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DE ONILÈ À ÒSUN – ENTRE O ESCONDER-SE E O EXIBIR-SE: processos de autoimagem e autoaceitação de àwon obìnrin dúdú (mulheres negras) em comunidades de terreiro Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro PPGEduC/UNEB [email protected] Resumo: Este trabalho versa sobre processos de autoimagem e autoaceitação de obìnrin dúdú (mulheres negras) em comunidades de terreiro. Trata-se de um recorte de pesquisa desenvolvido no Mestrado em Educação e Contemporaneidade- PPGEduC–UNEB. O jogo identitário proposto nesse texto, metaforizado por Onilé e Òsun e que corresponde ao esconder-se e ao exibir-se, respectivamente, parte da compreensão histórica de questões que marcam o ultraje secular vivido sofridamente pelas mulheres negras, através de seus cabelos que expressam fortemente traços de sua identidade negra. A verdade é que, para estas negras mulheres, a não aceitação de suas construções estéticas, as formas como apresentam seus cabelos crespos e tudo o que diz respeito ao seu ser e estar no mundo, sempre foi alvo de polêmica por parte da sociedade brasileira racista, pautada na política do embranquecimento e na ideologia da branquidade. Por isso, propomos nesse texto a “quebra” desse espelho midiático e o rompimento com esses discursos de inferiorização a partir, de olhares mirados no abèbè, que valida à importância das referências ancestrais negro-africanas na composição afirmativa da identidade dessas mulheres que, carregam em seus corpos, as marcas das mais diversas discriminações e preconceitos. Tomando esse emblemático contexto, este artigo apresenta memórias iniciáticas e de ordem estética de àwon obìnrin dúdú (mulheres negras) pertencentes a comunidades de terreiro, muitas das quais já conseguiram avançar para muito além dessas determinações estéticas seculares. Com suas àwon orí (cabeças) que “transbordam” ase (força vital) essas mulheres permitem a manifestação do sagrado em seus corpos “impregnados” de ancestralidade negro-africana. A partir da narrativa de suas negras memórias, publicizam suas histórias e revelam as possibilidades encontradas para sair da dor, do sofrimento psíquico e do “banzo” rompendo com a imposição de um ideal de ego branco, irrealizável para elas (SOUZA, 1989). Enquanto muitas não pertencentes a tal religiosidade não conseguem, ainda, superar a imposição de um padrão de beleza e, assim, procuram esconder embaixo do lenço a vergonha dos volumosos e irreverentes cabelos crespos, outras, revelam o empoderamento proporcionado pelo do Ojá (Pano da Costa) que sinaliza postos, hierarquias, tempo de feitura. Compreendemos que conhecer o Bará (O “dono” do corpo) e o Olorí (“Dono” da cabeça) auxilia estas mulheres no “destrancar os caminhos de Si”, (FERREIRA SANTOS, 2011) devolvendo a estas, a possibilidade de conceberem-se belas (Odara), empoderando-se a partir do assumir a “boniteza” (FREIRE, 2005) de ser como se é! A proposta é que as àwon obìnrin dúdú (mulheres negras) consigam realizar o percurso que inicia no arquétipo de Onilé (aquela que se esconde com vergonha de ser como é!) e cheguem ao arquétipo da vaidosa e bela Òsun que exibe sua beleza com muito orgulho. Para tanto, este trabalho está ancorado em uma metodologia de cunho qualitativo, que adota os princípios da História Oral temática e a técnica da entrevista narrativa como importante metodologia de pesquisa. Isso porque, tal metodologia contribui para aproximação sensível e autorizada das

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DE ONILÈ À ÒSUN – ENTRE O ESCONDER-SE E O EXIBIR-SE: processos de autoimagem e autoaceitação de àwon obìnrin dúdú (mulheres negras) em comunidades de terreiro

Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro PPGEduC/UNEB

[email protected]

Resumo: Este trabalho versa sobre processos de autoimagem e autoaceitação de obìnrin dúdú (mulheres negras) em comunidades de terreiro. Trata-se de um recorte de pesquisa desenvolvido no Mestrado em Educação e Contemporaneidade- PPGEduC–UNEB. O jogo identitário proposto nesse texto, metaforizado por Onilé e Òsun e que corresponde ao esconder-se e ao exibir-se, respectivamente, parte da compreensão histórica de questões que marcam o ultraje secular vivido sofridamente pelas mulheres negras, através de seus cabelos que expressam fortemente traços de sua identidade negra. A verdade é que, para estas negras mulheres, a não aceitação de suas construções estéticas, as formas como apresentam seus cabelos crespos e tudo o que diz respeito ao seu ser e estar no mundo, sempre foi alvo de polêmica por parte da sociedade brasileira racista, pautada na política do embranquecimento e na ideologia da branquidade. Por isso, propomos nesse texto a “quebra” desse espelho midiático e o rompimento com esses discursos de inferiorização a partir, de olhares mirados no abèbè, que valida à importância das referências ancestrais negro-africanas na composição afirmativa da identidade dessas mulheres que, carregam em seus corpos, as marcas das mais diversas discriminações e preconceitos. Tomando esse emblemático contexto, este artigo apresenta memórias iniciáticas e de ordem estética de àwon obìnrin dúdú (mulheres negras) pertencentes a comunidades de terreiro, muitas das quais já conseguiram avançar para muito além dessas determinações estéticas seculares. Com suas àwon orí (cabeças) que “transbordam” ase (força vital) essas mulheres permitem a manifestação do sagrado em seus corpos “impregnados” de ancestralidade negro-africana. A partir da narrativa de suas negras memórias, publicizam suas histórias e revelam as possibilidades encontradas para sair da dor, do sofrimento psíquico e do “banzo” rompendo com a imposição de um ideal de ego branco, irrealizável para elas (SOUZA, 1989). Enquanto muitas não pertencentes a tal religiosidade não conseguem, ainda, superar a imposição de um padrão de beleza e, assim, procuram esconder embaixo do lenço a vergonha dos volumosos e irreverentes cabelos crespos, outras, revelam o empoderamento proporcionado pelo do Ojá (Pano da Costa) que sinaliza postos, hierarquias, tempo de feitura. Compreendemos que conhecer o Bará (O “dono” do corpo) e o Olorí (“Dono” da cabeça) auxilia estas mulheres no “destrancar os caminhos de Si”, (FERREIRA SANTOS, 2011) devolvendo a estas, a possibilidade de conceberem-se belas (Odara), empoderando-se a partir do assumir a “boniteza” (FREIRE, 2005) de ser como se é! A proposta é que as àwon obìnrin dúdú (mulheres negras) consigam realizar o percurso que inicia no arquétipo de Onilé (aquela que se esconde com vergonha de ser como é!) e cheguem ao arquétipo da vaidosa e bela Òsun que exibe sua beleza com muito orgulho. Para tanto, este trabalho está ancorado em uma metodologia de cunho qualitativo, que adota os princípios da História Oral temática e a técnica da entrevista narrativa como importante metodologia de pesquisa. Isso porque, tal metodologia contribui para aproximação sensível e autorizada das

histórias dos sujeitos, possibilitando liberdade de expressão aquelas que, ao falarem de si, se colocam diante de um espelho, revelando traços de sua autoimagem. O trabalho encontra-se inspirado, ainda, na sabedoria milenar africana e pauta-se em três dos inúmeros òwe (provérbios) para desenvolver, com consistência, seus argumentos. São eles: “Orí eni ní m’ini jóba” (a cabeça de uma pessoa faz dela um rei) uma vez que nela que se concentra a energia vital e porta esses corpos negros de sacralidade; o segundo òwe afirmando que “é sabendo de onde se vem que se sabe para onde se vai”, sinalizando o reconhecimento da importância que a ancestralidade costuma ter nos processos identitários de (re) conhecimento e pertencimento etnicorracial. Por fim, comungamos com a máxima africana, “enquanto o leão não contar a sua história, a glória será sempre do caçador”. Tais princípios configuram-se, como indispensáveis no processo de compreender quem se é e onde se pode chegar. Nessa perspectiva, ousamos com este trabalho descortinar preconceitos e exibir processos de autoaceitação de mulheres negras criando e fortalecendo outros lugares epistêmicos, a partir da contribuição de outros continnua civilizatórios, ainda invisibilizados pela Academia. Ademais “é tempo de falarmos de nós mesmos” (NASCIMENTO, 1972, apud RATTS, 2006, p. 91) e é desse lugar e com esta implicação que se toma e profere a palavra. Palavras-chave: Orí; irun; Onilé, Òsun, obínrin dúdú. INTRODUÇÃO O artigo ora apresentado parte de duas premissas. São elas: “É tempo de falarmos de nós

mesmos” (NASCIMENTO, 1972 apud RATTS, 2006, p. 91) e outra, complementar a essa,

proveniente de um òwe1 (provérbio) africano que afirma: “Enquanto o leão não contar a sua

história, a glória será sempre do caçador”. Tais assertivas sinalizam, e, em certa medida,

buscam denunciar, também, o racismo epistêmico2 existente nos espaços acadêmicos que

privilegiam certas temáticas, em detrimento do silenciar de outras tantas.

A contribuição trazida para esse evento, III EBECULT, no eixo: subjetividade e corpo

pretende contemplar e socializar memórias iniciáticas, e, também, estético-identitárias de duas 1 Optou-se por apresentar algumas palavras na língua yòrùbá por acreditar que recuperar tais vocábulos em sua grafia original remetem e fortalecem continnua civilizatórios ainda silenciados no contexto acadêmico. Decide-se por tal estratégia, também, por acreditar a força que os mesmos contem, quando pensados em tais contexto. No que diz respeito à utilização de vocábulos em yòrùbá vale comentar que estes aparecerão, nesse texto, em sua forma original (grafia) e serão sinalizados pela forma itálica. O significado mais próximo e equivalente em Língua portuguesa virá na sequência e sempre entre parênteses. Faz-se necessário chamar atenção ainda para algumas outras informações no que diz respeito a apresentação dos vocábulos pertencentes a tais bacias semânticas. São elas: na falta de um programa que permita colocar o acento subsegmental que alguns vocábulos possuem, decidiu-se então por sublinhar a letra correspondente. Vale comentar, ainda, que nessa língua não existe a letra x e sim o seu equivalente que é o s com o acento subsegmental que tem som de CHE. Faz-se necessário chamar atenção, também, para o caso do O possuir acento subsegmental, na língua yorùbá seu som será sempre aberto. Na falta do mesmo, subentende-se que o som seja fechado (Ô), equivalendo à pronúncia ô. Em alguns momentos o leitor estranhará a aparente não concordância em algumas expressões. Alguns termos em língua portuguesa no plural e o vocábulo em yòrùbá no singular. Esses casos aparecem pelo fato de ser equivocado pluralizar expressões pertencentes à outra língua acrescentando tão somente um s ao final, como seria feito na maioria das palavras em língua portuguesa. Assim sendo, o plural em tal língua será sempre sinalizado pela partícula àwon e não pelo acréscimo de um s ao final das palavras utilizadas. 2 Racismo epistêmico será entendido aqui como “a negação de qualquer tipo de conhecimento produzido fora destes eixos euro-referenciados” (BARBOSA, 2010).

àwon ìyàwó (esposas) e seus processos de se descobrirem belas no “pós-feitura”, mesmo com

todas as interdições3 existentes em tais períodos, a exemplo de: utilização de fibras sintéticas

ou cabelos humanos, alguns penteados, alguns acessórios coloridos, sobretudo, tendendo para

as cores escuras, dentre outros.

Para ter acesso e conhecimento a essas ricas e complexas histórias, fez-se uso de uma

metodologia de cunho qualitativo, adotando os princípios da História Oral Temática

(ALBERTI, 2005; MEIHY, 2005) com o auxílio da técnica da entrevista narrativa (BAUER;

JOVCHELOVITCH, 2002), isso por acreditar que tal metodologia contribui para

aproximação sensível e autorizada das histórias dos sujeitos, possibilitando liberdade de

expressão aquelas que, ao falarem de si, se colocam diante de um “espelho” (ou seria melhor

dizer aqui um abèbè?), revelando traços de sua autoimagem.

Para as mulheres negras, de agora por diante, obìnrin dúdú, nomeadas a partir da bacia

semântica da qual se originam, a yòrùbá, não se perde de vista a sacralidade existente nos

seus corpos (àwon ara) e ancestralidade4 negro-africana “latente” em suas àwon orí (cabeças),

pois não desconhecem a máxima nigeriana de que: “Orí eni ní m’ini jóba” (a cabeça de uma

pessoa faz dela um rei).

Uma vez realizadas as necessárias explicações iniciais que auxiliam no bom entendimento do

texto e na direção tomada pela autora, apresenta-se, agora, o argumento principal a ser

defendido pelo mesmo é conhecer: o Bará (“Dono” do corpo) e o Olorí (“Dono” da cabeça)

proporciona as àwon obìnrin dúdú, a “destrancar os caminhos de Si” (FERREIRA SANTOS,

2011, p. 14). Tal processo potencializa-as, fortalece e favorece o “tornar-se negra” (SOUZA,

3 Interdições no presente texto não se configurarão como sinônimo de proibição. A ideia aqui é a de que somos instruídos a respeitar a sinalização dada, o que é muito diferente de ser proibido de fazer algo. Conheçamos algumas delas no que diz respeito ao trato com o irun (cabelo) e com o Orí (cabeça): Após o processo iniciático, algumas casas de àse apresentam algumas interdições no que diz respeito ao uso e manuseio, tanto do orí quanto do irun. Essas interdições podem ser de diferentes tipos: a restrição de algumas folhas e outros elementos, o manuseio por outros, sobretudo se estes não estiverem de “corpo limpo”, ou seja, sem ter feito sexo há pelo menos 48 horas para as mulheres e 24 horas para os homens e sem ter ingerido bebida alcoólica e comido determinados alimentos, não ter ido a cemitérios e velórios, dentre outras condutas e quase todas as casas proíbem o uso de fios (naturais ou fibras) que não sejam os próprios dos iniciados. Outros poderão acontecer também tipo o não uso de materiais e instrumentos quentes na cabeça, tais como ferro e chapinha, dentre outros. Isso irá variar muito de casa para casa e a tradição das mesmas (Para maiores detalhes, ver algumas passagens da entrevista realizada com a ìyàwo, filha de Òsun e escolhida aqui para socializar/publicizar algumas das suas passagens marcantes no processo iniciático. próximo ao final do artigo). 4 Para Luz (s.d): “A ancestralidade, portanto, constitui a corrente sucessiva de gerações que mantêm, com dignidade, o legado dos seus antepassados, repõem e expandem o universo mítico-simbólico que sustenta as tradições de um povo, suas instituições, organizações territoriais e políticas, valores, linguagens, formas de comunicação através de narrativas míticas, modos de afirmação existencial e sociabilidades.

1983) e a individuação5, conforme propõe Jung (2000) que, em linhas gerais, define-se como

“tornar-se o que se é” descobrindo a “boniteza6” de ser como se é, e se gostar a partir de então.

Com o objetivo de referendar teoricamente os propósitos expostos ao longo das páginas até

então apresentadas, alguns princípios de ordem filosófica e epistemológica foram eleitos e são

abaixo apresentados, servindo como possibilidades/estratégias de “driblar” o racismo

existente e quiçá, “desmontar” e “desativar” mecanismos que por muito tempo serviram para

constranger, diminuir e tornar infelizes mulheres negras que perseguem um ideal de ego

branco, irrealizável para essas mulheres (SOUZA, 1983).

Descobrir a boniteza de ser como se é! Eis a proposta do presente trabalho, para que, assim, se

efetive o desejo de que é o de gostar do que vê refletido no espelho (hooks7, 2000), pois afinal

de contas, “só podemos ser aquilo que somos” (SOBRAL, 2002).

O que se deseja nessa “empreitada” é que se alcance a construção positiva de si, a

autoaceitação, a autorrealização, uma vez que, “a busca do reconhecimento é uma necessidade

existencial” (d’ADESKY, 2006) e assim sendo, que todos possam ter direito a tal realização e

de ter domínio de sua existência (d’ADESKY, 2006, p.115).

Buscou-se inspiração, também, na proposta apresentada por Oliveira (2007) intitulada de

“Filosofia do Colibri” que segundo o próprio autor “defende a máxima de colocar a si mesmo

como valioso” (p. 183). Alie-se a essa máxima que “Só aquilo que somos tem o poder de

curar-nos” (JUNG, 2000). Ousa-se falar aqui em “cura”, inspirada em Souza (1983) quando

trata da “ferida narcísica”, aqui entendida, como o desejo de ser o que não se é.

Essa ferida cria uma psicopatologia do negro e seu núcleo está na tensão permanente entre o Ego e o Ideal de Ego. Esta tensão em termos clínicos tem seus sintomas no sentimento de culpa, de inferioridade, fobias e depressão, "afetos e atitudes que definem a identidade do negro brasileiro em ascensão social como uma estrutura de desconhecimento/reconhecimento” (SOUZA, 1983).

São esses pressupostos, que sustentam a proposta aqui apresentada: a de realizar o processo

que se inicia no arquétipo de Onilé (aquela que ainda se esconde por ter vergonha de ser como

5 “É tornar-se um indivíduo, tornar-se si mesmo, ou seja, aquilo que de fato somos”. É um processo natural e inevitável. Doloroso, no mais das vezes, mas, imprescindível para a nossa existência. 6 Expressão originalmente utilizada pelo educador Paulo Freire. 7 bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, uma escritora norte-americana nascida no ano de 1952, no Kentucky – EUA. Tal pseudônimo escolhido para assinar as suas obras, configura-se como uma homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. A grafia aparece em minúscula como forma política de chamar atenção e protestar, a partir da perspectiva feminista e chamar atenção para o fato de que, como a própria autora argumenta, ela mesma não se reduz a um nome e seus textos não devem ser lidos em função do mesmo.

 

é) e que poderá culminar no arquétipo de Òsun (extremamente vaidosa e que por não

desconhecer a sua beleza, exibe-se, faceira)8.

Enfim, a proposta é a de “quebrar” com o espelho das diferentes mídias que historicamente

distorce e caricaturiza, sobretudo, as àwon obínrin dúdú, impulsionando a mirarmo-nos no

abèbè9, nas referências ancestrais, muito mais próximas dos múltiplos, belos e reais10

fenótipos delas e não nos distantes e porque não dizer, irrealizáveis normotipos ditados pela

“indústria da moda” imposta pela branquidade11.

Conhecer as reais possibilidades e assumir o que se é, autorrealizar-se12, chegar inteiro,

despertar, é o que mais se deseja com tal proposta. Para tanto, faz-se necessário, no caso das

àwon obìnrin dúdú, livrar-se da idealização e perseguição da brancura, imposta há tanto

tempo como modelo de identificação normativo, de humanidade e de beleza. Buscar nas

referências ancestrais, inspiração, respeito e dignidade e ter a possibilidade de sair do estigma

e do estereótipo impostos, incansavelmente, a tais mulheres, caminhar em direção à estima, ao

aceitar-se e mais do que isso ao gostar-se, descobrindo a boniteza de ser como se é, eis o

dignificante do texto. Quebrar o esquema que tanto as persegue: Ser (negro) sem querer ser X

querer ser (branco) sem poder ou conseguir ser (VALENTE,1994). Substituir a branquidade

pela negritude13, eis o utópico de tal trabalho.

É nesse acervo, predominante negro, composto por referências africano-brasileiras que

“ancoro”14 meu “barco” e brinco com a infindável ginga das águas (trans) oceânicas que num

“jogo de dentro e num jogo de fora”, une muito mais esses dois continentes “irmãos”, do que

8 Para saber um pouco mais sobre tais “personagens” ver Prandi (2011). 9 Para Luz (2000) é também uma proposta teórico-epistemológica, por ela concebida e concretizada que implica numa nova perspectiva em educação, com a criação de novos valores que não deneguem a riqueza dos diversos, ricos e complexos continnua civilizatórios, a exemplo dos ameríndios e africanos. Segundo a autora, trata-se de uma contribuição original a epistemologia. Além dessa perspectiva, sabe-se que o abèbè é uma ferramenta litúrgica que é ao mesmo tempo leque e espelho. 10 Há sempre distorções entre o que se considera ideal e o “real”, de fato. Para melhor aprofundar tal questão ver discussões que giram em torno do self ideal e ideal de self. 11 A construção de uma identidade social baseada na idéia de que os europeus eram um grupo natural de pessoas, essencialmente unidas por atributos intrinsecamente superiores, de produção endógena, funcionou como uma forma de controle social nos países colonizados (ALLEN, 1994, p. 124). 12 O processo de autorrealização é concebido aqui como: “a possibilidade de efetivação do que há de mais profundo e verdadeiro em cada um de nós”; “desenvolver o potencial adormecido e nos tornarmos quem somos destinados a ser por que é isso que sempre fomos” e para tanto, faz-se necessário e imprescindível conhecer nossas possibilidades, para que assim possamos torná-las reais. Pois a autorrealização é um impulso natural da psique, visto que esta possui um caráter autocurativo e uma grande capacidade de regeneração e autorregulação. 13 Segundo d’Adesky (2001): “A negritude vai além da simples identificação racial. Ela não somente é uma busca de identidade enquanto forma positiva de afirmação da personalidade, mas também um argumento político diante de uma relação de dominação. Ela serve aos militantes como vetor entre as identidades pessoal e coletiva (p. 140). 14 A escolha por escrever na primeira pessoa, em alguns momentos do texto configura-se como política, assumindo, dessa forma, o lugar de fala, mulher negra, também pertencente a comunidade de terreiro.

os separam. Serão essas mesmas águas que auxiliam na “lavagem” das memórias do cativeiro

que tanto teimam em “acorrentar” a um passado que busca sintetizar, na condição imposta

pelo coloniza-dor, de escravizados15 e quem nem de longe consegue traduzir a rica e

complexa história do continente africano, bem como seus descendentes espalhados pela

“diáspora”.

Um dos intentos é o de buscar refletir sobre o processo, metaforizado aqui, a partir dos

arquétipos mencionados no início do texto, Onilé e Òsun para que assim possamos nos

orgulhar do que somos e de como nos apresentamos ao mundo. Trata-se de “tornar-se negra”,

descobrindo a beleza de ser como se é e não mais perseguir um ideal de ego branco que nunca

alcançaremos, uma vez que, é irrealizável, para nós, obìnrin dúdú. Desse modo, Sair do

banzo16, dessa tristeza que leva à “morte”, um deixar-se morrer de tristeza, eis a tarefa.

Esse texto faz, ainda, um convite ao leitor para adentrar na Ìgbo-mimó (floresta sagrada),

metaforicamente, compreendida aqui, como as comunidades de terreiro. Ousar, sempre

respeitosamente, ultrapassar a porteira, lugar sagrado para o candomblé, domínio por

excelência e exclusividade de Èsù, Senhor, das porteiras, dono das ruas e dos lugares de

passagens, portas, encruzilhadas e afins, conforme sinalizado num ponto cantado da umbanda:

“Na porteira tem vigia, meia noite o galo canta [...]”. Se permitir adentrar a “porteira”, é

permitir-se conhecer esse mundo mítico-imemorial, rico em mistérios e narrativas ancestrais,

repleto de memórias que datam de tempos de kun lai-lai (imemoriais/muito antigos). “Numa

época em que o homem adorava as árvores” (Ìgbá ì wà ñu).

O texto revela ainda, sempre dentro do permitido, esse mundo rico e complexo “da porteira

para dentro”17. É sempre de bom tom não esquecer o dito yòrùbá: “Ògbèri nko mo màrìwo”,

ou seja, “o não-iniciado não consegue conhecer o mistério do màriwò”. Enfim, só os que

foram iniciados na religião poderão ter acesso aos seus segredos (awo). Pois, trata-se de um

universo “mágico” e “mítico”, territorialidade 18 sagrada e negro-africana que são as

15 A escolha por tal terminologia, em lugar de escravos, como muitos preferem e fazem uso é, também, política, uma vez que tal expressão obriga a interrogar-se quem praticou a ação, que, no mais das vezes, costuma não aparecer. Recuperar o agente de tal atrocidade é necessário para que não esqueçamos que foi uma condição cruel e imposta. 16 Tratava-se de um profundo desgosto pela vida, agravado pela nostalgia aqui entendida como saudade da terra natal. Era exatamente esse o mal que acometia. Os escravizados desejavam voltar ao continente africano. 17 17 Segundo Inaicyra: “Da porteira pra dentro, da porteira pra fora", com essa metáfora da territorialidade da tradição nagô, Mãe Senhora, Osun Miuwá, lyalorisá nilê Asé Opó Afonjá, caracterizava as iniciativas de estabelecimento de relações da comunidade religiosa com a sociedade envolvente, de valores distintos, na dinâmica da pluralidade sociocultural brasileira”. Disponível em: http://www.iar.unicamp.br/docentes/inaicyra/okanawa.htm. Acesso em: 02/04/2011. 18 A territorialidade se dá através da força vital, da energia concentrada em tal espaço, sem fronteiras rígidas. A territorialidade pode ser concebida como os espaços de práticas culturais nas quais se criam mecanismos

comunalidades19 de terreiro20. O adentrar em tais territorialidades e comunalidades deverá

permitir, também, o conhecimento de “personagens” míticas e legendárias, pertencentes ao

continnum civilizatório negro-africano, mais especificamente, o yòrùbá.

NOTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO DO CORPO, DA BELEZA E DA FEIURA

Nota-se, sem muita dificuldade, que há uma sistemática construção social do corpo e

“fabricação” da beleza e, consequentemente do seu oposto, a feiura, não sendo uma prática

recente, mas sim reforçada e atualizada. Assim sendo, alguns modelos são enaltecidos em

detrimento de outros, que são marcados, estigmatizados, ao longo dos séculos. É preciso

explicitar, ainda, os contextos nos quais as construções identitárias das àwon obìnrin dúdú

acontecem, contextos esses, no mais vezes, pautados em valores eurocêntricos, e, portanto,

preconceituosos, racistas, discriminatórios e uniformizantes.

A intenção é destacar que, para além da subjetividade do olhar, há, em paralelo, um reforço

sistemático para que esse olhar seja diferenciado, a partir da construção, solidificação e

divulgação de um padrão, de uma só forma válida de ser e estar no mundo que é a branca e

europeia. Sendo assim, a rica e bela diversidade deverá render homenagens e “render-se” as

construções pautadas nesse fenótipo, que se apresenta como representante do que há de mais

belo e nobre na humanidade. Nesse contexto, as àwon obìnrin dúdú tem se configurado,

historicamente, como alvos preferenciais do racismo que é secular.

Segundo Munanga (1988): “o belo é subjetivo e se foca no olhar do contemplador” (p. 17). Se

assim o é, conheçamos, mais detida e detalhadamente, essas estratégias de manipulação desse

olhar e de uma possível apreciação ou depreciação do que se convencionou a chamar de belo

e de feio, respectivamente.

Na constituição como sujeito negro, o ideal de brancura, para muitos, está, em grande parte

dos casos, fortemente presente, visto que há, indiscutivelmente, inscrições psíquicas do

racismo na elaboração enquanto ser humano. Desse modo,“há introjeção das experiências de

discriminação efetivamente vivenciadas” (Nogueira, 1998).

identitários de representação a partir da memória coletiva, das suas singularidades culturais (SOUZA; SOUZA, 2008, p. 22). 19 Redes de alianças comunitárias, comunalidades, células comunitárias sobre as quais se apóiam toda civilização. Nessas redes de alianças comunitárias, entrelaça-se a origem das cidades, compondo em seu traçado urbano elos de ancestralidade, cosmogonias, hierarquias, instituições, organização territorial, famílias, linhagens, grupos sociais, enfim uma vida social em que circula a dinâmica da existência, o ciclo vital que constitui morte, vida, nascimento, renascimentos, descendência (LUZ, 2009). 20 Espaço material ou subjetivo no qual um grupo social acumula e transmite bens físicos, simbólicos, memória ou competência técnica (SODRÉ, 1988).

Nota-se, então, que “há repercussões do racismo na construção da corporeidade”

(NOGUEIRA, 1998). A autora declara, ainda, que acaba por acontecer o desenvolvimento de

uma identificação que ela chama de “fantasmática” com a classe dominante e com o já citado

“ideal de brancura”, uma vez que, segundo a mesma: “o negro vive cotidianamente a

experiência de que sua aparência põe em risco sua imagem de integridade”, pois, “a cultura

lhe atribui uma natureza que é a da ordem do inaceitável”. Associa-se dessa forma, à ideia do

excesso, daquilo que costuma extravasar, excêntrico aquele que não cabe na “moldura”, que

não comporta no modelo imposto como única possibilidade.

Tentar distanciar-se do horror que é identificar-se com seus iguais, pois, estes representam o

retorno a algo insuportável e que tanto tentam recalcar: a condição de “peça” (coisa,

mercadoria), é a reação mais frequente em tais casos e contextos. Sabendo que “a cultura

necessita do negativo, do que é recusado para poder instaurar, positivamente o desejável”

(NOGUEIRA, 1998) ela acaba afastando, pela via da negativização, a possibilidade da

construção sadia da negritude, interditando assim, o processo de identificação do negro com

seus semelhantes, de sentir-se belo, desejável, enfim, humano.

Nesse contexto, o corpo, a beleza e, consequentemente, a feiura, são entendidos como

construções sociais. Assim concebido, é de bom tom, recuperar, ainda que brevemente, um

pouco do histórico dessas construções e suas intencionalidades, objetivando desvelar

ideologias que estão subjacentes a tal processo e sempre muito bem veladas para que alcance

a eficiência e eficácia desejada quando elaboradas e propagadas, a manutenção do status quo.

Os padrões de existência e as elaborações de beleza há muito têm sido pautados, a partir de

ideais helênicos, princípios universais de classificação e julgamento de beleza tão distantes do

real, belo e diverso fenótipo negro-africano.

Acreditando no corpo, na beleza e, consequentemente, na feiura como culturalmente

construídos, existem traços fenotípicos que são eleitos e prestigiados e tendem, quase que

tiranicamente a serem imitados (imitação prestigiosa21 – MAUSS, 1974), ao mesmo tempo

em que existem, também, os que são desqualificados, desvalorizados, sendo, estes últimos,

historicamente, estigmatizados, segundo os estreitos critérios europeus, há muito tomados,

indiscutivelmente, como dominantes.

Para Flores (2007): “o feio associado à desordem assume a conotação de erro, do mal” (p. 43)

e assim sendo, “como na beleza o homem ama a perfeição de seu tipo, na fealdade, odeia a

21 Por imitação prestigiosa (MAUSS, 1974) entenderemos aqui a existência de uma construção cultural do corpo e nessa construção há a valorização de certos atributos e comportamentos em detrimento de outros, “fabricando”, assim, (ou pelo menos se tenta, quase sempre eficazmente) um corpo típico para cada sociedade.

degeneração do seu tipo”. Diante de tal contexto, indaga-se: como se ver e “construir-se” bela

e sadiamente se todos os seus traços são considerados inadequados e ainda remetem a uma

série de negatividades? As consequências, no corpo e no psíquico, são as mais diversas, todas

elas, nefastas e traumáticas, sobretudo para as àwon obínrin dúdú.

DESEMBARAÇANDO OS FIOS

Como o interesse maior da pesquisa é refletir sobre a importância do cabelo para as

entrevistadas, sujeitos da pesquisa, as àwon obìnrin dúdú, na elaboração e construção

identitária, que acontece, também, através da estética é que comecei a refletir sobre o fato de

que talvez por estar no topo da cabeça, no início do corpo, o orí e o irun tenham uma

evidência maior. É o cabelo, juntamente com a cor da pele, os traços distintivos mais

marcantes, fenotipicamente falando, para indicar pertencimento racial (GOMES, 2004).

Nessa mesma direção Inocêncio (2006) declara:

O cabelo crespo, uma vez assumido, desperta uma série de reações que vão do riso à reprovação. No Brasil, é comum que uma pessoa diga para outra que vá domar os cabelos, ou vá dar um trato no pixaim, sem que isso represente ofensa ou deselegância. Parece que naturalizamos tanto esse tipo de entendimento que mesmo indivíduos alvos preferenciais dessa forma de agressão acabam por larga escala cedendo a tais apelos (p.187).

Através do referencial teórico exposto, intercambiado com as produções memorialísticas das

mulheres de ase22 é que se defende o pressuposto de que é preciso aprender com o passado,

com os ancestrais.

Por não desconhecer e até mesmo por compreender que o processo de “tornar-se negro”

(SOUZA, 1983) costuma ser, no mais das vezes, extremamente difícil e pesaroso; que as

artimanhas criadas pelo coloniza-dor são, as mais diversas, e, por vezes, bastante complexas e

sofisticadas no sentido de fortalecer o “ideal de ego branco” (SOUZA, 1983); que tais

processos costumam proporcionar ou fazer irromper “feridas narcísicas” criadas a partir dos

“pactos narcísicos” que são “firmados” (muitas vezes sem a consciência de um dos lados) é

22 Axé, a força vital, a energia que flui nos planos físico, social e espiritual, constitui, pois, a força máxima para se atingir um objetivo. Não há força maior que essa. Toda e qualquer realização depende do axé. E bem administrado, ele aumenta com o passar do tempo e o acúmulo de experiência, proporcionando fertilidade, prosperidade e longevidade. Em outras palavras, a aquisição gradual e contínua de conhecimentos sobre as formas de adquiri-lo e de não desperdiçá-lo e o desenvolvimento da capacidade de discernir e julgar com justiça e bom senso favorecem o acúmulo de axé. Distintos elementos possuem distintas qualidades de axé: cada orixá tem seu axé específico e diferentes substâncias materiais possuem distintas qualidades de força vital. ... Só está vivo o que carrega axé... (SÀLÁMI; IYAKEMI, 2011, p. 43).

que se decide ouvir e privilegiar as vozes, memórias e histórias de obìnrin dúdú pertencentes

às Comunidades de terreiro.

É a partir de tais concepções que se convida ao leitor a escutar, atenta e sensivelmente,

conforme orientação dos mais velhos, pertencentes às religiões de matrizes africanas23, os

ensinamentos que são repassados “de boca perfumada a ouvidos dóceis e limpos”, por meio,

preponderantemente da oralidade. É nesses territórios sagrados que histórias milenares e

experiências seculares são compartilhadas/socializadas e transmitidas de geração em geração,

diretamente dos mais velhos, aos mais jovens, configurando-se como “transmissão” de

riquíssimas tradições de um complexo sistema cultural, com complexas tramas simbólicas.

As àwon obìnrin dúdú escolhidas para ilustrar e enriquecer os princípios filosóficos e

epistemológicos eleitos na pesquisa cumprem, com honra, o solicitado por Mãe Aninha

quando declara que queria ver seus netos de santo “ com anel de doutor no dedos, aos pés de

Xangô” (MARTINS, 2000, p.121). Essas mulheres “avançaram” no nível de escolaridade e

concluíram o ensino superior24. Em paralelo ao cumprimento de suas aspirações de ordem

intelectual, procuraram cumprir, também, com suas “obrigações” espirituais, com seus

destinos existenciais. Concretizaram seus processos de ordem iniciática e caminham em

direção à condição de ègbón (mais velhos), posição essa, alcançada após os sete anos de

feitura/iniciação.

Para essas àwon obìnrin dúdú, pertencentes às comunidades-terreiro, possuidoras de Orí,

impregnados de ase, o Orí e o irun são mais do que partes constituintes de uma corporalidade,

são espaços sagrados, nos quais, nem todos podem ou devem tocar e quando assim se fizer

necessário, precisam tomar alguns cuidados25.

OUVINDO E APRENDENDO COM AS ÌYÀWÓ

A primeira entrevistada é filha de Òsun, òrìsà da fertilidade, extremamente coquete e vaidosa,

“empresta” e impregna a sua filha com todos os seus atributos. O tempo da duração da

narração é o tempo em que esta passa mirando-se em sua imagem refletida no monitor do

computador, tal qual a sua mãe ancestral com seu abèbè.

Uma das passagens mais importantes de sua narração é o momento em que a mesma decide

compartilhar o seu processo de descobrir-se bela, agora sem o auxílio e “artifício” das fibras,

das tranças sintéticas, que apesar de remeterem a uma estética negro-africana, esta não se

23 Mais especificamente ao candomblé, de nação Ketu. 24 Uma é bacharel em história e outra em direito 25 Ver observações feitas anteriormente na nota de rodapé 3 .

permitia se apresentar sem o uso das mesmas. Utilizadas outrora, hoje não são mais

permitidas (regras da sua casa de ase que não permite o uso de qualquer tipo de “cabelo” na

cabeça ser consagrada ao òrìsà).

Ouçamos um pouco o que a entrevistada tem a nos contar sobre a sua busca por novas formas

de se pensar e se conceber bela, sem outros recursos que não sejam os seus próprios fios

capilares:

Eu mesma trançava, só que a pessoa mesma trançando, tinha que ter uma técnica e eu não tinha essa técnica, então, ficava meio estranho, esquisito ao ver das outras pessoas e ai eu tive que botar química no cabelo. Ai eu perdi minha identidade, porque minha identidade era ter cabelo trançado, entendeu? E não ... e aplicar uma química que não iria me favorecer como a questão da minha estética, eu perderia toda questão estética [ ...] Ter que alisar o cabelo para agradar as outras pessoas mas não me agradou, entendeu? Tanto é que sempre que vejo uma pessoa na rua usando tranças eu ... poderia ser eu, sabe? Sempre, eu ... meus olhos brilham quando vejo uma negra usando trança ou até uma pessoa que tenha uma melanina mais clara usando trança, entendeu? Poxa, poderia ser eu! E hoje eu perdi parte de minha identidade. Me vejo bela? Sim! Mas me desfavorece, entendeu? Usar química me desfavorece [...] (ENTREVISTA NARRATIVA, 2011).

Nota-se, na narrativa da filha de Òsun, uma pressão externa em conservar o padrão e manter-

se fiel ao que ela chama de “sua” estética, que no momento posterior a feitura passar a sofrer

algumas interdições. Como, então, sentir-se bela, a partir tão somente de seus fios? Como

ficar sem o auxílio das tranças sintéticas, utilizadas outrora, sem “descanso”? A pressão

externa, a alteridade, a “empurra” para o uso da química e esta acaba por ceder, mesmo que

isso cause enorme insatisfação. Voltar ao “natural” parece ser, também, uma difícil escolha e

nela permanecer. O interessante é conhecer e acompanhar essa nova construção identitária,

agora, a partir, da busca por ver-se e sentir-se bela e alcançar alguma satisfação em tal

processo.

A segunda entrevistada é uma ìyàwo, filha de Ògún. Não sei se pelo fato de ter um orixá

masculino como o “dono” da sua cabeça, esta parece lidar melhor com a “queda”,

“derrubada” do irun, declarando:

Não sei se as pessoas vêem como eu vejo. Perder o cabelo para mim é ... eu não perdi o cabelo, quem ganhou o cabelo foi Ògún que foi entregue a ele. Eu nasci sem ele quando eu nasci do ventre de minha mãe, eu nasci sem ele, agora do ventre de Òsun26, eu nasci sem ele de novo. Se as pessoas entenderem isso, que perder o cabelo é muito pequeno diante do que o òrìsà pode nos proporcionar [...] (ENTREVISTA NARRATIVA, 2011).

26 A Ìyálórìsà da mesma é filha de Òsun. A referência é feita ao nascer novamente, por conceber a iniciação, a “feitura” como um novo nascimento, dessa vez para o òrìsà. Como, em tais contextos, a figura da ìyálórìsà equivale a uma mãe, daí a metáfora.

Em sua narrativa, a filha de Ògún, talvez pelo fato, de ter um maior amadurecimento, do que

o revelado pela primeira entrevistada sinaliza que a derrubada do irun é algo pequeno diante

do se ganha e cresce com tal processo.

Durante a socialização das narrativas, muitos empoderamentos são desvelados, conforme

enfatiza a filha de Ògún:

Nascer para o òrìsà é ter a possibilidade de ter outra vida. Digo isso porque nem todo mundo que nasce para o òrìsà segue a vida de candomblé (respirando forte e falando pausadamente, revelando estar profundamente emocionada) ou leva o que o òrìsà traz a risca. Assim [...] A gente nasce e a gente necessariamente tem que ser pequeno e acho que a maior lição de nascer para candomblé é aprender a ser humilde. Entender que a gente anda descalço porque a gente é criança, que a gente não tem cabelo porque a gente é pequeno, que a gente deita no chão porque a gente é pequeno, que um dia a gente vai sentar no apoti porque a gente tá um pouco maior e que um dia a gente vai sentar na cadeira porque a gente tá maior ainda. É ... Nascer é como se agente tivesse a possibilidade de construir, de conhecer algumas coisas que a gente não conhecia quando a gente era criança de verdade porque a gente não sabia o que a gente tava fazendo. [...] É verdade que nem todas as pessoas são iniciadas quando adultos. Nascer pro òrìsà ... não sei nem falar, vou começar a chorar aqui.

É disso que tratou o texto, uma retomada, pelas próprias entrevistadas de suas vidas, corpos e

vozes. Protagonistas de seus próprios processos e vidas, selecionam o que é digno de ser

lembrado e narra-os, escolhendo o que contar e o que silenciar, a partir de uma seleção prévia

do que pretende revelar e do que pretende “guardar” em seu “baú” de memórias, mesmo

porque se entende que o ato de narrar não implica necessariamente no contar da extrema

verdade. Há, sempre, uma seleção dos ditos e dos não-ditos. Seno assim, silêncios e lacunas

são esperados e entendidos nesse ato de narrar-se.

Histórias que apesar de serem marcadas pela dor, pelo sofrimento pelo menos inicialmente,

“deságuam”, quase sempre, em (re) elaborações identitárias sadias que não mais “adoecem”

corpos que se veem forçados a alcançar padrões, secular e fortemente impostos de “beleza”,

para muitos irrealizáveis, uma vez que o desejo (inculcado) era o de aproximar-se, ao máximo,

do modelo branco, até então concebido como única possibilidade de aceitação.

Pretendeu-se com a socialização dessas histórias, possibilitar a visibilidade da construção e

(re) elaboração de uma beleza negra que não tenha o padrão branco eurocêntrico de beleza

como única possibilidade de referência. Ouvir tais narrativas de mulheres negras que vem

construindo suas próprias referências, estéticas ou das mais diferentes ordens, não se

submetendo as impostas secularmente pelos mais diferentes veículos e instituições, eis uma

das maiores riquezas do trabalho. Um número incontáveis de ensinamentos certamente vieram

a público.

Registros de tristezas, dores atrozes, frustrações, alegrias fugazes, mas também sonhos,

anseios, expectativas pessoais enquanto mulher e negra, também lutas, vitórias e sucessos,

sobretudo esses últimos, na tentativa de perpetuar-se na história da humanidade. Muito mais

do que as dores, as “delícias” de ser o que é. Os percursos e percalços de se descobrir e se

gostar enquanto àwon obìnrin dúdú (mulher negra), eis o desafio da pesquisa ora apresentada!

(IN) CONCLUSÕES – “Se eles fazem, eu desfaço”27: Nota-se, com todo o exposto até então, que a metodologia da história Oral temática, através

da técnica da Entrevista Narrativa, proporcionou o aflorar e o explicitar das memórias aqui

denominadas de iniciáticas que revelam também preocupações de ordem estética. Essas

preocupações que inicialmente demonstram vergonha e constrangimento com o período

correspondente a “derrubada” e crescimento do irun, demarcando um tempo novo, de nascer

para o dono do seu orí, o seu Olórí, revela posteriormente, para algumas iniciadas

empoderamento.

Se anteriormente a vergonha era escondida por lenços, acessórios e fibras, hoje o orgulho é

revelado com o uso do ojá, dos turbantes que implicam e demonstram hierarquias, cargos,

tempos de feitura e pertencimento de ordem religiosa. As experiências com o sagrado, aqui

apresentadas, explicitam o orgulho de ser filho de uma determinada entidade e a capacidade

de manifestá-lo a partir de um corpo impregnado de ancestralidade e de orí repletos de ase,

condições essas indispensáveis para a manifestação desse mesmo sagrado.

Acredita-se que descobrir de onde se vem (solo de origem), possibilita as àwon obìnrin dúdú

delinear os planos para onde se deseja ir e o que se vislumbra alcançar. O Bará e o Olorí

apresentam-se como de importância vital em tais processos.

Oxalá consigam as àwon obìnrin dúdú, avançar no processo de parar de esconder-se, com

vergonha do que se é, tal qual Onilé, aqui representada pela primeira ìyàwó (a filha de Òsun) e

possa descobrir e utilizar-se das suas potencialidades e qualidades diversas, amando o que vê

e descobrindo a beleza de ser como se é! Com originalidade e naturalidade, sem os artifícios

impostos que determinam padrões de beleza, a fala da ìyàwó de Ògún representa o arquétipo

de Òsun, aquela que não mais se esconde, mas sim, exibe faceira, a sua estonteante beleza.

27 Proposta apresentada e defendida pela professora doutora Ana Célia Silva. Tal expressão ganhou domínio público e é bastante utilizada quando se deseja chamar atenção para a existência de mecanismos racistas. É ainda título de um dos seus trabalhos: “SE ELES FAZEM EU DESFAÇO”: uma proposta de reversão dos estereótipos em relação ao negro no livro didático. Centro de Estudos Afro Asiáticos do Complexo Universitário Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 1992 (relatório de pesquisa).

Vale ressaltar, que as duas personagens femininas escolhidas para realizar a metáfora do

caminho de autorrealização são complementares e não opostas e trazem consigo a ideia de

fecundação (Onilé –Terra de onde tudo brota, de onde tudo nasce) e fertilidade (vida),

“domínio”, por excelência de Òsun, a mãe de seios fartos que a todos alimenta. Sem ela a

criação do mundo não “vingou”, tudo secou, não prosperou. Assim sendo, percebe-se que o

corpo até então apresentado como portador e possibilitador da expansão da ancestralidade, das

obìnrin dúdú, tanto na dimensão da timidez, do momento ainda do “esconder-se” do receio e

resguardo de apresentar-se do jeito que se é, quanto do momento de empoderada, exibir-se,

mostrar a boniteza de ser como se é, estão ligados e representados nessa metáfora à condição

feminina de proporcionar vida e garantir a perpetuação desta.

Essa indispensável “junção” da Terra (Onilé) com a água, aqui representada por Òsun, a

“dona” das águas doces, denota que: “quando se verte água sobre a terra seca, tudo prospera e

de tudo poderá florescer, brotar [...]. Deitar água é iniciar um ciclo” (SANTOS, 1986, p. 80).

Tanto uma (água), quanto a outra (terra) veiculam o ase genitor feminino, onde tudo prospera,

cria a abundância. Nesse sentido, é da junção dessas duas dimensões, que são complementares,

que a vida acontece e a ancestralidade encontra garantia de continuidade.

Que nessa infindável e ininterrupta ginga possam elas, concretizar a Filosofia do Colibri

proposta por Oliveira (2007), que consiste numa “atitude ética de por-a-si-mesmo-como-

valioso” (p. 330); que não seja mais o coloniza-dor o que ditará padrões de beleza,

humanidade e “normalidade” como secularmente tem feito e imposto; que possamos com o

auxílio do abèbè e das referências ancestrais, alcançar a descoberta da boniteza de ser como

se é, sem com isso recorrer ao patrulhamento estético que dita o que é permitido e proibido

fazer no que diz se refere à construção da estética e afirmação da negritude.

Por fim, deseja-se que as àwon obìnrin dúdú, que já avançaram no processo de se gostar do

jeito que se é, aqui representadas pela vaidosa e faceira Òsun, auxiliem no processo daquelas

que ainda se escondem com vergonha de mostrarem-se do jeito que são, tal qual a acanhada e

tímida Onilé.

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