de trinitate livros ix - xiii - santo agostinho de hipona

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5/24/2018 DeTrinitateLivrosIX-XIII-SantoAgostinhodeHipona-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/de-trinitate-livros-ix-xiii-santo-agostinho-de-hipona                                 www.lusosofia.net DE TRINITATE Livros IX – XIII Santo Agostinho Tradutores  : Arnaldo do Espírito Santo / Domingos Lucas Dias João Beato / Maria Cristina Pimentel

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    DE TRINITATELivros IX XIII

    Santo Agostinho

    Tradutores :Arnaldo do Esprito Santo / Domingos Lucas Dias

    Joo Beato / Maria Cristina Pimentel

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    Texto publicado na LUSOSOFIA.NETcom a benvola e graciosa autorizao dos Tradutores

    e da Irm Eliete Duarte, da Paulinas Editora,onde os XV livros da obra,

    em edio bilingue (latim / portugus),esto publicados na ntegra :

    SANTO AGOSTINHO, De Trinitate / Trindade,Paulinas Editora, Prior Velho, 2007

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    Covilh, 2008

    FICHA TCNICA

    Ttulo : De Trinitate, Livros IX XIIIAutor : Santo AgostinhoTradutores : Arnaldo do Esprito Santo / Domingos Lucas Dias / Joo Beato /Maria Cristina Castro-Maia de Sousa PimentelColeco : Textos Clssicos de FilosofiaDireco : Jos M. S. Rosa & Artur MoroDesign da Capa : Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao : Jos M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008

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    NOTAS PRVIAS TRADUO

    Quatro dos cinco elementos integrantes do grupo que se aventurou alevar a cabo a edio bilingue da Trindade de Santo Agostinho, fize-ram o seu tirocnio na traduo das Confisses, vinda a lume em 2000por altura da celebrao dos 1600 anos da primeira publicao dessaobra. Agora, como ento, adoptou-se como critrio nico na verso dotexto latino a fidelidade ao original, retendo at ao limite da compreen-sibilidade o significado prprio do vocabulrio, por vezes agreste, noseu despojamento. Conservaram-se os longos perodos, para que o lei-tor possa sentir-se embalado pelo balancear da frase que se desenrolaem suave movimento contnuo, ou em atropelos sincopados, como opulsar de um corao que ama apaixonadamente e de uma intelignciaque em movimento incessante avana de procura em procura, insacia-velmente. Evitou-se adoar o texto com um fraseado de ndole pietista,que contraria, quase sempre, a austeridade de uma linguagem de pen-dor conceptual, que nem por isso deixa de se derramar em eflviosdemsticosarrebatamentos. Foi propsito nosso, nunca exagerado, noceder tentao de amaciar as rugosidades, ou suavizar a violncia daspalavras. Correndo, pois, muitas vezes o risco de cair em asperezas,optou-se, tambm neste aspecto, pela fidelidade ao estilo de Agosti-nho, sempre que a lngua portuguesa o permitiu. Seria um erro fatal,para tornar o texto mais compreensvel, ou duvidosamente mais actual,substituir por uma forma de apreenso mais imediata, um grito extticode Agostinho, com toda a sua profundidade.

    Nestes e em outros casos, no quisemos retirar ao leitor o prazer deir um pouco mais alm da simples leitura, transformando-a num exerc-cio de descoberta e de reflexo pessoal. Agostinho um gnio literrio,maneja a lngua como poucos, faz da palavra e do discurso o veculo daexpresso profunda do que h de mais sublime na intimidade de Deuse na interioridade do homem, no infinitamente pequeno da natureza ouno infinitamente grandioso e magnfico do universo;analisou conceitos,

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    criou imagens, manipulou sentidos, deu largas ao seu temperamentoartstico, de que o leitor da lngua portuguesa s desfrutar plenamenteconfrontando a traduo com o original latino. Para os que se fica-rem pela traduo, asseguramos, enquanto tradutores, que fizemos umesforo por atingir o inatingvel: verter Agostinho, a lngua dele, emoutra lngua, que a nossa, sem exegese, nem parfrase. Como disseTeixeira de Pascoaes a propsito das Confisses, o estilo de Agostinho filosfico e mstico, realista e potico, complexo e delicado, em queh frutos s doura ou s amargura, rosas s perfume ou s espinhos,vozes e murmrios, relmpagos e nuvens, um espao teolgico e as-tronmico, onde os anjos e as estrelas ardem na mesma claridade.1H sobretudo o entrelaar da tradio bblica com a cultura filosficaclssica e com o patrimnio de quatro sculos de reflexo cristolgicae trinitria. E disso se ressente o vocabulrio de Agostinho, sempreoscilante entre esses mundos, nem sempre coincidentes, de refernciasideolgicas e conceptuais.

    Tanto quanto foi possvel, fez-se um grande esforo para harmoni-zar os estilos e as sensibilidades literrias dos quatro tradutores. Essetrabalho foi realizado integralmente em Ftima. Deixamos aqui re-gistado o nosso vivo agradecimento aos proprietrios e ao pessoal doCatlica Hotel e do Hotel Alecrim. As condies que nos criaram e aamabilidade de que nos rodearam favoreceram muito o nosso trabalho.Uma palavra de reconhecimento para a Paulinas Editora: pela cordia-lidade, pela franqueza, pela pacincia, pela competncia profissional,pelo empenho sem limites. No mesmo olhar agradecido, evolvemostodos aqueles que trabalharam na preparao desta edio, em especiala Irmo Eliete Duarte, a Irm Delfina Repetto e Rui Costa Oliveira.Por ltimo, Reitoria do Santurio de Ftima na pessoa de MonsenhorLuciano Guerra a nossa gratido sincera pelo desafio que nos lanou.Que a Trindade indivisa nos acolha a todos na sua luz.

    1 Teixeira de Pascoaes, Santo Agostinho. Lisboa, Assrio & Alvim, 1995, pp. 109e 110 (1a edio 1945).

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    No estabelecimento do texto latino serviu-nos de base o da ediode Cornelius Mayer, publicado no Corpus Augustinianum Gissense, al-terado e corrigido no confronto com outras edies, entre as quais a daPatrologia Latina de Migne. Para orientar a leitura, foram acrescen-tados na traduo portuguesa, entre parnteses, subttulos inspiradosna mesma Patrologia Latina de Migne. A traduo acompanhadapor um aparato de fontes, para cuja constituio foram de suma im-portncia as coleces de textos disponveis em suporte informtico,especificamente a Patrologia Latina Database, Chadwyck-Healey Inc.,Alexandria, USA, o BibleWorks for Windows, Hermeneutika ComputerBible Research Software, Seattle, USA, e o Packard Humanities Insti-tute Greek and Latin Dics. As notas de carcter cultural foram reduzi-das ao estritamente indispensvel a uma melhor compreenso do texto.O mesmo princpio foi adoptado quanto s notas de mbito filosfico.

    ARNALDO DO ESPRITO SANTODOMINGOS LUCAS DIASJOO BEATOMARIA CRISTINA CASTRO-MAIA DE SOUSA PIMENTEL

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    INTRODUO

    bem conhecida a lenda medieval: um dia, Agostinho andaria a passearpela praia de Hipona, excogitando no seu pensamento o mistrio daTrindade. Segundo a lenda, Agostinho deambulava beira-mar, en-cantado talvez pelo vai-e-vem das ondas, tentando solucionar o enigmaapenas com a fora da sua razo, quando observou uma criana que, porbrincadeira, tinha feito uma pequena cova na areia e se afadigava emidas e vindas entre o mar e a cova, trazendo gua num pequeno recipi-ente. Arrancado da sua meditao por tal exerccio repetido, Agostinhoter-se- aproximado e perguntado criana: Ol, meu menino! O queandas a fazer? Ao que a criana respondeu muito simplesmente: Andoa transportar a gua do mar para esta cova. A bonomia paciente emaravilhada do Bispo de Hipona ter ento respondido, tocada com ainocncia do petiz: Olha l: ento no vs que impossvel colocartoda a gua do mar nessa cova? O mar, ests a v-lo?, imenso e atua cova to pequenina! No mesmo instante, revelando ser um envi-ado de Deus, a criana transformou-se em Anjo (ou, noutras verses,no prprio Jesus-menino), e respondeu acto contnuo: Pois eu digo-te,Agostinho: mais fcil para mim pr toda a gua do mar nesta cova,do que tu esgotares, s com os recursos da tua razo, as profundezasdo mistrio da Trindade! E desapareceu.

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    8 Jos M. Silva Rosa

    possvel que esta lenda sobre Agostinho e o Anjo1 tenha sido con-struda luz do clebre relato da sua converso, no livro VIII das Con-fisses. Com efeito, tambm no jardim de Milo fora a interveno deuma criana que cantava repetidamente um refro: toma, l, toma, l(tolle, lege, tolle, lege) que impelira Agostinho para as Escrituras, in-terpretando aquela voz infantil como uma ordem divina para que asabrisse, acto com que finalmente dissolvera as contendas interioresdo seu corao e fortalecera a sua vontade. Seja como for que tenhasurgido, ao contrrio do relato de Confisses e da remisso para o textosagrado, a lenda medieval tardia acaba por atribuir a Agostinho umainteno que nunca foi a sua: compreender, diramos, com o vai-e-vem das ondas do pensamento, ou seja, com os recursos da mera razodemonstrativa (ratio) a vida ntima do Deus Trindade. De facto, nuncaencontramos em Agostinho a pretenso racionalista de dar a conhecere de explicar a realidade trinitria em si mesma; nunca h nele a ten-tao de meter o mar, o abismo trinitrio dentro da cova da sua mente.O Sermo 117, 5 claro: Falamos de Deus. Qual a admirao seno compreendes? De facto, se compreendes, no Deus. (De deo lo-quimur, quid mirum si non comprehendis? Si enim comprehendis, nonest deus.)2

    Logo num dos seus primeiros textos, De Ordine, II, 16, 44, en-contramos a afirmao, que torna Agostinho um precursor da teologianegativa3, de que Deus melhor se conhece ignorando (de summo illoDeo, qui scitur melius nesciendo). E para no se pensar que ape-nas um asserto temporo e pontual, muito dependente do apofatismo

    1 Cf. Henri-Irene MARROU, Saint Augustin et lange, in LHomme devantDieu (Mlanges offerts au P. Henri de Lubac), vol. II, Paris, Aubier, 1964, pp.137-149; Olivier du ROY, Lintelligence de la foi en la Trinit selon saint Augustin.Gense de sa thologie selon la Trinit jusquen 391, tudes Augustiniennes, Paris,1966, p. 14.

    2 Cf. Sermo 52, 6, 18.3 Cf. Victor LOSSKY, Les lments de Thologie ngative dans la pense de

    saint Augustin, in Augustinus Magister, I Congrs International Augustinien, Paris,21-24 Septembre 1954, I vol., tudes Augustiniennes, Paris, s.d., pp. 575-581.

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    Introduo 9

    neoplatnico (Plotino e Porfrio), atente-se na afirmao incrustada nocorao de De Trinitate, VIII, 2, 3: No conhecimento de somenos(paruaenotitiae pars)quando, deste abismo(de profundo isto), aspiramos a es-sas alturas se, antes de podermos saber o que Deus (quid sit deus),pudermos saber j o que no (possumus iam scire quid non sit). evidente que esta apfase no implica qualquer recusa, partida, deinvestigar racionalmente as questes relativas existncia e essnciade Deus e, muito menos, qualquer laivo de fidesmo ou de cepticismo.Pelo contrrio, a confisso de ignorncia, me da admirao (igno-rantia mater admirationis, Conf., XIII, 20, 30) um grau de cincia(confessio ignorantiae gradus est scientiae, Sermo 301, 3), mormenteem relao quilo que desde sempre mais lhe importou conhecer: Deuse a alma. Desejo conhecer Deus e a alma. Nada mais? Absolu-tamente mais nada (Deum et animam scire cupio. Nihilne plus?Nihil omnino, Sol., I, 2, 7). Ficar calado partida seria uma afronta condio racional do ser humano e at uma eventual manifestao depreguia intelectual. O agostiniano silncio, por via de regra, vem nofim, depois de muito trabalho e de ter extenuado a linguagem no dizertudo o que pode e deve ser dito. E quem fala, diz o que pode (quiloquitur, dicit quod potest, (In Ioh. Eu., 1, 1) observao especial-mente vlida para esta to custosa obra (opus tam laboriosum, Ep.174) acerca da Trindade.

    Repitamo-lo, pois, em alternativa legenda: no encontramos nuncaem Agostinho qualquer tentativa de esgotar com as investidas da ra-tio uma realidade que sabia estar para l da humana compreenso. sempre esta a atitude de reserva escatolgica que enforma inclusive oscumes mais reflexivos e especulativos dos seus textos sobre a Trindade,como por exemplo os livros V a VII de De Trinitate. O que move a suaauscultao sempre o intellectus fidei, a inteligncia da f (genitivosubjectivo) no sentido de uma compreenso cordial e amorosa da reve-lao. E tal atitude, em vez de o deixar parado e misticamente absorto,mais lhe acicata a inteligncia na tentativa de aprofundar, at onde forpossvel, aquilo em que acredita. Procurei-te e desejei ver com a in-

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    teligncia aquilo em que tenho crido. . . , conclui De Trinitate4. Na ver-dade, por paradoxal que possa parecer, a nenhuma realidade se aplicamelhor o mote da Carta 120 ama muito a inteligncia (intellectumuero ualde ama) do que ao conhecimento de Deus e da alma. E as-sim, na esteira do profeta Isaas 7: 9, se o mtodo agostiniano aparecesintetizado na conhecida frmula cr para entenderes, entende paracreres (crede ut intelligas, intellige ut credas), presente tambm emobras como De Vtilitate credendi, De Fide et Symbolo, De Fide rerumquae non uidentur ou, mais concisamente, no Sermo 43 , podemosdizer que em De Trinitate que esse mtodo mais se exercita e melhorse apura.

    Com efeito, quando a questo se joga no j apenas ao nvel das re-laes entre f e razo, em geral, mas da investigao do Deus Trindadeem particular, surge um terceiro termo indispensvel progresso doconhecimento. Que terceiro termo este? O amor. A menos que oamemos agora, jamais o veremos (quem tamen nisi iam nunc diliga-mus, numquam uidebimus, De Trin., VIII, 4, 6). Noutro texto, ContraFaustum XXXII, 18, aparece a conhecida frmula: No se chega verdade seno pela caridade (Non intratur in ueritatem nisi per car-itatem), acrescentando em De Doctrina christiana, III, 10, 15, que oamor ou a caridade (caritas) a nica coisa que as Escrituras man-dam: non autem praecipit scriptura nisi caritatem. Assim, pericoresetrinitria deve corresponder, em eco amoroso, a pericorese das fac-uldades humanas, i.e., o movimento inter-remissivo da memria, dainteligncia e, muito em especial, do amor ou vontade (seu uoluntas)que insinuao em ns daquilo que o Esprito Santo na Trindade. preciso ento reescrever a primeira frmula do Profeta: no apenascrede ut intelligas mas tambm ama ut intelligas5. O amor em simesmo um poder de conhecimento; a caritas verdadeiramente capaxuerbi.

    4 XV, 18, 51.5 Cf. Jean-Luc MARION, Ama para que entendas. A hermenutica crist do

    mundo, in Communio 9 (1992/4), pp. 347-353.

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    Introduo 11

    Esta uma afirmao que muitas das actuais teorias do conheci-mento, depois das modernas epistemologias crticas, comeam a escu-tar com ateno. O amor inegavelmente um poder de evidenciao ede dar a conhecer, como to eloquentemente afirmava Maurice Blon-del, nos seus Carnets Intimes: Nada se conhece quando no se ama.(...) Para que exista verdadeira unidade e vida imanente, vinculum sub-stantiale, preciso que o esprito de unidade e de amor penetre secre-tamente na intimidade dos seres e a opere a realidade, o ser. E o ser sempre uma presena de Deus. Mais do que um conhecimento, maisdo que uma produo, o ser amor.6

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    A primeira referncia textual directa Trindade, no corpus agos-tiniano, aparece numa das obras de juventude, De Beata uita, comeadaa escrever no dia 13 de Novembro de 386, data do seu 32.o aniversrionatalcio, cerca de trs meses depois da sua converso. No ambientecalmo e outonal da quinta do seu amigo Verecundo, em Cassicaco, acerca de 35 quilmetros da urbe milanesa, avistando j as neblinas eas neves alpinas, o grupo dos seus discpulos, amigos e familiares, in-cluindo a me Mnica, entoava cnticos e hinos religiosos aprendidosjunto de Ambrsio, em Milo. Um desses hinos, intitulado Deus cre-ator omnium, finalizava justamente com o verso Escuta, Trindade,aqueles que te invocam (Foue precantes, trinitas, De Beata uita,35)7.

    significativo que a primeira referncia directa Trindade na obraagostiniana seja um hino de louvor da liturgia ambrosiana, memo-rizado por sua me. Mnica, alis, acrescenta acto contnuo, como ten-tativa de explicao e de resposta ao problema central de que se ocupa oDilogo acerca da felicidade, que a vida trinitria (. . . ), sem dvida,

    6 Maurice BLONDEL, Carnets Intimes I. (1883-1894), Paris, Cerf, 1961, p. 222.7 Cf. Ambrsio de Milo, HymnusII, 32.

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    a vida feliz, [pois] que a vida perfeita, para a qual podemos ser con-duzidos se nos desembaraarmos, munindo-nos de uma slida f, deuma vida de esperana e de uma ardente caridade. Importa sublinharbem a afirmao: em contexto orante, quando como catecmeno seprepara para receber o baptismo, que a Trindade referida como Vidaplena e exuberante; e quando mais tarde procurar aprofundar ex pro-fesso a questo em De Trinitate e apresentar as razes da f, Agostinhopermanecer sempre fiel a esta dimenso doxolgica original. Alis,a genialidade de De Trinitate vem da relao que estabelece entre aespeculao e a orao8; o mysterium Trinitatis sempre menos daordem do que se pode conhecer e dar a ver racionalmente do que ummysterium caritatis9, i.e., um sacramento de amor, celebrao e co-munho numa mesma Vida una e diferenciada que se se d a pensar porque nela convidou a entrar e a participar. Em mbito trinitrio,o mysterium no pois da ordem do misterioso gnosiolgico, do in-acessvel e incognoscvel, como certo pensamento moderno quis, nema Trindade o teorema celeste do trs-em-um a ser resolvido por umamente especialmente hbil a decifrar enigmas. A Trindade da ordemda Vida e da Vida em abundncia, e nesta que se enrazam os mis-trios fundamentais da f crist. Por isso, a difundida e modernatendncia para se considerar todo o mistrio como misterioso (na suaacepo secundria de obscuro e confuso) muito contribuiu para que omistrio trinitrio luz pura tenha sido progressivamente relegadopara a lista dos objectos e conceitos virtualmente inteis para a prticada vida crist (para que serve se completamente incompreensvel?),quando, na realidade, a Trindade no s pedra fundamental do cris-

    8 Cf. Rowan WILLIAMS, Trinit (La), in Encyclopdie Saint Augustin. Lamditrrane et lEurope IVe XXIe sicle (d. fr. sous dir. Marie-Anne Vannier),Paris, Cerf, 2005, p. 1430.

    9 Cf. Basil STUDER, Mysterium Caritatis. Studien zur Exegese und Trinittslehrein der Alten Kirche, Roma, Pontificio Ateneo S. Anselmo, 1999.

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    Introduo 13

    tianismo, de um ponto de vista terico, como tambm a base existencialprtica e concreta da vida crist.10

    Como Mnica, tambm Agostinho estava convicto de que era aquelaVida perfeita, quer o soubessem ou no, que as filosofias tardo-antigasbuscavam quando afirmavam que todos os homens desejam ser fe-lizes11 via trinitria que algumas filosofias pags tinham talvezpressentido, v.g., Plotino ou j Plato, quando este afirmava que aalma humana deseja conhecer a natureza do Primeiro, rei de todasas coisas, a natureza do Segundo e as coisas segundas e, por fim,anatureza deo Terceiro e as coisas terceiras.12 Afinal, ao que parece,a filosofia tambm ensina a trindade. Mas apesar desses filosfi-cos uestigia Trinitatis, e muito expressivamente frente via que asfilosofias do helenismo tardio preconizavam para alcanar a vida fe-liz, Agostinho conclui De Beata uita, pela boca da me Mnica, apon-tando a medida diferenciadora da experincia crist: i.e., a via real dodinamismo trinitrio e teologal da f, da esperana e da caridade e no, como se poderia estar espera, pondo o acento no quaternriodas virtudes (artai) clssicas da temperana, da coragem, da prudn-cia e da justia como via para alcanar aquela divina medida, se bemque tais virtudes humanas sejam indispensveis e todas recuperadas emDe Trinitate (v.g., XII, 14, 22), no mbito da distino entre cincia,scientia, e sabedoria, sapientia.

    Poderamos multiplicar as referncias a mais textos do jovem Agostinho,at 39113, e indicar outros da maturidade De Fide et Symbolo, de393, o livro XIII de Confessiones, de 400, o Sermo 52, de 410-411 ou

    10 RaimonPANIKKAR, A Trindade. Uma experincia humana primordial,Lisboa,Ed. Notcias, 1999, p. 80; cf. Bruno FORTE, Trinit come storia: saggio sul DioCristiano, Milo, Edizioni Paoline, 1988, pp. 13 e ss.

    11 Agostinho, De Beata vita, 1, 10; De Libero arbitrio, II, 9, 26; 10, 28; Confes-siones, X, XXI, 31- XXIII, 33; De Ciuitate Dei, X, 1; XIX, 1; De Trinitate, XIII, 5,8; VIII, 11; 20, 25.

    12 Carta II, 312 d-e.13 Como faz Olivier du ROY, na referida obra Intelligence de la foi en la Trinit.

    Por exemplo, entre outros, De Ordine, I, 10, 29; II, 5, 16; De moribus. . . , I, 16, 29;De Libero arbitrio, III, 21, 60; 25, 75; De Musica, VI, 17, 59; Epistula11, a Nebrdio;

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    a Epistula 120, tambm do ano 410 que a tnica dominante mantm-se: a exposio da f na Trindade insere-se e culmina sempre num hor-izonte doxolgico e orante, e nisto Agostinho um perfeito herdeiroda mais recuada tradio eclesial confessante e das frmulas litrgicase baptismais, que, se tiveram nos Padres Capadcios: Baslio de Ce-sareia, Gregrio de Nazianzo, Gregrio de Nissa, as suas mais felizesformulaes, encontram o hmus vital nas palavras e aces do prprioJesus, cuja Vida era o mysterium de uma relao com Algum maior doque eu (Jo 14: 28) e com Outro que h-de vir e vos h-de revelar todaa verdade (Jo 15: 26; 16:13).

    * * *

    Ainda jovem, dei incio escrita dos livros da Trindade, que oDeus supremo e verdadeiro: j na velhice dei-os a pblico (de trini-tate quae deus summus et uerus est, libros iuuenis inchoaui, senexedidi, Ep. 174). neste tom confessional que Agostinho comea acarta ao Bispo Aurlio de Cartago e que serve de promio a De Trini-tate. Nas Retractationes, II, 15, 1, acrescenta outros pormenores so-bre o processo da atribulada composio da obra: Durante algunsanos, escrevi quinze livros sobre a Trindade que Deus. Mas quandoainda no tinha terminado o dcimo segundo, aqueles que desejavamardentemente t-los, como eu os retinha mais tempo do que eles po-diam esperar, surripiaram-mos menos corrigidos do que deveriam epoderiam estar (subtracti sunt mihi minus emendati quam deberent acpossent) quando eu os tivesse querido publicar (eos edere uoluissem).Comprovei-o depois, porque tambm eu tinha conservado comigo al-guns exemplares e estava decidido a j no os publicar, mas a deix-losassim, e dizer em alguma outra obra minha o que me tinha acontecidocom eles. Contudo, a pedido dos irmos (urguentibus tamen fratribus),

    De Vera religione, 7, 13; 8, 14; 18, 35; 55, 113; De Diuersis quaestionibus octogintatribus, q. 18, etc..

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    Introduo 15

    a quem no era capaz de me opor, corrigi-os na medida em que acheinecessrio, completei-os e publiquei-os (emendaui eos... et conpleui etedidi) juntando-lhes no princpio uma carta que escrevi ao VenervelAurlio, bispo da Igreja de Cartago. Nesse prlogo expus tambmo que acontecera e o que teria querido fazer com a minha reflexo eo que, compelido pela caridade dos irmos (fratrum caritate conpel-lente), acabei por fazer.

    hoje consensual que Agostinho ter comeado a escrever De Trini-tate por volta de 399, tendo terminado a obra 20 anos depois, em 419-420. Quando comeou a ditar a redaco, animado talvez pela con-cluso trinitria com que estava a acabar as Confessiones, tinham jpassado cerca de dezassete anos sobre a paz do Conclio de Con-stantinopla (381). Como se sabe, s este Conclio veio pacificar muitosdos conflitos cristolgicos e trinitrios que o Conclio de Niceia, em325, no s no conseguira resolver como, nalguns casos, at acirraraainda mais, pelo menos no Oriente Alexandria, Antioquia, Nicom-dia, Constantinopla , se bem que o Ocidente latino no tenha ficadodeles alheado, como durante muito tempo se pensou (que o diga, porexemplo, o Bispo Eusbio de Vercelli). De facto, recentes investigaestm mostrado que, precisamente na altura em que Agostinho se estavaa preparar para o Baptismo, em Cassicaco e em Milo, no inverno de386-387, se encontravam nesta cidade alguns homoiousianos, isto ,representantes de um arianismo antiniceno que, contra a afirmao deCristo consubstancial ao Pai (homoousios) definido em Niceia, afir-mavam que Ele era apenas de substncia semelhante (homoiousios) do Pai. Esta polmica, est patente na atitude de Ambrsio de Miloface a Paldio de Ratiaria, a Secundino de Singidunum e a Auxnciode Durostorum, homoiousianos que recusavam a igualdade essencialdo Pai e do Filho, em nome apenas da sua semelhana14, refregaque Agostinho relembra mais tarde15. Fora tambm por esta alturaque Justina, me do jovem Imperador Valentiniano, conquistada pe-

    14 Cf. Rowan WILLIAMS, Trinit (La), p. 1421.15 Cf. Epistula 238, 4.

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    los Arianos, perseguira o bispo Ambrsio por este lhes recusar umabaslica para o seu culto16. Mas se talvez verdade que no Ocidente ascontrovrsias nunca foram to violentas nem to disseminadas comono Oriente, indubitvel que a polmica contra o arianismo, por umlado, e contra o modalismo, por outro, funciona ainda como pano defundo onde, na esteira de De Fide et symbolo (I, 1) contra as fraud-ulentas subtilezas dos hereges, se projecta ainda a obra De Trinitate:de facto, com o clamo vigilante, Agostinho afirma que importa con-heceros argumentos astuciosos dos hereges e como devem ser refu-tados (haereticorum uersutissima argumenta qualia sint et quemad-modum redarguantur, De Trin.,IV, 21, 32). Apesar destas notas be-licosas, a obra de per si no do gnero polmico, como outras deAgostinho, se bem que ainda assim, at ao seu tormentoso trmino, elaprpria no tenha deixado de gerar controvrsia.

    De Trinitate foi, sem sombra de dvida, em todos os aspectos, aobra mais difcil de Agostinho. No s pela complexidade e a profun-didade do tema, mas tambm por todas aquelas contrariedades na com-posio (mormente o dito roubo dos livros I a XII, por volta de 416)as quais, no fora fortemente instado aquando se deslocou a Cartago,em 418, o teriam levado a abandonar o projecto. Mas talvez por causadisso mesmo, esta tambm uma das obras em que Agostinho maisindicaes metodolgicas d ao seu destinatrio: introdues e snte-ses breves, formulao clara do que pretende, a antecipao do que vaifazer (I, 2, 4 3, 6), as razes do seu trabalho (III, Promium, 1-3),o adiantamento aqui e ali de algumas concluses (v.g., I, 8-9, 18), asbreves indicaes de transio, no princpio de um livro, sobre o quefoi tratado no livro anterior (III, Promium, 3; VII, 1, 1; IX, 1, 1; XIII,I, 1) ou, no fim de um livro, a recapitulao do que nele tratou (XIII,20, 25-26) e do que ir tratar no seguinte (I, 13, 31; II, 18, 35; III,11, 27; IV, 21, 32; X, 12, 19; XI, 11, 18; XII, 15, 25; XIII, 20, 26);a remisso para livros anteriores (XIV, 7, 10; 8, 11; 19, 26); o livroVIII a funcionar como fulcro metodolgico da obra toda e autntico

    16 Cf. Agostinho, Confessiones, IX, VII, 15.

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    discurso do mtodo seguido por Agostinho, livro que opera na per-feio a mudana e o trnsito entre primeira e a segunda parte da obra; asinopse global que inicia o ltimo livro, o XV, acerca de todo percursorealizado ao longo dos anteriores catorze livros (XV, 3, 4-5). Enfim, como se Agostinho continuamente atasse e reatasse os fios do textopara no deixar perdido o leitore fizesse todos os possveis por infirmara sua convico, expressa na Carta169, 1, de que os quinze livros somuitos difceis e poucos, creio, os podem compreender (nimis operosisunt et a paucis eos intellegi posse arbitror) e, deste modo, por anteci-pao, tivesse feito tudo o que lhe era possvel para tornar mais fcil asua compreenso.

    Os primeiros quatro livros de De Trinitateso de exegese bblica.O que est em causa interpretar os uestigia Trinitatispresentes nasteofanias do Antigo e do Novo Testamento, de modo a refutar a exegeseariana que, de muitos passos escritursticos, conclua a inferioridade doFilho, logo a sua no divindade. O esforo de Agostinho concentra-se,pois, na demonstrao da igualdade e da unidade na Trindade. certoque a organizao, contra o subordinacionismo ariano, do dossiercomos dicta probantiada Escritura a respeito da igualdade e da unidade naTrindade divina no era uma novidade. Fora nessa base que comearae se mantivera o debate trinitrio na primeira gerao que ops rio(c.256-336) ao seu bispo, Alexandre de Alexandria, e foi com recursoapenas s Escrituras que Atansio (c.298-375) prosseguiu o ataque aoArianismo.

    Mas uma de entre as vrias novidades da interpretao de Agostinhode Hipona, em nosso entender, reside na perspectiva fenomenolgi-ca que deliberadamente assumiu pois, visando sempre o mais essen-cial e o mais significativo da cogitatio fidei, comeou por remontar scondies de possibilidade da revelao trinitria como tal considerandoo modo como a mesma se revela quer na criao, quer no homem, querno prprio Deus. Deste modo, a investigao agostiniana inicia-se poruma angelologia, quer dizer, investigando o papel do Anjo, figura me-diadora por antonomsia, nas teofanias bblicas. No que se refere

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    natureza anglica, Agostinho segue a tradio anterior, segundo a qualo anjo um esprito de natureza material, embora de matria subtil eceleste, pelo ministrio da qual (ministrantibus angelis) Deus se rev-ela. O anjo, conforme o significado grego de angelos, designa umafuno no uma substncia ou uma natureza. portanto um smboloda prpria funo simblica qua talis (nuntius, mensageiro). Era nestesentido que afirmava Tertuliano: anjo nome de funo, no de na-tureza (id este nuntius, officii non naturae uocabulo17 ), concepototalmente partilhada por Agostinho: angelus enim officii nomen, nonnaturae(En. in Psalmos, 103, 1)18 .

    Mas, apesar do imenso valor que atribui aos uestigia Trinitatis e atodas as figuras mediadoras, mormente a do Anjo com o qual, nasnarrativas do Antigo Testamento, muitas vezes Iahweh se confunde ,Agostinho ir verificar tanto a sua importncia intermediria (tendo emconta a condio csmica e corprea do homem), quanto a radical insu-ficincia de as antiquae demonstrationes (De Trin., III, Promium, 3)poderem revelar a Trindade invisvel. A hermenutica angelolgica deAgostinho, mau grado o apreo pelos vestgios trinitrios e smbolosrelacionais, presentes quer num quer noutro Testamento, acabar porreconhecer os limites e a insuficincia radical de qualquer exegese quepretenda ver ou deduzir da a Trindade, porque esta radicalmenteinvisvel e opera inseparavelmente. Mesmo o passo neotestamentriomais paradigmtico, que o do Baptismo de Cristo no rio Jordo onde encontramos a Voz, o Filho e a Pomba , o qual lhe permiteafinar a sua teoria das misses ad extra de cada uma das pessoas div-inas, e outrossim introduzir o esquema fundamental da sua cristologia,a diferena na nica pessoa de Cristo da forma serui, condio de servo,e da forma Dei, condio de Deus, de modo a valorizar a Encarnaosem cair no subordinacionismo ariano, mesmo isso, dizamos, requer

    17 De Carne Christi, XIV, 3.18 Cf. Agostinho, Trinitate, II, 13, 23; De Genesi ad litteram, 6, 19.24; In Iohannis

    euangelium, 24, 7; Enarrationes in Psalmos, 135, 3; 145, 3; Sermones, 7, 3; 362, 17;Epistulae, 95, 8; 102, 20.

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    um lumen fidei e uma experincia de diferenciao espiritual mais pro-funda, da que Agostinho, da exegese das Escrituras, se volte para umafenomenologia do homem interior, mas no, como veremos, sem antespassar pelo duro trabalho do conceito (livros V-VII).

    A comear a obra, Agostinho faz sua, contra os Arianos, uma dasorientaes fundamentais do Conclio de Niceia: a Trindade operasempre inseparavelmente Trinitas quippe inseparabiliter operatur(De Trin., II, 10, 18; 5, 9; IV, 21, 20) , mesmo quando parece, con-forme uma certa tradio que o autor de De Trinitate rejeita, que oVerbo teve o papel principal na Criao (resultado da leitura cruzadado Gnesis com o Prlogo do Evangelho Joo), ou que nas teofaniasanglicas do Antigo Testamento apenas se revelaram o Filho e o Esp-rito Santo. Est neste caso o passo do livro do Gnesis, no qual Adose esconde ao ouvir o chamamento de Deus. Diz-se, de facto, que Deusfalou a Ado. Mas qual das pessoas divinas falou a Ado? A exegesede Agostinho hesita, avana e recua, antes de admitir que a parece es-tar insinuado o Filho, o Verbo em quem o Pai se diz e manifesta (cf.De Trin., II, 10, 17-18). Mas o Filho precisamente a manifestaodo Pai, de modo que no colhe a opinio que ope a visibilidade doFilho ou do Esprito absoluta transcendncia do Pai. A visibilidadedo Filho a visibilidade do Pai. Na Trindade no existem pessoasmaistranscendentes que outras, o que permite a Agostinho aprofundar umaverdadeira teologia trinitria da criao. , porm, o clebre episdiodo Carvalho de Mambr (cf. De Trin., II, 10, 19 11, 21) que maisconduz Agostinho reflexo e meditao sobre as epifanias trinitriasno Antigo Testamento. Eis que, no calor da tarde, trs homens visitamAbrao, que os acolhe na sombra do carvalho. A Escritura tanto de-signa esta apario no plural (eles) como no singular (ele, Senhor).Tal variao numrica e verbal um dos lugares de maior intensidademeditativa sobre a natureza una e diferenciada de Deus. Ao tratar ostrs, ou os dois, como se fossem um, ou um como se fossem dois outrs, a linguagem como que conduzida ao limite das suas possibilida-des, devendo ser a transgredida. Uma realidade inesperada exige uma

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    nova linguagem; preciso criar uma nova gramtica. Neste episdioe com esta linguagem paradoxal, interroga-se Agostinho, no se que-rer insinuar de modo simblico a unidade da Trindade e a trindade daUnidade?

    Igualmente nos episdios do sacrifcio de Isaac mas, sobretudo, noda sara-ardente (Ex 3: 1-6; cf. De Trin., II, 13, 23) onde a tensoentre a presena/ausncia de Deus e a mediao anglica mais se inten-sifica. O problema centra-se aqui na dialctica da revelao-ocultao.Diz-se em primeiro lugar que o Anjo do Senhor apareceu a Moissnuma sara-ardente e, acto contnuo, Algum que fala do meio da saraidentifica-se como sendo o prprio Deus. A relao entre o finito e in-finito, entre a presena e a ausncia da Face do Altssimo atinge aquilimites extremos, e o mosaico desejo de ver o rosto, muito a custo,tem de baixar os olhos e ceder lugar escuta. Ento a Voz da sara-ardente chama Moiss e revela-lhe o Nome da Misericrdia: Eu sou oDeus do teu pai, o Deus de Abrao, o Deus de Isaac e o Deus de Ja-cob. Mas antes, quando aparecera a chama de fogo, esta epifania forachamada pela Escritura Anjo do Senhor e no Deus. E, logo a seguir,revela-se o Nome da Imutabilidade, Eu Sou aquele que Sou comouma espcie de ponto-de-fuga de todo o discurso (Ex 3: 14). Porquaquela variao entre singular e plural, e esta entre o Anjo do Senhor eJahweh? Agostinho no sabe responder: a Escritura parece fazer poucodos princpios de identidade, de no-contradio e do terceiro-excludo.

    medida que a exegese de Agostinho avana, intensifica-se a ten-so nos smbolos da presena e da ausncia de Deus, at ao acmenem que Deus diz a Moiss que jamais algum O pode ver sem morrer.No poders ver a minha face e viver (non poteris uidere faciem meamet uiuere), porque nenhum homem poder ver a minha face e continuara viver. Parece, contudo, fazer uma concesso: Eis aqui um lugarjunto de mim (ecce locus penes me); estars sobre a rocha, e quandoa minha glria passar pr-te-ei numa fenda da rocha (ponam te in spe-lunca petrae); cobrir-te-ei com a minha mo ao passar (tegam manumea super te donec transeam) e retirarei a minha mo, e ento pode-

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    rs ver as minhas costas (tunc uidebis posteriora mea); o meu rosto,porm, jamais o vers. (Ex 33: 20-23)

    Agostinho afirma que se pode interpretar este passo em que Moissv as costas de Deus como uma prefigurao simblica da Encarnaodo Verbo que, no se prevalecendo de ser igual a Deus (Fl 2: 6), nasceu,viveu, morreu e ressuscitou. A razo de tal interpretao compreende-se em razo da carne que assumiu, a qual, nesse sentido, pode ser dita ovisvel do invisvel, a via para a ptria(cf. Conf., VII, 20, 26; 21, 27).Deste modo, o rosto humano de Cristo, a forma serui, visibilidadeencarnada da forma Dei, a sua condio divina, a qual permanece nosegredo da Vida que eternamente se auto-revela e de Si mesma frui. Vaineste sentido, precisamente, a interpretao da j referida passagem doBaptismo de Jesus no rio Jordo. isso que os Arianos no podemcompreender: que segundo a condio de servo assumida na Encarna-o, o Pai maior do que eu (Jo 14: 28), e portanto o Filho enviado,mas segundo a condio de Deus como Verbo Eterno, eu o Pai somosum(Jo 10: 30); logo o Filho no menor do que o Pai.

    * * *

    Abandonando agora a simblica angelolgica e inscrevendo-se noplano duro do conceito, Agostinho, nos prximos trs livros (V-VII),ergue-se at ao pncaro mais incmodo para o pensar e fica no gumeda navalha, a meio caminho entre o arianismo e o modalismo: contrao primeiro importa defender a unidade da substncia de Deus; contra osegundo era imperativo manter a diferena real do Pai e do Filho e doEsprito Santo.

    Ora, contra os Arianos (rio, Acio, Eunmio de Czico, etc.), quepraticamente acabam por afirmar os trs deuses estilhaando a unidadede Deus, a substncia nica parece exprimir melhor essa unidade e aimutabilidade. Todavia, o autor de De Trinitate, quando aceita inscrever-se sob a agenda dos hereges (cf. De Trin., I, 3, 6; 7, 14; 13, 31; IV,

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    21, 31-32; VII, 4, 9), est bem consciente da dificuldade de a cate-goria de substncia, manejada em bloco, poder expressar adequada-mente a diferena essencial das pessoas que a experincia e a tradiocrists confessam em Deus. que nessa substancializao outranceconsiste a heresia trinitria oposta: o modalismo de Noeto, Prxeas eSablio, que dissolve as pessoas divinas no oceano de uma substncianica, da qual o Pai, o Filho e o Esprito Santo so apenas os modos(tropoi) da aco de Deus, para ns; meras expresses plsticas, fig-uras ou mscaras histricas que assume para os homens, mas Ele,em si mesmo Deus, nem Pai nem Filho nem Esprito Santo: podemosdizer que s h Trindade ad extra (ekonomica, histrico-salvfica), masno Trindade ad intra(teolgica, imanente). Contra estes dois perigossimtricos, invectiva Agostinho: Tem vergonha, sabeliano! (...) Dis-tingue as pessoas, para que no percas cada pessoa. Distingue cominteligncia, no separes com perfdia, no acontea que ao fugires deCarbdiscaias em Cila. (...) Navega pelo meio, evitando um e outrogrande perigo. (...) Nestas duas expresses [Eu e o Pai somos um, Jo10: 30], o um livra-te de rio, o somos livra-te de Sablio. Disseum s disse somos; um s segundo a essncia, porque o mesmoDeus; somos segundo o relativo (In Ioh. Eu., 36, 9; De Trin., VII, 6,12).

    Entre Cila e Carbdis, portanto, evitando fugir do primeiro escolhosem cair no segundo, Agostinho forceja por encontrar uma linguagemmais apropriada ao mysterium e essa parece-lhe dever ser a da relao,categoria para onde os Padres Capadcios se tinham orientado. To-davia, quando tenta compreender a Trindade em termos de relao,prima facie parece-lhe que de novo a substncia divina se fragmenta,recaindo outra vez no subordinacionismo ou no tritesmo dos arianos eeunomianos. A linguagem e o pensamento sobre a Trindade conduzem-nos ao reino do paradoxal. Por um lado, Pai, Filho e Esprito Santo des-ignam nomes prprios na Trindade e, nesse sentido, s podem entender-se como absolutos (ad se ipsos); mas, ao mesmo tempo, o seu contedo relacional porque se dizem uns em relao aos outros, em reciproci-

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    dade (ad inuicem). Eis o paradoxo trinitrio: como pensar em conjuntoaquilo que a ratio, a razo lgica, parece no conseguir formular emconjunto? Isto , como pensar a unio inefvel (ineffabilis coniunc-tio) que faz destas trs realidades um nico Deus (De Trin.,VII, 4, 8),uma Trindade una e uma Unidade trina? O que Agostinho se prope encontrar algo que d conta e mantenha o paradoxo como tal, sem ten-der resolutivamente nem para uma viso sinttica, onde a Unidade ab-sorva e suprima a Trindade (conforme os modalistas), nem para o plooposto, onde as Trs pessoas funcionem com uma alteridade-diferenato radical que fracturam a unidade real (arianismo). Importa mantersimultaneamente ambas as coisas, i.e., as relaes de origem que in unoictu distinguem e opem as pessoas numa mesma essncia relacional,afirmao da unidade e da diferena, do mesmo e do outro, da unidadena relao, pois Deus no trplice, mas Trindade (non deus triplex,sed trinitas, De Trin., VI, 7, 9; XV, 3, 5).

    Agostinho avana com mil precaues. Tem o cuidado de, primeiro,reconhecer a unidade de Deus (e para isso, em vez de substantia, umavez que um dos sentidos de substncia ser sujeito de acidentes e emDeus no h nada de acidental, ir preferir essentia, essncia, a qualse presta a menos equvocos) para, depois, poder diferenciar e rela-cionar. O autor de De Trinitate procura no cair nas armadilhas deum pensamento que, por ter rompido brutalmente a realidade, se rev-ela depois absolutamente incapaz de relacionar e de unificar as singu-laridades. Compreendendo bem o que est em jogo, o anti-maniqueudelineia o seu prprio percurso: unificar para diferenciar e no dividirpara unir. A sua experincia pessoal de passagem pela ruptura ontolg-ica do maniquesmo mostra-lhe que a primeira via de longe prefervel,apesar de tambm no estar isenta de perigos.

    Podemos, ento, admitir em Deus uma relao que no exprimao acidental e que, por conseguinte, escape mutabilidade? Ou terorazo os arianos e os eunomianos ao afirmar que tudo o que se pensaou predica de Deus se deve predicar segundo a substncia, jamais se-gundo os acidentes o que os conduz a negar a divindade do Filho

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    e do Esprito Santo? O dilema de onde os arianos partem meridiano:se se insiste na substncia compacta-se Deus (e o Filho e o EspritoSanto, tambm substncias primeiras, acabam expulsas da divindade,pois em boa lgica aristotlica uma substncia primeira no pode serpredicado de outra substncia primeira); se se adopta a linguagem darelao relativiza-se e introduz-se o acidental no seio de Deus. Noprimeiro caso compacta-se Deus e expulsa-se a alteridade; no se-gundo, fractura-se Deus e evacua-se a unidade. No fio da navalha,haver escapatria entre o modalismo sabeliano e o tritesmo ariano?Como devemos dizer as pessoas em Deus se quisermos no apenasafirmar um dogma (i.e., uma opinio vivida e avalizada por uma co-munidade crente), mas argumentar com os herticos e expor o melhorpossvel o mysterium fidei? H aqui uma relao profunda entre a f, opensar e uma forma de presena na histria concreta dos homens; liber-dade arriscada de quem no tem trunfos na manga e aceita o carcterradicalmente exposto da existncia crente, a qual, longe de ser um merogrito, abriga insuspeitas larguras, alturas, lonjuras e profundidades. Af no trapaceia a obscuridade da vida humana. Tenho de confes-sar que, ao escrever, eu mesmo aprendi muitas coisas que no sabia(egoque ipse multa quae nesciebam scribendo me didicisse confitear,De Trin., III, 1, 1). Agostinho confessa que aprendeu muitas coisas aescrever; De Trinitateno uma obra dogmtica nem dogmatizante,mas um acto de fala que umacto de escrita; por excelncia umaobra hermenutica, heurstica no mais profundo sentido do termo, i.e.,que vai s fontes, cria mundo e revela novas possibilidades; a f noapenas d que pensar, mas d apensar.

    Assim, quele falso dilema Agostinho contrape o que podemoschamar o princpio do terceiro-includo: verdade, como dizem os Ar-ianos, que em Deus nada se predica segundo o acidente; mas igual-mente verdade que nem tudo dEle se afirma segundo a substncia.Ambas as afirmaes so verdadeiras. Assim aqueles predicados queno so ditos nem segundo a substncia nem segundo o acidente, sopredicados segundo o qu? Resposta de Agostinho: Na verdade,

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    dito segundo a relao / Dicitur enim ad aliquid (De Trin.,V, 5, 6): eisa afirmao decisiva de Agostinho que abre caminho a uma verdadeirarevoluo no ser.

    Mas ento, para evitar que aquilo que era um acidente na tbuadas Categorias de Aristteles (a relao, pros ti) introduza de novo amutabilidade em Deus, a relao tem de se ser ontologicamente rein-terpretada, o que obriga a ir alm e subverter por dentro o quadro cat-egorial aristotlico substncia-acidentes. Chegmos a um dos pontosnucleares da argumentao agostiniana. A relao em Deus nada dizde acidental, pelo que somos forados a admitir a existncia de relaesessenciais. Eis a heurstica trinitria a alargar ou mesmo a inverter osquadros da linguagem e das categorias gregas. Resta, portanto, queo Filho dito essncia relativamente ao Pai (essentia filius relatiuedicatur ad patrem). Com isso produz-se um sentido completamenteinesperado(inopinatissimus sensus):que a essncia no essncia (utipsa essentia non sit essentia) ou, pelo menos, quando se diz essn-cia, no se indica a essncia mas o seu correlativo (non essentia sedrelatiuum indicetur) (De Trin.,VII, 1, 2). Agostinho fica deveras sur-preendido com o surgimento de um sentido de essncia uma essnciarelacional que lhe parece ir ao arrepio de tudo o que aprendera out-rora, quando jovem estudante lera as Categoriasde Aristteles. tam-bm por isto que De Trinitate um momento decisivo da histria dopensamento ocidental19 e os livros V-VII so um momento fundamen-tal desse mesmo pensamento acerca de Deus e da pessoa humana, bemassim da afirmao da relaocomo modalidade originria de ser. ATeologia, a Ontologia e a Antropologia do-se as mos e refundam-senesta encruzilhada relacional. Em Deus, no Ser e no Homem a iden-tidade e a diferena, o Mesmo e o Outro, tm a mesma dignidade. isto que a confisso trinitria diz por antecipao, antes de algumascorrentes filosficas contemporneas fazerem disso o seu leit-motiv. ATrindade torna-se um autntico changeur de dizeres plurais e singu-

    19 Pierre HADOT, Limage de la Trinit dans lme chez Victorinus et saint Au-gustin, Studia patristica 6 (1962), p. 409.

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    lares. uma revoluo no ser que a confisso trinitria transporta,como afirmava outrora J. Ratzinger: uma total revoluo da imagemdo mundo: o reino solitrio da categoria da substncia foi despedaado,descobre-se a relao como uma forma original de ser, da mesma or-dem que a substncia.20 Requer-se, pois, uma ontologia tridica outrinitria (expresso de F. Sciacca) onde a pessoa, frente substn-ciae relao, aparece como novidade ontolgica, quiasma concretoem que cada uma das figuras divinas exprime a sua apropriao singularna dana que estabelece com as outras. A relao, que passagem,consiste num movimento pelo qual cada ente , ao mesmo tempo, dooutro, para o outro e com o outro (alterius, ad alterum et alteri). Estetriplo ndice preposicional no se pode subestimar. Inscreve-se no es-tatuto ontolgico daquilo que , um jogo de determinaes solidriasque nada tm de aditivo, de acidental ou de contingente.21 Quer dizer,na circumincesso (movimento) h imanncia e permanncia mtuadas pessoas umas nas outras (circuminsesso); o que prprio de cadauma prprio a partir das outras: a paternidade, a filiao e a espi-rao. A pericorese (. . . ) a relao que realiza a unidade da pes-soa.22

    O cume de uma ontologia relacional d-se, ento, nesta nova modal-idade de ser, que a realidade concreta do ser pessoal e no na noode pessoa em abstracto. A pessoa concreta expressa a unidade entre asubstncia e a relao; significa isto que se passou de uma ontologia

    20 Joseph RATZINGER, Einfhrung in das Christentum: vorlesungen ber dasApostolische Glaubensbekenntnis,Mnchen, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1977,p. 127; KlausHEMMERLE, Glauben wie geht das?, Freiburg im Brisgau, Basel /Viena, Herder, 1978, p. 147.

    21 Stanislas BRETON, Sur lordre mtaphoral, in Paul RICOEUR. Les mtamor-phoses de la raison hermneutique, Paris, Cerf, 1991, p. 374.

    22 Walter KASPER, Der Gott Jesu Christi, Mainz, Matthias-Grnewald-Verlag,1982 (Le Dieu des chrtiens, Paris, Cerf, 1985, p. 410). A noo de pericorese(perichoresis) foi cunhada por Gregrio de Nazianzo em mbito cristolgico paradesignar a unio hiposttica entre as naturezas divina e humana de Cristo. S maistarde Joo Damasceno a aplicou teologia trinitria.

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    esttica e formal para uma ontologia dinmica, nmada e danante23.O perene problema da filosofia, i.e., o da relao entre o Uno e o Mlti-plo, recebe da reflexo trinitria agostiniana sobre as Pessoas divinasa pericorese como soluo, visto que a teoria das relaes trinitriasafirma no mesmo movimento a unidade e a diferena em Deus.

    Na Trindade, as pessoas divinas no se dizem exclusivamente nemsegundo a substncia o Pai no Pai para si mesmo, nem o Filho Filho para si mesmo, mas relao recproca para o outro (sed adinuicem atque ad alterum) , nem segundo o acidente, mas segundoos termos relativos, as relaes concretas (sed secundum relatiuum).As falcias dos herticos apenas vinham deitar lama suja de uma mlgica na gua lmpida da confisso trinitria. Os trs nem so umconfusamente (nec confuse unum sunt) nem so trs separadamente(nec disiuncte tria sunt), mas, sendo um, so trs e, sendo trs, soum (sed, cum sint unum, tria sunt et, cum sint tria, unum sunt). (Ep.,170, 5) Ora, s a pessoa concreta, novidade ontolgica por excelncia,permite manter a unidade na Trindade e a Trindade na unidade porquenum sentido absoluta ad se quippe dicitur persona e noutro diza relao: em Deus absolutamente a mesma coisa (omnino idem) sere ser pessoa. Se ser um termo absoluto, a pessoa a relao (si essead se dicitur, persona uero relatiue) (cf. De Trin.,VII, 6, 11).

    Chegados concluso de que a persona, ontologicamente inter-pretada, exprime concretamente o ad inuicem (relao recproca) naTrindade, perguntemos: Mas o que ser pessoa? Chegmos ao cernedo problema e se queremos prosseguir eis que parece erguer-se nossafrente uma dificuldade intransponvel. que quando se pergunta: trsqu? (quid tres?) a linguagem humana debate-se com uma enorme in-digncia. Contudo, foi dito trs pessoas no para o dizer, mas para queno se deixasse de o dizer. (De Trin., V, 9, 10) De facto, quando per-guntamos trs qu? a linguagem humana como que naturalmente

    23 Cf. Massimo CACCIARI, El Dios que baila, Buenos Aires / Mxico / Barcelona,Paids, 2000; PieroCODAe Lubomr AK(edd.), Abitando la Trinit: per un rinno-vamento dellontologia, Roma, Citt Nuova, 1998.

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    reconduzida para o plano da definio genrica e abstracta.Pois ondeno h diversidade de essncia (ubi nulla est essentiae diuersitas), necessrio que os trs tenham uma designao de espcie (oportet etspeciale nomen habeant haec tria), que todavia no se encontra (quodtamen non inuenitur)(De Trin., VII, 4, 7). Eis que a linguagem cul-mina no j num paradoxo, mas numa aporia, num beco aparentementesem sada. Agostinho, porm, no procura resolver um enigma catego-rial, um teorema ou um quebra-cabeas, mas antes, como o salmista,demanda Algum, uma relao pessoal, uma face: busco o teu rosto,o teu rosto Senhor eu procuro (Sl 27, 8).

    Assim, se no possvel alcanar por meio da inteligncia o quena Trindade significa ser pessoa, agarre-se por meio da f, at quebrilhe nos coraes (De Trin., VII, 6, 12) o que agora no pode detodo compreender. Se a resposta pergunta trs qu? resiste ao dizerdirecto, talvez nos possamos aproximar por uma via oblqua. O fra-casso da via conceptual, directa e racional, vai reconduzir Agostinho,no livro VIII, a fazer uma inflexo crucial que divide e articula DeTrinitate em duas abas, como se este livro fosse o gonzo metodolgicono qual toda a obra gira. O fracasso de um dizer por conceito, ou deuma via curta racional e especulativa, reorienta a questo do domnioteortico para o domnio da aco. A Trindade, ao nvel da imago Deique somos, em ns da ordem experimental. O conhecimento volve-seaco, sem o dinamismo da qual no se pode avanar do saber para aexperincia de Deus. S o agir amoroso pode dizer, revelar fenomeno-logicamente o mistrio de Deus. No , pois, no plano abstracto dodiscurso que a relao e a substncia convergem; s no agir prprio dapessoa qua talis aquelas se vinculam concretamente. pois na acoconcreta da pessoa que a relao se ontologiza e ganha substncia, eesta por seu lado como que ganha asas, i.e., movimento para (essead). Ora, a expresso mais perfeita da aco prpria de uma pessoa o amor / caritas. S o amor realiza o que o olhar curioso, inutilmente,quer perscrutar de fora. A partir daqui at ao livro XV temos de de-scobrir a aco sob o discurso. A fenomenologia transmuta-se aqui em

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    exercitatio animi, scientia pratica naquele sentido que ser to caro theologia de So Boaventura.

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    Os livros V a VII de De Trinitate, como acabou de se dizer, levamao limite a especulao racional sobre a Trindade, pois foi dito trspessoas no para o dizer, mas para que no se deixasse de o dizer. so-bre este insucesso da razo especulativa, que ela prpria reconhece, quese abre outra possibilidade e uma nova exigncia na procura. No sepode aceder Trindade nem de fora, pela exegese escriturstica (livrosI-IV), nem pela especulao racional e as variaes eidticas sobre asnoes de relao e de pessoa (livros V-VII), nem sequer, adiante-sej, por dentro, pelas analogias transcendentais no esprito humano, ape-sar de os vestgios trinitrios na alma serem um espelho da Trindade(speculum trinitatis), se bem que sempre em regime de dissemelhantesemelhana (dissimilis similitudo, Ep. 169, 6; De Trin., XV, 11, 21;14, 24; 20, 39), pois o pensamento no pode ver, nem dar a ver, oabrao imemorial da Vida intratrinitria.

    Por causa disso, no livro VIII, Agostinho j no procura conhecera Trindade a partir das Escrituras ou da razo, mas sobretudo a par-tir do amor que o eco da prpria vida divina24. Na verdade, sevs o amor, vs a Trindade (uides trinitatem si caritatem uides, DeTrin., VIII, 8, 12) s a caritas em acto tem o poder de desvelar emostrar a Trindade. Esta frmula, por demais desconhecida, evoca avida trinitria com rara acuidade e sublinha que a mesma acessvela todos ns. A vida trinitria exprime-se, com efeito, como uma co-munho de amor entre as trs pessoas divinas. Esta comunho inefvel o prprio Deus (In Io. Ep. 7, 4-7; Ep. 186, 3, 7; Sermones 156, 5, 5

    24 Marie-Anne VANNIER, S. Augustin et la Trinit, in Connaissance des Presde lglise 76 (dcembre 1999), p. 28 (cf. De Trin., VIII, 9, 13).

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    e 350, 1; En. In Ps. 79, 2), mas a mesma j se encontrava actuante noclebre cor unum da primeira comunidade de Jerusalm.25

    pois compreensvel que, nesta inflexo metodolgica crucial, Agostinhointroduza o que se tornar agora na mais importante mediao na pro-gresso, como acima se disse: entre a f, fides, e a inteligncia, intellec-tus, eis o amor, caritas; s o amor pode outorgar o conhecimento (co-nascimento, connaissance) que o pensar procurara em vo, l por fora:A menos que o amemos agora, jamais o veremos. (De Trin.,VIII, 4,6). E que ningum diga: no sei o que amar. Ame o irmo e ame oprprio amor (De Trin., VIII, 8, 12). Convocando So Joo Quemno ama no conhece a Deus, porque Deus amor (1 Jo 4, 7-8) ,tem Agostinho uma daquelas afirmaes que determinam toda a enver-gadura de um pensamento e o conduzem a uma verdadeira ontologiateologal(M. Smallbrugge): o amor fraterno amor fraterno (fraternadilectio) aquele com que nos amamos uns aos outros no s vemde Deus, mastambm Deus (non solum ex deo sed etiam deum esse;De Trin.,VIII, 8, 12). Reitere-se: s o amor d um verdadeiro conheci-mento de Deus. Noutro lugar Agostinho acrescenta um indicativo parans precioso quanto ao facto de que, sob o discurso, a aco que elesempre tem em vista: Se algum ama, sabe o que eu quero dizer (InIoh. Eu., 26, 4).

    este o grande momento da intuio agostiniana da natureza doamor. Tentando compreender in recto como a Trindade uma comu-nidade de Amor, descobre in obliquo a estrutura radicalmente trinitriade todo o amor humano e inflecte-lhe efectivamente a natureza de de-sejo carente, ertico e autocentrado. Descobre que o amor sempre atrs, nunca a dois, e muito menos a um. Porque brota de uma comu-nidade trinitria, o amor funda sempre outra comunidade trinitria. Porisso, o paradigma binrio ou dualista, tal como o unitrio ou modal-ista, jamais conseguem dar conta da realidade simultaneamente unif-icante e diferenciadora do amor. O amor pertena de algum que

    25 Marie-Anne VANNIER, Saint Augustin et le mystre trinitaire, Paris, Cerf, 1993,p. 24.

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    ama, e com o amor ama-se alguma coisa. So, como se v, trs coisas:aquele que ama, aquilo que amado e o amor (amans et quod amaturet amor). Que ento o amor seno uma vida que une ou procura unirduas coisas, aquele que ama e aquilo que amado? E isto assim tam-bm no amor mais baixo e carnal. Mas para bebermos alguma coisamais pura e cristalina, ignorando a carne, subamos at ao esprito. Oque que o esprito ama no amigo seno o esprito? E tambm a sotrs as coisas, aquele que ama e aquilo que amado e o amor. Resta-nosainda elevarmo-nos a partir daqui e, quanto ao homem for permitido,procurar mais acima estas coisas. Mas descanse aqui um pouco a nossaateno, no por julgar que encontrou j o que procura, mas como cos-tumamos encontrar um lugar quando temos de procurar alguma coisa.Essa coisa ainda no foi encontrada, mas j se encontrou onde a procu-rar. (De Trin., VIII, 10, 14) O verdadeiro amor humano epifania deum acontecimento eterno, vitico de um mysterium primordial (T.DEypermon) que, na mesma circulao amorosa, nos torna capazes deinfinito (capax Dei, De Trin., XIV, 8, 12; 12, 15), pois nEle, por Elee com Ele somos introduzidos na vida trinitria: Eu e o Pai viremos aele e faremos dele nossa morada (Jo 14, 23).

    Determinado o mtodo, determinado o lugar onde procurar, o queresta? Exercitar-se na procura. E que procuramos? Importa que nocaminho no esqueamos o destino: Procuramos, evidentemente, aTrindade, no uma qualquer, mas a Trindade que Deus, o Deus ver-dadeiro, supremo e nico (De Trin., IX, 1, 1). No princpio do livroXV, na breve sntese do percurso feito ao longo da obra, e referindo-se em concreto passagem do livro VIII para o livro IX, relembraAgostinho que, quando se chegou ao amor que dito Deus na SagradaEscritura, brilhou um pouco [para ns] uma trindade, isto , aquele queama, aquilo que amado e o amor (De Trin.,XV, 6, 10). Mas entoo brilho tornou-se de tal modo intenso que, incapaz de se fixar na luxineffabilis(De Trin., XV, 6, 10), o esprito se voltou para si prprio,procurando encontrar em si uma imagem da Trindade. Uma vez quefomos criados imagem e semelhana do Deus Trindade (facia-

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    mus hominem ad imaginem et similitudinem nostram, Gn 1: 26.27; 9:6)26 deve ser possvel encontrar em ns afinidades que nos permitamir progredindo, per speculum et in aenigmate, no conhecimento(co-nascimento) da mesma Trindade em ns. Foi pois a tentativa de darseguimento prtico e experiencial afirmao se vs o amor, vs aTrindade que orientou Agostinho para as ditas analogias psicolgi-cas do esprito humano, i.e., para uma fenomenologia do amor cujaprimeira trade: amans et quod amatur et amor, aquele que ama, aquiloque amado e o amor (De Trin.,VIII, 10, 14; IX, 2, 2) dar lugar aoutra trade: mens, notitia, amor, a mente, o conhecimento de si e oamor que a ambos estreita (De Trin.,IX, 3, 3; 4, 4) logo seguida de umaainda mais evidente: memoria, intelligentia et uoluntas, memria,inteligncia e vontade (De Trin.,X, 11, 17.18; XV, 3, 5).

    * * *

    Tem havido infindas discusses sobre as chamadas analogias psi-colgicas do esprito humano, sobre o seu alcance e o facto de Agostinho,de livro para livro, variar a terminologia. Efectivamente, alm dasreferidas (amans, amor, amatus; mens, notitia et amor; memoria, intel-ligentia et uoluntas), outras analogias trinitrias j tinham aparecido aolongo da obra: aeternitas, ueritas, uoluntas, eternidade, verdade, von-tade (De Trin.,IV, 1, 2); res, imago, congruentia, realidade, imagem,convenincia (entre ambas); aeternitas (in patre), species (in imagine),usus (in munere), eternidade (no Pai), forma (na imagem), reciproci-dade (no dom); esse, uiuere, intelligere, ser, viver, pensar (De Trin.,VI,10, 11); unitas, species, ordo, unidade, forma, ordem; summa origo,perfectissima pulchritudo, beatissima delectatio, origem suprema, per-feitssima beleza, felicssima deleitao (De Trin.,VI, 10, 12) e out-ras ainda faro a sua apario: res, uisio, intentio (animi), coisa, viso,ateno/inteno (De Trin.,XI, 2, 2); memoria, uisio interior,uolitio,

    26 Cf. Manuel da Costa FREITAS, Imagem e Semelhana de Deus. Um tema deantropologia agostininiana, in Didaskalia 19 (1989), pp. 21-34.

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    memria, viso interior, volio (De Trin.,XI, 3, 6-9); ingenium, doc-trina, usus, engenho, saber e uso (De Trin., X, 11, 17); memoria, sci-entia, uoluntas, memria, cincia, vontade (De Trin.,XII, 15, 25); sci-entia (fidei), cogitatio, amor, cincia (da f), pensamento, amor (DeTrin.,XIII, 20, 26); memoria Dei, intelligentia Dei, amor Dei, memriade Deus, inteleco de Deus, amor de Deus (De Trin.,XIV, 12, 15);memoria, contuitus, dilectio, memria, viso, amor; retentio, contem-platio, dilectio, reteno, contemplao, amor (De Trin., XI, 3, 6; XIV,2, 4). Nesta pletora de trades, como se Agostinho praticasse ver-dadeiras variaes fenomenolgicas sobre estruturas ternrias, as quaisse encontram presentes j em todas as realidades do mundo sensvelenquanto modo/medida, nmero e peso (modus, numerus, pondus,mensura, numerus, pondus, De Trin., III, 8, 15 ; 9, 18)27, j na apreen-so sensvel delas pelo homo exterior (De Trin., XI, 1, 1), quer aindana apreenso evidente de si mesmo (scio me scire, scio me uigilare,scio me uiuere, De Trin. XV, 12, 21)28 e outrossim na viso inteligveldas essncias eternas e nos superiores dinamismos memorial e volitivodo esprito humano. Se bem que no sistematizada, porque Agostinhopratica uma hermenutica circular e circunvolada, feita de fluxos e re-fluxos, h nesta fenomenologia uma ntida progresso, como se Agostinhode trade para trade tivesse como escopo aquele ideal de preenchi-mento ltimo da intencionalidade que o move, vise que s a analogiamemoria, intelligentia et uoluntas, porque a mais evidente entre todas(euidentior, De Trin., XV, 3, 5), est mais apta a exprimir. O smile,porm, no reduz o mysterium, pois o inefvel est sempre para almde toda a analogia: da que esta opere sobre o fundo de uma inultra-

    27 De Trinitate, XI, 11, 18 opera a correspondncia memoriamensura,uisionumerus, uoluntaspondus. Em De Natura boni, v.g., pratica uma autn-tica ontologia tridica luz do Livro da Sabedoria 11: 21, omnia mensura et nu-mero et pondere disposuisti, tudo criaste com medida, nmero e peso (cf. tambmo esquema causa, species, manentia, Epistula 11, 3).

    28 me scire scio, scio me cogitare, scio esse me / sei que sei, sei quepenso, sei que sou, etc.; cf. Soliloquia, 1, 4.7; De Vtilitate credendi, 25; Confes-siones, XIII, 11, 12.

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    passvel desproporo: semelhana dissemelhante, dissimilis simili-tudosintetiza alhures o gnio lapidar de Agostinho (Ep.169, 6; De Trin.,XV, 15, 24).

    Nesta fina descrio das potncias da alma, a novidade de Agostinhoreside na introduo da vontade como elemento essencialmente uni-tivo (copulatrix uoluntas, De Trin., XI, 7, 12; 9, 16), pois a tradeneoplatnica esse, uiuere, intelligere, que muito influenciou a reflexotrinitria de Mrio Victorino (Aduersus Arium), e cujo eco encontrmosno livro VI de De Trinitate, no contemplava especialmente a vontadeneste processo analgico. Ao invs, o autor de De Trinitate conclui quea vontade, cuja funo essencial unir a memria e a inteligncia uoluntas utrumque iungebat, utrumque copulat, etc. (cf. De Trin., XII,15, 25; XI, 3, 6; IX, 10, 15; XIV, 3, 5; 6, 8; 8, 11; 10, 13; 11, 14;XV, 27, 50) em ns a insinuao daquilo que o Esprito Santo na Trindade (De Trin., XI, 4, 7; 5, 9). Assim, na antropologia rela-cional29 que De Trinitateinstitui, ao amor ou vontade fica cometidapor excelncia a tarefa relacional (De Trin., XIV, 6, 8); a caritasemacto o novo nome para relao e j no a personaem abstracto30 .As analogias trinitrias apresentam a vantagem de mostrar como um etrs se harmonizam na Trindade e de ressaltar a dimenso dinmica daimagem de Deus no ser humano; da que, nesta obra, se esboce umaproblemtica muito actual, a da constituio do sujeito pela mediaoda intersubjectividade.31

    Mas uma vez cumprida a fenomenologia das trades do esprito hu-mano (De Trin., XV, 18, 28), como se o arco que vai desde o livro IXao livro XIV constitusse um exerccio de purificao e de diferenci-ao espirituais a referida exercitatio animi (cf. De Trin., IX, 12,17; XV, 3, 5: a ateno do leitor se exercitasse com mais clareza,distinctius lectoris exerceretur intentio; XV, 6, 10; 27, 49) verifi-

    29 Cf. Joaquim Cerqueira GONALVES, Filosofia e Relao. Interpretao Cristda Categoria Grega, in Biblos56 (1980), pp.183-194.

    30 Cf. Confessiones, XIII, XI, 12; De Ciuitate Dei, XI, 26-28.31 Marie-Anne VANNIER, Saint Augustin et le mystre trinitaire, p. 26; S. Au-

    gustin et la Trinit, p. 32.

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    camos que no ltimo livro, o XV, quando trata da pessoa do EspritoSanto, Agostinho recupera de novo o intento da investigao, suspensona passagem do livro VII para ao livro VIII, quando respondera ao im-passe do livro V foi dito trs pessoas no para o dizer, mas para queno se deixasse de o dizer com a afirmao se vs o amor, vs aTrindade. O que significa que, finalmente, apenas na pneumatologiacomo ontologia de comunho que se cumpre a intencionalidade agos-tiniana quanto teoria das relaes, intencionalidade que o livro VI(6, 7) antecipara protensivamente ao referir o Esprito como amizade(amicitia) ou mais adequadamente, amor (aptius caritas) do Pai e doFilho.

    Neste entremeio, para os livros XII, XIII, XIV, temos a sntesedo prprio Agostinho: No livro XII pareceu que se devia distinguirsabedoria [sapientia] de cincia [scientia] e, naquela que se chamapropriamente cincia, porque inferior, foi necessrio procurar emprimeiro lugar uma espcie de trindade no seu gnero, a qual, embora jpertencendo ao homem interior, todavia ainda no deve ser chamada ouconsiderada imagem de Deus. E isto tratado no livro XIII, realandoa f crist. No livro XIV, trata-se da verdadeira sabedoria do homem,isto , concedida por dom de Deus na participao do prprio Deus,a qual distinta da cincia.32 Na diferena entre scientia e sapientiajoga-se a tenso escatolgica entre tempo e eternidade, entre desejo defelicidade e a beatitude, entre as verdades histricas prprias da f, aque a experincia crist jamais se subtrai, bem pelo contrrio, pois oVerbo fez-se carne e montou tenda entre ns (Jo 1: 14), e as verdadeseternas prprias da cincia contemplativa, i.e., da sabedoria. Assim, af procura, a inteligncia encontra (fides quaerit, intellectus inuenit).No intervalo, como Mediador e Caminho que caminha connosco e nosleva da morte Vida, temos Cristo Ressuscitado que, com o Pai, dupla-mente nos oferta o Esprito Santo e nos reconduz Trindade em cujomysterium fomos mergulhados pelo nosso baptismo.

    32 De Trinitate, XV, 3, 5.

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    E depois disto pode Agostinho concluir, recolhendo novo mpeto,que s na pneumatologia se resolvem, tanto quanto possvel, as apo-rias do pensar categorial binrio, que dividiu e depois foi incapaz dereunir e reatar os nexos ontolgicos da disperso operada. Pois, paraAgostinho, o Esprito Santo no o Esprito do Pai e, depois, o Espritodo Filho, mas o Esprito de ambos, Spiritus sanctus amborumecaridadede ambos procedente (De Trin.,V, 11, 12; XV, 6, 10). Agostinhoesfora-se por mostrar que, procedendo do Pai e do Filho, o Espritono lhes inferior, porque o Esprito a Vida nica de Deus. E im-porta sublinhar que Agostinho no diz que o Esprito Santo procede doPai e do Filho como de uma unidade indiferenciada: o Esprito vemprincipaliterdo Pai (De Trin.,XV, 17, 29), mas dado pelo Pai ao seuFilho, de forma a que o Filho, com o Pai, possa enviar o Esprito (DeTrin.,XV, 26, 47) tanto na eternidade [donum] como no tempo [datus].(. . . ) O Pai d a sua prpria vida ao Filho o que inclui o EspritoSanto. Por conseguinte, eterna e simultaneamente, o Esprito dadopelo Pai e pelo Filho em conjunto. Mas isto significa que a natureza doPai como doador no se reduz a ser o Pai do Filho; gerando o Filho, ha um excesso de dom.33

    * * *

    Voltando ainda s analogias, no deixa Agostinho de observar que,embora o amor ou vontade insinue em ns o Esprito Santo na Trindade(De Trin., XI, 5, 9), no apenas ele chamado amor, mas sim Deus amor. No obstante, aprofundando a clebre teoria das apropriaesinterroga-se: Se, pois, com propriedade se deve chamar amor a algumdos trs, que h de mais adequado do que ser o Esprito Santo? (DeTrin., XV, 17, 29) Portanto, na Trindade, o Esprito Santo chamadoamor por apropriao (De Trin., XV, 17, 29; 20, 37). Por apropriao

    33 Rowan WILLIAMS, Trinit (La), p. 1430; cf. De Trinitate, IV, 20, 29; V, 15,16; XV, 19, 36.

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    (proprie) sublinhe-se bem, e no por excluso, pois tambm o Pai eo Filho se dizem amor (caritas). O perigo de uma aplicao unvocadas analogias psicolgicas Trindade seria psicologizar ou desper-sonalizar o Esprito Santo e a Trindade (o que Agostinho no faz34) eatribuir a memria ao Pai, a inteligncia ao Filho e a vontade/amor aoEsprito Santo (De Trin., XV, 7, 12; 17, 28). Agostinho adverte que aanalogia no para ser tomada letra e muito menos aplicada de formainsensata, segundo uma correspondncia exclusiva (De Trin., XV, 20,39; 23, 43), mas deve ser assumida ao jeito de uma co-presena e co-implicao relacional dos trs nos trs (communio caritatis).

    Da a dupla e conversvel afirmao de So Joo, que agora o eixoem que se move todo o pensamento de Agostinho: Deus espritoe Deus amor (Jo, 4, 24; 1 Jo 4, 8), deduzindo da Escritura a con-cluso que logicamente se impe: O Esprito amor. A caritas omodo prprio como Deus Uno e Trino, porque vnculo unitivo nadiferena de pessoas. S esta distino trinitria do ser de Deus tornacompreensvel a frase Deus amor.35 E este eterno amor-relao-recproca (ad inuicem) mais do que ser ou substncia: comunhode pessoas-em-acto-de-amor. O amor gera semprepessoas, no indi-vduos. esta perene restituioem Deus (Stanislas Breton chama-lhe ebulio interna) que torna inconcebvel e contraditrio que umadas pessoas se baste a si mesma, mas que haja entre elas pericorese,dana. O Esprito a relao eterna do Pai e do Filho; esta relao a expresso do seu amor, de tal modo que do inefvel abrao do Paie do Filho (ineffabilis quidam complexus patris et imaginis, De Trin.,VI, 10, 11), diramos: do Beijo Imemorial, procede eternamente umaterceira Pessoa. O Esprito a Relao em Pessoa; acontecimento deamor, enlace eterno, comunho de Vida, uinculum caritatis: mis-trio de bondade! sinal de unidade! vnculo de caridade! (O

    34 Cf. Basil STUDER, La teologia trinitaria in Agostino dIppona. Continuitdella tradizione occidentale?, in Mysterium Caritatis, pp. 291-310.

    35 Eberhard JNGEL,Dios como misterio del mundo, trad. esp. de F. C. Vevia,Salamanca, Sgueme, 1984, p. 421.

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    sacramentum pietatis. O signum unitatis. O uinculum caritatis, InIoh. Eu., 26, 13). Juntamente com o Pai e o Filho, o Esprito Santo uma terceira relao divina, a saber: a relao das relaes do Paie do Filho. Relao das relaes, portanto, e nessa medida uma re-lao eternamente nova. (...) S o Esprito de Deus, enquanto relaode relaes, constitui o ser do amor como acontecimento.36 O uin-culum caritatis, Esprito Santo, tem o nome prprio do que comumao Pai e ao Filho e o seu nome coincide com o vrtice trinitrio: aprpria dana; o amor mtuo e subsistente; o xtase recprocoe a koinonia do Pai e do Filho (De Trin., XV, 6, 10). O pensamentoqueria encontrar uma identidade, uma substncia, terra firme onde as-sentar; mas apenas encontra movimento, circulao, eterna doao in-terremissiva; quando a razo salta procura do fundamento, o soloest desde sempre em movimento e por isso, sem as suas refernciashabituais, fica perdida como Nicodemos ouvindo o Esprito sem sabernem de onde vem nem para onde vai (Jo 3: 8). De Trinitate um perma-nente tirocnio de iconoclastia. Remata, pois, Agostinho: Na Trindadeexcelsa, uma pessoa apenas como as trs, e duas no so mais queuma s, pois em si so infinitas. Assim, cada uma delas est em cadauma das outras, e todas em cada uma, e cada uma em todas, e todasem todas e em todas a unidade. (De Trin., VI, 10, 12.) O amorperdeu qualquer sentido captativo ou possessivo para se entender comopura e eterna doao. O sentido ltimo do ser exprime-se na confissotrinitria como generosidade ontolgica radical; um Deus sempre novoe em aberto, eternamente de surpresa em surpresa; quem procurava en-controu muito mais do que poderia desejar e pensar; quem tinha sedeencontrou a fonte; mas a fonte vence o sequioso (fons uincit sitien-tem, Sermo 159, 9). A Trindade Vida oblativa continuamente a brotar.A exuberncia que a Vida assim patenteia a essncia ltima da auto-revelao e da automanifestao: Deus distingue-se ao amar-se a simesmo.37 Santo Agostinho faz uma verdadeira descoberta trinitria

    36 Eberhard JNGEL,Dios como misterio del mundo,p. 476.37 Eberhard JNGEL,Dios como misterio del mundo,p. 419.

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    e pneumatolgica quando exprime, pela primeira vez, uma ideia entototalmente estranha teologia grega, a saber, a Trindade Santa con-siderada como Amor. Reala, alm disso, a especial significao daTerceira hipstase, exactamente como amor, como vnculo de amor,amor ou dilectio. (...) Esta beatitude do amor na Trindade, consolaodo Parclito, o Esprito Santo. Em toda a literatura patrstica, ape-nas em Agostinho que encontramos este esquema de amor: o que ama,o amado e o prprio amor. Ele compreendeu a Terceira hipstase comoAmor hiposttico e isto que constitui a importncia perene da suateologia trinitria.38

    Lembremos outrossim a propsito do que Serge Boulgakov chamadescoberta trinitria, que na orao com que termina De Trinitate(XV, 28, 51), a questo j se no coloca a Agostinho em termos delinguagem seja simblica, seja especulativa, seja analgica, mas em ter-mos de metamorfose orante, in-habitao trinitria, deificatio: Quando,pois, chegarmos a ti, cessaro estas muitas palavras que dizemos e nochegamos. Tu permanecers um s, tudo em todos, e sem fim diremosuma s coisa, louvando-te em unssono e em ti nos tornando tambmns um s. Senhor Deus uno, Deus Trindade. . . (De Trin., XV, 28,51). Habita no amor e sers in-habitado; permanece no amor e ele per-manecer em ti (In Ep. Ioh. ad Parthos, 7, 10): trata-se de danar noEsprito a prpria Vida divina. Tudo foi assumido na eterna pericoresedo Pai e do Filho e do Esprito. Magnificat.

    JOS M. DA SILVA ROSA

    38 Sergei Nikolaevich BOULGAKOV, Le Paraclet, Paris, Lge dHomme, 1996,pp. 49.74.

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    DE TRINITATE

    Santo Agostinho

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    De Trinitate, IX

    Livro IX

    [Como procurar a Trindade.]

    IX. 1. 1. Procuramos, evidentemente, a Trindade, no uma qual-quer, mas a Trindade que Deus, o Deus verdadeiro, supremo e nico.Aguarda, pois, quem quer que sejas que isto escutas; ainda procuramos,e ningum repreende justamente quem procura tais coisas se, firme-mente alicerado na f, procurar aquilo que dificlimo de conhecer oude dizer. Mas quele que afirma, rpida e justamente o censura aqueleque ou melhor v ou melhor ensina. Buscai o Senhor e a vossa almaviver39 , est escrito. E para que ningum inconsideradamente se ale-gre como se tivesse alcanado, diz o salmista: Procurai sempre o seurosto40 . Tambm o Apstolo diz: Se algum considera que sabe al-guma coisa, ainda no sabe do modo que convm saber. Mas aqueleque ama a Deus, esse conhecido por ele41 . E nem sequer diz queo conhece, porque essa uma perigosa presuno, mas diz que con-hecido por ele. Do mesmo modo, tendo dito ainda noutro passo: Agora,porm, conhecendo a Deus, logo corrige, dizendo: ou melhor, sendoconhecidos por Deus42 . E acima de tudo afirma neste passo: Irmos,no considero que o tenha atingido, somente, esquecendo o que estpara trs e lanando-me para o que est frente, corro em direco meta, para o prmio do celeste chamamento de Deus, em Cristo Jesus.Todos, porm, quantos somos perfeitos, tenhamos conscincia disso43

    . Nesta vida, no considera perfeio outra coisa seno esquecer-se do

    39 Sl 68: 33.40 Sl 104: 4.41 1 Cor 8: 2-3.42 Gl 4: 9.43 Fl 3: 13-15.

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    que est para trs e lanar-se com inteno para o que est frente44.Bem firme a inteno daquele que procura, at ser alcanado o objectopara que tendemos e para o qual nos dirigimos. Mas essa recta inteno a que procede da f. De facto, uma f slida o incio do conhec-imento; mas um conhecimento seguro s ser alcanado depois destavida, quando virmos face a face45. Por isso, tenhamos isto em conta,a fim de sabermos que mais seguro o desejo de procurar a verdadedo que o tomar antecipadamente por conhecido o que se desconhece.Assim, pois, procuremos como quem h-de encontrar e encontremoscomo quem h-de procurar. De facto, quando o homem tiver acabado,ento est no comeo46 .

    Daquilo em que devemos crer, no duvidemos por nenhuma faltade f; daquilo que devemos compreender, nada afirmemos temeraria-mente: no primeiro caso, havemos de nos manter fiis autoridade; nosegundo, havemos de procurar a verdade. Quanto questo presente,acreditemos que o Pai e o Filho e o Esprito Santo so um s Deus,que criou e governa todas as coisas; que o Pai no o Filho, e que oEsprito Santo no o Pai nem o Filho, mas so Trindade de Pessoasem relao mtua, e so unidade na igualdade da essncia. Procuremoscompreender isto, pedindo a ajuda daquele mesmo a quem queremoscompreender, e, na medida em que nos concedido, explicar com todaa ateno e piedosa solicitude aquilo que compreendemos, a fim de que,se tambm afirmamos uma coisa por outra, nada afirmemos de indigno.Como se, por exemplo, do Pai afirmamos alguma coisa que ao Pai no

    44 A inteno (intentio) primeira da alma procurar Deus, fonte da felicidade, con-forme Confessiones I, I,1: "fizeste-nos para ti (ad te), e o nosso corao est inquietoenquanto no repousar em ti (requiescat in te)". Assumindo esse dinamismo do serem liberdade e em conscincia, a alma humana amplifica-se e dilata-se (extensio) atse transcender a si mesma e alcanar Deus (Confessiones, X; De Vera religione, 39,72). No percurso, porm, pode acontecer que se distraia de si mesma e de Deus, i.e.,da "meta", e se distenda (distensio) para os objectos, as imagens, os afectos mundanose a eles se apegue como se fossem fins em si mesmos. Cf. Agostinho, Confessiones,XI, XXIX, 39; In Iohannis euangelium, IV, 6.

    45 1 Cor 13: 12.46 Sir 18: 6.

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    convenha apropriadamente ou convenha ao Filho ou ao Esprito Santoou prpria Trindade; e se do Filho afirmamos alguma coisa que aoFilho se no adeqe apropriadamente, se adeqe pelo menos ao Pai ouao Esprito Santo ou Trindade; do mesmo modo, se alguma coisa afir-mamos do Esprito Santo que no indique uma propriedade do EspritoSanto, no seja, contudo, estranha ao Pai ou ao Filho ou ao Deus uno,a prpria Trindade, como, por exemplo agora, que desejamos saberse o Esprito Santo , apropriadamente, o amor por excelncia. Pois,se o no , ou o Pai o amor, ou o Filho, ou a prpria Trindade, jque no podemos levantar-nos contra a absoluta certeza da f e a in-falvel autoridade da Escritura, que diz: Deus amor47 . Mas no de-vemos desviar-nos do caminho cometendo o erro sacrlego de afirmarda Trindade alguma coisa que convenha, no ao Criador, mas antes criatura48, ou seja construda por uma v imaginao.

    [A mente e o amor.]

    IX. 2. 2. Assim sendo, atentemos nestas trs coisas que julgamoster descoberto. No falamos ainda do divino, no falamos ainda deDeus, Pai e Filho e Esprito Santo, mas desta imagem imperfeita, toda-via imagem, ou seja, do homem; ela olhada de modo mais familiar etalvez mais fcil pela fraqueza da nossa mente.

    Ora, quando eu, que me entrego a esta investigao, amo algumacoisa, h trs coisas: eu, aquilo que eu amo e o prprio amor. Efec-tivamente eu no amo o amor se no amar aquele que ama, pois noh amor onde nada amado. H, portanto, trs coisas: aquele queama, aquilo que amado e o amor. Que acontece se eu apenas meamar a mim mesmo? No haver s duas coisas: aquilo que eu amoe o amor? Efectivamente aquele que ama e aquilo que amado so amesma coisa, quando algum se ama a si prprio, assim como, quandoalgum se ama a si mesmo, amar e ser amado do mesmo modo amesma coisa. De facto, refere-se duas vezes a mesma coisa quando se

    47 1 Jo 4: 8; 16.48 Rm 1: 25.

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    diz: ama-se, e amado por si mesmo. Neste caso, no so coisasdistintas amar e ser amado, como no so distintos o que ama e o que amado. Quando na verdade o amor e aquilo que amado so duascoisas. Efectivamente, amar-se algum a si mesmo no amor, exceptoquando amado o prprio amor. Pois uma coisa amar-se a si, outra amar o seu amor. De facto, o amor no amado se no ama j algumacoisa, porque, onde nada amado, no existe amor. Por isso, quandoalgum se ama, h duas coisas: o amor e aquilo que amado; entoaquele que ama e aquilo que amado so uma s coisa. Da no pare-cer consequente que, onde houver amor, se pressuponham trs coisas.Retiremos, ento, desta reflexo todos os outros elementos, e so mui-tos, de que o homem constitudo, e para esclarecermos, quanto nestamatria possvel, aquilo que agora investigamos, tratemos apenas damente. Ora, quando a mente se ama a si mesma pe em evidncia duascoisas: a mente e o amor. Que outra coisa amar-se seno querer ter-se disposio para fruir de si? E, ao pretender ser tal qual , a vontade igual mente e o amor igual quele que ama. E, se o amor uma subs-tncia, no corpo, mas esprito, nem a mente corpo, mas esprito.Nem amor e mente so dois espritos, mas um nico esprito, nem duasessncias, mas uma; e, todavia, estes dois, aquele que ama e o amor, ou,se se pretender, o que amado e o amor, so uma s coisa. E estas duascoisas so ditas numa relao recproca, pois aquele que ama reporta-se ao amor e o amor quele que ama; de facto, aquele que ama, amamediante algum amor, e o amor pertena de algum que ama. Ora,mente e esprito no so ditos relativamente, mas apontam para umaessncia. No porque mente e esprito sejam pertena de um homemque a mente tambm esprito. Posto de lado aquilo que o homem ,aquilo que se afirma pela adjuno do corpo, segue-se que, posto deladoo corpo, fica a mente e o esprito. Mas, posto de ladoaquele queama, o amor deixa de existir, e, posto de ladoo amor, deixa de existiraquele que ama. Por isso, na medida em que se reportam um ao outro,so duas coisas; mas, pelo facto de serem ditas em relao a si mesmas,por um lado, cada uma esprito e ambas em conjunto um s esprito,

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    por outro lado, cada uma mente e ambas em conjunto uma s mente.Onde est, ento, a Trindade? Concentremo-nos quanto nos poss-vel e invoquemos a luz sempiterna, para que ilumine as nossas trevas evejamos em ns, quanto nos permitido, a imagem de Deus49.

    [A mente e o conhecimento.]

    IX. 3. 3. Ora a mente no pode amar-se a si mesma se tambm nose conhecer a si mesma. Pois como ama aquilo que desconhece? Ouento, se algum diz que, por um conhecimento genrico ou especfico,a mente se considera ser como so outras que conheceu por experinciae, por isso, se ama a si mesma, esse fala de um modo absolutamenteinsensato. De facto, como pode a mente conhecer outra mente se nose conhece a si? Nem sequer da forma que os olhos do corpo vemoutros olhos, mas no se vem a si, a mente conhece outra mente ea si mesma se ignora. Efectivamente, pelos olhos do corpo vemos osobjectos, porque no podemos desviar e fazer tornar sobre si prpriosos raios que brilham atravs deles e atingem aquilo que vemos, a noser quando olhamos um espelho. Isto discutido de um modo extrema-mente subtil e obscuro enquanto se no demonstrar muito claramenteque a realidade ou no assim. Mas seja qual for a natureza da foracom que vemos pelos olhos, sejam os raios ou outra coisa qualquer,essa fora no conseguimos v-la com os olhos; mas procuramos coma mente e, se possvel, tambm com a mente o compreendemos. Porconseguinte, do mesmo modo que a mente recolhe pelos sentidos docorpo as noes das realidades corpreas, assim recolhe por si mesmaas noes das incorpreas. Consequentemente, tambm se conhece asi mesma por si mesma, porque incorprea. Pois, se no se conhece,no se ama.

    49 2 Cor 4: 4; Col 1: 5.

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    [A mente, o amor e o seu conhecimento so trs coisas e estas trscoisas so uma s, e quando so perfeitas, so iguais.]

    IX. 4. 4. Assim como a mente e o seu amor so duas coisas quandoa mente se ama a si mesma, assim so duas coisas a mente e o seu con-hecimento quando a mente se conhece a si mesma. Consequentemente,a mente, o seu amor e o seu conhecimento so trs coisas, e estas trscoisas so uma s, e quando so perfeitas, so iguais. Se, porm, seama menos do que aquilo que , a ponto de, por exemplo, a mente dohomem se amar tanto quanto deve ser amado o corpo do homem, em-bora ela seja superior ao corpo, peca, e o seu amor no perfeito. Domesmo modo, se se amar mais do que aquilo que , como no caso de seamar tanto quanto deve ser amado Deus, sendo ela incomparavelmenteinferior a Deus, tambm deste modo peca muitssimo e no tem de sium perfeito amor. Peca, porm, com maior perversidade e maior in-iquidade, quando ama o corpo tanto quanto Deus deve ser amado. Deigual modo, se o conhecimento menor do que aquilo que se conhece eque pode ser plenamente conhecido, esse conhecimento no perfeito.Mas, se maior, j a natureza que conhece superior quela que con-hecida, como maior o conhecimento do corpo do que o prprio corpoque objecto desse conhecimento. Este, de facto, uma espcie devida, na razo daquele que conhece; ora o corpo no vida. E qualquervida maior do que qualquer corpo, no em volume, mas em fora.Quando, porm, a mente se conhece a si mesma, no se supera com oseu conhecimento, j que ela que conhece e ela que conhecida.Portanto, quando se conhece totalmente a si e a nenhuma outra coisaconsigo, o seu conhecimento igual a si mesma, porque, quando ela seconhece a si, o seu conhecimento no de outra natureza. E quando seapreende a si totalmente e a nada mais, nem menor nem maior. Porisso, justamente afirmamos que, quando estas trs coisas so perfeitas,so, consequentemente, iguais.

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    [Uma nica substncia, trs coisas relativas.]

    IX. 4. 5. Ao mesmo tempo, se de qualquer maneira somos ca-pazes de ver, somos advertidos de que estas coisas esto presentes naalma e se manifestam como se a estivessem ocultas, de modo a se-rem sentidas e analisadas na sua substncia ou, por assim dizer, na suaessncia, e no como num sujeito, como a cor ou a figura ou outraqualquer qualidade ou quantidade num corpo. Pois, quanto desta na-tureza no sai do sujeito em que se encontra. De facto, esta cor ou afigura deste corpo no podem s-lo tambm de um outro. Mas a mentepode amar tambm outra coisa alm de si com o amor com que se amaa si mesma. Do mesmo modo, a mente no se conhece somente a si,mas conhece tambm muitas outras coisas. Por isso, a mente no temem si, como num sujeito, o amor e o conhecimento50, mas estes existemde modo substancial tambm, como a prpria mente, porque, emborasejam ditos relativamente em reciprocidade, cada um, contudo, existena sua substncia individual. No so ditos relativamente em relaorecproca, como a cor e o objecto que tem essa cor, existindo a cor noobjecto que tem essa cor sem ter em si mesma substncia prpria, por-que o objecto que tem a cor substncia e a cor existe na substncia;mas