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MEMÓRIAS DE UM ESPIÃO EM HAVANA Sofia Ferreira Cascais Editora

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MEMÓRIAS

DE UM ESPIÃO EM HAVANA

Sofia Ferreira

Cascais Editora

I

Homens em rota de colisão

As ordens que tinha recebido da CIA eram claras: espalhar contra-

informação sobre as intenções dos EUA em relação ao regime de Fidel e, ao

mesmo tempo, apoiar no terreno a operação prevista no Programa de Ação

Encoberta, com os seus 4 milhões e meio de dólares, para o derrubar.

Com sorte e algum engenho, quando terminasse a minha missão,

alguns trocos desse dinheiro iriam diretamente para a minha conta na Suíça, e

daí para a Isla de Pinos, onde me refugiaria a gozar uma merecida reforma

antecipada com Lola, a minha doce e caliente Lola...

Se falhasse, os rublos que Nikita me tinha prometido se as coisas lhe

corressem de feição no Kremlin, fariam o mesmo efeito...

Mas vamos por partes e comecemos pelo princípio, para não baralhar

o amável leitor…

Cuba era, desde a sua independência do domínio espanhol, em 1898,

uma espécie de protectorado dos EUA. A totalidade das refinarias do petróleo,

90% das minas, 80% do tabaco (e que tabaco!), 40% das plantações de açúcar,

enfim, todas as áreas importantes da economia cubana estavam nas mãos dos

americanos.

O povo era dócil, trabalhador, alegre por natureza, e ia vivendo, entre

salsas e rumbas, mojitos e guarapas, sem causar grande mossa a Fulgêncio

Batista que, desde 1933, era senhor absoluto da ilha e servo obediente dos

interesses dos EUA.

Mas, em 1959, mais de uma década depois do fim da II Guerra

Mundial, os personagens da cena internacional são outros, os tempos são de

mudança, e não há senhores para sempre, nem servos que não se irritem.

No México, emigrados cubanos, descontentes com o regime de

Batista, iam preparando o regresso à sua Cuba natal, e, em Washington,

Eisenhower, apesar de ter planos bem definidos para não deixar que o Bloco

de Leste lançasse as sementes do comunismo na América do Sul, estava quase

de saída.

Um novo rosto se perfilava no horizonte para ocupar a Casa Branca.

Um Kennedy, senador democrata e católico, sucessor de famílias históricas e

influentes, Kennedys e Fitzgeralds, ia marcar o rumo da história americana e

do mundo, apesar de ter sido um dos poucos presidentes que não chegou a

aquecer a cadeira presidencial da Sala Oval por muito tempo.

Dois tiros certeiros, em Dallas, em 22 de novembro de 1963, três anos

após a sua eleição, fariam dele o quarto presidente americano a ser

assassinado. Sei que, mesmo nos corredores do Kremlin, se lamentou a sua

morte e na América deixou uma memória que se renova de cada vez que se

questionam as circunstâncias do seu assassinato.

Quando Kennedy foi eleito em 8 de novembro de 1960, percebi que as

águas mornas em que navegara a diplomacia americana, desde a deposição de

Arbenz, na Guatemala, em 1954, iam agitar-se. A sua ideia de apoiar as

democracias do mundo a virarem costas à influência soviética, e o objetivo

estratégico dos EUA de conter o alastramento do comunismo na América

Latina, só poderiam dar esse resultado. E eu tinha de aproveitar esta onda para

me instalar de vez nas águas cálidas do Caribe.

Enquanto o jovem presidente ia distribuindo cumprimentos e simpatia

por onde passava, acompanhado da sua mulher glamorosa, Jacqueline, e

assumindo a herança de Eisenhower de manter livre a América, de Norte a

Sul, livre do comunismo, algo estava em marcha no México, com Fidel e o

carismático Che, a liderarem a mudança…

Fidel ia ser mesmo um osso duro de roer... Um tio de Lola, que me

dera a provar os mais inebriantes charutos que alguma vez fumara,

convencido que eu era um jovem jornalista dissidente do imperialismo e

admirador do grande revolucionário, fez-me um retrato fiel do líder das

aspirações cubanas: em 1953, ao comando do assalto ao quartel de Moncada,

apesar de feito prisioneiro, mostrara de que raça era feito. Aquele percalço não

o faria desistir de libertar Cuba do regime ditatorial de Batista que durava há

tempo demais.

Além disso, a sua estadia nos EUA, depois de amnistiado, permitira-

lhe conhecer o american way of life, mas também as fragilidades da política

externa de Uncle Sam.

Se, por um lado, os EUA se assumiam como o país mais rico do que

qualquer outro, dominando a economia mundial, o certo é que a divisão do

mundo após a II Guerra Mundial, formalizada por duas alianças militares

internacionais, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN),

liderada pelos Estados Unidos, e o Pacto de Varsóvia, liderado pela União

Soviética, iniciaria um longo período de tensões políticas e militares entre

estes dois grupos, a chamada Guerra Fria, e seria acompanhado de uma

corrida armamentista sem precedentes.

Fidel sabia que podia tirar partido desta situação e ter o apoio da

URSS para consolidar a sua posição face aos EUA e ao mundo.

Em 8 de janeiro de 1959, quando o vi, a dirigir-se vitorioso a milhares

de cubanos eufóricos, depois de um processo revolucionário único em toda a

América Latina, com a deposição de Batista, percebi que Washington devia

começar a habituar-se à ideia de ter um vizinho que não podia controlar. Pior:

um vizinho que podia causar-lhe grandes dores de cabeça.

Aliás, a sua primeira medida – a promulgação de uma reforma agrária

que colidia com os interesses de milionários e empresas americanas, não

deixava margem para dúvidas. Depois, no primeiro país que visitou já como

governante após a sua subida ao poder, a vizinha América, mostrou que Cuba

tinha de ser tratada como um Estado soberano e senhor do seu destino, e não

como um país de segunda.

Mas quem sente que não é bem recebido em casa alheia nunca mais lá

põe os pés. Em contrapartida, a URSS recebeu-o de braços abertos,

comprando todo o açúcar cubano em troca de auxílio económico e militar.

Claro que esta parceria não era desinteressada: a União Soviética viu

neste conflito entre Cuba e os EUA uma oportunidade de fazer sentir a sua

presença paredes meias com o seu inimigo de estimação. Além disso, era uma

porta aberta à influência da ideologia comunista numa América do Sul em

mudança e ao escoamento de produtos do maior país do mundo.

Por outro lado, Fidel, temendo que o poder militar americano se

fizesse sentir em Cuba como acontecera na Guatemala, viu com bons olhos

esta ligação fraterna a Kruchtchev e ao estreitamento entre os dois países

separados por milhares de quilómetros, mas unidos na ideologia e nos

interesses.

Eu próprio contribuí para esta amizade, depois de ter enviado a Nikita

umas dezenas de caixas de charutos perfumados e um relatório sobre o

interesse de Fidel em procurar apoio sólido em quem lho podia dar…

Esta ligação entre Havana e Moscovo estaria na origem do embargo

que, tanto anos depois, ainda se mantém. Acho até que foi Cuba que impôs um

embargo à América e já não quer outra coisa!

Mas quando Fidel subiu ao poder, ainda era Eisenhower quem

ocupava a Casa Branca. Ele, que não era nada parvo, percebeu que tinha de se

fazer alguma coisa contra aquela ilha incómoda do Golfo do México. Mas não

foi esperto o suficiente para saber que estava a lidar com guerrilheiros,

homens habituados a dormir pouco e ao relento na Sierra Maestra, a lutarem

com a força maior que se pode ter: a convicção de uma vontade.

Mas, ordens eram ordens e a CIA estava pronta, como sempre, a

cumpri-las: Eisenhower mandou preparar o tal Programa de Ação Encoberta

Contra o Regime de Castro, que de encoberto tinha pouco e mais explícito não

podia ser.

Romanov, um agente frio como gelo, nascido e criado em Kiev, que

trabalhava há muito nas Caraíbas, riu-se a valer quando lhe passei esta

informação! E ele era homem para não achar graça a nada. Mas dessa vez

consegui ver-lhe o dente de ouro enquanto bebíamos um mojito no mesmo bar

do Paseo del Prado onde Ernest Hemingway tinha passado tantos finais de

tarde emoldurados pelo fumo e pelo aroma de um belo Cohiba…

Quanto a Eisenhower, apoiado pelo diretor da CIA, Allen Dulles,

estava convencido que podia fazer em Cuba o que fizera seis anos antes na

Guatemala. Também andei por lá, em 1954, a sondar o “inimigo”, a colher

informações preciosas para que operação fosse um êxito, como foi.

Mas em Cuba nada seria assim tão fácil. Depois da euforia de ver

Fidel no poder, o povo percebeu que a falta de comida, a falta de trabalho, a

falta de oportunidades, não iria resolver-se do dia para a noite. Mas daí até

apoiarem um golpe de estado ou ofensiva militar contra o carismático Fidel, ia

uma grande distância…

Em suma, três homens, um mesmo confronto:

Kennedy, o jovem presidente oriundo de famílias poderosas da

América e da exclusiva Harvard, a querer deixar a sua marca de ambição

e fortalecer a posição americana nos países latino-americanos e no

mundo, herdada de Eisenhower.

Kruchchev, filho de pais operários, ele próprio trabalhador desde

a adolescência em fábricas e minas, depois de uma difícil disputa

interna com políticos poderosos da era estalinista, vê Cuba como um

aliado forte para uma incursão no outro lado do mundo.

Fidel, o guerrilheiro, o orador, o líder de um povo motivado para

a mudança, a defender por todos os meios a soberania de Cuba e uma

ideologia que nasceu das próprias circunstâncias históricas que a

acompanham desde o tempo em que foi uma colónia de Espanha.

O que resultou desse confronto iria perpetuar-se pelos anos vindouros,

mas essa é outra história…

II

O plano

A ideia inicial de Washington era preparar exilados cubanos, fugidos

ao regime de Fidel, para se infiltrarem na ilha e organizarem uma dissidência

anticastrista.

Lembro-me bem das muitas viagens que fiz em Cuba, nesse tempo, na

pele de um negociante de charutos, a recolher informações no terreno e a

descolar rótulos para os substituir por outros, em código, que agente Jane 009

recebia em Miami, e entregava, depois, aos manda-chuvas da CIA. A

organização ficava a saber assim com quem podia contar quando se desse a

chegada do contingente militar que iria destituir Fidel. Mal eles sabiam como

o plano iria ser um fiasco!

Mas eu sabia. Eu sabia que os russos estavam atentos ao que se

passava naquela ilha a milhares de quilómetros, um trunfo com que poderiam

contar, mesmo ali às portas dos imperialistas americanos!

E era comigo que contavam. Eu ia jogando nos dois tabuleiros,

observando os peões que dum lado e do outro se deslocavam para um embate

que ficaria na história da Guerra Fria.

Por outro lado, havia um povo que já idolatrava Fidel e daria a vida

pela Pátria contra os imperialistas e capitalistas que os tinham explorado anos

a fio.

Penso que Kennedy também se apercebeu de como a situação era

complexa e que devia manter-se meio distanciado daquele plano, simulando o

apoio americano àquela incursão de cubanos descontentes. Quando lhe

sugeriram que pusesse a força aérea americana a apoiar as forças terrestres,

recuou com aquele ar de jovem certinho e bem comportado de Harvard. Foi

hábil da parte dele esta manobra...

Assim, entre janeiro e abril de 1961, a guerra de palavras intensificou-

se entre a Casa Branca e o Palácio de la Revolución. Fidel estava convencido

que Kennedy tentaria fazer em Cuba o que se fizera na Guatemala, e não se

coibia de o denunciar a quem o queria ouvir; e claro, Washington desmentia.

Mas no dia 15 de abril desse ano, o bombardeamento de metade da

pequena força aérea cubana não deixava margem para dúvidas acerca das

intenções americanas. Nessa madrugada, seis bombardeiros B-26 camuflados

como se fossem cubanos bombardearam os principais aeroportos militares de

Cuba.

Agora, que já sou um pacato cidadão incógnito de uma aldeia sem

nome, virada para o mar, posso dizer que fui eu quem deu informações dos

locais a bombardear…

O objetivo da CIA era passar a ideia de que se tratava de uma

sublevação da própria força aérea cubana… Enfim, gato escondido com rabo

de fora…

As agências de notícias americanas divulgavam a informação como a

CIA queria, e o embaixador dos Estados Unidos na ONU, Adlai Stenvenson,

defendeu que o Conselho de Segurança devia emitir uma resolução

autorizando a intervenção dos Estados Unidos para “normalizar” a situação na

ilha… Aquela operação serviria como uma espécie de senha para o que

aconteceria dois dias depois.

Mas Fidel sabia que era tudo uma manobra de contra informação mal

montada. Romanov tinha-se encarregado de dizer isso mesmo ao Kremlin…

Agora, havia provas inequívocas da hostilidade dos EUA contra Cuba, e no

seu longo discurso no dia seguinte ao bombardeamento, o líder cubano não

poupou críticas ao imperialismo de Uncle Sam e assumiu, com todas as letras,

o caráter socialista da revolução.

Dirigindo-se aos Compañeros del Ejército Rebelde y de las Milicias

Nacionales Revolucionarias, enfim a todos os cubanos, relembrou o caminho

percorrido pelos que tinham lutado pela libertação do povo cubano da ditadura

e comparou o ataque dos bombardeiros americanos ao desastre inflingido

pelos japoneses em Pearl Harbour, porque ambos tinham violado as mais

elementares regras de respeito entre os povos. Acentuou a diferença entre a

América capitalista, imperialista, governada por castas privilegiadas e

poderosas, e uma Cuba de obreros, de gente digna e valente que luta contra a

exploração do homem pelo homem e pelo desenvolvimento do seu país.

Depois de se referir à contra-informação que foi passando nos mídia

americanos sobre esse ataque, acentuou a cobardia de atacar um país sem

defesa e acabou entre Viva la Revolución socialista! Viva Cuba libre! Patria

o Muerte!

Em Washington, como em Moscovo, o alcance destas palavras não

passou despercebido.

Claro que os russos sabiam que ali tinha havido dedo da política e do

dinheiro americano e, um ano mais tarde, Kennedy estaria a braços com outra

crise, a dos mísseis que Kruschev mandou plantar em Cuba, como retaliação

pelas ogivas americanas na Turquia, na Itália e na Grã-Bretanha, e para evitar

novo ataque àquela ilha caribenha.

Mas isso é outra história. E que história! O mundo esteve à beira da

3.ª guerra mundial e a desconfiança entre as duas potências não podia ser

maior. Nunca as relações entre as duas superpotências tinham estado tão frias,

mas nessa altura já eu estava retirado das lides de espionagem, no calor de

uma ilha tropical ao largo de Cuba...

Claro que se, em 1961, Kennedy tivesse mandado aviões com a estrela

americana para bombardearem as tropas castristas quando a ofensiva se desse,

e Fidel tivesse pedido apoio aos russos, teríamos o caldo entornado e talvez eu

não estivesse agora de papo para o ar, nesta praia de sonho, a ver o meu filho a

apanhar caranguejos...

Mas voltemos aos dias que anteciparam a invasão da Baía dos Porcos.

O nome era sugestivo e não agoirava grande coisa...

Eu fui um dos que reuniram provas de que aquela baía, no sul da ilha,

era ideal para o desembarque, ao contrário de outra opção, Trinidad. Não

havia bases militares por perto, só uma ou outra aldeia piscatória pontuava a

paisagem e ninguém ia imaginar que alguma coisa acontecesse ali, muito mais

longe da bela Florida americana do que a costa norte de Cuba. Por outro lado,

os 145 quilómetros da capital era uma distância razoável para chegar depressa

a Fidel se tudo corresse bem, mas também daria alguma margem de manobra

se as coisas corressem mal, como eu já previa que ia acontecer...

As informações que eu ia dando a Nikita, através de Romanov, eram

um bocado evasivas, pois não podia pôr em risco o meu trabalho para a CIA.

Eu sabia como a Agência Central de Inteligência podia ser tão implacável

como a KGB se descobrisse o meu jogo duplo.

Entretanto, o tal Programa de Ação Encoberta estava prestes a mostrar

os seus frutos. O Exército Cubano de Libertação estava pronto para invadir a

ilha. Mas a preparação militar daqueles homens, no Panamá e na Guatemala,

pouco habituados aos rigores da guerra, entre mosquitos e chuva constante,

não seria suficiente para enfrentar os homens de Fidel.

A ideia da CIA era levar aqueles homens e o armamento até ao largo

da Baía, fazê-los desembarcar mas manter a marinha americana afastada do

conflito que se desenrolava em solo cubano.

A estratégia de Washington era, portanto, apresentar a operação

Zapata como uma iniciativa autónoma dos tais cubanos descontentes e negar

qualquer responsabilidade no que se passara.

Mais tarde, quando as forças de “libertação” tivessem estabelecido o

controlo naquela parte da ilha, com um governo provisório, então apareceria a

América salvadora a reconhecer a legitimidade do poder instituído e a prestar

o apoio necessário.

Concluindo: o plano americano de instaurar um regime anticomunista

em Cuba tinha tudo para dar errado.

E porquê?

O exército de libertação era formado por descontentes que iriam

confrontar-se com um exército bem preparado e um povo motivado que,

acima de tudo, não abdicaria de um caminho de anos para se ver livre de

uma ditadura.

Fidel sabia que podia contar com o seu povo e com a ajuda de

Moscovo, se o seu país se visse em apuros.

Os americanos estavam metidos a 100% neste plano, mas, no

momento decisivo, apareceram meio camuflados e lançaram uma

estratégia de contra-informação que não legitimava nada as suas

pretensões e só dava razões aos “inimigo”.

III

O ataque

Em 17 de abril de 1961, atrás de uma chuva de panfletos

“revolucionários” e de bombardeiros, cerca de 1500 homens invadiram os

pântanos da praia Girón. Eu estava em Havana, no aconchego da minha Lola,

mas o eco do confronto fez-se ouvir nos poucos rádios que havia e que

reuniam à sua volta umas dezenas de cubanos atentos.

Lola, de mãos na cintura, blasfemava palavrões contra los

imperialistas de un perro que vinham desinquietar los hermanos fideles de

Cuba. Solo un americano merecia a sua considéracion, eu, lo muchacho más

guapo, descontente com a América imperialista e que tinha voltado costas à

herança paterna…

Se ela soubesse que eu estava a par de tudo, porque tinha enviado para

a CIA, através do meu contacto em Miami, um relatório pormenorizado sobre

o que poderia interessar para a operação de desembarque, e que também tinha

informado o Kremlin de que um ataque americano estava iminente, matava-

me ali mesmo, sem dó nem piedade! Aliás, não sei de quem devia ter mais

medo: se da CIA, se percebessem que eu passava informações a Moscovo, se

do KGB, se soubessem que só lhes contava meias verdades, se dela, se

descobrisse que eu trabalhava para a América imperialista! Para sorte minha,

nem ela nem eles descobriram!

Bombardeiros americanos lançaram um ataque ineficiente, enquanto

jatos T-33, usados por Fidel, atingiram dois bombardeiros americanos B-26.

Após dois dias de combates, naquela que ficou conhecida pela Batalha de

Girón, o exército chefiado por Che Guevara ao comando de 25000 homens,

200000 milícias e 9000 polícias, venceu, sem dificuldade, o tal exército de

libertação que, comandado pelo americano Richard Bissel e pelos cubanos

Pepe San Roman e Erneido Oliva, pouco deram que fazer aos cubanos, antes

de se renderem. Saldo final: 294 mortos, 176 cubanos, 118 americanos

mortos. Quatro pilotos morreram. Cinco oficiais foram executados, e nove,

condenados a 30 anos de prisão. Os restantes seriam libertados em dezembro

de 1962, em troca de 53 milhões de dólares para comida e medicamentos.

Os que não morreram renderam-se, tendo sido feitos prisioneiros 1189

soldados, e o povo cubano cantou vitória mais uma vez!

O impacto deste desaire dos EUA foi notório: legitimou a atitude da

URSS de colocar mísseis em Cuba o que agudizou a “guerra fria” que ainda

iria manter-se mais uns bons anos após o desaparecimento de Kennedy e de

Kruschev da cena internacional.

Segundo o historiador Richard Gott, “a invasão foi um dos maiores

erros estratégicos dos Estados Unidos no séc. XX, reforçando o controle de

Castro sobre Cuba, garantindo a permanência de sua revolução e ajudando a

dirigi-lo para o lado soviético".

Em casa de Lola, os festejos duraram até madrugada e eu fui um dos

que brindou à vitória cubana!

IV

E agora, senhores presidentes?

O fracasso da operação em Cuba envergonhou a administração de

Kennedy, fortaleceu a posição de Kruschev no Kremlin, mas deixou Castro

preocupado com a possibilidade de uma nova invasão americana.

Em 21 de abril, Kennedy assumiu a sua responsabilidade no plano

arquitetado por Eisenhower e a CIA, mas que ele assinou por baixo.

Contudo, em privado, Kennedy culpou os militares e os serviços de

inteligência pela estratégia seguida, convencido de que a CIA lhe tinha

mentido para que ele não tivesse escolha senão invadir Cuba.

Em agosto de 1961, numa conferência económica no Uruguai, Che

Guevara enviou uma nota a Kennedy por meio do secretário da Casa Branca,

com o seguinte: "Obrigado pela Playa Girón. Antes da invasão, a revolução

era fraca. Agora, ela é mais forte do que nunca". Sobre as deserções dentro do

governo cubano, Guevara afirmou que "a revolução socialista deixa de lado os

oportunistas, os ambiciosos e os medrosos e avança para um novo regime livre

desta classe de vermes".

No ano seguinte, em 1962, a Crise dos Mísseis demonstraria,

claramente, a força da relação de Cuba com a URSS.

Em fevereiro, Washington apertou o embargo económico contra

Cuba, e a CIA continuou a elaborar planos anticastristas para desestabilizar o

governo de Fidel.

Perante isto, Fidel volta-se para Moscovo para garantir proteção, e

Krushchev consegue convencê-lo de que mísseis fixados nos Estados Unidos

seriam um melhor elemento de dissuasão do que um acordo militar.

Em outubro de 1962, aviões espiões americanos localizam esses

mísseis. Kennedy não podia aceitar a presença de um arsenal nuclear

soviético a apenas 150 quilómetros do solo americano, e alertou Krushchev

sobre a possibilidade de um ataque iminente, se os armamentos não fossem

removidos.

A Crise dos Mísseis atingiu o seu auge entre 14 e 27 de outubro,

quando Washington determinou um bloqueio naval a Cuba e a mobilização de

140 mil homens.Castro, por sua vez, mobilizou um efetivo de 400 mil, no caso

de uma invasão americana.

Sem consultar o líder cubano, em 28 de outubro, Krushchev recuou

e concordou com a remoção dos mísseis, sob a condição de os Estados Unidos

não invadirem Cuba. A América, por seu lado, retirou os seus mísseis da

Turquia.

O acordo prejudicou os planos de Fidel, que incluíam negociar o

fim do embargo americano à ilha, assim como das atividades anticastristas, a

interrupção das violações do espaço aéreo e o encerramento da base militar

americana na baía de Guantánamo.

Os Estados Unidos não conseguiram evitar, porém, que Cuba e a

URSS mantivessem uma parceria por quase 30 anos, depois de Washington

ter abandonado as suas ambições militares em relação à ilha.

Enfim, Kennedy acabou por perceber que a paz precisa de consensos e

cedências, o que não podia ter sido mais claro num seu discurso, em 1963:

“…nenhum governo, nenhum sistema é tão mau que o seu povo deva ser

considerado desprovido de virtude. Como Americanos que somos, achamos o

comunismo profundamente repugnante, pois ele nega a liberdade e a

dignidade pessoais. Mas, podemos cumprimentar os russos pelos seus

numerosos sucessos”.

Quanto a mim, acho que contribuí também para que Cuba não fosse o

barril de pólvora que se temia.

Mais do que o meu país ou dos dólares, ou dos rublos que recebi, foi a

minha ligação a esta ilha do Caribe que mais me incentivou a evitar que uma

guerra a destruísse.

BIBLIOGRAFIA

Infopédia – Dicionários e enciclopédias em

Língua Portuguesa, disponível em

http://www.infopedia.pt

E-Biografias – o Portal das Biografias,

disponível em www.e-biografias.net

Encyclopedia Britannica disponível em

www.britannia.com

John F. Kennedy Library and Museum,

disponível em www.jfklibrary.org

Neves, P. A., Pinto, A. L., Carvalho, M. M.,

(2006), Cadernos de História - livro 5, pp.

68 e 69

Porto, Porto Editora

Maria Sofia Ferreira, n.º 12 – 11.º E