de freud a jung: uma breve introdução fundamento... · primeiro aluno da classe e aos dezessete...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA ORGANIZADORA: Profa. Georgina Faneco Maniakas São Carlos De Freud a Jung: uma breve introdução

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

ORGANIZADORA: Profa. Georgina Faneco Maniakas

São Carlos

De Freud

a

Jung:

uma breve introdução

2 SUMÁRIO

Introdução...................................................................................................................................03

FREUD 1. O início da investigação psicanalítica.....................................................................................05

2. Do Projeto à Interpretação dos Sonhos. A primeira tópica...................................................19

3. A Construção da sexualidade, a primeira teoria pulsional e o conceito de narcisismo........41

4. A segunda teoria pulsional, além do princípio do prazer e a segunda tópica...................... 58

5. Cultura, ética e subjetividade.................................................................................................73

Referênciasbibliográficas............................................................................................................83

JUNG

6. Jung: os anos de formação, o trabalho com Freud e as divergências conceituais...............84

7. Estrutura da Psiqué................................................................................................................91

8. O Processo de Individuação .................................................................................................93

9. Os sonhos..............................................................................................................................97

10. Apêndice................................................................................................................................99

3

INTRODUÇÃO

Na busca de um sentido para as doenças que não apresentavam lesão e que também

não eram mera simulação (histeria) é que Freud, como neurologista, começaria uma minuciosa

pesquisa que o levaria à constituição de um novo campo do conhecimento no qual o sintoma

adquiriria um sentido bastante diferenciado da doença, intrinsecamente ligado às funções de

um construto teórico que ele chamaria de aparelho psíquico.

Com a descoberta de processos inconscientes que agem sobre o sujeito sem que este o

saiba e limitam a sua liberdade, a psicanálise encontra-se em perpétua investigação, e o seu

campo de estudo vê os seus limites se ampliarem cada vez mais, ultrapassando a fronteira das

desordens da saúde mental, da conduta e da saúde somática, para inserir-se em um campo de

diálogo interdisciplinar. O mesmo questionamento que inaugurou a obra freudiana está

presente no projeto psicanalítico, marcado pelo desejo de identificar a origem do sofrimento

humano, e de renovar, incessantemente, a tentativa de dizer o indizível. À Freud devemos a dissolução, teórica e prática, das fronteiras entre o normal e o

patológico. Obras como A Interpretação dos Sonhos e Psicopatologia da Vida Cotidiana

continuam marcando gerações de pensadores.

Foi por meio da Interpretação dos Sonhos que Jung aproximou-se das idéias de Freud.

Jung havia citado A Interpretação dos Sonhos em sua tese (publicada em 1902), e a questão

com a qual se defrontava era: a psicanálise poderia ser utilizada com o mesmo êxito com os

pacientes psicóticos que atendia ?

Jung trabalhava desde dezembro de 1900 como Médico Assistente de Eugen Bleuer no

Burghölzli, Hospital Psiquiátrico de Zurique (também era a clínica de pesquisa da

universidade). Depois de dois anos em seu primeiro cargo, Jung começa suas experiência com

“testes de associações de palavras” (1902-06). Solicita aos pacientes que façam uma

“associação“ imediata a uma palavra estímulo. Em 1902-03 vai a Paris para estudar

psicopatologia em Salpêtrière, com Pierre Janet.

Em 1903, tanto Jung como Bleuer começam a interessar-se muito seriamente pelas

idéias de Freud. Em 17 de agosto de 1904, Sabina Spielrein (1885-1941), uma jovem russa, é

internada no Burghölzli: é a primeira paciente de Jung, histérica, tratada pelo método

psicanalítico. Em 1906, Jung começa a corresponder-se com Freud, e o visita em Viena no

início de 1907. Rapidamente eles desenvolvem uma íntima amizade profissional. No ano

seguinte acontece o Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise, em Salzburg.

Em 1909 Jung acompanha Freud a Massachussets, Estados Unidos, para uma série de

conferências na Clark University. Lá, ambos recebem seus Doutorados Honorários.

4 Em 1910 ocorre o Segundo Congresso Internacional de Psicanálise em Nuremberg.

Jung é nomeado presidente. No verão deste ano, Jung dá o primeiro curso de palestras sobre

“Introdução à Psicanálise” na Universidade de Zurique.

Em 1912 Jung funda a Sociedade de Trabalhos Psicanalíticos; em 1913 rompe com

Freud. Freud fica abalado com a cisão, Jung arrasado. O estresse decorrente contribui para um

esgotamento nervoso que ameaçava Jung deste 1912, quando havia começado a ter sonhos

catastróficos e vívidos e visões durante a vigília. Demite-se da Universidade de Zurique e se

fixa em sua clínica particular.

Na verdade, as tensões no relacionamento entre Jung e Freud são evidentes desde o

início, embora Freud valorizasse Jung como a nenhum outro integrante do movimento

psicanalítico.

Quando Jung uniu-se à Psicanálise em 1907, Freud havia inaugurado uma psicologia

radical, formada por uma hermenêutica poderosa, uma teoria revolucionária e parcialmente

empírica sobre o desenvolvimento da personalidade, uma nova metodologia terapêutica e uma

teoria nascente da psicologia cultural. O trabalho de Freud sobre sonhos, etiologia das

neuroses e desenvolvimento infantil estava-se tornando conhecido fora de Viena, e o

movimento psicanalítico internacional estava começando a se firmar. Quando o relacionamento

profissional entre ambos desmoronou por causa de discussões em torno do conceito de libido e

suas transformações, ambos os autores eram atores em um palco mundial, e Jung estava a

meio caminho de iniciar um movimento próprio.

Estudos recentes da Universidade de Cambridge (Douglas, 2002) afirmam que se Freud

e Jung tivessem sustentado seu relacionamento por mais alguns anos, a história psicanalítica

teria sido muito diferente, e hoje poderíamos contar com uma teoria muito mais abrangente e

completa da psique humana.

Para iniciarmos qualquer reflexão a respeito das conseqüências que a divergência

conceitual entre Freud e Jung trouxe para o desenvolvimento da psicanálise, é necessário,

antes de mais nada, conhecerrmos os principais conceitos propostos pelos autores,

compreendendo-os a partir do contexto histórico, filosófico e social onde surgiram.

5

1. O INÍCIO DA INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA

“Desses fantasmas tanto se enche o ar, Que ninguém sabe como os evitar”

(Fausto, parte II, ato V, cena 5)

1. 1 Sigmund Freud Sigmund Freud nasceu a 6 de maio de 1856 em Freiberg, um pequeno povoado

morávio, que, na época, fazia parte do Império Austro-húngaro.

Quando Freud estava com três anos, a família mudou-se para Viena. Um ano antes do

habitual, o pequeno Sigmund ingressou no Sperl Gymnasium. Os documentos ainda

conservados do instituto mostram que Freud foi um estudante brilhante: durante seis anos, foi o

primeiro aluno da classe e aos dezessete terminou o curso recebendo uma distinção

honorífica. Interessante notar que em seu exame para o acesso à Universidade, teve que

traduzir do grego para o alemão uma passagem do Édipo, de Sófocles.

A capacidade de expressão escrita de Freud haveria de conceder-lhe o mais importante

prêmio da língua alemã: o prêmio Goethe de literatura.

Possuía uma notável aptidão para línguas: além do latim e do grego, falava inglês,

francês, hebraico, e aprendeu por conta o italiano e o espanhol, esta última para ler Don

Quijote no original.

Freud iniciou seus estudos de medicina na Universidade de Viena, em 1873 e os

terminou em 1881, oito anos ao invés dos cinco habituais, porque cursou seminários não

obrigatórios de física, zoologia e filosofia: durante três anos assiste às aulas de Franz

Brentano.

Em seu quarto ano de faculdade começa a trabalhar no Laboratório de Fisiologia de

Ernst Brücke, um dos orientadores que mais haveriam de influenciar sua formação ao

transmitir-lhe os ideais do rigor científico e sua fé nos valores éticos. Brücke fazia parte da

escola de Helmholtz, que tencionava explicar todo o funcionamento do organismo em termos

de forças físicas e químicas; em última análise, as forças de atração e repulsão inerentes à

matéria.

Freud permaneceu seis anos (1876-1882) no Instituto de Brücke, no qual realizou

brilhantes pesquisas sobre a histologia do sistema nervoso, chegando a publicar uns vinte

trabalhos. Um deles pode ser considerados precursor da teoria dos neurônios, assim

denominado por Waldeyer em 1891.

6 Em outubro de 1882 ingressa como médico residente no Hospital Geral de Viena, onde

permaneceria por três anos, boa parte deles no departamento de Neurologia. Suas

publicações histológicas e clínicas lhe valem a nomeação como Privatdozent em

Neuropatologia (1885). Este título, importante na Alemanha e na Áustria, não tem equivalente

nas escolas de medicina de outros países. O Privatdozent pode dar aulas sobre temas

desejados, mesmo à margem do programa.

Em junho de 1885 solicitou uma bolsa de estudos para assistir as aulas de Jean Martin

Charcot, considerado o neurologista mais importante da época, no hospital de La Salpetrière,

em Paris. Charcot estava no centro dos estudos realizados nessa época sobre a histeria: foi o

primeiro a conceber essa neurose como uma enfermidade psíquica. Também foi ele quem

formou, na Salpetriére, um grupo de pesquisa sobre a histeria, ao qual pertenciam Binet e

Pierre Janet. Juntos, eles formavam a “escola de Salpetrière”.

Paralelamente em Nancy, outros pesquisadores médicos davam prosseguimento a

experiências com a histeria. Entre os achados destacam-se as conclusões de Bernheim.

Charcot conclui pela origem psíquica da histeria (cujos sintomas incluem: distúrbios

motores, amnésias, anestesias, paralisias, contraturas, convulsões, etc) pois, além de não

terem uma causa orgânica, podiam ser provocados e interrompidos por sugestão hipnótica; por

isso Charcot atribuía a histeria à auto-sugestão, e seu ponto de vista seria retomado por

Bernheim, Babinsky e Janet.

O encontro com Charcot foi extremamente significativo na vida de Freud, despertando

definitivamente seu interesse pela psicopatologia, iniciado alguns anos antes (1880-82).

quando acompanhou, junto ao Dr. Joseph Breuer, um caso de histeria em que a reminiscência

de certas lembranças (em estado de hipnose), havia modificado a situação patológica.

Trata-se do caso Anna O. (Bertha Pappenheim), uma jovem de 21 anos que

apresentava uma ampla gama de sintomas, originados durante o período em que assistiu seu

pai, enfermo, até o seu falecimento. Alguns dos sintomas apresentados por Anna O. eram

paralisia das extremidades, perturbações da visão, da fala e da alimentação, tosse nervosa,

confusão mental.

Durante as visitas de Breuer, Anna. relatava, em estado de hipnose, suas experiências

penosas e suas fantasias. Em certa ocasião, ao relatar detalhes do surgimento do primeiro

sintoma, este desapareceu por completo. Breuer, então, apercebeu-se que era possível libertar

Anna de seus transtornos desde que a paciente pudesse exprimir verbalmente o qua sentia.

Anna O. denominou esse procedimento de “cura pela fala” ou “limpeza de chaminé”, ao que

Breuer e Freud chamariam de catarse (termo de origem grega que significa purificação ou

purgação). A partir dessa experiência, acompanhada de perto por Freud, e, na realidade,

encerrada por ele (Breuer, por razões particulares, abandona o caso Anna O.), Freud concluiu

7 que os sintomas neuróticos estavam em relação com eventos aparentemente esquecidos do

passado, e o simples fato de relembrar esses eventos fazia desaparecer os sintomas. Existia,

portanto, um vínculo entre a ignorância de certas lembranças e a existência de sintomas.

No caso de Anna O., as lembranças recordadas remontavam a eventos que tinham a

impressionado na época em que cuidava do pai enfermo. Durante a extenuante vigília ao lado

do pai, Anna havia sido obrigada a reprimir (expulsar da consciência) um pensamento ou

impulso que logo havia sido substituído e representado por um sintoma.

Ao provocar e suprimir sintomas de histeria mediante a hipnose, Charcot demonstrou

que, independentemente de um suposta base neurológica, a doença tinha uma origem

psíquica, em geral de caráter traumático. Mas, enquanto Charcot se interessava

fundamentalmente pela anatomia, Freud adotou uma perspectiva psicológica. Em seu estudo

comparativo entre as paralisias histéricas e orgânicas, o autor demonstrou que as paralisias e

anestesias histéricas das diversas partes do corpo não seguem as vias nervosas que o estudo

anatômico revela, mas se configuram conforme a representação vulgar que o leigo tem do

funcionamento do corpo humano.

Ao voltar à Viena, expôs os resultados de suas observações, bem como suas

conclusões e publicações sobre a histeria a seus colegas da Sociedade Médica de Viena, que

o trataram com extrema frieza, o que o fez afastar-se da dita Sociedade.

Em 1886 abriu seu consultório privado e casou-se com Martha Bernays, com quem teria

6 filhos (3 meninos e 3 meninas).

Em seu trabalho com distúrbios nervosos, apesar do rechaço da Sociedade Médica,

substituiu os tratamentos correntes em neurologia na época (hidroterapia e eletroterapia) pela

sugestão hipnótica, obtendo resultados favoráveis, porém limitados. Concluiu que não era

possível hipnotizar todos os enfermos, nem estava ao alcance do médico obter, todas as

vezes, uma hipnose suficientemente profunda. Em razão dessas limitações, em 1889 viaja a

Nancy, para aperfeiçoar sua técnica hipnótica com Liébault e Bernheim.

As experiências que observou lhe revelaram a existência de processos mentais

poderosos, que, sem dúvida, permanecem ocultos à consciência; no entanto, Freud não se

contentaria nem com o método hipnótico de Charcot e nem com a sugestão pós-hipnótica de

Bernheim, pelas limitações que ambas apresentavam. Se, durante a hipnose, como resultado

da influência do médico, o paciente podia ampliar o campo de sua consciência e recuperar

lembranças esquecidas, o processo esbarrava em dificuldades intransponíveis, a saber: além

de não poder ser aplicável a todos os sujeitos, seus efeitos demonstravam-se instáveis, pois as

recidivas eram comuns, obrigando o paciente a ter que recorrer ao médico, de tempos em

tempos, para o alívio de novos sintomas que eram produzidos.

8 Freud, então, concluiu que deveriam existir poderosas forças inconscientes que

mantinham os sintomas – as quais deu o nome de resistências -, e que, durante a hipnose,

eram apenas “suspensas”, já que o enfermo de nada se lembrava ao final do processo, não

tendo, em última análise, nenhuma responsabilidade para com o que relatava.. Apenas o

médico era testemunha dos relatos, o que se tornava preocupante, pois dependendo da

personalidade e formação ética do médico, ele poderia ser levado a sustentar uma relação

autoritária e de dependência do paciente para com ele, contra a qual Freud terminantemente

se opunha.

Nosso autor concluiu que deveria haver uma outra maneira de trazer essas lembranças

encobertas à consciência com a participação do enfermo. Freud conclui que tanto a hipnose

quanto a sugestão contribuem para mascarar os fenômenos da resistência e da transferência ,

este último, fenômeno que Freud começa a perceber quando os sintomas histéricos,

suprimidos pela hipnose, reapareciam quando se interrompia o contato com o médico.

Em seu artigo de 1903-4, Freud diria:

“A hipnose (...) oculta a resistência, e assim impede ao médico penetrar no jogo das

forças psíquicas. Mas não liquida as resistências; somente as ilude, razão pela qual não

proporciona senão dados incompletos e resultados efêmeros”.1

Freud entende o fenômeno da transferência como a reprodução, na situação

terapêutica, de experiência vividas, principalmente na infância. Tudo aquilo que o sujeito não

recorda, exatamente por estar reprimido, excluído da consciência, retorna sob a forma de atos,

representações e sentimentos que se vinculam à pessoa do terapeuta, desconectada de sua

origem no passado distante.

Enfrentando diversas dificuldades, entre 1892 e 1896, Freud desenvolve um novo

método que permitiria ao paciente, em estado consciente, recuperar as recordações que

permaneciam esquecidas: o método da associação livre.

1.2 A especificidade de um método de pesquisa

Com o abandono da hipnose, Freud estruturou um método de tratamento cujo objetivo

era o acesso ao inconsciente do paciente, por meio da associação livre, método que consiste

na expressão indiscriminada de todos os pensamentos que ocorrem ao paciente. Um paciente

que procura um psicoterapeuta em busca de alívio para o seu sofrimento é convidado a falar

sobre isso, ou sobre qualquer outra coisa que prefira. Poderá falar sobre ele mesmo, a esposa,

os filhos, o vizinho. Poderá falar sobre o passado o presente, o futuro. De fato, ele deve dizer

qualquer coisa que lhe venha à mente. Esse processo de livre associação – invenção e base

1 FREUD, S. O método psicanalítico de Freud. (1904 [1903]). In: Obras Completas de S. Freud. Buenos Aires: Amorrortu Editores, p. 240.

9 da psicanálise -, no sentido da verbalização do próprio pensamento “aleatório”, é um

fenômeno que produz resultados extraordinários e que possui uma longa história. A julgar pela

amostra registrada na comédia de Aristófanes, As Nuvens, algo semelhante já era usado na

antiga Grécia.

A história conta que Estrepsíades, um lavrador estúpido, desonesto e mal casado vai a

Atenas consultar Sócrates sobre como poderia fraudar, com êxito, os seus credores. Sócrates

ordena-lhe que se deite [em um divã!] e expresse verbalmente suas livres associações, o que

ele tenta fazer, apesar dos percevejos no sofá e outras interrupções, enquanto Sócrates vai

apontando incoerências de seu discurso.

Freud reconheceu que, embora difícil, o método da associação livre mostrou-se o único

realmente eficaz.

O método da associação livre visa, em primeiro lugar, eliminar a seleção voluntária dos

pensamentos. Nesse sentido, mesmo os silêncios durante o discurso do paciente são

significativos. O objetivo é o de trazer à consciência, por meio da suspensão da seleção

intencional de pensamentos, um “outro discurso” determinado pelo inconsciente.

A inestimável vantagem desse procedimento em relação à hipnose é o fato de que,

através da associação livre, é possível elucidar progressivamente as resistências.

Embora seja a doença e a demanda de cura que levam o paciente ao tratamento, o

paciente não tem idéia do quanto trabalha contra o seu próprio restabelecimento e a favor de

sua doença. A força psíquica que atua para que essa situação se mantenha é a resistência e é

contra ela que trabalha continuamente o psicanalista.

Mas, de onde provêm as resistências ? Freud formula, então, a hipótese de que a

resistência é um efeito – manifesto no momento do trabalho clínico – de uma operação

inconsciente a qual denomina repressão. A repressão define-se como uma operação defensiva

mediante a qual o sujeito tenta expulsar da consciência ou manter em estado inconsciente as

representações (pensamentos, imagens, recordações) vinculada a desejos cuja satisfação, em

si mesma, pode provocar desprazer ou angústia em função de outras exigências psíquicas, por

exemplo, as aspirações morais ou ideais do eu.

O motivo da repressão é, então, o conflito psíquico que se estabelece quando se

opõem, no sujeito, exigências internas contrárias.

A repressão se refere, portanto, a um processo psíquico que se encontra na origem da

constituição do inconsciente, em todos os sujeitos2.

2 No princípio, Freud faria coincidir repressão e inconsciente, mas esta equivalência não haveria de se manter. Sem dúvida, a instância repressiva e as operações defensivas são, em sua maior parte inconscientes, mas, com a formulação da segunda tópica, Freud ampliará o conceito de inconsciente, aproximando-o do sentido a ele atribuído por outro médico alemão, Georg Groddeck (1886-1934), que, por sua vez, havia inspirado-se em Nietzsche. O indivíduo passará a ser pensado como um Isso (Es –

10 Em Cinco Conferências sobre Psicanálise (1910[1909]), realizadas por Freud na

Clark University de Massachusetts (Estados Unidos), encontramos alusões bastante didáticas

desse processo.

Diz o autor:

“Talvez possa ilustrar o processo de repressão e a necessária relação deste com a

resistência, mediante uma comparação grosseira, tirada de nossa própria situação neste

recinto. Imaginem que nesta sala e neste auditório, cujo silêncio e cuja atenção eu não saberia

louvar suficientemente, se acha no entanto um indivíduo comportando-se de modo

inconveniente, perturbando-nos com risos, conversas e batidas de pé, desviando-me a atenção

de minha incumbência. Declaro não poder continuar assim a exposição; diante disso alguns

homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e após ligeira luta põem o indivíduo fora

da porta. Ele está agora reprimido e posso continuar minha exposição. Para que, porém, se

não repita o incômodo se o elemento perturbador tentar penetrar novamente na sala, os

cavalheiros que me satisfizeram a vontade levam as respectivas cadeiras para perto da porta

e, consumada a repressão, se postam como resistências. Se traduzirmos agora os dois

lugares, sala e vestíbulo, para a psique, como consciente e inconsciente, os senhores terão

uma imagem mais ou menos perfeita do processo de repressão. (...)

Suponhamos que, com a expulsão do perturbador e com a guarda à porta, não

terminou o incidente. Pode muito bem ser que o sujeito, irritado e sem nenhuma consideração,

continue a nos dar que fazer. Ele já não está aqui conosco; ficamos livres de sua presença, dos

motejos, dos apartes, mas a expulsão foi por assim dizer inútil, pois lá de fora ele dá um

espetáculo insuportável, e com berros e murros na porta nos perturba a conferência mais do

que antes. Em tais conjunturas poderíamos felicitar-nos se o nosso honrado presidente, Dr.

Stanley Hall, quisesse assumir o papel de medianeiro e pacificador. Iria parlamentar com o

nosso intratável companheiro e voltaria pedindo-nos que o recebêssemos de novo, garantindo-

nos um comportamento conveniente daqui por diante. Graças à autoridade do Dr. Hall,

condescendemos em desfazer a repressão, voltando a paz e ao sossego. Eis uma

representação muito apropriada da tarefa que cabe ao médico na terapêutica psicanalítica das

neuroses.

Agora, para dizê-lo sem rodeios: chegamos à convicção, pelo exame dos doentes

histéricos e outros neuróticos, de que a repressão das idéias, a que o desejo insuportável está

apenso (anexado), malogrou. Expeliram-nas da consciência e da lembrança; com isso os

pacientes se livraram aparentemente de grande soma de dissabores. Mas o impulso desejoso,

que continua a existir no inconsciente à espreita de oportunidade para se revelar, concebe a

pronome alemão neutro da terceira pessoa do singular) desconhecido e inconsciente, sobre cuja superfície aparece o eu.

11 formação de um substituto do reprimido, disfarçado e irreconhecível, para lançar à

consciência, substituto ao qual logo se liga a mesmas sensação de desprazer que se julgava

evitada pela repressão. Esta substituição da idéia reprimida — o sintoma — é protegida contra

as forças defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um sofrimento

interminável. No sintoma, junto aos indícios de desfiguração, cabe reconhecer traços de

semelhança com a idéia originariamente reprimida. Pelo tratamento psicanalítico desvenda-se

o trajeto ao longo do qual se realizou a substituição, e para a recuperação é necessário que o

sintoma seja reconduzido, novamente, pelos mesmos caminhos, até a idéia reprimida.”

A experiência mostrou que ao fazer o paciente ou qualquer indivíduo rastrear suas

representações mnêmicas para alcançar estratos mais profundos de sua memória, por meio da

associação livre, um mesmo fenômeno ou ato psíquico passava por diferentes fases ou

diferentes estados, entre os quais se intercalava uma espécie de prova (censura) que, se não

fosse vencida, não permitiria que o conteúdo a ser recordado alcançasse a consciência.

No caso de mecanismo da histeria, Freud o resume no Projeto (1895) da seguinte

forma: seja A uma representação hiperintensa que todas as vezes que surge na consciência

leva o sujeito ao choro, sem que haja na própria representação motivos para isso. Após

análise, descobre-se a existência de uma certa representação B, que fornece motivos

suficientes para o choro, mas que até então não era consciente. Supõe Freud, então, que a

vivência original compunha-se de B + A, onde B exercia apropriadamente o efeito e A

constituía uma circunstância acessória. No entanto, na reprodução do acontecimento na

memória, A tomou o lugar de B como vivência principal, tornando-se a única consciente. A tornou-se símbolo de B, e, embora formações de símbolos ocorram normalmente no cotidiano,

no caso associativo da compulsão histérica acima descrita, o sujeito que chora por A não sabe

que o faz devido à sua associação com B, que lhe é indiferente.

Freud resume tal vivência atribuindo a B a característica de estar recalcado da

consciência.3 No caso do deslocamento operado na situação, mudou-se a distribuição

quantitativa, já que o acréscimo quantitativo de A se deveu à uma subtração quantitativa de B.

“Uma vez restituído à atividade anímica consciente aquilo que fora reprimido — e isso

pressupõe a superação de consideráveis resistências- o conflito psíquico desse modo gerado e

que o enfermo quis evitar, encontra, orientado pelo médico, uma solução melhor do que lhe

oferecia a repressão. Há várias dessas soluções para rematar satisfatoriamente conflito e

neurose, as quais, em determinados casos, podem combinar-se entre si. Ou a personalidade

3 Segundo o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, recalque significa uma operação pela qual o indivíduo procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O recalcamento produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível, por si mesma, de proporcionar prazer – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências psíquicas.

12 do enfermo se convence de que repelira sem razão o desejo e consente em aceitá-lo total ou

parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o

que se chama sublimação do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta

última hipótese o mecanismo da repressão, automático, e por isso mesmo insuficiente, é

substituído por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do

homem — assim se obtém o controle consciente do desejo”.

Posteriormente, Freud continua suas explicações em relação à técnica e ao método

psicanalítico:

“A elaboração das idéias que se oferecem ao paciente quando se submete à regra

psicanalítica fundamental não é o único recurso técnico para atingir o inconsciente. Ao mesmo

fim servem dois outros processos: a interpretação de sonhos e o estudo dos atos falhos e

casuais.

(...). A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do

inconsciente, a base mais segura da psicanálise. É campo onde cada trabalhador pode por si

mesmo chegar a adquirir convicção própria, como atingir maiores aperfeiçoamentos. Quando

me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista, respondo que é pelo estudo dos

próprios sonhos. Os adversários da psicanálise, com muita habilidade, têm até agora evitado

estudar de perto A Interpretação de Sonhos, ou têm oposto ao de longe objeções

superficialíssimas. Se não repugna aos presentes, ao contrário, aceitar as soluções dos

problemas da vida onírica, já não apresentam aos ouvintes dificuldade alguma as novidades

trazidas pela psicanálise. (...)

Examinando os sonhos de criancinhas, desde um ano e meio de idade, verificarão que

eles são extremamente simples e de fácil explicação. A criancinha sonha sempre com a

realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez. Não há necessidade

de arte divinatória para encontrar solução tão simples; basta saber o que se passou com a

criança na véspera (“dia do sonho”). Estaria certamente resolvido, e de modo satisfatório, o

enigma do sonho, se o do adulto não fosse nada mais que o da criancinha: realização de

desejos trazidos pelo dia do sonho. E o é de fato. As dificuldades que esta solução apresenta

removem-se uma a uma, mediante a análise minuciosa dos sonhos.

A primeira e mais importante objeção é a de que os sonhos dos adultos via de regra

têm um conteúdo ininteligível, sem nenhuma semelhança com a satisfação de desejos. Mas a

resposta é: estes sonhos estão distorcidos, o processo psíquico correspondente teria

originariamente uma expressão verbal muito diversa. O conteúdo manifesto do sonho,

recordado vagamente de manhã e que, não obstante a espontaneidade aparente, se exprime

em palavras com esforço, deve ser diferenciado dos pensamentos oníricos latentes, que

supomos existir no inconsciente. Esta deformação possui mecanismo idêntico ao que

13 identificamos ao investigar a gênese dos sintomas histéricos; e é uma prova da participação

da mesma interação de forças mentais tanto na formação dos sonhos como na dos sintomas.

O conteúdo manifesto do sonho é o substituto distorcido dos pensamentos oníricos

inconscientes, e esta deformação é obra das forças defensivas do eu, isto é, das resistências

que na vigília impedem aos desejos reprimidos do inconsciente todo o acesso à consciência; e

que, mesmo enfraquecidas durante o sono, ainda conservam força suficiente para obrigar (o

sonho) a adotar um disfarce encobridor. Quem sonha, portanto, reconhece tão mal o sentido de

seus sonhos, como o histérico as correlações e a significação de seus sintomas.

De que há pensamentos latentes do sonho e que entre eles e o conteúdo manifesto

existe de fato o nexo aludido, os presentes se convencerão pela análise de sonhos, cuja

técnica se confunde com a da psicanálise. Pondo de lado a aparente conexão dos elementos

do sonho manifesto, procurarão os senhores evocar idéias por livre associação, que para cada

elemento onírico singular se obtém na associação livre, seguindo a regra do trabalho

psicanalítico. A partir deste material chegarão aos pensamentos oníricos latentes do mesmo

modo como conseguiram alcançar, a partir das idéias evocadas pelas associações livres em

relação aos sintomas e lembranças dos pacientes, o complexo oculto. (...)

Posso agora tratar do terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo se tornou

recurso técnico da psicanálise.

Os fenômenos em questão são as pequenas falhas comuns aos indivíduos normais e

aos neuróticos, fatos aos quais não costumamos dar importância — o esquecimento de coisas

que deviam saber e que às vezes sabem realmente (por exemplo a fuga temporária dos nomes

próprios), os lapsos de linguagem, tão freqüentes até mesmo conosco, na escrita ou na leitura

em voz alta; atrapalhações no executar qualquer coisa, perda ou quebra de objetos etc.,

bagatelas de cujo determinismo psicológico de ordinário não se cuida, que passam sem reparo

como casualidades, como resultado de distrações, desatenções e outras condições

semelhantes. Juntam-se ainda os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e,

sobretudo, sem lhes atribuir importância mental, como sejam trautear melodias, brincar com

objetos, com partes da roupa ou do próprio corpo etc. Essas coisinhas, os atos falhos, como

atos sintomáticos e fortuitos, não são assim tão destituídos de valor como, por uma espécie de

acordo tácito, é hábito admitir. São extraordinariamente significativos e (...) exprimem impulsos

e intenções que devem ficar ocultos à própria consciência, ou emanam justamente dos desejos

reprimidos e dos complexos que, como já sabemos, são criadores dos sintomas e formadores

dos sonhos.(...) Por eles o homem trai, em regra, os mais íntimos segredos.”

14 •Freud e Sherlock Holmes ?

A perspicácia de Freud para encontrar nos pequenos atos – em geral, desprezíveis- a

pista que o levaria ao “pondo nodal” da trama em questão levaria vários observadores a

comparar o método psicanalítico a um processo de investigação criminal.

O próprio Freud, em suas Conferências Introdutórias (1915-16) afirma:

“E se fosse um detetive empenhado em localizar um assassino, esperaria achar que o

assassino deixou para trás sua fotografia, no local do crime, com seu endereço assinalado? Ou

não teria, necessariamente, de ficar satisfeito com vestígios fracos e obscuros da pessoa que

estivesse procurando? Assim sendo, não subestimemos os pequenos indícios; com sua ajuda

podemos obter êxito ao seguirmos a pista de algo maior”.

Essa característica metodológica da psicanálise não passaria desapercebida do escritor

Nicholas Meyer, que escreveria um conto que se tornou best-seller em vários idiomas, e foi

adaptado para o cinema, no qual o escritor aproxima o famoso detetive Sherlock Holmes do

psicanalista vienense.

Assim como Freud, as soluções de Holmes, personagem de Conan Doyle, baseavam-se

na capacidade que tinha de dar atenção aos pequenos fatos incomuns, encontrando a solução

de um problema complicado através da observação de um pequeno lapso ou característica

menor. Eis um pequeno exemplo:

Dr. Watson acaba de chegar inesperadamente à Baker Street, 221 B, esperando

persuadir o grande detetive a acompanhá-lo em suas férias. Antes que comece a falar, Holmes

diz, claramente, qual o objetivo daquela visita:

(Nas palavras de Holmes):

"Conhecendo bem você como conheço, é absurdamente simples. Seus horários de

cirurgia são das cinco às sete; contudo, às seis horas você entra sorrindo em meus aposentos.

Portanto, você deve ter um substituto. Você parece bem, mas cansado; então, a razão óbvia é

que você está tendo ou está para ter férias. O termômetro clínico aparecendo em seu bolso

declara que você esteve de ronda hoje; portanto, é bastante evidente que suas férias

verdadeiras começam amanhã. Quando, sob estas circunstâncias, você vem apressado aos

meus aposentos - os quais, a propósito, Watson, você não visita há três meses - , com um

Bradshaw novo e uma tabela de horários de excursões inchando o bolso do seu casaco, então

é mais do que provável que você tenha vindo com a idéia de sugerir alguma expedição

conjunta".

Mas segundo os historiadores, algo mais do que simples coincidências aproximaram

historicamente o criador de Sherlock Holmes, Conan Doyle e o método psicanalítico.

Conan Doyle nunca fez segredo de seu débito à Joseph Bell, um cirurgião de Edinburgh,

para a criação do personagem Sherlock Holmes. Bell, que podia diagnosticar pessoas assim

15 que elas entravam em seu consultório, antes mesmo que pudessem pronunciar a primeira

palavra, definia a habilidade de reconhecer e apreciar as pequenas diferenças ou detalhes

como o fator verdadeiramente essencial em todo diagnóstico médico bem sucedido.

Além disso, Conan Doyle teve um tio que fora diretor da Galeria de Arte de Dublin e

franco admirador do trabalho do médico italiano Giovanni Morelli (1816-1891), o qual era capaz

de determinar, na pintura, os atributos específicos que habilitam um crítico de arte a distinguir

entre a obra de um mestre e de um simples imitador. A solução de Morelli aponta para os

detalhes triviais, que caracterizam o estilo de cada artista. Segundo Morelli: “(...) para identificar

as formas características de um artista, precisamos nos remeter àquelas partes da pintura

sobre as quais existam menos pressões convencionais (...) Por isso, precisamos levar a sério a

representação da mão, as cortinas, a paisagem, a parte arredondada do polegar ou o lóbulo da

orelha” 4.

Embora não se pudesse esperar que muitos médicos conhecessem o trabalho de Morelli

ou que se interessassem pela história da arte, Freud escreve em seu artigo sobre o Moisés de Michelângelo (1914):

“Muito antes que pudesse dar-me conta da descoberta da psicanálise, soube que um

conhecedor de arte russo, Ivan Lermolieff, provocara uma revolução nas galerias de arte da

Europa revisando a autoria de muitos quadros, ensinando a distinguir com segurança as cópias

dos originais, e desmascarando novos artistas, cuja suposta autoria das obras demonstrou ser

falsa. Conseguiu tudo isso insistindo em que a atenção deveria ser desviada da impressão

geral e das características principais de um quadro, dando-se ênfase às características dos

detalhes de menor importância, como o formato das unhas, dos lóbulos das orelhas, as

auréolas dos santos e outras trivialidades cuja imitação o copista omitia5 e que, sem dúvida,

cada artista executa de uma maneira característica. (...) sob esse pseudônimo russo ocultava-

se um médico italiano chamado Morelli, falecido em 1891 (...). Parece-me que seu método de

investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise. Também esta está habituada a

deduzir, a partir de traços pouco percebidos ou aspectos menosprezados, coisas secretas ou

encobertas (...)6

Em Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud nos fornece um exemplo

bastante ilustrativo da utilização de seu método em relação a um lapso de fala, narrando uma

experiência do cotidiano:

“No verão passado — também durante uma viagem de férias —. renovei meu contato

com um jovem de formação acadêmica, que logo constatei estar familiarizado com algumas de

minhas publicações psicológicas. Nossa conversa recaiu — já não me lembro como — sobre a

4 WOLLHEIM, apud SHEPHERD, p. 20. 5 No sentido de que descuidava, não observava. 6 AE, vol. 13, p. 227.

16 situação social da raça a que ambos pertencemos, e ele, impelido pela ambição, passou a

lamentar-se por sua geração estar condenada à atrofia (segundo sua expressão), não podendo

desenvolver seus talentos ou satisfazer suas necessidades. Concluiu seu discurso, de tom

apaixonado, com o célebre verso de Virgílio em que ainfeliz Dido confia à posteridade sua

vingança de Enéias: “Exoriare…” Melhor dizendo, ele quis concluí-lo desse modo, pois não

conseguiu fazer a citação e tentou esconder uma evidente lacuna em sua lembrança trocando

a ordem das palavras: “Exoriar(e) ex nostris ossibus ultor.’’ Por fim, disse, irritado: “Por favor,

não me faça essa cara tão zombeteira, como se se estivesse comprazendo com meu

embaraço, mas antes me ajude! Falta alguma coisa no verso. Como é mesmo que diz,

completo?”

“Ajudarei com prazer”, respondi, e dei-lhe a citação correta: “Exoriar(e) ALIQUIS nostris

ex ossibus ultor.”

“Que tolice, esquecer essa palavra! Por falar nisso, o senhor diz que nunca se esquece

nada sem uma razão. Gostaria muito de saber como foi que esqueci esse pronome indefinido,

‘aliquis‘.”

Aceitei o desafio prontamente, na esperança de conseguir uma contribuição para minha

coleção. Disse-lhe, pois:

—Isso não nos deve tomar muito tempo. Só tenho que lhe pedir que me diga,

sinceramente e sem nenhuma crítica, tudo o que lhe ocorre enquanto estiver dirigindo, sem

nenhuma intenção definida, sua atenção para a palavra esquecida.

—“Certo; então me ocorre a idéia ridícula de dividir a palavra assim: a e liquis.”

—O que quer dizer isso?

—“Não sei.” — E o que mais lhe ocorre? — “Isso continua assim: Reliquien [relíquias],

liquefazer, fluidez, fluido. O senhor já descobriu alguma coisa?”

—Não, ainda não. Mas continue.

—“Estou pensando” — prosseguiu ele com um sorriso irônico — “em Simão de Trento,

cujas relíquias vi há dois anos numa igreja de Trento. Estou pensando na acusação de

sacrifícios de sangue que agora está sendo lançada de novo contra os judeus, e no livro de

Kleinpaul [1892], que vê em todas essas supostas vítimas reencarnações, reedições, por assim

dizer, do Salvador.”

—Essa idéia não está inteiramente desligada do tema de nossa conversa antes que lhe

escapasse da memória a palavra latina.

—“Exato. Estou pensando ainda num artigo que li recentemente num jornal italiano.

Acho que o título era ‘O que diz Santo Agostinho sobre as mulheres’. Que entende o senhor

com isso?”

—Estou esperando.

17 —“Pois agora vem algo que por certo não tem nenhuma ligação com o nosso tema.”

—Por favor, peço-lhe que se abstenha de qualquer crítica e…

—“Sim, já sei. Lembro-me de um magnífico senhor idoso que encontrei numa de minhas

viagens na semana passada. Ele era realmente original. Parecia uma enorme ave de rapina.

Chamava-se Benedito, se isso lhe interessa.”

—Bem, pelo menos temos uma seqüência de santos e padres da Igreja: São Simão,

Santo Agostinho, São Benedito. Acho que havia um padre da Igreja chamado Orígenes. Além

disso, três desses nomes são também prenomes, como Paul [Paulo] em Kleinpaul.

—“Agora o que me ocorre é São Januário e o milagre de seu sangue — parece que

meus pensamentos avançam mecanicamente.”

—Deixe estar; São Januário e Santo Agostinho têm a ver, ambos, com o calendário.

Mas que tal me ajudar a lembrar do milagre do sangue?

—“O senhor com certeza já ouviu falar nisso! O sangue de São Januário fica guardado

num pequeno frasco, numa igreja de Nápoles, e num determinado dia santo ele se liquefaz

milagrosamente. O povo dá muita importância a esse milagre e fica muito agitado quando há

algum atraso, como aconteceu, certa vez, na época em que os franceses ocupavam a cidade.

Então, o general comandante — ou será que estou enganado? será que foi Garibaldi? —

chamou o padre de lado e, com um gesto inequívoco na direção dos soldados a postos do lado

de fora, deu-lhe a entender que esperava que o milagre acontecesse bem depressa. E, de fato,

o milagre ocorreu…”

—Bem, continue. Por que está hesitando?

—“É que agora realmente me ocorreu uma coisa… mas é íntima demais para ser

comunicada… Além disso, não vejo nenhuma ligação nem qualquer necessidade de contá-lo”.

—Pode deixar a ligação por minha conta. É claro que não posso forçá-lo a falar sobre

uma coisa que lhe seja desagradável; mas então não queira saber de mim como foi que se

esqueceu da palavra aliquis.

—“Realmente? O senhor acha? Pois bem, é que de repente pensei numa dama de

quem eu poderia receber uma notícia que seria bastante desagradável para nós dois.”

—Que as regras dela não vieram?

—“Como conseguiu adivinhar isso?”

—Já não é difícil. Você preparou bem o terreno. Pense nos santos do calendário, no

sangue que começa a fluir num dia determinado, na perturbação quando esse acontecimento

não se dá, na clara ameaça de que o milagre tem que se realizar, se não… Na verdade, você

usou o milagre de São Januário para criar uma esplêndida alusão às regras das mulheres.

18 —“Sem me dar conta disso. E o senhor realmente acha que foi essa expectativa

angustiada que me deixou impossibilitado de reproduzir uma palavra tão insignificante como

aliquis?”

—Parece-me inegável. Basta lembrar sua divisão em a-liquis, e suas associações:

relíquias, liquefazer, fluido. São Simão foi sacrificado quando criança; devo continuar, e mostrar

como ele entra nesse contexto? O senhor pensou nele partindo do tema das relíquias.

—‘’Não, prefiro que não faça isso. Espero que o senhor não leve muito a sério esses

meus pensamentos, se é que realmente os tive. Em troca, quero confessar que a dama é

italiana e que estive em Nápoles com ela. Mas será que tudo isso não é apenas obra do

acaso?”

—Tenho que deixar a seu critério decidir se todas essas relações podem ser explicadas

pela suposição de que são obra do acaso. Posso dizer-lhe, no entanto, que qualquer caso

semelhante que você queira analisar irá levá-lo a “acasos” igualmente notáveis.

Tenho diversas razões para dar valor a essa pequena análise e sou grato a meu ex-

companheiro de viagem por ter-me presenteado. Em primeiro lugar, porque, nesse caso, pude

recorrer a uma fonte que habitualmente me é negada. Para os exemplos aqui reunidos de

perturbações de uma função psíquica na vida cotidiana, tenho de recorrer principalmente à

auto-observação. Empenho-me em evitar o material muito mais rico fornecido por meus

pacientes neuróticos, já que, de outro modo, poder-se-ia objetar que os fenômenos em questão

são meras conseqüências e manifestações da neurose. Por isso, é particularmente valioso

para meus objetivos que uma outra pessoa que não sofra de doença nervosa se ofereça como

objeto de tal investigação. (...).A situação dever ser interpretada da seguinte maneira: o falante

vinha deplorando o fato de a geração atual de seu povo estar privada de seus plenos direitos;

uma nova geração — profetizou ele, como Dido — haveria de vingar-se dos opressores. Nisso

ele expressara seu desejo de ter descendentes. Nesse momento intrometeu-se um

pensamento contraditório: “Você realmente deseja descendentes com tanta intensidade? Isso

não é verdade. Quanto não lhe seria embaraçoso receber agora a notícia de que espera

descendentes do lugar que você sabe? Não: nada de descendentes… por mais que

precisemos deles para a vingança.”

19 2. DO PROJETO À INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS.

A PRIMEIRA TÓPICA

2.1 O Projeto de Psicologia

É na tentativa de formular uma psicologia isenta de contradições que Freud apresenta,

em seu Projeto de Psicologia (1895), os processos psíquicos como "estados

quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis". 7 Tais partículas

seriam os neurônios.

Duas seriam as classes de neurônios: 1.a células de recordação, ou neurônios ψ -

neurônios que operariam com barreiras de contato, deixando que o fluxo de quantidade passe

com dificuldade ou só parcialmente, apresentando, após a passagem de cada excitação, um

estado diverso do anterior, permitindo com isso uma possível constituição da memória; 2.a

células de percepção, ou neurônios φ , - neurônios que operariam como se não possuíssem

nenhuma barreira de contato.

As resistências (situadas nos contatos entre os neurônios, como barreiras) explicariam o

armazenamento de quantidade no interior dos sistemas.

A memória, portanto, é vista como uma propriedade do tecido nervoso, como uma

disponibilidade do mesmo para ser alterado por um processo singular em contraposição a outro

tipo de tecido, que permite a passagem de um movimento de onda sem receber qualquer

vestígio posterior de sua passagem.

Além dos neurônios de memória e percepção, Freud postularia a existência de uma

terceira classe de neurônios, os neurônios ω , responsáveis por explicar a consciência.

É no Projeto que Freud postula o princípio da constância, segundo o qual o sistema

tende a manter constante ou o mais baixa possível a quantidade, ao mesmo tempo em que se

defende de qualquer acréscimo.

Freud supõe a constituição primitiva do aparelho como determinada pela marca da

experiência fundamental de um organismo que, embora tendo como meta a sobrevivência, não

tem inicialmente condições de assegurá-la, por não possuir meios de agir sobre o mundo

exterior a fim de modificá-lo.

O organismo humano, desamparado ao nascimento, depende de um outro para realizar

uma ação, chamada de específica, que, além de assegurar-lhe a vida, possibilita-lhe suprimir o

excesso de estimulação endógena provocado pela não satisfação da necessidade. À

realização da ação específica segue-se um estado de bem-estar, sendo que ao conjunto dessa

experiência Freud denomina vivência de satisfação.

7 AE, vol. 1, p. 339

20 Como conseqüência dessa vivência inicial de satisfação, a cada novo estado de

pressão, ou de desejo, a imagem mnêmica do objeto de satisfação será reativada no aparelho,

provocando um efeito essencialmente alucinatório. A partir de então o desejo pode ser

pensado como um movimento de natureza psíquica, uma vez que a experiência da

presentificação de um objeto, independente de sua presença real, escapa à ordem da qual o

desejo primordialmente emergiu.

Vemos, portanto, que a noção de desejo no Projeto já nasce intrinsecamente

relacionada à noção de alucinação, ambas vinculadas à vivência de satisfação.

O que passa a ocorrer, então, é que a cada novo investimento 8 dos neurônios ψ (do

núcleo) pelos estímulos endógenos, tanto a imagem mnêmica do objeto de desejo quanto a da

ação reflexa são reativadas, resultando com isso num alucinar da vivência de satisfação. O

desengano só poderá ser resolvido na medida em que, pela ausência da ação específica, o

organismo se der conta de que a fonte de estimulação endógena não foi cancelada.

Tal solução, no entanto, não se aplica ao sonho, onde não há critério que torne possível

a diferenciação entre percepção do objeto real e reanimação da imagem mnêmica desse

mesmo objeto. Não há, portanto, nenhuma maneira de impedir o alucinar daquele que se

encontra em estado de sono. No sonho não há um critério que possibilite a distinção entre

representação e percepção. E esse critério é necessário tanto para que o estado de desejo não

invista o objeto de recordação sem a presença do objeto real - do qual depende a satisfação -,

quanto para evitar o reinvestimento de uma possível imagem mnêmica hostil, impedindo que se

siga a liberação de desprazer.

A um investimento quantitativo exacerbado do objeto de desejo, segue-se uma

reanimação alucinatória da representação desse objeto, que faz com que ω tome a recordação

como percepção e decrete a descarga, fracassando, dessa forma, como critério demarcatório

de realidade objetiva.

O critério que irá operar tal distinção é atribuído por Freud à inibição pelo eu,

corroborada pela advertência da experiência biológica de não iniciar a descarga antes do

surgimento do sinal de realidade objetiva, para que o limite no investimento das recordações de

desejo não ultrapasse certo limiar.

A partir de então é que Freud distingue processos psíquicos primários e processos

psíquicos secundários, atribuindo aos primeiros o investimento do desejo até a alucinação,

8 Investimento: palavra que deve ser traduzida levando-se em conta a significação do termo original em alemão. Besetzung, palavra composta pelo prefixo be e pelo verbo setzen, remete à ação de colocar em um espaço um objeto que vem de outro lugar, ocupando este lugar. Em relação ao verbo setzen, há uma plasticidade imagética e uma mobilidade inerente ao verbo (que pressupõe a ação de colocar e retirar, novamente). Em geral, a conotação de Bezetzung liga-se à idéia de fluidez, algo pertinente ao modelo freudiano de circulação energética, onde há vias, locais, entradas, saídas, bloqueios, etc.

21 bem como a irrupção do desprazer, e, aos segundos, a modificação dos primeiros através da

inibição do eu, o que possibilita a valorização correta dos signos de realidade objetiva e o

discernimento ou o ato de julgar, provocado pela dessemelhança entre o investimento de

desejo de uma recordação e um investimento perceptivo semelhante à ela. A coincidência dos

investimentos coloca fim ao ato de pensar, permitindo a descarga; a discordância impulsiona o

trabalho do pensamento na busca de nova identidade.

O sono, que se caracteriza por uma paralisia motora do sujeito, inicia-se por um

fechamento dos órgãos dos sentidos. Com o caminho da descarga motora barrado, a excitação

proveniente de fonte endógena encontra-se livre para operar o processo que Freud

denominava no Projeto (1895) de compulsão a associar. Ψ fecha-se às impressões de φ,

enquanto φ não está investido. É o sono, portanto, a condição para a ocorrência de sonhos ou,

mais especificamente, de processos primários em Ψ. Diferentemente dos processos

secundários, que visam uma identidade de pensamento, os processos primários visam uma

identidade de percepção,

Como o sono é o único estado, comum a todos os homens, em que cada sujeito vivencia

cotidianamente o processo alucinatório, independente de ter ou não qualquer

comprometimento psíquico, sem que isso acarrete os danos que uma irrupção do mesmo

processo acarretaria na vigília, é à sua elucidação como caráter próprio do sonho que Freud

dirige seus esforços no capítulo VII da obra que considera o seu trabalho mais importante: A Interpretação dos Sonhos(1900).

2.2 A interpretação dos sonhos Sem abandonar suas idéias fundamentais, em A Interpretação dos Sonhos Freud

passa a especificar o sentido dos conteúdo inconscientes, ou seja, o sentido daquilo que se

alucina cotidianamente, por meio do que chamamos sonho. As conseqüências de tal

descoberta marcariam definitivamente o rompimento do autor com a dicotomia normalidade X

anormalidade, ou sanidade X loucura, uma vez que os mesmos mecanismos, presentes nas

neuroses e, mais tarde, como veremos, também nas psicoses, fazem parte de nosso cotidiano

e da história do desenvolvimento de cada indivíduo.

2.2.1.O caráter alucinatório dos sonhos e a regressão Da conjectura de Fechner de que "o cenário dos sonhos é outro que o da vida de

representações da vigília"9 Freud introduz a idéia de localidade psíquica, frisando

principalmente o caráter psicológico e não anatômico dessa localidade. Utilizando, como

analogia, a representação auxiliar de um aparelho ótico, o autor encontra a correspondência da

22 localidade psíquica em um lugar no interior desse aparelho de lentes onde se "produzem um

dos estágios prévios da imagem"10, exatamente num lugar onde nenhum componente do

aparelho é apreensível.

Assim sendo, Freud constrói a hipótese de um aparelho psíquico 11 com base no

modelo ótico, supondo que tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interior é virtual, tal e qual as imagens que surgem entre as lentes do telescópio quando da propagação de luz.

Freud supõe o aparelho psíquico como um instrumento no qual os elementos,

chamados sistemas ψ, dispõem-se sucessivamente numa sequência fixa, distribuídos como as

lentes de um telescópio, possuindo um extremo sensorial, por onde recebe as percepções, e

um extremo motor, pelo qual o fluxo dos estímulos sensoriais encontra saída por meio da

motilidade. O processo psíquico distribui-se, nesse aparelho, de forma reflexa, obedecendo a

direção que vai do extremo da percepção à motilidade.

Quando da passagem das percepções o aparelho retém um registro que Freud chamou

de registro mnêmico, alterando com ele o sistema que o conserva.

O que Freud propõe para responder pelo caráter alucinatório dos sonhos é uma

inversão no caminho do fluxo excitatório, que, ao invés de tomar a direção progressiva da

vigília, que vai do extremo sensorial ao extremo motor do aparelho, propaga-se exatamente na

direção inversa, tomando uma direção regressiva.

Essa direção regressiva, ou regressão, é considerada por Freud como uma das

características psicológicas do processo onírico, essencial para explicar seu caráter

alucinatório, embora, como esse último, não pertença exclusivamente aos sonhos, ocorrendo

na vigília em processos que envolvam um retrocesso mnêmico, como é o caso das psicoses.

9 AE, vol. 5, p. 530; GW, vol. II/III, p. 541 10 AE, vol. 5, p. 530; GW, vol. II/III, p. 541 11 Aparelho psíquico: expressão utilizada para designar características próprias do psiquismo: a sua capacidade de transmitir e de transformar uma energia determinada e sua diferenciação em sistemas ou instâncias. Freud explica o seu funcionamento tomando como referência a concepção neurofisiológica do arco-reflexo. O sistema nervoso tem um extremo sensorial (terminações nervosas dos órgãos dos sentidos) por onde recebe as excitações ou quantidades de energia oriundas dos estímulos, e um extremo motor, por onde se descarrega a energia recebida mediante uma resposta motora. Entre ambos situam-se os centros nervosos da medula espinhal ou do cérebro, encarregados de receber a energia e transformá-la em ação, com o conseqüente efeito de reduzir a tensão gerada pelo estímulo. O aparelho psíquico, em sua origem, funciona como um aparelho reflexo: toda a nossa atividade psíquica parte de estímulos, sejam externos ou internos, e termina em enervações motoras. Freud supõe, portanto, um aparelho que possui um extremo sensorial, que recebe as percepções, e um extremo motor, que controla a passagem para a ação. Entre ambos os extremos do aparelho se interpõem os registros mnêmicos, ou seja, as marcas deixadas pelas experiências vividas pela criança desde o seu nascimento. As marcas dessas percepções deixadas no psiquismo tornam possível a memória. Além de assegurar a permanência do conteúdo das percepções, estas encontram-se enlaçadas entre si na memória, configurando redes associativas. A conseqüência é que a excitação tenderá a seguir os caminhos traçados por essas redes.

23 O processo ocorre, então, na direção contrária -regressiva- uma vez que faz com

que os pensamentos convertam-se na imagem sensorial que os teria originado.

Ao vincular a regressão com o aparelho psíquico anteriormente suposto, Freud encontra

explicação para o fato empírico de que, a partir do trabalho do sonho, desaparecem ou ficam

quase impossibilitadas de expressão as relações lógicas entre os pensamentos oníricos.

Em relação a essas regressões, facilmente observadas nas alucinações da histeria, da

paranóia e nas visões de pessoas normais, o processo regressivo traduz-se igualmente na

mudança de pensamentos em imagens, restringindo essa mudança a pensamentos que estão

intimamente conectados às recordações sufocadas ou que mantêm-se inconscientes.

Segundo Freud: "O sonho, então, pensa de maneira predominante, ainda que não

exclusiva, por imagens visuais." Ainda continua: " Não obstante, a única característica do

sonho são esses elementos do conteúdo que se comportam como imagens, vale dizer, se

assemelham mais a percepções que a representações mnêmicas. Deixando de lado as

discussões acerca da natureza da alucinação, bem conhecidas de todos os psiquiatras,

podemos enunciar, seguindo a todos os autores versados na matéria, que o sonho alucina,

substitui pensamentos por alucinações." 28

No sentido de comprender a origem desse caráter peculiar dos sonhos Freud retoma o

esquema da vivência de satisfação formulado no Projeto, na seção C do capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos, em que uma parte essencial desta vivência é a associação da

imagem mnêmica de uma determinada percepção (a amamentação, por exemplo) ao traço

deixado na memória pela excitação produzida pela necessidade.

Com o reaparecimento da necessidade, uma moção psíquica será suscitada por

associação e tentará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção, a fim de

reproduzir a mesma percepção, restabelecendo a situação de satisfação primitiva. A essa

moção psíquica Freud chama de desejo. A reaparição da percepção ligada à satisfação da

necessidade é a realização de desejo, sendo o caminho mais curto para esta realização

aquele que vai da excitação eliciada pela necessidade ao total investimento da percepção. Aqui

se reproduziria, portanto, um estado primitivo do aparelho psíquico, onde o estado de desejo

termina num alucinar da satisfação.

No sentido de comprender a origem desse caráter peculiar dos sonhos Freud

retoma o esquema da vivência de satisfação formulado no Projeto, na seção C do capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos, em que uma parte essencial desta vivência é a associação

da imagem mnêmica de uma determinada percepção (a amamentação, por exemplo) ao traço

deixado na memória pela excitação produzida pela necessidade.

28 AE, vol. 4, p. 73; GW, vol. II/III, p. 52

24 Com o reaparecimento da necessidade, uma moção psíquica será suscitada por

associação e tentará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção, a fim de

reproduzir a mesma percepção, restabelecendo a situação de satisfação primitiva. A essa

moção psíquica Freud chama de desejo. A reaparição da percepção ligada à satisfação da

necessidade é a realização de desejo, sendo o caminho mais curto para esta realização

aquele que vai da excitação eliciada pela necessidade ao total investimento da percepção. Aqui

se reproduziria, portanto, um estado primitivo do aparelho psíquico, onde o estado de desejo

termina num alucinar da satisfação.

Tanto a inibição da regressão quanto o desvio da excitação passam ao sistema

responsável pela motilidade voluntária.

Freud deduz, a partir daí, que toda atividade de pensamento requerida para estabelecer

a identidade perceptiva com o mundo exterior, nada mais é do que um rodeio para a realização

de desejo, imposto como necessário pela experiência.

O pensar é, desse modo, um substituto do desejo alucinatório, o que evidencia ser o

sonho uma realização de desejo, uma vez que só um desejo pode levar ao trabalho o aparelho

psíquico. O sonho conserva, portanto, o modo primário de trabalho do aparelho.

O processo primário está ligado à tendência original do aparelho psíquico de

descarregar a soma de excitação, percebida de modo subjetivo como desprazerosa ou

desagradável. A excitação segue uma via progressiva, que vai do extremo sensorial-perceptivo

até o extremo motor.

No entanto, a excitação pode tomar o caminho regressivo, se propagando para o

sistema perceptivo. Ë o que ocorre nos sonhos: a representação transforma-se na imagem

sensorial da qual havia originado. No entanto, esse processo não é exclusivo dos sonhos. Ele

ocorre na vigília, seja por meio da memória voluntária, da reflexão, ou de outros modos de

pensamento que pressupõem um retrocesso dentro do aparelho. Nesses casos, a regressão

não avança além das imagens mnêmicas e não chega a reanimar as imagens perceptivas,

convertendo-as em alucinações, como ocorre no sonho e nas psicoses.

" (...) O sonhar em seu conjunto é uma regressão à condição mais prematura do

sonhante, uma reanimação de sua infância, das moções pulsionais que o governaram então e

dos modos de expressão de que dispunha. Por trás dessa infância individual, há a promessa

de alcançar uma perspectiva sobre a infância filogenética, sobre o desenvolvimento do gênero

humano, do qual o indivíduo é de fato uma repetição abreviada, influenciada pelas

circunstâncias contingentes de sua vida."12 Citando a afirmação de Nietzsche, para quem no

sonho "segue atuando um antiquíssimo veio do humano que já não pode alcançar-se por um

12 AE, vol. 5, p. 542; GW, vol. II/III, p. 541

25 caminho direto"13, e movido por ela, Freud espera, mediante a análise dos sonhos, ser

possível alcançar o conhecimento sobre o que há de inato no psiquismo individual bem como

sobre a herança arcaica da espécie.

Afim de sustentar a hipótese de que a ilogicidade e incoerência dos sonhos é apenas

aparente, Freud refuta a possibilidade de que as associações psíquicas possam estar

conectadas ao acaso e postula a existência de um determinismo dentro do psíquico, através

do qual fundamenta a prática clínica da associação livre.

Assim, o fato de emergirem representações involuntárias, durante a interpretação de um

sonho, não significa que o sujeito esteja entregue a um decurso de representações sem meta.

Para Freud, ao cessarem as representações-meta conhecidas surgem representações-meta ignoradas governando o curso das representações involuntárias.

Através da hipótese do determinismo psíquico, também são refutadas as freqüentes

objeções em relação à uma reprodução falseada do sonho, marcada pela infidelidade de nossa

memória e pelo acréscimo de material que preencheria as lacunas pré-existentes ou criadas

pela memória quando o sujeito tenta reproduzir o sonho. Para Freud, mesmo estas

modificações mantêm associação com o conteúdo que substituem, servindo como pistas que

indicam o caminho desse conteúdo, que pode ainda ser substituto de um outro.

Como consequência desse raciocínio e da relação de identidade entre sonho e sintoma,

é feita a distinção básica entre conteúdo manifesto do sonho e pensamentos oníricos latentes. Tal distinção remete-se à idéia de que, como os sintomas, os sonhos apresentam-se

deformados em relação ao seu conteúdo original. Freud postula, então, a existência de

mecanismos de deformação, explicados pela existência de um trabalho do sonho.

2.2.2 Elementos de formação do sonho

A conduta do sonho de ocultar do sonhante que é um desejo seu que está sendo

cumprido Freud chama de desfiguração onírica, atribuindo sua origem a uma tendência à

defesa contra a realização desse desejo, identificando-a após a análise de sonhos de conteúdo

penoso e de um sonho pessoal, onde a desfiguração aparece claramente como meio de

dissimulação .

Utilizando-se de um equivalente da vida social, no qual um crítico político, para dizer

verdades que desagradarão aos poderosos, utiliza-se do artifício da dissimulação para não ver

suprimidas suas manifestações, Freud exemplifica a relação que supõe presente na

composição onírica. Assim como o crítico político tem que temer a censura para poder

continuar a expressar suas opiniões, que só podem ser exteriorizadas de forma moderada e

13 AE, vol. 5, p. 542; GW, vol. II/III, p. 541

26 desfigurada, também no sonho, composto por dois poderes (instâncias ou sistemas), a

censura exercida por um deles desfigura a exteriorização do desejo formado e expresso pelo

outro.

Como somente o conteúdo desfigurado é recordado como consciente, deixando com

que os pensamentos latentes formadores do sonho tenham que ser descobertos ou inferidos

mediante análise posterior, conclui Freud que o privilégio da instância que exerce a censura é o

da admissão à consciência. Do primeiro sistema ou instância nada pode chegar à

consciência sem passar por essa segunda instância, e essa segunda instância, por sua vez,

nada deixa passar sem impor as modificações que considera necessárias para que se dê o

acesso do material à consciência. O sonho, portanto, inicia-se na primeira instância, uma vez

que à segunda cabe um papel defensivo, censurador e não criativo.

A questão dos sonhos de conteúdos penosos e de caráter desprazeiroso fica resolvida,

então, mediante a ação da desfiguração onírica: o conteúdo penoso, nesse momento, não é

mais do que um meio através do qual o cumprimento de desejo disfarça seu conteúdo.

A partir daí Freud resume a essência do sonho na seguinte fórmula:

"O sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (sufocado, recalcado)." 14

Também à desfiguração onírica Freud atribui a responsabilidade de sonharmos com

uma impressão onírica indiferente, quando é outra a impressão que ocasionou o sonho. O

processo psicológico pelo qual a vivência indiferente ocupa o lugar da que possui valor

psíquico é como uma transposição do acento psíquico pela via de elos intermediários, até que

as representações, no começo carregadas com intensidade débil, tomam a carga das

representações mais intensamente investidas, alcançando com isso a força necessária para

ascender à consciência.

Por outro lado, o sonho pode apresentar impressões que não se encontram dispostas na

memória de vigília, como as impressões da primeira infância, ou ainda ser excitado pelo

desejo que brota da vida infantil, fazendo-nos encontrar, no sonho, "a criança que segue

vivendo com seus impulsos."15

Ao analisar um sonho em que cavalgava quando na realidade sentia dores que o

impossibilitariam exatamente de realizar um exercício como este, conclui Freud que o sonho

não só negou o sofrimento da vigília, como utilizou-se de uma imagem para figurar o que

estava psiquicamente presente de maneira atual, também servindo ao propósito da

comodidade, ao garantir o seu sono através da repressão das dores que poderiam fazê-lo

despertar. Atribui, então, ao sonho o papel de guardião do sono, e computa o desejo de dormir como motivo para formação de sonhos.

14 AE, vol. 4, p. 177; GW, vol. II/III, p. 166 15 AE, vol. 4, p. 206; GW, vol. II/III, p. 197

27 Tal papel atribuído ao desejo de dormir já se encontra explícito desde a carta de

04.03.1895 (carta 22) da correspondência Freud-Fliess, na qual Freud relata um sonho que

chama de sonho de comodidade, onde a formação alucinatória do sonho é criada com a

finalidade de garantir ao sonhante a continuidade do sono. Nele, um sobrinho de Breuer,

Rudi Kaufmann, após ser chamado pela manhã, como de costume, não acordou, substituindo o

despertar pela alucinação onírica de um letreiro de hospital que continha o seu nome, o que o

autorizou a continuar dormindo, já que podia dizer a si mesmo: se Rudolf Kaufmann já está no

hospital, então não há necessidade de ir até lá. 16

Neste sonho, retomado em A Interpretação dos Sonhos, já se pode vislumbrar o

estreito vínculo entre o processo alucinatório do sonho e a realização do desejo: é o desejo que se encontra na base de formação do processo alucinatório do sonho.

Ao pensar o recalque como mecanismo básico para a formação do sonho, Freud torna

possível o desmembramento entre o conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho, já

apontado pela diferença entre o conteúdo onírico e os resultados obtidos através de sua

análise.

Freud centra, então, suas investigações sobre as relações entre o conteúdo manifesto e

os pensamentos oníricos latentes, pesquisando, a partir daí, os processos através dos quais o

sonho converte os últimos nos primeiros. Com isso, inaugura um capítulo fundamental para a

compreensão das leis psíquicas que regem tanto a vida onírica quanto a vida psíquica em

geral.

2.2.3 O trabalho do sonho O sonho não é um conteúdo psíquico acabado. É resultado de um trabalho que, não

podendo ser apreendido pela introspecção, deve ser inferido a partir da desproporção entre o

conteúdo manifesto do sonho e toda a gama de pensamentos oníricos latentes descobertos

pelo trabalho de análise e interpretação dos mesmos.

Freud considera essa uma tarefa eminentemente teórica, proporcionalmente inversa ao

trabalho de interpretação. Se através da interpretação do conteúdo manifesto chega-se ao

latente, descortinar os modos de trabalho do sonho significa caminhar em sentido oposto.

A primeira inferência a que chega Freud a partir da comparação entre o compacto

conteúdo manifesto do sonho e a riqueza e extensão dos pensamentos oníricos latentes é a de

16 Ainda em A Intepretação dos Sonhos Freud se refere a uma certa quantidade de sonhos que, em oposição a liberdade do sujeito de dar ao sonho um cunho pessoal, são sonhados por todas as pessoas do mesmo modo, o que o leva a supor que expressam o mesmo significado. A eles dedica a seção chamada Sonhos típicos, classificando a maioria deles em sonhos: de nudez, de morte de pessoas queridas -a que Freud remete à competição entre irmãos, ao complexo de Édipo e a um possível relacionamento com os sonhos de angústia-, de queda, de vôo -os quais remete às impressões deixadas pelos jogos de movimento da infância-, de exames escolares, etc.

28 que ocorreu um amplo trabalho de condensação do material psíquico. A condensação,

descrita pela primeira vez em A Interpretação dos Sonhos, opera com quantidades de

energia que, de modo geral, ao se deslocarem ao longo de cadeias associativas, convergem

para a representação que melhor responda às exigências de formação de sonho (como por

exemplo, da censura, da consideração pela figurabilidade). A condensação também exprime

intensidades de investimento: quanto mais fortemente investidos os produtos da condensação,

maior vivacidade sensorial adquirirão no sonho manifesto.Nem mesmo os pensamentos

oníricos revelados mediante análise constituem o material completo implicado na formação de

um determinado sonho; prosseguindo o trabalho analítico podem-se descobrir ainda outros

sonhos, ocultos sob o sonho em questão.

Não existe, portanto, segurança de que um sonho possa ser interpretado à exaustão e

mesmo diante de uma resolução satisfatória do trabalho interpretativo fica a possibilidade de

que através de um mesmo sonho insinue-se ainda um outro sentido. Não é possível, portanto,

determinar a cota de condensação do trabalho do sonho.

As conexões associativas de pensamento estabelecidas durante a análise do material

onírico, mesmo que não tenham estado diretamente presentes no processo de formação do

sonho, ainda assim estão a ele ligadas como contatos laterais. Observa Freud que quando se

reelabora uma das cadeias da imensa massa de pensamentos descobertos pela análise, que

parece situar-se fora da trama do sonho, imediatamente surge um pensamento que tem seu

substituto no conteúdo do sonho.

Trata-se de um pensar inconsciente, muito diverso do processo reflexivo consciente.

Dele, somente uns poucos elementos alcançam o conteúdo do sonho, não sendo o sonho um

reflexo projetivo exato dos pensamentos oníricos, senão um reflexo incompleto e bastante

disforme dos mesmos.

Dirigindo sua atenção para as condições que comandam a eleição do material que, ao

atingir a consciência, proporciona o resultado citado, observa que: (a) através da via

associativa, um elemento do sonho leva a vários pensamentos oníricos e um pensamento

onírico, a vários elementos do sonho; (b) ocorre uma certa elaboração do total da massa de

pensamentos oníricos, após o quê elementos com melhor apoio são selecionados para o

ingresso no conteúdo onírico; (c) qualquer sonho submetido à desarticulação analítica tem

seus elementos configurados a partir da massa de pensamentos oníricos, mas aparecem, cada

um deles, determinado de maneira múltipla por referência aos primeiros.

Em relação às formações léxicas desprovidas de sentido, que surgem nos sonhos,

Freud também as atribui ao resultado da condensação do trabalho onírico, através da qual as

palavras são manejadas como se fossem coisas, experimentando as mesmas construções

29 que experimentam as representações. Nesse sentido as "deformações léxicas do sonho se

assemelham muito às que conhecemos na paranóia, mas que tampouco faltam na histeria e

nas idéias obsessivas." 17E apontando para uma origem comum, conclui Freud: "Tanto para o

sonho quanto para as psiconeuroses a fonte comum são os artifícios verbais das crianças, que

em certos períodos tratam de fato as palavras como se fossem objetos e inventam linguagens

novas e formações sintáticas artificiais".18

Observa Freud que elementos que se impõem como essenciais no sonho jamais

desempenham o mesmo papel nos pensamentos oníricos, sendo verdadeira também a

proposição inversa: o que constitui conteúdo essencial nos pensamentos oníricos pode nem

aparecer no sonho, ou, se aparecer, ser tratado como um elemento de valor ínfimo. O sonho

está, por assim dizer, diversamente centrado em relação aos pensamentos oníricos. O

processo responsável por tal ocorrência, entendido por Freud como o processo essencial do

trabalho onírico, é chamado de deslocamento. O deslocamento, entendido basicamente

como o movimento, inerente a um investimento, de abandonar representações e deslizar

através dos elos de cadeias associativas, como mecanismo mais antigo precede, na teoria,

historicamente os outros três. pois já havia surgido como noção em As neuropsicoses de defesa, 1894, e no Projeto, 1895. 19

Em A Interpretação dos Sonhos, o deslocamento vem acompanhado da perspectiva

de uma subversão dos valores psíquicos presentes nos pensamentos oníricos; além de um

deslizar de investimentos, implica num deslocamento de intensidades, fundamentando

teoricamente a observação clínica de que conteúdos ínfimos e aparentemente indiferentes do

conteúdo manifesto podem levar à elucidação do sonho.

À ação do deslocamento Freud atribui a modificação experimentada pelo conteúdo do

sonho em relação ao núcleo dos pensamentos oníricos. É ele um dos principais meios para o

conteúdo do sonho alcançar a desfiguração onírica, ocorrendo por influência da censura que

uma instância exerce sobre a outra.

Para Freud o deslocamento e a condensação são "os mestres artesãos a cuja

atividade podemos atribuir principalmente a configuração do sonho". 20

17 AE, vol. 4, p. 309; GW, vol. II/III, p. 309 18 AE, vol. 4, p. 309; GW, vol. II/III, p. 309 19 Neste último, o deslocamento representa o movimento de Q. (quantidade) entre as facilitações constituídas pelos neurônios, podendo ser definido como o modo de funcionamento específico dos processos psíquicos primários. Ele também participa da formação do sonho, que se caracteriza por deslocamentos rápidos de Q. e pela substituição de uma representação quantitativamente desprivilegiada por outra, quantitativamente superior. Como conceito, vemos o deslocamento surgir no ensaio As neuropsicoses de defesa, em uma passagem na qual Freud distingue nos processos psíquicos algo que, além de aumentar, diminui, descarrega-se, desloca-se, comparando-o à passagem de uma corrente elétrica pela superfície de um corpo. 20 AE, vol. 4, p. 313; GW, vol.II/III, p. 313

30 No sonho ocorre uma subversão de todos os valores psíquicos. Um conflito da

vontade pode ser expresso, por exemplo, pela sensação de inibição do movimento. Já o caso

do sonho que se sonha dentro de outro sonho, verifica Freud tratar-se de uma forma com que o

trabalho do sonho utilizou o próprio sonhar para dissuadir o sonhante da realidade do sonho

sonhado dentro do outro sonho.

Da indagação pela figuração das relações lógicas no sonho Freud adentra um tema

mais vasto, relacionado à alteração experimentada pelo material onírico com vistas à formação

do sonho. O material, desarticulado de suas relações em sua maior parte, é comprimido

simultaneamente à subversão dos valores psíquicos que ocorre entre seus elementos, por

meio do deslocamento de intensidade. Outro tipo de deslocamento proposto, além do que tem

por função a substituição de uma representação pela que está mais próxima dela na cadeia

associativa, é percebido por uma permutação da expressão linguística dos pensamentos que a

originaram. Ambos os deslocamentos ocorrem ao largo de uma cadeia associativa; não

divergem, portanto, no processo, mas ocorrem em diferentes esferas psíquicas, dando como

resultado a substituição de um elemento por outro em um dos casos, e a permuta de palavras

que expressam um elemento pelas que expressam o outro, no outro caso.

O deslocamento se consuma quando, nas palavras de Freud, "uma expressão incolor e

abstrata do pensamento onírico é trocada por outra, figurativa e concreta". 21

O figurativo tem a vantagem, em relação à expressão abstrata, de inserir-se facilmente

numa situação.

"Se o pensamento onírico, inutilizável em sua expressão abstrata, é remodelado em uma

linguagem figurativa, entre essa nova expressão e o resto do material onírico podem

estabelecer-se com maior facilidade que antes os contatos e identidades que o trabalho do

sonho requer e que ele cria toda vez que não os encontra dados; com efeito, em qualquer

linguagem, em virtude de sua evolução, os termos concretos são mais ricos em ligações do

que os conceituais. Cabe imaginar, então, que, na formação do sonho, boa parte do trabalho

intermédio, que procura reduzir os pensamentos isolados à expressão mais unitária e concisa

possível, se produz desta maneira, a saber, mediante a apropriada remodelação linguística de

cada um deles" 22

Freud remete o sonho, então, à linguagem, verificando que nele ocorrem expressões de

uma ordem linguística primitiva, observando que também as neuroses tiram proveito das

vantagens que a palavra oferece à condensação e ao disfarce. Se a desfiguração onírica

facilmente induz ao engano, quando substitui duas palavras unívocas por uma multívoca,

quanto mais se uma expressão figurativa substitui as usuais.

21 AE, vol. 5, p. 345; GW, vol. II/III, p. 345 22 Idem, ibid.

31 Mais uma vez, compara Freud o sonho à linguagem ao observar que a figuração

característica do sonho oferece a seu tradutor o mesmo grau de dificuldades que oferece a

seus leitores a escrita hieroglífica antiga. Em suas palavras:

"Pensamentos do sonho e conteúdo do sonho se nos apresentam como duas figurações

do mesmo conteúdo em duas linguagens diferentes; melhor dizendo, o conteúdo do sonho se

nos aparece como uma transferência dos pensamentos do sonho a outro modo de expressão,

cujos signos e leis de articulação devemos aprender a discernir pela via da comparação entre o

original e sua tradução. Os pensamentos do sonho nos resultam compreensíveis tão logo

cheguemos a conhecê-lo. O conteúdo do sonho nos é dado, por assim dizer, em uma

pictografia, cada um de cujos signos tem de transferir-se à linguagem dos pensamentos do

sonho." 23

Entre as várias ligações colaterais dos pensamentos oníricos, Freud nota uma

preferência do trabalho do sonho pelas que irão permitir uma figuração visual; a partir daí,

Freud deduz um terceiro fator, que se segue ao deslocamento e condensação na mudança dos

pensamentos oníricos no conteúdo do sonho, ao que denomina consideração pela figurabilidade. Supõe, ainda, que, com vistas a possibilitar essa figuração, o trabalho do

sonho pode primeiro encontrar uma outra forma linguística para expressar os pensamentos

abstratos, ainda mais insólita. Essa outra forma, por sua vez, pode pôr-se à serviço da

condensação, criando vínculos com outro pensamento já alterado em sua expressão original.

A consideração pela figurabilidade exprime uma exigência do modo de expressão do

sonho, que expressa até pensamentos abstratos por imagens, e exterioriza-se na eleição e

transformação dos pensamentos oníricos com esse fim. A eleição implica na seleção, entre as

diversas conexões de pensamentos, daquela que melhor possa expressar-se de forma

figurativa; e a transformação pressupõe a orientação do deslocamento para a representação

que substitua figurativamente os pensamentos em questão.

O último mecanismo a incidir sobre a formação do sonho manifesto é a elaboração secundária. Tal elaboração, no intuito de figurar algo semelhante a um sonho diurno com o

material que se lhe oferece, tem o poder de apropriar-se de uma fantasia diurna formada

dentro da trama dos pensamentos oníricos e utilizá-la no conteúdo do sonho, de forma a repeti-

la intacta ou quase intacta, a superpô-la a outras, a comprimi-la, a condensá-la, a utilizar

apenas um de seus elementos ou uma alusão à eles, etc.

A elaboração secundária incide somente sobre os produtos dos outros mecanismos;

sua meta é imprimir ao conteúdo trabalhado o aspecto de coerência que o aproximaria da

inteligibilidade. Essa meta pode alcançar-se também por meio de uma ação seletiva, levando o

trabalho do sonho a utilizar-se de fantasias diurnas para esse fim.

23 AE, vol. 4, p. 285; GW, vol. II/III, pp. 283-84

32 O decisivo para a inclusão de fantasias no conteúdo do sonho são, obviamente, as

vantagens que podem oferecer à censura e ao mecanismo de condensação; durante o sono,

uma parte da atenção ativa durante a vigília permanece voltada ao sonho, controlando-o,

criticando-o, interrompendo-lhe, o que sugere a Freud reconhecê-la como o censor, que tantas

restrições impõe durante a elaboração onírica.

Mas, além de atuar no processo de formação do sonho, a elaboração secundária é

responsável pela desfiguração do sonho durante sua reprodução verbal. Como a elaboração

secundária não é mais do que conseqüência da censura a que estão submetidos os

pensamentos oníricos, a modificação do sonho, na recordação que dele temos e em seu relato

verbal, não é arbitrária. Na realidade, tal modificação mantém-se associativamente conectada

com o conteúdo que substitui, servindo para indicar o caminho até esse conteúdo, que por sua

vez ainda pode estar no lugar de um outro.

A elaboração secundária seria, portanto, o próprio pensamento normal que, exigindo do

conteúdo onírico inteligibilidade, submete-o a uma interpretação prévia. Em vista disso, Freud

coloca sob suspeição a coerência aparente do sonho, não estabelecendo diferença entre um

conteúdo claro ou um conteúdo obscuro quando se trata de rastrear os pensamentos oníricos.

O que, no entanto, surpreende Freud é o fato de o sonho se formar contra uma

resistência tão atuante em sua formação, a ponto de, a serviço dela, a vida de vigília

demonstrar o claro propósito de esquecer o sonho que se formou durante a noite.

Em relação ao trabalho do sonho, numa nota de rodapé, agregada em l925,

encontramos a seguinte observação de Freud: "(...) o sonho não é mais do que uma forma

particular de nosso pensamento, possibilitada pelas condições do estado de dormir. É o

trabalho do sonho o que produz essa forma, e somente ele é a essência do sonho, a

explicação de sua especificidade".24 Possibilitado pelo sono, o trabalho do sonho é algo que

qualitativamente difere do pensamento de vigília, como atesta uma passagem do capítulo VI de A Interpretação dos Sonhos relacionada à especificidade do trabalho do sonho: "Não

pensa, nem calcula, nem em geral julga, senão que se limita a remodelar pensamentos,

cálculos e juízos".25

Quanto ao conteúdo afetivo do sonho, Freud sustenta que é principalmente por ele que

o sonho pode reivindicar um lugar junto às vivências reais do sujeito. A análise ensinou a

Freud, que embora o conteúdo da representação surja de forma alterada no sonho, em

consequência de deslocamentos, substituições e desfiguração onírica, o afeto sentido não

experimenta mudanças. É o afeto, em todo o complexo psíquico, a parte mais resistente em

24 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11 24 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, p. 511 24 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11

33 relação à ação da censura. Ele pode manter uma certa conexão com o conteúdo substituto

da representação que lhe correspondia, ou, então, pode dissociar-se da representação

correspondente, inserindo-se em um contexto a que não pertence.

Através da reconstrução dos pensamentos oníricos, via análise, Freud percebe que as

moções de afeto presentes nesses são muito mais intensas que aquelas presentes no

conteúdo do sonho, por isso atribui ao trabalho do sonho uma sufocação de afetos.Tal

sufocação adviria de uma inibição provocada pelos poderes psíquicos em conflito durante a

formação do sonho. A inibição do afeto resultaria, então, da ação da censura onírica, na

verdade seu segundo resultado, após o da desfiguração onírica. Além de surgirem no conteúdo

do sonho fora de contexto ou consideravelmente reduzidos, os afetos podem também ser

transformados em seu contrário.

Segundo Freud pôde concluir, na formação do sonho o trabalho psíquico " (...)

decompõe-se em duas operações: a produção de pensamentos oníricos e sua transmutação

no conteúdo do sonho. Os pensamentos oníricos formam-se de modo inteiramente correto e

com todo o gasto psíquico de que são capazes; pertencem a nosso pensar não tornado

consciente, do qual, por uma certa transposição surgem os pensamentos conscientes.(...) Por

outro lado, o outro trabalho, o que muda os pensamentos inconscientes no conteúdo do sonho,

é próprio da vida onírica e característico dela.”26 Sobre esse trabalho, responsável pela realização do desejo sob forma alucinatória, não

se pode exercer nenhuma influência, conforme Freud expressaria no capítulo VII de

Observações sobre a teoria e a prática da interpretação dos sonhos, de 1922:

"Sobre o mecanismo de formação do sonho como tal, sobre o trabalho do sonho

propriamente dito, nunca se exerce influência; é lícito ter isto por seguro" 27

O trabalho do sonho é, portanto, através do conjunto de mecanismos que representa,

uma operação básica na constituição do aparelho psíquico. No entanto, fica-nos a questão:

qual é o fator que requer a suposição de uma operação tão básica e tão independente de

influências como é a do trabalho do sonho ?

Do mesmo modo que, no Projeto, em A Interpretação dos Sonhos, embora sob outra

perspectiva, o objeto primeiro sobre o qual o trabalho do sonho opera são as quantidades de investimento. O trabalho do sonho opera, portanto, com uma grandeza que foi concebida

como tendo todas as propriedades de uma quantidade e que, praticamente, fundamenta

todo o funcionamento do aparelho psíquico.

25 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, p. 511 26 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11 27 AE, vol. 19, p.116

34 2.3 A PRIMEIRA TÓPICA

A palavra tópica, que deriva do grego topoi, significa teoria dos lugares, e foi utilizada

pela Filosofia desde a Antigüidade. Para Aristóteles, por exemplo, os lugares (topoi) eram a

base a partir da qual derivavam as premissas de uma argumentação. Já para Kant, a tópica

transcendental é a determinação do lugar que convém a cada conceito.

Para Freud, o aparelho psíquico é um construto teórico, um modelo que tem como

objetivo representar o nosso funcionamento psíquico. Em psicanálise, a palavra tópica supõe

que esse aparelho ou modelo é composto de diferentes sistemas de funcionamento, dotados

de determinadas características. Trata-se de uma representação espacial que considera esses

sistemas, metaforicamente, como lugares psíquicos (Tubert, 2000).

De acordo com o ponto de vista tópico, os sistemas inconsciente, pré-consciente e

consciente são sistemas mnêmicos constituídos por grupos de representações regidos por

diversas leis de associação. Por analogia com um aparelho ótico, Freud supõe que a localidade

psíquica corresponde a um lugar situado no interior desse aparelho, em que a imagem gerada

por meio da passagem da luz entre as lentes não corresponde a nenhum elemento concreto do

instrumento, ou seja, não coincide com as próprias lentes.

Freud supõe um ordenamento espacial dos sistemas: o sistema pré-consciente

encontra-se situado entre o inconsciente e a consciência; está separado do primeiro por meio

de uma rígida censura que impede que as representações inconscientes passam ao sistema

pré-consciente e à consciência. Por isso o inconsciente, em si, é inacessível. Somente

podemos conhecê-lo por meio de seus efeitos, que irrompem em nossas palavras ou atos, por

exemplo, de modo alheio a intenção de nosso eu. Entre o sistema pré-consciente e a

consciência, o autor supõe existir outra censura, de caráter mais brando, que controla o acesso

à consciência e à motricidade voluntária.

Para o autor, todo e qualquer ato psíquico é inconsciente em sua origem, e poderá

permanecer nesse estado ou não, dependendo da intensidade de censura que sofrer. A partir

dessa premissa podemos compreender a diferenciação entre pensamentos pré-conscientes,

suscetíveis de se tornarem conscientes a qualquer momento, e pensamentos inconscientes,

que, se alcançam a consciência, o fazem mediante deformações, impostas pela censura.

A explicação para a oposição entre os sistemas pré-consciente e inconsciente reside em

um ponto de vista dinâmico, para o qual a oposição entre os dois sistemas é o resultado de um

conflito de forças psíquicas que lutam ativamente entre si, de modo que nosso psiquismo não é

homogêneo, senão que se encontra marcado por contradições que o dividem.

35 Inconsciente e Pré-Consciente podem ser compreendidos como redes de registros

mnêmicos que se diferenciam, do ponto de vista topográfico, por sua posição em relação à

consciência, e do ponto de vista dinâmico e econômico, segundo os modos de funcionamento

que Freud chama de processos primário e secundário (Tubert, 2000).

Como vimos, as formações do inconsciente (atos falhos, sonhos, sintomas) são o

resultado de duas forças opostas: o conteúdo reprimido retorna, mas de uma maneira

disfarçada (o esquecimento da palavra ALIQUIS, no exemplo do capítulo anterior), o que faz o

autor supor que uma força repressora esteja atuando constantemente para que isso ocorra.

No entanto, tal repressão não ocorre contra representações extáticas. É preciso

considerar as cargas de energia que circulam no aparelho psíquico, o que nos leva ao ponto de

vista econômico da psicanálise.

Toda a representação é investida por um impulso (TRIEB = pulsão), e procura

continuamente ter acesso à consciência. A passagem de um ato psíquico de um sistema para

outro efetua-se por meio de um desinvestimento por parte do primeiro e um reinvestimento pelo

segundo.

No entanto, a dinâmica e a economia dos sistemas demonstram que cada qual possui

características singulares, os quais exporemos a seguir.

2.3.1 O sistema Inconsciente Freud postulou que determinados processos ocorrem dentro do sistema Inconsciente,

modulando o seu funcionamento.

A característica essencial do sistema inconsciente é que nele só existem conteúdos mais ou menos investidos. Ele é caracterizado por uma extrema mobilidade das intensidades

de investimento, o que Freud chamou de processo psíquico primário, e que representaria

sua marca fundamental. O processo psíquico primário é regido pela extrema mobilidade dos

investimentos. Isso significa que a energia psíquica que investe os registros mnêmicos escoa-

se livremente, movendo-se sem barreiras de uma representação para outra segundo os

mecanismos de deslocamento e condensação, sendo sua tendência o reinvestimento pleno

das representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo (alucinação

primitiva).

Desde o Projeto (1895) Freud verificou que uma representação podia transmitir seu

quantum de investimento a outra representação. O processo de deslocamento pode-se definir

pelo fato da energia investida em uma representação ser suscetível de retirar-se dela para unir-

se a outras representações de intensidade antes fraca, mas ligadas à primeira por uma série

de associações. Para exemplificar, lembremos do papel do deslocamento em relação ao

sonho: ele tanto pode substituir um elemento importante da trama do sonho por uma

36 representação bastante afastada na cadeia associativa, trazendo à consciência nada mais do

que uma alegoria em relação ao conteúdo principal, como pode transferir o acento psíquico de

um elemento importante para outro, pouco importante, deslocando o centro do sonho, o que o

faz parecer absurdamente estranho.

Já a condensação faz de uma só representação o representante de numerosas séries

de associações, tomando para si a energia que antes investia uma série de representações.

Nesse caso, é igualmente por meio do sonho que podemos exemplificar esse processo mais

facilmente: a descrição de certos elementos do sonho manifesto apresenta uma grande

disparidade quando comparada aos achados, proporcionados pela via associativa, dos

pensamentos oníricos latentes. Por exemplo, vários elementos diferentes podem se

apresentar, no sonho manifesto, reunidos em uma unidade composta, seja por meio de um

tema ou de um personagem.

• Características do sistema Inconsciente (Ics):

Regido pelo processo primário (mobilidade dos investimentos, energia livre), o Inconsciente

freudiano, como sistema, possui as seguintes características específicas:

a. Atemporalidade: como o próprio Freud ressaltou, os processos no Inconsciente não são

ordenados cronologicamente, não são alterados pela passagem do tempo, não tem qualquer

relação com o tempo, como nós racionalmente o concebemos. (Podemos notar que o conceito

de tempo desenvolve-se na criança somente após determinados estágios de seu

desenvolvimento cognitivo).

b. Indiferença perante a realidade: a tendência do inconsciente é seguir o princípio do

prazer, que pressiona no sentido da busca da realização dos desejos mais primitivos,

independentemente da realidade, que ele desconhece.

c. Realidade psíquica: memórias de acontecimentos reais e de experiências imaginárias

não se distinguem nessa instância psíquica. Símbolos abstratos não são reconhecidos como

abstratos, mas são tratados como se eles representassem a realidade concreta.

d. Ausência de contradição: independentemente do pensamento racional e julgamento

formal, elementos contraditórios (situações contraditórias) são totalmente compatíveis no

inconsciente, e coexistem lado a lado.

e. Ausência de negação: diferentemente do que o não representa no processo formal de

pensamento, adquirido durante o desenvolvimento, a negação não existe para o inconsciente.

A negação está presente nos outros sistemas psíquicos, mas não no inconsciente. Um dos

exemplos mais claros, que pode ser comprovado em diversas situações, é que, por não

conhecer a negação, o inconsciente não conhece a morte (como negação, oposição, ou fim da

vida).

37 f. Palavras são tomadas como “coisas”: a experiência de Freud levou-o a postular que

o inconsciente trata as palavras como se fossem coisas. Tal processo se evidencia no

“desmonte” regressivo a que todos os conceitos são submetidos durante o sono e o trabalho do

sonho, e em algumas formas de esquizofrenia.

2.3.2 O sistema Pré-Consciente (Pcs)

Recordemos que os conteúdos do sistema Pré-Consciente estão ausentes do campo da

consciência, mas se diferenciam do conteúdos do sistema Inconsciente (Ics) na medida em

que são, potencialmente, acessíveis à consciência (recordações e conhecimentos em estado

potencial e não atual, por exemplo). É o sistema que possui acesso à motilidade voluntária,

pois se encontra mais próximo do extremo motor do aparelho e permite, sob determinadas

condições, que os processos psíquico tenham acesso à consciência. No entanto, para que isso

ocorra, é necessário que tais processos se submetam a uma segunda censura, entre o Pcs e a

consciência. Esta censura difere da censura que se encontra entre este sistema e o Ics, no

sentido de que seleciona muito mais do que deforma. Para Freud, no interior do sistema Pcs os

deslocamentos e condensações como os que se produzem no processo primário são muito

limitados. Assim, para o autor, o sistema Pcs é regido pelo processo secundário, que permite

um bom investimento do ego e restringe as tendências do processo primário.

A energia psíquica deixa de circular livremente, encontrando-se ligada. Essa noção de

energia ligada implica que as representações pré-conscientes tem a tendência de se religarem

entre si, sendo característica do sistema Pcs a capacidade de comunicação entre os conteúdos

das representações, de modo que esses conteúdos possam influenciar-se mutuamente.

Segundo Freud, no Pcs há uma inibição da tendência à descarga das representações

investidas, o que possibilita uma maior estabilidade dos investimentos. A satisfação dos

desejos é adiada, o que permite que experiências mentais coloquem à prova os diferentes

caminhos de satisfação, pois o que se busca é a identidade de pensamento. Por não serem

mais o reflexo da busca de satisfação pelo caminho mais direto, os processos pré-conscientes

testemunham a marca das condições impostas pela realidade exterior. Assim sendo, não é ao

princípio do prazer que obedecem os processos psíquicos pré-conscientes, senão ao princípio

da realidade.

Segundo a definição de Laplanche e Pontalis, no Vocabulário de Psicanálise, o princípio

da realidade pode ser definido como o princípio que modifica o princípio do prazer, na medida

em que impõe-se como um princípio regulador: a procura da satisfação não se efetua pelos

caminhos mais curtos, mas envereda por desvios e adia o seu resultado em função das

condições impostas pelo mundo exterior. Do ponto de vista econômico, corresponde a uma

transformação da energia livre para a energia ligada.

38

• Características do sistema Pré-Consciente (Pcs)

a Energia ligada: é pré-condição para o funcionamento do processo secundário, pois envolve o

controle de grandes quantidades de energia. Tal controle pode implicar na liberação do

excesso de energia, proveniente do Ics, em pequenas quantidades, com a finalidade de investir

o pensamento ou as fantasias de desejo.

b . Memória: os registros de memória, no Inconsciente, estão ligados por simples associação, e

não tem nenhuma organização formal. Em contraste, a organização dos registros mnêmicos no

Pcs é constituída de tal maneira que recordações do passado podem, dentro de certos limites,

serem reconhecidas, o que permite a “captura” dos registros mnêmicos mais apropriados para

os processos de pensamento em curso, para resolução de problemas, para a criação da

fantasias, orientação do eu no tempo e no espaço, etc.

a. Teste de realidade: essa capacidade é que permite a distinção entre o que é somente

representado (“irreal”) e o que é de fato registrado pela percepção como sendo proveniente do

mundo exterior. É uma função adquirida no curso do desenvolvimento, na medida em que o

lactente, não se satisfazendo com a realização alucinatória de desejo, aprende a distinguir

entre esta e a satisfação real, dependente de um objeto do mundo exterior, somente

decretando a descarga na presença desse objeto.

b. Controle sobre o acesso à consciência e à motilidade: uma das funções do Pcs é

proteger a consciência de ser tomado por experiências desprazerosas e impedir o indivíduo de

agir de modo a colocar em risco, ainda que potencial, sua vida, sua reputação, sua auto-

estima, seu sistema de valores, etc.

c. Controle sobre os afetos: quando o desenvolvimento do afeto é visto como uma

conseqüência da repressão (a energia do desejo pulsional reprimido sendo capaz de

transformar-se em afeto), o Pcs pode impedir o desenvolvimento do afeto e seu acesso à

consciência. Porém, em relação ao acesso à motilidade, seu poder em impedir o

desenvolvimento do afeto e sua conversão em angústia, se a repressão não for bem sucedida,

é muito menor

d. Mecanismos de defesa: além da repressão, o Pcs pode fazer uso de outros mecanismos

de defesa. Em contraste com a repressão, propriamente dita, que expulsa a moção de desejo

ou o seu derivado para o Ics, o Pcs. dispõe de mecanismos de defesa que permitem que os

derivados pulsionais prossigam em seu caminho para a consciência em uma forma alterada

(por exemplo, projeção).

e. Construção de produtos da imaginação: o Pcs pode permitir que conteúdos derivados do

Ics enriqueçam a consciência forma por meio da utilização das fantasias de desejo na

construção de produções criativas, como contos, novelas, obras de arte, etc.

39 f. Formação de sintoma: se a repressão de uma determinada pulsão de desejo ou de

seu derivado não é bem sucedida, e se o desejo não pode se expressar de outra forma, o Pcs

pode construir uma formação de compromisso na forma de um sintoma neurótico. Tais

sintomas são sentidos pela consciência como alheios e intrusos, mas sobre os quais o

“indivíduo” sente-se sem controle.

Nessa primeira tópica, Freud faz com que o sistema Pré-Consciente e o ego coincidam.

Conforme veremos a partir da segunda tópica, com a nova definição de ego e a suposição de

uma nova instância psíquica, o Superego, o pré-consciente já não poderá mais ser confundido

com o ego. Este se definirá muito além dos limites que o circunscrevem na primeira tópica,

estendendo seus domínios até o inconsciente.

2.3.3 A Consciência Na atual concepção do aparelho psíquico, a consciência é vista como um sistema na

superfície do aparelho psíquico, aberta à recepção de impressões advindas de fontes externas

ao aparelho psíquico, o que inclui estímulos do mundo exterior e estímulos oriundos do próprio

corpo do sujeito (cinestésicos, proprioceptivos, viscerais, etc.).

Os conteúdos da consciência apresentam uma qualidade fugaz, a despeito da

intensidade com a qual possam ser experenciados.

Para sobreviver, o sujeito tem que prestar constante atenção às percepções advindas de

novas experiências. Entretanto, a qualidade e a intensidade da atenção podem variar muito.

Ele tanto pode estar extremamente atento ao meio onde se encontra, como pode, nesse

mesmo meio, estar “perdido em pensamentos”28.

O princípio da realidade e o teste de realidade operam na Consciência, onde eles são

mais influentes sobre o aparelho do que no Pré-Consciente. Também encontramos o processo

secundário em funcionamento e manifestações ocasionais do processo primário.

Freud considera que o objetivo mais fundamental do exame de realidade é o reencontro

com o objeto representado, objeto de desejo, idéia que já se pré-figura no Projeto, onde o

objeto do reencontro é o seio materno, diferenciando-se do encontro no mundo exterior de

outro objeto qualquer.

Enfim, é o sistema consciente que realiza a operação de orientação, distingüindo um

interior e um exterior. Tendo sido por meio de uma ação muscular que o organismo adquiriu

uma primeira orientação no mundo, dintingüindo um dentro e um fora, uma percepção que se

faz desaparecer por meio de uma ação do organismo é reconhecida como real, objetiva,

28 SANDLER, J., p. 99.

40 exterior. Sempre que tal ação nada modifica, fica provado que a percepção é proveniente do

interior do organismo, subjetiva e não real.29

No entanto, como Freud faz coincidir o sistema consciente com o sistema P. (extremo

perceptivo), se houver um hiperinvestimento de origem interna, que leve a regressão avançar

até o extremo perceptivo (P.), esse sistema será excitado e os registros perceptivos

reanimados, o que ocasionará um cancelamento do exame de realidade e a conseqüente

impossibilidade de distingüir entre a reanimação dos registros perceptivos e as percepções

reais, advindas do mundo exterior.

É o que ocorre nos sonhos e nas psicoses.

29 MANIAKAS, p. 148.

41 3. A CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE, A PRIMEIRA TEORIA PULSIONAL E O

CONCEITO DE NARCISISMO

A alma cativa e obcecada

Enrola-se, infinitamente, numa espiral de desejo.

Carlos Drummond de Andrade

3.1 A PULSÀO E A CONSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE

Freud realizou um verdadeiro corte epistemológico ao separar a sexualidade de seu

fundamento anatômico, biológico e genital para estudar a sua representação subjetiva e social.

A psicanálise não se ocupa do sexo como diferença anatômica, senão da sexualidade como

construção psíquica, como posição do sujeito em relação ao seu desejo.

Para Freud, a sexualidade humana se distingue da necessidade, porque sua satisfação

depende de condições fantasmáticas que determinam tanto a eleição do objeto como o tipo de

atividade sexual.

Nesse sentido, o autor utiliza a palavra alemã TRIEB30 para significar pulsão, ao invés

da palavra instinto, pois essa última denota um esquema de comportamento herdado, que

inclui uma finalidade e um objeto de satisfação precisos.

Freud insiste em que a sexualidade humana não é um dado natural, mas que se constrói

sobre uma complexa história de relações subjetivas.

O conceito de realidade psíquica permite escapar das oposições inconciliáveis entre o

psíquico e o biológico, o real e o imaginário. Uma vez que a realidade material é inapreensível

em si, a realidade psíquica corresponde aos desejos inconscientes que se expressam pela

fantasia. Diferentemente da função do juízo, que se subordina ao princípio de realidade, a

criação de fantasias corresponde à parte da atividade psíquica que permanece subordinada ao

princípio do prazer.

Em 1905, Freud distingue entre as funções necessárias para preservar a vida do

indivíduo e a pulsão sexual, cuja finalidade é a obtenção de prazer, servindo à conservação

da espécie. Delineia-se, assim, a primeira teoria pulsional.

30 A tradução da palavra alemã TRIEB provoca muita polêmica, devido à ampla gama de significações que abarca. Em alemão, os significados vão desde um princípio maior, que rege os seres vivos e que se manifesta como força que coloca em ação os seres de cada espéciel; como algo que aparece fisiologicamente no corpo somático do sujeito como se brotasse dele e o incitasse; por fim, como algo que se manifesta para o sujeito, fazendo-se representar no nível interno e íntimo, como se fosse sua vontade ou um imperativo pessoal. Todos os significados atribuídos a TRIEB, no entanto, tem como base uma força propulsora que produz movimento .

42 A pulsão é concebida como um processo dinâmico, consistindo de um impulso que

induz o organismo a desenvolver uma atividade particular, cujo objetivo é de suprimir o estado

de tensão, pela descarga que está na origem da pulsão. O próprio impulso é concebido como

um fator quantitativo; é, segundo Freud, uma exigência de trabalho imposta ao aparelho

psíquico [Pulsões e seus destinos (1915)]. É um conceito limite entre o anímico e o somático,

como um representante psíquico dos estímulos procedentes do interior do corpo que chegam

ao psiquismo, e como uma magnitude da exigência de trabalho imposta ao anímico em

conseqüência de sua conexão com o somático.

As pulsões estão em relação apenas com dois tipos de excitação: as excitações

externas e as excitações internas, cuja descarga se faz em conformidade com o princípio da

constância (que, como sabemos, tem o papel de manter constante ou o mais baixo possível o

nível de excitação). Para manter esse estado de equilíbrio, o sujeito pode fugir da excitação

quando esta vem do exterior, evitando, assim, um aumento de quantidade. Se, por outro lado,

a excitação provém do interior do organismo, exercendo sua pressão de modo contínuo,

somente a descarga do acúmulo de quantidade pode trazer a satisfação pulsional. Esta se

obtém graças a uma modificação da fonte interna de excitação por meio de uma ação

específica. A força (Drang), portanto, corresponde à dimensão quantitativa e se refere à

inevitabilidade da pulsão, distinguindo-a dos estímulos externos (dos quais é possível escapar),

e ao seu fator motor, isto é, a soma de força ou quantidade de exigência de trabalho que

representa.

A satisfação representa, assim o alvo para o qual a pulsão faz tender o organismo. O

objetivo de cada pulsão é, normalmente, específico. Toda a pulsão encontra sua fonte no

processo orgânico, físico-químico, que se encontra na origem daquela tensão. Como sabemos,

a sexualidade não se resume ao genital, e tendo sido construída ao longo da história do sujeito,

deve abranger fontes situadas em outras partes do corpo, a que Freud chamou de zonas

erógenas. Pela história do desenvolvimento humano, algumas áreas corporais específicas

parecem mais suscetíveis de converter-se em zonas erógenas. Por exemplo, a sucção, a zona

oral está suscetível de tornar-se erógena, fundamentalmente porque é uma parte do corpo

através da qual se realiza o intercâmbio com o meio ambiente, ao mesmo tempo que recebe a

máxima atenção, cuidados, e, portanto, uma carga de tensão externa por parte da mãe que

amamenta o bebê.

Assim sendo, a pulsão sexual não se apresenta como uma unidade dada, mas se

decompõe, na infância, em uma multiplicidade de pulsões parciais originadas nas diversas

zonas erógenas. No entanto, essas zonas erógenas não geram as pulsões sexuais de forma

espontânea, senão apoiadas sobre as funções de auto-conservação. Como já exemplificamos,

é o que sucede na atividade oral do bebê: o prazer que o bebê experimenta, decorrente da

43 sucção do seio materno, inicialmente esteve apoiado sobre a satisfação da necessidade de

alimento. É a função corporal que serve à auto-conservação que fornece à sexualidade sua

zona erógena, além de indicar um objeto (o seio da mãe), e fornecer um prazer além do

apaziguamento da fome. Na medida em que o bebê sente o desejo de repetir a totalidade

dessa experiência de prazer, ela separa-se da necessidade de nutrição (embora mantenha-se

sobre ela apoiada). Em um segundo momento, portanto, a sexualidade ganha autonomia em

relação à mera satisfação da necessidade.

Em um sentido mais amplo, a finalidade (alvo) de toda a pulsão é alcançar a satisfação, que, em termos econômicos (quantitativos) corresponde à descarga da energia.

Assim, cada uma das pulsões parciais possui um fim específico de acordo com a

excitação adequada a cada zona erógena, como no caso da pulsão oral, cujo fim será a

satisfação obtida por meio da sucção. Quando Freud fala dos desvios do fim sexual

(perversões), ele se refere aos diferentes tipos de satisfação que se pode obter nas diversas

zonas erógenas (como o beijo, por exemplo).

Finalmente, o objeto da pulsão é o que indica à pulsão que, através dele, ela pode

alcançar o seu alvo. O objeto pode ser uma pessoa -um objeto total-, ou uma simples parte de

seu corpo –um objeto parcial- (o seio da mãe para o bebê, por exemplo 31). Pode tratar-se de

um objeto real, mas também de um objeto fantasmático, de um objeto externo ou interno. O

objeto pode ser bom, se ele é suscetível de satisfazer a pulsão, ou mau, se ele se opõe à sua

satisfação.

Durante alguns estágios da evolução libidinal 32, caracterizados pela ambivalência em

relação aos objetos, as tendências amorosas e aquelas que visam à destruição do objeto

coexistem (estágio sádico-oral e sádico-anal), por exemplo.

De acordo com Freud, o objeto é o componente mais variável da pulsão, uma vez que

não se acha enlaçado à ela originalmente, mas como conseqüência da adequação de uma ou

outra zona à satisfação. Embora possamos dizer que o objeto da pulsão é contingente, não

significa que qualquer objeto serve à sua satisfação (nem todo objeto é atrativo para uma

pessoa). Mas então, que objeto serviria à pulsão ?

Nesse ponto, chegamos ao ponto central da questão que fez com que Freud

considerasse a sexualidade humana um construto, singular e diferenciada da finalidade de

reprodução. O objeto erótico a que aspira o sujeito é marcado por características muito

particulares, pois está determinado pela história das experiências infantis do sujeito.

31 A nosso ver, o termo objeto parcial só tem valor didático, pois para o bebê, o objeto será sempre um objeto total. (Nota dos coordenadores do Curso) 32 O autor propõe a palavra latina libido (que significa desejo) para referir-se à energia psíquica correspondente à pulsão sexual. A libido seria a manifestação dinâmica da sexualidade.

44 Enfatizamos, portanto, que a sexualidade humana é constituída a partir das primeiras

experiências, objetivas e subjetivas, que marcaram o sujeito em sua história de vida, nos

primeiros anos de seu desenvolvimento.

Dessa maneira, cada sujeito erogeniza seu corpo de uma maneira singular, a partir de

um outro que tem um valor significante como objeto de desejo. Assim, o corpo do qual se

ocupa a psicanálise é o corpo erógeno, que não coincide com o corpo anatômico, mas que se

estrutura à maneira de uma mapa delineado pelos fantasmas por meio dos quais o sujeito

representa a realização de seu desejo. (Tubert, 2000)

Quando uma pulsão enlaça-se a um objeto de maneira íntima, Freud chama de fixação

da pulsão. Essa se produz durante diversas faces do desenvolvimento, nas quais surge uma

oposição à separação da pulsão do seu objeto que cada zona erógena oferece. Assim mesmo,

o objeto da pulsão sexual se distingue do objeto da necessidade por poder ser recriado pela

fantasia. Assim, chegamos a uma das principais características que definem a sexualidade

infantil: o auto-erotismo. O auto-erotismo se origina, como enfatiza Tubert (2000), no momento

em que a pulsão sexual se desprende da função alimentícia e de seu objeto natural (o seio, por

exemplo), para buscar satisfação em uma parte do próprio corpo (sucção do polegar,

masturbação, etc), por meio da satisfação alucinatório de desejo, tendo como referência o

objeto fantasmático (internalizado). Assim, o objeto não é necessariamente exterior ao sujeito,

mas pode ser uma parte qualquer de seu próprio corpo.

Podemos ilustrar tais afirmações com o exemplo da amamentação. O objeto é o seio

materno, e a nutrição que ele proporciona ao bebê, e há a incorporação imaginária desse

objeto, com todos os aspectos que encontram-se agregados à essa função. A pulsão sexual

liga-se, portanto, não somente ao seio materno em si, mas às representações que especificam

tanto o objeto como o modo de satisfação adequados. A conseqüência, a força pulsional que,

no início era indeterminada, ficará marcada em função dos acontecimentos que constituem a

história de vida de cada sujeito.

As pulsões sexuais são numerosas e procedem de múltiplas fontes orgânicas, atuam

independentemente umas das outras a princípio (polimorfismo) e somente ulteriormente seus

componentes reúnem-se em uma síntese. O fim a que cada pulsão parcial tende é a obtenção

do prazer de órgão, e somente depois de sua síntese é que entram a serviço da procriação.

Graças a capacidade de deslocamento e à plasticidade que possuem, as pulsões podem

proporcionar energia necessária para realizar operações muito isoladas de seus fins primitivos,

o que chamamos de sublimação.

45

3.2 AS FASES DA LIBIDO E O COMPLEXO DE ÉDIPO Como vimos, em suas origens a sexualidade infantil surge apoiada sobre as funções

vitais, das quais logo se desprende; é de natureza auto-erótica; seus fins e as zonas erógenas

que constituem suas fontes são múltiplas, e o objeto de satisfação é contingente e variável.

Possui um caráter perverso (no sentido do que seus fins e objetos se desviam dos genitais) e

polimorfo (múltiplas pulsões parciais, cada uma buscando sua satisfação independente das

demais).

Entre 1913 e 1923, Freud reconhece uma série de fases dentro da sexualidade pré-

genital: oral, anal, fálica, caracterizadas por um forma particular de organização sexual.

3.2.1 A fase oral A fase oral é pensada pelo autor como a primeira modalidade de organização libidinal,

correspondendo, mais ou menos, ao primeiro ano de vida. A fonte é a excitação da zona oral

(cavidade bucal e lábios) que se produz durante a amamentação; o objeto se constitui sobre o

objeto real que satisfaz a necessidade de nutrição (seio materno e leite); o fim é a

incorporação, que se converte em um modelo de relação de objeto. (Tubert, 2000).

Foi o fato de sugar e não somente absorção do alimento que deu satisfação à criança. A

sucção do seio materno não é, portanto, redutível à necessidade de nutrição; ela proporciona à

criança um verdadeiro prazer, que Freud classificou de sexual. Mas ele não foi o primeiro autor

a destacar a natureza sexual desse ato. Antes dele, o Dr. Lindner, um pediatra de Budapeste,

reuniu um certo número de observações que lhe permitiram afirmar o caráter sexual da sucção

(Jahrbuch für Kinderheilkunde, 1879).

Nesse primeiro momento, quando é o seio que constitui o objeto de prazer, a

sexualidade ainda não é autônoma. Só mais tarde, quando a criança é obrigada a renunciar ao

seio materno e o substitui por uma parte de seu próprio corpo, é que a satisfação se torna auto-

erótica.

Esses dois momentos revelam que a atividade alimentar e a atividade sexual tem o

mesmo objetivo: a incorporação do objeto, protótipo do mecanismo de identificação, tão

importante para o desenvolvimento dos seres humanos.

A incorporação corresponde a várias funções: trata-se, primeiramente, para o lactente,

de sentir prazer ao fazer penetrar em si um objeto; em seguida, de destruir o objeto e,

finalmente, de se apropriar de suas qualidades, conservando-o dentro de si.

É esta última função de assimilação das qualidades do objeto que faz da incorporação o

modelo para a identificação e introjeção. A noção de incorporação, acrescentada por Freud aos

46 seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade em 1915, nos remete à idéia de

assimilação das qualidades do objeto por canibalismo.

3.2.2. A fase anal A fase anal se situa aproximadamente entre o segundo e o terceiro ano de vida,

momento em que a criança adquire o controle de seu esfíncter, o que significa que a

organização da libido se dará sob a primazia da zona anal. Esta fase corresponde a polaridade

passividade-atividade; a primeira entendida como pulsão de dominação (desejo de apoderar-se

do objeto) e que coincidirá com o sadismo, tendo como fonte a musculatura; a segunda

corresponde ao erotismo anal, tendo como fonte a mucosa anal. A relação de objeto, nessa

fase, tem como protótipo a expulsão e a capacidade de retenção das fezes, o que implicará,

entre outras tantas características, na constituição de traços de caráter que denunciam a

maneira como a sujeito relaciona-se com os objetos que podem ser retidos ou expulsos (por

exemplo, a avareza correspondendo à retenção, a prodigalidade à expulsão). Nas relações,

esses traços podem ser percebidos pela maneira como o sujeito se posiciona frente ao outro.

Exemplifiquemos: um indivíduo no. 1 que, diante do cumprimento de uma tarefa conjunta com

o indivíduo no. 2, limita sua parte na negociação ao empréstimo do objeto A para que o

indivíduo no. 2 complete a tarefa. No entanto, no momento em que o indivíduo no.2, tendo

cumprido as etapas anteriores de sua parte na tarefa, procura o indivíduo no. 1 para obter o

objeto A, recebe do indivíduo no. 1 todo o tipo de desculpas e evasivas. Um dia o indivíduo no.

1 diz ter se esquecido do objeto, outro dia marca com o indivíduo no. 2 e não comparece ao

encontro, apresentando algum tipo de desculpa, e assim por diante. O que estaria implicíto

nesse exemplo, aparentemente simples ? Primeiramente, o prazer de retenção do indivíduo no.

1, ligado ao sadismo, faz com que sinta-se poderoso ao controlar o ambiente e,

consequentemente, o indivíduo no. 2, pois ele sabe que este necessita do objeto A. Como uma

criança controlando a mãe, na medida em que faz inúmeros jogos durante o aprendizado de

controle do esfíncter, o indivíduo no. 1 extrai um prazer secreto em sentir que pode controlar o

outro e o ambiente, pura e simplesmente retendo o objeto do qual o outro necessita.

Extrapolem esse tipo de relação para as questões ligadas ao dinheiro, e poderão imaginar as

conseqüências da exacerbação (e até da valorização!) desse tipo de traço de caráter em

determinadas culturas.

O que é importante ressaltar é que o controle do funcionamento do esfíncter pela

criança, isto é, o domínio da evacuação e retenção das fezes, serve de modelo ao impulso

sádico. A partir de 1924, Karl Abraham propôs uma subdivisão dentro do estádio sádico-anal.

Cada fase corresponderia a um modo de comportamento diferente para com o objeto. Tratar-

se-ia, para a criança, ora de expulsar o objeto e destruí-lo, ora de conservá-lo e possuí-lo. No

47 início do estádio anal, o erotismo estaria ligado à evacuação anal e o impulso sádico à

destruição das fezes; depois, o erotismo estaria ligado, ao contrário, à retenção das matérias

fecais e o impulso sádico a seu controle possessivo. A passagem da primeira fase para a

segunda assinalaria, segundo Abraham, a evolução para o amor de objeto. Como prova,

alguns autores propõem a observação de certas psicoses, que correspondem a uma regressão

além da segunda fase sádico-anal, enquanto as regressões neuróticas não ultrapassam a

segunda fase, já ligada ao amor de objeto, manifestando, com isso, um investimento de objeto

mais estável.

3.2.3 A fase fálica A fase fálica – conseqüência da investigação sexual infantil e da análise da diferença

sexual – manifesta um momento de culminância no desenvolvimento pré-genital, entre o

terceiro e o quinto ano de vida, que a aproxima, em alguns aspectos, da configuração genital

adulta. É durante esse período que Freud descreveu o início de atividades com base no

impulso de saber. A atividade deste impulso de saber corresponde, por uma lado, à sublimação

do desejo de dominar, e, por outro, utiliza como energia o desejo de ver. É a fase em que a

criança demonstra uma grande curiosidade por tudo que a cerca, mas, em especial, pelos

problemas sexuais. Freud chega a reconhecer que esses “problemas” estimulam a inteligência

da criança. Mas é uma necessidade prática que leva a criança a efetuar essas buscas sexuais.

É nesse período que a criança demonstra preocupação pelo nascimento de um irmão ou de

uma irmã, que poderá significar uma diminuição dos cuidados e do amor que seus pais lhe

proporcionam. Mesmo que em sua casa, seus pais não cogitem sequer a possibilidade de ter

outro filho, a observação atenta da criança em relação à família dos amiguinhos, ou mesmo de

mães passeando pela rua com mais de um bebê, despertam a criança para a potencial ameaça

que representaria, para ela, a chegada de um irmão ou irmã. Assim, o que mais perturba a

criança nessa idade é o enigma da origem dos bebês.

No momento em que a criança encontra-se nessa fase, o interesse pelos órgãos genitais

e sua atividade adquire um valor central. Como somente os órgãos genitais masculinos são

visíveis, por serem externos, são eles os primeiros órgãos a interessar tanto aos meninos

quanto às meninas. A percepção da diferença sexual posterior se fará a partir da oposição

entre fálico-castrado, ou seja, com referência à primeira percepção, que é a do falo. Daí a

denominação desta fase de fase fálica.

Sem dúvida, o menino percebe uma diferença entre homens e mulheres, mas,

inicialmente, não a relaciona com os genitais. Em seu raciocínio infantil todos os seres vivos

possuem um falo como o seu.

48 Como sabemos, a hipótese da castração não se refere a uma situação real. Consiste

em uma fantasia, e em um complexo que tem a finalidade de elaborar psiquicamente a constatação da diferença sexual. Tal constatação, proporcionada pela fase fálica, precede o complexo de Édipo e permite

ao sujeito entrar na estrutura triangular edípica, pois é a partir dela que o sujeito diferenciará

dois sexos, marcando o momento de ruptura com o estágio narcísico, onde, através de uma

relação imediata e indiferenciada, o sujeito apreendia o outro - a mãe- como idêntico a si

mesmo, e gerava, por reflexo, a sua própria onipotência narcísica.

É, portanto, a partir da dimensão da falta que a relação narcísica pode ser rompida: o

outro, então, pode ser visto como diferente e não somente como semelhante ao sujeito.

A efetividade da castração é a mesma para ambos os sexos, embora realizando-se sob

diferentes circunstâncias. A princípio, tanto a menina quanto o menino percebem a mãe como

semelhante; para ambos ela é o primeiro objeto de amor.

O acesso ao complexo de Édipo será marcado, para a menina, pela decepção

provocada pela constatação perceptiva de não possuir o fálo, levando-a a buscar a

compensação para essa falta através do desejo de ter um filho imaginário de seu pai. Para o

menino, será a descoberta da castração da mãe que permitirá o seu ingresso no complexo,

uma vez que esta já não é mais vista como igual a ele.

A descoberta da diferença sexual dividirá para sempre os seres em dois grupos: os que

possuem e os que não possuem o fálo. A partir de então a castração representará o limite,

imposto pela realidade, para a satisfação do desejo.

Nesse sentido, Édipo não representará somente a possibilidade da síntese genital

através da escolha de um objeto de amor, determinada pela marca deixada pelos

investimentos de objeto e pela interdição ao incesto, mas também representará o acesso do

sujeito aos objetos substitutos, afastando-o, desse modo, da realidade da castração e da ferida

narcísica que ela invoca. Como expressa Simanke:

Ela [a proibição do incesto] produz a ilusão de que, se os sujeitos masculinos e

femininos só podem obter uma satisfação parcial em objetos sempre algo inadequados, isto se

deve apenas à interdição ao incesto e não à diferença sexual real e incontornável, que mina na

base a fantasia narcísica, ao passo que a proibição é sempre, em tese, passível de

transgressão. A renúncia pulsional exigida pela repressão dos desejos incestuosos é, assim, a

condição e o preço a pagar por esta relativa proteção contra o poder traumatizante do

complexo de castração. 33

33 SIMANKE (1994), p. 226.

49 É através da dimensão da falta, promovida pela castração, e pela entrada do sujeito na

estrutura triangular edípica que se estabelece o limite para a satisfação do desejo: suportar

a falta é a garantia de poder continuar como desejante.

A efetividade do complexo de Édipo vincula-se, portanto, à admissão da castração

que, ao romper com a situação identificatória narcísica, introduz uma nova ordenação na

economia psíquica através da regulação do desejo.

Os antropólogos atribuem um papel central à proibição do incesto. Lévi-Strauss, por

exemplo, considera que o tabú do incesto é uma necessidade estrutural própria da passagem

da natureza para a cultura; ou seja, para ele, é uma condição fundamental de civilização. Da

perspectiva freudiana, a proibição do incesto não se origina da natureza em si (se assim fosse,

não haveria necessidade de uma proibição!), mas na necessidade social de impedir a

realização do desejo incestuoso34, de modo que o complexo de castração (a angústia ante a

ameaça) corresponde à interiorização das normas culturais que limitam a satisfação sexual

humana, há milênios.

Ressaltamos, portanto, que o complexo de Édipo não é redutível a uma situação real, à

influência exercida sobre a criança pelo casal parental, mas deve sua eficácia à intervenção de

uma instância interditória, que barra o acesso irrestrito à satisfação, naturalmente buscada, e

que liga inseparavelmente o desejo à lei. (Laplanche e Pontalis, 1988)

Podemos, então, precisar dois modos segundo os quais a busca de satisfação do desejo

pode se dar: a primeira, narcísica, em que a onipotência imaginária do sujeito não conhece

limites para a satisfação do desejo; e a segunda, que pressupõe uma ruptura dessa situação

por meio da castração, limitando a satisfação do desejo e possibilitando a entrada do sujeito no

complexo de Édipo.

3.2.4 O período de latência

A partir do quinto ou sexto ano, a evolução da sexualidade deter-se-á em um período

marcado pela diminuição das atividades ligadas à sexualidade. Freud referiu-se a esse

momento como o período de latência, durante o qual há um recalque dos primeiros objetos

sexuais escolhidos. Este período começa com o declínio do complexo de Édipo. Protela a

maturidade sexual e permite uma edificação da barreira contra o incesto. É durante a latência

que se elaboram as forças psíquicas que, mais tarde, se oporão aos impulsos sexuais e

impedirão seu desenvolvimento. Essas forças correspondem à aversão e ao pudor; definem-se

como as aspirações morais e estéticas.

Freud definiu o processo que desvia as forças sexuais de seu objetivo, durante o

período de latência, como um “mecanismo de sublimação”. Se bem sucedido (o que ocorre, de

34 TUBERT (2000), pp. 111-12.

50 modo geral), este processo permite que a criança empregue as antigas forças sexuais para

novos objetivos.

Mas o autor insistiu em sublinhar o caráter hipotético de suas opiniões no que se refere

a esse período. Porque, para ele, a transformação da sexualidade infantil representa um dos

objetivos da educação, um ideal que o indivíduo só alcança imperfeitamente e do qual pode

afastar-se consideravelmente, pois, pode acontecer que um fragmento da vida sexual entre em

irrupção ou, ainda, que subsista uma atividade sexual através de toda a duração da latência,

até o desabrochar do impulso sexual, com a puberdade.

3.2.5 A fase genital Segundo Freud, a plena organização da libido só é alcançada pela puberdade numa

quarta fase, a fase genital. Durante as fases anteriores – oral, anal e fálica – a meta sexual é

parcial e os objetos são inadequados. O que a criança busca é um prazer de órgão, o que

significa que a excitação de uma zona erógena específica dá, por si só, o prazer, sem que este

esteja ligado à satisfação de outras zonas e sem que corresponda à realização de uma função.

Freud observou que as excitações provenientes de todas essas fontes não se coordenam num

todo, mas perseguem cada uma um objetivo separado, que apenas representa a obtenção do

prazer específico. O que implica que o impulso sexual, durante a infância, ainda não é

centrado, que não tem, de início, qualquer objeto, sendo, portanto, auto-erótico.

A partir do Édipo, a criança encontra em um dos pais seu primeiro objeto de amor.

(Antes do Édipo, somente a mãe era objeto de desejo). Mas o recalque, que se efetua durante

o período de latência, leva a criança a renunciar à maioria de seus objetivos sexuais infantis e

leva-a a uma mudança de atitude perante seus pais. Com as tendências primitivas bloqueadas,

a criança só terá pelos pais, a partir de então, sentimentos de ternura. (o objeto primitivo só

continua a existir no inconsciente). A partir da puberdade surgem novas tendências orientadas

para objetivos sexuais diretos, que determina, para os dois sexos, funções e evoluções sexuais

muito diferentes. Toda a vida sexual entra à serviço da reprodução e a satisfação das primeiras

tendências só tem importância na medida em que prepara e favorece o ato sexual genital.

É quando a libido alcança a sua plena organização: o impulso sexual se torna centrado,

apoiado sobre a função de reprodução.

Pode acontecer, porém, que as tendências sexuais parciais não se subordinem todas à

primazia da zona genital. Uma tendência que permaneça independente constitui o que Freud

chamou de perversão, pois ela substitui o objetivo sexual centrado em torno da zona genital,

por sua própria finalidade.

51 3.3 A PRIMEIRA TEORIA PULSIONAL Em sua primeira elaboração da teoria pulsional, Freud classifica, em 1905, as pulsões

de acordo com duas grandes linhas: o grupo das pulsões que favorecem mais particularmente

a salvaguarda do indivíduo – a que dá o nome de pulsões do ego ou de auto-conservação - , e

o grupo das pulsões sexuais. As pulsões sexuais surgiriam apoiadas sobre as funções de auto-

conservação.

As pulsões de auto-conservação permitiriam a satisfação das necessidades ligadas às

funções corporais vitais e a fome é o seu protótipo. A energia dessa classe de pulsões estaria a

serviço do ego, pois seria o ego o responsável pela conservação da vida do indivíduo, e as

pulsões do ego atuariam de acordo com o princípio da realidade. Freud concebe o ego como

um aparelho de regulação e de coordenação. É o agente que permitiria a adaptação às

exigências dos mundos externos e internos.

Enquanto agente de operações defensivas, o ego está encarregado de reduzir e de

suprimir tudo aquilo que é suscetível de colocar em perigo o estado de constância e a

integridade do sujeito. Nessa primeira concepção pulsional, o sistema defensivo teria por

finalidade a pulsão, quando esta, por diferentes razões, é incompatível com o equilíbrio e é

vivida com desprazer pelo ego. A defesa incidiria também sobre representações às quais a

excitação interna incompatível está ligada, ou ainda às situações que podem desencadeá-la.

O segundo grupo de pulsões é representado pelas pulsões sexuais, cujas manifestações

ultrapassam, e muito, o quadro estreito das atividades reprodutoras, que tem como objetivo

salvaguardar a espécie. Lembremos que o conceito freudiano de sexualidade abarca uma

grande quantidade de fenômenos que, em geral, estão bastante distantes do ato sexual

propriamente dito e não se confundem com o genital, pois incluem tanto manifestações da

sexualidade infantil como as perversões, que encontram satisfação com outros objetos, alheios

à genitalidade.

A pulsão sexual não visa um objeto unívoco de satisfação. Como vimos, este sofre

transformações, de acordo com os estágios de desenvolvimento, ou seja, cada modo de

organização libidinal corresponde a uma fase específica da evolução psicossexual infantil.

No entanto, como veremos, o quadro da primeira teoria pulsional de Freud se modifica

ao longo de sua teoria, especialmente após a elaboração do conceito de narcisismo.

52 3.3.1 O NARCISISMO Após estudos iniciais em 1910, que restringiam o narcisismo à perversão, a partir da

Introdução ao Narcisismo (1914) o narcisismo passa a ocupar um lugar privilegiado no

desenvolvimento sexual normal.

Foi a partir da observação clínica dos delírios de grandeza que Freud delineia a hipótese

de um estado narcísico operando em um período bastante precoce do desenvolvimento.

Para explicá-lo, Freud retoma a idéia de que as primeiras experiências de satisfação se

dão de forma alucinatória, no momento em que as pulsões sexuais se apóiam nas de pulsões

de autoconservação ou egóicas; o seio materno, que tem a priori a função de nutrição, torna-se

o primeiro objeto de amor da criança. O apoio das pulsões sexuais nas pulsões de

autoconservação implica que as pessoas ligadas à alimentação, aos cuidados, à proteção da

criança fornecem o protótipo do objeto de amor procurado - escolha de objeto por apoio.

O autoerotismo se iniciaria no momento em que a pulsão sexual se separa da pulsão de

autoconservação, a qual oferecia sua meta e seu objeto, ou seja, se separa de seu objeto

natural - o seio materno - e se entrega à fantasia. O auto-erotismo caracterizaria o

comportamento sexual em que o sujeito obtém prazer através da estimulação de seu próprio

corpo, um período que precede a convergência das pulsões parciais para um objeto comum.

Para que o sujeito possa passar a formar uma imagem de si próprio, é necessário que o

eu ou ego se constitua. Na medida em que o ego se forma, as pulsões parciais, próprias do

autoerotismo, se unificam e é o ego que investem como primeiro objeto.

O narcisismo designaria, portanto, um estágio na história evolutiva da libido que está

entre o auto-erotismo e o amor de objeto, quando o sujeito toma a si mesmo como objeto

erótico.

Há, portanto, um primeiro estágio em que o narcisismo, denominado primário, se define

como o movimento das pulsões parciais para reunirem-se em uma unidade, tomando o ego

como primeiro objeto.

Em Pulsões e destinos de pulsão, de 1915, Freud situaria o narcisismo como o

estado originário do eu, que investido por pulsões é capaz, em parte, de obter satisfação

auto-erótica, colocando-se como objeto de satisfação de suas próprias pulsões.

Como o aparelho é incapaz de abandonar um estado que lhe tenha trazido satisfação e

prazer, esse estado narcísico primitivo nunca será realmente abandonado. Desse modo, Freud

identifica, no cotidiano, duas situações nas quais pode ser identificada sua atualização: a

enfermidade e o estado de sono.

No caso da enfermidade, observa que quando alguém passa por uma enfermidade

orgânica age do seguinte modo em relação à distribuição da libido: em função das sensações

dolorosas a que está submetido, o sujeito perde seu interesse pelas coisas do mundo exterior,

53 retirando também de seus objetos de amor o interesse libidinal. O enfermo retrai para o eu

seus investimentos libidinais enviando-os de volta após curar-se. De semelhante modo opera

o estado de sono, que retrai os investimentos libidinais sobre o próprio sujeito, ou sobre o

desejo de dormir, nada mais querendo saber do mundo exterior. O egoísmo próprio dos sonhos

vem endossar essa conexão.

Ao considerar o caso dos parafrênicos (antiga designação para o grupo formado pela

esquizofrenia e paranóia), Freud percebe que eles:

"... Parecem haver retirado realmente sua libido de pessoas e coisas do mundo exterior, mas

sem substituí-las por outros em sua fantasia."35

Identifica, nesses casos, alterações na distribuição da libido por consequência de

alterações no eu.

Se Freud vincula ao eu as conseqüentes alterações da libido, um exame mais detido

destas relações se faz necessário.

Tomemos a afirmação de Freud em relação à conduta de crianças e povos primitivos:

Formamo-nos, assim, a imagem de um investimento originário libidinal do eu, cedido

depois aos objetos; todavia, considerado a fundo, ela persiste, e é para os investimentos de

objeto como uma ameba o é para os pseudópodes que emite.36

A idéia aqui parece ser a de um armazenamento inicial da libido no eu, a qual só

posteriormente se volta aos objetos exteriores, à força provavelmente da satisfação de suas

necessidades, o que coincide, de certo modo, não só com a vivência de satisfação do Projeto,

como também com o surgimento do princípio de realidade. Ao tomarmos a imagem da ameba

em relação aos pseudópodes não fica dificil supor o eu e seus investimentos em relação ao

estado de sono e à vigília. Tanto o histérico como o neurótico obsessivo, no que concerne aos aspectos de sua

neurose, alteraram seu vínculo com a realidade, sem que isso implique num cancelamento do

vínculo erótico com pessoas e coisas, uma vez que o conservam em sua fantasia, numa

substituição ou mescla de objetos reais e imaginários em suas recordações. O mesmo não se

dá no caso dos parafrênicos, que retiram a libido de pessoas e coisas do mundo exterior sem

que haja qualquer substituição das mesmas em suas fantasias. Quanto ao destino da libido

retirada dos objetos, é o delírio de grandeza presente na esquizofrenia que aponta sua direção:

subtraída do mundo exterior, a libido é conduzida ao eu. A esse movimento Freud chamará de

narcisismo secundário.

É, portanto, no quadro das psicoses que Freud percebe a possibilidade da libido investir

o ego desinvestindo o objeto. Assinala que, apesar da conduta narcísica ser comum a todas as

35 AE, vol. 14, p. 72 36 AE, vol. 14, p. 73

54 pessoas, ela torna-se patológica na medida em que o vínculo com a realidade exterior

(coisas e pessoas) é cancelado, e todo o investimento volta-se para o próprio sujeito.

Freud, distingue, portanto, dois tipos de movimentos narcísicos, e os define como

narcisismo primário ao estado precoce (entre o auto-erotismo e o amor de objeto) em que o lactente investe toda a sua libido em si mesmo, e narcisismo secundário ao retorno da libido ao ego, após a retirada de seus investimentos objetais. A partir dessa diferenciação entre o eu e o investimento libidinal, Freud estabelece a

oposição entre libido egóica e libido de objeto, e supõe uma inversão proporcional na

quantidade de investimento entre elas: o aumento de investimento de uma implica na

diminuição de investimento da outra. A princípio supõe que ambas as energias estejam unidas

no estado de narcisismo e que, a partir do investimento de objeto, diferencia-se uma energia

sexual de uma energia das pulsões egóicas.

Embora isso acarrete a conclusão de que as pulsões egóicas são também pulsões

sexuais, Freud ainda mantém, nesse texto de introdução ao narcisismo, essa dualidade da

libido, expressando-a por uma libido egóica e uma libido de objeto. Tal dualidade somente

desaparecerá com o desenvolvimento posterior da teoria das pulsões. No momento, para

manter a dualidade libidinal, Freud apóia-se na clínica das neuroses, em especial nas neuroses

de transferência, e em considerações biológicas, que supõem uma existência dupla para cada

indivíduo, onde interesses próprios se oporiam aos interesses da espécie.

Retomando a questão da escolha objetal, após expor as condições narcísicas presentes

na hipocondria, caracterizada pela retirada particularmente nítida da libido do mundo exterior

para concentrá-la posteriormente em um órgão do corpo, Freud distingue dois tipos de escolha

presentes na vida amorosa em geral. A primeira escolha, que chama de anaclítica, se dá

quando se toma por base as pessoas que se encarregaram dos cuidados do sujeito no

princípio de sua existência -a mãe ou seu substituto. A segunda escolha, narcísica, é assim

denominada pelo fato do sujeito não tomar por base para sua escolha sexual o modelo da mãe,

mas o seu próprio modelo, por identificação à mãe, como vimos.

A escolha de objeto por apoio se daria a partir do modelo de objeto que supria as

necessidades nutricionais da criança. As pessoas ligadas à satisfação das necessidades

alimentares, aos cuidados e proteção da criança forneceriam o protótipo do objeto sexual

satisfatório. Assim, a escolha por apoio só seria possível porque as pulsões sexuais surgem

por apoio nas pulsões de autoconservação.

Na escolha narcísica os objetos de amor são escolhidos com base no modelo de si

mesmo, como ocorre para homossexuais e perversos Em relação à uma fixação na fase do

narcisismo primário, sua conseqüência pode ser o desenvolvimento de uma pré-disposição

(maior que em outros indivíduos) de manifestar enfermidades como paranóia e esquizofrenia.

55 Freud considera que o amor dos pais por seus filhos é o reviver do seu narcisismo

infantil, pois o amor dirigido a um objeto tem por fim a realização de seu narcisismo no filho. A

busca da realização dos ilhós compreende a busca pela imortalidade de seu próprio ego.

O desenvolvimento do ego consiste, segundo Freud, num distanciamento do narcisismo

primário em razão da crítica que os pais exercem com relação à criança, seguido pelo

deslocamento da libido a um ideal de ego. Freud afirma que não consideraria estranho se

encontrasse uma instância distinta do ideal do ego interiorizada como uma instância de

censura e de auto-observação.

Ao considerar o adulto normal, no qual se desvanecem muitos dos traços narcísicos

infantis, Freud interroga-se sobre o montante total da libido egóica, que não poderia ter sido

totalmente dirigida aos objetos. Toma o recalque como conceito auxiliar para compreender o

destino dessa libido e acaba supondo uma nova formação psíquica, a de ideal do eu.

Comparando entre dois homens a desproporção do nível de tolerância de cada um às mesmas

vivências, impulsos e moções de desejo, considera que a base para aquilo que cada um é

capaz de tolerar está no fato de um deles ter formado dentro de si um ideal segundo o qual

mede seu eu atual e o outro não.

Para Freud, a formação desse ideal do eu é a condição para o recalque e o ponto de

convergência do narcisismo, sobre o qual recai o mesmo amor de si mesmo que gozava o eu

real da infância. Incapaz de renunciar a uma satisfação que uma vez já tenha experimentado,

não querendo, portanto, privar-se do narcisismo da infância, mas não podendo mantê-lo, o

sujeito projeta-o num ideal, como reflexo de um tempo em que ele mesmo era seu próprio

ideal.

Como a formação do ideal do eu no interior do aparelho psíquico parte, inicialmente, da

influência crítica que exercem os pais, estendendo-se mais tarde aos educadores, essa

formação é também base para a ação de uma instância de censura e auto-observação, distinta

do ideal do eu, que asseguraria a satisfação narcísica do eu através da contínua observação

do eu atual com a finalidade de compará-lo ao eu ideal. O delírio de ser observado da paranóia encontra na relação acima sua referência, como

também a autocrítica da consciência moral -assegurando a referência a processos normais.

Em Luto e Melancolia (1915), Freud apresenta a suposição de um narcisismo que

depende, para sua gênese, das relações de objeto. O narcisismo em Luto e Melancolia

implica uma identificação com o objeto, um estado que supõe, em sua gênese, a

interiorização do objeto, a partir do qual o eu constitui-se através do outro. O mecanismo de introjeção do que há de “bom” no objeto e de projeção do que há de

“ruim” no ego para os objetos ocorre durante a fase puramente narcisista, que cede lugar a

fase objetal. Se o objeto torna-se fonte de sensações agradáveis, o sujeito o incorpora e diz

56 que o ama. Se o objeto causa desprazer, o ego afasta-o e diz que o odeia. O odiar estaria

ligado à busca de preservação por parte do ego, segundo a necessidade de

autoconservação37.

Os objetos reais são substituídos por imaginários, criados a partir dos protótipos infantis

e do contato com os objetos investidos e abandonados. O indivíduo retém apenas o que é

agradável nesses objetos e em si mesmo para formar um objeto idealizado em sua fantasia.

Freud assinala que o narcisismo da infância apresenta-se na vida adulta por devoção a

um ideal de ego que se forma em seu interior. O ego emite investimentos libidinais aos objetos

e se empobrece em favor desses investimentos e do ideal do ego. Esse ideal é cumprido e

obtém-se a satisfação da libido do objeto.

Contudo, muitas vezes, em função de suas exigências, o ideal do ego impõe difíceis

condições para a satisfação libidinal dos objetos e não pode ser cumprido. Tal o nível de suas

exigências, que a censura vê uma parte dessa satisfação como inconciliável. Exige-se muito

desses objetos e por isso o indivíduo buscaria formar objetos imaginários agradáveis

introjetando o que tem de bom nesses objetos e projetando o que é tido como ruim em si

mesmo para os objetos, através do mecanismo de projeção. Forma um objeto idealizado,

tomando seu próprio ego como o agradável e o externo, anteriormente indiferenciado, como

desagradável.

Para Freud, o objetivo da idealização seria fazer com que o indivíduo voltasse ao estado

de onipotência do narcisismo infantil. O ideal narcísico de onipotência - ego ideal - seria criado

com o propósito de restaurar o contentamento consigo mesmo, próprio do narcisismo primário,

o qual foi perturbado durante a infância.

3.3.2 IMPLICAÇÕES TEÓRICAS

A diferença entre narcisismo e autoerotismo se encontra no fato de que, no estado

narcísico primitivo, ou primário, a libido possui um objeto para investir: o ego. Na medida em

que o ego se desenvolve e reconhece objetos exteriores, a libido tenderá a desinvestir o ego e

investir os objetos externos.

Freud define a relação entre investimento do ego (libido egóica) e investimento objetal

(libido objetal) como complementar e inversamente proporcional, na medida em que a

diminuição do investimento narcísico corresponde a um aumento do investimento de objeto, e

vice-versa. Durante seu desenvolvimento, o ego se distanciaria do narcisismo primário de

modo a desinvestir a si mesmo e investir objetos exteriores, empobrecendo-se em favor desses

57 investimentos. No entanto, certos estados, tanto normais quanto patológicos, implicam em

uma retirada da libido de seus investimentos objetais e um retorno ao ego, que ao ser

novamente investido caracteriza o que Freud chamou de narcisismo secundário.

No entanto, qualquer que seja o movimento narcísico, primário ou secundário, o conflito

psíquico não poderá mais ser definido pela oposição entre as pulsões sexuais e pulsões de

autoconservação, mas entre libido egóica e libido objetal, ambas da alçada das pulsões

sexuais. Ou seja, o que Freud chamava de pulsões de autoconservação era somente a parte

narcísica das pulsões sexuais (investimento libidinal egóico).

Portanto, o conceito de narcisismo leva Freud a revisar sua primeira teoria pulsional,

pois o conflito psíquico entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação não mais se

sustenta.

As próximas observações de Freud, em relação às neuroses traumáticas e à compulsão

à repetição, levará o autor à revisar, inclusive, sua colocação anterior de que todos os sonhos

representam uma realização de desejo. Há sonhos que se repetem sem que haja nenhum

desejo que se realiza por meio deles, do mesmo modo que a repetição de padrões

desprazerosos de comportamento, que não implicam, no final, na obtenção de nenhum prazer.

Nesse sentido, a partir de Além do Princípio do Prazer (1920), o autor lançará as bases para

a sua segunda teoria pulsional, localizando o conflito psíquico no polêmico dualismo entre

pulsões de vida e pulsões de morte. .

Também os conceitos de ideal do ego e da instância de observação de si, identificados a

partir da Introdução ao Narcisismo, tornar-se-ão base para uma das instâncias de sua segunda

teoria tópica, como veremos a seguir.

37 AE, vol.14, pp. 154-60. Freud retoma esta questão em Além do princípio do prazer (1920).

58 4. A SEGUNDA TEORIA PULSIONAL, ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER

E A SEGUNDA TÓPICA.

Deus e o Diabo estão lutando ali;

e o campo de batalha é o coração do homem.

Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov)

Introdução A descoberta da oposição entre libido egóica e libido objetal, correlativa à noção de

narcisismo, levou Freud a abandonar a polaridade das pulsões sexuais e pulsões do eu, já que

as funções de auto-conservação dependem do amor a si mesmo.

No entanto, Freud ainda resistiria em abandonar o primeiro dualismo, pois esse

abandono ameaçaria a concepção do conflito intrapsíquico, presente nas neuroses, se a

energia psíquica pudesse ser pensada como uma unidade. Como afirma Simanke:

A resistência de Freud em consentir com isto prende-se a vários fatores. Um histórico: tal

hipótese havia sido sugerida por Jung, com quem Freud rompera recentemente e com quem se

empenha em uma discussão... Outros fatores são de natureza teórica: a dualidade pulsional

serve de base para a noção de conflito psíquico, que está na raiz da compreensão freudiana

das neuroses.38

A concepção de outro polo pulsional, exigência estrutural da teoria, somava-se à

necessidade de responder pelas manifestações de ódio e de agressividade, ambivalência,

sadismo, masoquismo, mas, principalmente, pelos fenômenos de repetição, impossíveis de

serem explicados a partir de uma perspectiva de busca de satisfação pulsional. Preparava-se,

assim, o terreno para a introdução da segunda teoria pulsional.

O novo antagonismo pulsional, que Freud sustentaria até o final de seus dias, passaria a

se expressar entre as pulsões de vida (Eros) e as pulsões de morte, cuja base repousava

sobre os dois grandes princípios que operam no mundo físico: as forças de atração e repulsão.

"(...) A meta da primeira é produzir unidades cada vez maiores e, assim, conservá-las, ou

seja, uma ligação; a meta da outra é, ao contrário, dissolver nexos e, assim destruir as coisas

do mundo." 39 As pulsões de vida, ou Eros, que abrangem tanto as pulsões sexuais quanto as pulsões

de autoconservação, tendem a conservar as unidades vitais existentes e a formar, a partir

delas, outras mais. A pulsão de morte, pelo contrário, tende à redução completa das tensões, a

38 Simanke, 1984, p. 122. 39 AE, vol. 23, p. 146

59 um retorno a um estado anterior; em última instância, à condução do ser vivo ao estado

inorgânico.

O que Freud deseja conceitualizar com a pulsão de morte40 é o que há de mais radical na

noção de pulsão: o retorno a um estado anterior, o repouso absoluto do estado inorgânico.

Freud estabelece uma diferença entre o princípio do prazer, que representaria uma

exigência da libido, de uma maneira mais qualitativa do que econômica, e o princípio do

Nirvabna (originalmente, princípio de inércia), que corresponde à exigência de reduzir

absolutamente as tensões. Assim como no Projeto (1895), o princípio da inércia não se

sustenta mediante o funcionamento psíquico, a tendência de reduzir a zero a tensão se

transforma, com o desenvolvimento psíquico, na tendência a manter constante o nível de

excitação

Inicialmente, a pulsão de morte se orienta para o interior do indivíduo, e tende à auto-

destruição; mais tarde, haverá de manifestar-se sob a forma de pulsões agressivas ou

destrutivas. Isto se dá porque a libido se une à pulsão de morte e, desse modo, abre o caminho

para os objetos, o que permite ao indivíduo descarregar a tensão por meio de uma intervenção

no mundo exterior, servindo-se, para isso, de seu sistema muscular. Uma parte dessas pulsões

se mescla à sexualidade e dá origem ao sadismo; outra parte mantém-se orientada para o

próprio sujeito, e, apesar de sua ligação com a sexualidade, manifesta-se como masoquismo

erógeno. Freud afirma que, levando em consideração as manifestações do masoquismo, a

reação terapêutica negativa e o sentimento de culpa dos neuróticos, é impossível manter a

hipótese de que o funcionamento psíquico é regulado exclusivamente pelo princípio do prazer.

Mas um outro fenômeno seria ainda mais marcante em relação à hipótese da regulação

exclusiva do aparelho pelo princípio do prazer: os sonhos traumáticos. Eles representam a

objeção, aceita por Freud, à tese de que todo o sonho é realização de desejo.

4.1 Além do princípio do prazer (1920) e a segunda teoria pulsional A compulsão à repetição e o pulsional entrelaçam-se teoricamente na medida em que, a

partir do caráter universal das pulsões, uma pulsão representa a tendência, inerente ao

orgânico vivo, de reproduzir um estado anterior -o estado inorgânico-, abandonado pelo influxo

de forças ambientais perturbadoras.

Nos fenômenos da vida animal, em especial os que expressam uma herança da

espécie, como o local de desova dos peixes ou os vôos migratórios dos pássaros, ou ainda os

fatos embriológicos, em que se observa a repetição das estruturas de todas as formas de que

40 A pulsão de morte nunca pode ser observada em estado puro. Ela sempre será acessível à nossa percepção mesclada com a pulsão de vida.

60 descende a forma animal atual, Freud encontra uma analogia que lhe permite supor a

aquisição histórica das pulsões.

Ao levar às últimas conseqüências a hipótese de que todas as pulsões almejam o

restabelecimento de um estado anterior, a única explicação que pode dar para o sucesso do

desenvolvimento orgânico é atribuí-lo à ação de forças perturbadoras externas. Ele supõe que,

se não houvessem ocorrido modificações nas condições que determinaram a evolução da

crosta terrestre, o ser vivo elementar teria repetido sempre o mesmo curso vital. A história

evolutiva do planeta, no entanto, impôs variações ao curso vital do organismo elementar, que

foram apreendidas pelas pulsões orgânicas e preservadas na repetição de cada curso vital.

Essa hipótese responde também pela aparente tendência das pulsões ao progresso. De

acordo com a natureza conservadora das pulsões, sua meta não pode ser um estado nunca

antes experimentado, mas sim um estado inicial, muito antigo, o inorgânico. A meta das

pulsões, portanto, é alcançar um estado anterior, o que deve ser feito através de rodeios

impostos pelo curso evolutivo da Terra. Uma vez que o destino de todo ser vivo é morrer,

regressar ao inorgânico, Freud conclui que a meta da vida é a morte, uma vez que o inanimado

antecede o vivo, e que todo ser vivo, ao morrer, morre por razões internas.

Freud supõe que, através da intervenção de forças inimagináveis, a vida foi gerada na

matéria inanimada. Suscitada a tensão no material, essa tensão procurou nivelar-se, daí

surgindo, simultaneamente, a primeira pulsão de regresso ao inanimado. Talvez esse

organismo primitivo, orientado por sua estrutura química, tivesse que percorrer um caminho

vital muito breve. Mas, com as contínuas alterações externas, a substância desviou-se cada

vez mais de seu caminho vital originário, tendo que dar cada vez mais voltas para alcançar sua

meta final.

Mas, sobre o outro extremo, existe uma outra classe de pulsões, e, ao que tudo indica,

em oposição às primeiras. São as pulsões sexuais, que levam Freud a opor dois grupos de

pulsões: um que se lança à realização da meta final da vida e outro que, num determinado

ponto do trajeto, realiza um movimento retrocedente, a fim de retomar o trajeto a partir de um

ponto anterior, e com isso prolongar a duração do caminho.

Assim, enquanto as pulsões de auto-conservação provêm do estado abandonado e

querem restabelecer essa condição, a meta das pulsões sexuais é a fusão das células

germinais diferenciadas, conjugando a vida em unidades cada vez maiores, para garantir sua

renovação.

A libido dessas pulsões sexuais coincide, portanto, com o princípio que mantém em

coesão todo o ser vivo, o Eros de filófosos e poetas, como observa Freud.

Embora fundamentando-se em fatos biológicos e em hipóteses sobre a evolução da

Terra, Freud reconhece a incerteza sobre a qual assenta-se essa última postulação da teoria

61 das pulsões em relação às duas primeiras -a extensão do conceito de sexualidade e a teoria

do narcisismo- nascidas da experiência clínica. Aqui Freud aventura-se por um terreno de

hipóteses puramente teóricas, tendo, como único ponto de apoio para a suposição do caráter

regressivo das pulsões, a observação clínica dos fatos da compulsão à repetição.

Mas a construção teórica dessa última teoria das pulsões não se deu ao acaso, não foi

simplesmente um divagar teórico: ela veio para responder à necessidade que o próprio

desenvolvimento da teoria e a introdução do conceito de narcisismo trouxe a Freud.

A princípio, todas as orientações pulsionais menos conhecidas, que se distinguiam das

pulsões sexuais direcionadas ao objeto, foram abarcadas pelo conceito de pulsões egóicas.

As pulsões egóicas opunham-se, então, às pulsões libidinais ou sexuais. No entanto, o

fenômeno do narcisismo e a análise do eu mostraram que também as pulsões egóicas, ao

tomarem o próprio eu como objeto, são de natureza libidinosa, o que substituiu a oposição

entre pulsões egóicas e pulsões sexuais para a oposição entre pulsões egóicas e pulsões de

objeto, ambas libidinais. Esta última oposição, no entanto, não se mostrou fundamental e nem

suficiente para explicar as pulsões destrutivas, que reclamavam outra classe de pulsões dentro

do eu, que não as egóicas e de objeto. Foi através da especulação teórica abordada que Freud

pôde, finalmente, precisar a oposição reclamada pela teoria, através da oposição entre

pulsões de vida e pulsões de morte.

O que resta precisar, dentro dessa nova perspectiva pulsional, é a relação dos

fenômenos pulsionais de repetição com o império do princípio do prazer.

Embora a mais antiga função do aparelho tenha sido atribuída, por força das evidências

-entre as quais a reprodução de vivências traumáticas em sonhos- à ligação de moções

pulsionais, que tem por finalidade transformar a energia de investimento livremente móvel em

energia ligada (verificando-se no processo o surgimento de desprazer), é essa primitivíssima

função que assegura e introduz o princípio do prazer no aparelho, levando Freud a supor que

tal transposição de energia ocorre em função do estabelecimento do princípio do prazer.

Como o princípio do prazer é uma tendência que também está a serviço de uma função

(determinada pelo princípio da constância): a de isentar, manter constante ou mais baixa

possível as quantidades de excitação no aparelho-, tal função vem, de um modo geral,

diretamente ao encontro do suposto de que todo ser vivo aspira ao repouso do mundo

inanimado. Sob essa perspectiva, a ligação das excitações seria um ato preparatório de

acomodação das excitações, para que a mesma se extingua momentaneamente no prazer da

descarga.

Podemos, então, precisar a tendência à descarga como a tendência a um rebaixamento

da quantidade ao nível mais próximo possível de zero, sendo que podemos dizer que a luta

62 travada pelo aparelho para obter o domínio do estímulo, anterior ao princípio do prazer,

ocorre em um nível extremo de uma dada escala quantitativa.

Os sonhos traumáticos parecem confirmar essa hipótese, na medida em que

representam o campo de batalha pelo domínio das quantidades, não havendo espaço, ainda,

para um predomínio do princípio do prazer, e portanto, para a realização de desejo.

4.2 O fracasso do princípio do prazer Conhecida é a descrição de um estado, que sobrevém após acidentes em que houve

risco de vida, denominado neurose traumática. Do conhecimento adquirido através das

neuroses provocadas pela guerra, descarta-se, como causa das neuroses traumáticas, a

deterioração do sistema nervoso provocada por choque mecânico.

Freud assinala a importância do fator surpresa, do terror diante de um acontecimento e

do dano físico simultâneo que o acompanha.

Embora, em sua vida de vigília, os neuróticos traumáticos não tenham o hábito de

recordar o acidente que provocou o trauma, até se esforçando por não lembrá-lo, em sua vida

onírica são reconduzidos à situação do acidente, despertando com renovado terror. Tal

situação, reproduzida durante o sono, prova a força da impressão provocada, e supõe uma

fixação psíquica ao trauma.

Mas o fato do sonho levá-los novamente à situação patógena é o que traz a Freud a

indagação sobre a natureza do sonho, uma vez que, de acordo com sua tese principal, o sonho

deveria apresentar, a esses neuróticos traumáticos, imagens de uma época anterior ao trauma

ou até da cura deste.

Segundo introdução de James Strachey a Além do princípio do prazer, em conferência

no Congresso Psicanalítico Internacional, realizado a 9 de setembro de 1920 em Haya, Freud

pronunciou-se a respeito dos sonhos traumáticos do seguinte modo:

Todavia, há outra classe de sonhos que suscitam, a juízo do orador, uma exceção mais

séria à regra de que os sonhos são realizações de desejo; são eles os denominados "sonhos

traumáticos", como os que têm lugar em pessoas que sofreram um acidente, mas também os

que, no curso da psicanálise de neuróticos, lhes tornam a fazer presentes traumas esquecidos

de sua infância. 41

Pela dificuldade de atribuir a esses sonhos a mesma finalidade que atribuiu aos sonhos

em geral, ou seja, a realização de desejo, Freud remete sua discussão ao manuscrito que seria

publicado em dezembro daquele ano.

A finalidade do sonho como realização de desejo deriva diretamente da suposição

adotada sem reservas, como Freud observa na primeira parte de Além do princípio do

41 AE, vol. 5, p. 18

63 prazer, de que é o princípio do prazer que regula automaticamente o decurso dos processos

psíquicos.

Tal suposição implica que, sempre que uma tensão desprazeirosa se coloca em marcha,

a orientação do aparelho será para que o resultado final coincida sempre com uma diminuição

da tensão, evitando-se o desprazer ou produzindo o prazer.

Essa suposição se expressa também na hipótese segundo a qual o aparelho psíquico se

esforça por manter, se não o mais baixa possível, ao menos constante a quantidade de

excitação.

Se o trabalho do aparelho tem como objetivo manter baixa a quantidade de excitação,

será sentido como disfuncional ou desprazeiroso tudo o que possa aumentá-la. Freud observa

que o princípio do prazer deriva, portanto, do princípio da constância, embora esse último

tenha sido identificado a partir dos fatos que o fizeram supor o princípio do prazer.

A tendência do aparelho de manter baixa ou constante a quantidade de excitação, Freud

remete ao princípio da estabilidade de Fechner, ao qual referem-se as sensações de prazer e

desprazer, como podemos observar através da seguinte citação: "(...) todo o movimento

psicofísico que ultrapasse o umbral da consciência vem afetado de prazer na medida em que

se aproxime, além de certo limiar, da estabilidade plena, e afetado de desprazer na medida em

que, além de certo limiar, se desvie daquela..." 42 Por força das evidências, Freud conclui ser incorreta a hipótese de um domínio exclusivo

do princípio do prazer regulando os processos psíquicos, pois, se assim fosse, a grande

maioria desses processos deveria resultar em prazer.

Com esta restrição, o que Freud identifica no aparelho é uma forte tendência ao prazer, contrariada, porém, por outras forças ou constelações, que nem sempre permitem que

o resultado final corresponda ao alcance do prazer.

Mais uma vez a citação de Fechner vem corroborar o seu raciocínio:

"(...) a tendência à meta não significa todavia seu alcance, e em geral esta meta

somente pode alcançar-se por aproximações..."43

Diante das constatações, para não renunciar à tese do sonho como realização de

desejo, resta a Freud sustentar que a neurose traumática afeta a função do sonho e a desvia de sua meta.

No sentido de elucidar a questão, Freud remete-se à uma experiência semelhante da

vigília, a experiência clínica da compulsão à repetição, na qual o enfermo repete o conteúdo

recalcado como vivência presente ao invés de rememorá-lo como parte do passado, como

seria preferível para o êxito do tratamento.

42 AE, vol. 18, p. 8

64 A compulsão à repetição reativa vivências que não contêm, nem em sua reprodução,

nem em sua origem, possibilidade alguma de prazer, mesmo para as moções pulsionais

recalcadas na ocasião.

Os desejos da vida sexual infantil estavam, em si, destinados ao fracasso, por serem

inconciliáveis com a realidade. O fracasso desses desejos se dá através de penosas

experiências e sensações extremamente dolorosas para a criança, deixando como seqüela

uma ferida narcísica como dano permanente do sentimento de si mesmo. O vínculo edípico

sucumbe, sem satisfação alguma, diante dessa realidade.

Mas como podem nascer desejos incompatíveis com a estrutura da realidade,

destinados, desde seu surgimento, a serem insatisfeitos?

Tais desejos, impossíveis de realização, no entanto, nascem, e suas vivências, que

acarretam frustração e dor, são repetidas pelos neuróticos na transferência com o analista,

através da ação de pulsões. Essas pulsões, que teriam por destino a satisfação, nem em seu

próprio momento de origem a obtiveram, levando apenas ao desprazer, numa experiência vã,

mas que, apesar de tudo, se repete forçada pela ação de uma compulsão.

Como observa Freud, a compulsão à repetição, no entanto, não se restringe a um fato

clínico. Na clínica, ela apenas encontra um suporte para atualizar-se. No cotidiano das

pessoas, essa compulsão exterioriza-se na repetição dos mesmos prejuízos, de idênticas

vivências que terminam invariavelmente em fracasso, e que, aparentemente, as fazem vítimas

de um destino implacável. De tais vivências somam-se exemplos.

Observando a compulsão à repetição à luz da transferência e do destino fatal dos seres

humanos, Freud universaliza o mecanismo de compulsão à repetição, supondo-o como mais

originário e mais pulsional que o próprio princípio do prazer.

Desfaz-se, portanto, o reinado, até então absoluto, do princípio do prazer sobre o

decurso dos processos psíquicos na teoria freudiana. A partir daí, as questões relativas ao

esclarecimento da compulsão à repetição tomam um caminho independente do princípio do

prazer, e se resumem nas seguintes indagações: sua função no aparelho, as condições para

sua emergência e sua relação com o princípio do prazer.

4.3 O trauma e a função originária do aparelho. Em função da localização espacial do sistema consciente no aparelho psíquico, o

processo excitatório não imprime sobre seus elementos nenhuma alteração duradoura, tendo

como fim a aquisição da consciência. O fator que explica essa diferenciação é, para Freud, a

localização do sistema consciente, em contato direto com o exterior.

43 AE, vol. 18, p. 9

65 Ao utilizar como exemplo um organismo vivo simplificado ao máximo -uma vesícula

indiferenciada e estimulável- atribui à sua superfície uma diferenciação devido à sua

localização frente ao mundo exterior, servindo como órgão receptor de estímulos. Sobre bases

embriológicas, concebe uma alteração da substância na superfície da vesícula, de modo a

diferenciar seu processo excitatório de outros estratos menos superficiais, devido ao

bombardeio de estímulos externos sobre essa superfície.

Em um mundo que se resume em massas em movimento, não é difícil deduzir que a

mesma não sobreviveria ao bombardeio incessante de estímulos externos, se não tivesse

sobre si uma proteção, que Freud denomina proteção anti-estímulo. Sua aquisição explica-se

através da evolução: necessidade de modificação da superfície exterior, a ponto de torná-la

inorgânica, criando assim um envoltório que lhe permite fracionar a intensidade dos estímulos

externos, que, desse modo, somente se propagam para os estratos contíguos de substância

orgânica.

A proteção anti-estímulo age, então, à semelhança de um filtro para as magnitudes de

estímulo. Os estratos mais profundos foram preservados através da morte do estrato mais

externo, e só poderão ser alcançados se estímulos suficientemente intensos perfurarem a

proteção anti-estímulo. A partir de tal dedução, a tarefa que tem o organismo vivo de proteger-

se contra estímulos torna-se quase mais importante do que a de recebê-los. A meta do

organismo, portanto, deve ser a de preservar as formas interiores de transformação de energia

do influxo nivelador das quantidades hipertróficas de energia que operam fora. Como o objetivo

da recepção de estímulos é o de obter ciência sobre a orientação e a natureza de estímulos do

mundo exterior, apenas pequenas quantidades são suficientes para a execução da tarefa.

No caso de organismos superiores, partes do estrato cortical receptor de estímulos da

antiga vesícula permeneceram imediatamente atrás da proteção anti-estímulo e são

conhecidos como órgãos sensoriais, enquanto o restante desse estrato adentrou mais

profundamente pelo corpo.

Fatores como a localização espacial do estrato cortical - que se diferencia como sistema

consciente- entre o exterior e o interior, e a multiplicidade das condições que podem exercer

seu influxo, tanto de um lado como de outro, são decisivos para a operação desse sistema,

assim como do aparelho psíquico.

Com base nesse modelo teórico, os fatores traumáticos determinantes das neuroses

encontram, para Freud, sua explicação não só na perfuração da proteção anti-estímulo através

de quantidades hiperintensas de excitação provenientes do mundo exterior -que ocasionam um

desequilíbrio na economia de energia do organismo e convocam todos os meios possíveis de

defesa- como também na soma de excitação, liberada por ocasião do choque mecânico, que

permanece livre, sem ligação.

66 Sabemos que a neurose traumática caracteriza-se por uma fixação do sujeito ao

momento do trauma, atualizada pela repetição da lembrança do acidente, seja em sonhos, seja

em rememorações da vigília.

No entanto, segundo observa Freud, esse momento, que representou um risco de vida

para o sujeito, só desemboca na neurose se o sujeito em questão não sofrer nenhum sério

traumatismo físico como consequência do mesmo, que o levaria a um investimento narcísico

do órgão lesado. Por não haver possibilidade desse investimento libidinal na falta da lesão, o

excesso de libido, que se libera com o choque, permanece livre, não encontrando um objeto

através do qual se daria sua tramitação.

O que resta, portanto, é uma soma de excitação em estado puro, sem ligação,

representando uma verdadeira invasão pulsional do aparelho psíquico. Nesse momento, não

há lugar sequer para um princípio que se assemelhe ao princípio do prazer. Invadido por

enormes quantidades de estímulo, a tarefa do aparelho é, antes de mais nada, obter um

domínio sobre o estímulo, ligando psiquicamente as quantidades que se impuseram de forma

repentina, a fim de processá-lo.

A essa conclusão, Freud acrescenta que o terror gerado na situação traumática

denuncia a falta de uma emissão de angústia que sobreinvestiria os sistemas que primeiro

recebem o impacto do estímulo. Sem esse sobreinvestimento, os sistemas continuam

operando com investimento inferior, que não lhes dá as condições necessárias para ligar as

quantidades de excitação hiperintensas sobrevindas de fora, facilitando a ruptura da proteção

anti-estímulo. Nesse contexto, a emergência da angústia surge como a última fronteira da

proteção anti-estímulo.

A situação traumática implica numa situação de fragilidade vivenciada, diferenciada da

situação de perigo pelo fato de não conter a condição prévia de expectativa, na qual se dá o

sinal da angústia.

A angústia gerada em situação de perigo é, portanto, uma expectativa do trauma e uma

reprodução amenizada deste, ou seja, a situação de perigo implica no discernimento,

recordação e expectativa de uma situação de fragilidade. A angústia é a reação gerada, no

instante do trauma, diante da fragilidade do eu, reproduzindo-se, daí por diante, de forma

bastante amenizada, para sinalizar a iminência de uma situação que represente perigo para o

eu.

Na 32.a de suas Novas conferências... -Angústia e vida pulsional-, Freud destaca

que o essencial, tanto no nascimento, quanto em qualquer situação de perigo, é a emergência

de um estado excitatório de tensão extremamente elevada, sentido como muito desprazeiroso

e não passível de domínio através da descarga, a que chama fator traumático.

67 Precisa o cerne da angústia como o terror da emergência do fator traumático, que não

pôde ser tramitado segundo o princípio do prazer.

A conversão de uma impressão em fator traumático pressupõe um cancelamento na

operação do princípio do prazer.

Nesse momento, insere-se a elucidação da questão anteriormente formulada por Freud

a respeito da finalidade do sonho, como realização de um desejo, em relação ao sonho dos

neuróticos traumáticos: os sonhos que reconduzem o sujeito, regularmente, à situação que

provocou o trauma são sonhos que não estão a serviço de nenhuma realização de desejo.

Freud supõe para esses sonhos uma tarefa mais elementar, anterior ao império do princípio do

prazer. O objetivo desses sonhos não é, portanto, realizar desejos, mas, através de um

desenvolvimento da angústia 44, cuja omissão foi decisiva para o estabelecimento da neurose

traumática, obter para o aparelho o domínio sobre o estímulo.

Assim sendo, o retorno mnêmico da situação traumática nos sonhos representa a

tentativa, através desses, de ligar a quantidade excedente de excitação, que passa a

representar um problema, e até uma ameaça, ao aparelho psíquico.

Através desses sonhos, portanto, Freud adquire a perspectiva de uma outra função do

aparelho psíquico, que, embora não contradiga o princípio do prazer, opera de forma

independente deste e parece anterior ao objetivo do aparelho de obter prazer e evitar o

desprazer.

Através dessa perspectiva, Freud admite, pela primeira vez, uma exceção à tese de que

todo o sonho é uma realização de desejo. E a amplia: assim como os sonhos dos neuróticos

traumáticos, também os sonhos que na análise trazem de volta a recordação dos traumas

psíquicos da infância não podem ser vistos como realizações de desejo, mas sim como

produtos de uma compulsão à repetição.

Freud passa a supor uma função mais originária para o sonho do que a realização de

desejo das moções perturbadoras do sono, uma vez que o aparelho só pode exercer essa

função sob o domínio do princípio do prazer, que não opera durante o processo de ligação e

domínio dos estímulos.

44 Para Freud, é um fator histórico que está na gênese do afeto de angústia: a situação de perigo originária, frente a qual a angústia se constitui, representada nos seres humanos pelo ato do nascimento, só pode ser percebida pelo feto como um desequilíbrio extremamente intenso na economia da libido, provocado pela irrupção de grandes somas de excitação, que produzem sensações intensamente desprazeirosas. Ainda para elucidar essa questão, Freud toma como base a situação em que o lactente quer garantir a presença da mãe, com a finalidade de resgüardar-se da insatisfação que seria gerada pelo aumento de tensão advinda da necessidade não satisfeita. Observa que o comum a essa situação e a situação do nascimento, e que caracteriza o núcleo da situação de perigo, está na perturbação econômica em função do aumento hipertrófico das magnitudes de excitação à espera de tramitação. As magnitudes de excitação que alcançam o nível desprazeiroso, sem que possam ser dominadas e tramitadas, estabelecem para o lactente a analogia com a situação do nascimento

68 O império do princípio do prazer só se estabelece, então, depois que é obtida a ligação

ou o domínio da excitação, o que ocorre, não por oposição, mas de forma independente do

princípio do prazer.

Cabe, portanto, aos estratos superiores do aparelho realizarem a ligação da excitação

das pulsões presentes no processo psíquico primário.

4.4 Ligação: a tarefa primordial A partir de Além do princípio do prazer, a questão da ligação toma um lugar de

destaque na teoria, evocada para dar conta da repetição psíquica do trauma que, após a

hipótese de 1920, pressupõe a perfuração da proteção anti-estímulo, a função de ligar

quantidades de excitação já não pode mais ser atribuída ao eu. A ligação de quantidades de

excitação concomitante ao trauma aponta para uma tarefa anterior à constituição do eu ou ao

princípio do prazer, essencialmente relacionada à economia do aparelho e sobre a qual

assenta-se o fenômeno da compulsão à repetição. Freud recua, portanto, a tarefa da ligação

de excitações para as leis que regulam o próprio decurso inconsciente.

Cabe a Eros, portanto, a tarefa de religar as representações, mantendo, dessa maneira,

a coesão do próprio sujeito que, desfocado do que supõe ser ele mesmo, só pode ser pensado,

pela psicanálise, além do próprio eu.45

À medida em que a tarefa primordial de ligar surge, em sua última teoria das pulsões,

como característica das pulsões de vida, uma contradição aparente se institui. No entanto, é na

medida em que se compreende, na obra de Freud, a relação existente entre a tarefa de ligação

das excitações e um conceito tão complexo como o da compulsão à repetição que podemos

nos certificar da aparência dessa contradição.

Ao considerarmos os diferentes casos em que a compulsão à repetição se exterioriza,

percebemos que é acidentalmente que ela aparece ligada à tarefa primordial de ligação, não

havendo nenhuma relação fundamental entre elas; muito pelo contrário. Segundo Monzani, é

exatamente na falha da tarefa de ligação que a compulsão à repetição se instala. Em suas

palavras:

"(...) é nesse vazio da Bindung [ligação], nessa fresta, que aparece a compulsão à

repetição." 46

Assim, a cena traumática será reproduzida regularmente no sonho até que, através da

Bindung, as quantidades invasoras do aparelho sejam ligadas e descarregadas de forma

fracionada, tornando neutra a invasão pulsional. Nesses casos, a compulsão à repetição

favorece aparentemente a tarefa de ligação, por não se exteriorizar mais em sua forma original.

45 MANIAKAS, G.F.(1997), p. 240 46 MONZANI, L. R.(1989), p. 181

69 O caráter independente da compulsão à repetição em relação ao princípio do prazer

pode ser melhor apreciado nos casos de situação transferencial ou de repetição dos mesmos

fracassos e frustrações na vida cotidiana, onde o sujeito aplica o mesmo padrão infantil a uma

gama indefinida de situações, terminando todas, invariavelmente, em fracasso. Aí a compulsão

à repetição não somente aparece desligada do princípio do prazer, como claramente em

oposição a ele, levando Freud a interpretá-la como o próprio índice da pulsão de morte.

Não nos esqueçamos, porém, que até mesmo o princípio do prazer, que se instala após

a tarefa de ligação, por ter como meta a descarga de quantidades de excitação, não se

constitui em mais que um rodeio para que, enfim, o organismo alcance sua meta: o retorno ao

inanimado.

Nesse sentido percebemos claramente que a orientação biológica preside às hipóteses

sobre as quais se alicerça boa parte do edíficio psicanalítico desde então.

Nesse momento, porém, seria proveitoso estabelecer uma distinção entre a descarga

total das quantidades de excitação no nível orgânico, que pressupõe a morte, e as descargas

motivadas pela tendência de manter constante ou o mais próximo do zero as quantidades de

excitação, que pressupõem um nível ótimo de funcionamento do aparelho. Estas últimas,

metas do princípio do prazer, no entanto, são ligadas pelo princípio de realidade, que se

estabelece, como vimos, a partir da necessidade de interação do organismo com o meio, que

lhe garante a sobrevivência, sugerindo-nos, como resultado, uma mescla entre as duas classes

de pulsões.

Tendo como hipótese básica para o funcionamento do aparelho a tarefa primordial de

ligação, Freud leva-nos a supor que a passagem do domínio absoluto do princípio do prazer

para o princípio da realidade é somente um retorno: o princípio da realidade, de forma

exclusivamente quantitativa, esteve aqui antes do princípio do prazer, exteriorizado pela tarefa

de ligação das intensidades de excitação 47.

4.5 A SEGUNDA TÓPICA

Tendo como pano de fundo as seqüências de pensamento desenvolvidas em Além do princípio do prazer que Freud, ao contrapô-las aos dados clínicos, introduz em 1923 O Ego e o Id (O Eu e o Isso), através do qual uma segunda teoria tópica insere-se no conjunto de sua

obra.

Embora a segunda tópica, introduzida em 1923, através de O Eu e o Isso (O Ego e o Id), não apresente uma delimitação tão sistematizada em relação ao funcionamento das

47 MANIAKAS, G. F. (1994).

70 diversas instâncias, como nos apresenta a primeira tópica, ela está longe de supor instâncias

psíquicas que não tenham um modo específico de funcionamento.

Se, com a nova divisão do aparelho, algumas regiões psíquicas dão lugar tanto a

processos primários quanto a secundários, como é o caso das partes inconscientes do ego e

do superego, além do inconsciente recalcado, no id (Es), porém, as coisas não se passam

dessa maneira.

Assim como o sistema inconsciente da primeira tópica, o núcleo do id é totalmente

inconsciente. Nele, o aspeto energético predomina; não há lógica ou tempo; nele, os processos

primários reinam absolutos. O id não conhece processos secundários; é a sede das pulsões e

do princípio do prazer. É o desconhecido que nos move.

A dimensão de sua abrangência pode ser apreendida pela própria designação

gramatical que o representa; ao formular um conceito como das Es (isso ou id), Freud supõe

que aquilo que impulsiona e move o sujeito está em outro lugar, que não no eu (ego). Ao

apontar para o isso (id) como o lugar desconhecido que estrutura o sujeito, Freud supõe que a

base dessa estrutura encontra-se desfocada em relação ao que o sujeito pensa ser ele

mesmo.

O id é regulado pelas mesmas leis que regulam o sistema inconsciente na primeira

tópica e o inconsciente de modo geral, reconhecidas em seu conjunto como processo psíquico

primário, ao qual contrapõe-se o processo que regula o interior do pré-consciente, o processo

psíquico secundário.

Sua construção teórica é herdeira, de certa maneira, da orientação biológica que em

Além do princípio do prazer foi necessária para definir as pulsões de vida e de morte.

Segundo Monzani:

"Enquanto o dualismo pulsional de Freud se movia em termos de pulsões de auto-

conservação/pulsões sexuais, a referência ao biológico, embora inegável, era, digamos,

longínqua. Tratava-se sempre e sobretudo de sua inscrição no psíquico e, antes de mais nada,

no inconsciente. Ora, a formulação de hipóteses biológicas, necessárias para a definição das

noções de vida e de morte, torna isso extremamente problemático. O biológico, enquanto tal,

parece invadir uma parte do aparelho psíquico e, mais especificamente, o domínio do

inconsciente."48 Ao conceber o inconsciente como composto por estruturas herdadas, por esquemas pré-

formados e hereditários, Freud se distancia da idéia de um inconsciente composto

predominantemente por representações.

Se a noção de id aparece também para responder a esse substrato biológico do

inconsciente, que pode ser pensado como um inconsciente primitivo, a partir do qual elementos

48 MONZANI, L. R. (1989), p. 266

71 que tentariam alcançar o extremo motor seriam recalcados, aberto, por um lado, aos

investimentos pulsionais que procuram um caminho de descarga, é no id que, a partir de

então, irá se alojar a nova dualidade pulsional.

O id é, portanto, a instância mais antiga e originária do aparelho, totalmente

inconsciente, a partir da qual o eu ou ego se desenvolveu por diferenciação das superfícies,

através de influxos do mundo exterior.

O desenvolvimento do aparelho psíquico é explicado por Freud sob o prisma de uma

história evolutiva, responsável pela passagem de determinados conteúdos do id ao estado pré-

consciente, que vigora no interior do ego. Desde o início, o ego recolheu alguns dos conteúdos

enviados pelo id e devolveu outros, incluindo nessa devolução algumas das impressões novas

que havia colhido do mundo externo. Abandonadas ao id, essas últimas acabaram

diferenciando-se de seu núcleo -no sentido descritivo- como inconsciente recalcado.

Sob o ponto de vista de uma localização tópica, é no estrato cortical mais exterior do eu

ou ego que ocorre o fenômeno da consciência, fenômeno este que pode ou não estar presente

em um estado psíquico. Uma vez que também as sensações internas emitidas pelos órgãos

dos sentidos partem de órgãos terminais, concebidos por Freud como prolongamentos do

estrato cortical, a afirmação é válida também para sensações e sentimentos, com a diferença

de que, nesses últimos, a percepção do mundo exterior é substituída pela percepção do próprio

corpo.

A maneira mais simples pela qual o ego poderia ser descrito, e que atende a descrição

desse tipo de organização nos animais, seria atribuir à periferia do ego processos conscientes

e, ao seu interior, processos inconscientes. No entanto, a experiência refuta tal descrição: no

caso dos seres humanos, processos nucleares tornam-se conscientes no ego. Como causa dessa complexidade do ego humano, Freud não vacila em apontar para a

função da linguagem, responsável pela conexão de seus conteúdos aos signos mnêmicos de

percepções visuais e, sobretudo, acústicas, que permitem ao seu estrato cortical periférico

perceptivo ser excitado a partir do interior, possibilitando que processos internos, tanto

cognitivos quanto os de representação, tornem-se conscientes.

Embora o estado pré-consciente, qualidade exclusiva do interior do ego e que abarca

todos os processos cognitivos, caracterize-se, por um lado, pelo acesso à consciência e, por

outro, por sua conexão com os restos mnêmicos da linguagem, o ego, em si não pode ser

reduzido a nenhuma dessas características. O ego é uma instância que possui vastas

ramificações inconscientes.

Como sabemos, Freud distingue, além do ego e do id, a ação de uma outra instância no

aparelho: o superego. Essa instância constitui-se a partir dos restos das primeiras escolhas

objetais do id, possuindo também o valor de reação frente a elas. Sua gênese resulta de dois

72 fatores biológicos, o segundo dos quais, na tradução inglesa de 1927, Freud caracteriza

como histórico: l. a prolongada dependência inicial do ser humano e 2. a constituição do

complexo de Édipo. O superego, portanto, descende dos primeiros investimentos objetais e do

complexo de Édipo, exercendo psiquicamente a função de proteção e de censura que, no início

da vida e durante a infância, coube aos pais e educadores.

A posição do ego em relação às duas outras instâncias é uma posição bastante

complexa, pois, embora realizando a mediação entre ambas e o mundo exterior, é, ele mesmo,

em parte, inconsciente, devendo sua origem tanto aos influxos provenientes do mundo exterior,

quanto do id, de onde surgiu por diferenciação.

Desse modo, os perigos que ameaçam o ego provêm tanto da realidade objetiva quanto

das exigências pulsionais do id. Entre os perigos que ameaçam o ego a partir do id, Freud

identifica: as intensidades pulsionais, equivalentes à ameaça das quantidades de excitação do

mundo exterior, capazes de alterar a organização do ego a ponto de transformá-lo novamente

umm parte do id; e o aprendizado que o ego adquire, através da experiência, de que, ao

satisfazer determinada exigência pulsional, pode ocasionar um perigo exterior, transformando,

conseqüentemente, esse tipo de exigência pulsional em perigo.

Em função das relações que estabelece com as outras instâncias, em conseqüência de

sua posição no aparelho, Freud chega à atribuir-lhe a condição de pobre coisa, não

descuidando, porém, de assinalar a importância decisiva dessa pobre coisa para a existência

da vida anímica, pois é do ego que dependem o acesso à motilidade, ou seja, o acesso à

descarga das excitações no mundo exterior, a consciência, o controle sobre os processos

parciais e a censura onírica.

73 5. CULTURA, ÉTICA E SUBJETIVIDADE

(...) como é que estes procedimentos podem despertar nos homens tão selvagem entusiasmo, a ponto de levá-los a sacrificar sua vida?

Somente há uma resposta possível: porque o homem tem dentro de si um apetite de ódio e destruição.

(...) Seria um grande serviço para todos se você expusesse o problema da paz mundial à luz de suas descobertas mais recentes,

porque essa exposição poderia muito bem marcar o caminho para novos e frutíferos modos de ação.

A. Einstein

Por que nos indignamos tanto contra a guerra, você, eu e tantos outros ? Por que não a admitimos como uma das tantas penosas calamidades da vida? ... A resposta seria:

porque todo homem tem direito à vida, porque a guerra aniquila vidas humanas promissoras, põe o indivíduo em situações indignas,

o compele a matar outros, coisa que ele não quer... Também a guerra, na forma atual já não dá oportunidade para cumprir o velho ideal heróico,

e que devido ao desenvolvimento dos meios de destruição uma guerra futura significaria o extermínio de um dos opositores ou de ambos.

(...) Somos pacifistas porque nos vemos precisados a sê-lo por razões orgânicas. (...) a guerra contradiz de modo mais

flagrante as atitudes psíquicas que nos impõe o processo cultural, e por isso nos indignamos contra ela... A nossa não é uma mera repulsa

intelectual ou afetiva: é, em nós, os pacifistas, uma intolerância constitucional, uma idiossincrasia extrema.

S. Freud

5.1 Psicanálise e cultura

As observações de Freud sobre a cultura não consituem mera opinião; elas representam

a reflexão psicanalítica sobre o que, na cultura, revela-se como efeito do inconsciente. Se a

psicanálise, em sua dimensão clínica, aspira à recuperação dos conteúdos reprimidos e à

decodificação do sentido inconsciente das diversas expressões humanas, é em relação à

cultura que a psicanálise confronta-se com os poderes alienantes da realidade social.

É importante sublinhar que, em Freud, não encontramos a uma sociogenêse ingênua

dos transtornos psicopatológicos. Freud aponta tanto a origem psicogênica do fenômenos

psicopatológicos, como sua relação com a cultura, que se constrói sobre a base da coerção

das pulsões; o êxito do processo inibidor consiste em que as pulsões não se manifestem de

forma direta, mas de forma sublimada, enquanto o seu fracasso se apresenta mediante a

expressão de fenômenos substitutivos (os sintomas), que incapacitam o sujeito para a

sublimação. Ele não deixa de expor as condições nocivas da dupla moral burguesa em relação

à moral sexual.

Em Totem e Tabú (1913), Freud tenta explicar a origem da sociedade e da religião a

partir das descobertas da psicanálise, procurando um fundamento histórico que justifique o

complexo de Édipo e a proibição ao incesto, mostrando que a história individual, de uma certa

maneira, repete a história da humanidade.

74 Freud recorre a abordagens evolutivas e etnológicas, manifestando a necessidade de

articular o conhecimento psicanalítico com uma concepção antropológica: as prescrições tabú,

que constituem o nódo central do totemismo, a saber: a proibição de matar ao tótem

(considerado como antepassado do clã) e a de ter relações sexuais com uma mulher

pertencente ao mesmo tótem, coincidem com os crimes de Édipo, que matou seu pai e se

casou com sua mãe, e também com os desejos primitivos das crianças.

Freud formula sua hipótese a partir dos dados da psicanálise e da hipótese darwinista do

estado primitivo da sociedade humana (a horda).

Darwin supunha a existência de um pai violento e ciumento, que reservava todas as

fêmeas para si e expulsava os filhos na medida em que iam crescendo. Freud tenta explicar o

fim da tirania paterna pela hipotése de que os irmãos teriam um dia se reunido, matado ao pai

e o devorado, acabando, assim, com a horda paterna, ao mesmo tempo em que identificavam-

se com ele por meio da incorporação canibalista de suas qualidades. Ao mesmo tempo

endeusado e temido por todos os membros da sociedade fraternal, ao devorá-lo, os irmãos

teriam se apropridado de parte de sua força. Essa associação abrigaria, em relação ao pai, os

mesmos sentimentos contraditórios que constituem o conteúdo ambivalente do complexo

paterno em nossa cultura.

Depois do crime, que satisfez tanto o ódio como o desejo de identificação com o pai,

nenhum dos irmãos obteve plena satisfação de seus desejos, pois nenhum dos filhos poderia

ocupar o lugar do pai sem temer (e ter) o mesmo fim. Em razão do remorso e da consciência

de culpa, o pai morto adquiriu um poder muito maior do que havia possuído em vida. O que o

pai havia antes impedido com sua presença, após o crime, os filhos o proibiram:

desautorizaram o seu próprio ato, elegendo um substituto do pai (o tótem) e proibindo a sua

morte, e renunciaram ao contato sexual com as mulheres de sua própria tribo original, ou clã.

Aqui também se encontraria não somente a origem da sociedade, como também da religião: a

hostilidade contra o pai se extinguiu com o tempo, dando lugar ao nascimento de um ideal

baseado na onipotência do pai primitivo; o desejo de expiação do crime e sua total

inacessibilidade, depois de morto, teria elevado o pai à categoria de deus.

Freud não fica alheio às críticas que a hipótese darwinista levanta. No entanto, ele

defende o assassinato do pai como um mito científico, ou seja, o assassinato do pai primitivo

não seria um acontecimento histórico, pois os impulsos hostis contra o pai e o desejo de matá-

lo e devorá-lo podem ter bastado para provocar a reação moral que deu origem ao tabú. .

Assim, o acontecimento que teria dado origem à comemoração totêmica somente existira sob

forma puramente simbólica. Como observa Gómez Pin:

75 “Observar o estado anterior suporia observar a pura animalidade que, como a própria

morte, é por definição irrepresentável, a menos que o seja por projeção retrospectiva a partir da

humanidade configurada como tal” 49.

Essa obra coloca em evidência a plena significação simbólica do Complexo de Édipo

como articulador da construção do sujeito desejante, que somente se constitui como humano

na medida em que se insere em uma ordem cultural.

Em O futuro de uma ilusão (1927), Freud define a cultura como tudo aquilo que tem

elevado a vida humana acima das condições animais, como aquilo que nos diferencia dos

demais animais. Para tal, é necessário: (1) o desenvolvimento do saber e do poder, por meio

do domínio das forças da natureza e para a obtenção de bens, requeridos para satisfazer as

necessidades humanas; (2) a organização necessária para regular as relações das pessoas

entre si e a distribuição dos bens.

Uma vez instaurada, a ordem cultural pressupõe um corte radical com a ordem natural: o

ser humano se aliena de sua própria natureza animal, e por outro lado, tem que conhecer e

dominar a natureza para satisfazer suas próprias necessidades. A cultura surge, então, como

parte do reino da necessidade: à medida em que se podem satisfazer as exigências pulsionais

através dos bens produzidos, há uma influência na relação entre os indivíduos.

A vida comum, então, requer regras, normas, organização, o que impõe sacrifícios ao

caráter pulsional. Freud observa que os progressos no terreno da regulação das relações

humanas não tem obtido tanto sucesso quanto em relação ao domínio da natureza. A cultura

parece construir-se com base na renúncia à satisfação pulsional, especialmente no que se

refere às tendências destrutivas e anti-sociais. Essas restrições fazem, de cada indivíduo, um

inimigo da cultura em potencial. Nenhuma instituição, dizia Freud em 1927 (o que podemos

repetir hoje) obteve êxito em influenciar os indivíduos, desde a infância, de tal maneira que

pudessem valorizar o pensamento e experimentar os benefícios que proporciona a cultura, o

que lhes permitiria aceitar o sacrifício que impõe o trabalho cultural e a renúnia ao pulsional.

Freud denuncia a injustiça social ao observar que há classes sociais exploradas, uma

vez que a satisfação de uma minoria condena a maioria a um excesso de carências e

privações. Isso gera, por sua vez, uma maior hostilidade contra essa cultura, que essas classes

tornam possível com o seu trabalho, mas sobre a distribuição dos bens tem pouca ou nenhuma

participação. Se o superego (interiorização das exigências externas) representa um patrimônio

cultural valioso ao converter os sujeitos de inimigos da cultura à suporte da mesma, não se

pode esperar que a mesma interiorização das probições culturais, no caso dos oprimidos, não

gere descontentamento e rebeliões. Uma cultura assim, diz Freud, “não pode durar muito

tempo, nem o merece!”

49 Víctor Gómez Pin. El reino de las leyes. Madrid: Siglo XXI, 1981.

76 Entre as satisfações compensatórias que oferece a cultura se encontram os ideais

culturais e as realizações artísiticas. Os ideais, para Freud, se consituem em função das

primeiras produções culturais satisfatórias, para, então, converter-se em modelos que orientam

tais produções. Isto indica o caráter narcisista da satisfação que proporciona o ideal aos

membros de uma cultura, pois se baseia no orgulho pela produção realizada, que tem por base

a comparação com as produções e os ideais de outras culturas. Mas, segundo as diferenças

encontradas, cada cultura se arroga o direito de desvalorizar as outras. A discórdia entre as

nações, motivada pela defesa de seus ideais, e a satisfação narcisista que esta proporciona,

compensam a hostilidade contra a própria cultura.

Para Freud, uma das partes mais significativas do acervo psíquico de uma cultura, é a

ilusão constituída por suas representações religiosas. Estas tem a sua base na situação de

impotência do homem perante as forças da natureza que não pode controlar e perante a

natureza como destino. O modelo infantil dessa situação é a criança que se encontra à mercê

dos pais, cuja proteção é o que lhe assegura a sobrevivência diante dos perigos impostos pelo

mundo exterior. A partir desse modelo, mediante um processo de realização de desejo similar

ao que produz os sonhos, o ser humano transforma as forças da natureza em personagens de

caráter parental, em deuses protetores e temíveis ao mesmo tempo.

À medida em que o homem domina cada vez mais a natureza, suas forças perdem os

aspectos humanos, à elas atribuídos. Os deuses, com o tempo, são retirados da natureza e

revestidos pelo aspecto da moral, o que explicaria o desejo de compensar as carências

impostas pela cultura, a preocupação com o sofrimento do outro e a negação da aniquilação

que supõe a morte.

Assim, as representações religiosas não são produto da experiência nem o resultado do

exercício da razão: são ilusões, na medida em que realizam desejos muito antigos, muito fortes

e muitíssimo importantes para a humanidade. O segredo de sua potência é, precisamente, a

força desses desejos 50. Clamar por uma divina providência alivia a angústia perante os perigos

da vida, lutar pela manutenção de uma ordem moral assegura a realização da justiça, a

esperança do prolongamento da existência em uma vida futura proporciona a localização

temporal e espacial onde os desejos, não alcançados em vida, poderão realizar-se

posteriormente.

Para Freud, ilusão não é sinônimo de erro. Freud chama à crença ilusão quando esta é

motivada pela realização de desejos, prescindindo de sua relação com a realidade e

renunciando à sua confirmação. Nesse sentido, pode haver outros patrimônios culturais

ilusórios, como é o caso dos princípios que regulam a instituição de um Estado.

50 Tubert, S. (2000), p. 173.

77 A crítica de Freud à religião tem base no fato de que esta, ao longo de milênios, não

foi capaz de realmente consolar ou tornar felizes a maioria do seres humanos, tornando-os

mais aptos a enfrentar a vida. A proposta de Freud é renunciar à transfiguração da proibição,

proposta pelas religiões, aceitando o seu fundamento social, o que permitiria discriminar as

proibições necessárias das excessivas, dissolvendo sua rigidez, já que fica difícil diferenciar, na

maioria das culturas, o que estabeleceu Deus do que instituiu um governo todo-poderoso; seria

conveniente, então, deixar Deus fora do jogo e reconhecer a origem puramente humana de

todas as instituições e preceitos culturais.

O futuro de uma ilusão é também a sua extinção. Mas, enquanto trabalha para dissolver

as ilusões, Freud supõe que não será fácil, para a psicanálise, vencer as resistências que

desperta na sociedade. A produção das ilusões faz parte de toda concepção de mundo; seu

questionamento inflinge a mesma ferida narcisista que a descoberta do reprimido. Mas Freud

diz que, por maiores que sejam a força dos afetos e os interesses dos seres humanos, o

intelecto também representa um poder. Não um poder que se impõe desde o princípio, mas um

poder que pode acabar vencendo ao final.

A perda das ilusões é, para Freud, o preço que devemos pagar para ascender a um

estado mais digno e mais em conformação com a verdade, o que somente se poderia alcançar

mediante uma fundamentação racional das prescrições culturais.

Tanto em O futuro de uma ilusão (1927) como em O mal-estar na civilização (1929),

Freud elucida a tensão constituinte entre indivíduo e sociedade, revelando a oposição entre o

desejo e a proibição: não há cultura sem proibição, e esta gera carência, mal estar,

possibilidade de neurose.

5.2 Subjetividade e ética Diferentemente da concepção da psicologia clássica, em que o psiquismo se funda

sobre a consciência, para Freud o psiquismo não se limita à interiodade.

Centrada na consciência, a psicologia clássica considerava o psiquismo como o

universo da privacidade absoluta da individualidade, e a exterioridade, o seu outro.

Para Freud, o psiquismo é, ao mesmo tempo, interioridade e exterioridade, não sendo

possível enunciar qualquer coisa sobre o registro interno que não nos remeta ao registro

externo.

Assim sendo, as posições como interno-externo, dentro-fora, indivíduo-sociedade se

relativizam. O sujeito em psicanálise51 pressupõe a cultura para sua constituição, sendo a

cultura, como ordem simbólica, a condição de possibilidade do surgimento do sujeito.

51 A psicanálise, como método, se funda na escuta e na fala, pois o sujeito somente se constitui como efeito da marca das relações estabelecidas com o outro, e com todos os outros

78 Segundo Birman (1994), o inconsciente pode ser pensado como o conjunto de efeitos

do Outro sobre o psiquismo e como o diálogo do sujeito com o Outro, mediante esses efeitos

psíquicos.

Sabemos que, para que a existência psíquica se torne possível, é necessária a

intervenção de um Outro, que passa a oferecer objetos de satisfação para que a pulsão possa

se estruturar num determinado circuito. Evidentemente, se o indivíduo fosse deixado a si

mesmo, o seu destino seria a morte, por meio da descarga total da pulsão regulada pelo

princípio do Nirvana. Nesse processo de constituição do sujeito institui-se um desvio do

movimento imediato para a descarga, para o movimento mediado pelo Outro, que propicia

meios para a satisfação, marcando o deslocamento da regulação pelo princípio do Nirvana

para a regulação pelo princípio do prazer. É por meio dessa intervenção fundamental que o

circuito da pulsão se ordena, passando a se fixar em objetos de satisfação, o que impede o

indivíduo de retomar a via originária da descarga plena. Se as condições desse desvio são o

Outro e a ordem simbólica que ele possibilita, uma outra questão se coloca: a questão da

dívida simbólica52, que o sujeito estabelece com esse Outro, como resultante de sua

constituição. Tal dívida é que permite às diferentes individualidades, inscritas em uma cultura,

compartilhar os mesmos valores, apesar das diferenças entre a subjetividade e a diversidade.

A dívida simbólica é o que abre a possibilidade para o sistema de trocas e o que permite que

se estabeleçam laços sociais e possibilidade da coexistência política.

Tal situação implica em uma ética que se funda no reconhecimento do sujeito como ser

desejante. Ou seja, a assunção do sujeito como ser desejante passa pelo reconhecimento da

alteridade e na sua diferença fundamental face a qualquer outro sujeito.

Nos tempos das grandes filosofias, a justiça e todas as demais virtudes éticas referiam-

se ao universal (no caso, ao povo ou à pólis), eram virtudes políticas e sociais. Ou seja, a Ética

tinha como preceito máximo o bem comum. Hoje, segundo Adorno (Theodor, 1903-1969), ela

está reduzida a um fato privado, o que reflete uma sociedade que parece se fundar na ilusão

de que o eu não precisa do outro.

No entanto, o bem e o mal não existem apenas nas consciências individuais, mas

também nas estruturas institucionalizadas de um sistema. Em relação ao Estado, por exemplo,

os problemas éticos são extremamente complexos: os Estados são uma instância de interesse

comum universal, acima das classes e dos interesses egoístas privados, de pequenos grupos,

ou são de fato aparelhos conquistados por esses grupos, por uma classe dominante, que

conquista o Estado e assume o poder para usá-lo como instrumento de dominação e

exploração dos menos privilegiados, e daqueles que não concordam com os seus ponto de

vista ?

52 BIRMAN, J. (1994), p. 167.

79 A luta e a exploração assumiram, no último século, formas cada vez mais sutis. A

exploração deixou de ser diretamente política, para servir à sutil mediação da exploração

econômica.

Segundo Valls (2003), o cinismo dos poderosos hoje é muito mais explícito do que o dos

gregos. Em que baseiam-se, hoje, as relações internacionais ? Na justiça ou na força ? Uma

justiça entre Estados é, segundo o autor, um conceito que até o momento não se firmou, nas

nas consciências, nem na prática política.

Assim, percebemos que a questão que nos leva à uma reflexão ética também nos leva a

ponderar os imponderáveis que a psicanálise freudiana revelou.

No entanto, em relação às respostas para essas questões, parece que nos encontramos

na mesma situação em que encontrava Freud diante do questionamento do físico Albert

Einstein, que passamos a reproduzir resumidamente a seguir, encerrando esta seção:

Potsdam, 30 de julho de 1932:

Estimado Prof. Freud:

(...)há algum caminho para a humanidade evitar a guerra ? Sabemos que, com o

avanço da ciência moderna, este passou a ser um assunto de vida ou morte para a civilização

tal como a conhecemos (...) pouco posso fazer além de levantar a questão e... permitir que

você ilumine o problema com a luz de seu vasto conhecimento acerca da vida pulsional do

homem

(...) na atualidade estamos longe de possuir uma organização internacional competente

para emitir veredicto de autoridade incontestável e impor a execução deste. Me vejo levado ...

ao meu primeiro axioma: a solução da segurança internacional implica na renúncia

incondicional de todas as nações à sua liberdade de ação... e está claro que nenhum outro

caminho pode levar à essa segurança. (...) O afã de poder que caracteriza a classe

governante de todas as nações é hostil a qualquer limitação da soberania nacional. Esta fome

de poder político somente se mantém graças às atividades de outro grupo, guiado por

aspirações puramente mercenárias, econômicas. Penso especialmente nesse pequeno grupo,

ativo em toda nação, composto de indivíduos que, indiferentes às considerações e moderações

sociais, veem na guerra, na fabricação e venda de armamentos, nada mais do que uma

ocasião para favorecer seus interesses particulares e aumentar seu poder pessoal.

Outra questão se impõe de imediato: como é possível que esse pequeno grupo submeta

ao serviço de suas ambições a vontade da maioria, para a qual a guerra representa perdas e

sofrimentos? (...) Uma resposta evidente a esta pergunta pareceria ser que a minoria, a classe

80 dominante hoje, tem sob sua influência as escolas e a imprensa ... Isto lhes permite organizar

e governar as emoções das massas e convertê-las em seu instrumento. (...) Desta surge outra

pergunta: como é que estes procedimentos podem despertar nos homens tão selvagem

entusiasmo, a ponto de levá-los a sacrificar sua vida? Somente há uma resposta possível;

porque o homem tem dentro de si um apetite de ódio e destruição. Em épocas normais, essa

paixão existe em estado latente, e unicamente emerge em circunstâncias inusuais; mas é

relativamente fácil pô-la em jogo e exaltá-la até o ponto de uma psicose coletiva. Aqui talvez

esteja a raíz de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que um

investigador no conhecimento das pulsões humanas pode resolver.

E aqui chego a nossa última interrogação: é possível controlar a evolução psíquica do

homem para pô-lo a salvo das psicoses de ódio e destrutividade ? De modo algum penso aqui

somente nas chamadas "massas iletradas". A experiência prova que é muito mais a chamada

"intelectualidade" a mais inclinada a essas desastrosas sugestões coletivas, já que não tem

contato direto com a vida como ela realmente é, senão que se confronta com esta em sua

forma sintética mais simples: sobre a página impressa.

Para terminar (...) sei muito bem que a pulsão agressiva opera sob outras formas e em

outras circunstâncias.(...) Não obstante, minha insistência na forma mais típica, deliberada,

cruel e extravagante do conflito entre os homens, pois, nesse caso, temos melhor oportunidade

de descobrir a maneira e os meios de tornar impossíveis todos os conflitos armados. (...)

Seria um grande serviço para todos se você expusesse o problema da paz mundial à luz

de suas descobertas mais recentes, porque essa exposição poderia muito bem marcar o

caminho para novos e frutíferos modos de ação.

Atenciosamente,

Albert Einstein

α α α α α α α α α α α α α α

Viena, setembro de 1932

Estimado Prof. Einstein: (...) Você inicia com o nexo entre direito e poder. (...) Estou autorizado a substituir a

palavra "poder" por violência (Gewalt), mais dura e contundente?

(...) Pois bem, o conflito de interesses entre os homens se resolve, desde o princípio,

mediante a violência. Assim é em todo reino animal, do qual o homem não se exclui. (...) o

império do poder cresce, do estado originário da violência bruta ou apoiada sobre o intelecto.

81 As leis de associação determinam, então, a medida em que o indivíduo deve renunciar

à liberdade pessoal de aplicar sua força como violência, a fim de que seja possível uma

convivência segura. Mas semelhante estado de repouso (Ruhezustand) é concebível somente

em teoria; na realidade, a situação se complica pelo fato de que a comunidade inclui desde o

começo elementos de poder desigual ... em conseqüência da guerra e da submissão, de

vencedores e vencidos, que se transformam em amos e escravos. Então, o direito da

comunidade se converte na expressão das relações desiguais de poder que imperam em seu

seio; as leis são feitas pelos dominadores e para eles, e são escassos os recursos concedidos

aos seus subordinados.

(...) Aplicado ao presente, chego à mesma conclusão que você obteve...Uma prevenção

segura das guerras somente é possível se os homens concordarem com a instituição de uma

instância central encarregada de opinar em todos os conflitos de interesses. Evidentemente, se

reúnem aqui duas exigências: que se crie uma instância superior dessa índole e que se

outorgue a ela a autoridade requerida. De nada valeria uma coisa sem a outra. Pois bem, a

Liga das Nações se concebe como essa instância, mas a outra condição não tem sido

cumprida; ela não tem um poder próprio e somente pode recebê-lo dos membros da nova

união, os diferentes Estados, se o outorgarem. Por esse motivo parece haver poucas

perspectivas de que isso ocorra. (...)

Agora posso passar a comentar a sua outra tese. Você se assombra de que resulte tão

fácil entusiasmar os homens para a guerra e, conjectura, que algo deve movê-los, uma pulsão

de ódio e aniquilação ... nisto devo manifestar meu total acordo. (...) Suponhamos que as

pulsões do ser humano são somente de duas classes: aquelas que querem conservar e reunir -

as chamadas pulsões eróticas, exatamente no sentido de Eros em O Banquete, de Platão ... - e

outras, que querem destruir e matar; a estas últimas reunimos sob o nome de pulsão de

agressão ou de destruição. Como você vê, não é senão a transfiguração da universalmente

conhecida oposição entre amor e ódio; esta quiçá mantenha um nexo primordial com a

polaridade entre atração e repulsão, que desempenha importante papel em sua área.

(...) Raríssimas vezes a ação é obra de uma única moção pulsional, que já em si e por si

deve estar composta de Eros e destruição. (...) Pois bem, com alguma especulação temos

levantado a hipótese de que [esta última] trabalha dentro de todo o ser vivo com o afã de

produzir sua decomposição, reconduzindo a vida ao estado de matéria inanimada. Mereceria

com toda a seriedade o nome de pulsão de morte, enquanto as pulsões eróticas representam o

afã à vida. A pulsão de morte torna-se pulsão de destruição quando é dirigida para fora, para

os objetos...

Se a aquiescência à guerra é um desdobramento da pulsão de destruição, o natural será

apelar ao seu contrário, a Eros. Tudo quanto estabeleça ligações de sentimento entre os

82 homens não poderá menos do que exercer um efeito contrário à guerra.(...) O ideal seria uma

comunidade de homens que houvessem submetido sua vida pulsional ao domínio total da

razão. Nenhuma outra coisa seria capaz de produzir uma união mais perfeita e resistente entre

os homens... Mas, com muita probabilidade é uma esperança utópica.

Por que nos indignamos tanto contra a guerra, você, eu e tantos outros ? Por que não a

admitimos como uma das tantas penosas calamidades da vida? ... A resposta seria: porque

todo homem tem direito à vida, porque a guerra aniquila vidas humanas promissoras, põe o

indivíduo em situações indignas, o compele a matar outros, coisa que ele não quer... Também

a guerra, na forma atual já não dá oportunidade para cumprir o velho ideal heróico, e que

devido ao desenvolvimento dos meios de destruição uma guerra futura significaria o extermínio

de um dos opositores ou de ambos.

(...) Somos pacifistas porque nos vemos precisados a sê-lo por razões orgânicas. (...) a

guerra contradiz de modo mais flagrante as atitudes psíquicas que nos impõe o processo

cultural, e por isso nos indignamos contra ela... A nossa não é uma mera repulsa intelectual ou

afetiva: é, em nós, os pacifistas, uma intolerância constitucional, uma idiossincrasia extrema.

Quanto tempo teremos que esperar até que os outros também se tornem pacifistas?

Não é possível dizê-lo...

Saúdo-o cordialmente, e peço-lhe que me desculpe se minha exposição o desiludiu.

Sigmund Freud

83 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FREUD, Sigmund. Edição eletrônica das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:

Imago Editores, 2000.

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Editora Campus, 1981.

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KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996.

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1988.

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julho/dezembro 1997; Campinas: UNICAMP.

PRADO JR., Bento. Filosofia da psicanálise. São Paulo, Brasiliense, 1991

SANDLER, J. et al. Freud’s Models of the Mind: an introduction. Monograph Series of University

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SIMANKE, Richard Theisen. A formação da teoria freudiana das psicoses. Rio de Janeiro: Editora

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SHAND, John. Philosophy and Philosophers: an introduction to western philosophy. Middlesex,

England: Penguin Books, 1994.

SHEPHERD, M. Sherlock Holmes e o Caso do Dr. Freud. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1987.

TUBERT, S. Sigmund Freud. Madrid e Buenos Aires: Editora EDAF, 2000.

VALLS, A. L. M. O que é Ética. São Paulo: Brasiliense, 2003.

84 6. JUNG: OS ANOS DE FORMAÇÃO, O TRABALHO COM FREUD

E AS DIVERGÊNCIAS CONCEITUAIS

Os complexos obriga-nos a perder a ilusão de que somos

senhores absolutos em nossa própria casa.

(Nise da Silveira)

Para Jung, todas as teorias psicológicas refletem a história pessoal de seus criadores,

pois “nosso modo de ver as coisas é condicionado pelo que somos”.

Jung nasceu em Kesswil, no cantão da Turgóvia, Suíça, em 26 de Julho de 1875. Filho

de um pastor protestante, Jung beneficiou-se de uma educação que se deu na tradição

teológica protestante, na literatura grega e latina e na história e filosofia européias. Os

professores de Jung mantinham uma crença quase religiosa nas possibilidades da ciência

positivista, proporcionando a Jung um treinamento valioso e respeito pela ciência empírica. A

experiência médico-psiquiátrica de Jung se revela em sua pesquisa empírica, sua observação

clínica e histórias de caso cuidadosas, sua habilidade em diagnosticar e em suas formulação

de testes projetivos. Essa atitude científica rigorosa não era, para ele, incompatível com a

filosofia romântica, voltada para o irracional, para a realidade interior individual, para a

exploração do desconhecido e enigmático.

Na época em que Jung estava formulando as suas teorias, a Alemanha havia se tornado

o centro da erupção de novas idéias; a metodologia positivista aliou-se à busca romântica de

novos mundos, resultando em um extraordinário florescimento na arte e na ciência alemã, que

só encontra paralelo na Idade de Ouro da filosofia grega. Assim, o final do século XIX e o início

do século XX trouxeram consigo uma era de criatividade sem precedentes, tanto para a

filosofia quanto para a ciência, de um modo geral.

6.1 Influências O Romantismo propunha uma contemplação do objeto por diferentes ângulos,

descrevendo um movimento preferencialmente circular. Historicamente, o romantismo remonta

aos pré-socráticos Pitágoras, Heráclito e Parmênides, passando por Platão. Platão supunha

85 certos padrões primordiais (que Jung, posteriormente, chamaria de arquétipos), dos quais os

seres humanos seriam sombras imperfeitas.

As teorias de Kant, Goethe, Schiller, Hegel e Niezsche foram particularmente influentes

na formação do tipo de modelo teórico próprio de Jung através da lógica dialética e da

dinâmica de opostos. Para o autor, a vida – entendida como um processo energético - se

organizava em polaridades fundamentais, “pois sem oposição, como sabemos, não há

energia”. Para Jung, ambos os pares de opostos – a tese e antítese hegelianas – são

valorizados como pontos de vista válidos, assim como a síntese à qual ambos conduzem.

Segundo Douglas “Jung usou amplamente a dialética hegeliana e muitas vezes

descreveu a história e o desenvolvimento psíquico como ocorrendo por meio do jogo de

opostos, no qual a tese encontra a antítese para produzir uma síntese, um novo terceiro. Seu

conceito do novo terceiro estendia-se a suas formulações sobre o papel da função

transcendente na individuação. Jung também se aliava a Hegel em sua crença comum no

divino dentro do Si-mesmo individual bem como na realidade do mal”.53

Inúmeras vezes Jung menciona Kant como seu precursor, à quem atribuía grande parte

de sua própria teoria arquetípica. Como platônico, Kant pensava que nossa percepção do

mundo se conformava às idéias platônicas ideais. No entanto, nota-se que Jung e Kant tem

propósitos conflitantes. Enquanto para Kant nada na mente é, em si, real, pois as coisas-em-si,

suas categorias inatas, partem de dados sensórios que são inteiramente estruturados pela

inteligência humana, para Jung, que parte dos arquétipos e da imaginação, existe uma

objetividade e realidade na psique. Entretanto, Jung pode ser considerado neo-kantista, na

medida em que amplia o pensamento kantiano acrescendo-o de um senso de realidade em

relação à história e à cultura, pois, apesar dos arquétipos tomarem uma forma visível e atual,

eles são formas ideais que nunca podem ser inteiramente conhecidas. Segundo Jung: “a

verdade eterna precisa de uma linguagem humana que mude com o espírito dos tempos...

somente numa nova forma ela pode voltar a ser compreendida”.

Com Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) Jung compartilhava o modo polarizado de

ver o mundo. Goethe ponderou a questão do mal por meio de imagens e símbolos e

preocupou-se com a questão da metamorfose do Si-mesmo. Fausto, sua obra-prima,

representa a luta do próprio Fausto com o mal e seu esforço para manter a tensão dos opostos

dentro de si mesmo.

As idéias de Jung sobre o inconsciente coletivo, arquétipos e anima/animus encontraram

na filosofia da natureza de F. W. von Schelling (1775-1854) parte de sua fonte de inspiração.

Schelling pensava o conceito de alma-mundo como unificador entre o espírito e a natureza, a

idéia de polaridade do masculino-feminino, bem como nossa bissexualidade fundamental.

53 Douglas, C. O contexto histórico da psicologia analítica. In: Manual de Cambridge para Estudos Junguianos. 2002.

86 Como os outros filósofos Românticos, Schelling enfatizava o papel da interação dinâmica dos

opostos na evolução da consciência.

Jung também citava os filósofos Carl Gustav Carus (1789-1869) e Arthur Schopenhauer

(1788-1860) como precursores particularmente importantes. Carus descrevia a função criativa,

autônoma e curativa presente no inconsciente, em que a vida da psique poderia ser

representada por um processo dinâmico, no qual consciência e inconsciente seriam

mutuamente compensatórios (informações adicionais sobre este filósofo podem ser

encontradas na Apostila de Seminários de Introdução à Psicanálise I). Schopenhauer traz o

conceito de angst, enfocando o irracional na psicologia humana, bem como o papel

representado pela vontade, pela repressão e, no mundo civilizado, pelo poder ainda selvagem

dos instintos. Ele salientava a importância do imaginal, dos sonhos e do inconsciente em geral.

E salientava a visão platônica dos padrões primordiais básicos que, por sua vez, haviam

inspirado Jung na teoria dos arquétipos. Assim como Schopenhauer, Jung valorizava a filosofia

oriental, compartilhando com o filósofo a possibilidade e necessidade de individuação.

Assim como Freud, as idéias de Jung sobre a origem e evolução da civilização foram

profundamente influenciadas pelo filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900). Nietzsche

compreendeu a ambigüidade trágica da vida e a presença simultânea do bem e do mal em

toda a interação humana; enfatizou a importância dos sonhos e da fantasia, do brincar e da

criatividade para um desenvolvimento saudável. De um modo geral, as idéias de Nietzsche que

influenciaram a psicologia de Jung foram: a sua representação dos modos como operam a

sublimação e a inibição na psique; o poder exercido pelos instintos sexuais e destrutivos; sua

análise do lado escuro da natureza humana – as sombras escuras e forças irracionais que

subjazem à nossa humanidade civilizada – e sua disposição em confrontá-la e lutar contra ela.

A descrição de Nietzche da sombra, da persona, do super-homem e do sábio ancião foram

adotadas por Jung como imagens arquetípicas específicas (informações adicionais sobre este

filósofo podem ser encontradas na Apostila de Seminários de Introdução à Psicanálise I).

6.2 Jung, Freud e a Psicanálise Ao concluir seus estudos de Medicina em 1900, Jung decide tornar-se psiquiatra. Em 11

de dezembro deste ano assume suas obrigações como Médico Assistente de Eugen Bleuer no

Burghölzli, o Hospital Psiquiátrico do cantão de Zurique, que também era a clínica de pesquisa

da universidade. Naquela época, Bleuer estava elaborando o seu trabalho Dementia Praecox

ou O Grupo das Esquizofrenias, que publicaria em 1911, e que o tornaria mundialmente

conhecido. Bleur não se contentava com a psicopatologia descritiva; queria dar à psiquiatria

uma base psicológica. Recorre, portanto, à teoria associassionista, segunda a qual a vida

psíquica explicar-se-ia pelas combinações e re-combinações de elementos psíquicos, que se

87 conectariam segundo determinadas leis (leis de contigüidade, semelhança, etc). Segundo J.

Shatzky (no prefácio à tradução inglesa do Manual de Psiquiatria de Bleuer), foi com a ajuda de

Jung que Bleuer descobriu que a dissociação psíquica era a característica da dementia

praecox, daí o termo esquizofrenia para designar a dissociação psíquica presente neste

transtorno. Fundamentando-se em diversas observações clínicas e nas pesquisas sobre

associações que Bleuer propôs a substituição do termo dementia praecox pelo termo até hoje

aceito esquizofrenia (do grego: separar, fender).

Depois de dois anos em seu primeiro cargo, Jung torna-se o mais próximo colaborador

de Bleuer, e começa suas experiência com “testes de associações de palavras” (1902-06). Em

que consistem essas experiências com associações de palavras ? O experimentador

organizava uma lista de palavras sem qualque relação significativa entre si, o que chamava de

palavras indutoras. Ao indivíduo examinado é solicitado que reaja a cada palavra indutora

pronunciando a primeira palavra que lhe viesse à cabeça (palavra induzida). O tempo decorrido

entre a última sílaba da palavra indutora, dita pelo experimentador, e a primeira sílaba

pronunciada pelo examinando é medido por um cronômetro. Os tempos de reação variam de

breves a longos. Há diversas reações: o examinando responde à palavra indutora com uma

frase, ri, hesita, enrubece, transpira, etc. Essas diversas perturbações, desprezadas pelos

experimentadores da psicologia clássica como ocorrências desprovidas de sentido e

incômodas ao experimento, atraíram a atenção de Jung. Ele havia lido A Interpretação dos Sonhos, de Freud, e a partir de suas observações percebe que as chamadas “perturbações”

no experimento estavam indicando algo muito mais profundo: que a palavra indutora havia

atingido um conteúdo afetivo, presente no inconsciente do examinando. Esses conteúdos

seriam os “complexos de idéias dotadas de forte carga afetiva”. Jung os denominou complexos

e considerou demonstrada experimentalmente a existência do psiquismo inconsciente.

Entre 1902 e 1903 Jung havia estudado psicopatologia em Paris, na Salpêtrière, com

Pierre Janet. Casou-se em 1903 com Emma Rauschenbach (1882-1955) e nesse mesmo ano,

tanto Jung como Bleuer começam a interessar-se muito seriamente pelas idéias de Freud. Em

17 de agosto de 1904, Sabina Spielrein (1885-1941), uma jovem russa, é internada no

Burghölzli: é a primeira paciente de Jung, histérica, tratada pelo método psicanalítico. Em 1906,

Jung começa a corresponder-se com Freud, e o visita em Viena no início de 1907.

Rapidamente eles desenvolvem uma íntima amizade profissional. No ano seguinte acontece o

Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise, em Salzburg.

Em 1906, Jung publica seu livro Estudos sobre Associações, em 1907, Psicologia da

Demência Precoce e em 1908, O Conteúdo das Psicoses. Os três trabalhos demonstram que

todos os sintomas psicóticos possuiam um significado.

88 Jung acreditava que as experiências com associações constituiam um procedimento

didático, segundo o qual a atuação dos complexos poderia ser verificada, proporcionando aos

estudantes uma base sólida para a compreensão dos mecanismos psíquicos inconscientes.

O autor introduziu a palavra complexo, com sua significação psicológica, hoje

incorporada ao vocabulário cotidiano. No entanto, o uso cotidiano da palavra a descaracterizou

de seu significado original. Hoje dizemos: “Fulano tem um complexo de...”. Segundo Jung, não

somos nós quem temos o complexo, é o complexo que nos tem. É o complexo que interfere em

nossa vida consciente, levando-nos a cometer atos falhos, lapsos, mobilizando o conteúdo de

sonhos e manifestando-se em sintomas neuróticos.

O complexo pode ser definido como um conjunto de conteúdos psíquicos com carga

afetiva. Seu núcleo compõe-se de intensa carga afetiva, estabelecendo, de forma secundária,

associações com outros elementos. A coesão desses elementos ao redor do núcleo é mantida

pelo afeto comum a seus elementos. Segundo Nise da Silveira, os complexos são “verdadeiras

unidades vivas, capazes de existência autônoma (...)” e a “autonomia do complexo dependerá

das conexões maiores ou menores que mantenha com a totalidade da organização psíquica”.

Naquela época, Jung os comparava a infecções ou tumores malignos que se

desenvolvem sem qualquer intervenção da consciência. No entanto, é preciso ressaltar que os

complexos não são, em essência, patológicos. Eles se tornam patológicos quando absorvem

para si quantidades excessivas de energia psíquica.

Em 1934, em seu trabalho Revisão da Teoria dos Complexos, ele ampliaria suas idéias

sobre o assunto. Até então, os complexos eram descritos como conteúdos psíquicos vividos na

área da problemática individual. Suas raízes remetiam-se à primeira infância, e em conflitos

presentes. Neste trabalho, Jung definiria complexo como “a imagem de situações psíquicas

fortemente carregadas de emoção e incompatíveis com a atitude e a atmosfera conscientes

habituais. Esta imagem é dotada de forte coesão interna, de uma espécie de totalidade própria

e de um grau relativamente elevado de autonomia”. Esse tipo de complexo é o que constitui a

maior parte dos conteúdos do inconsciente individual. Nise da Silveira observa, entretanto, que

Jung admite também a presença de complexos que seriam “manifestações vitais” da psique,

“feixes de forças contendo potencialidades evolutivas que, todavia, ainda não alcançaram o

limiar da consciência e, irrealizadas, exercem pressão para vir à tona”54.

Para Jung, a constação de que existem tipos característicos e facilmente reconhecíveis

de complexos sugere que suas bases também sejam comuns. Tal perspectiva o levaria a

pensar essas bases como arquétipos – os alicerces da vida psíquica comum a toda a

humanidade.

54 Silveira, Nise. Jung: vida e obra, p. 38.

89 Em 1909 Jung viaja com Freud para Massachussets, nos Estados Unidos, para uma

série de conferências na Clark University. Ambos recebem seus Doutorados Honorários.

Em 1910 ocorre o Segundo Congresso Internacional de Psicanálise em Nuremberg.

Jung é nomeado presidente. No verão deste ano, Jung dá o primeiro curso de palestras sobre

“Introdução à Psicanálise” na Universidade de Zurique.

Em 1912 Jung funda a Sociedade de Trabalhos Psicanalíticos; em 1913 rompe com

Freud. Freud fica abalado com a cisão, Jung arrasado. O estresse decorrente contribui para um

esgotamento nervoso que o ameaçava deste 1912, quando havia começado a ter sonhos

catastróficos e vívidos e visões durante a vigília. Demite-se da Universidade de Zurique e se

fixa em sua clínica particular.

Na verdade, as tensões no relacionamento de Jung com Freud são evidentes desde o

início, embora Freud valorizasse Jung como a nenhum outro integrante do movimento

psicanalítico.

Quando Jung uniu-se à Psicanálise em 1907, Freud havia inaugurado uma psicologia

radical, formada por uma hermenêutica poderosa, uma teoria revolucionária e parcialmente

empírica sobre o desenvolvimento da personalidade, uma nova metodologia terapêutica e uma

teoria nascente da psicologia cultural. O trabalho de Freud sobre sonhos, etiologia das

neuroses e desenvolvimento infantil estava-se tornando conhecido fora de Viena, e o

movimento psicanalítico internacional estava começando a se formar. Quando Jung abandonou

Freud e a Sociedade Psicanalítica Internacional, ambos os autores eram atores em um palco

mundial, e Jung estava a meio caminho de iniciar um movimento próprio.

O relacionamento profissional desmoronou por causa de discussões em torno da libido e

suas transformações. Mas, por trás dessa disputa profissional, conforme observa o

pesquisador Douglas Davis 55, estavam as emoções agressivas e eróticas, evidentes nas

cartas entre ambos. Douglas afirma que se Freud e Jung tivessem sustentado seu

relacionamento por mais alguns anos, a história psicanalítica poderia ter sido muito diferente, e

hoje poderíamos contar com uma teoria muito mais abrangente e completa da psique humana.

6.3 A energia psíquica Em 1912 Jung publica o livro Metamorfoses e Símbolos da Libido, onde apresenta,

pela primeira vez, a sua concepção de energia psíquica.

Para o autor, a energia psíquica (libido) é “a intensidade do processo psíquico, seu valor

[leia-se intensidade] psicológico”. Com base no modelo da teoria energética das ciências

físicas, Jung concebe o psiquismo (consciente e inconsciente) como um sistema energético

relativamente fechado, cujo potencial permanece o mesmo em quantidade através de suas

55 Freud, Jung e a Psicanálise In: Manual de Cambridge para Estudos Junguianos. 2000.

90 múltiplas manifestações, durante toda a vida do indivíduo. A energia permanece constante,

variando a sua distribuição. Isso equivale dizer que se a energia psíquica abandona um de

seus investimentos, reaparecerá sob outra forma. Como nenhum valor psíquico desaparece

sem que seja substituído por outro, se eu retiro o interesse de determinado objeto, a energia

que alimentava aquele interesse tomará outros caminhos: poderão surgir manifestações

somáticas (alergias, palpitações, distúrbios gástricos, etc), ser reativados conteúdos

inconscientes ou construidos sintomas neuróticos. Esses vários fenômenos são a expressão

das transformações da mesma energia.

Assim, todos os fenômenos psíquicos são de natureza energética, e os complexos

seriam “nós” de energia. Jung concebe a psique como um fluxo dinâmico incessante, na qual

cruzam-se correntes em progressão e regressão, polos opostos. A progressão da libido resulta

da luta pela sobrevivência. No afã de responder às exigências exteriores, a libido “espraia-se”

pelo mundo. No entanto, quando os recursos de que dispõe o indivíduo não são suficientes

para corresponder a essas exigências ou superar os obstáculos que surgem no caminho, a

energia se detém. Ao acumular-se, acaba recuando e empreendendo uma marcha

retrocedente, reativando conteúdos do mundo interior. Os materiais reativados serão aqueles

excluídos do consciente; assim, haverá elevação de potencial as pulsões sexuais infantis

insatisfeitas, as tendências incompatíveis com as atitudes conscientes do indivíduo. Esses

conteúdos investidos pela libido se aproximarão do consciente. Cabe ao ego confrontar e

integrar tais conteúdos. Uma vez confrontados, as estagnações dissolvem-se, os bloqueios são

removidos e a libido volta a fluir em direção ao exterior, num movimento outra vez progressivo.

Em relação a esses movimentos, entretanto, cabe uma observação: os conceitos de

progressão e evolução, regressão e involução não podem ser considerados sinônimos. O autor

observa que a vida psíquica pode progredir sem evoluir e retrogradar sem involuir, pois o

movimento progressivo da libido rumo ao exterior nem sempre significa desenvolvimento da

personalidade. Do mesmo modo, a regressão não pode ser traduzida por involução. Somente

quando a regressão e a fixação em formas anteriores da atividade da libido persiste é que

podemos pensar em estado patológico.

91 7. A ESTRUTURA DA PSIQUÉ

A psiqué pode ser comparada ao oceano (inconsciente), do qual emerge uma pequena

ilha (consciente).

Consciente: é onde se desenrolam as relações entre conteúdos psíquicos e o ego, que

é o centro do consciente. Para que qualquer conteúdo psíquico torne-se consciente, terá

primeiro que relacionar-se com o ego, definido por Jung como um complexo de elementos56

formando uma unidade coesa, que transmite a impressão de continuidade e de identidade

consigo mesma. Os conteúdos psíquicos que não mantêm relações com o ego constituem o

domínio do inconsciente.

Inconsciente: para o autor, o Inconsciente compreende tanto o inconsciente pessoal

como o inconsciente coletivo.

Inconsciente pessoal: refere-se às camadas mais superficiais do inconsciente. Nele

estão incluídas as percepções, impressões subliminares dotadas de carga energética

insuficiente para alcançar a consciência; conjunto de idéias fracas e indiferenciadas;

representações de acontecimentos ocorridos durante a vida, fora do arcabouço da memória

consciente; recordações penosas; mas, sobretudo, grupos de representações carregados de

forte potencial afetivo, incompatíveis coma atitude consciente (complexos). Embora esses

elementos não estejam em conexão com o ego, influenciam os processos conscientes,

podendo provocar distúrbios tanto de natureza psíquica quanto somática.

Inconsciente coletivo: corresponde aos fundamentos estruturais da psique, comum a

toda a humanidade. O autor ilustra sua definição da seguinte forma: “Do mesmo modo que o

corpo humano apresenta uma anatomia comum, sempre a mesma, apesar de todas as

diferenças raciais, assim também a psique possui um substrato comum. Chamei a esse

substrato de inconsciente coletivo. Na qualidade de herança comum transcende todas as

diferenças de cultura e de atitudes conscientes, e não consiste meramente de conteúdos

capazes de tornarem-se conscientes, mas de disposições latentes para reações idênticas.

Assim, o inconsciente coletivo é simplesmente a estrutura cerebral independente de todas as

diferenças raciais. Deste modo pode ser explicada a analogia, qua vai mesmo até a identidade,

entre vários temas míticos e símbolos, e a possibilidade de compreensão entre os homens em

geral. As múltiplas linhas de desenvolvimento psíquico partem de um tronco comum cujas

raízes se perdem muito longe num passado remoto”.

No âmago do inconsciente coletivo haveria um centro ordenador: o self (si mesmo).

56 Dada a composição do ego, muitas vezes o autor emprega o termo “complexo de ego” ao invés da palavra ego.

92 Arquétipos: são possibilidades herdadas para representar imagens similares, são

formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou

semelhantes tomam forma.

Para explicar sua origem, Jung levanta as seguintes hipóteses: (1) os arquétipos seriam

o resultado do depósito de impressões deixadas por vivências fundamentais comuns a toda a

humanidade, repetidas através de milênios; (2) os arquétipos seriam disposições inerentes à

estrutura do sistema nervoso que conduziriam à produção de representações sempre análogas

(do mesmo modo que existem pulsões herdadas que procuram um fim de forma idêntica,

haveriam tendências herdadas construindo representações semelhantes).

Independentemente da explicação de sua origem, Jung supõe que o arquétipo funciona

como um nódulo de concentração de energia psíquica. Quando esta energia, em estado

latente, toma forma, forma-se então a imagem arquetípica.

Símbolos: são a expressão de coisas significativas para as quais não há, no momento,

formulação mais perfeita. Na essência de todo o símbolo está presente uma imagem

arquetípica, mas sua construção depende de outros elementos que irão juntar-se a essa

imagem.O símbolo é uma forma complexa; nele reunem-se os opostos, inconsciente e

consciente aproximam-se. O símbolo não é racional nem irracional, porém as duas coisas ao

mesmo tempo. Por um lado acessível à razão e, por outro, inconsciente. O autor nos diz: “Um

símbolo não traz explicações; impulsiona para além de si mesmo na direção de um sentido

ainda distante, inapreensível, obscuramente pressentido e que nenhuma palavra de língua

falada poderia exprimir de maneira satisfatória”.

Os símbolos diferem dos sinais (figuras substitutivas de coisas conhecidas) - por

exemplo, uma âncora estampada no quepe do marinheiro – e das alegorias (representações

figuradas de objetos ideias ou materias) – por exemplo, a justiça representada por uma mulher

segurando uma balança de olhos vendados. Os símbolos, para Jung, vão além: são a

expressão de coisas significativas para as quais não há, no momento, formulação mais

perfeita. Por exemplo: a imagem da caverna, de Platão, onde homens presos por correntes ao

verem somente o movimento de sombras desconhecem a verdadeira realidade. Para o autor,

os símbolos possuem vida, e alcançam dimensões que o conhecimento racional não pode

atingir. Transmitem intuições prenunciadoras de fenômenos ainda desconhecidos. No entanto,

quando seu conteúdo misterioso é apreendido pelo pensamento lógico, esvaziam-se e

morrem57.

57 SILVEIRA, Nise. Op. Cit., p. 80-1

93 8. O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

Para Jung, todo ser tende a realizar o que existe em si, a crescer, a completar-se. Assim

é para a semente do vegetal e para o embrião do animal. Assim é para o homem, quanto ao

corpo e quanto à psiqué. No entanto, embora o homem seja impulsionado por forças instintivas

inconscientes, ele é capaz de tomar consciência desse desenvolvimento e de influenciá-lo. No

confronto entre o inconsciente e o consciente, no conflito e na colaboração entre ambos, os

diversos componentes da personalidade amadurecem e unem-se em uma síntese, que é o

indivíduo inteiro.

Assim, o processo de individuação não consiste em um movimento linear. É um

movimento de circunvolução que conduz a um novo centro psíquico, ao qual Jung denominou

self (si mesmo). Quando consciente e inconsciente ordenam-se em torno do self, a

personaldiade completa-se. O self corresponde ao centro da personalidade total, assim como o

ego corresponde ao centro da personalidade consciente.

O conceito junguiano de individuação pode ser entendido, então, como a tendência

instintiva do ser humano de realizar as suas potencialidades inatas. Entretanto, devido à

complexidade da psique humana, da interrelação entre os fatores em jogo, das intervenções do

ego consciente, o processo de totalização da personalidade compreende um caminho longo e

árduo.

As principais etapas que Jung identificou no processo de individuação compreendem:

1. desvestimento das falsas roupagens da persona. Devido aos contatos que o homem

precisa estabelecer com o mundo exterior, ele acaba por assumir uma aparência que

geralmente não corresponde ao seu ser autêntico. A essa aparência Jung chama de

persona (antigo denominação da máscara que o ator usava conforme o papel que iria

representar). O médico,o professor, o padre, o pastor, o militar, por exemplo, mantém, via

de regra, uma fachada de acordo com as convenções coletivas, seja em atitudes, na

indumentária, no discurso. Se, até um certo ponto, a persona representa um sistema útil de

defesa, se ela for excessivamente valorizada o ego poderá identificar-se com ela. Se isso

acontecer, o indivíduo funde-se aos seus títulos, cargos, funções, etc, reduzindo-se a uma

simples casca. Nise da Silveira ilustra esse momento a partir de um conto de Machado de

Assis, O Espelho. Nesse conto o autor narra o caso de um homem que, sendo nomeado

alferes da guarda-nacional, tanto se identificou com a patente que “o alferes eliminou o

homem”. Quando, em um determinado momento, ele se viu sozinho em uma casa vazia,

onde não havia ninguém para reverenciá-lo como alferes, ele sentiu-se vazio. Foi até o

espelho e viu sua imagem desvanecer-se diante de seus olhos. Em pânico e desesperado,

94 o homem lembrou-se de vestir sua farda de alferes. O espelho, então, reproduziu

novamente a figura de modo integral, e o alferes disse: “era eu mesmo, o alferes, que

achava, enfim, a alma exterior”. Portanto, quanto mais a persona aderir à “pele do ator”,

mais difícil será o trabalho psicológico para despi-la, já que a retirada da máscara

denunciará uma face desconhecida;

2. olhar-se no espelho após esse desvestimento requer um ato de coragem. Veremos nosso

lado escuro, onde tudo o que nos desagrada em nós mesmos, ou nos assusta, será visto. É

a nossa sombra. A sombra faz parte da totalidade da personalidade. Tudo que não

aceitamos em nós, que por nos repugnar as reprimimos, nós projetamos sobre o outro, seja

esse outro alguém próximo, um desconhecido, ou até uma figura como o demônio. É deste

modo que permanecemos inconscientes de que abrigamos a sombra dentro de nós. A

ampliação de nossa consciência requer a iluminação dos recantos escuros de nossa

psiqué. E aí descobrimos que não é o outro quem está sempre errado. A sombra pode ser

definida como uma espessa massa de componentes diversas, composta por pequenas

fraquezas, aspectos imaturos ou inferiores, complexos reprimidos, até forças

verdadeiramente maléficas...Mas também na sombra poderão ser discernidos traços

positivos: qualidade valiosas que não se desenvolveram devido a condições externas

adversas ou pela falta de energia suficiente para levá-las adiante58.

A sombra coincide com o inconsciente freudiano e com o inconsciente pessoal

junguiano. Nos sonhos costuma aparecer como indivíduos do mesmo sexo do sonhador,

representando o seu avesso.

No entanto, a sombra ultrapassa os limites do pessoal e alonga-se na sombra coletiva.

E aí veremos homens civilizados perderem sua identidade na massa, portando-se segundo

os padrões mais inferiores. Na História da humanidade os exemplos são inúmeros.

3. O confronto com a própria sombra leva-nos a outro confronto: com a anima. Além de

representar psiquicamente a minoria dos gens femininos presentes no corpo do homem,

compõe a anima as experiências fundamentais que o homem teve com a mulher através

dos milênios. Para Jung compõe a anima “um aglomerado hereditário inconsciente de

origem muito longínqua, tipo de todas as experiências da linha ancestral em relação ao ente

feminino, resíduo de todas as impressões fornecidas pela mulher”. A mãe é o primeiro

receptáculo da anima, o que faz com que, aos olhos do filho, ela pareça dotada de poderes

extraordinários. Por meio do processo de transferência, a anima será atribuída às estrelas

de cinema, às mulheres ideais e, por fim, para a mulher com quem o homem se relacione

amorosamente, o que provocará, entre outras coisas, as decepções causadas pela

impossibilidade do objeto real corresponder plenamente à imagem oriunda do inconsciente.

58 SILVEIRA, Nise. Op. cit, p. 92

95 A anima apresenta-se personificada nos sonhos, nos contos de fada, nos mitos, no

folclore; exemplo: sereias, ninfas, feiticeiras, deusa, etc.

4. Do mesmo modo que no corpo de todo homem existe uma minoria de gens femininos, no

corpo de cada mulher acha-se uma minoria de gens masculinos. Jung denomina animus à

masculinidade existente no psiquismo da mulher. Esta masculinidade é inconsciente e,

normalmente, manifesta-se como intelectualidade simplista (por exemplo: mulheres que

sustentam afirmações a priori, opiniões que não resistem ao exame lógico mas que, nem

por isso, deixam de ser defendidas ardorosamente. Assim como a anima, o animus

condensa todas as experiências que a mulher vivenciou com o homem no curso dos

milênios. E é a partir desse material inconsciente que é modelada a imagem do homem que

a mulher procura. O primeiro receptáculo do animus será o pai. A seguir, será transferido

para o professor, o ator de cinema, o líder político, o campeão nos esportes, etc. Projetado

sobre o homem com quem a mulher se relaciona amorosamente, faz desse homem uma

imagem ideal incapaz de resistir às provas do cotidiano. Daí as decepções inevitáveis. Nos

contos de fada, sonhos, mitos, o animus aparece como formas animais, heróis, príncipes,

feiticeiros, demônios, selvagens, etc. Em seus aspectos positivos, o animus é o mediador

entre inconsciente e consciente (papel desempenhado pela anima no homem). Se cuidado

e integrado ao consciente, dá à mulher capacidade de reflexão, auto-conhecimento e gosto

pelas coisas do espírito.

A noção de bissexualidade, antes de possuir fundamento científico, surgiu como

intuição. Entre os gregos, encontramo-la no mito dos Andróginos, apresentado por

Aristófanes no Banquete de Platão. Por temer a força dos andróginos, seres possantes e

ágeis, Zeus reduziu-lhes a força dividindo-os em duas metades: masculina e feminina.

Desde então, cada um procura a sua metade. Expresso pelo mito, o sentimento que cada

homem e mulher sente, quando sozinhos, é o de incompletude; a natureza do homem

pressupõe a mulher, e a da mulher pressupõe o homem.

5. Quando, após duras batalhas, as personificações do anima e do animus desfazem-se, eles

surgem em uma forma simbólica nova, representando o self, o núcleo mais interior da

psiqué. É quando surgem, nos sonhos, as primeiras imagens desse centro profundo. Em

geral, nos sonhos de mulheres, esse centro revela-se sob a forma de figura feminina

superior – uma mulher desconhecida de quem emana autoridade; uma sacerdotisa, uma

deusa mãe ou deusa do amor. Nos sonhos de homens, o aspecto que assume, em geral, é

o de um velho sábio, mago, mestre espiritual. Essas personificações são dotadas de grande

potencial energético.

6. O self (si mesmo) – não se revela por meio de personificações humanas. Sendo uma

grandeza que excede a esfera consciente, suas manifestações podem estender-se do infra-

96 humano ao super-humano. Seus símbolos podem apresentar-se sob forma mineral,

vegetal, animal, bem como super-homens ou deuses; ou então sob formas abstratas.

A denominação self não refere-se somente a esse centro profundo, mas à totalidade da

psiqué. O reconhecimento da própria sombra, a dissolução dos complexos, a liquidação das

projeções, o confronto entre o consciente e o inconsciente produz uma ampliação do mundo

interior do qual resulta que o centro da nova personalidade não coincide mais com o ego. O

centro da personalidade estabelece-se no self, e a força energética que este irradia

englobará todo o sistema psíquico. A conseqüência desse movimento: a totalização do ser.

O indivíduo não se apresentará mais fragmentado interiormente. Não se reduzirá a um ego

limitado. Seu mundo abarcará valores mais vastos, absorvidos do patrimônio que a espécie

acumulou em suas estruturas fundamentais. As experiências cotidianas de dor e prazer

serão vivenciadas em um nível mais alto de consciência. O homem torna-se ele mesmo, um

ser completo que compreende o consciente e o inconsciente, os aspectos claros e escuros,

masculinos e femininos59.

59 SILVEIRA, Nise. Op.cit., pp.98-100.

97

9. OS SONHOS

Enquanto para Freud o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo reprimido, para

Jung o sonho é aquilo que é, uma construção completamente realizada. Enquanto

formação oriunda do inconsciente, o sonho exprime as coisas como elas são, na

linguagem arcaica das imagens e dos símbolos. Embora o autor aceite que os sonhos

possam revelar desejos ocultos, ele acredita que a escala daquilo que é expresso pelos

sonhos é infinitamente maior do que a realização de desejo. Na maioria dos casos as

figuras do sonho são aspectos personificados da personalidade do próprio sonhador.

Os sonhos podem ser qualificados de simbólicos quando não representam uma

situação direta e sim de forma indireta, por meio de uma metáfora. Segundo Jung, quando

isso acontece não se trata de um disfarce proposital do sonho, é o resultado de nossa

dificuldade em captar o conteúdo emocional da linguagem ilustrada. Para o autor, em

nossa vida cotidiana somos levados a expor as idéias de maneira mais lógica possível,

recusando os adornos da fantasia, perdendo, assim, uma característica da psiqué

primitiva. Então, a maioria de nós transfere para o inconsciente todas as fantásticas

associações psíquicas inerentes a todo objeto e a toda a idéia.60

Para Jung, a função geral dos sonhos é restabelecer o equilíbrio, na medida em que

produz um material onírico que conduz, sutilmente, a um equilíbrio psíquico total. A essa

função Jung chama de função compensatória (ou complementar) dos sonhos em nossa

constituição psíquica. Como diz o autor:

Para benefício do equilíbrio mental e mesmo da saúde fisiológica, o consciente e o

inconsciente devem estar completamente interligados, a fim de que possam se mover em

linha paralelas. Se se separam um do outro ou se “dissociam”, ocorrem distúrbios

psicológicos. Neste particular, os símbolos oníricos são os mensageiros indispensáveis da

parte instintiva da mente humana para a sua parte racional, e a sua interpretação

enriquece a pobreza de nossa consciência fazendo-a compreender, novamente, a

esquecida linguagem dos instintos.

Segundo Nise da Silveira, na prática analítica fala-se em interpretação no nível

objetivo quando o sonho nos remete a situações reais e de interpretação no nível

subjetivo, quando as imagens oníricas representam fatores psíquicos do sonhador.

O sonho pode ser abordado de modo redutivo, quando, atra;ves de uma cadeia

de associações que os elementos do sonho despertam vai-se em elo em elo até alcançar

um complexo reprimido no inconsciente. O encontro do complexo responderá à pergunta:

60 JUNG, C. G. O homem e seus símbolos, p. 43.

98 por que este sonho. Para responder qual a finalidade do sonho, será exigido um outro

método, chamada de amplicação, a partir do qual exploram-se os conteúdos oníricos em

todas as direções possíveis, procurando descobrir as conexões existentes entre os

conteúdos até que se configure o sentido do sonho (ou seja, a expressão das forças

inconscientes no exercício de suas funções auto-reguladoras).

Na concepção de Jung, os sonhos representam importantes expressões do movimento

entre consciente e inconsciente, que caracteriza a dinâmica da vida psíquica. Sempre

que uma atitude consciente aparece de forma extremada (por exemplo, desvalorização ou

supervalorização de si mesmo), ou que necessidades específicas são negligenciadas,

surgem sonhos compensatórios, indicando que a psique funciona de modo auto-

regulador. Como exemplo, citamos o sonho de um paciente de Jung. O homem de uns

quarenta anos encontra-se, no sonho, em uma pequena cidade suíça. Ele surge como

uma figura muito solene, de casado negro e longo; debaixo dos seus braços carrega

vários livros volumosos; há um grupo de rapazes, que ele reconhece como ex-colegas de

classe. Olham o paciente e dizem: Não é sempre que esse fulano aparece por aqui. 61

O paciente em questão ocupa uma excelente posição e possui uma vasta cultura

cientírica. Mas é filho de camponeses pobres, o que obrigou-lhe a trabalhar arduamente

para chegar a sua posição atual. (...) embora não o saiba, ele está cansado dessa

escalada, e, desta vez, encontra-se completamente incapaz de ir mais longe62. Essa falta

de consciência é a razão dos sintomas próprios da doença das montanhas. O sonho quer-

lhe dar o quadro de sua situação psicológica atual. O contraste entre a figura solene,

vestindo longo casaco preto e de livros grossos sob o braço, aparecendo na cidade natal,

e os rapazes dizendo que ele não aparece sempre por ali, significa que o paciente

geralmente não se lembra de onde veio. Pelo contrário, este homem só pensa em sua

carreira, no futuro e na cátedra de professor que espera conseguir. O sonho o coloca de

volta no ambiente de origem.

61 JUNG, C. G. Fundamentos de Psicologia Analítica, pp. 72-3 62 O paciente em questão sofre da “doença das montanhas”, doença muito comum na Suíça, que acomete pessoas não acostumadas a grandes altitudes. Os sintomas incluem vertigens, palpitações, núaseas e um estranho ataque de fraqueza e exaustão.

99 Apêndice

Pequena Cronologia da Psicologia Analítica Durante boa parte da Primeira Guerra Mundial Jung permaneceu lutando contra seu

próprio estresse e o esgotamento nervoso resultante. Ele recorre a Toni Wolff (que havia sido

sua paciente de 1910 a 1913) para ajudá-lo durante esse difícil período, que iria até 1919. (Seu

relacionamento íntimo com Toni Wolff dura até a morte dela, em 1953). Inicialmente, Jung

sentiu grande dificuldade para decidir como nomear o tipo diferenciado de psicanálise que

vinha desenvolvendo. Ao final, decidiu por psicologia analítica.

1913 – Jung publica “Teoria da Psicanálise” e “Aspectos Gerais da Psicanálise”.

1914 - Renuncia à Presidência do Congresso Internacional de Psicanálise.

Eclosão da Primeira Guerra Mundial.

1916 – Funda o Clube de Psicologia em Zurique. Sua reputação internacional aumenta com

duas traduções: “Símbolos e transformações da libido” como Psicologia do Inconsciente (por

Beatrice Hinkle), e Artigos reunidos em psicologia analítica (os quais incluíam os artigos mais

importantes de Jung até então).

Em A estrutura do inconsciente, usa pela primeira vez os termos: “inconsciente pessoal”,

“inconsciente coletivo” e “individuação”.

Escreve “A função transcendente”.

Produz “Sete sermões aos mortos”.

1917 – Produz “Sobre a psicologia do inconsciente”.

1918 – Jung define pela primeira vez o Si-mesmo como a meta de desenvolvimento psíquico.

Escreve “O papel do inconsciente”.

Fim da Primeira Guerra Mundial.

1919 – Em “Instinto e inconsciente” o termo arquétipo é usado pela primeira vez.

1921 – Publicação de “Tipos Psicológicos”, no qual desenvolve suas idéias sobre a

extroversão/introversão, e as funções pensamento/sensação e sentimento/intuição.

1922 – Escreve “Sobre a relação da psicologia analítica com a poesia”.

1923 – Falecimento da mãe de Jung.

Em Julho deste ano Jung vai à Cornwall para dar um seminário em inglês sobre

“Relacionamentos humanos em relação ao processo de individuação”.

Richard Wilhelm conferencia no Clube de Psicologia, em Zurique (foi quem introduziu

Jung na alquimia chinesa).

1924 – Visita os Estados Unidos e visita Taos Pueblo, no Novo México. Impressiona-se com a

simplicidade dos nativos de Pueblo.

1925 – 23 março a 16 de julho: dá 16 aulas-seminários sobre Psicologia Analítica.

Julho/Agosto: em Swanage, Inglaterra, dá seminário sobre “Sonhos e simbolismo”.

100 Escreve: “O casamento como relação psicológica”.

Viaja ao Quênia (onde participa de um safári).

1926 – Retorna da África pelo Egito.

1927 – Viaja para Darmstadt, Alemanha, para uma série de conferências em Count Hermann.

1928 –Em 07 de novembro deste ano inicia seminário sobre “Análise de sonhos”(estes se

estendem até 25 de junho de 1930).

1929 – Comentário da tradução de Richard Wilhelm do clássico chinês “O segredo da flor de

ouro”.

Escreve “Paracelso”, primeiro de seus ensaios sobre alquimia ocidental.

1930 – Torna-se Vice-presidente da Sociedade Médica Geral de Psicoterapia.

Inicia, em Zurique, duas séries de seminários.

1931 – Escreve “Postulados básicos da psicologia analítica”;

“Os objetivos da psicoterapia”;

1932 – “Psicoterapeutas ou o clero”;

“Sigmund Freud em seu contexto histórico”;

“Ulisses: um monólogo”;

“Picasso”.

Recebe condecoração literária pela cidade de Zurique.

A partir de 12 de outubro dá quatro seminários semanais sobre “Um comentário

psicológico sobre ioga kundalini”.

1933 – Começa a ensinar na Eidgenössische Technische Hochschule (ETH), Zurique.

Assume como Presidente da Sociedade Médica Geral de Psicoterapia, que, logo

depois, fica sob supervisão nazista. Torna-se editor de sua revista a Zentralblatt für

Psychotherapie und ihre Grenzgebiete, Leipzig.

Jung tinha 58 anos em julho de 1933, quando os nazistas tomaram o poder. Ele tinha

70 anos quando a guerra terminou. Esta foi uma época de tensão e dificuldade, mesmo na

Suíça, país neutro. Jung decidiu manter a presidência da Sociedade Médica Geral de

Psicoterapia depois que os nazistas tomaram o poder e excluiu membros judeus da sede

alemã. Essa decisão foi muito questionada. Acusações de anti-semitismo começaram a ser

dirigidas contra ele, muito embora seus colegas, amigos e alunos judeus o defendessem. A

ascensão do Nazismo e a guerra resultante formam o pano de fundo para a elaboração gradual

de sua teoria das imagens arquetípicas.

1934 – Funda e torna-se o primeiro Presidente da Sociedade Médica Geral Internacional de

Psicoterapia.

Inicia o seminário sobre “Zaratustra de Nietzsche” (86 sessões que duram até fevereiro

de 1939).

101 1935 – Nomeado como Professor da ETH.

Funda a Sociedade Suíça de Psicologia Prática.

1936 – Escreve “O conceito de inconsciente coletivo”.

Viaja aos Estados Unidos para ensinar em Harvard, onde recebe doutorado honorário.

Também ministra dois seminários sobre “Símbolos oníricos do processo de individuação”, em

Bailey Island, Maine e na cidade de Nova York. Inaugura o Clube de Psicologia Analítica de

Nova York.

1937 – Volta aos Estados Unidos para conferenciar na Universidade de Yale. (Essas

conferências são publicadas sob o título “Psicologia e Religião“).

Viaja a Copenhague e à Índia, para o quinto aniversário da Universidade de Calcutá, a

convite do governo britânico da Índia.

1938 – Recebe doutorados honorários das Universidades de Calcutá, Benares e Allahabad.

Jund não pôde comparecer.

Recebe doutorado honorário da Universidade de Oxford, Inglaterra.

Em 28 de outubro deste ano começa seminário sobre “O processo de individuação em

textos orientais”, que se estende até 23 de junho de 1939.

1939 – 15 de Maio: Eleito Membro Honorário da Sociedade Real de Medicina, de Londres.

Eclode a Segunda Guerra Mundial.

Renuncia ao cargo de editor da revista Zentralblatt für Psychotherapie und ihre

Grenzgebiete.

Escreve: “O que a Índia tem a nos ensinar? “;

“Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da grande libertação”;

“Prefácio”, para o livro de D. T. Suzuki, Introdução ao Zen Budismo.

Inicia seminário sobre o “Processo de Individuação: os Exercitia Spiritualia de Santo

Inácio de Loyola” (16 de junho de 1939 a 08 de março de 1940).

1940 – Publica “A integração da personalidade”, seleção de artigos recentes.

Inicia seminário sobre “O processo de individuação na alquimia”.

1941 – Segundo seminário sobre “O processo de individuação na alquimia”.

1942 – Depois de nove anos renuncia ao seu cargo na ETH (sob controle nazista).

1943 – Eleito membro honorário da Academia Suiça de Ciências.

1944 – A universidade de Basel cria uma cátedra em Psicologia Médica para ele; a má saúde

força-o a renunciar ao cargo no ano seguinte.

Organiza e escreve a introdução “Os homens sagrados da Índia”, para Heinrich

Zimmer.

Escreve “Psicologia e Alquimia”, com base nos artigos apresentados na reuniões em

Eranos de 1935 a 1936.

102 1946 – “Ensaios sobre acontecimentos contemporâneos”: coletânea de ensaios recentes.

1947 – Começa a passar longos períodos em Bollingen.

1948 – Inauguração do Instituto Carl Gustav Jung, de Zurique.

1950 – Escreve com K. Kerényi, “Ensaios sobre uma ciência da mitologia” (Nova York) /

“Introdução a uma ciência da mitologia” (Londres);

Escreve: “Sobre o simbolismo da mandala” ;

“Prefácio”, para o clássico chinês I Ching, ou o Livro das Mutações (Tradução e edição

de Richard Wilhelm).

1951 – Escreve: “Aion: pesquisas na fenomenologia do Si-mesmo”;

“Questões fundamentais da psicoterapia”;

1952 - “Sincronicidade: um princípio de conexão acausal” ;

“Resposta a Jó”;

“Símbolos da transformação”.

1953 – A série Bollingen começa a publicar The Collected Works of C. G. Jung.

1954 – Escreve: “Sobre a psicologia da figura do trapaceiro”, em Paul Radin: “O Trapaceiro: um

estudo na mitologia indígena americana”.

1955 – Com Wolfgang Pauli, A interpretação da natureza e a psique. A contribuição de Jung

consistiu de seu ensaio sobre “Sincronicidade”.

Em 27 de novembro falece Emma Jung.

1956 – “Por que e como escreví ‘Resposta a Jó’ “;

1957 – “O Si mesmo não descoberto”.

Começa a recontar suas “memórias” para Aniela Jaffé.

05-08 de agosto: Jung é filmado em quatro entrevistas com Richard Evans, Professor

de Psicologia na Universidade de Houston.

Setembro: 2º Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique – Jung encontra-se com Nise da Silveira e, ao seu lado, visita as obras do Museu de Imagens do Inconsciente (sediado no Rio de Janeiro, Brasil). 1958 – Memórias, sonhos e reflexões, edição alemã (hoje percebe-se que este trabalho foi

escrito com a colaboração de Aniela Jaffé).

Escreve: “Discos Voadores: um mito moderno”.

1959 – Concede entrevista a John Freeman, na emissora de TV BBC de Londres.

1960 – Eleito cidadão honorário em Küsnacht, em seu 85º aniversário.

“Prefácio” para Miguel Serrano, em As visitas da rainha de Sabá.

1961 – 06 de junho: morre em sua casa em Küsnacht, Suíça, após breve enfermidade

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