"de seu madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

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RAFAEL ORTEGA CARVALHO “De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco” Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade do seriado ‘Chaves’ Faculdade de Psicologia Pontifícia Universidade Católica São Paulo 2007

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Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade do seriado ‘Chaves’. Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação do Prof. Carlos Eduardo de Carvalho Freire.

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Page 1: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

RAFAEL ORTEGA CARVALHO

“De Seu Madruga e louco,

todo mundo tem um pouco”

Ensaio fenomenológico-existencial

acerca da popularidade do seriado

‘Chaves’

Faculdade de Psicologia

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

2007

Page 2: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

RAFAEL ORTEGA CARVALHO

“De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco...”

Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade do

seriado ‘Chaves’

Trabalho de conclusão de

curso como exigência parcial para

graduação no curso de Psicologia,

sob orientação do Prof. Carlos

Eduardo de Carvalho Freire.

Faculdade de Psicologia

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

2007

Page 3: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

“Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,Todos atentos olhando pra TV.Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,Com uma historinha bem gostosa de se ver.

Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,Todos atentos olhando pra TV.Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,Com uma historinha bem gostosa de se ver.

A Chiquinha é uma gracinha,Relincha tanto quando vai chorar.

E Seu Madruga, sempre muito calado,Não abre a boca só pra não brigar

O Professor Girafales e a Dona Florinda,Se gostam tanto mas casório, nada ainda.

E tem o Quico com a bochecha toda inchada,E é claro o Chaves, o rei da palhaçada,E é claro o Chaves, o rei da palhaçada.

Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,Tô chegando!Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves.*

”“Ninguém me presenteou nada e sou muito afortunado, porque

conto com o tesouro maior que qualquer artista sonha em ter: o

carinho do público, que sabe muito bem quem sou.”

Roberto Gómez Bolaños em recente entrevista** ao ser

questionado acerca de seu suposto envolvimento com membros

do narcotráfico.

* Música tema da abertura do programa no Brasil (Aí vem o Chaves – SBT).** Criador de Chaves e Chapolin nega suposta relação com o narcotráfico. In: UOL Diversão e Arte.Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/09/18/ult1817u6970.jhtm> Acesso em: 2nov. 2007.

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Agradecimentos

Agradeço a meu orientador Edu, Carlos Eduardo de Carvalho Freire. Meus

amigos, aqueles que estiveram presentes e me apoiaram e ajudaram. Aos meus irmãos e

meus brothers. Ao meu pai que, apesar de não compreender meus caminhos, esteve

sempre ao meu lado me apoiando. Pelo apoio e presença das minhas quatro mães: a mãe

do dia-a-dia de casa, Odete; a mãe-terapeuta e professora, das confissões, lutas e

vitórias, Ana Silvia; a mãe-acadêmica, presente e acolhedora em todos os anos da

faculdade, desde a primeira aula, Flavia; e finalmente, a mãe-herói, mãe-ídolo, mãe-

exemplo pessoalmente e profissionalmente, a mãe mesmo, de verdade, Paula Ortega.

Muito obrigado!

Page 5: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

Rafael Ortega Carvalho: “De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco...”:

Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade de ‘Chaves’, 2007.

Orientador: Prof. Carlos Eduardo de Carvalho Freire

Palavras-chave: fenomenologia-existencial, ser-no-mundo, Bolaños.

Área do conhecimento (segundo CNPq): Psicologia (7.07.00.00-1)

Resumo

O presente trabalho pretende investigar o sucesso e a popularidade do seriado Chaves

no Brasil. O seriado, criado no México em 1970, é reprisado por aqui até hoje e, junto

com seu “irmão” Chapolin, atinge níveis de audiência invejáveis pelas emissoras

concorrentes do SBT, que detém seus direitos de veiculação no Brasil desde a chegada

em 1985. O autor e protagonista Bolaños escreveu um livro onde conta a história do

garoto Chaves antes de sua chegada à vila conhecida pelos milhões de telespectadores,

além de desmentir alguns dos boatos acerca deste. O garoto órfão, abandonado, pobre e

ingênuo passa por dificuldades, sozinho na cidade grande até chegar à vila, sua última

morada conhecida. Lá acontecem as divertidas trapalhadas de Chaves e sua turma. Na

escola e no pátio da vila é que Chaves aprende muita coisa, brinca com os amigos

Chiquinha, Quico e Nhonho, além de conseguir sempre aprontar alguma com os adultos

rabugentos Dona Florinda, Seu Madruga, Sr. Barriga, etc. Assim ele acaba tomando uns

cascudos. Mas tudo bem, no final eles sempre o perdoam e acolhem. Para chegar ao

sentido da popularidade desse seriado e desse humor, recorremos às dimensões da

existência humana expostas por Martin Heidegger. Ser-no-mundo, ser-com-os-outros, a

cotidianidade e a condição fundamental da angústia guiarão a análise aqui feita para

compreender o seriado aos olhos de um espectador. A análise mostra que o humor do

seriado carrega consigo uma certa nostalgia da infância que, assim como o humor do

próprio personagem, nos lança a um mundo menos ameaçador e angustiante. A

ingenuidade de Chaves cativa seus espectadores mostrando que podemos habitar

também um mundo de formas amigáveis mesmo vivendo numa grande metrópole ou

tendo poucos recursos financeiros, enfim, tendo que ser quem somos.

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Sumário

I. Introdução .......................................................................1

II. Método .............................................................................4

III. O seriado (Generalidades) .....………............................................6

IV. Análise Existencial (ser-no-mundo, ser-com-os-outros e cotidiano) .….….....16

V. Análise e Discussão ........................................................23

VI. Considerações Finais .........................................…..........31

VII. Referências Bibliográficas ..................................….........33

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I. Introdução

O fenômeno a ser estudado neste trabalho é o seriado de televisão chamado no

Brasil de “Chaves”. Este seriado está no ar há mais de vinte anos em nosso país e foi

produzido originalmente no México na década de 70. Apesar da grande popularidade do

seriado em toda a América Latina e de seus mais de 30 anos de existência, pouco se

pesquisou academicamente, entre nós, acerca deste programa. Sua grande popularidade,

apesar da paupérrima produção, as incansáveis reprises e os temas abordados em alguns

episódios levantam diversas questões a serem investigadas. A vida de um pobre garoto

em uma grande cidade de um país em desenvolvimento tratada em um clima de humor,

ingenuidade e doçura serão o principal tema de nosso trabalho. Além disso, tratar-se-á

aqui de alguns dos diversos fatos e curiosidades que envolvem esta série humorística,

fazendo parte de um sucesso da televisão muito popular e querido, mesmo após 30 anos

de permanência no ar e apesar de sua precária produção.

Neste trabalho daremos especial atenção ao personagem principal, o garoto

Chaves, protagonizado pelo criador da série, Roberto Gómez Bolaños, porém sem

deixar de lado seu companheiro na grade horária televisiva do SBT, o herói atrapalhado

Chapolin Colorado, além dos demais personagens que convivem com Chaves na vila.

Chapolin chegou junto com Chaves ao Brasil e por muito tempo foram

“companheiros” na grade horária de emissora que os transmite até hoje por aqui, ou

seja, eram exibidos um após o outro. Sendo assim, no Brasil, os dois personagens,

através de seus programas independentes sempre foram tidos como muito próximos;

algumas pessoas chegam a confundir os dois seriados. Natural, já que ambos são fruto

da criação do humor de Bolaños, além de terem sido criados na mesma época.

“As duas séries tiveram várias alterações de horário ao longo dos anos, massempre há um público novo descobrindo as cômicas aventuras de seus personagens.Estes jovens espectadores se juntam aos nostálgicos adultos e aos fãs incondicionais desempre.”2

Ambos também se assemelham no que diz respeito à qualidade do cenário e da

produção técnica como um todo, além da especificidade do humor de Bolaños, retratada

nas “trapalhadas” de ambos os protagonistas. Aqui se discutirá alguns aspectos da

popularidade destes personagens a partir da fenomenologia de Martin Heidegger

apresentada em Ser e Tempo (2006). Temas como a condição humana de ser-no-mundo, 2 LUGO, Omar. Popularidade de "Chaves" atravessa décadas no Brasil e vira livro. 2007. Disponível em:<http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/03/19/ult1817u6051.jhtm> Acesso em: 19/03/2007.

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impessoalidade, queda, angústia, entre outros, orientarão nossas considerações. A

principal pergunta a ser respondida fica definida como: o que há de especificamente

característico nestes seriados de Bolaños que os fazem ser populares e risíveis ainda

hoje, mesmo tendo sido produzido precariamente há mais de 30 anos e sendo apenas

reprisados desde então?

Ou seja, o que faz com que este seriado tenha peculiar popularidade entre nós

brasileiros e como se dá essa proximidade que crianças, jovens e adultos têm com os

personagens das séries. Tudo isso levando em conta a idade da produção e suas

condições desfavoráveis no sentido tecnicamente televisivo. A questão é a proximidade

entre o mundo de Chaves e aspectos do mundo de brasileiros. Ou seja, como e por que

esta popularidade se deu (e se dá...)?

Iremos dialogar com tais dimensões expostas em Ser e Tempo pois este seriado

permeia a vida de diversas pessoas não só brasileiras em diversos âmbitos. Um deles, o

que pretendo investigar, é o humor de Chaves que faz parte da realidade de muitas

crianças e adultos no Brasil e na América Latina de maneira generalizada. Isso se

mostra principalmente a partir do fim da década de 1990, entre os jovens. Nota-se que

alguns dos bordões e trocadilhos presentes nos seriados, característica marcante do

humor de Bolaños, estão presentes constantemente no quotidiano destes jovens,

reconhecidamente. Além disso, Chaves tem um lado que diz respeito a todos nós.

O fato de estar no ar há tantos anos no Brasil, de possuir um cenário tão tosco,

de ser tão precariamente produzido, de ser tão popular no Brasil a ponto de termos

alguns de seus bordões e trocadilhos como referência quotidiana, de ser popular

atingindo público das mais diversas idades (ao menos no Brasil) são as questões que

instigam nossa pesquisa.

“No Brasil, "Chavesmaníacos" de todas as idades participam de fã-clubes efreqüentemente organizam encontros, atualmente facilitados pela internet. Em váriascidades do país, costumam reunir-se para rever capítulos, trocar peças de coleção ousimplesmente cultuar a infância que já se foi.”3

Legiões de fãs e produtos, licenciados ou não, com imagens dos personagens e

até mesmo sátiras, demonstram a enorme popularidade e o apelo comercial que o

seriado assumiu ultimamente, no início do século 21, ao completar 30 anos no ar.

Eventos reunindo atores e até mesmo os dubladores da versão brasileira atraíram

centenas de “Chavesmaníacos”. Nossa questão é refletir sobre este fenômeno.

3 Idem.

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Além disso, outro fator que chama atenção no seriado é seu tipo de humor,

simples e ingênuo. As piadas, reprisadas há vinte anos, ainda geram gargalhadas e, o

mais incrível, soam como se fosse a primeira vez. As piadas de Chaves têm uma

característica muito importante no humor que é o fato de trazer o óbvio de forma

inesperada.

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II. Método

Esta pesquisa terá o enfoque fenomenológico como método de investigação.

Haverá dois movimentos principais durante o processo desta pesquisa, a aproximação

teórica buscando alguns aspectos da existência humana tratados por Martin Heidegger

em Ser e Tempo (2006), o outro é a análise das próprias impressões deste pesquisador

sobre o seriado e suas reverberações. Portanto, leva-se em conta que a experiência

pessoal do pesquisador é o que “recorta” esta investigação.

Assim, com o olhar fenomenológico na análise deste material, tratar-se-á o tema

aqui abordado como fenômeno, e, na proximidade e no contato íntimo com este se

buscará a compreensão do problema que esta pesquisa pretende responder, a pergunta já

citada acima.

Acerca desta concepção:

“O interrogador faz parte do que ele quer saber e do que ele pode ver. Ele éelemento constituinte desse olhar em que tudo o que é tem sua chance de aparecer,mesmo que como mera testemunha.

(...) Este olhar do interrogador ou interrogador, por sua vez, é jamais um olhardele mesmo, isolado, mas um olhar plural do qual fazem parte todos aqueles com quemele mesmo é-no-mundo. Mas é também um olhar exclusivo, no qual se expõe toda suasingularidade. Esse olhar do interrogador também deve ser interrogadofenomenologicamente, em busca de seu sentido.”(Critelli, 2006, p. 149)

O que se busca com este método é esclarecer o sentido de um acontecimento.

Mas o que é sentido? Sentido, como podemos ver em Ser e Tempo:

“(…) é o contexto no qual se mantém a possibilidade de compreender algumcoisa, sem que ele mesmo seja explicitado ou, tematicamente, visualizado. Sentidosignifica a perspectiva do projeto primordial a partir do qual alguma coisa pode serconcebida em sua possibilidade como aquilo que ela é.” (Heidegger, 2006, p. 408)

“Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa” (p.212)

Levando em consideração a prévia compreensão do método fenomenológico e o

modo próprio da fenomenologia de produzir conhecimento, ou seja, a partir de um

pensamento que questiona o sentido do ser de algo assim mantendo-se sempre à cerca

deste em um movimento circular, é que se buscará, no caso desta pesquisa o sentido da

popularidade do seriado tido aqui como objeto principal e foco, Chaves.

“A reconstrução da arquitetura do texto toma então uma forma circular, que fazdialogar partes e todo; a atribuição de diferentes graus de importância a certos aspectosé feita por meio de conjeturas. Como uma totalidade singular, o texto pode ser abordadode várias faces, mas não de todas simultaneamente. Assim, ao reconstruí-lo sempre ofazemos de uma perspectiva.

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Os textos são lidos como um todo para conjeturar o seu sentido mais geral.Certos temas são aprofundados à luz do sentido mais global e emergem interpretaçõesmais prováveis do que outras, o que não significa serem mais verdadeiras, masvalidadas em uma lógica da incerteza, pela argumentação;

A interpretação explicita então a compreensão do fenômeno em um processoconcebido como um arco hermenêutico. Encontramo-nos com um texto munidos deuma pré-compreensão, que dá um sentido para a sua totalidade. Feita a análise, com ofoco na interconexão de suas partes, o texto impede uma expressão completa dasubjetividade do leitor e quanto mais se avança no sentido do texto, mais essasubjetividade é impedida de expressar-se.

A referência por trás do texto vai sendo suspensa e as proposições apontam paraum horizonte que abre um mundo, por meio de suas referências não ostensivas. Emergeuma zona de significados que nos permite compreender o texto de uma formadiferente.” (Kublikowski, 2007)

Partindo dessas orientações é que este trabalho será conduzido. Contudo, é claro,

pretende-se ir além de meras impressões pessoais e alcançar o sentido deste seriado.

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III. O Seriado (Generalidades)

O objeto de estudo deste trabalho será o seriado de televisão chamado, no Brasil,

de Chaves. Trata-se de um seriado humorístico de caráter infantil que após ser

produzido no México na década de 70, tornou-se popular também entre jovens e adultos

brasileiros após 1984. O seriado trata da vida de um garoto pobre de supostos oito anos

de idade, chamado pelos outros de Chaves. Este, além de ser o protagonista que dá

nome ao seriado, será abordado aqui – enquanto personagem – como principal foco de

estudo. Ele passa seus dias em uma vila pobre de uma cidade grande, onde também

moram outras pessoas igualmente simples, mas, nenhuma delas tão pobre quanto ele.

Seus melhores amigos são Quico e Chiquinha. Quico mora em uma das casas da

vila com sua mãe, uma viúva brava que o protege como seu tesouro, chamada Dona

Florinda. Chiquinha mora com seu pai, tido por muitos como vagabundo por não

conseguir emprego e nunca pagar o aluguel, o rabugento Seu Madruga. Em uma outra

casa da vila mora a temida Bruxa do 71, uma senhora velha que ganhou este apelido das

crianças que morrem de medo dela, seu nome verdadeiro é Dona Clotilde. O dono de

toda a vila e responsável pela cobrança dos aluguéis é o Sr. Barriga que é sempre

recebido na vila com uma pancada de Chaves, mas é sempre "sem querer, querendo".

Seu filho Nhonho também costuma brincar com as crianças da vila, sempre se gabando

de ter muito dinheiro e poder comprar quanta comida quiser, o que mais decepciona

Chaves.

Há alguns outros personagens como o Carteiro Jaiminho, as outras crianças que

freqüentam a escola, etc. Estes têm menor evidência e importância no enredo e

aparecem com freqüência distinta durante os episódios, inclusive durante as diversas

fases de produção e mudanças de elenco pelas quais passou o seriado.

Alguns dos episódios se passam na escola da vizinhança onde Chaves, seus

amigos e alguns outros personagens têm aulas em um ambiente muito parecido ao da

“Escolinha do Professor Raimundo” do humorista brasileiro Chico Anísio. Na escolinha

mexicana o professor Girafales (Chamado pelas crianças por diversos apelidos – o

preferido: Professor Lingüiça) faz perguntas às crianças, indagando fatos históricos,

nomes de animais e outras coisas, sempre dando espaço para alguma piada ou trocadilho

por parte dos alunos; é assim, inclusive, que se dá o humor da cena.

É na escola que Chaves mais sofre com as brincadeiras dos amigos, já que não

teve muita oportunidade de estudo quando mais novo. Além disso, através de um misto

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de ingenuidade e malícia, acaba respondendo às perguntas com respostas espontâneas e

“autênticas”, contudo infelizmente incorretas e por isso mesmo, risíveis.

Um das mais significativas “tiradas” de Chaves, ou seja, que explicita melhor

seu mundo, aparece em episódio em que há uma aula sobre os animais. Esta passagem,

além de mostrar o típico gênero humorístico do seriado, mostra também um pouco da

relação de Chaves com a pobreza e a fome:

“Hoy nuevamente seguimos estudiando a los animales.El Professor Jirafales nos explico que los animales que comen carne son

carnívoros; los que comen fruta son frutívoros; los que comen insectos soninsectívoros, y asi.

Entonces Quico dijo que los que comen enchiladas son enchiladívoros y los quecomen gordas pellizcadas son gordaspellizcadívoros.

Pero el Professor Jirafales regaño a Quico por haber dicho eso.Luego preguntó que cuáles eran los animales que comian de todo, y yo

respondi que los que comían de todo eran los ricos.” (Bolaños, 2000, p. 40)

Quando Chaves sente-se aborrecido, entra no barril que fica num canto da vila

perto dos tanques de lavar roupa e lá fica chorando e pensando na vida. Seus amigos já

sabem disso e quando não o encontram no pátio, é lá que o procuram. Muitas pessoas

pensam que Chaves mora neste barril, mas lá é apenas seu refúgio para estas horas

tristes e difíceis. Por ser órfão Chaves é cuidado pelas pessoas da vizinhança, ganha

comida ou esmola ao fazer favores para as pessoas da vila, na maioria das vezes para

Dona Florinda. Já chegou até mesmo a engraxar sapatos e fazer malabares em sinal de

trânsito, algo muito comum entre os garotos de rua aqui no Brasil.

Apesar da pobreza, Chaves é geralmente bem humorado e brincalhão, é também

um pouco ingênuo, o que o faz parecer bobo quando Chiquinha ou Quico o enganam

para conseguir vantagem sobre ele nas brincadeiras. Talvez esteja neste seu jeito de ser

uma das razões pelas quais o seriado é tão cativante e popular.

O Diário De Chaves (A Pré-História Do Garoto)

Bolaños publicou um livro chamado originalmente de El Diário de el Chavo del

Ocho (em português “O diário do Chaves”) no qual o autor revela a biografia do garoto

antes de chegar à vila onde apronta suas trapalhadas na televisão. Este livro foi lançado

em 2000, ou seja, após o término das gravações do seriado. Neste livro Bolaños relata a

história da infância do personagem (que conta sua biografia em primeira pessoa)

inclusive descrevendo como foi sua chagada à vila. Além disso, esta narrativa dá conta

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de satisfazer algumas curiosidades que ao longo da duração do seriado se tornaram

controversos, como a história do barril, o nome de Chaves, etc.

No livro, Bolaños relata que Chaves é um garoto pobre que tem, no momento do

relato (Bolaños, 2000, p. 6), pouco menos de oito anos. Veste-se com roupas sujas e

velhas e um sapato que parece ter pertencido a um adulto. Também usa um gorro, que

no inverno deve ter-lhe sido bastante útil; apesar disso, usava-o em pleno verão. Chaves

nem mesmo tem um nome. “Chavo del Ocho” é um apelido que lhe deram quando ele

chegou à vila em que passou uma boa parte de seus dias. Foi lá onde conheceu vários de

seus amigos e muitas pessoas que lhe ajudavam dando moradia e comida.

Sua infância foi muito parecida com a de muitos outros garotos pobres das

cidades grandes (principalmente na América Latina). Chaves foi abandonado pelos pais.

Na infância, sua mãe o levava a uma creche, onde ele passou sua primeira infância. Lá

ela voltava ao final de cada dia, cansada do trabalho, e levava seu filho para casa. O

problema é que ela nem sempre levava o mesmo garoto. “O sea, que lo más seguro es

que yo no sea yo.” (Bolaños, 2000, p. 9)

Depois de certo tempo, levaram-no a um orfanato. Lá, ele conviveu com outras

crianças em situações semelhantes à sua e teve seu primeiro contato com a morte, seu

melhor amigo se foi. Chaves se sentia muito sozinho e com muito medo. Nesse orfanato

ele era mal tratado e repreendido, o que o levou a fugir.

Vagando pelas ruas, Chaves se deu conta de que passava fome:

“Porque en esta vida lo más importante es comer. Por eso me metí al mercado, dondehabia muchisisísimas cosas de comer. Lo malo era que yo no tenía dinero paracomprarlas. Entonces pensé robarme algo, pero recordé que era pecado robarse lascosas; sobre todo cuando el dueño es otro. Por eso lo que hice fue pedir que meregalaran algo.” (Bolaños, 2000, p. 19)

Chaves é um garoto doce, terno, conquista as pessoas com simplicidade. Passava

os dias vagando pelas ruas, até que em algum momento lhe dava muito medo e vontade

de fugir, correr por aí. Numa dessas ocasiões, conheceu um grupo de garotos que faziam

malabares em um semáforo em troca de esmola. Lá Chaves viu que esses garotos

costumavam fumar e cheirar algo dentro de uma sacola. Um dia um dos garotos foi

atropelado no semáforo. Chaves viu a cena, viu outro garoto chorando. Novamente

sentiu muito medo e correu. Desta vez ele chegou ao seu último destino conhecido, a

vila.

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Nesta passagem do livro, Bolaños explica uma das maiores curiosidades sobre o

seriado, a questão do numero 8 (Chavo Del Ocho). Também envolve o barril, um

refúgio/moradia do garoto. Os rumores, antes do livro, dizem que Chaves tem oito anos,

ou que o personagem tem este apelido por ser transmitido, no início, no canal 8, no

México. A verdade vem a seguir.

Na vila, Chaves foi acolhido por uma senhora que morava na casa de número

oito. Esta senhora lhe cedeu moradia e comida. Logo, esta senhora também morreu.

Chaves ficou lá até que chegasse um novo morador, aí ganhou seu apelido em espanhol,

“Chavo del Ocho” , cuja tradução seria algo como ‘Moleque do oito’. Após a chegada

de novos moradores para aquela casa, Chaves acabou ficando pela vila. Seus amigos lhe

cediam suas casas para passar as noites. Alguns dizem que ele mora no barril, mas ele

desmente:

“Porque no es cierto esto que yo vivo dentro de un barril, como han dicho algunos. Loque pasa es que yo me meto al barril cuando no quiero que los demás se den cuenta deque estoy llorando. Y también cuando tengo muchas cosas en que pensar.” (Bolaños,2000, p. 25)

Na vizinhança Chaves conheceu diversas crianças, seus amigos, e alguns

adultos, os moradores da vila. Lá teve a oportunidade de estudar, junto com seus

amigos. Na vila ele brinca e passa seu tempo junto com seus amigos, apesar de às vezes

eles fazerem-no de bobo. Ou às vezes, ele mesmo é quem se faz de bobo.

Chaves é uma criança muito espontânea e diz as coisas como pensa, o que às

vezes acaba lhe custando algumas broncas do professor ou pancadas do seu vizinho seu

Madruga (‘Don Ramon’). Inclusive, o modo como fala (escreve, no diário) enquadra-se

na fase do desenvolvimento chamada ‘pensamento pré-operatório’. Isto se mostra

quando compreende as coisas ao “pé-da-letra”, de forma imediata (crua?) ou raciocina

por justaposição, etc. Exatamente por isso, é determinado o caráter risível de diversas de

suas falas4 também presentes no seriado e características marcantes do tipo de humor

4 Alguns exemplos:“Los animales que comem carne se llaman carnívoros; los que comen frutas, frutívoros; los animales que comen de todo se llamanricos.” (Bolaños, 2000, p. 40)“El señor Barriga tiene tantisisísimo dinero, que le alcanza para comprar toda la comida que quiera. Y por eso mismo también esel señor más gordo del mundo.” (Bolaños, 2000, p. 33)“El professor Jirafales nos explicó que la palavra ‘epidemia’ quiere decir que mucha gente está enferma de la misma enfermidad.O sea que la enfermidad es mucha y está muy repartida. Por eso pienso que cuando el señor Barriga se enferma del estómago, escomo si toda la epidemia fuera para él solito.” (Bolaños, 2000, p. 33)“La diferencia que hay entre los animales e las cosas es que los animales son seres vivos (Menos quando ya están muertos).”(Bolaños, 2000, p. 37)“(…) Lo malo fue que entonces me preguntó que cuándo me lavé las manos, pero ni tuviera yo tanta memoria. Finalmente mepreguntó que cuándo me bañé por última vez, pero francamente yo todavía no me baño por última vez. Eso se lo deben preguntar alos que ya se murrieran, porque los que estamos vivos no podemos saber cuándo será la última vez que nos bañemos.” (Bolaños,2000, p. 42)

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presente em ambos os seriados.

É notável como este garoto que passou por condições completamente inóspitas e

adversas, teve resiliência e manteve-se inocente, ingênuo e terno. O caminho comum ou

provável seria juntar-se aos outros garotos que encontrou na rua, assim, possivelmente,

tornando-se um delinqüente infantil ou um criminoso ou envolvido com drogas. A

pergunta que fazemos é: como pôde este garoto manter-se longe deste caminho? O que

o manteve longe disso? Por que não lhe foi atraente o caminho mais “provável” ou mais

“comum”? O mérito do garoto do barril foi o de ter conseguido passar por tais situações,

evitando-as de forma serena.

História Da Produção Do Seriado (Origens)

Chaves é um seriado da televisão Mexicana que chegou ao Brasil em 1984, aqui

fez muito sucesso e rende índices de audiência notáveis até hoje. O texto a seguir

esclarece o histórico do seriado, assim poderemos compreender o contexto em que

surgiu este programa.

Por volta de 1968, o humorista Roberto Gómez Bolaños, autor e protagonista do

seriado Chaves, ainda escrevia roteiros de humorísticos mexicanos. À medida que

aumentava seu sucesso, passava a escrever para outros humoristas. Assim, pouco tempo

depois, teve a oportunidade de também atuar além de continuar escrevendo. Bolaños

recebeu uma proposta para criar dois pequenos quadros humorísticos, estes com duração

de algo como dez minutos cada: “Los supergenios de la mesa cuadrada” e “El

ciudadano Gómez”. Em 1970, a emissora resolve aumentar o tempo de Bolaños para

uma hora, assim, o humorista teria um programa somente seu. Nasce aí o programa

“Chesperito”, apelido de Bolaños, fazendo alusão a Shakespeare. Este era um programa

constituído de diversos quadros humorísticos que passava às segundas-feiras,

transmitido no horário nobre mexicano.

Um desses quadros era o “Chapolin Colorado” (originalmente Chapulín

Colorado) que foi ao ar um ano antes de Chaves. Este seriado tratava de um herói, ou

anti-herói, trapalhão e medroso que era chamado para resolver situações das mais

diversas. Lidava com piratas, ladrões, pistoleiros, até mesmo lutadores de karatê. Assim

“Lo que pasa con la História es que los professores hacen trampas, pues te preguntan cosas que pasaron cuando uno ni siquierahabía nacido. (…) cada vez hace más difícil estudiar, porque siempre siguen pasando cosas. (…) para los adultos fue muy fácil,pues cuando ellos estudiaron casi no habia pasado nada.” (Bolaños, 2000, p. 48)…entre muitos outros!

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resolvendo as situações às quais era chamado sempre da maneira mais inusitada

possível.

Chapolin foi produzido no México de 1970 a 1979; houve uma breve

interrupção, até 1980, quando foi retomado até 1993, sempre como quadro dentro do

programa de Chesperito. No Brasil, chegou junto com Chaves e o acompanhou na grade

horária do SBT por muitas vezes.

Um ano mais tarde, em 20 de junho de 1971, foi ao ar o primeiro episódio de "El

Chavo del Ocho” ainda como um esquete no programa Chesperito. No início o esquete

mostrava crianças em um parque público, apenas para preencher espaços no programa.

À medida que foi recebendo elogios, Chaves foi ganhando mais espaço e tomando a

forma que acabou tornando-se mais popular. Foram adicionados personagens pouco a

pouco, assim constituindo o pequeno mundo de Chaves. Desta forma, as histórias de

Chaves passaram a ter como cenário uma simples vila do subúrbio da Cidade do

México.

Seu nome em espanhol, a língua original, é El Chavo del Ocho, que significa

algo como “O moleque do oito” (da casa número oito – da vila). Chavo é uma gíria de

origem mexicana que designa garoto. No Brasil diríamos moleque, pivete, piá, guri,

algo próximo disso. O número oito é um dos diversos aspectos do programa que acabou

se tornando misterioso. Diversas histórias e aspectos do programa acabaram tendo este

lado obscuro. Oito é o número da casa onde Chaves ficou por algum tempo logo que

chegou à vila. É também sua suposta idade, já que nem ele mesmo sabe ao certo, tanto

quanto seu nome (por isso assumiu o nome “Chavo del ocho” como o chamam na vila).

Este também é número do canal da primeira emissora a passar Chaves no México, atual

Televisa, uma das maiores emissoras de televisão no México. Alguns dos críticos vêm

essa questão do número oito como algum tipo de jogada de marketing. De qualquer

forma, depois de algum tempo, o seriado passou para o canal dois, que também pertence

à mesma emissora, Televisa.

Em pouco tempo, Chaves e Chapolin transformaram-se em seriados

independentes devido à sua grande popularidade no país de origem. Em 1973 já eram

líderes de audiência em vários países da América Latina. Ainda nesta época os

personagens estavam sendo agregados ao seriado e ganhando cada um as características

e personalidade que vemos no seriado após seu amadurecimento. Ainda assim, o cenário

continua tão precário quanto no início do programa, quando era apenas um esquete

dentro de Chesperito. O cenário da vila foi feito de madeira e papelão e o barril onde

Page 18: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

Chaves costuma se esconder fica perto da escada. Lá se passam os enredos mais

diversos da turma, além da escola e do restaurante, que marcam outras fases específicas

do seriado quando o elenco sofria modificações.

O ano de 1975 foi o que marcou o auge do programa no México, inclusive por

uma melhora significativa na qualidade da imagem. Nos dois anos seguintes melhorou o

cenário, então, começaram a ser gravados remakes e músicas. Estas, que se tornaram

rapidamente populares, são lembradas até hoje, inclusive com versões em português.

Nesta época os integrantes do grupo já eram celebridades famosas em grande

parte da América Latina. Em 1978 foram gravados episódios memoráveis como os de

Acapulco5 e o especial de Natal. Então, o elenco já fazia turnês pela América Latina,

apresentando-se em shows lotados. No ano seguinte, saíram do programa alguns dos

atores, o que marca o fim da “independência” do programa, e em 1980 Chaves volta a

fazer parte do programa Chesperito. Bolaños não gostava da idéia de contratar novos

atores para os personagens já consagrados, então adaptou o seriado incluindo novos

personagens e novos cenários como o restaurante da Dona Florinda. Em 1981 o ator

Ramón Valdés, cujo papel é um dos mais famosos e carismáticos do seriado, o Seu

Madruga (Don Ramón – chamado por Chaves de “Ron Damón”), retorna à turma. As

gravações desta primeira fase do seriado pararam no ano de 1983, quando Bolaños

decidiu que já era hora de parar. Seu personagem, o protagonista Chaves, era um garoto

de supostos oito anos interpretado por ele que já tinha, à época, 54 anos.

Foi neste período que a emissora muda de estratégia e começa a tentar vender

pacotes com episódios dos programas de Chesperito aos países que ainda não haviam

comprado, entre eles o Brasil. Nos pacotes de novelas mexicanas eram incluídos alguns

episódios da dupla Chaves e Chapolin.

Nesta mesma época, o elenco excursionou por diversos países, em sua maioria

na América Latina, fazendo apresentações dos personagens da vila (do seriado Chaves)

e de Chapolin. Em 1988, após a morte de Ramón Valdés (Seu Madruga) e o

afastamento de Carlos Villagrán (Quico – outro personagem dos mais carismáticos), o

elenco perdeu força. Ainda assim, Chaves voltou a ser produzido, novamente como

parte do programa Chesperito, desta vez com novos personagens e alguns dos antigos,

substituídos.

5 Nesta série de episódios os personagens da vila vão passar um feriado em um hotel na cidade de Acapulco. Na dublagem de umdestes episódios, chama-se o lugar de Guarujá, em um outro, Acapulco. Todos os personagens foram juntos para o hotel, já quealguns haviam ganhado a estadia em uma promoção e outros foram acompanhá-los. Chaves teve sua viajem paga pelo bondoso donoda vila, o Sr. Barriga. O hotel onde foram gravados estes episódios, na própria cidade turística de Acapulco, no México, recebeainda hoje muitos fãs do seriado que procuram o hotel para hospedarem-se onde Chaves hospedou-se.

Page 19: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

Na “segunda fase” de gravações do seriado, os atores já estavam mais velhos e

sem o vigor da década de 1970. Assim, as cenas perderam um pouco da plasticidade e

do movimento e o humor ficou mais focado no verbal. Além disso, alguns dos

personagens já tinham sofrido adaptações em suas características e personalidade. Isto

fez com que esta segunda “fase”, que consistia em sua maioria de regravações, tivesse

sucesso aquém do imaginado. As gravações desta segunda “fase” duraram até 1992,

quando houve a morte de mais dois integrantes do elenco (Raul Padilla – O carteiro

Jaiminho e Angelines Fernández – A Dona Clotilde ou “Bruxa do 71”).

O programa Chesperito também saiu do ar em 1995. Chaves ou El Chavo del

Ocho ainda é exibido hoje em dia em diversos países da América Latina. Foi dublado

em mais de dez idiomas e já foi exibido para mais de oitenta países. Sobre a

popularidade do seriado, em seu estudo de mercado acerca das preferências de

personagens entre crianças de toda América Latina, as pesquisadoras Urich e La Madrid

(2002) afirmam:

“Mexico has El Chavo, mentioned spontaneously by 22% of the children as oneof their three favorite programs. The televised episodes are pre-1995 re-runs and havea relatively simple production, not very probable characters – adults acting as children– and some clearly surreal situations, such as a homeless child that lives in a barrel.But the program presents a direct sense of humor, an array of loveable and convincingcharacters not because of their physical appearance but because of their performance,the feelings they manifest and the relationships established among them (clearindicators of an in-depth study of children). The dubbed version of El Chavo, Chaves,ranks fifth in Brazil.”

“There are other characters that lack any kind of marketing or merchandisingand are extremely successful. They are not fashionable characters; they are charactersthat appeal to children and that children love. It is the already mentioned case of ElChavo.”

No Brasil

Por aqui, o programa foi ao ar no ano de 1984, logo nos primeiros anos da

emissora que detém os direitos até hoje, o SBT, então TVS. Na época, a emissora

procurava preencher sua grade horária com atrações baratas e que proporcionassem

grande audiência. Assim, recorreu à dramaturgia Mexicana, conhecida pelos

“dramalhões” e clichês de baixo custo. Num dos pacotes de programas enviados pela

Televisa, estava um lote de episódios de Chaves e Chapolin, que na época já tinham 13

anos.

Em princípio a diretoria da emissora brasileira vetou o seriado mexicano, porém,

o proprietário da emissora, Silvio Santos, optou por apostar na simplicidade do

Page 20: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

enlatado. A direção da emissora brasileira resolveu dublar alguns dos episódios para

testar a audiência e o primeiro deles foi ao ar no programa do Bozo (outro personagem

“importado”) em agosto de 1984. Na época, Chaves passava três dias por semana

durante o programa do palhaço (que então ocupava 8 horas diárias na grade da

emissora). Após sua estréia, Chaves já começou a provar seu “valor” e alavancou os

índices de audiência no SBT. No total existem 150 episódios do seriado no Brasil, o

total de episódios produzidos no México é de aproximadamente 500.

Desde sua estréia, o seriado passou por diversos horários e com diversas

freqüências. Enquanto isso, ao longo dos anos a emissora foi comprando outros lotes de

Chaves e Chapolin. A média de audiência na década de 90 é de 13 pontos (o que

representa quase 700 mil domicílios na Grande São Paulo)6. Nas vezes em que a

emissora tirou o programa do ar, por poucos dias, os fãs protestavam insistentemente, a

cada vez que isso acontecia, “choviam” e-mails, cartas e telefonemas ao SBT pedindo a

volta do programa. O poder do Ibope de Chaves alavancou a audiência do SBT até

mesmo superando a poderosa Rede Globo de Televisão em alguns dos horários pelos

quais passou durante os mais de vinte anos de exibição no Brasil.

Existem diversos produtos envolvendo o seriado. Na década de 90, a editora

Globo publicou gibis contendo histórias da turma da vila e também do herói atrapalhado

Chapolin. Alguns produtos licenciados como álbuns de figurinha, etc também foram

vendidos nesta época. Além disso há outros produtos como bonecos, camisetas, bottons,

etc. que fazem referência aos personagens da turma.

Algumas bandas, tanto no Brasil como em outros países fazem referência ao

seriado, tanto nos nomes das bandas como em letras de suas musicas.

O famoso desenho animado norte-americano, Simpsons, que trata de uma típica

família de classe média daquele país, também tem um personagem inspirado no

Chapolin. O bumble-bee man (homem abelha) um homem vestido de abelha que

participa de um programa de televisão do palhaço Crusty no “channel ocho” (canal

6 Um ponto de audiência corresponde a 1% do universo de pessoas ou domicílios que estavam sintonizados em um canal ouassistindo a um programa específico. Dessa maneira, temos que diferenciar dois tipos de audiência: a individual e a domiciliar.

Na audiência individual, 1 ponto quer dizer que 1% dos telespectadores estava assistindo a determinado programa. Por outro lado,na audiência domiciliar, 1 ponto refere-se a 1% das casas que estavam assistindo a um determinado programa. Como o universo dapesquisa varia, um ponto de audiência em uma praça X não equivale ao mesmo número de telespectadores representados por umponto de audiência em uma praça Y.

Referência:Um ponto de audiência equivale a quantos telespectadores? In: Dúvidas Freqüentes\TV Aberta - IBOPE . Disponível em:<http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=duvidas_frequentes_leitura&nivel=D%FAvidas%20Freq%FCentes\TV%20Aberta&docid=E651DCBF758BBEA183256EB60069C181>Acesso em: 20 out. 2007.

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oito).

El Chavo Del Ocho foi dublado em diversas línguas e transmitido em vários

países, sendo, na América Latina famoso e popular até hoje onde está a maioria dos

países onde é transmitido e ainda reprisado. O programa já foi ao ar em cerca de 90

países, e tem atualmente 300 milhões de espectadores no mundo7.

No próximo capítulo vamos expor e discutir algumas dimensões da existência

humana cotidiana. Traremos da análise existencial, alguns elementos para pensarmos

sobre o sucesso do seriado. Esta abordagem servirá de apoio e embasamento para a

seguinte discussão acerca de algumas condições e dimensões do homem em contato

com apontamentos acerca do seriado até aqui descrito. Sendo assim, o tema abordado a

seguir diz respeito à análise existencial desenvolvida em Ser e Tempo (2006) e servirá

de pano de fundo para discutirmos o seriado em busca de seu sentido.

7 MATTOS, Laura e RODRIGUES, Lúcia V. Os segredos de Chaves. Folha de São Paulo. São Paulo, 29, mar. 2006.

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IV. Análise Do Dasein (ser-no-mundo, ser-com-os-outros e

cotidiano)

A reformulação da questão do ser feita por Heidegger (2006) leva em conta sua

relação com o tempo e nos conduz a uma reflexão sobre o ser humano. O homem é

constituído historicamente, sendo assim, a temporalidade é um de seus existenciais8,

uma de suas dimensões.

Partindo do modo mais comum da existência do homem, Heidegger investiga a

“cotidianidade”, ou seja, o modo de existir mais corriqueiro ou “médio”. Assim assume-

se que o ser do homem se encontra em disposição de diversas possibilidades. Então,

pretende-se não menosprezar nenhuma delas num estudo que se origina nesta

“cotidianidade”.

A partir daí, o homem é visto como “poder ser”, enquanto referido ao próprio

ser. Desta forma diferencia-se dos entes que simplesmente são. O homem pode ser, ou

seja, sua característica mais própria é “existir”. Ser é sua tarefa, ele tem de ser. Assim,

diz-se que o que define o homem é exatamente a não-definição, o não fechamento de

possibilidades, pois ele tem que ser quem é. O ser do homem é possível, pleno de

possibilidade. Desta forma, nota-se que o homem não tem essência ou natureza (no

sentido de algo fixo e delimitado que o distingue dos outros entes). Sua característica

não se limita desta forma. O homem não é algo acabado e pronto. Isto diz que o homem

tem a responsabilidade de seu próprio ser.

A etimologia da palavra existência nos mostra uma noção de “ser-para-fora” ou

“ser-em-direção-a”, sendo assim, ser transcendente. O homem existe, as outras “coisas”

são.

As dimensões da existência do homem chamam-se, a partir daí, “existenciais”. A

essência do homem como sendo a existência (estar lançado) contrapõe-se a noção

metafísica que compreende o homem como sujeito (não-objeto).

Após isso, coloca-se que o existir do homem se dá no mundo, ou seja, junto com

as coisas e os outros (pessoas). Isto quer dizer que a existência se dá junto e em relação

com estas coisas e pessoas. Para compreender esta concepção (ser-no-mundo) precisa-se

8 Em Ser e Tempo, Heidegger chama de existenciais as dimensões da existência de Dasein, algumas delas são: corpo, mundo,tempo, etc. “Existencial remete às estruturas que compõem o ser do homem a partir da existência em seus desdobramentos advindosda presença” (Heidegger, 2006, p. 563 [N5]).A edição utilizada aqui (Heidegger, Ser e Tempo, 2006) traduz o termo alemão ‘Dasein’ como ‘presença’. Neste caso, leia-se comosinônimos, quando usados aqui, ‘presença’, ‘ser-aí’ ou ‘Dasein’. Todos dizem respeito ao característico modo da existência humanaexplorado por Martin Heidegger em ‘Ser e Tempo’.

Page 23: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

recorrer a uma noção esclarecida de “mundo”.

O mundo é um existencial, isto é, uma das características ou dimensões de

Dasein (“Ser-aí” – a existência humana). Sendo assim, constitui uma dimensão da

existência do homem.

Para desenvolver o conceito de mundo, Heidegger recorre primeiramente à

noção de instrumento. Este é o modo como as coisas aparecem para nós, enquanto

instrumentalidade. As coisas que se nos mostram são dotadas de significado e passam a

fazer parte de nossa existência (projeto) enquanto instrumentos. Desta forma, não são as

coisas objetos alheios com os quais nos relacionamos, mas sim como dotados de

significação. Assim, as coisas já nos estão referidas, não são simples ‘presenças’ ante os

olhos, seres simplesmente dados.

Ainda mantendo o mesmo raciocínio, nota-se que o instrumento nunca se dá

isolado, ele é instrumento para, ou seja, é referido a algo.

O mundo não é uma mera soma de todas as coisas que nos cercam. Ele é

condição para que as coisas sejam, é uma totalidade de instrumentos. Assim, para que

os instrumentos tenham sentido de ser, é necessário que haja alguém que os empregue,

ou seja, que os compreenda enquanto instrumentos. Então, não há mundo se não há

Dasein. Por outro lado, Dasein não existe sem mundo. Assim, o mundo é característica

de Dasein. Ser-no-mundo é ter familiaridade com uma totalidade de significados.

Outro âmbito da existência humana a ser esclarecido é o ser-com-os-outros. Esta

dimensão humana fala da co-existência, ou seja, a relação de Dasein junto com os

demais. Somos também referidos aos outros. Então ser-no-mundo é ser-com-os-outros.

Heidegger chama esta relação de preocupação (Fürsorge). Assim é marcada a noção de

que a existência não se dá isoladamente.

Este específico modo-de-ser se diferencia da nossa relação com os manuais pois,

neste caso, se trata de outros existentes, outros Dasein. Todavia, da mesma forma que

com os entes simplesmente dados, na primeira aproximação já compreendemos os

demais. Isto significa que já temos nossa existência referida aos outros, esta já está “sob

a tutela dos outros” (Heidegger, 2006, p. 183) na forma da preocupação. Heidegger diz

que mesmo quando agimos de forma indiferente ao outro, este é um modo de lidar com

outro, levando-o em consideração, da mesma forma, é preocupação.

O autor costuma colocar-se a partir da seguinte frase “numa primeira

aproximação e na maior parte das vezes”. Quando usa este enunciado está querendo

dizer que trata do modo cotidiano de ser-no-mundo, do modo mais comum e corriqueiro

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de nossa existência junto às coisas e os outros no mundo, a cotidianidade.

Neste mundo compartilhado, lançado à cotidianidade, Dase in vive

impessoalmente. Este estar lançado em uma convivência cotidiana de maneira

impessoal é chamado de queda. Na impessoalidade “cada um é como o outro. Este

conviver dissolve inteiramente a própria presença no modo de ser dos ‘outros’”

(Heidegger, 2006, p. 184). Neste modo-se-ser Dasein, de certa forma, deixa de lado sua

tarefa de ser referenciado à própria existência e “cai” na impropriedade. Apesar desta

isenção dada à existência no impessoal, seu caráter público também fala de uma

familiaridade. Na cotidianidade pública Dasein faz as coisas como se faz

cotidianamente, impessoalmente, ou seja, do modo mais comum e corriqueiro.

É preciso ressaltar que apesar de ser este o modo mais comum da existência, não

é fixo e, sendo assim, não é o único. O ser-si-mesmo também pode ser propriamente

vivido. Este acontecimento, que implica em um “separar-se” do impessoal, também não

caracteriza um movimento definitivo. A propriedade não é final e a impessoalidade não

é inferior. Devemos lembrar que, segundo Martin Heidegger, a queda e o impessoal são

determinações que constituem o ser-aí humano sempre.

Este estar lançado na publicidade possui três características. Todas elas são

referidas ao caráter quotidiano e impessoal de Dasein. A primeira delas (§35 de Ser e

Tempo) é chamada de “falação” (ou falatório, que também se dá na comunicação escrita

– “escrivinhação”) e diz respeito ao “modo de ser do compreender e da interpretação da

presença cotidiana” (Heidegger, 2006, p. 231). Heidegger diz que, em se tratando de

linguagem, “ao pronunciar-se, o compreender e a interpretação já se dão” (Heidegger,

2006, p. 231). Desta forma no mostra que uma compreensão já é dada quando Dasein

pronuncia algo. A falação é comunicação e seu pronunciamento implica em uma

“abertura de mundo” e em interlocutores, os outros. “A tendência ontológica da

comunicação é fazer o ouvinte participar do ser que se abriu para o sobre que se fala”

(Heidegger, 2006, p. 232). Ou seja, quando se fala, há a tentativa de compartilhar

mundo. Isto quer dizer que a comunicação em sua maneira essencial cumpre o objetivo

de fazer do ouvinte um participante, ele faz parte do mundo que se abre na

comunicação. Quando você fala, é a partir de seu mundo, seu horizonte. Em geral, na

cotidianidade, esta compreensão da qual falamos se dá de forma mediana. Em outras

palavras, podemos dizer que esta compreensão é pública, é de todos nós e, neste sentido,

impessoal.

“O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo

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caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é assim que delas

(impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta de

solidez” (Heidegger, 2006, p. 232). Ou seja, a falação esvazia o ser das coisas. Na

falação pode-se compreender tudo sem ter se apropriado daquilo que se fala, ou seja,

compreender o discurso deixando de lado o ente referido. O ente passa ao largo, o

importante é repetir o falado.

A característica seguinte (§36 de Ser e Tempo) é a chamada “curiosidade” (ou

avidez por novidades). Este modo-de-ser é guiado pela visão em diversos sentidos. “A

visão foi concebida na perspectiva do modo fundamental de abertura própria à presença,

ou seja, do compreender no sentido de uma apropriação genuína dos entes com os quais

a presença pode relacionar-se e assumir uma atitude segundo suas possibilidades de ser

essenciais” (Heidegger, 2006, p. 234). Assim que o encontra, aquilo já se torna

conhecido e ocioso e a busca pelo novo se eterniza. A busca é pela novidade.

Aqui não se trata de ver para conhecer, se deter no ente. Trata-se de ver para ter

visto e, assim, cumprir com mais uma obrigação determinada pela “ditadura do

impessoal”. “Este modo de ser-no-mundo desvela um novo modo de ser da presença

cotidiana em que ela se encontra constantemente desenraizada” (Heidegger, 2006, p.

237). Nesta disposição, Dasein, guiado pela falação, procura tudo o que há de novo.

Então, “um modo arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada perde, e a falação,

que tudo compreende, dão à presença, que assim existe, a garantia de ‘uma vida cheia

de vida’, pretensamente autêntica” (Heidegger, 2006, p. 237). Também, esta

curiosidade, não se trata do espanto que admira os entes, o “taumazein” (_________) de

Aristóteles, pois ela não quer compreender o ser dos entes através da admiração e do

espanto como foi dito acima.

O terceiro modo-de-ser na cotidianidade (§37 de Ser e Tempo) é chamado de

“ambigüidade”. A ambigüidade fala justamente da aparente compreensão por parte

destes dois últimos modos-de-ser, quando, propriamente não acontece de fato.

Assim, “já não mais se poderá distinguir, na compreensão autêntica, o que se

abre do que não se abre. Essa ambigüidade não se estende apenas ao mundo mas,

também, à convivência como tal e até mesmo ao ser da presença para consigo mesma”

(Heidegger, 2006, p. 237).

A ambigüidade é justamente quem torna o que “todos” desejam em lugar

comum, o que “todos” falam em já sabido.

O que Heidegger pretende falar da ambigüidade pode ser exemplificado através

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do fenômeno em que todas as pessoas falam de algo como se isso fosse amplamente

conhecido e compreendido, quando no fundo não foi.

A idéia de Heidegger é que “se” vive dentro de uma atmosfera em que tudo é

tido como evidente e claro. Ora, o que o autor salienta é que esta clareza possível diz

respeito a algo que poderíamos denominar de “periferia do ente”, no sentido de sua

superfície mais exposta. “Essa atitude de estar na pista e, na verdade, a partir do ouvir

dizer – quem autenticamente ‘está na pista’ não fala sobre isso – é o modo mais

traiçoeiro em que a ambigüidade propicia á presença possibilidades, a fim de sufocá-la

em sua força” (Heidegger, 2006, p. 238).

Outro aspecto ambíguo é que “a falação não está sequer empenhada em que o

que ela pressente e constantemente requer aconteça realmente. Pois, com isso, ser-lhe-ia

arrancada a oportunidade de continuar pressentindo” (Heidegger, 2006, p. 238). Esta

afirmação significa que a consumação daquilo que a falação aponta não precisa

acontecer, já que o importante é simplesmente o falar. Na medida em que o

acontecimento se dá, a falação perderia seu sentido de continuar apontando para outras

novidades.

“Em sua ambigüidade, a falação e a curiosidade cuidam para que aquilo que se

criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público”

(Heidegger, 2006, p. 239). Assim, mais uma vez, o modo-de-ser na cotidianidade

mostra-se esvaziando o ser das coisas e retirando-lhes sua autenticidade. O novo,

desejado, já chega velho, sabido e vazio.

O nexo entre esses três modos-de-ser se dá no modo da decadência e do estar-

lançado (§38 de Ser e Tempo). Estes caracterizam o modo do Dasein na cotidianidade,

então, constituem seu ser nesta circunstancia. O modo fundamental, ou seja, que indica

o nexo entre estes anteriores é a decadência do Dasein.

O termo não tem uma conotação negativa. Quer dizer que na maior parte das

vezes, Dasein está lançado na cotidianidade, ou seja, junto às ocupações. Isto indica um

caráter de estar “perdido” na publicidade do impessoal. Esta queda na impessoalidade

cotidiana é o modo com o qual Dasein conta para suportar sua condição. É inclusive o

modo mais autêntico.

Decair mostra-se então como um empenho de Dasein para manter-se na

convivência, absorvido pelo “mundo” em sua co-presença e instrumentalidade. Este é o

modo no qual Dasein se mantém na maioria das vezes.

A queda acontece devido à nossa condição mais originária, a angústia (§37 de

Page 27: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

Ser e Tempo).

Esta camada mais imediatamente perceptível do ser-aí humano, a queda no

impessoal, possui como sentido encobrir a adversidade originária do existir, ou seja, a

angústia. Heidegger pensa que “a angústia se angustia com o ser-no-mundo ele mesmo”

(Heidegger, 2006, p. 254). Isto significa que no fundo de nosso ser encontramos

motivos para nos angustiarmos pois o abrir-se originário de nossa condição mais própria

é ameaçador. Trata-se de uma ameaça indeterminada, uma vez que é a própria

indeterminação da condição humana que irá nos angustiar e sustentar nossa queda no

mundo. “O ser-no-mundo tranqüilizado e familiarizado é um modo da estranheza da

presença e não o contrário. O não sentir-se em casa deve ser compreendido,

existencialmente e ontologicamente, como o fenômeno mais originário” (Heidegger,

2006, p. 256). A queda sustenta-se sobre isto, encobre isto.

Por causa da angústia, sentimo-nos tentados a decair, e esta tentação acontece

por que a cotidianidade e a impessoalidade nos parece mais tranqüila. Quanto mais

tranqüilamente tentados, mais decaídos somos. Assim, a decadência assume também um

caráter alienante e “faz com que a presença se aprisione em si mesma” (Heidegger,

2006, p. 243).

É importante notar que o estar lançado não é um estado fixo e irremissível.

Trata-se de um modo-de-ser cujo “pano-de-fundo” é a angústia, esta pode ser vivida

também de forma própria e autêntica. Este fenômeno, a angústia, raramente ocorre

propriamente já que nós, na cotidianidade, estamos constantemente “fugindo” de nossa

condição, da angústia. Na impessoalidade, lidamos com nossa existência de forma

impessoal, ou seja, ignorando nossa condição. A angústia refere-se à condição

primordial da existência humana, o ser-para-a-morte. É a partir desta noção que pode-se

pensar na angústia existencial como pano-de-fundo da existência humana, do qual

Dasein lança-se na cotidianidade.

“Ser-para-a-morte em sentido próprio não pode escapar da possibilidade mais

própria e irremissível e, nessa fuga, encobri-la e alterar o seu sentido em favor da

compreensão do impessoal. O projeto existencial de um ser-para-a-morte em sentido

próprio deve, portanto, elaborar os momentos desse ser que o constituem como

compreensão da morte, no sentido de um ser para a possibilidade caracterizada, que

nem foge e nem encobre” (Heidegger, 2006, p. 337).

No pensamento de Martin Heidegger, a morte é compreendida como

possibilidade. Na cotidianidade impessoal, o Dasein vive um ser-para-a-morte

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impróprio, em direção ao fim, “ao” nada. Assim, ocupa-se da realização desta

possibilidade primordial, o fim.

“Como possibilidade a proximidade mais próxima do ser-para-a-morte se acha,

face ao real, tão distante quanto possível. Quanto mais se compreender e desvelar essa

possibilidade como a possibilidade da impossibilidade da existência” (Heidegger, 2006,

p. 339). Ao ter a morte como possibilidade, Dasein antecipa esta possibilidade. Nesta

possibilidade, a mais própria de Dasein, está em jogo seu ser.

“A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta aameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singularda presença. Na angústia, a presença dispõe-se frente ao nada da possívelimpossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo poder ser daquele enteassim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema”

“Pode-se resumir a caracterização de ser que, existencialmente, se projeta para amorte em sentido próprio, da seguinte forma: o antecipar desvela para a presença aperdição no impessoalmente-si-mesmo e, embora não sustentada primariamente napreocupação das ocupações, a coloca diante da possibilidade de ser ela própria: masisso na liberdade para a morte que, apaixonada, fática, certa de si mesma edesembaraçada das ilusões do impessoal, se angustia.” (Heidegger, 2006, p. 343).

No próximo capítulo iremos abordar o seriado através das noções que foram

aqui expostas. Será feita uma análise do seriado levando em consideração as noções

aqui expostas e a prévia descrição do seriado. Faremos uma discussão enriquecida,

inclusive, com outras referências acerca do sentido do seriado e de sua popularidade

pela América Latina, principalmente no Brasil, mesmo sendo material televisivo antigo

e precariamente produzido. Então, mais adiante, serão feitas as considerações finais a

respeito do mesmo.

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V. Análise e Discussão

Até aqui foi feita a descrição do seriado, seu histórico e sua contextualização

nacional. Foram explicitados alguns fatos curiosos que envolvem a popularidade do

seriado que tem audiência grande de pessoas de diversas idades e de variados extratos

sociais mesmo sendo reprisado constantemente após 30 anos de sua produção inicial.

Neste capítulo foram levantadas questões acerca desta mesma popularidade e da

possível identificação dos telespectadores com alguns dos personagens, em especial

Chaves, Quico, Seu Madruga e Chapolin, os mais carismáticos.

Além disso foram expostas algumas dimensões da existência humana tratadas

por Martin Heidegger em Ser e Tempo (2006). Estas dimensões falam de modos-de-ser

da cotidianidade humana que, apesar de serem idéias vindas do âmbito da filosofia,

foram e ainda são utilizadas por pensadores da psicologia, em especial psico-terapeutas

como Medard Boss.

Esta presente pesquisa serve de exigência para graduação no curso de psicologia

e, a partir daí, surge mais uma questão: o que Chaves tem a ver com as dimensões

expostas da fenomenologia de Martin Heidegger?

Anteriormente, no breve capítulo acerca da metodologia fenomenológica, ficou

claro que o viés dado à pesquisa é o do peculiar e particular olhar deste pesquisador.

Sendo assim, as impressões e reverberações que serão aqui descritas dizem respeito às

impressões do pesquisador enquanto telespectador do seriado aqui tratado, ou seja,

Dasein telespectador de Chaves. Contudo, é claro, pretende-se ir além de meras

impressões pessoais e alcançar o sentido deste seriado.

Então, levando em consideração a fenomenologia de Martin Heidegger e o

prévio conhecimento do seriado e dos personagens, levantaremos algumas outras

questões. O que torna Chaves, o personagem, tão atraente? Como Chaves se mostra e o

que este personagem nos mostra? Tanto quanto vemos ou lemos centenas de vezes o

mesmo conto-de-fada ou estória infantil e não nos cansamos, o mesmo acontece com o

seriado. O que há nele que o torna tão fascinante? Numa vila cotidiana, um ser se abre

para o humor, reflexão e questionamento do cotidiano. Relaciona-se com as coisas que

se lhe apresentam de maneira criativa, bem-humorada e doce.

Chaves é um garoto pobre em uma cidade grande da América Latina, ou seja, é

alguém com quem nós, moradores de uma destas cidades, estamos habituados a

Page 30: "De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

conviver. Chaves faz parte de nosso mundo, não só o personagem, para quem assiste,

mas o garoto, para quem o vê pelas ruas da cidade.

Neste caso, o interessante é notar que Chaves convive com sua condição de

maneira diferente da qual vemos os garotos das ruas de nossas cidades. Chaves brinca.

Foi acolhido por uma vila, pelos moradores dela, não só por caridade a um garoto pobre,

ele de alguma forma os cativou. Na ocasião do lançamento do livro, o próprio autor foi

questionado se Chaves havia sido inspirado em algum garoto em especial. Sua resposta

foi a seguinte:

“Não houve um, por que me dei conta de que esse garoto pobre existia emmuitos lugares, não só na América Latina. Todos eles têm a esperança que queriacomunicar com Chaves, que, apesar de não ter brinquedos, café da manhã e muitosamigos, brincava com entusiasmo, e o futuro o acompanhava.”

Quem assiste ao seriado percebe que o garoto é interpretado por um adulto.

Mesmo assim, apesar do talento do ator, Chaves é uma criança, age como criança, fala

como criança e brinca como criança. Isto é, inclusive, um dos mais imediatos indícios

da popularidade de Chaves entre os telespectadores tanto adultos como jovens. Chaves é

um adulto que sabe ser criança.

Chaves encara um mundo potencialmente ameaçador e violento com doçura e

bom-humor. Ele mostra ao telespectador que isto é possível.

Quando assistimos ao programa sentimos um tipo de familiaridade com aquela

vila, sentimo-nos em casa. Chaves nos mostra um pouco do que somos. Enquanto

“caídos” no mundo, somos lançados a um modo-de-ser que ameniza a inospitabilidade

do mundo, encobre, de certa forma, nossa condição primordial. Afinal, ele tem que

continuar sendo Chaves.

No artigo ‘O Humor’ (in Freud, 1969 - Obras Completas Vol. XXI), Freud

mostra – retomando seu próprio ‘Os chistes e sua relação com o inconsciente’ (Freud,

1969 Obras Completas Vol. VIII) – como surge a produção do prazer humorístico. O

autor mostra que o humor propicia prazer, tanto em quem adota a atitude humorística

quanto ao não participante, assistente, como o ouvinte de uma piada. O autor ilustra tal

processo da seguinte forma:

“O ouvinte vê esse outro numa situação que o leva a esperar que ele produza ossinais de um afeto, que fique zangado, se queixe, expresse sofrimento, fique assustadoou horrorizado ou, talvez, até mesmo desesperado; e o assistente ou ouvinte estápreparado para acompanhar sua direção e evocar os mesmos impulsos emocionais em simesmo. Contudo, essa expectativa emocional é desapontada; a outra pessoa nãoexpressa afeto, mas faz uma pilhéria. O gasto de sentimento, que é assim economizado,se transforma em prazer humorístico no ouvinte.”

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Sendo assim, o humor funciona como um tipo de fuga da situação hostil à qual

havia iminência de se chegar, afirmando a vitoriosa “invulnerabilidade do ego”, assim

se dá o “triunfo do narcisismo”. A realidade hostil é suprimida. Então, evita-se o

sofrimento.

Desta forma, “o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo

do sofrimento”. Com sua linguagem e utilizando-se das instâncias específicas à

psicanálise, Freud também mostra que a atitude humorística é uma forma de lidar com

um mundo potencialmente hostil e inóspito.

Aquele mundo onde os adultos continuam sendo crianças, um tipo de Peter-Pan,

dá a impressão de que aquela juventude estará sempre presente, que a morte nunca

chega. O próprio Bolaños desistiu de interpretar o garoto quando percebeu que estava

velho de mais para apresentar-se como alguém de oito anos. Um das canções mais

famosas9 entre os fãs brasileiros fala dessa pretensão:

“Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!

Amanhã velho será, velho será, velho será!A menos que o coração, que o coração sustente,

A juventude que nunca morrerá!

Existem jovens de oitenta e tantos anos,E também velhos de apenas vinte e seis.

Porque velhice, não significa nada!E a juventude volta sempre outra vez!

Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!Amanhã velho será, velho será, velho será!

A menos que o coração, que o coração sustente,A juventude que nunca morrerá!

E você é tão jovem quanto sente,Pode apostar é jovem pra valer!E velho é quem perde a pureza.

E também é quem deixa de aprende.

Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!Amanhã velho será, velho será, velho será!

A menos que o coração, que o coração sustente,

9 Se Você é Jovem Ainda – SBT. Adaptação do original: Se tu Eres Joven Aún.

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A juventude que nunca morrerá!

Não diga não à vida que te espera,Pra festejar a alegria de viver.

Pra agradecer a luz do seu caminho,E você vai tudo isso entender!

Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!Amanhã velho será, velho será, velho será!

A menos que o coração, que o coração sustente,A juventude que nunca morrerá!

- Olha, olha turma! O Dr. Chapatim, é o velho mais jovem que eu conheço!- Eu não sou velho ouviu! eu sou só uma pessoa vivida!

- Dr. Chapatim, quantos anos o senhor tem?- Eu? Todos! Mas isso não te interessa, ouviu...

Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!Amanhã velho será, velho será, velho será!

A menos que o coração, que o coração sustente,A juventude que nunca morrerá!

”Na vila, todas as crianças são, na verdade, interpretadas por adultos, e os adultos

são em geral rabugentos e mal-humorados, exceto nos momentos e paquera entre os

adultos, como entre Dona Florinda e Professor Girafales, também entre Dona Clotilde e

Seu Madruga – por mais que ele não aprecie muito a beleza da “Bruxa do 71”. Mesmo

assim,. O seriado é “assexuado”, as paqueras são apenas insinuadas e todas as crianças

têm pelo menos um de seus pais ausente. Isto mostra mais um lado da ingenuidade do

mundo de Chaves. Não apenas por não saber “de onde vêm os bebês”, mas porque na

vila todos são seus pais, todas são suas mães. Eles o acolheram e é lá que ele mora,

come e brinca. Esta é a casa de uma criança.

Além disso, ele é irmão das crianças da vila, que na realidade são – todos eles –

filhos únicos. Já que os pais de seus amigos são seus pais, ele torna-se irmão dos

amigos. Chaves eventualmente divide o quarto com eles, janta na mesa da família, etc.

Como não poderia deixar de ser, o garoto tem também seus momentos solitários. Como

ele mesmo “diz” em seu diário, entra no barril quando precisa pensar em algo ou

quando sente muita vontade de chorar, o que não é raro. Ele sabe muito bem que foi

abandonado pelos pais e rejeitado pela diretora do orfanato. Não deve ser fácil para uma

criança de tão pouca idade superar tais rejeições tão violentas. Mesmo assim, ele supera,

ele corre, sem destino, tentando deixar o medo para trás e sem saber o que vem à frente.

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Pior não deve ser. Chaves continua com abertura para se relacionar com o que aparece,

ao invés de ficar só chorando dentro do barril.

Bem, acabamos de nos dar conta de que Chaves fala do impessoal. Chaves

também é lançado no cotidiano, claro, como não poderia. Existe uma música10 que faz

uma sátira a um outro personagem, também um dos mais queridos, que fala dessa

mesma característica.

“O sol pela janela

Veio me avisarJá passou do meio dia

É hora de acordar

Quer saber de uma coisa?Hoje eu não vou levantarNão fazer nada me cansaAcho que vou descansar

De Seu Madruga e loucoTodo mundo tem um pouco!

Desempregado, endividadoJá tô com a corda no pescoço

Um xaveco na vizinhaÉ o que garante o meu almoço

Se a campainha tocaÉ alguém que veio me cobrar

Eu já falei, não adiantaNão tenho como pagar

De Seu Madruga e loucoTodo mundo tem um pouco!

Nem lembro a cor do dinheiroConheço cobrador pelo cheiro

Uma tia me deu uns trocados por dóMas eu perdi tudo jogando dominó

Triste é passar pelo barJá fui avisado: - Fiado nem pensar!

E aos poucos o dia já vai terminandoO sol já tá se pondo, que sono isso tá me dando

De Seu Madruga e louco 10 Os Thompsons - De Seu Madruga e Louco (Radiola Records / Estrondo - 2001)

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Todo mundo tem um pouco!

”Quem conhece o seriado sabe que o Seu Madruga está devendo 14 meses de

aluguel. Toda vez que o Sr. Barriga vem cobrá-lo – inclusive sempre recebido por uma

pancada (“sem querer querendo”) do Chaves – o Seu Madruga dá um jeito de se

esconder ou “driblar” o Sr. Barriga. Na verdade o Sr. Barriga também acaba perdoando

e deixando pra cobrar na semana seguinte. O Seu Madruga nunca tem dinheiro, afinal

ele não trabalha, inclusive, ele tem muita preguiça de trabalhar, apesar de viver se

gabando das coisas que fez na sua juventude. Já foi boxeador, toureiro, violonista, etc.

Essas histórias que ele conta para as crianças acabam dando vazão para as

brincadeiras que eles fazem pelo pátio da vila. Então, o pátio vira arena de touros, ou

ringue de boxe, assim por diante. No meio dessas brincadeiras acaba sempre

acontecendo alguma confusão e alguém sempre toma uma pancada, novamente “sem

querer querendo”, fazer o que? “É que me escapuliu”.

Muitos dos fãs do seriado se identificam com este velho rabugento, pobre e

preguiçoso que sempre desconta suas decepções em forma de “cascudo” nas crianças. O

que será que este outro personagem tem de carismático? Bom, como muitos, ele tem

que se esquivar e fazer “bicos” ou “biscates” de todo tipo para conseguir algum sustento

para si e para sua filha Chiquinha.

Ambos os personagens mostram modos de lidar com as dificuldades do mundo

de forma criativa. Usam sua sagacidade e astúcia para resolver situações que

corriqueiramente poderiam ser obstáculos. Até mesmo o herói atrapalhado Chapolin

(“Não contavam com minha astúcia!”) com seus modos desajeitados consegue fazer as

vezes de um verdadeiro super-herói e resolver aos “trancos e barrancos” as situações

para as quais é chamado (“Oh, e agora, quem poderá nos defender?”).

Esse tipo de narrativa onde alguém de origem pobre tenta se “dar bem” na vida,

conseguindo as coisas através da esperteza (às vezes de forma duvidosa), chama-se

Novela Picaresca. A Novela Picaresca (ou Romance Picaresco) é um gênero literário

cujos primeiros representantes provém da Espanha medieval. O gênero surgiu como um

modo de contrapor as então populares novelas de cavalaria, onde heróis virtuosos

aventurando-se por belas damas, dentro de um contexto idealizado da aristocracia

feudal. Os primeiros textos clássicos da Novela Picaresca surgem por volta do séc. XVI

e caracterizam-se por uma narração do próprio protagonista, o Pícaro, que conta a

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história de sua vida e de como consegue as coisas por meio de trapaças em uma

sociedade corrompida onde se nota que o importante mais do que ser era parecer ser. De

forma rapsódica, o Pícaro narra sua origem, geralmente pobre, sua sobrevivência

vagabunda ou subempregada, assim matando sua fome (tema central do Pícaro)

utilizando sua astúcia, atingindo muitas vezes a delinqüência. Então, o Pícaro

caracteriza-se por ser um anti-herói, contrapondo os Cavaleiros das novelas anteriores.

A trajetória do Pícaro é marcada por uma sátira da sociedade medieval corrompida.

No Brasil, nota-se muita semelhança com tal gênero em obras como 'Memórias

de um sargento de milícias' ou 'Macunaíma' as quais poderiam ser chamadas, neste caso,

de neo-pícarescas. Nestas obras e em outras mais recentes, tem-se a figura clara do anti-

herói, também dito malandro, que consegue sobreviver por astúcia, criticando a

sociedade vigente, assim guardando semelhanças intimas com a Picaresca clássica.

Nota-se além destas duas obras especificamente brasileiras, outras de igual

semelhança no resto da América Latina, até mesmo nas atuais novelas de televisão e

seriados. É claro que para este trabalho, os personagens que tem especial intimidade

com a Picaresca clássica são os de Bolaños, não só Chaves como os outros moradores

da vila e o próprio Chapolin Colorado (a imagem mais clara de anti-herói).

A diferença crucial entre Chaves e os Pícaros clássicos é o fato de que mesmo

agindo de forma astuta e trapaceira para matar sua fome, Chaves o faz com notável

inocência. Esta é uma característica primordial de seu caráter e, ao meu ver (então, na

óptica deste mesmo trabalho) a característica fundamental que diferencia seu tipo de

humor. Chaves não é um garoto delinqüente ou um ladrão.

Além disso, algumas das características picarescas são notáveis em outros dos

personagens da vila. Seu Madruga sempre consegue burlar o pagamento do aluguel.

Dona Florinda tenta aparentar-se sendo de classe social ou econômica superior, mas

mora na mesma vila e tem os mesmo costumes e hábitos que a “gentalha”.

O seriado, mesmo tendo condições precárias de produção, atrai ainda, após 30

anos, muitos olhares atentos. Tudo lá é velho e sabido, as piadas e trapalhadas advindas

da tradição circense de muitos dos atores nunca impressionou, tanto por qualidade

técnica como por repetição. Na vila tudo já é previsível e sabido. Todos sabem que ao

entrar na vila, o Sr. Barriga receberá uma pancada do Chaves. Todos já perceberam que

Chaves irá tropeçar no balde que está no meio do pátio. Todos sabem que Quico irá

tentar enganar Chaves e iludi-lo com a proposta de dá-lo um sanduíche de presunto, e

isso acabará numa perseguição em correria pelos pátios onde, provavelmente mais

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alguém será envolvido, infelizmente tomando uma pancada de um dos dois.

Isto tudo aparentemente se contrapõe à noção Heideggeriana de curiosidade.

Naquele caso, a busca é interminável pelo novo. Quem assiste Chaves já sabe que não ai

ver nada de novo, inclusive por estar assistindo a uma reprise da década de 70 ou 80.

Mesmo assim, o telespectador, ou fã (talvez seja a palavra mais adequada) continua

assistindo vidrado na televisão e rindo novamente. A impressão que isto passa é de um

tipo de saudade ou nostalgia daquilo. A seguir serão feitas considerações acerca da

popularidade do seriado, principalmente envolvendo questões que ainda intrigam este

pesquisador e que não foram o enfoque principal do caminho deste trabalho.

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VI. Considerações Finais

Vimos até aqui que o grande sucesso do seriado se explica principalmente pelo

fato de vermos naquela vila um pouco de nosso mundo. Aquelas crianças, aquele

cenário, aquilo tudo é muito parecido, se não igual, ao que vivemos em grandes cidades

como São Paulo. Boa parte disso é reflexo da semelhante desigualdade social em nosso

país, também verificada na maioria dos países da América Latina. Aquilo que se mostra

na vila de Chaves é nosso mundo. O objetivo do seriado não é fazer um documentário

ou mostrar a “realidade” da pobreza no continente, mesmo assim o faz. Apesar disso, é

um programa de humor, em princípio destinado ao público infantil, ainda assim, pessoas

de todas as idades o assistem, e de novo, e de novo…

O que se vê no programa não é uma coletânea de momentos pobres, sujos e

moralmente excluídos. Chaves, mesmo tendo esse potencial, nos mostra nosso próprio

mundo com um humor ingênuo, simples e sem apelo comercial ou mesmo sexual, o que

normalmente se usa para conseguir audiência.

Chapolin por sua vez, é o autêntico anti-herói latino-americano, assim como o

Quixote contrapôs as novelas de cavalaria, o também conhecido como “Polegar

Vermelho” é fraco, atrapalhado e debochado, opondo-se aos super-heróis dos

contemporâneos gibis e desenhos animados. Chapolin é o “Macunaíma mexicano”. Se

Sérgio Buarque de Hollanda estiver correto, nós brasileiros sabemos muito bem o que é

essa maneira debochada, “preguiçosa” e “sem caráter” de ser.

O número de web-sites sobre os seriados cresce a cada dia, grupos de discussão,

fóruns e espaços para trocas de arquivos de vídeo ou música dos programas são as

preferências dos fãs. Organizam-se em eventos que celebram os bons momentos do

seriado, assim como foi feito na própria vila, o “festival da boa vizinhança”. A cada vez

que a emissora tira os poucos episódios do ar, toda essa massa se empenha em pedidos

para que volte ao ar. Ultimamente, com as versões originais (em espanhol) em DVD, os

fãs têm acesso a episódios inéditos no Brasil em melhor qualidade do que a vista na TV.

Como não podia deixar de ser, são também estes vendidos em sua versão “pirata” nas

ruas da cidade, pois é, esta é a América Latina e não poderia deixar de ser.

Principalmente entre os jovens percebe-se presente o humor atrapalhado dos

seriados, os trocadilhos clássicos e até mesmo novos, com o mesmo tipo de “sacada”.

Sabem cantar as músicas do seriado, usam camisetas com imagens dos personagens ou a

clássica camiseta vermelha com o coração e as letras CH (presentes na maioria dos

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trabalhos de Bolaños), o uniforme do Chapolin. Quem diria que um seriado tão mal

produzido poderia ter um apelo comercial tão grande? O SBT acaba usando-o como

coringa na programação. Será que era esta a pretensão de Bolaños?

Aqui aparece novamente o lado cotidiano de Chaves. Os fãs são ávidos por

novidades, movidos pelo falatório da internet. Querem ter visto todos os episódios.

Querem saber todas as músicas. Querem desvendar todos os mistérios e boatos. Querem

ter os bonecos dos personagens. Chaves nos lança no cotidiano. Ele nos mostra nosso

mundo. A América Latina é aquela pequena vila refugiada e escondida no meio de uma

cidade enorme e ameaçadora.

Nós nos identificamos com aquilo que reverbera em nosso ser, aquilo que

constitui nosso mundo. Quando assistimos aos seriados de Bolaños vemos uma

realidade que reverbera em nosso ser. Aquilo nos diz respeito, fala de nós e para nós

mesmos.

O seriado fez sucesso por todo o continente e por aqui, mesmo sendo dublado e

perdendo alguns efeitos humorísticos ou alguns trocadilhos pelo idioma diferente, o

sucesso foi igual. Mesmo tendo sofrido alterações e falhas durante a dublagem dos

poucos episódios que vieram para o Brasil, o seriado cativa milhões de espectadores.

Aliás, nada mais condizente com o espírito tosco e mal produzido de Chaves do que

uma pequena falha aqui e acolá. Talvez seja isso mesmo o que atrai os olhos atentos dos

fãs.

O que ainda se mostra passível de investigação mais aprofundada é como um

programa consegue manter-se no ar sendo reprisado exaustivamente há 25 anos (no

Brasil). Além disso, o fato de alguns personagens serem especialmente cativantes, cada

um com suas características especificamente marcantes.

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VII. Referências Bibliográficas

• BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cômico. Rio de Janeiro,Guanabara, 1987.

• BOLAÑOS, Roberto G. El Diario de El Chavo del Ocho. Madrid, Laberinto, 2001.

• CRITELLI, Dulce M. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real deorientação fenomenológica. São Paulo, Brasiliense, 2006.

• FREUD, Sigmund. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. In Edição StandardBrasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VIII. Rio de Janeiro, Imago, 1969.

• FREUD, Sigmund. (1927-1931) ‘O Humor’ In: O futuro de uma ilusão, O mal estar nacivilização e outros trabalhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas deSigmund Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro, Imago, 1969.

• GONZÁLEZ, Mario M. O romance picaresco. São Paulo, Ática, 1988.

• HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, Ed.Universitária São Francisco, 2006.

• JOLY, Luís; THULER, Fernando e FRANCO, Paulo. Chaves: Foi sem querer querendo?São Paulo, Matrix, 2005.

• KUBLIKOWSKI, Ida. Análise Qualitativa (2007) Material didático produzido para adisciplina “Seminário de Dissertação” do Programa de Estudos Pós-Graduados emPsicologia Clínica da PUC-SP. [Texto não publicado]

• MATTOS, Laura e RODRIGUES, Lúcia V. Os segredos de Chaves. Folha de São Paulo.São Paulo, 29, mar. 2006.

• LA MADRID, Mónica e URICH, Telma. The universal and the singular, the permanentand the ephemeral. Character preferences of children. In: ESOMAR Latin AmericanConference, 2002, São Paulo. p. 261-288. Versão eletrônica disponível em:<http://www.kiddos.com.ar/docs/downloads/characterpreferences.pdf> Acesso em: 20 out.2007.

• LUGO, Omar. Popularidade de "Chaves" atravessa décadas no Brasil e vira livro. 2007.Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/03/19/ult1817u6051.jhtm>Acesso em: 20 out. 2007.

• Criador de Chaves e Chapolin nega suposta relação com o narcotráfico. In: UOL Diversãoe Arte. Disponível em:<http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/09/18/ult1817u6970.jhtm> Acesso em: 20 out.2007.

• Um ponto de audiência equivale a quantos telespectadores? In: Dúvidas Freqüentes\TVAberta - IBOPE . Disponível em:<http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=duvidas_frequentes_leitura&nivel=D%FAvidas%20Freq%FCentes\TV%20Aberta&docid=E651DCBF758BBEA183256EB60069C181> Acesso em: 20out. 2007.