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David Grossman ATÉ AO FIM DA TERRA Romance Traduzido do hebraico por Lúcia Liba Mucznik

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David Grossman�

ATÉ AO FIM DA TERRA

Romance

Traduzido do hebraico por

Lúcia Liba Mucznik

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�PRÓLOGO, 1967

Tu aí, miúda, cala -te!

Quem é?

Silêncio! Acordaste toda a gente!

Mas eu estava a segurá -la

Quem?

Na rocha, estávamos as duas sentadas

De que rocha estás a falar? Deixa -me dormir

De repente ela caiu

Gritas e cantas

Mas eu estava a dormir

E gritaste!

Largou a minha mão e caiu

Basta, dorme

Acende a luz

Estás doida? Matam -nos se acendermos

Espera

O quê?

Eu estava a cantar?

A cantar, a gritar, tudo ao mesmo tempo. Agora cala -te

A cantar o quê?

O que estavas a cantar?!

Enquanto dormia, estava a cantar o quê?

10

David Grossman

Sei lá o que estavas a cantar. Uma gritaria. Era o que estavas

a cantar. A cantar o quê? A cantar o quê?

Não te lembras da canção?

Diz lá, és parva ou quê? Eu estou mais morto que vivo

Mas quem és tu?

Quarto três

Também estás de quarentena?

Tenho de voltar

Não vás… foste? Espera… aí… foi -se… mas o que estava eu a

cantar?

Na noite seguinte voltou a acordá -la, zangado por ela cantar em

voz alta e acordar o hospital inteiro, e ela pediu -lhe que tentasse

lembrar -se se era a mesma canção do dia anterior. Queria deses-

peradamente saber, por causa do sonho que tivera e que naqueles

anos voltava todas as noites. Era um sonho completamente branco,

tudo nele era branco, as ruas, as casas, as árvores, os gatos e os cães

e até a rocha na ponta do penhasco. Ada, a amiga de cabelos verme-

lhos, também era toda branca, sem pinga de sangue no rosto e no

corpo. Mas, também desta vez, ele não conseguiu lembrar -se de que

canção era. Todo o corpo dele tremia e ela, na sua cama, tremia em

consonância com ele. «Parecemos duas castanholas», disse ele, e ela,

surpreendentemente, desatou a rir, um riso fresco, que lhe causou

um formigueiro interior. Esgotara as forças todas nas idas e vindas

entre o seu quarto e o dela, trinta e cinco passos, dava um passo e

descansava, um passo e descansava, agarrado à parede, aos batentes

das portas, aos carros de comida vazios. Naquele momento caiu e

bateu no chão de linóleo pegajoso, à entrada do quarto dela. Fica-

ram ambos ofegantes durante um longo momento. Ele quis voltar a

fazê -la rir, mas já não conseguia falar e depois, aparentemente, deve

ter adormecido.

Diz

O quê? Quem é?

Sou eu

Tu…

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Até ao Fim da Terra

Diz, estou sozinha no quarto?

Como é que eu posso saber?

Estás a tremer?

Sim, estou a tremer

Quanto tens?

Tinha quarenta esta noite

A minha era quarenta ponto três. Quando é que se morre?

Com quarenta e dois

Não falta muito

Não, não, ainda tens muito tempo

Não vás, tenho medo

Estás a ouvir?

O quê?

Que silêncio de repente

Houve algum bum antes?

Canhões

Tenho estado sempre a dormir, e de repente é novamente noite

É por causa do blackoutAcho que eles estão a vencer

Quem?

Os árabes

Por que carga de água?

Ocuparam Telavive

O que estás a… quem te disse?

Não sei. Devo ter ouvido

Sonhaste

Não, disseram aqui, alguém, antes, ouvi vozes

É da febre. Pesadelos. Eu também tenho

Sonhei… Estava com a minha amiga

Talvez saibas

O quê?

De que lado vim

Não conheço aqui nada

E tu, há quanto tempo?

Não sei

12

David Grossman

Eu, há quatro dias, talvez uma semana

Espera, onde está a enfermeira?

À noite está na Medicina Interna A. É uma árabe

Como é que sabes?

Pela maneira como fala

Estás a tremer

A minha boca, a cara toda

Mas… onde estão todos?

A nós não nos levam para o abrigo

Porquê?

Para não os contagiarmos

O quê, então somos só nós…

E a enfermeira

Pensei

O quê?

Se podias cantar para mim

Lá estás tu outra vez

Só cantarolar

Vou -me embora

Se fosse ao contrário, eu cantava para ti

Tenho de voltar

Para onde?

Para onde, para onde, para repousar com os meus antepassados,

para descer ao túmulo sob o peso da dor, é para onde

O quê? Como disseste? Espera, será que te conheço? Olá, volta

Na noite seguinte, antes da meia -noite, foi ter com ela nova-

mente, ficou à entrada do quarto, ralhou com ela e queixou -se de

que ela cantava durante o sono e o acordava a ele e a toda a gente.

Ela voltou a perguntar se ele se lembrava da canção que ela cantara

e ele resmungou que estava farto de acordar por causa dela todas

as noites e de se arrastar pelo maldito corredor, e ela sorriu inte-

riormente e perguntou se o quarto dele era assim tão distante, e só

então ele percebeu que a voz dela não vinha do mesmo sítio dos dois

dias anteriores.

13

Até ao Fim da Terra

Porque agora estou sentada, explicou ela, e ele perguntou cautelo-

samente, porque é que estás sentada? Porque não conseguia dormir,

disse ela. Então o que estavas a fazer? Estava sentada à tua espera,

disse ela. E porque estavas a cantar? Não estava a cantar, disse ela.

Parecia a ambos que a escuridão estava ainda mais escura. Uma

nova onda de calor, que talvez não tivesse nada que ver com a doença

dela, espalhou -se -lhe por toda a pele, desde a ponta dos pés, e subiu

deixando manchas vermelhas no pescoço e na cara. Ainda bem que

está escuro, pensou ela, e ajustou a gola do pijama largo ao pescoço.

Por fim, à entrada, ele limpou a voz e disse, então tenho de voltar.

Porquê?, perguntou ela. Ele disse que precisava, urgentemente, de

rebolar em asfalto e penas. Ela não percebeu, mas depois entendeu

e riu do fundo do coração, anda, meu palerma, deixa -te de cenas,

arranjei -te uma cadeira ao meu lado.

Ele avançou a tatear, agarrado ao batente da porta, ao armário

de metal e à cama, até que parou algures, apoiou os braços numa

cama vazia e respirou pesadamente. Estou aqui, gemeu. Aproxima-

-te, disse ela. Um momento, deixa -me respirar. O escuro encheu -a

de coragem e ela disse em voz alta, a sua voz saudável, uma voz de

praia, de paddle ball e de concursos de natação para as jangadas na

Praia Hof Ha -Sheket, de que é que tens medo? Eu não mordo. Ele

murmurou, está bem, está bem, já ouvimos, eu estou meio morto,

e o seu tom queixoso, o arrastar pesado das pernas, comoveram -na.

Parecemos um casal de velhinhos, pensou.

Aiiii!

O que aconteceu?

Uma destas camas decidiu de repente… Aiii! Ouviste falar da lei

da conspiração…

O que disseste?

A lei da conspiração dos objetos, ouviste falar?

E se chegasses aqui?

As tremuras não paravam e por momentos até aumentavam,

transformando -se em arrepios prolongados, de modo que, quando

eles falavam, as frases saíam entrecortadas e sacudidas, obri gando-

-os a esperar uma pausa no tremor, para que os músculos da cara e da

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David Grossman

boca se relaxassem um pouco e então eles aproveitavam para lançar

rapidamente as palavras em voz alta e tensa, mas o gaguejar acabava

por triturar as palavras na boca. Que -i -da -de -tens? De -zas -seis, e -tu?

E -um -quar -to. Eu -te -nho -i -te -rí -ci -a, disse ela, e -tu -o -que -tens?

Eu?, disse ele, a -cho -que -é -in -fe -ção -dos -o -vá -ri -os.

Silêncio. Ele respirava com dificuldade: A -pró -pó -si -to, e -ra -u-

-ma -pi -a -da. Não tem piada nenhuma, disse ela. Ele gemeu: que-

ria fazê -la rir, mas o sentido de humor dela é demasiado… Ela

endireitou -se e perguntou com quem é que ele estava a falar. Com

o tipo que me escreve as piadas, disse ele, provavelmente vou ter

de o despedir. Se não vieres sentar -te já aqui, começo a cantar, amea-

çou ela. Ele teve um arrepio e riu. Tinha um riso estridente como o

zurrar de um burro, um riso que se autoalimentava, e ela, descon-

fiada, sorveu -o como um remédio, como um prémio.

Ele riu tanto com a piada idiota dela que ela teve dificuldade em

conter -se para não lhe contar que ultimamente já não era capaz de

fazer rir como antes, de fazer rebolar as pessoas de tanto rir. «No

que respeita ao humor não vale um xelim», tinham cantado sobre

ela na festa de Purim1 desse ano. E não era apenas uma pequena

falha, nela já era um verdadeiro defeito, uma nova deficiência que

poderia vir a desenvolver -se e a complicar -se, porque ela sentia que

de algum modo estava ligada a outras características que tinham

vindo a embotar -se nela nos últimos anos. A intuição, por exemplo.

Como é que uma qualidade como esta podia desaparecer, e a tal

velocidade? Ou o talento para dizer a coisa certa no momento certo.

Dantes tinha, e agora já não. Ou mesmo apenas a agudeza, pois ela

costumava ser realmente picante, lançava faíscas. (Mas consolou-

-se pensando que se tratava de uma canção de Purim e eles talvez

não tivessem encontrado melhor rima.) Ou a capacidade de amar,

pensou subitamente. Se calhar isso também estava relacionado

com a sua degradação – a perda da capacidade de amar alguém de

1 Festa do calendário religioso judaico que celebra a ação da rainha judia Ester, mulher do rei Assuero da Pérsia, na defesa do seu povo contra Haman, conselheiro do rei, que queria exter-minar os judeus. Tem lugar no mês de Adar (fevereiro ou março) e reveste -se de grande alegria e festejos. (N. da T.)

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Até ao Fim da Terra

verdade, de arder de amor, como dizem as raparigas, como nos fil-

mes. E sentiu logo a alfinetada de Avner. Avner Feinblatt, o amigo

do internato militar, que agora já era soldado; nas escadas entre as

ruas Pevsner e Yosef, dissera -lhe que ela era a sua amiga do peito,

mas nem então lhe tocara, nem uma vez lhe tocara com a mão ou

um dedo sequer, e talvez isso também estivesse relacionado, o -não-

-lhe -tocar, no íntimo do seu coração já achava que estava tudo rela-

cionado, e que só a ela as coisas se revelariam aos poucos, de cada

vez uma pequena parte do que a esperava, se calhar as pessoas que

a observavam de fora já viam e sabiam antes dela e, de facto, com

todos os sinais que se iam acumulando, ela própria também já devia

começar a dar -se conta.

Por momentos conseguiu ver -se a si própria aos cinquenta anos,

alta, magra e murcha, uma flor sem cheiro, a andar com passos rápi-

dos e largos, cabeça baixa, chapéu de palha amplo a esconder -lhe o

rosto, enquanto o rapaz com riso de burro continuava a tatear em

direção a ela, aproximava -se e afastava -se – parecia de propósito,

pensou ela espantada, parecia uma espécie de jogo – e dava risadas,

troçava da sua falta de jeito, vagueava em círculos pelo quarto, e de

vez em quando pedia -lhe que dissesse alguma coisa para o orientar:

como um farol, mas de voz, explicou. Um espertalhão, pensou ela,

e também bastante ridículo. Finalmente chegou ao pé da cama dela,

tateou e encontrou a cadeira que ela preparara para ele, aterrou nela

e arquejou como um velho. Ela sentiu o seu cheiro doentio a suor,

tirou de cima de si um dos cobertores e estendeu -lho, e ele cobriu-

-se e calou -se. Estavam ambos exaustos, de modo que se encolhe-

ram, com gemidos, muito concentrados em si próprios.

De qualquer modo, disse ela de dentro do cobertor, a tua voz

é -me familiar. De onde és? De Jerusalém, disse ele. Eu sou de Haifa,

disse ela com uma ligeira ênfase, trouxeram -me para aqui de ambu-

lância, do Hospital Rambam, devido às complicações. Eu também

tenho, riu ele, a minha vida é uma complicação pegada. Calaram -se.

Ele coçou a barriga e o peito e resmungou e ela resmungou tam-

bém, é de enlouquecer, não é?, e coçou -se igualmente, com as unhas

todas, às vezes morro por arrancar a minha pele, só para que isto

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David Grossman

acabe. Sempre que ela começava a falar, ele ouvia o som viscoso e

mole dos seus lábios a abrirem -se, a descolarem, e sentia subita-

mente as pontas dos dedos dos pés e das mãos a vibrar.

Ora disse, o motorista da ambulância disse -me que, em tempos

como este, as ambulâncias são necessárias para coisas mais impor-

tantes. Diz lá, perguntou ele, reparaste que estão todos zangados

connosco aqui? Como se tivéssemos feito de propósito? Ao que ela

respondeu, é porque somos os últimos que restam da epidemia.

Os que melhoraram um pouco, mandaram -nos logo para casa, em

particular os soldados, disse ele, despacharam -nos rapidamente de

volta para a tropa, para ainda irem a tempo da guerra. Então é ver-

dade que vai haver guerra?, perguntou ela. Estás a brincar? Há pelo

menos dois dias que decorre. Quando é que começou?, perguntou

ela surpreendida. Anteontem, penso eu. E já to tinha dito ontem

ou anteontem, não me lembro quando, faço confusão com os dias.

É verdade, disseste -me… Ora emudeceu, espantada. E deslizaram

por ela farrapos de sonhos estranhos e ameaçadores. Como é que

não ouviste?, murmurou ele. As sirenes e os canhões não param,

ouvi os helicópteros a aterrarem. Já deve haver milhões de feridos

e mortos. Mas o que é que está a acontecer?, perguntou ela. Não

sei, não há com quem falar aqui. Não têm cabeça para nós. Então

quem trata de nós? Agora há só aquela, a árabe pequena e magra,

que chora, ouviste -a?, disse ele. Então é uma pessoa que chora? Ora

estava espantada. Pensava que era um animal a gemer. Tens a cer-

teza? É uma pessoa, de certeza. Mas como é que eu não a vi? Ela vai

e vem, leva os exames, coloca os medicamentos e a comida na tra-

vessa. Agora não há mais ninguém aqui senão ela, dia e noite.

Ele ficou pensativo, a chupar a bochecha, e disse, é cómico que

a única pessoa que eles tenham deixado connosco seja uma árabe,

não achas? De certeza que não permitem que os árabes tratem dos

feridos.

Ora não conseguia acalmar -se. Mas porque é que ela chora? O que

é que lhe aconteceu? Como é que eu hei de saber? Ora endireitou-

-se, o corpo ficou tenso e disse com uma calma glacial, eles ocupa-

ram Telavive, digo -te, o Nasser e o Hussein já estão a beber café na

17

Até ao Fim da Terra

Dizengof 1. Onde é que foste inventar isso?, perguntou ele assus-

tado. Ouvi ontem à noite, ou hoje, tenho quase a certeza, talvez

tenham dito na rádio, ouvi, eles conquistaram Beersheba, Ascalão

e Telavive. Não, não, não pode ser, disse ele. Deve ser da febre, isso

deve ser da febre, porque não pode ser! Estás louca, eles não podem

ter vencido. Pode, pode, murmurou ela para si própria, e pensou,

o que sabes tu do que pode ou não pode ser.

Mais tarde ela acordou de um sono breve e procurou o rapaz com

o olhar. Ainda aqui estás? O quê? Sim. Ela suspirou. Estavam aqui

comigo nove raparigas e só fiquei eu, não é irritante? E o rapaz –

agradava -lhe que após três noites com ela ainda não soubesse o

seu nome e ela não soubesse o dele; gostava daqueles pequenos

mistérios. Nos folhetins de rádio que escrevia e gravava em casa no

magnetofone, nos quais representava todos os papéis – de miúdos

e velhos, homens e mulheres, diabos e reis, para além de gansos

selvagens e cafeteiras falantes e outras coisas, sem fim – havia fre-

quentemente brincadeiras inteligentes dessas, criaturas que apa-

reciam e se evaporavam, personagens criadas pela imaginação de

outras personagens. E entretanto divertia -se a adivinhar: Rina?

Yael? Ou Liora? Fica -lhe bem Liora, pensou. O seu sorriso é cheio

de luz, or, ilumina a escuridão.

No quarto dele, o número três, também era assim, contou -lhe.

Já todos se tinham ido embora, incluindo os soldados, alguns mal

conseguiam andar e no entanto tinham -nos mandado para as uni-

dades. Ficara com ele apenas um, que não era soldado, um tipo que

por acaso era da turma dele, que chegara há dois dias, com 42,2o de

febre, e não conseguiam fazê -la baixar, passa o dia a sonhar e a con-

tar para si as mil e uma noites… Um momento, interrompeu -o Ora,

diz lá, não estiveste uma vez num treino no Instituto Wingate? Não

andas no voleibol, por acaso? Avram deu um gritinho de horror. Ora

perguntou o que acontecera. Um gritinho de horror, disse Avram.

Ora conteve um sorriso e pôs um ar irritado: O quê, não há desporto

1 Rua do centro de Telavive com o nome do primeiro presidente da Câmara da cidade, fun-dada em 1909. (N. da T.)

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David Grossman

nenhum em que sejas bom? Avram pensou um momento, talvez

para saco de treino de boxe, sugeriu. Então em que movimento é

que andas?, perguntou Ora zangada. Um momento, deixa -me adivi-

nhar, não me pareces um daqueles do movimento operário, riu ela:

deves ser dos escuteiros, ou no máximo, do movimento unificado.

Não faço parte de movimento nenhum, sorriu ele. De movimento

nenhum?, exclamou Ora desanimada. Então o que…? Não me digas

que tu estás num movimento, disse Avram, e continuou a sorrir. Por-

que não?, resmungou Ora ofendida. Porque isso dá cabo de tudo

entre nós, disse ele com um suspiro exagerado, porque eu pensava

que tu eras a miúda perfeita. Ah, pois eu estou nos Machanot Olim,

«campos de imigrantes», disse ela à laia de desafio. Ele esticou o

pescoço e os lábios e, para espanto dela, lançou para o teto um

longo uivo de cão de partir o coração: é uma coisa terrível o que me

contas, disse ele, só espero que a ciência médica consiga encontrar

brevemente um medicamento para o teu sofrimento. A perna dela

tamborilava rapidamente. Espera, já sei! Não estiveste uma vez com

a tua malta no campo em Yesod HaMaalé? Não tinham tendas na

Mata dos Fundadores?

Querido diário, suspirou Avram com uma pronúncia russa exa-

gerada: à meia -noite de uma noite fria e tempestuosa, quando eu,

alquebrado e triste, encontrei finalmente uma rapariga convencida

de que me conhecia de algum lado – Ora fungou com desprezo – em

resumo, continuou Avram, examinámos todas as possibilidades e

depois de rejeitarmos as horrendas ideias dela, cheguei à conclusão

de que talvez nos tivéssemos conhecido no futuro.

Ora soltou um ai agudo, como se picada por uma agulha. O que

aconteceu?, perguntou Avram com doçura, contagiado pela dor

dela. Nada, disse ela. Não é nada. Olhou para ele à socapa, tentando

perscrutar através da escuridão para ver quem ele era.

Num esforço sobre -avicular, voou para o quarto número três

e aterrou na ponta da cama do seu colega de turma que também

estava a dormir e tremia, gemia e se coçava no sono. Que calmo

está isto aqui, sussurrou Avram. Reparaste na calma esta noite?

19

Até ao Fim da Terra

Seguiu -se um silêncio prolongado. Depois o rapaz falou numa voz

rouca e entrecortada: Isto parece um túmulo, se calhar já estamos

mortos. Avram refletiu. Ouve, disse, quando estávamos vivos, acho

que andámos na mesma turma. O rapaz ficou calado, tentou levan-

tar um pouco a cabeça para olhar para Avram, mas não conseguiu.

Passados instantes, murmurou, quando eu estava vivo, basicamente

não estudei nada em turma alguma. É verdade, disse Avram com um

ténue sorriso de admiração, quando eu estava vivo, havia de facto na

minha classe um tipo que basicamente não estudava nada, um certo

Ilan, tremendamente snobe, que não falava com ninguém.

O que é que ele podia falar convosco? São um bando de crianças,

de fêmeas, todos vocês, não sabem nada de nada.

Porquê?, perguntou Avram com calma e concentração, o que

sabes tu que nós não saibamos?

Ilan deu uma gargalhada breve, amarga, e Avram, por alguma

razão, teve medo.

Calaram -se e mergulharam num sono agitado. Algures, no

quarto número sete, Ora estava deitada na cama a tentar compreen-

der se de facto lhe tinham acontecido aquelas coisas. Lembrou -se

de que não há muito tempo, há apenas alguns dias, desmaiara na

rua ao voltar de um treino no campo do Técnico. E que o médico

do Hospital Rambam lhe perguntara logo se ela também tinha ido

com a sua turma visitar um dos novos campos militares construídos

durante o período de preparação para a guerra e se tinha comido

lá alguma coisa ou utilizara os sanitários do campo. Fora imediata-

mente arrancada à sua casa, exilada numa cidade estranha e encer-

rada pelos médicos em isolamento total, no terceiro andar de um

hospital miserável e descuidado numa cidade que ela mal conhecia.

Já não sabia se os seus pais e amigos estavam proibidos de a visitar

ou se a tinham visitado, enquanto dormia, se tinham estado à volta

da sua cama desamparados, a tentar trazê -la de volta à vida, falando

com ela, chamando -a, e depois se tenham afastado, olhando uma

última vez para trás, que pena, era uma boa menina, mas o que se

pode fazer, a vida continua e é preciso olhar em frente, e para além

disso estamos em guerra e são necessárias todas as forças.

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David Grossman

Eu vou morrer, sussurrou Ilan espantado.

Disparates, zurrou Avram, vais sobreviver, mais um ou dois dias

e tu já…

Eu sabia que isto me haveria de acontecer, disse Ilan baixinho,

era óbvio desde o início.

Não, não, disse Avram assustado, o que estás a dizer, não penses

nisso.

Ainda nunca beijei uma rapariga.

Hás de beijar, disse Avram, não tenhas medo, chega, vai correr

tudo bem.

Quando eu estava vivo, disse Ilan mais tarde – cerca de uma hora

depois – havia na minha classe um que me chegava aos tomates.

Era eu, disse Avram rindo.

Não parava de falar.

Era eu.

Tão cheio de si.

Era eu, eu, riu Avram.

Eu olhava para ele e pensava, Este tipo, quando era pequeno, de

certeza que levava pancada de morte do pai.

Quem te disse?, perguntou Avram alarmado.

Eu observo as pessoas, disse Ilan e adormeceu.

Abalado, Avram abriu as asas e voou ao longo do corredor curvo,

chocando contra as paredes, até aterrar no seu lugar, em cima da

cadeira ao lado da cama de Ora. Fechou os olhos e mergulhou num

sono agitado. Ora estava a sonhar com Ada. No seu sonho estava

com Ada na planície branca sem fim, onde ambas passeavam quase

todas as noites, de mãos dadas e em silêncio. Nos seus sonhos que

tinha na primeira época, elas falavam sem parar. Viam ao longe a

rocha que se erguia perpendicular ao abismo. Quando Ora ousou

olhar de lado para Ada, viu que ela já não tinha corpo. Restava ape-

nas a voz, rápida, aguda e alerta, como sempre, bem como a sensa-

ção das mãos dadas e do agarrar desesperado dos dedos. Na cabeça

de Ora, o sangue golpeava com força: Não largues, não largues, não

largues a Ada, nem sequer por um minuto…

21

Até ao Fim da Terra

Não, sussurrou Ora e acordou instantaneamente banhada em

suores frios, que parva que eu sou…

E olhou para o sítio em que Avram estava estendido no escuro.

A artéria do pescoço dela começou a pulsar.

O que disseste? Ele acordou e tentou equilibrar -se na cadeira.

Estava constantemente a escorregar para o chão, puxado por uma

força titânica a estender -se, a pousar a sua cabeça insuportavel-

mente pesada.

Eu tinha uma amiga que falava um pouco como tu, balbuciou ela.

Ainda estás aqui? Estou, acho que adormeci. Éramos amigas desde

a primeira classe. E agora já não são? Ora tentava em vão controlar

as mãos que tinham começado a tremer violentamente. Há mais de

dois anos que não falava com ninguém sobre Ada. Nem sequer pro-

nunciara o seu nome em voz alta. Avram inclinou -se um pouco para

a frente. O que te aconteceu?, perguntou. Porque é que estás assim?

Escuta…

O quê?

Ela engoliu em seco e disse depressa: Na primeira classe, no pri-

meiro dia de aulas, foi ela a primeira pessoa que vi quando entrei

na sala.

Porquê?

Bom, Ora riu, ela também era ruiva.

Ah. O quê, tu também?

Ela riu alto e o seu riso era novamente saudável e sonoro. Estava

tão espantada que alguém pudesse estar com ela e falar com ela

durante tanto tempo, três noites, sem saber que ela era ruiva: mas

eu não tenho sardas, esclareceu logo. Ada tinha, na cara toda e nas

pernas e nos braços. Isso interessa -te?

Nas pernas também?

Em todo o sítio.

Porque é que paraste?

Não sei. Não há muito para contar.

Conta o que houver.

É um pouco… Ela hesitou, não conseguia decidir se já podia

revelar -lhe os segredos da irmandade. Fica sabendo que a primeira

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David Grossman

coisa que um miúdo ruivo faz é verificar sempre se há outros ruivos

por perto.

Para serem amigos? Ah, não, é o contrário. Não é?

Ela sorriu com admiração no escuro. Ele era mais esperto do que

ela pensara. Precisamente, disse ela, e nunca ir para ao pé deles nem

nada.

É como eu, disse Avram.

O quê?

Procuro logo os anões.

Porquê?

É assim.

Tu és como? És baixo?

Estou disposto a apostar que não chego aos teus calcanhares.

Ah!

A sério, não imaginas as propostas que recebo de circos.

Conta lá.

O quê?

A verdade.

Então?

O quê?

Porque é que vieste ontem e hoje?

Não sei. Vim.

Diz lá.

Ele limpou a voz e disse: «Queria acordar -te antes que começas-

ses a cantar a dormir, mentiu Avram.»

O que é que disseste?

«Queria acordar -te antes que começasses a cantar outra vez

durante o sono, mentiu Avram, o homem dos esquemas.»

Ah, tu…

Sim.

Tu dizes -me também o que…

Precisamente.

Silêncio. Um sorriso furtivo. As rodas dentadas das suas mentes

giravam a toda a velocidade.

E chamas -te Avram?

23

Até ao Fim da Terra

O que hei de fazer, era o nome mais barato que os meus pais se

podiam permitir.

E é como se eu dissesse, por exemplo, «Ele fala comigo como

se fosse um ator de teatro, pensou Ora»?

«Acertaste em cheio, Avram elogiou Ora, e disse para si próprio,

Minha alma, parece -me que achámos…»

«Então agora fica quieto por um momento, disse a genial Ora,

e mergulhou em pensamentos mais profundos que o mar.»

«Gostaria de saber que pensamentos são aqueles mais profundos

que o mar que ela tem, pensou Avram nervoso.»

«Ela está a pensar que gostaria de vê -lo, nem que fosse só por um

momento. E em que está ele a pensar?»

«Que mais vale ela não o ver, disse Avram, soltando um grito de

horror.»

«Mas então Ora, manhosa como uma raposa, revelou -lhe que

para além da cadeira tinha -lhe preparado também aquilo.»

Uma fricção e outra fricção, uma chama e um foco de luz bri-

lham no quarto. Um braço comprido, claro e delgado, avança, segu-

rando um fósforo à laia de facho. A luz ondula pelas paredes como

um líquido num jarro. Um quarto grande com muitas camas vazias,

nuas, e sombras que oscilam, uma parede e um batente de porta e

no centro do círculo de luz Avram, afastando -se um pouco do fós-

foro ofuscante.

Ela acende outro fósforo e instintivamente segura -o mais abaixo,

para não o envergonhar. A chama revela umas pernas de rapaz gros-

sas e musculosas dentro de um pijama azul. Umas mãos espanto-

samente pequenas repousam sobre o regaço apertadas com nervo-

sismo. A luz sobe revelando um corpo curto e sólido, e recorta no

escuro uma cara grande e redonda que, apesar da doença, exibe uma

ânsia de viver quase embaraçosa, curiosa e intensa, com um nariz

abatatado e pálpebras inchadas e, acima daquilo tudo, irrompe um

tufo de cabelo preto, revolto e crespo.

Mas o que mais a espanta é a forma como ele oferece o rosto à con-

sideração e veredito dela, fechando os olhos com força, franzindo

energicamente todos os traços. Por momentos, ele pareceu -lhe

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David Grossman

como alguém que atirou ao ar um objeto frágil e espera inquieto

que ele se despedace.

Ora solta bafos de dor e chupa as pontas dos dedos queimados.

Após uma breve hesitação, acende outro fósforo e segura -o em

frente da testa com a gravidade de um ato de justiça. Fecha os olhos

e move o fósforo rapidamente para cima e para baixo em frente da

cara. As pestanas vibram, os lábios sobressaem um pouco. As som-

bras quebram -se sobre as maçãs do rosto altas e compridas e à volta

da bola inchada e desafiadora da boca e do queixo. Algo turvo e

ensonado paira sobre aquele bonito rosto claro, qualquer coisa per-

dida e imatura, ou talvez seja a doença que lhe dá esse ar. Mas o

cabelo curto chameja, cobre polido, e o seu brilho incandesce os

olhos de Avram mesmo depois de o fósforo se apagar e a escuridão

voltar a envolvê -lo.

Diz…

O quê? O quê?!

Avram?

O quê?

Adormeceste?

Eu? Pensei que tu é que tinhas adormecido.

Achas que vamos curar -nos?

Claro.

Mas devia haver umas cem pessoas em isolamento quando aqui

cheguei. Se calhar temos alguma coisa que eles não sabem curar?

Queres dizer – nós os dois?

Quem cá ficou.

Só cá estamos nós e aquele da minha turma.

Mas porquê nós precisamente?

Nós temos complicações.

Pois é. Mas porquê precisamente nós?

Não sei.

Estou a cair de sono outra vez…

Eu fico.

Porque é que estou sempre a adormecer?

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Até ao Fim da Terra

O corpo está fraco.

Não durmas, toma conta de mim.

Então fala comigo. Conta -me.

O quê?

Sobre ti.

Elas eram como irmãs, chamavam -lhes «as siamesas», embora

não se parecessem nada uma com a outra. Durante oito anos, desde

os seis aos catorze, da primeira classe até ao final do primeiro tri-

mestre do oitavo ano, sentavam -se lado a lado na mesma carteira.

Também não se separavam depois das aulas, andavam sempre jun-

tas, ora na casa de uma ora na da outra e nos Machanot Olim, nos

passeios e nos campos de trabalho… estás a ouvir?

O quê?… Sim, estou a ouvir… Há uma coisa que não percebi. Por-

que é que já não são amigas?

Porquê?

Sim.

Ela já não é…

Já não é o quê?

Viva.

Ada?!Ela ouviu -o contrair -se, como se tivesse recebido uma pancada.

Encolheu as pernas, abraçou os joelhos e começou a balouçar -se

para a frente e para trás. A Ada morreu, há quase dois anos que

a Ada morreu, repetia para si rapidamente, está bem, está bem,

todos sabem que ela morreu. Já nos habituámos, ela morreu. A vida

con tinua. Mas era como se tivesse acabado de revelar a Avram

um segredo muito íntimo, uma coisa que só ela e Ada sabiam

verdadeiramente.

E então, por qualquer razão, acalmou -se. Parou de balouçar. Vol-

tou a respirar lenta, cautelosamente, como se tivesse espinhos nos

pulmões, e tinha a sensação estranha de que o rapaz seria capaz de

os tirar, um a um, com cuidado.

Mas de que é que ela morreu?

Um acidente de viação. E fica sabendo…

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David Grossman

Um acidente?

Que vocês têm o mesmo sentido de humor.

Quem?

Tu e ela, precisamente o mesmo.

Então é por isso…

O quê?

É por isso que não ris das minhas piadas?

Avram…

Sim.

Dá -me a mão.

O quê?

Dá -me a mão, depressa.

Mas temos autorização?

Não sejas palerma, dá lá.

Não, não percebeste, é por causa do isolamento.

De qualquer maneira já fomos contagiados.

Mas talvez…

Dá -me lá a tua mão!

Olha como estamos ambos a suar.

Uma sorte.

Sorte porquê?

Imagina que só um de nós estivesse a suar.

Ou se só um estivesse a tremer.

Ou a coçar -se.

Ou se só um tivesse…

O quê?

Tu sabes.

Que nojento és.

Mas é verdade, não é?

Então diz lá.

Bem: merda…

Da cor da cal…

E com sangue, imenso sangue.

Não sabia que tinha tanto sangue no corpo, sussurrou ela.