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SOCIEDADE "Abram as portas das universidades" 0 Maio de 68 pelos estudantes de hoje No mês em que se assinalam 50 anos desde que as barricadas tomaram o Quartier Latin, dias depois de os estudantes franceses terem saído para a rua, o PÚBLICO questionou os universitários portugueses sobre o que os levaria a levantar a voz. O poder, a precariedade e o futuro voltam a estar, em moldes diferentes, em discussão. Por Margarida David Cardoso evisitando as frases- símbolo do Maio de 68, fomos ao início: universidade. E questionamos os es- tudantes de hoje, 50 anos após a revolta que abanou a França cujas repercussões algumas fronteiras, sobre o que acham que deve ser questionado. Eles criaram novos slogans. O ensino superior em Portugal não precisa de uma revolta avultada, mas de medidas revolucionárias. Dizem- no os jovens ouvidos pelo PÚBLICO que quase transversalmente traçam um diagnóstico: o acesso, o papel da universidade na sociedade eo dos es- tudantes na universidade tem de ser questionado. instituições novas - que trouxeram ar fresco -, mas re- sistem instituições "amórficas", com professores que "vivem no passado" ou substituídos por investigadores não talhados para a docência. os alunos estão longe do centro de de- cisão. Ea maioria dos professores longe da pedagogia. Há uma autocrítica latente: os es- tudantes estão adormecidos. Acordá- los pode passar por reforçar a sua re- presentação no topo das instituições. o pagamento do ensino coloca os estudantes dos dois lados das barri- cadas. É, pelo contrário, transversal o apoio ao aumento das bolsas. Para que quem queira continuar o ensino, não seja privado disso.

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SOCIEDADE

"Abram as portasdas universidades"0 Maio de 68 pelosestudantes de hoje

No mês em quese assinalam50 anos desde

que as barricadastomaram oQuartier Latin,dias depois deos estudantesfranceses teremsaído para arua, o PÚBLICO

questionou osuniversitáriosportuguesessobre o que oslevaria a levantara voz. O poder, aprecariedade e ofuturo voltam aestar, em moldesdiferentes, emdiscussão. PorMargarida DavidCardoso

evisitando as frases-símbolo do Maio de

68, fomos ao início:universidade. E

questionamos os es-tudantes de hoje, 50anos após a revoltaque abanou a França

cujas repercussõesalgumas

fronteiras, sobre o que acham quedeve ser questionado. Eles criaramnovos slogans.

O ensino superior em Portugal não

precisa de uma revolta avultada, masde medidas revolucionárias. Dizem-no os jovens ouvidos pelo PÚBLICO

que quase transversalmente traçamum diagnóstico: o acesso, o papel dauniversidade na sociedade e o dos es-

tudantes na universidade tem de ser

questionado. Há instituições novas- que trouxeram ar fresco -, mas re-sistem instituições "amórficas", com

professores que "vivem no passado"ou substituídos por investigadoresnão talhados para a docência. Aí os

alunos estão longe do centro de de-cisão. E a maioria dos professoreslonge da pedagogia.

Há uma autocrítica latente: os es-

tudantes estão adormecidos. Acordá-los pode passar por reforçar a sua re-

presentação no topo das instituições.Já o pagamento do ensino coloca os

estudantes dos dois lados das barri-cadas. É, pelo contrário, transversalo apoio ao aumento das bolsas. Para

que quem queira continuar o ensino,não seja privado disso.

Carolina Alves. Quanto custoua voz dos alunos?A pacatez das coisas incomoda-a.Mas pior, na opinião da estudante deCiências da Comunicação na Univer-sidade do Porto, é o conformismodos estudantes face a mudanças queos prejudicam. "O ensino está assimhá tanto tempo. Os estudantes estãotão habituados que nem param pa-ra pensar se estão a ter um ensinoconstrutivo e aberto, que os estimulea aprender, a pensar e a desenvolve-

rem-se enquanto indivíduos".Carolina Alves, 20 anos, natural

de Bragança, vê uma "enorme dis-tância" entre alunos e professores."Somos colocados numa sala, fecha-

dos, com o professor a falar e onde o

nosso papel é ouvir. Não se cria umespaço de discussão, para haver umaaproximação suficiente para que ha-

ja uma relação que seja construtiva

para os dois lados", sublinha.O envolvimento das empresas - e

que Carolina descobriu ao interrogar-se sobre a presença de instituiçõesbancárias, por exemplo, no interiordas faculdades - causa-lhe confusão.E acredita que foi a favor dos inte-resses privados que os alunos "per-deram poder e voz" com o RegimeJurídico das Instituições de Ensino

Superior, aprovado em 2008. "Como passar dos anos e com o aumentode poder das empresas que actuamà volta das universidades - e agoramesmo lá dentro -, os interesses eco-nómicos e financeiros deram espaçoa que estes regimes jurídicos fossem

postos em prática", sublinha. Este

regime, que várias organizações deestudantes querem ver revisto, fezcom que na Universidade do Porto,por exemplo, existissem mais "repre-sentantes dos privados do que dosalunos" no Conselho Geral.

Carolina tem a percepção de quea maioria dos estudantes não estáciente destas questões. E isso impor-ta, porque "se os próprios [alunos]não tiverem iniciativa de questionare reivindicar, a universidade não vaisentir necessidade de mudar".

Matilde Albuquerque. Aprendernão deve ser um acto burguêsAos 21 anos, no terceiro da licenciatu-ra em Design de Comunicação, Matil-de Albuquerque é categórica: "Quemquisesse aprender devia ter sempreacesso ao ensino superior." E para talhaveria que mudar o ingresso, per-mitindo que todos os estudantes queterminassem o ensino secundáriopudessem continuar, como o fazemde forma quase automática noutrosciclos de estudos. Na opinião destaaluna da Faculdade de Belas Artesda Universidade de Lisboa, "negar a

educação é uma forma de opressão",que arrisca a que, em momentos de

crise, as universidades "sirvam ape-nas uma elite".

Pede a abertura das escolas, atra-vés de uma maior acessibilidade abolsas, e o foco do ensino nos estu-dantes. Uma mudança que, acredi-ta, teria inevitavelmente impacto noevoluir para uma sociedade mais jus-ta. "Nós temos cinco hipóteses paraescolher na entrada para a faculda-de e há países, como a França, on-de há 30. A barreira que temos estáacabada. A cultura geral e o acessoa ela por parte das pessoas evoluiu,mas nada mudou no acesso à uni-versidade." O preço da habitação e

dos transportes é outra questão quelevanta para caracterizar um acesso

que vê "muito pouco democrático".Pede que se "abram as portas dasuniversidades".Ana Roque. Esta precariedadeé uma inérciaHá muito no ensino que Ana Ro-

que, de 23 anos, conhece que a levaa notar a persistência de "professo-res caducos, de uma universidadecaduca". Não sendo todos assim,persiste nesta estudante de mes-trado em Direito a ideia de que "aacademia tem melhores investiga-dores do que professores", sendocerto que "nem toda a gente nasceucom espírito pedagógico", mas porobrigação ou necessidade acumulaos dois cargos. E é isso que subverteo objectivo da faculdade, acredita.

"O que interessa no fundo a deter-minadas franjas é ter boas notas, ter

uma boa dissertação de mestrado e

posteriormente uma boa dissertaçãode doutoramento para assegurar umlugar." A universidade não deve serum degrau, sublinha.

Natural de Pombal, Ana acha quehá "problemas que deixaram deexistir quando comparamos esta uni-versidade à de 68", mas outros queainda se impõem. "Supostamente háum acesso mais livre, mas que tem si-

do assombrado com taxas e taxinhas

que continuam a ser cobradas muitas

vezes indevidamente e injustamen-te." O seu caso serve de exemplo.Mesmo sendo beneficiária da acçãosocial escolar teve que pagar cercade 150 euros para se candidatar à se-

gunda fase de acesso ao mestradona Universidade de Coimbra, "semsaber se iria entrar".André Garcia. O ensinotornou-se uma fábrica"Os exames nacionais dizem-te qualo valor nesse processo. E medianteesse valor, fazes a compra de um cur-so. Depois memorizas coisas e falassobre elas. É um processo quase me-cânico. 0 ensino é uma espécie defábrica." André Garcia, de 21 anos,estudante na Universidade do Porto,não acha que o estado das coisas váficar como o descreve durante mui-to mais tempo. "Tal como a nossaeconomia já não é um capitalismofreudiano, o ensino vai tornar-se ca-da vez mais individualizado".

Mas, até lá, o estudante de Ciênciasda Comunicação vê a universidadetransformada numa empresa feitapara entregar pessoas para o merca-do. "Não devia ser só isso: devia for-mar pensadores", pois só esses "têma capacidade para mudar o mundo e

a mentalidade das pessoas".Ele próprio mudou a sua. "Acha-

va que ser estudante universitárioera outra coisa", que "teria espaçopara descobrir por" si mesmo, in-vestigar, estudar além dos conteú-

Slogans "Um homem não é estúpido ou inteligente.É livre ou não é"

Ser livre, em Maio de 1968, eraparticipar. Havia um entusiasmoconstante movido pela ambiçãode mudar o mundo velho. A

poesia estava na rua, apregoavamas paredes: "É proibido proibir","Sejamos realistas: peçamos o

impossível", "Sob as pedras da

calçada, a praia" — esta últimafrase era uma referência ao

"despir" do Quartier Latin, ondeforam colocadas as barricadas ese arrancaram as pedras da rua

para servir de arremesso à polícia.A revolta estudantil que se

estendeu aos trabalhadores— que ocuparam centenas defábricas em toda a França e

partiram para greves sucessivasa que terão aderido dois terçosdos trabalhadores franceses —

começou nas universidades.Exigia-se uma reforma do sistemaacadémico, a sua modernizaçãoe liberalização, a abertura doensino superior aos filhos dostrabalhadores, o fim do pudor das

relações entre sexos que já nãofazia sentido para os jovens, filhosdo baby-boom do pós-guerra.

A liberdade era palavraconstante numa época em que seescrevia nas paredes a definiçãode humanidade, aos olhos dosseus autores, a maioria delesanónimos: "Um homem não é

estúpido ou inteligente. É livreou não é." E a definição da suafelicidade: "A Humanidade sóserá feliz no dia em que o últimocapitalista for pendurado com as

tripas do último burocrata."Essas frases reproduziam

o questionar do Estado, dasociedade, da ordem instituída:"É preciso matar o polícia queexiste dentro de cada um de nós";"Todo o poder abusa. O poderabsoluto abusa absolutamente".E da ordem da democracia: "Seas eleições pudessem mudaro que quer que fosse, há muito

que teriam sido proibidas." E

das instituições: "Professores,vocês fazem-nos envelhecer"; "A

vontade geral contra a vontadedo General"; "O movimentopopular não tem templo". Queria-

se a "imaginação ao poder".E muitas dessas frases escritas,

em paredes e cartazes, ditasou cantadas, faziam a apologiado momento e do sonho: "Osonho é realidade"; "Vive oefémero"; "Decreto o estadode felicidade permanente". Uminstar constante à emergência dosentido crítico de uma sociedadeque os "escritores" viam amórfica:"Antes de escrever, aprenda a

pensar", "Abram o vosso cérebrotantas vezes como a braguilha".Contra o aborrecimento, pelainsolência: "Não queremos ummundo onde a certeza de nãose morrer de fome se trocacontra o risco de morrer deaborrecimento". M.D.C.dos programados pelos professores.

No terceiro e último ano, AndréGarcia deixará o curso com a sensa-

ção de que o "ensino está à esperade pessoas diferentes", porque as

instituições não sabem "o que é queas pessoas que saem do secundáriosabem, o que é que estão preparadaspara fazer, o que é que elas precisamque lhe digam". E como é possívelum ensino mais individualizado?"Basta pôr os estudantes nos centrosdas instituições", afirma.

André Ferrão. Ninguém meimpede de dizer o que acho,

mas ninguém me ouve"Os estudantes universitários achamtodos que devem ser precários. Háuma ideia de que o mercado está

mau, então nós temos que sofrer eaceitar o que nos dizem, porque é as-

sim que se aprende. É? Eu não acho."André Ferrão, de 23 anos, sente queo ensino deixou de se compadecercom o que os alunos querem - e mes-mo que tenha liberdade para falar,não se sente ouvido. "Actualmente oensino superior é visto como um ne-gócio. Só faria sentido que os alunostivessem um papel preponderantenaquilo que as universidades fazem,que não têm. O que importa é que eu

pague as propinas.""A universidade infantiliza os alu-

nos. Vejo os meus amigos de enge-nharias, medicina - os ditos cursosgrandes - que no fim sabem estudar,não sabem o que fazer além disso."É a descrição deste futuro jornalista,finalista na Universidade do Porto,daquilo que caracteriza como uma"linha de montagem", em que osalunos "entram e saem, mas poucascompetências desenvolvem".

Mas os jovens, diz, têm medo detornar públicos estes pensamentos."Ou porque acham que terão conse-

quências negativas se se insurgiremou que vão ficar sozinhos. Com umamobilização, acredito que as coisas

André Ferrão, Ana Roquee Carolina Alves acreditam queuma mudança é necessária,e possível, no ensino superior

mudassem, mas era preciso todoslutarmos pelo mesmo."

Lúcia Ribeiro. Temos canudosde latãoHá duas coisas que Lúcia Ribeiro,aos 23 anos, está a aprender a gerir:o excesso de expectativas e a faltade garantias. A finalista de Medicinano Instituto de Ciências BiomédicasAbel Salazar acha que há uma ques-tão estrutural no ensino que devialevar os estudantes à rua: a não li-

mitação de vagas. "Se tu pagas, tuentras. Mas depois não te dão pers-pectivas nenhumas, porque as vagasnão correspondem à necessidade detrabalho. Estás a tirar um curso, a

gastar dinheiro, para entrares nummercado que pode estar saturado,quando podias estar a fazer outracoisa muito mais proveitosa para ti."Lúcia reivindica uma mudança dementalidade para que os jovens pos-sam optar pela via profissionalizante"sem culpa e sem preconceitos".

A isto se juntam as expectativassocialmente construídas à volta doensino superior. "A sociedade está

naquele ponto em que acha que porteres um curso tens que saber exer-cer a profissão correspondente deimediato, mesmo que um curso nãote prepare para isso. Mas tambémnão te aceitam em trabalhos commenos exigência, porque tens umcanudo na mão. À partida investistemais de ti e terás ainda mais dificul-dade em encontrar alguma coisa se

não te adaptas a este mercado forma-tado". Lúcia sente que se a falta de

perspectiva se mantiver quando tivero canudo na mão, este pode "servir

apenas de passe para sair do país".

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