de rubens paiva a amarildo. e “nego sete”? o …militar e as violações de direitos humanos no...

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Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 1, 2018, p. 202-225. Luciano Oliveira DOI: 10.1590/2179-8966/2018/32431| ISSN: 2179-8966 203 De Rubens Paiva a Amarildo. E “Nego Sete”? O regime militar e as violações de direitos humanos no Brasil From Rubens Paiva to Amarildo. And “Nego-Sete”? Military regime and human rights violations in Brazil Luciano Oliveira Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. Email: [email protected] Artigo recebido em 19/01/2018 e aceito em 30/01/2018. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

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Page 1: De Rubens Paiva a Amarildo. E “Nego Sete”? O …militar e as violações de direitos humanos no Brasil From Rubens Paiva to Amarildo. And “Nego-Sete”? Military regime and human

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.202-225.LucianoOliveiraDOI:10.1590/2179-8966/2018/32431|ISSN:2179-8966

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De Rubens Paiva a Amarildo. E “Nego Sete”? O regimemilitareasviolaçõesdedireitoshumanosnoBrasil FromRubensPaiva toAmarildo.And “Nego-Sete”?Military regimeandhumanrightsviolationsinBrazil

LucianoOliveiraUniversidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. Email:[email protected]

Artigorecebidoem19/01/2018eaceitoem30/01/2018.

ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense

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Resumo

PartindodeumconhecidocasodeviolênciapolicialocorridonoRiodeJaneiroem2013

–aprisão,tortura,mortee“desaparecimento”dopedreiroAmarildo,oartigoquestiona

a tese, comum entre os militantes de direitos humanos, de que as violações desses

direitos praticadas pela polícia brasileira seriam uma “herança maldita” do regime

militar. Semnegar que a ditadura tenha reforçado tais práticas, o artigo explora uma

questão: se de fato prisões ilegais, torturas, mortes e até “desaparecimentos” foram

uma invenção do regime, como explicar que, mais de trinta anos após a

redemocratizaçãodopaís,taispráticascontinuemacontecendo?Ahipótesesustentada

éadequetaispráticas,emrelaçãoàsclassespopulares,antecedemoregime,comele

conviveramesobreviveramaoseufim.

Palavras-chaves:Amarildo;Tortura;Regimemilitar.

Abstract

Starting froma famouscaseofpoliceviolenceoccurred inRiode Janeiro in2013 (the

imprisonment, torture, death and “disappearance” of a mason called Amarildo), this

articlequestions the thesis, commonamonghumanrightsactivists, that theviolations

perpetratedbytheBrazilianpoliceisa“cursedlegacy”ofthemilitaryregime.Albeitnot

denying that the dictatorship strengthened such practices, this article explores the

following question: if indeed illegal imprisonment, torture, death and even

“disappearance”wereinventedbythemilitaryregime,howcanweexplain,morethan

thirtyyearsafterdemocratization,thepersistenceofsuchpractices?Thisarticleargues

that the use of such methods against the “underclasse” already existed before the

regime,andpersisteddespiteitsend.

Keywords:Amarildo;Torture;Militaryregime.

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...suaprimeiratarefaé[...]reconhecerosfatosincômodos,ouseja,aqueles fatos que são incômodos para a sua opinião partidária; epara todas as opiniões partidárias – inclusive a minha – há fatosextremamenteincômodos.

MaxWeber,ACiênciacomoVocação

Começocom“NegoSete”,*umnomedesconhecidodas“nossasnovasgerações”,como

diziaChicoBuarquenum inesquecível sucessodoanode1985,VaiPassar, umsamba

flamejantecomemorandoofimdaditaduramilitareocomeçodeumnovotempo.Mas

isso foi bemdepois damorte de “Nego Sete”, alcunha de Antônio de Souza Campos,

delinquentedaperiferiadeSãoPauloassassinadoemnovembrode1968pelodelegado

SérgioParanhosFleuryesuaequipenaportadesuacasa,numamissãodevingançapela

morte de um policial assassinado num confronto com uma quadrilha da qual ele

supostamentefaziaparte.“NegoSete”foisumariamenteexecutadopor“umachuvade

balas”. Seu cadáver, “enrolado num cobertor e carregado [...], foi encontrado no dia

seguintenaestrada[...]quevaiparaMogidasCruzes,nasimediaçõesdacidadedeSão

Paulo”.Suacompanheira,quealinguagemdaépocachamavade“amásia”,foitambém

levadapelospoliciaisquetinhamacabadodeexecutarseuamásio–“edelajamaisteve

alguém notícia ou rastro do seu destino”, como informa um bravo promotor público

paulistadeentão,HélioBicudo,que,designadoem julhode1970para seocupardas

denúnciasenvolvendoo“denominadoEsquadrãodaMorte”emSãoPaulo,levouasério

uma missão que seus superiores preferiam cobrir rapidamente com panos quentes

(Bicudo,1977,pp.45-48).Àsvezes,aspressõesextravasavamoscorredoresaveludados

dos palácios. Seis meses depois da sua designação, em dezembro de 1970, num

programadetelevisão,ninguémmenosqueoprópriogovernadordeSãoPaulo,Abreu

Sodré,desancouHélioBicudonegandopuraesimplesmenteaexistênciadoEsquadrão

paulista:

*Esteartigocomeçouaserpensadoquando,noiníciode2014,recebiumconvitedeTúlioBarretoeCelmaTavares,daFundaçãoJoaquimNabuco,paraescreverumtextosobreocasoAmarildoeoqueelepodianosensinar sobre o regime militar. O convite aflorou divergências geradoras de uma discussão fraterna eprodutiva.Mastermineidesistindodoartigonaquelemomento.Posteriormente,convidadopeloprofessorBrunoGalindoparaparticipardeumdebatenaFaculdadedeDireitodoRecifesobreos50anosdogolpemilitar, retomei as reflexões que tinha deixado de lado.Mas o artigo continuou sem ser escrito. Agora,finalmente,retomei-o.Soumuitogratoaostrêspelaoportunidadedepensarnessascoisase, finalmente,pôroquepensodessetenebrosoassuntonopapel.Digo,natela!

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Issoésensacionalismo:oqueexisteécomoexisteemqualquerpartedomundo: a polícia precisa se defender em termos de nãomorrerpara que nós não morramos nas mãos dos marginais. [...] Entãoquando[...]vaiumgrupodepoliciais,querdamilitaroudacivil,paraprender um homem perigoso como esse, é evidente que é umtiroteioferradoemcima[...]docriminoso.Edaíaparecercommuitostiros. Então, aí inventamque fazemaquiloem termosdepresunto,essascoisas(idem,p.126).

Naquele momento, já estávamos sob a vigência do Ato Institucional n.5 e o

delegadoFleury,quetinhaumreconhecidoknow-hownoassunto, foi“chamadopelos

órgãos de segurança para a luta contra o terrorismo”. E saiu-se bem: “chegou a ser

considerado,pelasForçasArmadas,comoheróinacional, condecorado,dentreoutros,

peloMinistériodaMarinha,comamedalha‘AmigodaMarinha’”(idem,p.51).Quando

morreu,em1ºdemaiode1979,nummalexplicadoacidentenomardolitoralnortede

São Paulo, seu desaparecimento foi diversamente recebido: de um lado, velório com

pompasoficiais;deoutro,emSãoBernardodoCampo,regozijonumacelebraçãopelo

diadotrabalho:“Estamoscomemorandotambémamortedomaiortorturadordopaís”,

vibrava o orador no palanque (Souza, 2000, p. 15). A trajetória de Sérgio Paranhos

Fleury – o mais notório e emblemático torturador da época do regime militar, mas

sempreoficiandonapolícia civil deSãoPaulo– servede ilustraçãoparaoargumento

quequerodesenvolvernessetexto:adequeasbrutaisviolaçõesdedireitoshumanos

perpetradas ainda hoje pela polícia brasileira (torturas, execuções e mesmo

“desaparecimentos”)nãosão,comoquerumaversãocorrentenoBrasil,uma“herança

maldita”daqueles tempos.Aquestão,quenãoé recente, retornouaodebatepúblico

quando,em2013,ocorreuofamoso“casoAmarildo”.

Foinum14de julho,umadataemblemática.NaFrança,elaépatrioticamente

comemoradae,norestodomundo,lembradaportersidonessediaque,nolongínquo

ano de 1789, revoltosos parisienses promoveram o assalto a uma velha prisão

transformada em fortaleza, num episódio que ficou conhecido como a Queda da

Bastilha. Foi o início da Revolução Francesa, espécie demarco inaugural dos tempos

modernos.Logodepois,aAssembleiaNacional francesa iriaproduziraDeclaraçãodos

DireitosdoHomemedoCidadão,emcujoartigo7ºse lê: “Nenhumhomempodeser

indiciado,presooudetidoexcetoemcasosdeterminadospelaleiesegundoasformas

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que a lei prescreve”. O Brasil, desde a Carta Política do Império de 1824, repete

dispositivos desse jaez em todas as suas constituições. Mas exatos duzentos e vinte

quatroanosdepoisdatomadadaBastilha,apolíciadoRiodeJaneiro,nodia14dejulho

de2013,prendeu, torturou,matoue fezdesaparecero corpodeAmarildo,umpobre

trabalhador brasileiro que tinha nome de bicampeão mundial de futebol. Os novos

tempos, anunciados pelo espetacular Vai Passar, sem tortura e sem

“desaparecimentos”,vieram.Masnãoparatodos.

Amarildo foi mais um “desaparecido” nas mãos da polícia brasileira.

Diferentementedaquelessumidosduranteosanosmaisdurosdaditaduramilitar,esses

outros são de todos os tempos e regimes, formam incontável legião e são obscuros.

Deles,geralmentenemonomefica.Desse,ficou:AmarildodeSouza,47anos,mulato,

moradordaRocinha,ajudantedepedreiro.Umtípicotrabalhadorbrasileiro.Preso, foi

levado a uma Unidade de Polícia dita Pacificadora. Suspeito de esconder armas do

tráficodedrogas,foiinterrogadocomosmétodosreservadosparaaclassesocialaque

pertencia:levousocosepontapés,epassouporsessõesdeasfixiacomsacoplástico.1O

“interrogatório” de Amarildo – como provavelmente aconteceu com o ex-deputado

RubensPaivaem1971,eojornalistaVladimirHerzogem1975–desandoueoajudante

depedreiromorreu.Foimaisum“acidentedetrabalho”.NocontextodocasoAmarildo,

umaperguntafoirecorrentementecolocada:oqueelepodianosensinarsobreosanos

de chumbo? Ou, de forma inversa: o que as brutais violações de direitos humanos

daquelesanostêmavercomocasoAmarildo?

Uma respostaque temsidodadaéadeque têm tudoa ver.MarceloRubens

Paiva,filhodo“desaparecido”RubensPaiva,ementrevistaaojornalElPaís(03/04/14),

defrontou-secomapergunta:“Amorte,oudesaparecimentodepessoascomunscomo

Amarildoéumadasherançasdaditadura?”Elenãotitubeounaresposta:“É”.Noutro

registro, idêntica opinião pode ser encontrada nos meios acadêmicos, dos quais

destaco,atítulodeexemplo,umapublicaçãocoletivadealgunsanosatrássobre“oque

restadaditadura” (TeleseSafatle,2010). Umahipóteseperpassatodaacoletânea:a

ausênciadeumaautêntica“justiçadetransição”entrenós–jáqueostorturadoresque

1A técnica tornou-se familiar do grandepúblicobrasileiro atravésdo filmeTropade Elite, de2007. Paraalémdoenormesucessodebilheteriaquefoi,ofilmetornou-seumfenômenoculturalcomrebatimentospolíticos de grande significação no Brasil por causa da adesão entusiasmada do público aosmétodos doCapitãoNascimento,seuherói,queincluíamatorturaeoabatedemarginaisousimplessuspeitoscomumdescasoabsolutoporqualquervestígiodeum“estadodemocráticodedireito”quesupostamentesomos.

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fizeram o “trabalho sujo” na época do regimemilitar foram acobertados pela Lei de

Anistia – é responsável pela continuidade das práticas daquela época depois do

processoderedemocratização.Paraosorganizadoresdacoletânea,“aincapacidadede

reconhecer e julgar os crimes de Estado transforma-se emuma espécie de referência

inconsciente para ações criminosas perpetradas por nossa polícia, pelo aparato

judiciário,porsetoresdoEstado”(pp.10-11–itálicosmeus).

Esteartigoinvestenumahipótesedivergente.Consideroqueéhoradeassumir,

talvezcomumgrãodesaleoutrodeousadia,ahipótesedequeaversãoda“herança

maldita”repousamaisnaretóricadoquenaanálisecuidadosadosfatos;dequeocaso

Amarildo praticamente nada nos ensina sobre o regime militar, e que este e sua

ferocidade, na via inversa, não servem para iluminar o evento na Rocinha. Minha

hipóteseéadequeastorturas,asexecuçõeseosdesaparecimentosperpetradospelo

regimedosgeneraisnãoantecipamoqueaconteceunoRiodeJaneiroem14dejulho

do ano da graça de 2013, porque o que aí aconteceu acontecia antes e durante, e

continuouacontecendodepoisqueogeneralFigueiredosaiupelaportadosfundosdo

PaláciodoPlanaltoem1985.Comoveremos,jáhaviaferocidadebastantenasociedade

brasileira dos dourados anos 50 e começo dos anos 60 para, com ou sem ditadura

militar,produzirmáquinasmortíferasestataiscomoaROTAdeSãoPauloeoBOPEdo

Rio de Janeiro; semiestatais, como os esquadrões da morte; e civis como os

“justiceiros”. Seaditadura reforçouessa ferocidade, trata-se, evidentemente,deuma

hipótese razoável. Mas se a ditadura acabou há mais de trinta anos, por que essa

ferocidade lhe sobreviveu? Emminha opinião, porque lhe antecedeu e, indiferente à

redemocratizaçãodosanos1980,lhesobreviveu.

Trata-sedeumahipótese,é verdade, aexigir validaçãoum tantodifícil de ser

obtida–para falarno jargãopositivista.Masa tesecontrária,ada“herançamaldita”,

tambémnãoéfácildeservalidada.Elabeneficia-se,ameuver,deumaadesãoquase

espontânea, facilitada por nossa aversão ao regime dos generais. Ela é, além disso,

reconfortante.Afinal,seaviolênciapolicialbrasileiradeitaraízesnoregimede1964,a

democraciabrasileira,porquetantolutamos,nãoéresponsávelporela.Massedesdeo

inesquecívelanode1984–odas“Diretas,Já!”edaeleiçãodeTancredoNevesparaa

presidênciadarepública–vivemos,semsoluçãodecontinuidade,maisdetrintaanosde

democracia,jánãoseriatempo,seateseda“herançamaldita”fossecorreta,determos

dela nos livrado? Minha tese, sem dúvida, minimiza a possível influência que a

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impunidade dos torturadores do regime teve sobre a sequência da história. Mas, de

novo, enfatizo: a prática de torturar e de executar sumariamente (e eventualmente

fazerdesaparecer)delinquentes,noBrasil,antecededemuitooregimemilitar.

Resta, é claro, a questão de saber se, e em que medida, a impunidade dos

torturadoresdo regimealimentoue incrementouessaspráticas.Mas, comoquerque

seja, dificilmente alguémdiscordará da tese de que as violações de direitos humanos

duranteoregimemilitarseriam,parausarumaexpressãodamoda,um“pontoforada

curva”,porquesuaspráticasmaisodiosasjáeramamplamenteusadascontrabandidos

comunsoumerossuspeitosdasclassespopulares,o“pontofora”residindonofatode

que a classe média, inesperadamente, teria sentido na própria pele o que era

corriqueiro em relação aos seus concidadãos menos afortunados pelo dinheiro, pela

posição,pelasrelaçõessociais.Amarildo,aquelequetinhanomedebicampeãomundial

defutebol,nasceuem1966efoimortoem2013pelapolíciaencarregadadepacificara

favelaondemorava.Viveu,portanto,amaiorpartedasuavidarelativamentebrevesob

um regime democrático. É, no meu modo de ver, à democracia brasileira – uma

democraciaàbrasileira–quedevemosdirigirnossascobranças.Dito isso,é tempode

passarmosaalgunsfatosincômodos.

Énosamenosanos1950quecomeçaahistóriadofamosoEsquadrãodaMorte.

TalabominaçãosurgiunacidadedoRiodeJaneironaépocadaBossaNova,quando,na

Secretaria de Segurança Pública do então Distrito Federal (sendo presidente da

repúblicaosorridenteJK),secriouumgrupoconhecidocomo“homensdeouro”–uma

unidadedapoliciaencarregadadelimparacidadedosseusbandidos.Umvaliosorelato

dessahistóriaencontra-senolivroCidadePartida,deZuenirVentura,doqualmevalho

pararelembrá-la.Anossamemória“afetiva,proustiana” funcionademaneiraseletiva,

“emuita gente acredita que omelhor do Rio ocorreu por volta dos anos 50, osanos

dourados”, lembra o autor (Ventura, 1994, p. 17).Mas foi em 1958, ano da primeira

CopadoMundoganhapeloBrasiledarevoluçãomusicalpromovidaporJoãoGilberto

comolançamentodeChegadeSaudade,queosdiretoresdaAssociaçãoComercialdo

RiodeJaneiroprocuraramoentãochefedepolícia,generalAmauriKruel,pararesolver

oproblemadosassaltosalojas.Comoalardeavamosjornais,acidadeestava“infestada

de facínoras”.Osbandidosdeentãoeramconhecidospornomescomo“CoisaRuim”,

“PragadeMãe”,“Paraibinha”,“BuckJones”etc.Emresposta,ogeneralKruelanunciou

a adoção de “medidas drásticas”, e ordenou ao delegado Cecil Borer que criasse

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imediatamente uma “organização de combate aosmarginais, o Serviço de Diligências

Especiais(SDE),comcartabrancaparaaplicarastais ‘medidasdrásticas’”.Naépoca,o

chefedepolíciadoDistritoFederaltinhaopoderdeumquaseMinistrodaJustiça,pois

eranomeadodiretamentepelopresidentedaRepública.Comtaiscredenciais,“aordem

dogeneralKruelequivaliaa instituirnapráticaapenademorte,concedendoaosseus

subordinados o livre arbítrio para aplica-la”. Tanto mais que o delegado Cecil Borer,

nomeado para comandar o SDE, conhecia do riscado. Ele era um dos egressos da

truculenta Polícia Especial do Estado Novo, “terror de prisioneiros políticos” da era

varguista.

Articulandocorrupçãoeviolência[...],oSDEreuniuhomensviolentose decididos a exterminar os bandidos do Rio e adjacências. EssesHomens de Ouro ou Turma da Pesada, também conhecidos comoEsquadrões da Morte, subiriam morros, invadiriam barracos edesentocariam assaltantes, caçando-os como ratos. Limpariam acidade(idem,pp.34-35).

Passaram-seosanos,masnãooscostumes.Em1962,jácomacidadedoRiode

Janeiro – que perdeu o status deDistrito Federal com a transferência da capital para

Brasília – transformada em estado da Guanabara, ocorreu um caso do qualmuito se

falouàépoca:o“casoMineirinho”.QuemfoiMineirinho?Hojeemdiaéfacílimosaber.

Basta ir ao Google e digitar: “Mineirinho e Clarice Lispector”. Sim, Clarice Lispector!

Mineirinho foi, no começo dos anos 1960, um bandido carioca que virou o que, de

quandoemvez,aimprensaelevavaàcategoriade“inimigopúblicon°1”–e,portanto,

tornava-sealguémdestinadoaoabate.Foiabatido,em1962(istoé,doisanosantesde

1964...),comtrezetiros.Naocasião,ClariceLispectorescreveuumacrônicaimpactante,

daqualrealçooseguintetrecho,umairretocávelpequenaobra-prima:

Estaéalei.Masháalgumacoisaque,semefazouviroprimeiroeosegundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixaalerta,noquarto,desassossegada,oquintoeosextomecobremdevergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo dehorror, no nono e no décimominha boca está trêmula, no décimoprimeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundochamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina. [...] Essajustiçaquevelameusono,euarepudio,humilhadaporprecisardela.

OprimeirosentimentoconfessadoporClariceé“umalíviodesegurança”, logo

substituídoporum“alerta”aosomdoterceirotiro.Masnãosãotodasaspessoasque

chegamàlucidezdaescritoraapartirdoquartoestampido.Nocomeçodosanos1960,a

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maioriadosseusconcidadãos(comoocorreaindahoje)preferianãosecolocarquestões

sobre o modus operandi que pôs fim à carreira de Mineirinho. E a polícia carioca,

resolvidaalimparacidadesemprestarcontasaninguém,terminouprotagonizandoum

dosepisódiosmaischocantesdaquelesidos,ofamoso“casodoRiodaGuarda”.Carlos

LacerdaeraogovernadordaGuanabara,eocasoestárelatadoporelemesmoemsuas

memórias:

CertavezleionaÚltimaHoraquetinhaaparecidoboiandonoRiodaGuarda [...] o corpo de um sujeito amarrado com perfurações debalasnanucaenãoseimaisoquê,equeumoutrotinhasobrevividoeidoàdelegacia[...]econtadoqueapolíciaotinhalevadoparaláeatiradonorio(Lacerda,1978,p.226).

Chamado para dar explicações, seu Secretário de Segurança esclareceu tudo.

Como o Rio atraía muitos mendigos de outras cidades, de vez em quando “eles [a

polícia] dão uma limpeza assim na cidade e devolvem osmendigos para as terras de

origem.[...]Pagamapassagemdeônibuseo‘cara’vaiembora,masdepoisvolta.Efica

nesseeternonegócio” (idem,p. 227). Esclarecida ahistória, Lacerdadiz ter tomadoa

decisão de “abrir um inquérito sério”. Aparentemente, foi, pois é o próprio ex-

governadorqueconta:

E fomos bater no negócio, numa coisa trágica! Havia um serviçochamado Serviço de Recuperação de Mendigos, dirigido por umrapaz que tinha sido um modesto membro do gabinete [...] doJuscelino, que também, evidentemente, não tinha culpa nenhumanesse caso [...]. E ele começou participando daquela história demendigo pra cá, mendigo pra lá. Depois começou a fazer umpequeno“esquadrãodamorte”,ecomoutrosauxiliaresagarravamomendigo, iam para o Rio da Guarda; chegando lá, amarravam osujeito, davam um tiro nele, jogavam o corpo dentro d´água evinhamembora(idem,p.227).

Comosevê,jáhaviainiquidadebastantenasociedadebrasileiradaquelesanos

contranossosdesvalidos –bandidosounão– antesqueosmilitares empalmassemo

poderecomeçassemausarosmesmosmétodoscontraosinimigosdoregime.Pode-se

especularsetaisabjeçõesteriamsidosuprimidassenãotivessehavidoogolpemilitare

opaís,levandoadianteas“reformasdebase”dopresidenteGoulart,tivessesetornado

maisjusto.Pode-seigualmenteespecular–retomandoahipótesedabrutalidadepolicial

dopresentecomouma“herançamaldita”daditadura–seumaverdadeira“justiçade

transição”quetivessepunidoostorturadoresdoregimenãoterialevadoàaboliçãode

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taispráticas.Dandoasasàimaginação,pode-seatémesmoespecularsobreoqueteria

acontecidoseaesquerdarevolucionáriaquepegouemarmascontraoregimede1964

tivessevencidoeimplantadoosocialismonopaís...Pode-seespecularàvontade.Mas,

infelizmente,nãosepode fazeranálisehistóricacombasenoquenãoaconteceu–“a

vidainteiraquepodiatersidoequenãofoi”,comodiriaopoetaManuelBandeira.

E na vida que foi, naquele começo dos maravilhosos anos 60, a questão da

violênciapolicial comumnão faziapartedaspreocupaçõesda sociedadedeummodo

geral,muitomenosdaagendadesuasexpressõespolíticas,aíincluídaaesquerda.Sobre

isso, encontra-se no livro de memórias do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira uma

passagem bastante instrutiva a respeito do choque que sentiu quando, preso e

torturadoem1969,descobriuoinfernodasprisõesbrasileiras.Esepergunta:

Atéquepontonãofomoscúmplicesdisto,nósdaesquerda?Atéqueponto não somos simetricamente injustos para aqueles que nãopertencemaomercadodetrabalho,quenãosãotrabalhadoresreaisouempotencial?NuncanoscomovemosdefatocomoEsquadrãodaMorte–asmisériasetorturasquesepassavamnosporõesdapolíciacomum eram apenas injustiças que iam desaparecer com osocialismo.Marginalnãodávoto,marginalnãofazgreve.Aviolênciaa que era submetidoo preso comumnão foi discutida emdetalhe,nãofoianalisadaminuciosamente(Gabeira,1982,p.245).

Noutras palavras, o aparato de repressão ensaiado em 1964 e consolidado a

partirdedezembrode1968, comseu cortejodeprisõesarbitráriase clandestinas,de

torturadosedesaparecidos,nãofoiumainvençãoexnihilodoregimemilitar.Antesdele

tudo isso já existia, como continuou existindo depois dele. O “pau-de-arara”, um

métododetorturatãocaracterísticodos“anosdechumbo”apontodetersetornado

símbolodomovimentoTorturaNuncaMais,vemdemuitolonge.Deformarudimentar,

ele já era utilizado pelos senhores de escravos para imobilizá-los, como se pode ver

numa gravura de Debret, que andou por aqui na primeira metade do século XIX. O

escravoeracolocadonumaposiçãosemelhanteàdeumremadorinclinadoparafrente,

etinhaospulsosamarradosaostornozelos.Emseguida,passava-seumpauatravésda

concavidade formadapeloarqueamentodos cotovelose joelhos:oescravonãopodia

maissemexer.Então,comomostraacélebregravura,erachicoteado.

Mas,aí,poder-se-iadizer–retomandoafrasefamosacomqueManuelAntonio

deAlmeidaabreoseudeliciosoMemóriasdeumSargentodeMilícias–,“eranotempo

dorei”.Sim,eraaqueletempo.ComavindadaCorteparaoBrasil,oRiodeJaneiro,sua

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capital, deveria tornar-se uma cidade à altura do seu novo status. E criou-se uma

“guarda real” com poder de polícia para disciplinar uma cidade onde semisturavam,

comseuscostumespoucoapresentáveisaumacorteeuropéia,escravosenegroslivres.

AGuardatinhaseus“agentesimplacáveis”,entreelesMiguelNunesVidigal–ofamoso

MajorVidigal,personagemqueaparecenolivrodeManuelAntoniodeAlmeida.Como

escreve um historiador, “Vidigal tornou-se o terror dos vadios e ociosos, que podiam

encontrá-loaovirarumaesquinaànoiteouvê-loaparecerderepentenosbatuquesque

aconteciamcomfrequêncianosarredoresdacidade”.Econtinua:

Dessasreuniões,participavampessoascomuns,namaioriaescravos,que confraternizavam, bebiam cachaça e dançavam ao som demúsicas afro-brasileiras até tarde da noite. Sem ligar amínima aosprocedimentoslegais[...],Vidigaleseussoldados,escolhidosadedoem função do tamanho da truculência, batia em qualquerparticipante, vadio ou tratante que conseguissem capturar(Holloway,1997,pp.48-49).

Eranotempodorei,certo.Masaspráticasdessetemposobreviveramaosdois

reinadoseàsváriasrepúblicasquedesdeentãotivemos.VoltemosàgravuradeDebret.

Apolíciabrasileira,bemantesde1964,aperfeiçoouocastigoali retratado:umaveza

vítima imobilizada, ela era suspensa e o pau apoiado pelas extremidades em duas

mesas.Nessaposição,recebiachoqueselétricosatéque,comosediz,“desseoserviço”.

OmétodosobreviveuàLeideAnistiadogeneralFigueiredoem1979eàNovaRepública

de Tancredo Neves em 1984. No ano seguinte, em 10 de agosto de 1985, já sob a

presidênciado civil José Sarney, o Jornal doBrasil publicouuma foto chocante: numa

delegaciadepolíciadePortoAlegre,um jovemnegrode19anos,AntonioClovisLima

dosSantos,conhecidopor“Doge”,apareciapenduradonumpau-de-arara.“Doge”,gari

deprofissãoesuspeitodeterparticipadodeumassaltoaumcaminhãodebebidas,foi

arrancadodoseubarracoàs4horasdamanhãelevadoàdelegacia,ondefoitorturado

para confessar seu crime.Umahistóriabanal comomilharesdeoutrasnoBrasil. Seo

seucasosaiudarotinafoigraçasaessafotofeitaporumpolicial,contrárioaosmétodos

dosseuscolegas,numinstanteemqueessestinhamabandonadoasaladetortura.Essa

súbita notoriedade de “Doge” parece ter sido, aomesmo tempo, sua perdição: anos

depois, dezoito dias antes de depor num inquérito instaurado para apurar as

responsabilidades das torturas que lhe foram infligidas, “Doge” foi misteriosamente

assassinado(Veja,27.06.90).

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Convenhamos:oquedenovoocorreapartirde1964,mas, sobretudo,depois

de 1968 com o AI-5, é que a tortura passa a atingir segmentos da população

normalmenteprotegidospelasimunidadessociaisinerentesàsuacondição:estudantes,

jornalistas, políticos, advogados etc. Normalmente porque, também em períodos de

exceção anteriores a 1964, esses segmentos já haviam experimentado o tratamento

reservado aos seus concidadãos mais desprotegidos. Algo ao acaso (porque os

exemplos, para quem se disponha a procura-los, são muitos), relembro o que está

escrito no livro dememórias deMário Lago – radialista, ator e compositor brasileiro,

autor,entreoutrossucessos,daletradofamoso“Ai!quesaudadesdaAmélia”.Nascido

em1911,nossomemorialistaeraumjovemadolescentenocomeçodosanos1920,eo

Brasil vivia sob o estado de sítio vigente durante quase toda a presidência de Artur

Bernardes. Mário Lago morava num prédio em frente à Polícia Central, no Rio de

Janeiro, “chefiadapelo sinistro general Fontoura” (Lago, 2011, p. 96). Estudandobem

tardedanoitenoapartamentoondemorava,ojovemconta:“Derepentetiveaatenção

despertadaporgritose imprecaçõesvindosdeumasaladaPolícia,emfrenteà janela

onde eu me encontrava”. O que viu, “[lhe] ficou grudado nos olhos, resistindo à

superposiçãodemilhõesdeimagensqueavidafoifixandodepois”:

Um homem já de idade, mas ainda bastante forte, lutavadesesperadamentecontracincoouseispoliciais.Dorostonãohaviacomo se perceber muitos detalhes de fisionomia, pois erapraticamente todo uma pasta de sangue, levando a concluir que oespancamentojávinhadurandoalgumashoras.[...]Àproporçãoquea luta se tornavamais encarniçada, o grupo foi se aproximandodajanela. [...] E a certa altura [...] um dos policiais o empurrou comviolência,indoeleestatelar-senacalçadacomoumsaco(Lago,2011,pp.93-94).

O morto não era nenhum Zé-ninguém. Tratava-se de Conrado Niemeyer,

“conceituado engenheiro e arquiteto, pertencente a uma família de alto gabarito e

ferrenhoadversáriodeBernardes”.Nessacondição,“suamortenãopodiaficarnoora-

veja”.Instaura-seocompetenteinquérito.Aversãooficialparaasuamorte,oleitorjá

adivinhou: suicídio. Ele mesmo teria se atirado pela janela. No inquérito, entretanto,

peritosdemonstraramque,pelatrajetóriadocorpo,eleforaatirado.Mas,comolembra

o memorialista, a Polícia havia cometido o crime, e ela mesma conduzia as

investigações.Assim,“deutudoemáguadebarrela”(idem,p.96).

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Cerca de uma década depois, instala-se o regime de Vargas, e outra vez as

camadasmédiasemesmoaltasdasociedadebrasileira,aindaquedemaneirabastante

minoritáriaemrelaçãoaosopositoresdeorigemoperária,caemmomentaneamentena

categoria dos “torturáveis” – para usar uma expressão do escritor inglês Graham

Greene. A tortura volta a ser posta a serviço de um desígnio político relacionado

diretamente ao governo. Cria-se a Polícia Especial, chefiada por ummilitar que havia

participado da famosa Coluna Prestes, o tenente FilintoMüller. O regime de Vargas,

deve-sereconhecê-lo,bateuàesquerdaeàdireita.Àesquerdaprimeiro,porocasiãoda

insurreiçãopromovidapelaAliançaNacionalLibertadoraem1935,queficouconhecida

como Intentona Comunista. Uma vez a insurreição dominada, seguiu-se uma violenta

repressãocontracomunistasesimpatizantes.Trêsanosmaistarde,foiavezdadireita:

emmaiode 1938,militantes daAção Integralista Brasileira (AIB) ─ quehavia apoiado

Vargas,masquesesentiutraídaquandooditador,em1937,fechoutodosospartidos

políticos─ lançaramumaaçãoarmadacontraopaláciodoCatete,sededogoverno.A

tentativa de golpe foi rapidamente dominada e foi a vez de os militantes da AIB

conhecerem,elestambém,osmétodosdaPolíciaEspecialdeFilintoMüller.Essesfatos

estão relatados num livro hoje esquecido do jornalista David Nasser, muito

apropriadamente chamado Falta Alguém em Nuremberg. Estrela maior da extinta

revista O Cruzeiro, Nasser era um jornalista inescrupuloso, mas o seu relato é

convalidado por outras fontes. Entre elas, o monumentalMemórias do Cárcere, de

Graciliano Ramos, que, se não foi torturado, conheceu as prisões do Estado Novo e

colheu vários fatos como os narrados por Nasser. O “alguém” do título do livro do

jornalista,jáseadivinha,refere-seaopróprioFilintoMüller,oqual,aliás,passoudeuma

ditadura a outra sem maiores problemas: quando morreu, em 1970, num acidente

aéreonoaeroportodeOrly,naFrança,eraolíderdogovernoMédicinoSenado.Como

quechegamosaoregimemilitar.

É consensual que foi em São Paulo, com a famosa “Operação Bandeirante”

(OBAN),em1969,quearepressãopolíticase instituiunosmoldesqueviriamdepoisa

formar o modelo dos DOI-CODIS, espalhados pelo Brasil. Até então, a repressão

institucional aos inimigos do regime, mesmo se esporadicamente as forças armadas

tomavaminiciativasnessesentido,cabiaprecipuamenteàsdelegaciasdeordempolítica

e social existentes nos estados (DOPS), formada por policiais civis. E sabemos como,

desdesempre,eramosmétodosdetrabalhodapolíciacomumnoBrasil,notadamente

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asfamosasdelegaciasderoubosefurtos.“Quandoestourouogolpede1964,jáestava

em curso na polícia, e hámuito tempo, uma ‘cultura’ diferenciada sobre o trato com

homensque viviamàmargemda lei: a cultura dopau” – informaum conhecedor do

assunto, o jornalista Percival de Souza (2000, p. 29). Mesmo os “desaparecimentos”,

como aconteceu com a amásia de “Nego Sete”, não eram novidade: “Jogados em

qualquer ponto da cidade, os cadáveres engrossavam a lista dos crimes misteriosos.

Nascia assim, comprisioneiros comuns, a cultura dos desaparecidos” (idem, p. 30).O

resto,teriavindoporacréscimo:

Quandooschamadosatosdesubversãocomeçaram[...],oDOPSfoiapanhadode surpresa.Na instituição, ninguém sabia exatamenteoquefazer,porquenunca,apesardesualongaexistência,seviranadaigual.Osmilitarescomeçaramacobrarrespostas.FoiquandooDOPSpediureforçoàSecretariadaSegurança.AajudaveiodaDelegaciadeRouboscomtodooseuestilo,asuacultura,osseusmétodos(idem,p.33).

EranesseambientequepontificavamfigurascomoodelegadoFleury,aureolado

emnovembrode1969porterconseguido,comosmétodosqueseconhece,emboscare

matarCarlosMarighella,omaiorlíderdalutaarmadanoBrasil.Emalgummomentodo

começo dos anos 1970, quando a OBAN começava a se transformar em DOI-CODI, o

capitão Ênio da Silveira, um dos mais importantes quadros da repressão militar, fez

“uma espécie de ‘estágio’ na Divisão de Ordem Social do Dops, onde teve como

professor o Doutor Fleury, o símbolo do Esquadrão daMorte e da repressão política

daqueles tempos” (Godoy,2014,p.36).PoressaseoutrasPercivaldeSouza,biógrafo

deFleury,nãohesitanoseujulgamento:“Oknow-howdarepressãonosporõesfoicivil”

(Souza,p.33).

O juízo talvez precise ser matizado, particularmente no que diz respeito ao

aspectoexpertise da coisa. Sabe-se, afinal, que desde a revolução cubana de 1959 os

Estados Unidos, resolvidos a não deixar a experiência se repetir na América Latina,

investiram no treinamento de militares do continente para o exercício de tarefas

policiais de repressão aos grupos revolucionários, o que incluía cursos de contra

insurreição ministrados na “Escola das Américas” instalada na Zona do Canal do

Panamá,entãosobsua jurisdição,bemcomoemváriosendereçosmilitares instalados

no próprio território americano. Vários militares brasileiros (assim como argentinos,

chilenos, uruguaios etc.) que depois, nos “anos de chumbo”, iriam se destacar no

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combateàguerrarevolucionária–algunsinclusivecomotorturadores–foramalunosde

taiscursos.Masessenãofoiummovimentodemãoúnica.Semilitaresiamdaquipara

lá, de lá vinham “experts” ministrar seus conhecimentos in loco. Um relato dessa

históriaencontra-senolivrodojornalistaamericanoA.J.Langguth(1979),AFaceOculta

doTerror,que temcomo fio condutorahistóriadeDanMitrione,um ítalo-americano

queandouporaquientre1960e1967como instrutordeumProgramadeSegurança

Pública do governo americano que tinha como objetivo modernizar as polícias do

“mundo livre”, tornando-as capazes de enfrentar as ameaças de insurreição que

rondavamohemisfériodepoisdoexemplocubano.Em1969,Mitrionefoienviadopara

exercer seu ofício no Uruguai, onde foi sequestrado e finalmente executado pelos

tupamarosemagostodoanoseguinte.AexecuçãofezdeMitrioneumnomeconhecido

mundoafora.SobonomedePhilipSantore,elefoiapresentadoaograndepúblicoem

1973 através do filme de Costa-Gavras,Estado de Sítio, onde é interpretado por Yves

Montand.

O que faziam esses instrutores por aqui? Oficialmente, eles cumpriam um

programa de “modernização” das nossas polícias: cursos sobre o uso de gás

lacrimogêneo,omanejodecassetetesetc.;eintermediavamorecebimentodeveículos,

algemas,equipamentosdecomunicaçãoàdistânciaetc.Mastambémtestemunhosdão

conta de que, off the record, suas atividades não se limitavam ao que podia ser

publicado. Os equipamentos de comunicação, por exemplo, incluíam geradores que

podiam ser usados – e foram – na aplicação de choques elétricos em prisioneiros. É

verdadeque quandoMitrione deixa o Brasil, em1967, a tortura política ainda estava

longedeserlargamenteaplicadapelosnossosaparelhosderepressão,comovaiocorrer

depois. Segundo Langguth, os policiais que haviam trabalhado na época de Vargas

contavam como se “arrancavam informações” naquele tempo: “Suas técnicas,muitas

vezes brutais [...], geralmente envolviam o espancamento até que o preso estivesse

quasemorto,pontoemqueou falavaoumorria”.Nessecontexto,“alguns instrutores

argumentavamqueeramaishumanitárioaplicardor intensa,masnãomortal,doque

espancar indiscriminadamente”.Mitrione era um desses instrutores, e um policial da

“velha guarda” conta que ele, ao ouvir uma dessas histórias, “observou que um

prisioneiromortonãopodiaprestarmuita informação” (Langguth,p.123).Quandofoi

destacado para oUruguai, a tortura já tinha se incorporado aos usos e costumes das

forças de segurança locais encarregadas da repressão aos tupamaros, mas ele teria

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contribuído para “modernizar” os métodos: “quando o equipamento de tortura se

tornou mais sofisticado”, um dos informantes do jornalista americano “creditou a

mudançaaoinstrutordepolíciadosEstadosUnidos”(idem,p.223).

Mas tem mais. Se já dispomos há bastante tempo de informações bem

assentadassobreaatuaçãodessesexpertsamericanosentrenós,deunstemposparacá

nãopodemosdesconheceropapelquetambémtiveramspécialistes francesessobreo

assunto.Paranãomealongar,remetoaotrabalhodeJoãoRobertoMartinsFilhosobre

a influência da “doutrina francesa” da guerre révolutionnaire sobre os militares

brasileirosbemantesde1964,umavezquefoiintroduzidanaESGjáem1959(Martins

Filho,2009).GestadanocontextodasguerrasanticolonialistasmovidaspelaIndochinae

pela Argélia contra a França nos anos 1950, a “doutrina francesa” assume que numa

guerradessetipo,ondeasforçasregularestêmdecombaterinimigosnãoidentificados

porumuniforme,escondidosnomeiodapopulaçãoepraticandooterrorismo,háque

se usar, para combatê-los, métodos propriamente policiais. Entre eles, o que os

franceseschamameufemisticamentede interrogatoiremusclé–oque,numatradução

literal, seria “interrogatóriomusculoso”,mas que, o leitor já percebeu, quer dizer de

fatotortura.Maisrecentemente,a jornalistaLeneideDuarte-Plonapresentouao leitor

brasileiroogeneralPaulAussaresses,um“especialista”francêsquenocomeçodosanos

1960 foi instrutor de militares latino-americanos nas escolas de contra insurreição

sediadasnosEstadosUnidosemaistarde,entre1973e1975,foiadidomilitardaFrança

noBrasil,ondecontinuouministrandoseuscursos(Duarte-Plon,2016).

Essebrevedesvioa respeitodeumexpert americanoeum spécialiste francês

agindonoConeSulobjetivaretomarahipóteseenunciadamaisatrásdo“pontoforada

curva”.Achoqueaingerênciadeestrangeirosnanossa“guerrasuja”areforça.Figuras

turvascomoDanMitrioneouPaulAussaressesnão introduziramatorturaentrenós–

longe disso! –,mas, sem dúvida, tiveram um papel não desprezível na organização e

sofisticaçãode suaprática nos “anosde chumbo”.O “espancamento atéqueopreso

estivessequasemorto”,típicodosvelhostempos,certamentenãodesapareceu;masas

instalações adredemente preparadas para a aplicação da tortura, com sua sinistra

parafernáliademáquinasdedarchoqueseinfligiroutrostiposdesofrimento,alémda

assistênciademédicosparadizeratéondeo torturadopodeaguentar sofrer,nãosão

certamente de todos os tempos. Tudo isso exige uma organização de estado e um

desembaraço garantido por uma férrea censura, o que só é possível em tempos de

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exceção.Coma“normalidade”democrática,a tortura refluiparaos locaisdeondena

verdadenuncasumiu:asrepartiçõespoliciaisecarceráriascomuns,ondecontinuamem

vigormétodosmaisimprovisados.

Num livro recente, fruto de uma tese de doutorado em sociologia na

Universidade de Salamanca, Marcelo Barros, delegado de polícia em Pernambuco,

discorre sobre a tortura na polícia brasileira como uma prática de todos os tempos.

Barrosusaumaexpressãoparasereferiraoscolegasquepraticamoutoleramatortura:

“acaixadasmaçãspodres”.ElasestãoemPernambuco,porondeapesquisacomeçou,

masestãotambémemAlagoas,naParaíba,naBahia,noAmazonas,emMinasGerais,

em São Paulo, no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul, para onde a pesquisa se

expandiu. Ou seja: a “caixa” é na verdade um “pomar” do tamanho do Brasil! A

pergunta inicial é aquela já tantas vezes feita: como, “vinte e cinco anos depois da

ConstituiçãoFederalde1988”,emesmosendo“punidadeformabastanteseveraemlei

penal especial”, a tortura continua “sendo uma prática clandestina nas corporações

policiais?”(Barros,2015,p.15).Arespostadoautorvaialémdaquelamaisevidentee

aoalcancedequalquerum:justamenteporquenãoépunida.Ariquezadoseutrabalho

consisteem iralémdoquetodomundosabeeanalisar taispráticas:ascondiçõesem

quesãoexercidas;que“cumplicidades”seestabelecementreosque“metemamãona

massa” e aqueles outros, numerosos, que preferem não saber o que se passa nos

porões de suas jurisdições; os que, ouvindo gritos, preferem passar sem parar; ou,

surpreendendo um preso com um saco plástico enfiado na cabeça, virar o rosto.

Marcelo Barros esmiúça tudo isso num livro que, doravante, não pode deixar de ser

consideradoporquemquerque,noBrasil,sedebrucesobreoassunto.Afinal,eleéum

insider...

Alémdisso,Barrostocanumaquestãoque,deummodogeral,preferimosnão

olhar de frente: “a enorme anuência da sociedade” brasileira a tais práticas (idem, p.

20).Paraoautor,“atorturaqueocorrehojenasdelegaciasnãoadvémdeperíodosde

exceção, ao contrário, os períodos de exceção se apropriam e superdimensionam as

práticas policiais cotidianas”. É a hipótese do “ponto fora da curva” de que falava.

Noutros termos, “o padrão da prática da tortura utilizada hojemais se assemelha às

práticasanterioresàsditaduras”(idem,p.50).Cedo-lheapalavra:

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Quanto ao modo de praticar, não há novidades. Os policiaiscostumam utilizar qualquer meio capaz de causar sofrimento, sepossível, sem deixar marcas, demonstrando preferência porespancamentoeutilizaçãodesacosplásticos,desupermercado,parasufocamento(idem,p.155).

Estamos falando de hoje. Mas voltemos no tempo – aquele em que os

revolucionários que pegaram em armas contra o regime, de que Fernando Gabeira é

talvez omelhor exemplo, descobriram toda a dimensão da violência praticada desde

sempre contra presos comuns. Essa geração de esquerdistas torturados descobriu a

questãodosdireitoshumanosnoBrasileatransformounumapalavradeordem.Como

fim da ditadura, experimentaram um transbordante otimismo. Os primeiros anos da

décadade 1980 assistirama uma verdadeira proliferaçãode grupos de defesa desses

direitos,destafeita,entretanto,voltadosparaaclassedos“torturáveis”.Considerando-

se o prestígio acumuladona luta contra o regimemilitar, seria de se esperar idêntica

fortuna daí para a frente. Mas foi o contrário que aconteceu. A tortura e o abate

sumáriodedelinquentes– reaisounão–domeiopopular continuaramatravessando

galhardamentenossahistória,independentementedoregimepolíticovigente.Vamosa

algunsnúmeros.

Nocomeçodosanos1990o jornalistaCacoBarcellospublicouo livroRota66,

comumsubtítulobemapropriado: “AHistóriadaPolíciaqueMata” (Barcellos, 1992).

Ele se referia àROTA–RondasOstensivas “Tobias deAguiar” –, esquadrãodapolícia

paulista que nessa época executava bandidos ou simples suspeitos praticamente às

escâncaras.Segundoseuscálculos,aPolíciaMilitardeSãoPaulo,entreabrilde1970e

meados de 1992, foi responsável pelamorte demais de 4.000 pessoas. A corriqueira

afirmaçãodequeasmortesdecorriamdetirostrocadosentreasduaspartesrevelava-

se uma fantasia a partir da constatação de que não há registro na história dos

confrontosarmadoscomumadesproporçãotãograndeentreasbaixasdecadaumdos

lados: 97 civis mortos para cada policial morto. Dando um salto de vinte anos,

pesquisadores do Rio de Janeiro lançaram um livro (Misse et alii, 2013) que parece

repercutir o subtítulo do livro de Caco Barcellos:Quando a PolíciaMata. O subtítulo

explica:“Homicídiospor‘autosderesistência’noRiodeJaneiro(2001-2011)”.Sãomais

dedezmilmortos.Comparandoosdadosdeumedeoutro,verifica-seumaprogressão

assustadora:noprimeirocaso,oestudoabrangemaisdevinteanos;nosegundo,dez.

Lá,osmortossãomaisdequatromil;aqui,maisdedez.Ouseja:enquantootempofoi

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dividido por dois, osmortos forammultiplicados igualmente por dois! Dir-se-ia que a

violêncialetaldapoliciapiorou.Masoproblemaéquenãofoisóela...

Por uma infeliz coincidência, a partir dos anos 1980 – justamente quando o

problema dos direitos humanos emergiu entre nós – a criminalidade urbana violenta,

aquelaquefazaspessoasteremmedo,cresceuassustadoramentenoBrasil.Foiquando

adefesadessesdireitoscomeçouaserhostilizada.Osmilitantesquesaíamemdefesa

dosqueeramtorturadosemortospelapolíciacostumavamser interpeladoscomuma

pergunta capciosa e incômoda: “E os direitos humanos das vítimas?” A pergunta

continuasendotãoinsistentementeouvidaquenãoéexageradodizerqueestamosem

presença de uma verdadeira campanha, renovada cotidianamente pelo rádio e pela

televisão nos assim chamados “programas policiais”, de grande prestígio e audiência

entre o público. Daí o grande complicador com que se defrontam os militantes dos

direitos humanos no Brasil: a oposição estado-torturador versus sociedade civil-

torturada,tãoclaranosanos1970,foisubstituídaporumarelaçãobemmaiscomplexa

eambígua,poiselavariadarevoltaexplícitacontramassacrescomoodeVigárioGeral,

em1993 (21mortos), ao apoio tácito à chacinadoCarandiru, em1992 (111mortos).

Apanhada no fogo cruzado entre a violência da polícia e dos marginais, a população

tantoé capazdeprotestarquandoasvítimas sãohonestospaisde família,quantode

aplaudirquandoosmortossãobandidos–reaisousupostos.

Aqui entra a hipótese adjacente de que a persistência dessas práticas de

violações de direitos humanos no Brasil resulta da infeliz confluência de uma

mentalidade escravocrata (dentro da qual os “inferiores” são naturalmente

“torturáveis”) com o fenômeno da “criminalidade urbana violenta” que explodiu nos

anos1980, justamentequandoopaísseredemocratizava.É importanterecuperar isso

porque,nobojodoprocessoderedemocratizaçãodeentão,houveiniciativasderomper

a mentalidade vigente na política de segurança pública – que, como se sabe, é de

competência dos estados. É interessante e didático relembrar o que ocorreu, por

exemplo,emSãoPaulo,nasequênciadaprimeiraeleiçãodiretaparagovernadordesde

ogolpe,ade1982.

Como se sabe, com a “abertura” levada a cabo aos trancos e barrancos pelo

presidente Figueiredo, os governadores dos estados voltaram a ser eleitos pelo voto

direto.EmSãoPaulo,oeleitofoiFrancoMontoro,umliberalmoderado,mashistórico

combatente pelo retorno do país ao estado de direito. Nessa conjuntura, o novo

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governadoranuncioualgumasmedidasquesinalizavamumarupturacomatradiçãode

violaçãosistemáticadosdireitoshumanospelosaparelhosderepressão.Paraatacaro

problema da violência nas prisões, Montoro tomou uma atitude corajosa: nomeou o

advogado José Carlos Dias para ocupar a Secretaria de Justiça. Antigo defensor de

prisioneiros políticos, Dias anunciou abertamente que iria aplicar uma política de

direitos humanos na sua gestão. Os ataques não se fizeram esperar. Eles vinham da

imprensasensacionalista,dos“programaspoliciais”,mas tambémdemembrosdoseu

próprio partido, o PMDB. A sua política era acusada de defender os criminosos e

incentivarrebeliõesnasprisões.Àmedidaqueonúmerodecrimesnacidadesubianas

estatísticas,ogrito“SegurançaJá!”tornava-seosloganpreferidodoprincipaladversário

de Montoro, o impagável Paulo Maluf. Aos poucos, a posição de Dias tornou-se

insustentável. Nessas circunstâncias, o mais surpreendente é que tenha conseguido

manter-se no cargo por mais de três anos. Em junho de 1986, entretanto, com a

proximidade das novas eleições, sua hora soou. O candidato do próprio Montoro à

sucessão estadual, Orestes Quércia, começou a falar a mesma linguagem dos

adversários do governador. Nesse momento, Dias renunciou. A reação do eleitorado

parecetersidopositiva:Quérciaganhouaseleições.

EnoRiode Janeiro, ondepadeceuAmarildo?Tambémem1982 foi eleitoum

dos arqui-inimigos do regime: Leonel Brizola. Todos ainda se lembramda gritaria que

houve quando o novo governador anunciou que a sua polícia não iria mais adotar a

política do “pé na porta” no barraco de favelados para prender bandidos. Depois de

Brizola, veio Marcello Alencar. Ele, que nos “anos de chumbo” tinha sido um dos

corajosos defensores de presos políticos, nomeou para seu secretário de segurança

ninguémmenosqueocoronelNiltonCerqueira,queocupouocargoentre1995e1998.

Cerqueira foi o comandante da operação que executou Carlos Lamarca no sertão da

Bahiaem1971.Em1995,quasevinteecincoanosdepois, foichamadoporumantigo

defensor dos direitos humanos para se ocupar da política de segurança do estado de

que era governador. Condizente com sua vocação guerreira, Cerqueira instituiu na

corporação policial uma gratificação para agentes que tivessem praticado “atos de

bravura”.Oresultadoédetodosconhecido:taisatos,namaioriadasvezes,referiam-se

aaçõesqueresultavamnamortedecriminosos–reaisoususpeitos.Acoisa ficoutão

escancaradaqueosaumentossalariaisficaramconhecidoscomo“gratificaçãofaroeste”

(Misseetalii,p.16).

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Com isso introduzo eu mesmo um matiz na hipótese inicial – estabelecida a

guisadehipótesedetrabalho–dequeoscasosRubensPaivaeAmarildonadatêmaver

umcomooutro.Bempensadasascoisas,asviolaçõesdedireitoshumanosemtempos

de exceção e em tempos ordinários não são realidades estanques. Mesmo se no

contextoenasmotivaçõeselassãodiversas,issonãosignificadizerquenãosecruzaram

emváriosmomentos,ouquenãoprestaramserviçoumaàoutra.Háváriosexemplos

disso. Um deles: em retribuição aos serviços que o delegado Fleury lhe prestava, o

regime militar editou em 1973 uma lei permitindo que réus primários e com bons

antecedentes (por mais surrealista que pareça, era “tecnicamente” o caso dele!)

respondessemaprocessospenaisemliberdadeatéojulgamentofinal. Issoo livrouda

cadeia,paraonde,pela leiantiga, seria fatalmentedespachadopor ter sidoenviadoa

júri no processo movido por Hélio Bicudo contra o Esquadrão da Morte. A lei ficou

conhecidacomo“LeiFleury”econtinuaemvigor.2Masoexemplonãoéúnico.Chega

mesmoaserlógicoquetenhahavidooutroscruzamentospromíscuosentrearepressão

policial comum e a repressão política promovida pelo regime. Afinal, as duas coisas

eramcontemporâneaseconviviammuitobem.Éperfeitamentedefensávelahipótese

dequeasegundatenhaestimuladoereforçadoaprimeira.Numaquadrahistóricaem

que a classe média (e mesmo alta) brasileira tinha caído no rol dos “torturáveis”,

certamenteosresponsáveispelarepressãopolicial“normal”sentiram-semaisàvontade

paradarvazãoàopiniãotãonossaconhecidadeque“bandidobomébandidomorto”.

Convémtambémnãoesquecerquemaisdeumavezmilitaresforamchamados

pelopodercivilparaseocupardasegurançapúblicaemrelaçãoàcriminalidadecomum,

comoogeneralAmauryKruelporJuscelinoKubitschekeocoronelNíltonCerqueirapelo

governador Marcello Alencar, da mesma maneira que também militares foram

deslocadosparaasrepartiçõespoliciaisquandosetratoudereprimirinimigospolíticos,

como o general Fontoura no estádio de sítio de Artur Bernardes e o tenente Filinto

MüllernaditaduradeGetúlioVargas.EumpersonagemcomoodelegadoCecilBorer,

queaterrorizoupresospolíticosduranteaditaduradeVargas,continuouaterrorizando

presoscomunsnoperíododemocráticodeJuscelinoKubitschek.Comosevê,emmuitas

ocasiõesosatores sãoosmesmos.Mas se,de fato, apassagemdocoronelCerqueira

pela secretaria de segurança do Rio de Janeiro foi parte da “herança maldita”,

2Considerada–inclusivepormimmesmo–comoumavançoemrelaçãoàlegislaçãoanterior,elamostraqueoDiabo,comosedizdeDeus,tambémpodeescrevercertoporlinhastortas...

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convenhamos que foi um legado aceito de bom grado por um governador civil eleito

pelopovoecomumhistóricodelutacontraasviolaçõesdedireitoshumanosnaépoca

doregimemilitar.Francamente,queresponsabilidadetêmnessanomeaçãoosgenerais

queemdezembrode1968tiraramafocinheiradosseustorturadores?

***

Masnãoqueroconcluirdemodopessimista.Porumdeverdejustiça–alémdo

deverdahonestidadeintelectual–,devolembrarqueostempos,pelosdiasquecorrem,

já não são os mesmos. Os que mataram Amarildo em 2013 foram presos e estão à

disposiçãodajustiça.Seráquenãohá,apesardeaberraçõescomooseucaso,alguma

diferençaentreapolíciadasUPPseos “homensdeouro”quematavamdelinquentes

como Mineirinho e tantos outros nos anos 1950 e 1960, e eram publicamente

enaltecidos por seus superiores? Tudo isso na indiferença doMinistério Público e do

Judiciáriobrasileiros?

ReferênciasbibliográficasBARCELLOS,Caco.Rota66─Ahistóriadapolíciaquemata.SãoPaulo:Globo,1992.BARROS,Marcelo.PolíciaeTorturanoBrasil.Curitiba:EditoraAppris,2015.DUARTE-PLON, Leneide. A Tortura como Arma de Guerra. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,2016.GABEIRA,Fernando.Oqueéisso,companheiro?RiodeJaneiro:NovaFronteira,1982.GODOY,Marcelo.ACasadaVovó.SãoPaulo:Alameda,2014.HOLLOWAY,ThomasH.PolícianoRiodeJaneiro:repressãoeresistêncianumacidadedoséculoXIX.RiodeJaneiro:EditoraFGV,1997.LACERDA,Carlos.Depoimento.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1978.LAGO,Mário.NaRolançadoTempo.RiodeJaneiro:JoséOlympio,2011.

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LANGGUTH,A.J.AFaceOcultadoTerror.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,1979.MARTINSFILHO,JoãoRoberto.“Torturaeideologia:osmilitaresbrasileiroseadoutrinada guerre révolutionnaire (1959-1974).” In: Cecília MacDowell Santos, Edson Teles eJanaínadeAlmeidaTeles(orgs.).DesarquivandoaDitadura–Vol.I.SãoPaulo:Aderaldo&Rothschild,2009.MISSE,Micheletalii.QuandoaPolíciaMata.RiodeJaneiro:NECVU;BOOKLINK,2013.SOUZA,Percivalde.AutópsiadoMedo.SãoPaulo:Globo,2000.VENTURA,Zuenir.CidadePartida.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1994.

SobreoautorLucianoOliveiraLuciano Oliveira é mestre em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco eDoutor também sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Éprofessor aposentado da Faculdade de Direito do Recife e atualmente professor naUniversidadeCatólicadePernambuco.Publicou,entreoutros,umManualdeSociologiaJurídica(Vozes)eOAquárioeoSamurai:umaleituradeMichelFoucault(LumenJuris).Email:[email protected]éoúnicoresponsávelpelaredaçãodoartigo.