de tutela) 245

5626

85

6107

08

5837

81

5085

67

6075

94

6145

23

6501

99

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10

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Sem prejuízo dos 79 (setenta e nove) residentes cadastrados, conforme o projeto de desocupação, deveriam ser removidos outros �2� (cento e vinte e cinco) veranistas, além dos comerciantes que privatizaram a área de uso comum do povo.

Para tanto, a municipalidade listou 33 (trinta e três) imóveis de ocupantes que não aceitaram receber uma residência nova a ser cons-truída com os recursos do Ministério das Cidades, dentre os quais se encontra(m) o do(s) demandado(s).

No processo foram identificadas, ainda, outras �2 (cinqüenta e duas) ocupações demolidas pela municipalidade após a recolocação das pessoas em outras residências construídas com os aludidos recursos fe-derais do Ministério das Cidades.

Finalmente, cadastraram-se 07 (sete) ocupações irregulares com comércio, 73 (setenta e três) veranistas e mais 27 (vinte e sete) que acei-taram a remoção de forma administrativa.

Portanto, inúmeras ocupações,�0 dentre a(s) qual(ais) a do(s) demandado(s), exigem uma atuação imediata da União — sem prejuízo de outras situações que eventualmente não se concluírem —, no sentido de se socorrer ao Poder Judiciário no escopo de obter provimento juris-dicional tendente a restaurar o pleno usufruto de área comum do povo (praia e dunas), ocupada irregularmente.

É bom lembrar que as ocupações acima noticiadas, que deram ensejo a todos os procedimentos e cautelas narradas, já haviam oca-sionado a morte de duas crianças. Para tanto, veja-se notícia veiculada no correio do povo, de 07 de fevereiro de 2006:��

10 Lista de ocupações a serem imediatamente removidas (todas estão detalhadas nos arquivos constantes do CD em anexo):

33 (trinta e três) ocupantes que não aceitaram moradia a ser construída com recursos do Caixa Econômica Federal por intermédio do Ministério das Cidades;

07 (sete) ocupações com comércio;

73 (setenta e três) veranistas irregulares.11 Documento 13.

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Petição Inicial de Ação Civil Pública (com pedido de antecipação de tutela) 247

Dessa notícia, resta claro que a necessidade de um provimento jurisdicional urgente. Com efeito, após longa tramitação, com inúmeras vistorias e pareceres técnicos, foi possível identificar, claramente, que o(s) demandado(s) ocupa(m) área comum do povo (praia e dunas), não haven-do qualquer possibilidade, juridicamente viável, de regularização.

Diante desse quadro factual, conclui-se que a área de uso comum do povo encontra-se privatizada pelas áreas dos demandados, as quais apresentam riscos para si e para outrem, além do meio ambiente, exi-gindo a atuação da legítima proprietária, a União.

2 DA SITUAÇÃO ESPECÍFICA DA(S) ÁREA(S) OCUPADA(S) PELOS RÉUS NO CONTEXTO FÁTICO ACIMA NARRADO

Os réus da presente demanda incluem-se dentre os 33 (trinta e três) ocupantes residentes que receberam a proposta de desocupação por parte da municipalidade e negaram-se a sair, não obstante a incontes-tável irregularidade da ocupação em área de preservação permanente e de domínio público.

Em que pese inexistir direito a indenização por benfeitorias,�2 estes ocupantes residentes foram contemplados com a proposta de 12 O particular que ocupa área pública não tem direito à indenização por benfeitorias que tenha construído,

mesmo que a ocupação tenha ocorrido de boa-fé. Para a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), as regras do direito civil não são aplicáveis aos imóveis públicos, já que as benfeitorias não só não beneficiam a Administração Pública como geram custos ao erário em razão da demolição e recuperação das áreas.

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desocupação mediante o novo assentamento a ser providenciado com recursos conveniados com a Caixa Econômica Federal (vide convênios listados na presente petição, colhidos do Portal da Transparência da CGU, bem como notícia do Correio do Povo — doc. �3).

Esse fato — reitera-se, em que pese inexistir obrigação da União — demonstra a sensibilidade das autoridades com os ocupantes que não possuíam residências, notadamente em razão da prioridade em deso-cupar as áreas de preservação permanente, que são criadouro da fauna e flora de inúmeras espécies indispensáveis ao ecossistema do litoral do Rio Grande do Sul.

Por outro lado, a insistência dos demandados em permanecer no local, ainda que após a proposta de receberem novas residências com recursos alavancados pelo Ministério das Cidades, demonstra a necessidade do provimento jurisdicional de modo a resguardar os interesses inerentes a fruição comum do patrimônio público, assim como para tutelar o meio ambiente em área de preservação permanente.

O caso trata de três “chácaras” da Colônia Agrícola IAPI na região administrativa do Guará (DF). Os ocupantes afirmavam manter há mais de 20 anos a posse pacífica do local, tendo desenvolvido plantações diversas, casas, barracos, criadouros e outras obras. Possuíam também documento fornecido pelo poder público, chamado de “certificado para regularização fundiária”. A Terracap argumentou que, o certificado além de não poder legitimar a ocupação ou provar propriedade, foi emitido por quem não detinha competência para o tema.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) entendeu que, apesar de a área ser pública e não ser passível de usucapião ou posse, os ocupantes deveriam ser equiparados a possuidores de boa-fé para fins de indenização por benfeitorias. Mas, para o ministro Herman Benjamin, o possuidor é aquele que tem, de fato, o exercício de algum dos direitos de propriedade, o que jamais ocorre em relação a áreas públicas. “O particular jamais exerce poderes de propriedade, já que o imóvel público não pode ser usucapido O particular, portanto, nunca poderá ser considerado possuidor de área pública, senão mero detentor”, explicou.

O ministro ressaltou que, apesar de esse ponto já bastar para afastar o direito à compensação pelo poder público em razão de melhorias, o instituto da indenização pressupõe a existência de vantagem oriunda dessas obras para o real proprietário. E, no caso da Administração, como esses imóveis são geralmente construídos com ilegalidades ambientais e urbanísticas, o Poder Público precisa demoli-los ou regularizá-los.

“Seria incoerente impor à Administração a obrigação de indenizar por imóveis irregularmente construídos que, além de não terem utilidade para o Poder Público, ensejarão dispêndio de recursos do erário para sua demolição”, afirmou o relator. “Entender de modo diverso é atribuir à detenção efeitos próprios da posse, o que enfraquece a dominialidade pública, destrói as premissas básicas do princípio da boa-fé objetiva, estimula invasões e construções ilegais e legitima, com a garantia de indenização, a apropriação privada do espaço público”, completou. Segundo o ministro, a tolerância da Administração não pode servir para afastar ou distorcer a aplicação da lei: “Não fosse assim, os agentes públicos teriam, sob sua exclusiva vontade, o poder de afastar normas legais cogentes, instituídas em observância e como garantia do interesse da coletividade.”

Ainda segundo o relator, o entendimento da Turma não afasta o dever de o Estado amparar os que não possuem casa própria. Mas não seria razoável torcer as normas de posse e propriedade para atingir tais objetivos sociais e dar tratamento idêntico a ricos e pobres que ocupam ilegalmente bens que pertencem à comunidade e às gerações futuras.

“Sim, porque, como é de conhecimento público, no Brasil, invasão de espaço público é prática corriqueira em todas as classes sociais: estão aí as praças e vias públicas ocupadas por construções ilegais de shopping centers, as áreas de preservação permanente, inclusive no Pantanal e em dunas, tomadas por residências de lazer, as margens de rios e lagos abocanhadas por clubes, para citar alguns exemplos”, concluiu.

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Ademais, como se pode observar das fotos anexas aos cadastros dos ora demandados, é nítida a presença de restinga e areia da praia e das dunas, o que potencializa a lesão ao meio ambiente, assim como os riscos de soterramento, fato constatado pelos agentes da comissão instituída pelo Município de Pinhal para a fiscalização das ocupações. Nesse sentido, frisa-se que os cadastros de todas as ocupações ora demandadas atestam o risco de soterramento, sendo que as casas de número 19, 55 e 56 apresentam condições regulares ou ruins afirmadas por agentes públicos!

3 PRELIMINAR/DA LEGITIMIDADE ATIVA ad causam DA UNIÃO

A ação civil pública foi disciplinada em nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 7.3�7, de 2�.07.8�. Trataram da matéria, posteriormente, as Leis nº 7.8�3/89, 7.9�3/89, 8.0�9/90, 8.078/90, 8.88�/9�, 9.�9�/97, �02�7/0� e a MP nº 2�80-3�/0�.

Os interesses que podem ser defendidos por intermédio dessa espécie de demanda, bem como a legitimidade para sua propositura estão assim disciplinados pela Lei nº 7.3�7/8�:

“Art. �º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 8.88�, de ��.�.�99�

I - ao meio-ambiente;

II - ao consumidor;

III - à ordem urbanística; (Inciso incluído pela Lei nº �0.2�7, de �0.7.200�)

IV - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (Inciso renumerado pela Lei nº �0.2�7, de �0.7.200�)

V - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. (Redação dada pela Lei nº 8.078, de ��.9.�990) (Inciso renumerado pela Lei nº �0.2�7, de �0.7.200�)

VI - por infração da ordem econômica e da economia popular; (Inciso renumerado pela Lei nº �0.2�7, de �0.7.200�) (Redação dada pela Mpv nº 2.�80-3�, de 2�.8.200�)

VII - à ordem urbanística. (Inciso renumerado pela Lei nº �0.2�7, de �0.7.200�) (Redação dada pela Mpv nº 2.�80-3�, de 2�.8.200�)”

(...)

“Art. �º A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser

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propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que:

(...)”. (grifei)

Logo, pelas regras do microssistema processual coletivo conclui-se que a presente ação é o meio idôneo para a inibição da prática acima narrada, tendo em vista que ela ofende alguns dos interesses especifi-cados no art. �º, mais precisamente a propriedade imobiliária federal (art. �º, V, da Lei nº 7.3�7, de 2�.07.8�), a preservação do meio ambiente e da ordem urbanística (art. �º, I e III, da Lei nº 7.3�7, de 2�.07.8�). Também é inegável a legitimidade da União, tendo em vista sua relação no rol do art. �º.

Ainda que desnecessária a demonstração de pertinência temática para a propositura de ação civil pública, resta claro que o ente federal possui legitimidade para a postulação em causa: a preservação de seu patrimônio público imobiliário (art. 20, IV, c/c art. 23, I, da CRFB de �998); o meio ambiente (art. 23, VI, da CRFB) e a ordem urbanística (art. 2�, XX, da CRFB).

Indiscutível, portanto, a legitimidade ativa da União para a pro-positura da presente ação civil pública, tendo em vista os argumentos acima delineados.

4 MÉRITO Como dito, trata-se de inequívoca e incontroversa ocupação

irregular em área de praia e dunas, bem de uso comum do povo. Com efeito, por sua clareza e objetividade, reprisamos o conteúdo do Termo de Ajustamento de Conduta formalizado entre o Ministério Público e a Prefeitura Municipal de Balneário Pinhal:

“CONSIDERANDO que se encontra em tramitação nesta Procuradoria da República no Rio Grande do Sul o Inquérito Civil n.º 2���/200�, visando a ‘acompanhar as medidas adotadas pelo Município de Balneário Pinhal para retirar as ocupações irregulares localizadas sobre o cordão de dunas e faixa de praia daquele Município’, bem assim a tramitação do Inquérito Civil n.º 32B/2003 perante a Promotoria de Justiça em Tramandaí, com objeto correlato;

CONSIDERANDO que o Município de Balneário Pinhal informou possuir levantamento que constatou a existência de cerca de 200 (duzentas) habitações no local, pertencentes a moradores e veranistas;

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CONSIDERANDO que o Município informou, ainda, que existe um plano habitacional que conta com financiamento da Caixa Econômica Federal,�3 em relação ao qual já foram firmados compromissos com parte dos proprietários das ocupações irregulares por ocasião da ocupação das novas residências, recebendo, entretanto, resistência de alguns moradores para firmarem compromisso;

CONSIDERANDO que existem outros procedimentos investigatórios tramitando no Ministério Público Federal, os quais permitem atestar que a ocupação irregular da faixa de praia nos Municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul é um problema recorrente, caracterizando danos ambientais e ocupação ilegal de bem público de uso comum do povo, de propriedade da União Federal, sem a autorização desta;

(...)

CONSIDERANDO que este quadro indica que as edificações existentes, localizadas exatamente sobre as dunas primárias ou frontais à beira mar, na faixa de praia, ocasiona a degradação do meio ambiente, indo de encontro ao que preconiza a legislação ambiental e patrimonial, indica a necessidade premente de haver a desocupação da área pelo Município, ora COMPROMISSÁRIO;

(...)

O COMPROMISSÁRIO MUNICÍPIO providenciará, a partir de janeiro de 2007, a retirada total das residências edificadas na faixa de praia e dunas do Município de Balneário Pinhal.

(...)”. (destaques daqui)

Resta, pois, inequívoco que todas as ocupações objeto do levanta-mento efetuado pela Prefeitura Municipal e pelo Ministério Público, e que compuseram o Projeto de Desocupação Orla (caso de todas as ocupações enumeradas no presente processo), encontram-se sob área de praia e dunas. Por essa razão, todas as construções são irregulares e encontram-se em bem de uso comum do povo, não passível de regularização.

Devidamente esclarecido o contexto fático da presente lide, notadamente pela caracterização da(s) área(s) ocupada(s) como ocupa-ção irregular claramente em área de uso comum do povo, impõe-se verificar a legislação aplicável à espécie.

Com efeito, nos termos do §3º do art. �0 da Lei nº 7.���/88 — PNGC, “entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias,

13 A propósito, pode-se verificar no Portal da Transparência a transferência desses recursos da Caixa Econômica Federal para o apoio a melhoria das condições de habitalidade de assentamentos precários.

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cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema”.

Praias são, portanto, as áreas compreendidas entre a água do mar e o início da vegetação ou, quando esta for inexistente, do pri-meiro ecossistema.

Pode-se dizer, com esteio nesse conceito, que nas áreas em que há urbanização consolidada, como as capitais e regiões metropolitanas, que as praias compreendem a faixa de areia entre o mar e a orla marítima (calçadão, ruas, avenidas, etc).

As praias não se confundem com os terrenos de marinha ou seus acrescidos, cujos conceitos estão delineados nos arts. 2º e 3º do Decreto-Lei 9.7�0/��, in verbis:

Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:

a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;

b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.

Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de � (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

Art. 3º São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.

São também bens da União, como se observa da dicção do art. 20, inciso IV, da CRFB:

Art. 20. São bens da União:

(...)

IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 2�, II.

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O que se pretende, com tal digressão, é deixar bem claro a diferen-ça entre o regime jurídico dos terrenos de marinha e o das praias.

Como se sabe, os terrenos de marinha têm seu regime jurídico estabelecido no conhecido Decreto-lei nº 9.7�0/��, que dispõe sobre bens imóveis da União. Nesse regime é admitido o acesso restrito às áreas por parte de particulares, como corolário das formas de utilização legalmente previstas, a saber, aluguel, aforamento, ocupação ou cessão (art. �� do Decreto-lei nº 9.7�0/��).

No que tange às praias, seu regime jurídico é fixado pela já referida Lei nº 7.���/88 — Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro — PNGC, que assim estatui em seu art. �0:

Art. �0. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.

§�º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo.

§2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.

§3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.

Vê-se, portanto, que, diferente do regime aplicável aos terrenos de marinha, estatui o PNGC que as praias são bens de uso comum do povo.

Como é sabido, tais espécies de bens são aqueles abertos à livre utilização de todos. Sua utilização, portanto, é destinada, indistinta-mente, a qualquer sujeito, em concorrência igualitária e harmoniosa com os demais.

A doutrina, há muito tempo, já estabeleceu as bases da utilização dessa espécie de bens. Nesse sentido, vale a pena transcrever as lições da eminente professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“Uso comum é o que se exerce, em igualdade de condições, por todos os membros da coletividade.

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Trata-se, segundo Miguel S. Marienhoff (�9��:�20), ‘de um poder que pode ser exercido por todos os homens, por sua só condição de homems — quivis de populo — sem distinção entre nacionais e estrangeiros, e em cujo exercício o usuário permanece sempre anônimo, indeterminado, não individualizado’.

O uso comum tem, em regra, as seguintes características:

1. é aberto a todos ou a uma coletividade de pessoas, para ser exercido anonimamente, em igualdade de condições, sem necessidade de consentimento expresso e individualizado por parte da Administração”.�� (grifos nossos)

Como se vê, é característica distintiva dos bens de uso comum, de acordo com o entendimento do respeitável mestre argentino, citado pela professora Maria Sylvia, que a sua utilização seja realizada de forma anônima, indeterminada, de modo que, de alguma forma, gere benefícios a toda coletividade.

Como se sabe, é largamente admitida na doutrina, em relação aos bens que ostentem essa qualidade, a utilização por parte de particulares.

Contudo, importante destacar, na esteira da legislação e lições acima apresentadas, que essa utilização não pode, em hipótese alguma, violar as características imanentes à natureza do bem em questão.

No que tange especificamente às praias, tal efeito resta ainda mais cristalino ante a dicção do caput do art. �0 do PNGC que ao se referir à regra do livre acesso a precede da expressão sempre, ressalvando a indisponibilidade do princípio:

Art. �0. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.

Ante todo o exposto, vê-se, dessa forma, que área de praia (bem de uso comum do povo, que demanda especialíssima proteção ambiental) vem sendo ocupada, como se privada fosse, inviabilizando o usufruto do espaço público, revelando, destarte, ofensa frontal o disposto no art. 10 da Lei nº 7.661/88, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro — PNGC, assim como à legislação ambiental.

14 Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas. p 583-584

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Petição Inicial de Ação Civil Pública (com pedido de antecipação de tutela) 255

Com efeito, vejamos o direito ora tutelado sob o aspecto ambiental.O art. 22� da Constituição Federal disciplina que:

Art. 22�. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§�º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (Regulamento)

(...)

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)

IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (Regulamento)

(...)

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (Regulamento)

§2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.

§3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

§�º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

(...)

Por sua vez, dispõe o Código Florestal, Lei n.º �.77�/��, que:

Art. 2º Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:

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(...)

f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;

Art. 3º Consideram-se, ainda, de preservação permanentes, quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas:

b) a fixar as dunas;

Portanto, indene de dúvidas que as praias marítimas são bens públicos de uso comum, enquanto a área de dunas é de preservação permanente (Código Florestal, Lei �.77�/��, art. 2º, “f ”) fato que exige a imediata demolição e remoção das obras.

Ao respeito, já decidiu o Tribunal Regional Federal da �ª Região:

“CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BAR CONSTRUÍDO EM PRAIA MARÍTIMA. BEM DA UNIÃO. DUNAS. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. LICENCIAMENTO. AUTORIZAÇÃO. DEMOLIÇÃO. RESPONSABILIDADE.

As praias marítimas, elencadas dentre os bens da União, são bens públicos de uso comum, enquanto a área de restinga, fixadora de dunas, é de preservação permanente (Código Florestal, Lei 4.771/65, art. 2º, “f”).

Estando o empreendimento localizado em praia marítima, de propriedade da União, é necessária a autorização da Secretaria de Patrimônio da União - SPU.

Reconhecida a ilegalidade e irregularidade da construção e operação de bar/quiosque em área da União, constituída por dunas, em local detentor de formas de vegetação de preservação permanente, sendo correta sua desocupação, demolição e remoção.

A Administração Municipal, no que se refere à autorização para construir, tem o dever de observar e cumprir as normas relativas à proteção do meio ambiente. Não pode descuidar de exigir do permissionário ou autorizado o cumprimento das medidas relativas à proteção do meio ambiente e à preservação dos recursos naturais”. (destaques daqui)��

Dessa forma, a fim de assegurar o acesso democrático ao espaço em questão, nos termos do art. �0 do PNGC, busca a União provimento judicial que restaure o livre acesso da área de uso comum do povo (praia) e de preservação permanente.15 TRF da 4ª Região, Apelação Cível n.º 2002.71.00.052091-4/RS, Relator Juiz MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA,

DJ Publicado em 20/05/2008

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Importante destacar, ainda, a necessidade de antecipação parcial dos efeitos da tutela definitiva, tendo em vista o largo período em que a ilegalidade está sendo cometida. E é o que se passará a fazer agora.

5 DOS REQUISITOS AUTORIZADORES PARA A CONCESSÃO DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA

Os requisitos para a concessão de antecipação de tutela estão, de forma geral, delineados no art. 273 do CPC, in verbis:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.9�2, de �3.�2.�99�)

I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Incluído pela Lei nº 8.9�2, de �3.�2.�99�)

II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. (Incluído pela Lei nº 8.9�2, de �3.�2.�99�)

No que tange ao caso dos autos, em que se busca provimento juris-dicional que restaure o pleno usufruto de bem de uso comum do povo, ainda há que considerar o disposto no art. ���, §3º, do CPC:

Art. ���. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (Redação dada pela Lei nº 8.9�2, de �3.�2.�99�)

(...)

§3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. (Incluído pela Lei nº 8.9�2, de �3.�2.�99�)

De mais a mais, a concessão de medida liminar é expressamente prevista no art. �2 da Lei nº 7.3�7/8�.

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No caso dos autos, importante frisar que a verossimilhança das alegações, bem como a relevância do fundamento, encontram-se devi-damente demonstradas nos estudos técnicos elaborados pelos órgãos envolvidos, sendo, ainda, incontroverso que a ocupação desordenada das praias e dunas destrói o meio ambiente.

Ademais, rememoramos o caso do movimento das dunas que culmi-naram na morte de duas crianças, conforme notícia veiculada no Correio do Povo, transcrita alhures. Nada obstante, os movimentos físicos no local ainda ocorrem e trazem perigo à população, consoante se depreende de notícia veiculada na Zero Hora, de 15 de janeiro de 2008.��

Por outro lado, os fatos que embasam a presente pretensão são atos administrativos que gozam de presunção de veracidade e legitimidade.

Por sua vez, há que se reconhecer, no caso dos autos, o fundado receio de dano irreparável, ou de difícil reparação, caso não seja limi-narmente permitido que a União providencie a remoção e demolição das benfeitorias, haja vista que o meio ambiente sofrerá perda irrepa-rável pela destruição da fauna e da flora das dunas e praias.�7

De fato, o que busca a União no presente caso é assegurar a plena utilização de bem de sua responsabilidade e de usufruto comum, na forma que estabelecida na lei de regência. Dessa forma, a própria manutenção da ilegalidade perpetrada, representa o dano irrepará-vel e o agravamento do desprestígio do Poder Público, a justificar a concessão da medida.

16 Documento 1317 Conforme o página (<http://www.nema-rs.org.br/pags/pop_dunas.html>): “(...) as dunas abrigam uma diversidade de animais e plantas que desenvolveram importantes estratégias

de adaptação para sobreviverem neste ambiente especial, no qual vive-se os extremos: temperaturas baixas no inverno e altas no verão; locais onde a água é abundante e locais onde esta é rara.

Durante o dia, geralmente não podemos perceber a presença dos animais, mas seus rastros e tocas indicam que eles andaram por ali. As dunas são áreas de alimentação e de reprodução de espécies, como o tuco-tuco — pequeno mamífero roedor; a maria-farinha — caranguejo cor de areia; grande variedade de insetos, além de sapos, lagartixas, cobras e aves, como o maçarico-de-colar e o piru-piru, que fazem ali seus ninhos.

(...) As dunas são áreas de preservação permanente, protegidas por legislação específica. Para a realização de

qualquer atividade é necessário a autorização do IBAMA, da FEPAM e das Prefeituras. As atividades ali realizadas devem ser amigáveis com o ambiente, respeitando sua vocação e suas feições naturais. Apesar disso, tem-se verificado um processo acelerado de alteração destes ambientes, decorrentes da urbanização desordenada e do uso irracional dos recursos naturais — colocação de lixo, retirada de areia, pastoreio e trânsito de automóveis e motocicletas. Estes impactos constituem as principais ameaças à conservação do sistema de dunas costeiras. Medidas de controle desenvolvidas entre a sociedade civil organizada e o poder público permitem sua recuperação através de ações de reconstituição, monitoramento, fiscalização, limpeza e educação ambiental”.

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Sendo assim, fica patente que a não concessão do provimento liminar pugnado agravará dano irreparável não só à parte autora, mas à própria ordem jurídica, que restará violada até a prolação de provi-mento final.

Quanto a esse aspecto, importante destacar, ainda, que a existência da ilegalidade já há algum tempo, não conduz à conclusão de ausência de periculum in mora presente caso. É que tal raciocínio, afeto aos direitos de caráter patrimonial, não se aplica à hipótese ora em discussão, em que se busca assegurar o respeito à legalidade, cuja ofensa é, por natureza, sempre irreparável.

Conclui-se, portanto, estarem presentes os requisitos que ensejam a antecipação dos efeitos da tutela, encontrando amparo no art. �2 da Lei nº 7.3�7/8� c/c arts. 273 e ��� do CPC, sendo este o requerimento da União.

6 DOS PEDIDOSEm face de todo o exposto, requer a União:a) liminarmente, a concessão de antecipação de tutela, inaudita

altera pars, autorizando a demolição e remoção das construções dos requeridos (casas 14, 19, 29, 37, 55 e 56, conf. cadastros em anexo) situadas sobre as dunas e a praia, que impede o acesso de todos a bem de uso comum do povo, assim como degrada o meio ambiente em área de preservação permanente, com custos, ao final, a serem suportados pelos réus; subsidiariamente, postula-se a antecipação parcial dos efeitos da tutela para os fins de determinar o embargo dos imóveis, o que abrange qualquer espécie de utilização. Para tanto, requer-se:

a) a expedição de ordem à CEEE e à Prefeitura Municipal para fins de sustação do fornecimento dos serviços públicos de água, esgoto, energia de elétrica, coleta de lixo, entre outros;

b) a fixação de placas no local dos imóveis acerca da liminar concedida por esse juízo, com o especial alerta de que a ligação de qualquer dos servi-ços públicos interditados, de forma legal ou clandestina, configura crime de desobediência punível nos termos da lei.

b) a citação dos réus para, querendo, responder a presente ação no prazo legal;

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c) em sede de provimento final, que seja julgada procedente o pedido, para fim de restaurar o pleno usufruto das áreas irregularmente ocupadas pelos demandados (detalhados conforme os cadastros em anexo: casas 14, 19, 29, 37, 55 e 56), permitindo-se a demolição de todas as benfeitorias construídas sobre as referidas áreas de modo a consolidar o pleno uso das praias e dunas;

d) a condenação dos réus ao pagamento dos ônus sucumbenciais. e) a intimação do membro do Ministério Público Federal;Requer ainda a União a juntada dos documentos anexos, bem assim

do CD, cujo conteúdo está detalhado no roteiro de documentos em anexo, pugnando pela produção posterior de provas, principalmente a juntada posterior de documentos.

Dar-se à causa o valor de R$ �.000,00 (mil reais).

SANDRO SOUZA SCHWINDEN Advogado da União

JAIR FRANCISCO KIRINUS ALVESAdvogado da União

Subprocurador Regional da União na �ª Região

MÁRCIA BEZERRA DAVID Advogada da União

LISIANE FERRAZZO RIBEIROAdvogada da União

Coordenadora da Equipe de Patrimônio e Probidade – EPP

CÉSAR JACKSON GRIZA JÚNIORAdvogado da União

Esta obra foi composta em fontes New Baskerville e Humnst 777, corpo 10/11 e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa) pela Gráfica e Editora O LUTADOR. Belo Horizonte/MG, setembro de 2010.

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