de letra de mão à letra de forma

28
Da letra de mão à letra de FORM

Upload: maria-silva

Post on 09-Mar-2016

251 views

Category:

Documents


7 download

DESCRIPTION

trabalho para a faculdade

TRANSCRIPT

Page 1: De letra de mão à letra de forma

Da letra de mão à letra de FORM

Page 2: De letra de mão à letra de forma

2

|FIGURA 0|

Oficina tipográfica do séc. XVI,

gravura sobre cobre de Théodor

Gale, desenho de Jan van der

Straet. Ilustra os vários cavaletes de

tipo, com as folhas originais de que

o oficial compositor e o revisor se

ocupam. Ao fundo, o transporte do

papel e a mesa com os atados de

papel a imprimir; do lado esquerdo,

um impressor fazendo a tintagem

da forma no mármore da prensa;

outro impressor accionando a

alavanca da prensa; num estendal,

várias folhas impressas, que, depois

de secas, um aprendiz vai juntando

em maços.

Page 3: De letra de mão à letra de forma

3

Assiste-se nesta época de fim de milénio à revolução que o computador e as «artes» da informática proporcionam: revo-lução porque implica qualitativa e quantitativamente uma alte-ração nos padrões tradicionais de cultura e civilização, com as respectivas incidências sociais, económicas ou religiosas. O seu alcance estará bem longe de ser medido ou avaliado. O que não acontece com semelhantes revoluções que sofreram aqueles que viveram os primórdios da tipografia de Quatrocentos, e ainda aqueles que há milénios transcreveram num suporte de terra endurecida, manualmente e com o auxílio de um estilete, os primeiros signos de transmissão do pensamento humano pela grafia, aos quais podemos fazer coincidir os grandes impé-rios da Antiguidade e respectivas civilizações; pelo que se pode afirmar que a invenção da escrita não é de forma alguma um processo concluído, quer nas suas múltiplas formas de expressão, quer nos seus efeitos.A nossa preocupação neste estudo centra-se exclusivamente nos aspectos que tiveram incidência directa na ligação da caligrafia e da sua actividade, com o seu natural desenvolvimento na letra de forma, ou impressa. Existe, de facto, um paralelismo de solu-ções, uma transposição de técnicas e de estilos que são inques-tionavelmente resultado tanto da tradição como da inovação.Na actividade complementar da escrita, copista e impressor são opostos liminarmente no que se refere à ideia de qualquer acto criador: um translitera fielmente, o outro possui já o génio da invenção ligado à técnica. Se qualquer inovação subsiste, é a nível artístico ou mais propriamente ornamental: o estilo tudo diz, quanto à observação. A técnica situava-se para aquém do plano alquímico, talvez dos matizes das tintas, dos preparos sequenciais da iluminura que se seguia à transcrição caligrá-fica do texto em cópia, em modos esmerados, imitação ou apro-ximação à obra divina e ao mero acto de criação, como um espelho, obra de fé. É do senso comum afirmar que a caligrafia tem o seu início, como arte, em Carlos Magno, ou seja, obra de engenhosos gauleses, que instituíram a famosa letra carolina. Tal não será assim: torna-se evidente que a caligrafia, cuja grafia, era

DA LETRA DE MÃO À LETRA

DE FORMApercursos da

caligrafia nas artes e nas técnicas

Page 4: De letra de mão à letra de forma

4

mecanizada pelo cálamo, tem sistematização no mundo romano e grego, pelo menos, e só para nos referirmos à antiguidade clás-sica ocidental.A caligrafia, com o cálamo, como instrumento de gravação ou de inscrição pela tinta, é identificada nas escritas do Oriente médio, entre as civilizações egípcias, hitita, suméria ou acádica. É já uma arte semi- mecânica, pois socorre-se instantaneamente do cálamo, antepassado da moderna caneta, quer actuasse sobre placas de argila ou barro, no papiro, no pergaminho ou no papel.Não se pense que no mundo medieval as artes da escrita coexis-tiam com a desorganização ou com a improvisação: certamente uma boa dose de intuição ou imaginação eram necessárias no ambiente dos scriptoria a par com a erudição, que se exprimia exigência de dispor cada vez mais de cópias de todo o corpus do saber. O copista, ou «escriba» (hoje tomado num contexto depre-ciativo), incluía-se originariamente em dois níveis como o reli-gioso e o administrativo (chancelarias reais, judiciais ou fiscais). Obedecia a uma estrutura profissional que posteriormente se organizou nos modelos corporativos dos mesteres e guildas ou em confrarias laico-religiosas, não só à sombra dos mosteiros, mas também das universidades e chancelarias, com o advento do fenó-meno da burguesia nascente.O scriptoria exigia uma divisão precisa, sequencial e anónima de várias tarefas até chegar ao resultado final do volume ou códice manuscrito, cópia fiel de uma matriz, o exemplar. A cópia era fundamentalmente um acto repetitivo em que a letra era norma fixa na fidelidade ao texto princeps, à pontuação, às regras das linhas ou ao estilo no desenho da letra. A intuição ocorreria em certas passagens obscuras de difícil interpretação, no desenvolvi-mento ou utilização das abreviaturas no texto, em certas inova-ções estilísticas a nível caligráfico. A imaginação intervinha mais no nível meramente artístico e criador, na decoração das iniciais capitulares historiadas ou floreadas, na ilustração da iluminura.A tarefa mais humilde era preparar o suporte da escrita, o perga-minho ou o velino, para além do papel, cuja utilização foi aumentando com a sua vulgarização e disponibilidade, pela dispersão, no século XV, de fábricas de papel por toda a Europa,

“A imaginação intervinha no nível meramente artístico e criador, na decoração das iniciais capitulares historiadas ou floreadas, na ilustração da iluminura.”

Page 5: De letra de mão à letra de forma

5

nessa época, o pergaminho era comercializado (dependendo da sua qualidade e acabamento), cerca de 12 a 15 vezes mais caro do que o papel. O papel, mais frágil e efémero, beneficiava do factor da desconfiança num meio tecnicamente pouco inovador, conservador pela disciplina dos métodos, avesso à precaridade ou à funcionalidade que o papel representava, nos actos do quotidiano, como a simples carta ou missiva para além do registo contabilístico.A preparação do suporte consistia após o corte em folhas de for- mato previamente definido, obtendo-se o folio ó, em fazer o risco da folha, isto é o seu riscado (as linhas em intervalos regu-lares) e o seu pautado (as margens) em esquadria, calculando e definindo a proporção das margens com a mancha do texto (sua justificação) a preencher. Essa proporção, o mais das vezes feito insuspeitadamente com o apoio da geometria, estabelecia a largura e o comprimento do rectângulo de texto com a maior ou menor proporção da largura das margens, criando, por assim dizer, o regime dos brancos e a perfeita harmonia das respec-tivas superfícies, isto é, o espaço ocupado pelo negro ou sépia das letras ou o colorido dos motivos iluminados. Pela oposição entre os brancos das margens e entrelinhas com a superfície manuscrita (ou impressa, como se verá), resultava o equilíbrio da arquitectura e da economia da página, a ponto de permitir a conclusão de que a maior proporção de espaços em branco determina a riqueza e sumptuosidade da obra final. Essa arqui-tectura da empaginação foi desde logo observada nos primeiros livros impressos: podemos ir buscar a Villard de Honnecourt, famoso arquitecto francês do século XIII, a técnica desse risco da página, cujo traçado se exemplifica e deduz geometrica-mente. Ou a construção do tipógrafo argentino Raul Rosarivó, que deduziu o traçado regulador da empaginação usada na Renascença, identificando-o com as medidas usadas por Gutenberg na Bíblia de 36 linhas.

Page 6: De letra de mão à letra de forma

6

|FIGURA 1|

Construção da mancha de texto

segundo o traçado de Villard de

Honnecourt. Os números indicam

a ordem pela qual devem ser traça-

das as diagonais.

|FIGURA 2|

Formato segundo a projecção de

Raul Rosarivó.

Page 7: De letra de mão à letra de forma

7

Da preparação da folha seguia-se complementarmente a compo-sição das tintas quer de escrita, quer de iluminura, bem como todo o instrumental, a régua, a pena, a raspadeira, antepas-sada da borracha e todo o instrumental de pintura, bem conhe-cido e estudado hoje em dia. A preparação das tintas de escrita obedecia a um verdadeiro receituário, quase iniciático e frequen-temente secreto, em que intervinha o mais das vezes como base a noz de galho e o negro de fumo, a par com óleos e resinas; da sua preparação, da fluidez ou consistência obtida dependia o bom resultado da sua aplicação, sob a forma manuscrita ou impressa, com diferentes soluções para o pergaminho, o velino ou para o papel, na sua absorção, secagem ou na durabilidade pretendida.Em tudo isto, o papel do copista-calígrafo associado ao do ilumina- dor, era fundamental pela arte que utilizavam e pela disciplina a que estavam sujeitos. Nos scriptoria monásticos coexistiam as diferentes especializações aproveitando os meios humanos existentes ou incorporando elementos laicos cuja valia e perícia se impunham. Dá-se a sua laicização quando a importância dos burgos próximos aumenta, sutentada por uma burguesia cada vez mais activa e libertária, ou pelo letrado, clérigo ou não, o qual se emancipa do protector mundo conven-tual e se realiza no liceu aristotélico ou na universidade. É com a proliferação das universidades, fenómeno que se verifica a partir do século XIII, que a procura dos textos, dos comentários e glosas que faziam objecto dos estudos se torna imparável, cons-tituindo um dos factores decisivos da insustentabilidade da cópia não ser mecanizada e multiplicada ao infinito, tal como hoje, na informatização do texto que assume aspectos preocupantes de globalização: mais uma vez, a necessidade provoca a inovação com consequências imparáveis. A revolução da tipografia, ou seja da invenção da letra de forma, a par com a revolução origi-nária da escrita, foram marcos decisivos para a resultante civiliza-cional e cultural do mundo moderno: no meio, sempre presente, incansavelmente, o copista-calígrafo, o compositor tipográ-fico, o digitalizador de textos ou introdutor de dados informá-ticos, permanecem constantes na sua essência que é a de trans-crever as letras e as palavras do texto, sem a sua cabal inteligência

Page 8: De letra de mão à letra de forma

8

ou compreensão, sustentados por um aparelho erudito ou criador, que vai do revisor ao tradutor, e ao comentador e autor.A laicização dos escritórios de cópia e iluminura provoca a independência de uns face a outros com a criação de oficinas próprias: o atelier do copista-calígrafo coexiste com a loja do comerciante de pergaminhos ou de papel, com a oficina do iluminador, do rubricador, do encadernador ou a loja ou tenda do livreiro. Contudo, quem detinha originariamente a «chave» e o poder dos textos era o convento com a sua livraria, proporcio-nando as fontes e a transmissão do conhecimento.Era prática comum o empréstimo entre bibliotecas conven-tuais de espécimes únicos, permitindo a sua cópia a quem deles necessitava. Obra acabada, o volume ou exemplar era cuidado-samente revisto com a fixação e garantia da fidelidade do texto transcrito em e como exemplar. A necessidade de cópias suces-sivas a partir dessa matriz, com o aparecimento in loco da univer-sidade (que também detinha scriptoria próprios), leva à solução inovadora do empréstimo, para além da sua venda, quer contro-lada pelo bibliotecário, quer pelo livreiro como mero represen-tante ou intermediário. O empréstimo, motivado em parte pela sua componente económica, não se efectuava com a transferência temporária de todo o exemplar para cópia posterior: a sua cedência era frequentemente feita caderno a caderno, ou seja, à peça (pecia).O primeiro embate entre a cópia manuscrita e a folha impressa deu-se a nível primário entre a iluminura e a gravura, mercê da utilização de uma prensa ou prensagem manual: datam do século XIV as primeiras gravuras talhadas sobre blocos de madeira, a xilogravura, com alguns textos também gravados a acompanhar as ilustrações.A miniatura iria perder gradualmente terreno perante a gravura em madeira ou em cobre impressa sobre o papel; a cor cedia terreno perante a subtileza do branco e do negro, cuja utilização no desenho era apesar de tudo mais forte em contrastes e menos perfeita nos seus contornos. Dessa primeira fase conhecem--se folhas volantes, hoje muito raras, com figura- ção de santos acompanhadas de textos com orações ou trechos bíblicos;

|FIGURA 3|

Bloco xilográfico ilustrado com

cenas do Apocalipse e respectivos

comentários.

“Obra acabada, o volume ou exemplar era cuidadosamente revisto com a fixação e garantia da fidelidade do texto transcrito em e como exemplar.”

Page 9: De letra de mão à letra de forma
Page 10: De letra de mão à letra de forma

10

serviam para serem colocadas em oratórios ou simplesmente colocadas em portas ou paredes, tal como os calendários. Contudo, pensa-se que a primeira utilização desta técnica provém do fabrico das cartas de jogar e da indústria têxtil, para repetição indefinida dos padrões de desenho.Também dessa época datam os donatos, gramáticas latinas de Élio Donato, provenientes da impressão tabular ou xilográfica na Holanda e na Alemanha, as Ars moriendi ou as Biblia pauperum, já não uma simples folha impressa, mas constituindo um volume, com várias folhas dobradas ou simplesmente juntas, formando cadernos que eram posteriormente cosidos à linha e porventura encadernados em cartão, pergaminho ou pele. Para cada folha ou página era necessário executar em gravura um bloco xilográfico que era por sua vez impresso a negro ou a duas cores, o mesmo negro e o vermelho ou raramente o azul ou o amarelo.O inventor da tipografia de caracteres móveis, Johann Gensfleish zum Gutenberg (nascido à volta de 1400 e falecido em 1468), conseguiu executar uma síntese científica e técnica em várias actividades que pouco a pouco se aproximavam do livro impresso como processo acaba- do: o aperfeiçoamento da prensa de rosca, para vinho ou azeite, transformada para receber o papel, a substituição dos blocos de madeira com letras por todo o processo de gravação e metalografia da letra de forma ou caracter tipográfico. Ou seja, processos derivados da tipografia xilográfica (calendários, ex-votos ou indulgências, etc.), as artes da ourivesaria no trabalho de gravação e utilização de punções de letras, vinhetas decorativas ou marcas de ourives, a fundição de bronzes e outros metais (moeda) para sinos, canhões e tantos outros artefactos. Por outro lado, reúne num só processo o calí-grafo, o gravador de punções de letra, o metalúrgico hábil na obtenção da liga metálica e na respectiva fundição dos carac-teres móveis , individualmente, moldados a quente, um a um, que o artífice de composição juntaria de modo a formar as pala-vras e as linhas consecutivas dos textos em uma ou mais páginas, as quais permitiriam imprimir, após uma tintagem adequada desse conjunto ou «deitado» de letras, uma ou quantas folhas se desejasse para cópia.

|FIGURA 4|

Fundidor de caracteres móveis no

séc. XVI. Note-se o cadinho por

onde a liga de metal é vasada no

molde. Em baixo, um cesto com

lingotes de tipo já fundido.

|FIGURA 5|

«Atado» com bloco de texto ou granel, mostrando os caracteres de letra, a justificação das linhas e espaços.Gravura de Jost Amman, 1568.

Page 11: De letra de mão à letra de forma

11

|FIGURA 6|

Cavalete de tipo moderno; as

divisões móveis comportam difer-

entes quantidades de letra.

O processo implicava a necessidade de dispor de milhares de caracteres resultantes de fundição em um alfabeto ou família de tipo móvel em que comportaria uma caixa alta de tipo (maiúsculas), caixa baixa (minúsculas), as vogais acentuadas, um conjunto de abreviaturas e letras em ligatura pelo menos, ou seja, com os primeiros góticos ou romanos, eram necessá-rios um conjunto de punções gravados e respectivas matrizes de fundição, numa variedade que atingia sete ou oito dezenas, como mínimo, as quais proporcionariam os milhares de carac-teres necessários à composição de uma ou mais páginas.Esta fundição comporta cerca de 130 caracteres, dispostos segundo uma certa ordem que o compositor sabia de cor.Este processo de escrita artificial, de caracteres móveis que eram compostos manualmente, durou até ao presente século na indús-tria tipográfica. O trabalho de corte ou gravação dos punções durava meses inteiros e exigia a especialização e a perícia de um ourives ou gravador de imagens, pois qualquer letra tinha que ter o mesmo corpo ou altura (ou proporção) de modo a poder ser disposto linearmente tal como a mais perfeita caligrafia de um copista num manuscrito. A letra de forma foi inicialmente desenhada e fundida de modo a imitar perfeitamente a letra de mão, para que, uma vez impressa, emprestasse a ilusão de que um manuscrito se tratava.A primeira obra, com forma de volume, a ser impressa nos prelos de Mogúncia pertencentes a Gutenberg, foi uma Bíblia em caracteres góticos, com o texto em duas colunas contendo 42 linhas cada, com os títulos correntes e epígrafes impressos a vermelho e iniciais capitulares manuscritas. Esta atribuição é controversa pois existem hipóteses da sua oficina datar de cerca de dez anos antes, ainda em Estrasburgo, com calendá-rios, donatos e folhas de indulgências. É uma obra notável pela perfeição desde logo obtida, o que sugere uma longa prática e rigor, tanto no tipo de letra empregue, na empaginação e na impressão. Levou cerca de três anos a fazer, de 1452 a 1455, imprimindo cerca de 200 exemplares, dos quais 30 em velino, e os restantes em papel.

Page 12: De letra de mão à letra de forma

12

|FIGURA 8|

Molde de tipos, o instrumento

cujas duas partes ajustáveis deixam

um orifício aproximadamente

de uma polegada de profundi-

dade, tapado num extremo pela

matriz cinzelada e aberto na outra

extremidade para deixar verter o

metal fundido, e ajustável à largura

de cada letra, desde o M ao I, o

que proporcionava quantidades il-

imitadas de caracteres de letra, para

as diversas matrizes que compun-

ham o alfabeto da língua a utilizar.

|FIGURA 7|

Caixas de punções e matrizes com

alfabeto grego (Museu Plantin).

|FIGURA 9|

Punção, matriz, caracter fundido

(Museu Plantin).

Page 13: De letra de mão à letra de forma

13

|FIGURA 10|

Trecho da Bíblia de 42 linhas de

Gutenberg.

|FIGURA 11|

Colofão da primeira obra impressa

em Paris, 1470.

|FIGURA 12|

Trecho do Saltério de 1457, im-

presso em Mogúncia na oficina de

Fust e Schoeffer.

Page 14: De letra de mão à letra de forma

14

Destinada a embaratecer substancialmente o custo da cópia manual, a sua venda não foi tão imediata como talvez julgasse o impressor: as dívidas acumuladas pelo grande investimento efec-tuado até então, levam o principal sócio de Gutenberg, Johann Fust, ainda em 1455, a exigir o seu pagamento em tribunal, levando o impressor à ruína. Fust dirige-se de Mogúncia a Paris (aí falece em 1466), como simples livreiro, para vender a edição da Bíblia de 42 linhas ou outras edições que teria feito. A novi-dade era colocar no merca- do volumes impressos como se manuscritos fossem. Essa questão foi exemplar, pois, anos mais tarde, com os primeiros prototipógrafos parisienses na esclare-cida Sorbonne verificou-se um insurreição contra a «heresia» do livro impresso, apelidando-o de feitiçaria, ao mesmo tempo que as guildas dos copistas e iluminadores queriam proibir a exis-tência de impressores por motivos nitidamente concorrenciais.Já em 1457, com a impressão de um Saltério, longo de 143 folhas, ocorre o primeiro colofão (datado e assinado) em obra impressa, complemento do explicit, e que constitui inovação como individualização do trabalho do artífice, o que raramente sucedia com as oficinas dos copistas e iluminadores, que manti-nham o anonimato: O presente volume dos salmos, decorado com belas capitulares e rubricado com suficiente realçe, foi feito com invenção artificiosa da imprensa de caracteres, sem uso de cálamo concluído com indústria para o culto de Deus. Por Johann Fust, cidadão de Mogúncia, e Peter Schoeffer de Gernsheim, no ano do Senhor de 1457, na véspera da festa da Assunção. Mais tarde, num dos derradeiros incunábulos atribuídos a Gutenberg, o Catholicon, impresso em Mogúncia, declara, com maior propriedade da Arte utilizada: Com o auxílio do Altíssimo a cujo mando as línguas infantis se tornam eloquentes, e que muitas vezes revela aos humildes o que esconde aos sábios, este nobre livro, Catholicon, acabou de se imprimir, sem ajuda de cálamo, estilete ou pena, mas com a com- binação, proporção e harmonia maravi-lhosas de tipos e punções, no ano de 1460 da Incarnação do Senhor, na magnânima cidade de Mogúncia.Desde logo se faz menção da inovação da letra de forma obtida através de punções e do seu uso tipográfico, com a combinação, proporção e harmonia dos tipos de letra. Estes três conceitos

Page 15: De letra de mão à letra de forma

15

|FIGURA 13|

Desenho de letra de Luca Pacioli.

|FIGURA 15|

Desenho de letra de Geoffroy Tory.

|FIGURA 14|

Desenho de letra de Albrecht

Dürer.

Page 16: De letra de mão à letra de forma

16

merecem ser um pouco desenvolvidos, no aspecto em como por fidelidade à letra de mão se chegou ao caracter de letra cuja harmonia no desenho, sua proporção num corpo ou tamanho e sua combinação na composição da linha e da página, resultaram na nobre arte da impressão. Já se considerou que a dimensão da página e da empaginação desde logo obedeceu a uma proporção que distribuía geome-tricamente a justificação da linha de texto e respectiva mancha tipográfica em relação aos brancos de página ou margens. Porém, esse exame exige o desenho da própria letra, num caminho de como quem vai da molécula à partícula do átomo: sem dúvida, existe um proporção divina em todas as coisas que a ciência nos revela. Isso foi tentado desde os alvores do Quatrocento por Frei Luca Pacciolli, contemporâneo de Leonardo da Vinci, ao escrever a sua famosa obra De Divina Proportione, impressa em Veneza, 1509. Aí deduz o desenvolvi-mento geométrico das letras do alfabeto segundo uma grelha quadrada na qual cada lado se divide em nove divisões, ou seja na relação 1:9.Contudo, estas discussões que se estenderam a Albrecht Dürer e Geoffroy Tory, nos inícios do século XVI, não foram prementes no espírito de Gutenberg, ao reproduzir o desenho caligráfico do alfabeto «textura» utilizado pelos copistas alemães, apesar de mencionar expressamente a proporção e a harmonia dos caracteres de letra móveis entre si.Em meados do século XV, a actividade do copista estava subor-dinada à natureza dos textos e à sua finalidade, para além de se verificar uma variedade significativa de escritas ditas nacio-nais no seu desenvolvimento, assim, numa breve sistematização, o grupo gótico representado pela «letra de soma», o da letra de «missal», o de letra «bastarda» e uma família de letra completa-mente diferente, a letra humanística ou «littera antiqua».O estilo denominado gótico, abrangia, respectivamente, das obras de teologia como a Suma Teológica, às obras de texto litúr-gico, de corpo maior, definindo um canon próprio, às obras de temática es- sencialmente literária ou mesmo de direito, baseado na prática das chancelarias, de carácter cursivo. O estilo da letra

“ Sem dúvida, existe uma proporção divina em todas as coisas que a ciência nos revela.”

Page 17: De letra de mão à letra de forma

17

humanística, baseada na letra romana, portanto recuperada, como o grego, dos textos dos clássicos latinos e gregos, para além de adoptar o desenho da minúscula carolina, é que foi objecto de elucidação geométrica.Gutenberg obtém a harmonia e a proporção dos seus caracteres na medida em que é fiel ao estilo caligráfico da letra, ao mesmo tempo que respeita as relações proporcionais dos caracteres entre si, ainda que só muito tarde, no século XVIII fosse definida a sua principal medida, o ponto tipográfico (= 0,343 mm.), mercê dos trabalhos de Fournier Le Jeune, em 1737 e Francisco Ambrósio Didot em 1775, com uma relação proporcional de 1:12 (quanto a Portugal, o ponto Didot só foi adoptado em 1851 na Imprensa Nacional, mais de meio século de- pois). Os corpos de letra não eram definidos por qualquer medida de referência, mas deno-minados segundo uma terminologia utilitária que definia as suas características: parangona, texto, tanásia, leitura, intérduo, breviário ou solfa, para citar a nomenclatura dos corpos de letra mais usados em Portugal no século XVIII, e mesmo assim, dentro de cada categoria, com variações na altura e na largura do corpo de letra; por exemplo, o cícero, que apresenta uma medida de 12 pontos didot, como canon de leitura, tem origem nos caracteres usados numa obra, De Oratore, de Cícero, impressa por Schoffer, um dos sócios de Gutenberg.Uma aproximação a este tema pode ser encontrado no que foi desenvolvido mais tarde por Dürer no seu tratado Instituitiones Geometricae, em quatro livros, sendo que no tercei- ro trata preci-samente da proporção e da geometria da letra.A gravura que apresentamos é a que determinava, desde as teorias euclidianas, a proporção ou corpo das letras entre si, com o recurso a um ponto de perspectiva exterior e sua divi- são angular. A projecção obtida determinava as alturas das letras.No que se refere ao desenho dos caracteres góticos minúsculos de caixa baixa, desenvolve um curioso método de justaposição de figuras geométricas, essencialmente quadrados e triângulos, na proporção 1:10.No que diz respeito ao caracter redondo, dito de romano, ou littera antiqua, a que logo se seguiria o itálico, grifo ou aldino,

|FIGURA 16|

Proporção da altura das letras a

partir das regras de perspectiva de

Albrecht Dürer.

|FIGURA 17|

Desenho das minúsculas do alfa-

beto gótico de Albrecht Dürer.

Page 18: De letra de mão à letra de forma

18

|FIGURA 18|

Maiúsculas do alfabeto gótico de

Albrecht Dürer.

|FIGURA 19|

Canon de Claude Garamond, ob-

tido recentemente a partir da sua

fundição com matrizes do Museu

Plantin em Antuérpia.

|FIGURA 20|

1.º Romano de Sweynheim e Pan-

nartz, Su- biaco, 1467, na obra de

San- to Agostinho, De civitati dei.

Page 19: De letra de mão à letra de forma

19

este aparece logo a seguir aos primeiros caracteres móveis góticos, por exigência dos estudiosos humanistas das universi-dades ou de vários centros culturais da Europa que a pouco e pouco aderiram ao livro impresso com edições das obras clássicas gregas e latinas, essencialmente. Um exemplo disso é o exemplo, uma vez mais, da Sorbonne, cujos protoimpressores alemães Ulrich Gering, Michael Friburger e Martin Crantz, só impri-miram inicialmente, desde 1470, em caracteres romanos, sendo obri- gados a utilizar alfabetos góticos em 1472-3, em oficina própria, fora da Universidade parisiense, na rua de Saint-Jacques, sob a insígnia de «Soleil d’Or», para atingirem um público leitor mais vasto, pouco familiarizado com a letra romana. Essa condição do gótico e subordinação do romano manteve-se ainda por meados do século seguinte, altura em que o gótico é gradu-almente substituído. Desde então, principalmente a partir dos punções de Claude Garamond e do seu canon romano, desde 1530, o romano imperou até ao século XX, é certo, em vários estilos, mas que na sua essência assumiram uma forma quase perfeita e sublime.A origem do «romano» é imprecisa, surge provavelmente entre Estrarburgo com o impressor Adolf Rush, anterior a 1467 (Enciclopédia, de Raban Maur), e Subiaco/ Roma, em 1465, com Sweyneym e Pannartz (De Oratore, de Cícero).Seguem-se-lhes, também em Veneza, em 1469, Johann e Wendelin de Spira, em Veneza, mas, sobretudo, com Nicolau Jenson, em 1470, em Veneza, a quem se deve o principal desenho e gravação de punções do romano. Natural de Troyes, terá apren-dido a arte em Mogúncia, estabelecendo-se como impressor em Veneza, concorrendo com a oficina dos alemães Spira, que declaram no colofão da obra de Cícero, Espistolae ad fami-liares: «Antes todo o alemão levava consigo um livro de Itália. Agora, um alemão dará mais do que eles levaram. Porque, João, um homem a quem poucos alcançam em habilidade, demonstrou que os livros podem escrever-se bem com latão. Speir saúda com amizade Veneza.»O ciclo das principais inovações fecha-se temporariamente com a figura do impressor-humanista Aldo Manutio, o grande vulga-rizador dos caracteres romanos, o redondo, gravado em 1495,

Page 20: De letra de mão à letra de forma

20

|FIGURA 22|

Romano de Nicolau Jenson, na

edição de Cícero, Epistolae ad

Brutum, Veneza, 1470

|FIGURA 23|

Romano de Nicolau Jenson, em

Veneza, 1475, na obra de Virgílio,

Bucólicas.

Page 21: De letra de mão à letra de forma

21

|FIGURA 24|

Romano de Griffo / Aldo Ma-

nutio, Veneza, 1499. Hypneroto-

machia Poliphili.

|FIGURA 25|

Itálico de Griffo/ Aldo Manutio,

Veneza, 1501.

Page 22: De letra de mão à letra de forma

22

para a impressão da obra De Aetna, do cardeal Bembo, e, sobre-tudo, o itálico ó o qual comprendia mais de sessenta punções com ligaturas, de entre 150 de toda a família de tipo ó, justa-mente denominado na época por aldino, também da autoria de Francesco Griffo de Bolonha, em data próxi- ma a 1499, utili-zados em 1501 na impressão de uma obra de Virgílio.Tratava-se, mais uma vez, de imitar a letra cursiva das chan-celarias italianas, aliando a economia do espaço da letra aos pequenos formatos de edição, tornando-se verdadeiramente económica, «libelli portatiles in formam enchiridii».No nosso século, o transístor, a informatização, os media provo-caram profundas alterações na escrita, na caligrafia associada a ela, na tipografia. Restam as famílias de caracteres, mesmo aqueles de estilo «civilité» ou caligráfico, que foram adoptados pela informática aplicada à tipografia e a qualquer actividade que utilize formas mais ou menos complexas de registo; a tipografia a «quente», que resultava da contínua fundição de caracteres, passou drasticamente à tipografia a «frio», quase se diria virtual, pois até à sua impressão no papel, não tem a mínima ex- pressão de forma ou conteúdo execepto na área do monitor. à tipografia a «frio», quase se diria virtual, pois até à sua impressão no papel, não tem a mínima expressão de forma ou conteúdo excepto na área do monitor.As letras foram definidas matematicamente através da descrição das coordenadas de vários pontos apoiados nas denominadas curvas de «Bézier», formando contornos não à base da régua e do compasso, mas através de complexas elipses.

|FIGURA 26|

Estrutura linear das letras utiliza-

da no desenho moderno para ar-

tes gráficas.

Page 23: De letra de mão à letra de forma

23

|FIGURA 27|

Sistematização dos estilos de letra,

segundo Aldo Novarese, Baseia-se

na forma das hastes e dos serifs no

desenho da letra.

Page 24: De letra de mão à letra de forma

24

Esse contorno, ou «outline», afinal o batente da letra, é preen-chido por pixels, formando o que se denominava por olho da letra, ou seja a superfície do caracter que era impressa e que na leitura proporcionava todo o seu valor fonético e semântico.Contudo, em modos de conclusão, a perenidade e a vitalidade da letra permanece, na sua essência, intocável, conforme foi brevemente descrito neste estudo. À caligrafia, como arte, no seu senti- do lato, mãe de todas as letras, devemos esta aventura sem fim que é a do conhecimento, imparável, belo, mas sem dúvida preocupante.Nesta fase, ainda em aberto, porque não totalmete definida, passou-se dos processos ópticos da fotocomposição para os da informática: o ponto didot, a pica, o cícero, foram substituídos pelo pixel, pelo byte e pelo bit, em linguagem algébrica binária (0 ou 1).

|FIGURA 28|

Letra digital com grande am-

pliação evidenciando o seril-

hado dos pixel. [Photoshop].

|FIGURA 29|

Fases do desenho informático

da letra. [Fontographer].

|FIGURA 30|

1486 - Catálogo de tipos de

Erhard Ratdolt, Augsburgo.

Page 25: De letra de mão à letra de forma

25

Page 26: De letra de mão à letra de forma

26

Anjos, Joaquim dos, Manual do Typographo, David Corazzi Editor, Lisboa, 1886Canhão, Manuel, Os caracteres de imprensa e a sua evolução histórica, artística e económica em Portugal, Grémio Nacional dos Industriais de Tipografia e Fotogravura, Lisboa, Porto e Coimbra, 1941Daems S., e outros, Des caractères, des livres et des estampes, Musée Plantin-Moretus et Cabinet des Estampes, Antuérpia, 1989Duplan, Pierre; Jauneau, Roger, Maquette et mise en page, Éditions du Moniteur, Paris, 1992Dürer, Albrecht, Institutionum Geometricarum, Johann Janson, Ar- nheim, 1605Febvre, Lucien; Martin, Henri-Jean, L’apparition du livre, L ́évolution de l’humanité, Albin Michel, Paris, (1958), 1971Glaister, Geoffrey Ashall, Encyclopedia of the Book, 2,a ed., Oak Knoll Press & The British Library, New Castle, Londres, 1996Hind, Arthur M., An Introduction to a History of Woodcut, 2 vols., Dover Publications, Nova Iorque, (1935), 1963L’Histoire et ses méthodes, «Enciclopédie de la Pléiade», Editions Galli- mard, Paris, 1961Jean, Georges, Líécriture mémoire des hommes, Découvertes Gallimard, Paris, 1987Jourquin, Jacques, coord., Gutenberg, de l ́or au plomb, Jacques Dama- se éditeur, Paris, 1988Marchetti, S. D. B., O Impressor tipográfico, I vol., Oficinas de S. José, Lisboa, 1951McMurtrie, Douglas C., O livro, impressão e fabrico, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1969Nave, Francine de; Voet, Leon, Musée Plantin-Moretus, Anvers, Musea Nostra; Crédit Communal; Vlaanderen leeft, Bruxelas, 1989Presser, Helmut, Gutenberg-Museum of the city of Mainz, World Mu- seum of Printing, English Edition, Peter-Winkler Verlag, Mainz, 1986Steinberg, S. H., 500 Años de Imprenta, Ediciones Zeus, Barcelona, 1963Tory, Geofroy, Champ Fleury ou l ́Art et Science de la Proportion des Lettres, ed. fac-simile, Charles Bosse Éditeur, Paris, 1931Vervliet, Hendrik D. L., Les canons de Garamond,Essai sur la formation du caractère romain en France au seizième siècle, [s. l., s. n., s. d.]

Bibliografia

Page 27: De letra de mão à letra de forma
Page 28: De letra de mão à letra de forma

FACULDADE DE BELAS ARTES DE LISBOANo âmbito da disciplína de Design editorial

REALIZADO POR

Maria Ferreira da Silva