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707 DE MAGOS À REIS: AS TRANSFORMAÇÕES DAS REPRESENTAÇÕES DA ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS Jacqueline Rodrigues Antonio RESUMO A minha pesquisa baseia-se em analisar as representações da passagem bíblica de Mateus 2, 1-12, no período da Baixa Idade Média, focando nas personagens dos Magos. Para este estudo foi necessário compreender os Magos como reis, em especial, nas imagens e textos produzidos nos séculos XIII e XIV, período que denota o fortalecimento do poder monárquico. Para tanto utilizei as pinturas do florentino Giotto di Bondone (1267-1337), que retratou os Magos como Reis e Santos. Há também duas referências na literatura medieval, que são: o Livro dos Magos de João de Hildesheim (?- 1375) e a Legenda Aurea de Jacopo de Varazze (1230-1290). A transformação dos Magos foi artística, social e política, uma vez que essa mudança, ora acompanhava o ritmo da sociedade do baixo medievo, ora a influenciava. Na dinastia Otoniana (919-1024) é visualizada a emergência de exaltar a representação política sobre o um modelo teológico. A adoração, que eram dos Magos começa a ser retratada, nas imagens e na literatura, como dos Reis Magos. Por essa associação dos Magos com os reis bárbaros, posteriormente cristianizados, se constitui em mais um elemento para a construção do poder divino dos reis. Palavras chave: Sociedade Medieval. Arte e literatura. Representação.

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707

DE MAGOS À REIS: AS TRANSFORMAÇÕES DAS REPRESENTAÇÕES DA ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS

Jacqueline Rodrigues Antonio

RESUMO A minha pesquisa baseia-se em analisar as representações da passagem bíblica de Mateus 2, 1-12, no período da Baixa Idade Média, focando nas personagens dos Magos. Para este estudo foi necessário compreender os Magos como reis, em especial, nas imagens e textos produzidos nos séculos XIII e XIV, período que denota o fortalecimento do poder monárquico. Para tanto utilizei as pinturas do florentino Giotto di Bondone (1267-1337), que retratou os Magos como Reis e Santos. Há também duas referências na literatura medieval, que são: o Livro dos Magos de João de Hildesheim (?-1375) e a Legenda Aurea de Jacopo de Varazze (1230-1290). A transformação dos Magos foi artística, social e política, uma vez que essa mudança, ora acompanhava o ritmo da sociedade do baixo medievo, ora a influenciava. Na dinastia Otoniana (919-1024) é visualizada a emergência de exaltar a representação política sobre o um modelo teológico. A adoração, que eram dos Magos começa a ser retratada, nas imagens e na literatura, como dos Reis Magos. Por essa associação dos Magos com os reis bárbaros, posteriormente cristianizados, se constitui em mais um elemento para a construção do poder divino dos reis.

Palavras chave: Sociedade Medieval. Arte e literatura. Representação.

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INTRODUÇÃO

Algumas personalidades ao longo da história tiveram diversas

versões, pois suas memórias foram se modificando com o tempo. Isso

aconteceu com os Magos, que a principio, na história do cristianismo eram

vistos apenas como estrangeiros que foram adorar a Jesus Menino, seguindo a

tradição canônica do Evangelho de Mateus e de alguns apócrifos, como o

Protoevangelho de Santiago, Evangelho do Pseudo Mateus e Evangelho Árabe

da Infância. Posteriormente percebe que de simples Magos, passaram a ser

Reis Magos, e com a transladação das supostas relíquias destes homens para

a Catedral de Colônia, ficaram conhecidos como santos. Essas mudanças

estilísticas acompanha a mudança de mentalidade da sociedade medieval,

sendo necessário para a análise um estudo interdisciplinar.

Argan (2003) nos apresenta o seguinte a respeito das imagens

das adorações dos Magos no baixo medievo:

Os temas das obras de arte jamais são escolhidos sem um motivo. Em uma sociedade de grandes banqueiros, a Adoração dos Reis Magos alude à homenagem dos poderosos da Terra ao Deus nascido na pobreza, mas também ao favor de Deus para quem, dotado de tantos bens, emprega-os para santos fins. (2003, p. 143)

Dessa maneira, esta citação mostra que o progressivo uso da

cena da adoração dos Reis Magos denota que a sociedade medieval tem uma

clara intenção de se equipar a tais personagens.

A TEOLOGIA E OS MAGOS

Sobre o surgimento da história dos Magos, é necessário

investigar pela teologia. Dessa forma os Magos representam os gentios que

aderem à fé a Cristo mesmo sem saber sobre as profecias que predizem a

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vinda do Messias. Estes gentios aderem a fé cristã após a ressurreição de

Jesus, pois, todos os escritos sobre o Messias foram produzidos

posteriormente à sua Paixão. A contraposição aos Magos, na literatura cristã, é

Herodes, que mesmo conhecendo as Escrituras e as profecias sobre o

Messias, trama contra a vida do Cristo, enquanto os Magos que não tiveram

esse conhecimento prestaram homenagens ao rei dos judeus. Em outras

palavras, os Magos representam o mundo que vem adorar o Filho de Deus

(BROWN, 2005).

O Evangelho de Mateus foi escrito provavelmente entre os

anos de 80 e 90 da era cristã, sendo o segundo evangelho canônico1 a ser

escrito. O texto desse Evangelho é de uma comunidade de judeus que se

tornaram cristãos e o trecho dos magos em Mateus, vem mostrar o

universalismo da mensagem cristã. Este evangelista é o único, dentre os

demais evangelistas canônicos, que tem no seu corpo textual a narração

acerca dos Magos:

Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém, perguntando: “Onde está o rei dos judeus recém-nascido? Com efeito, vimos sua estrela no seu surgir e viemos homenageá-lo”. Ouvindo isso, o rei Herodes ficou alarmado e com ele toda Jerusalém. E, convocando todos os chefes dos sacerdotes e os escribas do povo, procurou saber deles onde havia de nascer o Cristo. Eles responderam: “Em Belém da Judéia, pois é isto que foi escrito pelo profeta: E tu Belém, terra de Judá, de modo algum és menor entre os clãs de Judá, pois de ti sairá um chefe que apascentará Israel, o meu povo”. Então Herodes mandou chamar secretamente os magos e procurou certificar-se com eles a respeito do tempo em que a estrela tinha

1 Os livros para serem considerados canônicos, ou seja, oficiais passavam por alguns fatores para a sua

conservação e aceitação, dentre eles, terem a origem apostólica, real ou putativa; a importância das

comunidades cristãs destinatárias; conformidade com a regra de fé e guiado pelo Espírito (BROWN,

2004). O primeiro evangelho canônico é o de Marcos, escrito entre os anos 60 e 70 d.C.

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aparecido. E, enviando-os a Belém, disse-lhes: “Ide e procurai obter informações exatas a respeito do menino e, ao encontrá-lo, avisai-me, para que também eu vá homenageá-lo”. A essas palavras do rei, eles partiram. E eis que a estrela que eles tinham visto no céu surgir ia a frente deles até que parou sobre o lugar onde se encontrava o menino. Eles, revendo a estrela, alegraram-se imensamente. Ao entrar na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o homenagearam. Em seguida, abriram seus cofres e ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra. Avisados em sonho que não voltassem a Herodes, regressaram por outro caminho para a sua região. (Mateus 2, 1-12)

Nesta narração contem o cerne da participação dos Magos na

história do cristianismo, que começa com eles seguindo uma estrela e

perguntando ao rei Herodes onde nasceu o rei dos judeus. Tem também dados

sobre a origem dos mesmos, quando cita que vieram do Oriente e sobre os

presentes por eles trazidos, que são ouro, incenso e mirra. A participação

encerra quando são avisados em sonho para não retornar a Herodes e voltam

para a sua região por outro caminho.

Em textos apócrifos2 também há narrações sobre os Magos. O

Protoevangelho de Santiago, o Evangelho Árabe da Infância e o Evangelho do

Pseudo Mateus, são exemplos dessas narrativas.

O Protoevangelho de Santiago foi escrito provavelmente entre

o século II e o século V, sendo mais utilizado pelas igrejas gregas e também

por artistas gregos e bizantinos (CARTER, 2003):

2 Vemos que na teologia católica, apócrifos são os textos não-canônicos, é “aquilo que está oculto, pois a

maioria desses livros era usada por pessoas e comunidades de forma escondida”. Na teologia evangélica

são chamados de “pseudepígrafos”, “falsos escritos atribuídos a pessoa de notável autoridade na tradição.

[Mas,] entre os evangélicos, o termo “apócrifo” começa a ser utilizado para designar também todos os

livros que não entraram na Bíblia canônica.” (FARIA, 2009: 29-30) Ou seja, os sete livros (Tobias,

Judite, I e II Macabeus, Baruc, Sabedoria e Eclesiástico) que estão na Bíblia católica e não se encontra na

Bíblia Evangélica ou Protestante. Para este trabalho será utilizado apócrifo no primeiro sentido acima

citado.

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Dispunha-se já José a voltar para a Judéia quando se produziu um grande tumulto em Belém da Judéia, uns magos chegaram dizendo: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Porque vimos uma estrela no Oriente e viemos adorá-lo.” E Herodes, ao ouvir isso, inquietou-se e enviou seus escravos aos magos; e fez vir os príncipes e os sacerdotes e lhes perguntou: “Que é o está escrito à respeito de Cristo? Aonde tem que nascer?” Eles responderam: “Em Belém da Judéia, pois assim está escrito.” E Herodes os fez sair. Então fez chamar os magos e lhes perguntou: “que sinal viste sobre o nascimento desse novo rei?” E os magos responderam: “Vimos uma estrela muito brilhante, e de um resplendor tão grande que empana o brilho do resto dos outras estrelas, deixando-as visíveis. E assim ficamos sabendo que um rei de Israel tinha nascido e viemos adorá-lo.” E Herodes lhes disse: “Ide e o trazei, e se o encontrais fazei-me saber para eu também possa adorá-lo.” E os magos se foram. E a estrela, que tinham visto no Oriente, precedeu-os até que chegaram na gruta, e a estrela pairou acima da gruta. E os magos viram o menino com a sua mãe Maria e tiraram os seus presentes, ouro, incenso e mirra. E prevenidos pelo anjo de que não entrassem na Judéia, voltaram, ao seu país por outro caminho. (Protoevangelho de Santiago XXI, 1-4 apud CARTER, 2003, p. 22)

Nota-se que, em comparação com o texto mateano, há muitas

semelhanças. O seu início procede da mesma maneira, com os Magos

chegando e perguntando pelo rei dos judeus. Têm os mesmos dados, sem

novidades sobre tais e do mesmo modo termina com os Magos partirem por

outro caminho.

Já o Evangelho Árabe da Infância não tem sua datação

precisa, e originou-se através dos apócrifos Protoevangelho de Santiago e

Evangelho de Tomás, este último datado do século II. Esta narração segue de

tal modo:

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E aconteceu que, tendo nascido o Senhor Jesus em Belém da Judéia, durante o reinado de Herodes, vieram a Jerusalém uns magos conforme a predição do Zaratrusta. E trouxeram como presente ouro, incenso e mirra. E o adoraram e ofereciam seus bens. Então Maria pegou um daqueles panos e entregou como recompensa. Eles se sentiram muito honrados em aceitá-lo de suas mãos. Na mesma hora, apareceu um anjo que tinha a mesma forma daquela estrela que havia lhes servido de guia no caminho. E seguindo o rastro de luz, partiram dali até chegar a sua pátria. E saíram ao encontro de Reis e príncipes, perguntando que era o que tinham visto ou feito, como tinham efetuado a ida e a volta e que tinham trazido consigo. Eles mostraram o pano que lhes havia dado Maria, pelo que celebraram uma festa e, conforme o costume, acenderam fogo e o adoraram. Depois jogaram o pano sobre a fogueira e no mesmo instante foi arrebatado pelo fogo, como se este não tivesse sido tocado pelo fogo. Pelo que começaram a beijá-lo e a colocá-lo sobre suas cabeças, dizendo: “Esta sim que é uma verdade sem sombra de dúvida. Certamente é fabuloso que o fogo não tenha podido devorá-lo ou destruí-lo.” Pelo que tomaram aquela prenda e com grandes honras a depositaram entre seus tesouros. (Evangelho Árabe da Infância VII-VIII apud CARTER, 2003, p. 81)

Este fragmento tem muitas diferenças dos dois anteriores. Aqui

os Magos não foram falar com Herodes, e vieram através de uma previsão de

Zaratrusta. Cita os presentes que deram a Jesus, mas com Maria retribuindo-

lhes dando um presente também, um dos panos de Jesus, que será o motivo

da alegria no desfecho do trecho. Também é posto que a estrela é um anjo, e

sobre um episódio não citado nos textos anteriores, a volta dos Magos para a

sua pátria.

O Evangelho do Pseudo Mateus possivelmente redigido nos

séculos III e IV, teve grande influência na literatura Ocidental, se estendeu

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durante toda a Idade Média, sendo inspiração para vários pintores, em especial

no Renascimento:

Passaram-se dois anos e uns magos vieram do Oriente para Jerusalém, trazendo muitas oferendas. Interrogaram os judeus, dizendo: “Onde está o rei que nasceu, pois vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo?” A notícia chegou ao Rei Herodes e ele se assustou tanto que enviou os escribas, os fariseus e os doutores do povo para consultar os profetas a fim de saber se estes tinham profetizado onde Cristo iria nascer. E estes responderam: “Em Belém da Judéia. Porque está escrito: “E tu Belém, terra da Judéia, não és a menor entre as principais cidades da Judéia porque de ti sairá o chefe que deve comandar Israel, meu povo.” Então o Rei Herodes chamou os magos e averiguou, através deles, em que tempo a estrela apareceu. E os enviou a Belém dizendo: “Ide, e nos informai tudo sobre o menino, e quando o encontreis dizei-me para que eu também possa adorá-lo.” Então, enquanto os magos íam-se, a estrela apareceu no caminho e esta os precedia como para os guiar, até que chegaram ao lugar onde se encontrava o menino. E os magos, vendo a estrela, encheram-se de júbilo, entraram na casa e encontraram o menino Jesus repousando no seu seio de sua mãe. Então abriram seus tesouros e os deram a José e Maria três presentes. Ao menino ofereceram, cada um, uma peça de ouro. Depois disto, um ofereceu ouro, outro incenso e o outro mirra. Como queriam voltar para junto de Herodes, foram advertidos, em sonhos, por um anjo, para que não voltassem ao seu país por outro caminho. (Evangelho do Pseudo Mateus XVI, 1-2 apud CARTER, 2003, p. 40)

Percebe-se que este apócrifo é muito semelhante ao segmento

de Mateus, o evangelista canônico, e também com o Protoevangelho de

Santiago. O que diferencia é a referência acerca do tempo que se passou até

estes chegarem, dois anos após, o que em outros textos acima citados,

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parece-nos ter sido em função dessa visita/adoração quando Jesus ainda era

recém-nascido. Outro elemento visto na leitura é quanto ao número de Magos,

parecendo-nos que se tratava de uma multidão, uma vez que expõem a

seguinte frase: “Ao menino ofereceram, cada um, uma peça de ouro. Depois

disto, um ofereceu ouro, outro incenso e o outro mirra” (Evangelho do Pseudo

Mateus XVI, 2 apud CARTER, 2003, p. 40).

A ARTE E OS MAGOS

Sobre essa quantidade de Magos que foram ao encontro do

bebê Jesus, depara-se com a iconografia sobre o tema. Mesmo na antiguidade

há um afresco na Catacumba de Santa Priscilla, com a presença dos Magos,

na qual nos revela a presença de três.

Figura 1 – Três Magos (com Maria e Jesus), Catacumba de Santa Priscilla. Fonte: (HILDESHEIM, 2004, p. 1)

Com esta imagem observa-se que desde os primórdios do

cristianismo já havia a tradição dos magos serem três, o que denota a

associação da quantidade de presentes citadas no evangelho canônico de

Mateus, com o número que seria de Magos. A constatação disso está em cada

um carregar um presente, estando com os braços estendidos, um gesto de

entrega. Nesta cena também vemos Maria sentada com o menino Jesus nos

seus braços, sendo estes o destino dos presentes.

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Há vários outros ícones3 que retratam os Magos. Um exemplo

é o mosaico de Santo Apollinare Nuovo, em Ravena. Este é datado do século

VI e já constam os nomes pelo os quais os Magos ficaram conhecidos:

Baltazar, Belchior (ou Melchior) e Gaspar.

Figura 2 – Adoração dos Magos, Santo Apolinário, o Novo. Fonte: (HILDESHEIM, 2004, p. 74)

Neste mosaico percebemos que os Magos estão trajando

roupas exóticas, muito coloridas e tem em suas cabeças gorros. Os recipientes

que se encontram cada presente são bem ornamentados, ao fundo há uma

paisagem cheia de cores e, ao alto, vemos a estrela da qual eles estão

seguindo. Também é posto que cada Mago tenha uma idade diferente, sendo o

mais idoso o Gaspar, o mais jovem Melchior e na idade adulta, Baltazar.

Observa-se também que os Magos são frequentemente

relacionados às crenças secretas e magia, e ainda com a astronomia e

astrologia, como também ao poder de interpretar sonhos. Sobre a interpretação

de sonhos, vemos que os livros canônicos se utilizam desse recurso, como na

história do José do Egito, em que José, através do sonho do faraó, predisse os

anos de fartura e de escassez. Ao observar o texto de Mateus, a premonição

pelo sonho, através da qual por duas vezes, José, pai de Jesus, foi alertado

sobre o que deveria fazer: na primeira vez para aceitar Maria por esposa,

porque esta não o teria traído, e na segunda vez para que ele levasse sua

família para o Egito, diante de uma ameaça à vida do menino Jesus. Com os

Magos relacionados com a interpretação de sonhos, juntamente com esse

3 Aqui posto no sentido mais conhecido, em especial, na Igreja Católica Oriental, que são imagens de

santos ou de cenas bíblicas.

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histórico bíblico, e em especial mateano, justifica essa relação dos Magos com

a magia. Também houve nas Escrituras Sagradas Cristãs outras passagens

relacionadas a magos, como o caso do livro dos Números que cita o Mago

Balaão, que obedeceu em tudo a vontade do Deus Javé (BROWN, 2005).

Coroas passaram a ser adotadas para retratar os Magos a

partir do reinado de Otto II com seu Sacro Império Romano. A cena da

adoração dos Reis Magos foi propícia para elevar o seu poder. Neste período

há uma ilustração da cena com Magos-Reis, investidos de suas coroas de aro

de ferro, que se prostram diante da sagrada família, que estão de frente do seu

“estábulo”, que tem a arquitetura de uma pequena igreja, e humildemente

entregam suas oferendas (RUSSO, 1996).

Figura 3 – Os Magos diante de Herodes, Basílica de São Marcos4. Fonte: (HILDESHEIM, 2004, p. 59)

Nota-se na imagem acima a necessidade de evidenciar a

realeza, tanto nos Magos como em Herodes. As coroas de ambos são

enormes, o que reforça essa ideia de reis.

Esta evidência à realeza é vista no Baixo Medievo nas obras

de Giotto di Bondone (1267-1337). Os Magos são retratados como Reis,

representados com coroas, como vemos abaixo:

4 Esta basílica começou a ser edificada pela última vez em 1063, e seus mosaicos datam desde o século

XII, e tem um destaque no século XIV.

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Figura 4 – Detalhe de dois Magos em Adoração dos Reis Magos, Giotto, Capela Arena. Fonte: (WOLF, 2007, p. 6)

Figura 5 – Detalhe da coroa do Mago mais velho em Adoração dos Reis Magos, Giotto, Capela Arena. Fonte: (WOLF, 2007, p. 6)

Figura 6 – Detalhe de dois Magos em Epifania, Giotto, Museu Metropolitano de Nova Iorque. Fonte: (IMPELLUSO, 2009, p. 16)

Figura 7 – Detalhe de da coroa do Mago mais velho em Epifania, Giotto, Museu Metropolitano de Nova Iorque. Fonte: (IMPELLUSO, 2009, p. 16)

Acima nota que na Adoração dos Reis Magos, Giotto faz uma

coroa diferente para cada Mago. O idoso tem uma coroa mais trabalhada, o do

meio, uma mais ou menos detalhada e o mais novo, uma simples. Já em

Epifania, Giotto faz coroas uniformes, não há distinção entre elas. Dessa

maneira observa que Giotto tinha claro que os Magos eram Reis, não só pela

coroa, mas também pelos trajes reais que estes utilizam. Além do detalhe da

coroa, em Adoração dos Reis Magos eles têm o halo e na Epifania não.

A LITERATURA E OS MAGOS

Na literatura encontram outras mudanças e elementos desse

imaginário. A santificação dada aos Magos ocorreu durante os séculos VI-XII,

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através de longas peregrinações motivadas pelo culto das supostas relíquias

atribuídas aos Magos, até sua chegada à Colônia, norte da Alemanha. Jacopo

de Varazze (1226-1298), em meados do século XIII expõe o seguinte sobre

este culto:

Seus corpos repousavam em Milão, numa igreja que é agora da Ordem dos Irmãos Pregadores, mas foram depois levados a Colônia. Anteriormente esses corpos tinham sido trasladados para Constantinopla por Helena, mãe de Constantino, depois foram transferidos para Milão pelo santo bispo Eutórgio, por fim o imperador Henrique transportou-os de Milão para Colônia, às margens do Reno, onde são objetos da devoção e da reverência do povo. (2006, p. 156)

Na edição de 2006 do livro Legenda Áurea, Franco Júnior, abre

uma nota para esclarecer alguns pontos sobre o que foi exposto por Varazze:

Escrevendo cerca de cem anos depois desses fatos, Jacopo engana-se quanto

a sua cronologia. Na verdade as relíquias dos Reis Magos foram transferidas

de Milão para Colônia pelo arcebispo Reinaldo de Dassel, chanceler do

imperador Frederico Barba Ruiva, em junho e julho de 1164, provavelmente

como punição pela insubordinação daquela cidade italiana ao poder imperial.

(2006, p. 156)5

Em outro documento, escrito por João de Hildesheim (?-1375),

mostra mais um pouco sobre as relíquias atribuídas aos Magos, narrando

tempos mais antigos. Cita que a princípio os Magos foram enterrados num

mesmo lugar, e que depois de conflitos e o esquecimento da sua devoção,

foram transladados cada um para sua terra. Após, apresenta Helena, a mãe de

Constantino, expondo-a como uma pessoa muito piedosa, tendo ido procurar

os corpos dos Magos, e que, ao reuni-los, levou-os para Constantinopla, e

depositou-os na Igreja de Santa Sofia. Depois, ao ficar sobre domínio da Igreja

5 Nota 5 – A Epifania do Senhor.

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Ortodoxa e os milaneses os transladaram para sua cidade. Após 1144, Milão,

no norte da Itália, quando se rebelou contra o imperador Frederico I, o

arcebispo Reinaldo levou as supostas relíquias para Colônia, ao norte da

Alemanha, os depositando na igreja de São Pedro.

Com a transferência concluída, na cidade de Colônia, foi

erguida uma Catedral, no lugar dessa igreja de São Pedro, para acolher tais

relíquias e aos peregrinos.

Em meados do século XIII, o frade dominicano chamado

Jacopo de Varazze escreveu um livro intitulado Legenda Áurea: vidas de

santos, em que busca fazer uma hagiografia dos santos conhecidos até sua

produção. Na parte em que se intitula à Das festas que ocorrem em parte no

Tempo da Reconciliação e em parte no Tempo da Peregrinação, Jacopo se

dedica a discorrer sobre os Magos num capítulo nomeado de A Epifania do

Senhor. Neste capítulo o autor deixa explicita as suas fontes, tais como, Beda,

Crisóstomo e Remígio. As argumentações são visualizadas nos momentos em

que, citando alguma fonte, diz que há certo número de conjunturas para tal

elemento. A título de exemplo, a estrela, ele inicia mostrando Fulgêncio, como

o autor de tais proposições, expondo que essa estrela se difere por três

motivos das demais estrelas, em localização, brilho e movimento, e o autor

acrescenta mais três outras diferenças:

Primeira, ela diferia em sua origem, já que as outras haviam sido criadas no começo do mundo e esta acabava de ser criada. Segunda, em sua destinação, pois as outras tinham sido feitas para indicar tempos e estações, como está dito no capítulo primeiro de Gêneses, e esta para mostrar o caminho aos magos. Terceira, em sua duração, já que as outras são perpétuas, e esta voltou a seu estado primitivo após cumprir sua missão. (VARAZZE, 2006, p. 153)

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Assim, Varazze (2006) mostra sua visão, e consequentemente

de sua época sobre a estrela, e deste modo o faz para os demais elementos

que envolvem a Adoração dos Reis Magos.

Continuando na pista das representações dos Magos, na

segunda metade do século XIV foi escrito um documento exemplar para a

cultura que cerca os Magos, é o Livro dos Magos. Intitulado originalmente

como o Livro da Gesta da Tripla Deslocação dos três muito Bem-Aventurados

Reis, os quais foram às primícias dos povos e o modelo de salvação de todos

os cristãos, o seu autor foi o monge carmelita João de Hildesheim. Este morreu

em 1375 e não se sabe ao certo o ano de seu nascimento. Fez diversas

viagens pela Europa, o que contribuiu para a produção deste livro. Esteve no

pontificado de Clemente VI (1342-1352), em Avinhão e foi prior da comunidade

carmelita de Kassel, na Alemanha. A cidade de Hildesheim é próxima à

Colônia, dessa maneira a proximidade trouxe a inspiração ao autor.

O Livro dos Magos proporciona um panorama, segundo as

tradições orais da sociedade do baixo medievo. Durante a sua narração ele

descreve como o homem de sua época imagina, através de relatos dos

cruzados e peregrinos que rondaram a Europa medieval, o que fosse o Oriente,

a terra de origem dos Magos. Percebe-se, ainda que o autor utilize o texto

canônico e os apócrifos como base, mas em sua narração pouco usa das

informações contidas nestes fragmentos, preferindo recorrer à tradição lendária

sobre os Magos.

Um exemplo disso está no trecho abaixo que se refere a uma

passagem dos Magos não citados no texto canônico e nos apócrifos:

Quando os três reis, vindo cada qual por seu caminho, ficaram a aproximadamente duas milhas de distância de Jerusalém, levantou-se sobre toda a terra uma espessa névoa, negra e tenebrosa, e na escuridão perderam a estrela que os guiava […] Então Melchior foi o primeiro

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a chegar com s seus ao monte Calvário […] parou portanto aí, devido à névoa e porque não conhecia o caminho […] Baltazar, rei dos Godolias e de Sabá, chegou com o seu exército pelo caminho que seguira e deteve-se, no meio das trevas […] neste mesmo momento chegou com o seu exército Gaspar, rei de Társis e da ilha Egriseula: e deste modo se encontraram os três Reis na mesma encruzilhada (HILDESHEIM, 2004, p. 49-53)

Nota que ele determina a quantidade de Magos, sendo três,

conforme fornecido pelos ícones, e também os nomes, retirados do mosaico

referido acima, Melchior Baltazar e Gaspar. E no decorrer da leitura,

Hildesheim cita os três como pertencente a cada nacionalidade, tendo entre

eles um negro, Melchior. As nacionalidades mencionadas neste livro que

corresponde a cada Mago são: Melchior, da primeira Índia, vem da Núbia e dos

Árabes. Baltazar, na segunda Índia, de Godolias e Sabá. E Gaspar, sendo da

terceira Índia, de Társis e ilha Egriseula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, os Magos conforme a literatura que o concebeu,

eram pessoas estrangeiras que seguiram uma estrela para adoração ao rei dos

judeus que acabara de nascer. Com as releituras, tradições e costumes foram

agregando novas concepções e ganhando um novo significado para os cristãos

medievais, ao ponto de se tornarem Reis e santos.

Este trabalho apresentou os Magos na mudança de

perspectiva de simples magos a reis comparados aos Reis da terra, e deste

modo estes reis encontraram algo para se apoiar e demonstrar para o povo

que quem primeiro reconheceu Jesus como o Cristo são eles, os estrangeiros

nobres e assim reafirmando o sua posição social.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana: de Giotto a Leonardo. v.2. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003. BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004. ______. O Nascimento do Messias: comentário das narrativas da infância nos Evangelhos de Mateus e Lucas. São Paulo: Paulinas, 2005. CARTER, Joseph. Os Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Isis, 2003. FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos: poder e heresias! - introdução crítica e histórica à Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. GOMBRICH, E. H. A História da arte. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2008. HILDESHEIM, João de. O livro dos Magos. Milão: Lucerna, 2004. IMPELLUSO, Lucia. Metropolitan: Museum of Art Nova York. São Paulo: Folha de São Paulo, 2009. RUSSO, Daniel. Les représentations mariales dans l’art d’Occident Essai sur la formation d’une tradition iconographique. In: IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Éric; RUSSO, Daniel. Marie: lê culte de la vierge dans la sociétóe médiévale. Paris: Beauchesne, 1996. VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. WOLF, Noberto. Giotto. Lisboa: Taschen, 2007.