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11 DAS ORIGENS DO DIREITO FALIMENTAR À LEI Nº 11.101/2005 ANDRÉ FERNANDES ESTEVEZ * Sumário: Introdução; 1 – A evolução do direito falimentar; 2 – A evolução do direito falimentar no Brasil; 3 – A Lei nº 11.101/2005 situada nos principais elementos da evolução histórica; Conclusão; Bibliografia I NTRODUÇÃO O direito falimentar é um ramo conhecido por disciplinar a execução coletiva e que também serve para buscar solucionar as dificuldades econômico-financeiras das empresas. Aponta RUBENS REQUIÃO que a lei de falências é “o diploma que mais rapidamente se desgasta em confronto com a realidade dos fatos” 1 . Pela análise da história do direito falimentar e de meios análogos de execução coletiva, se constata uma permanente insatisfação da doutrina com os resultados obtidos com esta disciplina. SPENCER VAMPRÉ justifica com extrema clareza a inconformidade geral: “Qualquer que seja o valor de uma lei de fallencia, levanta sempre as mais vivas criticas. Isto provém de duas ordens de motivos. Em primeiro logar, deante da complexidade e do numero, dos interesses em jogo, é impossivel que a lei possa contentar a todos, ou mesmo, seja perfeita sob todos os pontos de vista. * Mestrando em Direito Privado pela UFRGS. Advogado. 1 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.12.

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DAS ORIGENS DO DIREITO FALIMENTAR À LEI Nº 11.101/2005

ANDRÉ FERNANDES ESTEVEZ*

Sumário: Introdução; 1 – A evolução do direito falimentar; 2 – A evolução do direito falimentar no Brasil; 3 – A Lei nº 11.101/2005 situada nos principais elementos da evolução histórica; Conclusão; Bibliografia

INTRODUÇÃO

O direito falimentar é um ramo conhecido por disciplinar a execução coletiva e que também serve para buscar solucionar as dificuldades econômico-financeiras das empresas.

Aponta RUBENS REQUIÃO que a lei de falências é “o diploma que mais rapidamente se desgasta em confronto com a realidade dos fatos”1. Pela análise da história do direito falimentar e de meios análogos de execução coletiva, se constata uma permanente insatisfação da doutrina com os resultados obtidos com esta disciplina. SPENCER VAMPRÉ justifica com extrema clareza a inconformidade geral:

“Qualquer que seja o valor de uma lei de fallencia, levanta sempre as mais vivas criticas.

Isto provém de duas ordens de motivos.

Em primeiro logar, deante da complexidade e do numero, dos interesses em jogo, é impossivel que a lei possa contentar a todos, ou mesmo, seja perfeita sob todos os pontos de vista.

* Mestrando em Direito Privado pela UFRGS. Advogado. 1 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.12.

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Em segundo logar, é fatal que, ao cabo de certo tempo, pela evolução dos interesses, comprehendidos na fallencia, se faça mistér uma reforma.

A estas considerações juridicas, se accrescenta outra, de ordem moral: – todos perdem na fallencia, e, por sentimento muito humano ainda que injustificado, põem á conta do legislador os prejuizos, impostos pela situação de facto.

Não se repara, então, que a lei não póde modificar tal situação, nem crear um activo, que não existe.

Dahi acerbas accusações á lei de fallencia em todos os paizes, e as multiplas reformas, que soffre diariamente em toda a parte.

SEGOVIA chamou a fallencia de ‘quadratura do circulo do direito commercial’.

O instituto mantém, na verdade, multiplas relações e dependencias, com o direito commercial em geral, com o civil, o internacional publico e privado, o judiciario e o constitucional; e com a economia politica, e a sciencia das finanças, e tal complexidade torna impossivel acautelar, completa e efficazmente, todos os direitos e interesses.”2

Em alguns casos, como ocorre habitualmente no direito comercial, o estudo de sua peculiar origem auxilia a melhor compreender os seus institutos e as suas características.

Em razão da “extrema complexidade” que envolve o direito falimentar devido à sua multidisciplinaridade3, bem como pelo eterno choque de interesses entre credores e devedor4, tal ramo do Direito sofreu com a edição de sucessivas novas regras, as quais, por vezes, retornavam ao mesmo ponto de legislações antecedentes, efeito da permanente insatisfação.

2 VAMPRÉ, Spencer. Tratado elementar de direito comercial. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1922, v.III, p.16-

17. 3 Assim refere TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE em razão de que o direito falimentar envolve o

direito comercial, bem como o público, o civil, o internacional, o criminal e o judiciário. VALVERDE, Trajano de Miranda. A fallencia no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Ariel, 1930, v.I, p.22.

4 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.39. Mais adiante se verá que a discussão se centra mais apenas entre credores e devedor, mas também envolvendo toda a coletividade.

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Algumas das soluções que atualmente vigem em nosso direito falimentar, adotadas pela Lei nº 11.101/05, ao contrário do que possa parecer, não são inovações, visto que foram experimentadas e abandonadas em experiências anteriores.

Assim, importante estudar as origens do direito falimentar, a fim de melhor compreender a Lei nº 11.101/2005, bem como o atual estágio de evolução do direito brasileiro em tal ramo5.

Desta forma, o estudo será dividido em três capítulos: o primeiro analisará a evolução do direito falimentar desde suas origens, o segundo estudará a evolução do direito falimentar no Brasil e o terceiro abordará a Lei nº 11.101/2005, com foco nos seus pilares básicos e traçando-se observações em relação ao histórico mencionado nos dois primeiros capítulos.

1 – A EVOLUÇÃO DO DIREITO FALIMENTAR

Nas civilizações da antiguidade clássica, outorgava-se ao credor o poder de coagir fisicamente o devedor à margem da prestação jurisdicional. “O devedor era aprisionado, escravizado e até morto pelo credor, caso não pagasse o devido.”6

Observa LUIZ INÁCIO VIGIL NETO que o pensamento tradicional das sociedades da antiguidade era de que a insolvência era uma irresponsabilidade e deveria ser severamente punida:

“Na antiguidade clássica existiu, de modo consensual, a ideia de a insolvência ser uma irresponsabilidade e, como tal, dever ser severamente punida ou com a morte, ou com a escravidão, ou com a prisão, ou com a tortura, ou com a humilhação, em concordância com o pensamento romano, verbatim: “decoctvs semper cvlposos praesvmiter donec contrarvm probetvr”. Essa ideia, que fora inicialmente absorvida pela cultura medieval, aos poucos foi sendo

5 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.55 – “A compreensão da matéria falimentar exige do estudante, antes de tudo, uma compreensão contextual do ambiente e das circunstâncias que determinaram os caminhos traçados pela humanidade”.

6 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.06.

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abandonada por uma outra de maior eficiência sistêmica na proteção do direito do credor.”7

Na Índia, o Código de Manu aponta que o credor poderia submeter o devedor à escravidão, inadmitindo-se excessos brutais. Por outro lado, as pesquisas históricas apontam que normalmente o credor não se apoderava do devedor, resolvendo-se a dívida com a prestação de serviços domésticos ou a regulação de trabalho. Não havia distinção de tratamento do crédito em relação à natureza do mesmo ou à profissão de seu titular8. Caso o devedor confessasse a dívida, haveria acréscimo de 5% e, em não o fazendo, o acréscimo seria em dobro. Ainda, “sendo o devedor de casta superior, o pagamento seria realizado em prestações, de acordo com suas possibilidades”9.

No período mais remoto da civilização egípcia, se admitiu a escravidão por dívidas, “o que, entretanto, durou pouco”, sendo abolida por uma lei de Boccoris10. Assim, após o período inicial desta civilização, somente se admitia a execução patrimonial. De outra ponta, caso o devedor falecesse sem solver as suas dívidas, era admitido ao credor tomar o cadáver em penhor “a fim de privá-lo das honras fúnebres. Coagiam-se moralmente, dessa forma, os parentes e amigos a resgatar o cadáver, pagando-se a dívida”11. Não há registro de execução concursal12.

O direito grego serviu como base para compilar a Lei das XII Tábuas. Nesta civilização, a regra era a servidão do devedor ao credor pela falta de pagamento das dívidas e se admitia que o credor pudesse alienar ou até matar o devedor. Na reforma de Solon, “inspirando-se talvez nas transformações humanitárias do direito egípcio, ordenou a liberação de todos os presos por dívidas e proibiu a possibilidade de tornar os seus corpos responsáveis pelos respectivos compromissos”13. Havendo bens do

7 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.52. 8 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.10. 9 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.06-07. 10 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.11. 11 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.07. 12 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.12. 13 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.07.

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devedor, estes seriam usados para o pagamento, dando-se preferência ao credor que o apreendesse14.

Entre os judeus, de início não se conhecia o direito concursal. O que havia era o compromisso pessoal do devedor de trabalhar para o credor por seis anos para que ficasse livre de quaisquer débitos no sétimo ano15. Somente mais tarde, com a instituição das hipotecas gerais, é que deixou de ser inalienável a propriedade imóvel e se passou a admitir a sujeição de todos os bens do devedor para o pagamento do débito16.

O marco jurídico do nosso direito está em Roma17, posto que tal civilização criou diversos institutos que se fazem presentes até os dias atuais, embora naquela época não houvesse propriamente o direito comercial, visto que não distinguiam os comerciantes dos não comerciantes18.

A Lei das XII Tábuas delineia a diferenciação entre execução singular e execução coletiva, “sendo esta a grande contribuição do direito romano ao nosso instituto”19.

Desde o início do Império Romano, admitia-se que uma dívida poderia ser confessada ou ser fruto de uma condenação20. O inadimplemento da obrigação imputava ao devedor a condição de decoctur (dissipador, pessoa arruinada)21.

Aponta LUIZ INÁCIO VIGIL NETO que a execução se dirigia, inicialmente, contra a pessoa do devedor (manus injectio):

“O devedor passava à condição de escravo, podendo o credor conduzi-lo à praça pública para ser vendido ou resgatado.

14 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.13. 15 Ibidem, p.10. 16 Anteriormente à quebra da inalienabilidade do bem imóvel, somente era possível ao credor a

fruição sobre o mesmo por anticrese – Ibidem, p.11. 17 Assinala ainda LUIZ INÁCIO VIGIL NETO que o direito romano não era homogêneo em sua longa

existência, bem como no início se baseava em costumes – VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.48.

18 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.13.

19 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.08. 20 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.48. 21 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.07.

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Inexitosa essa tentativa, sofria o devedor a capitis diminvtio maxima, quando se tornava propriedade do credor, que podia vendê-lo fora do território romano ou matá-lo e, quiçá, esquartejá-lo.”22

A hipótese de esquartejamento é assinalada pela doutrina como fruto da existência de pluralidade de credores, onde não seria possível deixar o cadáver com apenas um deles, sendo necessária a retalhação do devedor. Aponta RUBENS REQUIÃO que “os autores estão concordes em que a História, nas crônicas latinas, não registra nenhum caso da aplicação de norma tão cruel”23. No entanto, BENTO DE FARIA esclarece que não há registro da prática de esquartejamento do devedor no Império Romano, bem como não há consenso sobre o conteúdo da norma que teria constado no respectivo fragmento da Lei das XII Tábuas24.

Mesmo assim, “é o sistema arcaico da defesa jurídica, que culmina com a vingança privada. O importante, segundo êsse ponto de vista, não é tanto defender o direito lesado como castigar a quem o violou, matando-o ou reduzindo-o à escravidão”25.

Em 428 a.C. foi criada a Lex Poetelia Papiria26 e findou a manus injectio. A partir desde momento, no Império Romano somente se admitia a execução movida contra o patrimônio do devedor. Ainda, passou a se exigir sentença prévia para o exercício de medidas expropriatórias contra o devedor27.

22 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.49. 23 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.08. 24 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.15. 25 BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1952, p.47 –

Para RUBENS REQUIÃO: “O primitivo direito romano refletia, porém, a barbárie do princípio de que o corpo do devedor respondia pelas suas dívidas. Não se exigia a intervenção do Estado, pois o credor tinha o poder de, fazendo justiça pelas próprias mãos, sujeitar o devedor inadimplente”. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.07.

26 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.15 – RUBENS REQUIÃO aponta que há divergência quanto ao ano de edição da lei, lançando dúvida entre os anos 441 a.C. e 428 a.C. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.08.

27 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.49.

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Com o Pretor Rutilio28, criou-se a bonorum venditio, sistema pelo qual os bens do devedor eram alienados para o pagamento do(s) credor(es), e, havendo pluralidade, “oferecendo-lhes um determinado rateio, em percentual, para satisfação dos créditos”29. Dado que este procedimento, por falta de transparência e supervisão se prestava a fraudes, criou-se a missio in bona, instituto preliminar à venda do patrimônio, no qual o magistrado concedia imissão na posse do(s) bem(ns), mediante pedido prévio do credor e confissão da dívida, fuga ou ausência do devedor. O patrimônio deveria ser protegido pelos credores e, após, vendido e repartido o seu produto entre os mesmos, sob as ordens e controle do magistrado30.

Para auxiliar todo o processo, o pretor convocava os credores que, em assembleia, elegiam o magister (ancestral do administrador judicial)31, a quem competia tomar as medidas necessárias para o processamento do concurso de credores. No entanto, o processamento da venda dos bens era submetido à assembleia de credores e se dava publicidade para terceiros32. Como se vê, trata-se de figuras jurídicas que trouxeram maior transparência ao procedimento, oferecendo mais garantias aos próprios credores e originando o sistema do qual decorreu o atual direito falimentar.

Não sendo possível o pagamento de todos os credores, o devedor era marcado com nota de infâmia, perdia os direitos civis e era considerado como se “morto fosse”33.

Além das raízes da execução concursal, no Império Romano se observa o nascimento da concordata. Esclarece TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE:

“A sucessão mortis causa acarretava, no direito romano, a responsabilidade pessoal dos herdeiros do defunto, quer necessarios, quer voluntarios, por todas as dívidas dêle. Mas, quando o passivo da herança ultrapassava o ativo, nem sempre se conformavam os herdeiros com essa situação, e, ou renunciavam á

28 A maior parte da doutrina aponta que a criação da bonorum venditio se deu pelas mãos de RUTILIO

RUFFO. Por outro lado, esclarece BENTO DE FARIA que o autor deste instituto é o Pretor Rutilio, o qual não se confunde com o jurista (são pessoas distintas). FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.16.

29 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.08. 30 Ibidem, p.08-09. 31 Também denominado de curator. 32 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.09. 33 Ibidem, p.09.

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herança, ou se abstinham de aceitá-la. Se isso acontecia, eram os bens da herança vendidos, e, como o seu produto não bastasse para a satisfação de todos os credores, ficava a memoria do defunto assinalada com a infamia. Havia, assim, tanto da parte dos credores, para melhor defesa dos seus interesses, quanto da parte dos herdeiros, para resguardar da infamia a memoria do morto, vantagem em se acomodarem. Surge daí o pactum ut minus solvatur, pelo qual os credores concordavam com os herdeiros em reduzir os seus creditos ás fôrças da herança. Para a validade do acôrdo bastava que credores representando maioria de creditos, o aceitassem e fosse êle homologado pelo magistrado.”34

Mais adiante, foi criada a Lex Julia, a qual era destinada ao devedor infeliz, cuja impossibilidade de pagamento não se originava de truculência ou má-fé, mas sim de infortúnio. Por esta lei, permitia-se o uso da bonorum cessio, que era a transferência de todos os bens do devedor aos credores para saldar as suas dívidas. Seria uma forma de o devedor demonstrar que não pretendia lesar os credores35. Os bens eram distribuídos pro rata, respeitando-se eventuais direitos reais (jura in re). Caso fossem adquiridos novos bens, não poderiam ser expropriados sem resguardar o necessário para a família36. Esta é a formação da concordata preventiva.

Conforme WALDEMAR FERREIRA, a concordata “não sòmente deu impulso nôvo ao curso da falência, como fêz penetrar as idéias de crédito e de apaziguamento em instituição primitivamente marcada pelos sentimentos de ódio e de vingança”37.

Entre os meios que se encontravam à disposição para a solução da dívida (execução concursal ou concordata), cabia aos credores se reunir em assembleia para optar pelo caminho que lhes aprouvesse para o recebimento de seus créditos38.

34 VALVERDE, Trajano de Miranda. A fallencia no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Ariel, 1934, v.III,

p.07-08. 35 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.10. 36 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.17. 37 FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1966, v.15, p.259. 38 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.55.

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Sobre a formação do processo concursal no Direito romano, ressalva-se a posição de ALFREDO BUZAID, para quem não há esclarecimento satisfatório do funcionamento de sua execução processual:

“Apesar do zêlo e dos diligentes esforços com que a doutrina procurou aprofundar os estudos do antigo direito romano, sobretudo da Lei das Doze Tábuas, a verdade é que não logrou esclarecer, de modo satisfatório, o funcionamento da primitiva execução processual. Tem-se dela uma idéia imperfeita e a razão disso é o que os monumentos legislativos dessa época, que nos restam são poucos. Não tendo havido largo desenvolvimento do crédito na antiga sociedade romana, naturalmente deviam ser raras as normas especiais sôbre a execução.”

Com a queda do Império Romano39, houve o “fracionamento político do território europeu”40. Graças às miseráveis condições econômicas da época, tomaram-se inúmeras providências legislativas assistencialistas para proteger os devedores. Fruto dessas medidas, a economia se fortaleceu novamente41.

Na Idade Média, os produtores passaram a trabalhar em níveis que lhes permitissem gerar excedentes econômicos, o que aumentou a oferta de bens de consumo42.

Entre os produtores e os consumidores apareceram aqueles que integravam este novo sistema derivado da geração de excedente de produção, “os chamados comerciantes, que compravam dos produtores, garantindo para estes a venda de sua produção, e revendiam aos consumidores, permitindo a estes um conforto e uma variedade maior de ofertas”43.

39 MARCOS SATANOWSKY aponta que a queda do Império Romano representou um retrocesso para a

civilização: “La caída del Império Romano, la invasión de los bárbaros y el desmenuzamiento del mundo romano, fueron en su conjunto la señal de un sensible retroceso en la civilización y una universal disgregación social y política, debido a la disolución del Estado. Y la primera parte de la Edad Media, la era franca y feudal, fué también un retroceso y un largo embortamiente de la civilización”. SATANOWSKY, Marcos. Tratado de derecho comercial. Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1957, t.1, p.267.

40 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.50.

41 VIVANTE, Cesare. Instituições do Direito Comercial. 2 ed. Sorocaba: Minelli, 2007, p.19. 42 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.51. 43 Ibidem, p.51.

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As regras benéficas aos devedores e que serviram para recuperar a economia passaram a ser vistas pelos comerciantes como “fracas e piedosas”44.

Para se defenderem contra os abusos dos poderosos “e talvez para os cometerem por sua vez, os comerciantes uniram-se até o número de mil, seguindo a tendência da época, em corporações distintas das outras classes sociais”45.

Para se opor ao fraco e piedoso Direito comum, as corporações sentiram a necessidade de elaborar novos direitos que fossem mais adequados às necessidades de segurança jurídica do capitalismo da época que se desenvolvia com o comércio “assentes na liberdade de iniciativa e de concorrência num mercado livre”46.

Desta forma, nasce o Direito Comercial como fruto dos usos e dos costumes das corporações, mais tarde convertida em lei escrita, a Lex Mercatoria47. Esclarece FRANCESCO GALGANO:

“La storia della lex mercatoria è la storia di un particolare modo di creare diritto, la storia del ‘particolarismo’ che ha contraddistinto la regolazione normativa dei rapporti commerciali, rendendola diversa dalla regolazione normativa di ogni altra specie di rapporti sociali.

È, in origine, il ius mercatorum o lex mercatoria, ed è tale non solo perché regola l´attività dei mercatores, ma anche e soprattuto perché regola è diritto creato dai mercatores, che nasce dagli statuti delle corporazioni mercantili, dalla consuetudine mercantile, dalla giurisprudenza della curia dei mercanti.”48

O sistema de Direito Comercial criado pelos comerciantes era baseado nos princípios da boa-fé e da confiança. Não cumprir uma dívida dava fortes poderes aos credores, “pois o não cumprimento das promessas significava, no consenso cultural da época, uma afronta à boa-fé”49. 44 VIVANTE, Cesare. Instituições do Direito Comercial. 2 ed. Sorocaba: Minelli, 2007, p.19. 45 Ibidem, p.19. 46 ASCARELLI, Tullio. Panorama do direito comercial. Sorocaba: Minelli, 2007, p.08-09. 47 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.51. 48 GALGANO, Francesco. Lex mercatoria. Bolonha: Il Mulino, 2001, p.09. 49 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.51 – RIPERT, Georges. Traité Élémentaire de Droit Commercial. 7.ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1972, p.10: “Ce droit, imposé par les besoins

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Assim, o Direito Comercial nasceu como uma separação do Direito Privado para atender às necessidades dos comerciantes. Nos últimos dois séculos, foi feito o movimento inverso, com a gradual aproximação dos Direitos Civil e Comercial50.

O desenvolvimento da falência ocorreu primeiro na Itália, nas cidades de Veneza, Milão, Gênova e Florença, devido ao desenvolvimento mais avançado de seus comércios51, baseando-se no concursum creditorum do Direito romano e submetendo aos seus efeitos tanto o devedor comerciante quanto o não comerciante52.

économiques, est avant tout respectueux desconventions privées et il est imprégné de la considération de la bonne foi”.

50 RIPERT, Georges. Traité Élémentaire de Droit Commercial. 7.ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1972, p.07-11. Quanto ao movimento de unificação do Direito Privado, indaga: “Pourquoi une vente n´aurait-elle pas un statut unique, qu´elle soit passée par un commerçant on un non commerçant? Les contrats utilisés dans la vie commerciale sont les mêmes que ceux qui sont passés dans la vie civile. Pourquoi seraient-ils soumis à des règles différentes quant à la preuve ou à la compétence?”. Responde o autor: “Appréciation critique – La thèse de l´unité du droit privé n´est acceptable que réserve faite des règles relatives à l´exercice de la profession de commerçant. Ces règles existent dans tous les pays, même dans ceux que n´ont pas de droit commercial proprement dit. Sous cette réserve, il faut reconnaître qu´il est difficile de justificer l’existence de règles juridiques spéciales aux contrats passés par un commerçant et plus encore à ceux que, passés par des non-commerçant, sont qualifiés actes de commerce... En réalité, il y a des actes juridiques que par leur forme ou leur objet, ont un caractère commercial; et certains mécanismes juridiques qui sont du domaine du droit commercial... Les règles relatives aux commerçants se rapportent à un droit professionnel encore en formation; les autres devraient ètre clasées suivant leur nature.”

“Les nécessités du commerce ont imposé la modification de certaines règles du droit civil.” (10) “La plupart des institutions commerciales modernes (banques, sociétes, lettre de change, faillite),

trouvent leur origine dans les règles et pratique du commerce qui étaient suivies au Moyen Age dans les grandes cités maritimes et surtout celles de l´Italie... Leurs corporations sont puissantes et édictent des règlements.”

“La municipalité ou corps de ville est la confédération des marchands de la cité. Les statuts de la ville contiennent des règles applicables aux hommes qui se livrent au commerce et à leurs opérations. Le commerce maritime devint très actif par la succession des croisades et les relations régulières établies avec l´Orient firent connaître le droit byzantin. Les hommes de tous pays faisant le commerce ensemble ne pouvaient songer à invoquer le droit de leur cité. Il se créa ainsi une sorte de droit coutumier.”

51 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.17 – embora se aponte que o Direito comercial floresceu antes na Itália, assinale-se que a França teve seu primeiro Tribunal do Comércio (jurisdição especial) instituído já em 07.03.1294. LYON CAEN, Ch., RENAULT, L. Traité de Droit Commercial. 4.ed. Paris: Libririe Générale de Droit & de Jurisprudence, 1906, t.1, p.378.

52 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.10 – RIPERT, Georges. Traité Élémentaire de Droit Commercial. 7.ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1972, p.11: “Le droit romain n´est utile à connaître pour l´étude du droit commercial que par sa technique génerale des contrats et des obligations. Cette technique a été

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O comércio da época era desenvolvido sobre bancos ou balcões, onde eram expostas as peças objeto de compra e venda. Contudo, por vezes, não era possível a um dos comerciantes solver todas as suas dívidas. Ensina AUGUSTO AFONSO NETO que o poder concedido por este novo Direito ao credor o permitia “quebrar o banco ou o balcão do comerciante que não solvia suas obrigações. Daí, a expressão italiana banco rotto – banco quebrado –, que deu, em português, bancarrota; em francês, banqueroute; e em inglês, bankruptcy”53. Posteriormente, os credores passaram a observar que os bancos e balcões quebrados poderiam ser utilizados para a satisfação, mesmo que parcial, de seus créditos, motivo pelo qual passaram a não mais destruir o estabelecimento do devedor para permitir a sua posterior venda e distribuição do produto aos credores54.

Aos poucos, a falha no cumprimento das obrigações se afasta de sua vinculação à má-fé55. O termo decoctus (dissipador, pessoa arruinada) atribuído ao devedor foi substituído por fallitus/fallitor (quem se enganou ou enganou aos que nele confiaram)56. Num mundo de livre iniciativa já plenamente afirmada, “o risco econômico já era compreendido como um acontecimento normal da atividade, alcançável a todos, sem necessariamente significar a irresponsabilidade ou a má-fé”57.

Como o limite de ação dos credores passa a alcançar tão somente o patrimônio do devedor, com o qual seriam satisfeitos, os valores alcançados pela execução concursal deveriam ser distribuídos igualitariamente entre todos, o que se traduziu no princípio da pars conditio creditorum58.

Mesmo que se compreendesse a possibilidade de um eventual insucesso desprendido da má-fé, ainda assim a característica mais marcante das falências na época era a repressão penal contra os abusos cometidos pelo devedor:

utilisée par les juristes du Moyen Age. On s´est servi notamment dans le droit des faillites des procédés d´exécution sur les biens (venditio bonorum). Mais il n´y a pas de lien direct de filiation entre les règles du droit commercial et celles du droit romain.”

53 AFONSO NETO, Augusto. Princípios de Direito Falimentar. São Paulo: Max Limonad, 1962, p.18. 54 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.52. 55 Ibidem, p.53. 56 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.07. 57 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.54. 58 Ibidem, p.54.

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“A repressão penal é o traço característico do instituto falimentar nessa fase. Tanto na Itália como na França ou na Inglaterra, as normas falimentares visavam a reprimir os abusos cometidos pelos devedores desonestos, sob o mesmo título com que se puniam os delinquentes comuns. A prisão do devedor insolvável, com aplicação de penas vexatórias e degradantes, era uma constante do direito da época. Pode-se imaginar a severidade dessa repressão, quando se lê numa lei inglesa de 1676 que os comissários da falência tinham poderes muito extensos, podendo se apoderar da pessoa do devedor, dispor de seus bens, submetê-lo ao pelourinho e condená-lo à ablação de uma das orelhas, se tivesse fraudulentamente subtraído bens de um valor superior a vinte libras.”59

São criados o Estatutos de Milão (1341), as compilações genovesas (1498 e 1589), o Estatuto de Florença (1415) e o “Statuti della Corte di Mercanzia” (1577). Da apreciação conjunta, observa-se que: havia jurisdição falencial; declarada a falência, o devedor perdia disponibilidade dos bens; a execução era geral e admitia todos os credores; créditos considerados insubsistentes eram punidos com as penas da falsidade e possível multa e quem reclamava mais que o devido perdia todo o crédito; havia classificação dos créditos; divisão pro rata conforme a graduação dos credores; “era admitida a concordata, sendo imposta ao Juiz a obrigação de ajudar o falido, quer proporcionando-lhe auxílio para evitar que o mesmo fugisse, quer intervindo junto aos credores relutantes, a fim de conseguir a aceitação da proposta baseada em condições equitativas” e “preponderava o voto da maioria”; somente se admitia ação ou exceção líquidas; alguns Estatutos previam a perda de benefícios e outros a perda da cidadania e o banimento da comuna para os que não pagavam, sendo extensivos os efeitos infamantes aos filhos e ao cônjuge60.

No tocante à concordata, ao contrário do Direito romano, em que restava “condicionada exclusivamente a uma decisão dos credores”, no período medieval passou a legitimar-se por um acordo entre credores e

59 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.11. 60 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.18-19.

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devedor, sendo que o nome do instituto deriva da “concordância dos interessados”61.

Embora a Itália tenha dado os primeiros passos na criação do Direito Falimentar, não lhe foram possíveis a compilação e a unificação das legislações por ausência de centro político. Assim, coube à França, unidade monárquica sólida, elaborar as primeiras codificações62.

A primeira legislação francesa encontra-se no Regulamento de Lyon, de 02.06.1667. Antes havia apenas provimentos esparsos de caráter principalmente penal63. Tais provimentos eram, exemplificativamente, as Ordenanças de 1536 e 1560, a Declaração de 1570 e o Edito de Henrique IV, de maio de 1609. Este último declarou nulas as vendas e doações de bens pelo falido a filhos, herdeiros ou amigos e os que participavam eram considerados cúmplices “para sujeitá-los à punição exemplar”64.

Após, foi elaborada a Ordenança de 1673, a qual foi considerada a primeira forma do Código Comercial de 1807. Estabelecia a igualdade dos credores, a preponderância das decisões da maioria, mantendo a pena de morte para a falência fraudulenta. Não exigia julgamento declaratório da falência, nem retirava o falido da administração ou aludia ao período suspeito da falência (este restabelecido por declaração do Rei em 1702). Por estas razões, foi considerado insuficiente65.

Napoleão interveio na discussão do Conselho de Estado quando da preparação do Código Comercial para “exigir que a declaração da falência determinasse, necessàriamente, a prisão do falido e de sua mulher, reduzindo seus direitos aos simples alimentos”66. Tal postura de Napoleão ocorre porque para ele “em toda falência existe um corpo de delito, visto que prejudica os credores. É possível que ele não tenha má intenção, embora isso seja raro: mas o falido se defenderá”67. O Código foi promulgado em 22.09.1807 e embora com vícios e imperfeições “puede considerarse como el

61 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.55. 62 VIVANTE, Cesare. Instituições do Direito Comercial. 2.ed. Sorocaba: Minelli, 2007, p.21-22. 63 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.19. 64 Ibidem, p.20. 65 Ibidem, p.20. 66 Ibidem, p.21. 67 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.12.

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padre de los modernos códigos de comercio”68. Temos os seguintes efeitos de leis posteriores: criar um novo instituto denominado liquidação judiciária com efeitos atenuados para o comerciante de boa-fé (Lei de 04.03.1889); regulamentar melhor a concordata para caso de abandono de ativos (Lei de 17.07.1856)69; regular a situação do locador dos imóveis arrendados pelo falido (Lei de 12.02.1872)70.

O texto do Código Comercial francês foi usado em diversos Estados da Itália até 1815 (Piemonte, Liguria, Reino da Itália, Reino de Nápoles, Toscana e Estados Pontifícios), quando cessou o domínio da França (menos em Toscana e Parma). Nos outros Estados, foi revigorado o antigo sistema romano do decoctur71.

Em Piemonte, foi criado em 1842 o Código Albertino, delineado com base no francês e transferido para as outras províncias da Itália entre 1859 e 186072.

Com a unificação italiana, também surgiu a unificação legislativa com o Código Comercial de 25.06.1865 modelado por Albertino. Com evolução “nada notável”, em 1869 foi nomeada uma comissão para estudar a sua reforma. Assim, foi criado o novo Código de 1882 (que introduziu a moratória). Em 1894, foi criada nova comissão para a reforma do diploma legal. A parte do Código Comercial que se referia às falências foi modificada pela lei de 24.05.1903, que instituiu a concordata no lugar da moratória e estabeleceu disciplina para as pequenas falências. Após, com o Decreto de 16.03.1942, o Direito falimentar passou a constituir disciplina especial73.

Na Alemanha, não havia sistema organizado de falência até o Século XVI. A execução recaía sobre a pessoa do devedor e havia rigor comparável ao início do Império Romano, o que somente foi modificado em 1564 com a

68 SUPINO, David. Derecho Mercantil. Tradução de Lorenzo Benito. Madri: La España Moderna, 1910,

p.27. 69 Sobre a concordata por abandono de ativos: LYON-CAEN, Ch.; RENAULT, L. Traité théorique et

pratique des faillites, banqueroutes et liquidations judiciaires. 5.ed. Paris: Librairie Générale de Droit & de jurisprudence, 1936, t.2, p.81 – “Le concordat par abandon est voté, comme le concordat simple, dans l´assemblée des créanciers que est convoquée après la fin de la procédure de vérificarion et d´affirmation des créances, pour se prononcer sur la solution à donner à la faillite.”

70 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.21.

71 Ibidem, p.22. 72 Ibidem, p.22. 73 Ibidem, p.23-24.

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ius lubecense e a reforma de Nuremberg. Até 1877, cada Estado alemão tinha o seu direito falencial “com a preponderância da determinação judicial e o sacrifício da autonomia dos credores”74. A lei de 1877 tornou-se extensiva a todo o Império e não fazia distinção entre civil e comerciante para ser sujeito à falência75. Posteriormente foi publicada a lei falimentar, de 05.10.1994, trazendo como principal novidade a criação do “procedimento falimentar do consumidor” com a finalidade de racionalizar os custos da falência e a otimização dos ativos para pagamento aos credores76.

Na Inglaterra, o primeiro regramento falencial data de 1542, “consagrando disposições severas para os devedores fraudulentos”, época em que surgiu um aglomerado de leis sucessivas (statute law), sem clareza e acessibilidade para a pesquisa histórica. Em 1861, perdeu-se a distinção entre comerciante e não comerciante77.

Nos EUA, há três leis sucessivas, datadas de 04.04.1800, 19.08.1841 e 02.03.186778. Após, houve a promulgação, em 01.07.1898, do Bankruptcy Act, o qual, em síntese, basicamente, previa a liquidação da empresa.

Os institutos da falência e da concordata se mostraram insuficientes para atender aos vultosos interesses das grandes empresas modernas. Ocorre que vivemos “em pleno terceiro estágio, no qual a falência passa a se preocupar com a permanência da empresa e não apenas com sua liquidação judicial”79.

Ensina LUIZ INÁCIO VIGIL NETO:

“Já anteriormente consolidado na União Soviética através do governo marxista-lenista, em processo inicial na Alemanha e na Itália, através do nacionalismo radical nazista e fascista, e nos Estados Unidos da América a partir do New Deal, o intervencionismo do Estado na Economia, absoluto nos três primeiros modelos e coadjuvante no último, começou a ser visto como elemento essencial ao crescimento econômico das nações.

74 Ibidem, p.24-26. 75 Ibidem, p.24-26. 76 ASHTON, Peter Walter. A nova lei falimentar alemã. Direito & Justiça. Porto Alegre: EDIPUCRS,

n.31, p.143-144, 2005. 77 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.31-32. 78 Ibidem, p.33. 79 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.12.

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A recessão que afetava a economia norte-americana implicava o fechamento de postos de trabalho. O fechamento de postos de trabalho implicava o desemprego. O desemprego implicava perda de renda. A perda de renda implicava a diminuição da capacidade de consumo. A diminuição da capacidade de consumo implicava a diminuição da demanda. A diminuição da demanda implicava a retração da capacidade produtiva. A retração da capacidade produtiva implicava o fechamento de postos de trabalho. O fechamento de postos de trabalho implicava mais desemprego e a espiral recessiva não parava de crescer, a ponto de afetar a solvência das empresas com uma crise epidêmica da economia do país.

[Omissis]

Estando as empresas diante de uma crise conjuntural, talvez o caminho a trilhar não fosse tão somente a busca de um projeto apenas macroeconômico. Talvez o Direito pudesse também contribuir com o processo de recuperação da atividade econômica.”80

RUBENS REQUIÃO endossa as palavras de FÁBIO KONDER COMPARATO para afirmar que a falência se afastou nos direitos americano e francês de seu “processualismo ingênuo”81. Por isso, em 1938, o Chandler Act introduziu a recuperação de empresas – reorganization – no Direito norte-americano82. Por esse instituto, busca-se a reorganização da empresa, e não mais a mera concordata. Trata-se de instrumento “inspirado em elevados propósitos socioeconômicos, pois a insolvência da grande empresa – e se aplica apenas às sociedades anônimas – pode afetar a estabilidade econômica da região em que opera”. Ainda, a administração da sociedade, por este mecanismo, é transferida em trust a um síndico como mecanismo complementar83. Após, os mecanismos de preservação da empresa foram mantidos no Bankruptcy Code, de 197984.

80 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.56-57. 81 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.13. 82 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.57. 83 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.13. 84 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008, p.57.

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Muitas legislações, como a germânica e a portuguesa, permitiram que o credor que fosse mais “aflito” ou “diligente” e procedesse à penhora antes dos demais adquiria direito real e tinha preferência no pagamento. Mas foi com o Código francês de 1673 que se fez preponderar o princípio de igualdade entre todos os credores (pars conditio creditorum)85.

Segundo BENTO DE FARIA, as legislações modernas podem ser divididas em três grupos: latino ou francês; germânico; anglo-saxão. No primeiro grupo86, se ajustam as falências que não sujeitam o devedor não comerciante à sua incidência e se orientam pela permanência das incapacidades do falido ou restrições de certos direitos até a sua reabilitação. O segundo grupo87 caracteriza-se pela aplicação extensiva do concurso a quaisquer devedores, comerciantes ou não, “salvo certas limitações quanto a êstes últimos, fazendo cessar as incapacidades dês que seja encerrado o processo”. O terceiro grupo88 “torna extensiva a falência aos não comerciantes, assegura à autoridade pública poderes especiais de vigilância, facilitando a cessação das interdições do devedor e permitindo sua libertação, embora contra a vontade dos credores”89.

Diferença substancial entre os regimes falimentares se verifica quanto à extensão do instituto aos não comerciantes – atualmente denominados empresários. Para BENTO DE FARIA, “a tendência do direito moderno é, realmente, tornar extensiva a falência aos devedores não comerciantes, unificando assim o processo do concurso de credores”. Registre-se que estabelecer um único regime para a liquidação dos débitos não importa, necessariamente, sujeitar o não comerciante ao mesmo regime de falência e seus efeitos90.

2 – A EVOLUÇÃO DO DIREITO FALIMENTAR NO BRASIL

Quando o Brasil foi descoberto, vigoravam as Ordenações Afonsinas, de 1446, as quais adotavam o concursum creditorum do Direito romano. 85 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.11. 86 À época, BENTO DE FARIA inclui nesta classificação Portugal, Bélgica, Bulgária, Rumânia, Espanha

(que teria particularidades do sistema germânico), México, Argentina, Egito, Grécia, Chile e Japão.

87 À época, BENTO DE FARIA inclui nesta classificação Áustria, Hungria, Rússia, Holanda, Noruega, Suécia, Dinamarca e Suíça.

88 À época, BENTO DE FARIA inclui nesta classificação Inglaterra e EUA. 89 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.27-33. 90 Ibidem, p.33-34.

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Admitia-se a cessão dos bens, bem como autorizava-se a concessão de prazo de 40 dias ao devedor para que apresentasse amigo ou parente que se responsabilizasse pelas dívidas91.

Em 1521, entrou em vigor as Ordenações Manuelinas, conservando “os mesmos princípio e sistemática do Afonsino”92. De uma forma geral, dava-se prioridade ao crédito do primeiro exequente. Caso o devedor não efetuasse o pagamento, deveria ser preso até o adimplemento de seus débitos93.

Em 1603, entraram em vigor as Ordenações Filipinas, tendo maior influência no Brasil em razão do florescimento da Colônia.

Esta legislação seguiu a tradição das Ordenações que lhe antecederam, impondo a prisão ao devedor até o pagamento integral de seus débitos94. Mercadores e cambistas que fugissem com mercadorias alheias ou dinheiro que tomassem a câmbio ou escondessem seriam “havidos por públicos ladrões e roubadores e como tais castigados, com as penas que a êste eram aplicadas e perdessem a nobreza e liberdade de que gozavam”. Não sendo possível aplicar a pena de morte ou açoite, conforme malícia ou engano do devedor, deveria o mesmo ser degredado para galés e proibido de exercer a profissão. Não era dado direito de quitação ou moratória e credores poderiam executar os bens que viessem a ser adquiridos. Sabendo que algum mercador fugiu sem pagar os credores, se deveria ir na sua casa à procura da “verdade”, do Livro Razão, bem como seriam arrolados os bens e anotados os credores, procurando saber a causa da quebra95.

Durante a vigência das Ordenações Filipinas, foram introduzidas as seguintes modificações: o Alvará de 13.11.1756 estabeleceu melhores e mais precisas regras de falência e estabeleceu a admissibilidade dos créditos por salários e soldadas; o Alvará de 01.09.1757 determinou que se separassem 10% do ativo ao falido de boa-fé; o Alvará de 17.05.1750 autorizava a incidência de juros nas falências; o Alvará de 30.05.1759 determinava que se apurassem os procedimentos do falido para verificar se havia boa-fé; o

91 AFONSO NETO, Augusto. Princípios de Direito Falimentar. São Paulo: Max Limonad, 1962, p.44-45. 92 Ibidem, p.45. 93 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.15-16. 94 Ibidem, p.16. 95 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.35-36.

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Alvará de 12.03.1760 esclarecia que os 10% do ativo somente seriam concedidos ao falido que se apresentasse à Junta de Comércio e fosse reputado de boa-fé, bem como exibisse os livros escriturados com clareza e mais aqueles que principiaram os seus negócios; e, por fim, o Alvará de 29.03.1770 determinava que os processos que envolviam o falido competiam privativamente à Junta do Comércio96.

Em razão do Alvará de 18.08.1769 e da Lei de 30.10.1823, se permitiu a aplicação subsidiária das leis das nações civilizadas, com aplicação preferencial do Código Comercial francês de 180797.

Somente em 26.06.1850 foi editado o primeiro Código Comercial no Brasil98, o qual regulou o Direito falimentar no título terceiro e representou um marco no Direito Comercial brasileiro99. Conforme informa OCTAVIO MENDES, o referido diploma legal seguiu a tradição do Código Napoleônico, tendo como norte do instituto a apuração criminal:

“A esse Codigo se filia o nosso Codigo Commercial de 1850. Por elle o interesse principal da fallencia estava na apuração da responsabilidade criminal do fallido. Só depois de ultimada a instrucção do processo da quebra e qualificada a fallencia, é que se podia iniciar o processo da liquidação da massa (art. 842).”

Sobre esta preocupação exagerada dedicada ao aspecto penal do instituto falimentar, AUGUSTO AFONSO NETO traça crítica apontando que o referido diploma legal exigia o término da “avaliação criminal” para permitir o pagamento do passivo, enquanto que as medidas deveriam ser independentes e simultâneas100.

A falência poderia ser requerida pelo credor e até ser declarada ex officio quando o estado de insolvência fosse notório101.

Embora a concordata já existisse no Direito romano, em nosso direito o instituto somente foi introduzido com o Código Comercial, de 1850,

96 Ibidem, p.36-37. 97 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.21. 98 Lei nº 556 regulada pelo Regulamento nº 738, de 25.11.1850, e posteriormente modificado pelo

Decreto nº 1.597 de 01.05.1855. 99 MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Atualização de Ricardo

Negrão. Campinas: Bookseller, 2000, p.111. 100 AFONSO NETO, Augusto. Princípios de Direito Falimentar. São Paulo: Max Limonad, 1962, p.53. 101 Ibidem, p.49.

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“servindo de modêlos os codigos francês, espanhol e português”102. Inicialmente, apenas a concordata suspensiva da falência encontrava-se prevista no art. 797, pela qual os credores eram reunidos em duas oportunidades, sendo a primeira para receber um relatório do juiz sobre o estado e as causas da falência, bem como a lista de credores. Na segunda, os credores deliberavam sobre a concordata, a qual era inadmissível em caso de culpa, fraude ou anterior concessão do benefício103. Para a concessão da concordata, exigiam-se requisitos especiais, os quais deveriam ser atendidos, sob pena de decretação da falência. Com o famoso caso do Visconde de Mauá, logo se percebeu a inaptidão da norma, o que obrigou a sua posterior modificação:

“Para ser válida a concordata, o art. 847, alínea terceira, exigia que fosse concedida por credores que representassem pelo menos a maioria em número, independentemente de seu comparecimento à assembleia, e dois terços do valor de todos os créditos sujeitos aos efeitos da concordata. Esse preceito tornou-se famoso, pois impediu que o Visconde de Mauá – exemplo edificante do espírito empresarial dos brasileiros – obtivesse concordata de seus credores. Tendo sofrido grande infortúnio em seus negócios, o que levou à falência seu poderoso império econômico – não pôde reunir na assembleia os 3.000 credores dispersos pelo mundo a fora, tornando-se impossível consequentemente sua concordata. Esse acontecimento levou-o a representar ao Parlamento, em 1879, expondo a iniquidade do preceito legal. Precipitou-se, então, o movimento de revisão da Terceira Parte do Código, resultando na Lei nº 3.065, de 1882. Para a concessão da concordata, exigia-se, daí por diante, a maioria dos credores que comparecessem à assembleia, tornando então exequível a concordata por abandono.”104

A partir do inusitado caso do Visconde de Mauá, foi elaborada a Lei nº 3.065, de 06.05.1882, a qual modificou o critério de formação da maioria

102 VALVERDE, Trajano de Miranda. A fallencia no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Ariel, 1934, v.III,

p.12. 103 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.21-22. 104 Ibidem, p.22.

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para fins de aprovação da concordata, bem como instituiu a concordata por abandono de bens105 e a concordata preventiva106.

O art. 898 do Código Comercial previa a possibilidade de se conceder moratória ao devedor, o que seria deferido pelo magistrado e sem a necessidade de anuência dos credores107.

Constatou-se a impotência do sistema falimentar para impedir fraudes e, com a quebra da Casa Bancária Vieira Souto, em 1864, ocasionando crise no Rio de Janeiro, o sistema foi alvo de severas críticas. Para regular o caso, foi editado o Decreto nº 3.309, de 20.09.1864, logo em seguida revogado pelo Decreto nº 3.516, de 30.09.1865, por ter cessado a razão de sua existência. Nascia no Direito brasileiro a liquidação especial forçada dos estabelecimentos bancários108.

Assinala BENTO DE FARIA que em poucos anos “tornaram-se patentes lacunas e imperfeições” do Código Comercial, de 1850. A lei era desastrosa para os credores, um dos aspectos que justificou a alteração da mesma109:

“A reforma tornava-se necessária, bastando para demonstrá-lo êste trecho da justificação do Projeto apresentado pelo Ministro da Justiça, Cons. Nabuco de Araujo: ‘O nosso processo das falências, lento, complicado, dispendioso, importa sempre na ruína do falido e no sacrifício do credor.

Uma dolorosa experiência tem demonstrado que os credores, apenas das fraudes de que são vítimas, descoroçoados do resultado, abstêm-se dêsses processos eternos, e querem antes aceitar concordatas as mais ruinosas e ridículas’.”110

Em razão das substanciais mudanças políticas ocorridas com a proclamação da República, foi ordenada a elaboração de nova legislação

105 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.38. 106 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.23. 107 Ibidem, p.22. 108 Ibidem, p.22-23. 109 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.38. 110 Ibidem, p.38.

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para o Direito falimentar, a qual foi criada em apenas 14 dias111, culminando na publicação do Decreto nº 917, em 24.10.1890.

Segundo OCTAVIO MENDES, “é extraordinario e incrivel que em tão curto espaço de tempo pudesse ser redigida uma peça tão importante e que tão funda revolução veio fazer em nosso Direito Commercial”. O diploma legal muda o critério para a decretação da falência, passando da insolvabilidade para a impontualidade no pagamento. O exame da impontualidade era feito com o uso dos livros contábeis, o que gerava grande embaraço em razão da demora do devedor em atender à ordem de exibição dos documentos necessários à prova da dívida e, por conseguinte, alongando as falências. Com o encilhamento de 1891112, “imaginem-se o sem numero de fallencias e cessões de bens fraudulentas, que se processaram á sombra do novo Decreto, acabando por o desmoralisar completamente”. Permitia a cessão de bens para a quitação das dívidas, necessitando apenas a boa-fé aferida pelo juiz e o parecer favorável de uma comissão de sindicância, com o que “deram o mais deploravel resultado, vendo-se muitas vezes um devedor fraudulento conseguir plena quitação pela entrega a seus credores de um estabelecimento commercial inteiramente delapidado”113.

Embora RUBENS REQUIÃO assinale que o Decreto nº 917 tenha surgido com o propósito de moralizar as falências, trazendo “um passo à frente na modernização do instituto falimentar”114, para AUGUSTO AFONSO NETO “foi sobretudo pela prodigalidade de meios facultados ao devedor para obstar a decretação da falência (cessão de bens, moratória, acôrdo extrajudicial e concordata preventiva) que o Decreto 917 propiciou maiores fraudes e abusos”115.

111 Ibidem, p.39 – “O próprio Cons. Carlos de Carvalho, isso mesmo, lealmente, declarou nestes

termos: ‘O Dec. nº 917, de 24 de outubro de 1890, pode ter, como tem, muitos defeitos, tal a precipitação com que foi elaborado.

Em quatorze dias não era possível produzir-se melhor. Aos Tribunais e aos jurisconsultos cumpre, nos pontos duvidosos ou irritantes, executá-lo de

modo a fazê-lo produzir tudo quanto de bom encerra. Se um artigo, ou uma disposição, aparentemente áspera se presta a uma interpretação que

respeite os institutos da reforma – conciliar os interêsses dos credores e dos devedores – não há motivo para deixar de proclamá-la e de manter na reforma sua feição característica”.

112 Evento histórico promovido no governo de Deodoro da Fonseca pelas mãos do Ministro da Fazenda, RUI BARBOSA, para o fim de estimular a industrialização do Brasil.

113 MENDES, Octavio. Fallencias e concordatas. São Paulo: Saraiva, 1930, p.05-06. 114 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.23. 115 AFONSO NETO, Augusto. Princípios de Direito Falimentar. São Paulo: Max Limonad, 1962, p.56.

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Após 12 anos, em razão de “clamores das associações comerciaes, e da imprensa”116, foi publicada a Lei nº 859, de 16.08.1902117, sobre a qual se depositou enorme confiança, visto que visava a impedir conluios entre credores e devedor.

A principal inovação da Lei nº 859/1902 para impedir conluios era a nomeação de síndicos constantes em listas organizadas pelas Juntas Comerciais118 entre “comerciantes de fama ilibada, notadamente abonados e que conhecessem os negócios”119. A regra era adotada por legislações falimentares importantes à época, como o Código Comercial italiano de 1882:

“El síndico es nombrado provisionalmente por el Tribunal en la sentencia declarativa de la quiebra; debe elegir-se entre las personas extrañas á la masa de los acreedores que no sean parientes ó afines del quebrado hasta el cuarto grado inclusive, y se encuentren incluídos, á ser posible, en la lista correspondiente formada por la Cámara de comercio (arts. 714-716). El síndico provisional se convierte en definitivo por decreto de Tribunal, después de oídos á este propósito los acreedores en la primera junta que celebren fijada en la sentencia declarativa.”120

TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE menciona que a “tendência atual é para afastar os credôres da administração do patrimonio falido” porque “além de lhes faltar comumente a necessária competência, motivam, não raro, frequentes conflitos de interesses”121.

Mesmo que se pudesse considerar avançada ou difundida a regra que previa a nomeação de síndicos por listas, a mesma não foi bem aceita à época122. O trecho que segue esclarece a opinião majoritária da época sobre a “moralizante” lei falimentar:

116 VAMPRÉ, Spencer. Tratado elementar de direito comercial. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1922, v.I,

p.42. 117 Regulada pelo Decreto nº 4.885, de 02.06.1903. 118 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.23. 119 FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1966, v.15, p.04. 120 SUPINO, David. Derecho Mercantil. Tradução de Lorenzo Benito. Madri: La España Moderna, 1910,

p.554. 121 VALVERDE, Trajano de Miranda. A fallencia no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Ariel, 1932, v.II,

p.32. 122 FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1966, v.15, p.05.

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“Contradições, absurdos, portas-abertas à mais deslavada fraude, escreve CARVALHO DE MENDONÇA, encontravam-se em abundância nessa obra, apresentada a salvação do comércio honesto!!

Mutilou-se sem critério o Dec. nº 917, de 1890.

A idéia de síndicos nomeados pelas Juntas Comerciais deu na prática funestos efeitos: sacrificou a reforma.

Os quarenta síndicos do Distrito Federal foram alcunhados de Ali-Babás – alusão ao conhecido conto – Ali Babá e os Quarenta Ladrões.”123

OCTAVIO MENDES fez coro às duras críticas formuladas contra a Lei nº 859, de 16.08.1902, e apontou que, embora tenha se extinguido a cessão de bens para quitar as dívidas do devedor, em compensação surgiram outros problemas:

“Novos males surgiram, sendo o principal delles o resultado da nomeação dos syndicos, que em vez de recahir sobre credores, como credores, como determinava o Decreto 917, só podia recahir sobre os membros de uma lista especialmente para esse fim organisada pelas Juntas Commerciaes.

Creou, assim, a Lei nº 859 uma nova classe de empregos, qual era o de ‘syndicos da fallencia’. Podendo as Juntas Commerciaes organisar a lista de ‘papaveis para syndicos’, com os nomes que bem lhes approuvessem, e podendo os juizes nomear syndicos a qualquer dessa lista, imaginem-se os resultados que deu uma tal innovação. Mais de uma vez se viu uma fallencia importantíssima confiada á syndicancia de um individuo sem idoneidade alguma, moral ou material, o qual só servia para ajudar o fallido a delapidar a massa e forçar os credores a acceitarem uma concordata irrisoria.”124

Tamanho foi o alvoroço provocado em desfavor da Lei nº 859 que “não haviam decorridos dois annos da promulgação desta lei, quando o Congresso Nacional já se resolvia a decretar uma nova lei de fallencias”125.

123 VALVERDE, Trajano de Miranda apud FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas.

Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.40. 124 MENDES, Octavio. Fallencias e concordatas. São Paulo: Saraiva, 1930, p.07. 125 Ibidem, p.08.

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Após seis anos de vigência da Lei nº 859/1902, com a finalidade de impedir as “fraudes e procrastinações”, CARVALHO DE MENDONÇA elaborou a Lei nº 2.024, publicada em 17.12.1908126.

A Lei 2.024/1908 resgatou parte do modelo criado pelo Decreto nº 917/1890 e foi considerada à altura das legislações de países mais desenvolvidos127.

Em síntese, a Lei nº 2.024/1908 permitiu regime de fiscalização mais rigoroso, a ponto de que “com um syndico consciencioso e um juiz intelligente e honesto, nenhum credito phantastico conseguirá escapar ás malhas da verificação judicial”. A assembleia de credores deveria ser designada pelo juiz, indicando-se previamente dia, hora e lugar para que ocorresse. As novas disposições visavam a permitir maior garantia ao direito dos credores e foi introduzido o sistema de depósitos judiciais, tudo com a finalidade de oferecer maior transparência ao processo e à liquidação da massa falida128.

Na opinião de OCTAVIO MENDES, a Lei nº 2.024/1908 “é excellente, mas para produzir todos os bons resultados de que ella é capaz, exige syndicos e liquidatarios conscienciosos, e um juiz honesto, intelligente e illustrado. Infelizmente, são qualidades que nem sempre se encontram nessas pessoas”129.

Em 09.12.1929, foi editada a Lei nº 5.746, a qual reformava a Lei nº 2.024/1908130. Na extensão das modificações, o Relator do projeto de lei aponta que se limitava a “aperfeiçoar o mecanismo” nos pontos em que o “aparelho” mostrou não funcionar com precisão131.

126 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.23. 127 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.40. 128 MENDES, Octavio. Fallencias e concordatas. São Paulo: Saraiva, 1930, p.09. 129 Ibidem, p.09. 130 FARIA, Bento de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F.,

1947, t.1, p.41. 131 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.24 – FARIA, Bento

de. Direito Comercial IV: falência e concordatas. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F., 1947, t.1, p.41-42: “É que, elaborada a Lei nº 5.746, para atender à imposição de diversas circunstâncias fluentes na época de sua promulgação, circunscreveu-se ela à solução de problemas de pormenor, respeitada a estruturação de princípios estabelecida pela Lei nº 2.024.

[Omissis] Além disso, concurso de credores e de créditos, a falência promove a concentração de tôdas as

relações econômicas do devedor.

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Em razão de nova insatisfação com o regime falimentar vigente, em 21.06.1945 foi publicado o Decreto-Lei nº 7.661. Entre as principais modificações trazidas, foram reforçados os poderes do magistrado, diminuiu-se a influência dos credores, abolindo-se a assembleia de credores para a aprovação da concordata e as concordatas deixaram de ser um contrato para tornarem-se um benefício concedido pelo Estado132.

A mudança principal introduzida pelo Decreto-Lei estava no fato de que a concordata era concedida ou não pelo juiz, em vez de ocorrer o tradicional consenso de credores. Ao passo que as leis anteriores tinham “inspiração privatística” e conferiam maior predominância ao interesse dos credores, a nova lei considerou mais apto o “impulso oficial” “para a tutela do próprio interêsse comum dos credores, elevado ao plano de interêsse público”133.

TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE, autor do projeto original do Decreto-Lei 7.661/1945, escreveu em seus comentários sua opinião em relação à assembleia de credores e à necessidade de afastá-la da concordata:

“Por manifesto desinterêsse dos credores pelo órgão que, segundo o antigo regime legal, devia atuar na defesa dos direitos dêles, a assembleia dos credores sempre funcionou mal, desempenhando no processo de falência um papel secundário. A lei vigente nulificou-a, pode dizer-se.”134

A lei que a regula, deve ter consonância com os fatos econômicos segundo se apresentam no

mundo dos negócios. A evolução rápida e contínua daqueles fatos acelerou as causas determinantes da revisão da lei,

para manter-se satisfatório sincronismo com a realidade. E no Brasil, quatro décadas de vigência constituem longevidade bastante para uma lei de

falências”. 132 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.24. 133 AFONSO NETO, Augusto. Princípios de Direito Falimentar. São Paulo: Max Limonad, 1962, p.59-60 –

FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1966, v.15, p.266: “Rompendo com o regime geral da concordata, mantido por leis estrangeiras recentes, como a italiana de 1942, segundo a qual a concordata se reputa aprovada pelo consenso de credores com direito de voto, que representem ao menos dois terços da soma dos créditos; e como a francesa de 1955, pela qual a concordata não se celebrará senão mediante o concurso da maioria em número de credores admitidos definitiva ou provisòriamente e que representem dois terços do total dos créditos – o Decreto-lei nº 7.661, criou a concordata sem acôrdo do falido com os credores, com o mesmo nome tradicional, mas esvaziado de sentido”.

134 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v.III, p.35.

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No mesmo sentido constou na exposição de motivos do Decreto-Lei nº 7.661/1945:

“Segundo o conceito clássico, a formação da concordata depende da livre manifestação da vontade dos credores, através do quorum de votação, reservando-se ao juiz, simplesmente, a homologação do acôrdo com o devedor.

A lei cogita apenas das condições em que a deliberação da maioria obriga a minoria.

O sistema, entretanto, não produz os resultados que seriam de desejar.

A preponderância da maioria nas deliberações coletivas sòmente se legitima quando tôdas as vontades deliberantes se manifestam, tendo em visto o interêsse comum que as congregou.

Ora, nas concordatas formadas por maioria de votos, os credores deliberam sob a pressão do seu interêsse individual, deturpando o sentido coletivo da deliberação, e, pois, tornando ilegítima a sujeição da minoria.

E a verdade é que, na vigência dêsse sistema, se tem verificado a constância dessa anomalia, através dos entendimentos externos do processo, o que importa na quebra da igualdade de tratamento dos credores, princípio informativo do processo falimentar.

Atendendo a essas ponderações o projeto consagra a concordata como favor concedido pelo juiz, cuja sentença substitui a manifestação da vontade dos credores na formação do contrato, reservados, entretanto, a êstes, o exame e discussão das condições do pedido do devedor em face das exigências da lei.”

Desgastada pela nova realidade econômica, social e política, foi constituída comissão para rever a lei de falências. Foi aprovada a emergencial reforma convertida na Lei nº 7.274, de 10.12.1984. Em seguida, foi publicado o Decreto-Lei nº 2.279/1985 para corrigir graves “equívocos” de redação135.

Em 09.02.2005, foi publicada a Lei nº 11.101/2005, cuja análise será feita no capítulo seguinte.

135 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.24-25.

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3 – A LEI Nº 11.101/2005 SITUADA NOS PRINCIPAIS ELEMENTOS DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Entre as principais modificações trazidas ao Direito falimentar pela Lei nº 11.101/2005, estão a criação da recuperação judicial, a criação de mecanismos para a maximização de ativos e o aumento de penas para a punição de eventuais crimes falimentares136.

LUIZ INÁCIO VIGIL NETO aponta que as bases estruturais da falência moderna são o limite patrimonial, a condição de igualdade entre todos os credores (pars conditio creditorum) e a natureza pública e judicial137.

Quanto ao limite patrimonial da execução concursal, a Lei nº 11.101/2005 nada inova, visto que nenhuma das legislações anteriormente vigentes no Brasil previa o direcionamento do procedimento contra a pessoa do devedor, como ocorria com a manus injectio do Direito romano.

No tocante à igualdade entre os credores, pode-se afirmar que esta é a máxima de qualquer processo concursal, como o é o falimentar.

Afirma ALFREDO BUZAID:

“Por outro lado, como observou LIEBMAN, ‘as leis em todo tempo estiveram e ainda mais estão agora inclinadas a subtrair o andamento do processo, e muito especialmente da execução, ao arbítrio dos interessados diretos, elevando-a à figura de procedimento que progride sob impulso quase sempre oficial, em benefício de interêsses mais amplos que a simples satisfação do direito do exeqüente; muito mais justo afigura-se, pois, assegurar igualdade de condições a todos os credores’. Segundo êsse princípio, é justo, portanto, que o devedor, reconhecendo a sua própria insolvência, promova o concurso universal, a fim de serem distribuídos aos credores, segundo as preferências ou rateio, todos os bens (ou o produto) do seu patrimônio.”138

136 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 3.ed. São

Paulo: Saraiva, 2005, p.39-42. BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.471: os autores também incluem como princípios inseridos com a nova lei o da viabilidade da empresa, celeridade e eficiência do procedimento.

137 VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.54.

138 BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1952, p.282.

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Pode-se falar em execução concursal sem a presença de um magistrado, com o uso de meios bárbaros, havendo a apuração ou não de delitos pelo devedor, mas não sem tratamento igualitário dos credores, sob pena de converter-se em pluralidade de execuções singulares. ALDO FIALE aponta que “all´esecuzione collettiva devono partecipare tutti i creditori che intendono tutelare coattivamente il proprio credito”, visto que a diferença entre a execução singular e a coletiva está em que esta última “tende ad assicurare un trattamento egualitario a tutti i creditori”139. Para WALDO FAZZIO JÚNIOR “a equidade é um princípio geral de Direito que, aqui, se manifesta em toda a sua intensidade. O tratamento equitativo dos créditos é a máxima regente de todos os processos concursais, considerado o mérito das pretensões antes que a celeridade na sua dedução”140.

Sobre a natureza pública e judicial, estas são decorrência das primeiras experiências do Direito concursal romano, que demonstrou que há interesse público na proteção da universalidade dos credores, o que se faz com a judicialização do procedimento e a publicidade dos atos do processo falimentar.

As experiências do Direito concursal romano demonstraram a necessidade de publicidade dos procedimentos e intervenção judicial para proteger os credores, entendidos como um interesse público que merece tutela específica.

Assim como todas as legislações brasileiras, a Lei nº 11.101/2005 também possui caráter público141, o qual impõe a publicidade dos atos do processo como forma de resguardar os interesses da coletividade, gerando assim o princípio142 da publicidade dos procedimentos143.

139 FIALE, Aldo. Diritto fallimentare. 16.ed. Napoli: Simone, 2008, p.08. 140 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2006,

p.34. 141 VALVERDE, Trajano de Miranda. A fallencia no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Ariel, 1932, v.II,

p.51. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.33.

142 Para a compreensão do conceito de “princípio” utiliza-se o conceito de ALEXY, em ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997: “Em cambio, se trata primariamente de relevância o precedência concretas en la discusión acerca de la solución correcta de casos individuales de derechos fundamentales” (130) – “Así pues, los princípios o los valores se diferencian solo em virtud de su carácter deontológico y axiológico respectivamente” (147)

143 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.34.

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Assim, verifica-se na Lei nº 11.101/2005 a necessidade de publicação de editais para: tornar pública a relação de credores (art. 7º), o quadro geral de credores (art. 14), a sentença de abertura da falência (art. 99), a sentença de encerramento da falência (art. 156) e a extinção das obrigações do falido (art. 159); convocar a assembleia-geral de credores (art. 36); deferir o processamento da recuperação judicial (art. 52); permitir o oferecimento de objeções ao plano de recuperação judicial (art. 53); promover alienação por proposta fechada (art. 142); informar o recebimento de pedido de homologação de recuperação extrajudicial (art. 164).

No mesmo sentido, com a finalidade de oferecer maior controle ao processo falimentar, o administrador judicial – antigo síndico – deixou de ser escolhido entre os principais credores para novamente ser nomeado a partir de uma lista elaborada pelo magistrado (art. 21) em sistemática semelhante à que constava na Lei nº 859/1902.

Embora presente o princípio da publicidade dos atos processuais, a Lei nº 11.101/2005 ampliou certos poderes do administrador judicial144, com a finalidade de desjudicializar alguns procedimentos. Exemplo relevante encontra-se no art. 7º do diploma legal, que menciona que as habilitações tempestivas serão entregues diretamente ao administrador judicial, a quem cabe, após, elaborar nova relação de credores. A grande modificação em relação à sistemática anterior reside no fato de que o juiz da causa não tomará conhecimento imediato do pedido de habilitação e não apreciará a sua procedência, limitando-se a fazê-lo para o caso de habilitações retardatárias ou eventuais impugnações. Os documentos que instruem determinada habilitação não se encontram mais à disposição em juízo, mas apenas junto ao administrador judicial em hora e local previamente designados, desde que dentro de um prazo específico. Via de regra, não há necessidade de decisão justificada para a inclusão de credor no quadro geral de credores. Ao mesmo tempo em que tais medidas retiram transparência ao procedimento falimentar, o objetivo foi de conferir agilidade ao processo com o afastamento de determinadas questões do contato direto com o judiciário. Trata-se de um choque entre os princípios da segurança jurídica e da celeridade processual.

A Lei nº 11.101/2005 fortaleceu o princípio da maximização dos ativos, com a finalidade de buscar gerar a maior satisfação possível aos

144 Antigo síndico.

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créditos devidamente habilitados145. Assim ocorre com a alienação dos ativos, que ora pode ser realizada imediatamente após a arrecadação como regra (art. 139), enquanto que pela legislação anterior esta hipótese era uma exceção, evitando-se que se desvalorizem os bens arrecadados pelos efeitos do tempo. Outrossim, existe expressa previsão para a alienação dos bens “em bloco” ou “individualmente considerados”, conforme critérios mencionados no art. 140, justamente com a finalidade de assegurar o maior valor de ativos para permitir repasse aos credores.

A principal modificação trazida pela Lei nº 11.101/2005 é a criação da recuperação judicial e extrajudicial das empresas146, a qual substitui, com grandes modificações, a antiga concordata.

Para a compreensão dos aspectos mais importantes da recuperação de empresa, é fundamental a análise do art. 47 da Lei nº 11.101/2005:

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

O art. 47 da Lei nº 11.101/2005 dispõe de forma que a recuperação judicial sirva para viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor. Daí deriva o princípio da viabilidade da empresa147, visto que somente se admite o processamento da recuperação se a empresa é viável148.

Ainda, o mesmo artigo da lei falimentar dispõe que deve ser observado o interesse dos credores, concretizando, assim, o princípio da relevância do interesse dos credores149.

Ao contrário do Decreto-Lei nº 7.661/1945, que tinha a concordata como um favor legal concedido independente de anuência dos credores, a Lei nº 11.101/2005 fortaleceu o poder dos credores em moldes similares ao 145 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2006,

p.34. 146 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 4.ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.471. 147 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2006,

p.31-32. 148 Anote-se que não é tarefa nada fácil analisar a viabilidade de uma empresa. 149 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2006,

p.33-34.

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que já ocorria nas legislações brasileiras entre os anos de 1850 e 1945. Desta forma, a recuperação judicial não terá êxito sem apoio dos credores na forma estabelecida nos seus arts. 35 a 46 e 58, onde se verificam requisitos específicos de votação, inclusive para a aprovação do plano de recuperação judicial.

Em eventual oposição ao interesse dos credores, do art. 47 da Lei falimentar se extraem também os princípios da preservação da empresa e da sua função social para o fim de permitir a manutenção da fonte produtora e o emprego dos trabalhadores, princípios esses que podem ser considerados como a mais importante contribuição da nova lei falimentar150.

Na óptica de GLADSTON MAMEDE, o “corolário do princípio da função social da empresa é o princípio da preservação da empresa, metanorma que é diretamente decorrente da anterior: é preciso preservar a empresa para que ela cumpra a sua função social”151.

O princípio da função social decorre do princípio da solidariedade, previsto no art. 3º, I, da Constituição Federal152 e igualmente encontra-se previsto no art. 170, III e VIII, da Carta Magna153.

MARCOS SATANOWSKY ensina que o Direito há muito passa por uma tensão entre o individual e o social:

“En el campo del derecho positivo, como en las especulaciones de la filosofía y en el combate político, la tendencia aludida se presenta como una solución del viejo conflicto entre el individuo y la sociedad, entre el derecho individual y el derecho social. Desde que existen comunidades humanas regidas por normas de convivencia, el derecho social penetra y se abre camino dentro del interés individual y del derecho individual. Pero esa socialización incesante del derecho privado no importa la crisis del derecho individual.

150 WALD, Arnoldo; WAISBERG, Ivo. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina (Coord.) et al. Comentários à nova

lei de falência e recuperação de empresas: Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.318.

151 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2009, v.3, p.164. 152 NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro. Revista de Direito

Privado, São Paulo, n.12, p.56, 2002. 153 AMARAL, Luiz Fernando de Camargo Prudente. A função social da empresa no Direito constitucional

econômico brasileiro. São Paulo: SRS, 2008, p.111-123. WALD, Arnoldo; WAISBERG, Ivo. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina (Coord.) et al. Comentários à nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.314.

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En la evolución natural, lógica y necessaria del derecho individual, el problema a resolver reside en establecer cuál es el límite de penetración de lo social en lo particular a que puede llegarse sin afectar la libertad individual.

Conviene señalar ab initio que ese aspecto del problema sólo se presenta al jurista que ve en el derecho una elaboración natural de las normas de convivencia basadas en la libertad individual. Para los que buscan en el derecho un contenido susceptible de amparar concepciones de ordenamiento social extrañas a la libertad individual, el problema señalado adquiere carácter distinto154.

Da tensão entre o individual e o social, deriva a prevenção e o tratamento das dificuldades das empresas através da recuperação judicial, os quais são fenômenos jurídicos relativamente recentes na história do Direito, dando forte impulso no Direito falimentar durante o Século XX155. Atualmente, pode-se afirmar que o Brasil seguiu esta tendência já verificada em outros países, como na França (Lei nº 94.495/1994), na Inglaterra (Insolvency Act de 1986), em Portugal (Lei de 1993), na Alemanha (Lei de 1994) e na Espanha (Reforma de 2003)156.

Para MARCELO BERTOLDI e MÁRCIA RIBEIRO, “o foco primordial da nova lei deixa de ser a satisfação dos credores e se desloca para um patamar mais amplo: a proteção jurídica do mercado”157 e assim porque na cadeia produtiva “o desaparecimento de qualquer dos elos pode afetar a oferta de bens e serviços, assim como a de empregos, por conta do efeito multiplicador na economia”158.

154 SATANOWSKY, Marcos. Tratado de derecho comercial. Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina,

1957, t.1, p.16-19. 155 WALD, Arnoldo; WAISBERG, Ivo. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina (Coord.) et al. Comentários à nova

lei de falência e recuperação de empresas: Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.313: “No direito comparado, contudo, a empresa como sujeito de responsabilidade social pode ser identificada como fenômeno da década de 20, quando executivos de grandes empresas passaram a demonstrar preocupação não só com a obtenção de lucros, mas também com os diversos outros interesses que gravitam em torno da sociedade, como aqueles dos trabalhadores, consumidores, fornecedores e comunidade”.

156 PACHECO, José da Silva. Processo de recuperação judicial, extrajudicial e falência. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.01.

157 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.471.

158 STAJN, Rachel. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.223.

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O Direito comercial nasceu de uma “necessidade” de conferir maior rigidez e garantia aos comerciantes durante o período medieval159, sendo que mais adiante se verificaria um movimento unificador do Direito privado:

“Como ramas distintas del mismo derecho privado, el derecho civil y el comercial tienen autonomía. Pero autonomia y no independencia, como lo afirmara ROCCO, poque el derecho mercantil deve vivir separado del derecho civil, pero con la dependencia que impone la comunidad de origen y la substancial analogía. ‘Podría decirse que el derecho mercantil ha sufrido respecto del civil un doble movimiento en sentido inverso: primero, de separación hasta obtener un concepto y contenido peculiares; después, de aproximación técnica al derecho civil.

Y esa autonomia no es incompatible con la unificación.”160

Esse movimento unificador do Direito privado ocorre pela razão de que, embora possa haver peculiaridades em algumas matérias, existe um Direito uno, inclusive porque atualmente se compreende que o fracionamento da matéria jurídica em ramos tem o sentido de divisão de competências ou a facilitação de exposição de uma “matéria única”, mas que “não deve significar que a realidade do ordenamento é divisível em diversos setores, dos quais um é totalmente autônomo em relação ao outro, de tal modo que possa ser proclamada a sua independência”161.

Assim, os princípios da solidariedade, da boa-fé e da função social aplicáveis às relações de Direito civil162 gradualmente ganham proximidade e geram efeitos no Direito falimentar, o qual, por suas peculiaridades, nasceu de uma separação do Direito comum no período medieval.

159 ROCCO, Alfredo. Princípios de direito comercial. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas:

LZN, 2003, p.12-15 – “Só na Idade Média o direito comercial apareceu e se afirmou como um direito autônomo.” – “As condições sociais próprias da época favoreceram esta especialização.” – “Aqueles que exerciam a mesma profissão, arte ou mister reuniam-se em associações ou corporações, a fim de exercitarem mais eficazmente a autodefesa.”

160 SATANOWSKY, Marcos. Tratado de derecho comercial. Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1957, t.1, p.132.

161 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cistina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.55.

162 E demais áreas do Direito.

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Na medida em que há função social da empresa para o fim de se buscar a manutenção de suas atividades163, pode haver claro dissenso entre a preservação da empresa e a observância do interesse dos credores.

Além do dissenso de interesses que pode ocorrer durante a recuperação judicial, FÁBIO ULHOA COELHO aponta a tendência prática de aprovação do plano de recuperação judicial, embora decorrente do ambiente em que surgem as controvérsias:

“O modelo brasileiro da recuperação judicial é vulnerável porque, ao manter a vinculação entre indeferimento do benefício e decretação da falência, cria o ambiente propício ao nascimento da ‘indústria da recuperação judicial’. O credor, na Assembleia em que estiver em votação o Plano de Recuperação Judicial, tenderá a aprovar qualquer rabisco malfeito, porque se não o fizer, o juiz terá que decretar a falência do devedor.”164

JORGE LOBO aponta que a “teoria de maximização dos lucros deve ceder diante da ética de solidariedade, sobretudo quando se trata de uma lei de ordem pública”165, de forma que haveria uma preponderância da preservação da empresa em oposição ao interesse monetário dos credores.

ARNOLDO WALD, ao tratar da função social dos contratos, traz lição que adequadamente serve por analogia à função social da empresa:

“A função social do contrato e a aplicação do princípio da boa-fé não devem, pois, ser interpretadas exclusivamente ou principalmente como proteção especial da parte economicamente mais fraca. Significam a manutenção do equilíbrio contratual e o atendimento dos interesses superiores da sociedade que, em determinados casos, podem coincidir ou não com os interesses individuais do sujeito que aderiu ao acordo e que não exerceu plenamente a sua liberdade contratual.”166

163 FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do direito privado. Revista da Ajuris, n.105, p.153-188,

mar. 2007. 164 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 3.ed. São

Paulo: Saraiva, 2005, p.115. 165 LOBO, Jorge. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRAÃO, Carlos Henrique.

Comentários à lei de recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.131. 166 WALD, Arnoldo. O interesse social no Direito privado. Revista Magister de Direito Civil e Processual

Civil, Porto Alegre: Magister, n.10, p.45, jan.-fev. 2006.

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Desta forma, a função social não atua de forma tensionada apenas em favor daquele que possui a condição menos favorecida167, devendo ser observado que eventualmente também existe uma função social na própria repartição do crédito aos credores no caso de empresa incapaz de prosseguir nas suas atividades.

Ensinam ARNOLDO WALD e IVO WAISBERG:

“O voto do credor na assembleia geral também se sujeita, de certa forma, aos princípios comentados. Nesse ponto, é bom notar que o credor vota considerando o seu interesse em receber o crédito. Esse o interesse que legitima seu voto. Não se pode impor a ele a obrigação de aprovar o plano. Mas pode ocorrer eventual abuso no exercício do voto ou conflito de interesses, e esses serão confrontados com as diretrizes da lei.”168

RACHEL STAJN assinala que o risco da função social é de conceder-lhe caráter de “assistencialismo”, de forma que não se conciliem os interesses divergentes envolvidos169, levando à desconsideração dos interesses dos credores. A recuperação da empresa não é um “valor” a ser buscado a qualquer custo170.

CONCLUSÃO

O direito falimentar abrange a execução concursal e a recuperação de empresas.

O processo concursal teve origem vinculada à ideia de punição do devedor por uma “necessária” má-fé para o insucesso de suas atividades e inadimplemento das obrigações. Com a evolução da sociedade, passou-se a compreender que a insolvência poderia ocorrer independentemente de culpa, perdendo gradualmente a importância da análise delitiva na conduta do devedor.

167 USTÁRROZ, Daniel. Temas atuais de direito contratual. Sapucaia do Sul: Notadez, 2010, p.24. 168 WALD, Arnoldo; WAISBERG, Ivo. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina (Coord.) et al. Comentários à nova

lei de falência e recuperação de empresas: Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.321.

169 STAJN, Rachel. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.223.

170 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.116.

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A recuperação judicial surgiu como forma de conciliação de interesses, permitindo aos credores receber o máximo possível de seus créditos e que o devedor não restasse maculado pelas dívidas que permaneceram impagas.

Durante toda a história do Direito falimentar, houve permanente insatisfação da doutrina, demonstrando-se o extremo desgaste do instituto pela impossibilidade de atender a todos os interesses, inclusive por impossibilidade material.

Em razão da insatisfação com o Direito falimentar, diversas mudanças legislativas foram feitas, por vezes em períodos extremamente curtos. Dessas sucessivas modificações no instituto, em alguns pontos houve movimentos opostos, como ocorreu na esfera penal, ora abrandando-a, ora enrijecendo-a. No mesmo sentido, em algumas oportunidades retirou-se poderes dos credores para mais adiante devolvê-los, bem como em algumas leis se determinou a nomeação de síndico entre os credores para mais adiante mudar a sistemática, a fim de se nomear pessoa constante de lista.

A falência tem diversos aspectos relevantes, mas tem como cerne a paridade de tratamento dos credores (pars conditio creditorum).

A principal modificação trazida com a Lei nº 11.101/2005 é a formulação do princípio da preservação da empresa, o qual possui relevância na análise do Direito falimentar, mas não é absoluto.

Os diversos interesses envolvidos podem ficar contrapostos durante o processamento da falência ou da recuperação da empresa e a solução de controvérsias depende de ponderação dos valores e princípios envolvidos no caso.

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OS PRIMEIROS CINCO ANOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL NO PAÍS:

DIFICULDADES E CONTROVÉRSIAS MARCELO GAZZI TADDEI*

1 – OBSTÁCULOS QUE DIFICULTAM O PLENO ÊXITO DO PROCESSO RECUPERATÓRIO

A Lei n° 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, introduziu no País o importante instituto da recuperação judicial, extinguindo do ordenamento jurídico nacional as antigas concordatas. O novo instituto, destinado à superação da crise empresarial e respectiva preservação da empresa, despertou o entusiasmo de muitos até certa fase da tramitação do projeto de lei no Congresso Nacional, correspondendo a uma importante inovação oferecida aos empresários que atuam no Brasil, a exemplo do que se verifica em outros países.

O aludido entusiasmo foi arrefecido pela contundente e notória interferência do setor financeiro na elaboração da lei, que se mostrou determinante para uma mudança de rumo destinada a preservar os créditos de origem financeira dos efeitos da recuperação judicial, conforme se verifica no artigo 49, §§ 3° e 4°, da lei de regência. Referido favorecimento, justificado para permitir a redução do custo do crédito no País, mostrou-se inócuo para a finalidade prevista, correspondendo a um dos maiores obstáculos para o êxito de muitos processos de recuperação judicial, o que gerou a realização de alguns ajustes nos casos concretos, conforme se verifica nas decisões judiciais que ampliam o improrrogável prazo de suspensão de 180 dias previsto nos arts. 6°, § 4°, e 49, § 3°, objetivando a manutenção de bens essenciais no estabelecimento da recuperanda.

* Advogado. Parecerista. Graduado e Mestre em Direito pela UNESP – Franca/SP. Professor de

Direito Empresarial e Direito do Consumidor na UNIP – São José do Rio Preto/SP. Professor de Direito Empresarial na Escola Superior de Advocacia de São José do Rio Preto/SP.

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A recuperação judicial tem por finalidade principal a reestruturação da empresa para permitir a superação da crise econômica, financeira e/ou patrimonial. A reestruturação exige medidas destinadas a permitir a viabilidade econômica e financeira do empreendimento, capacitação técnica e gerencial da administração, credibilidade e transparência interna e externa da administração, estrutura de capital e organização patrimonial, bem como a capacidade de acesso a capitais e créditos. Entretanto, em grande parte dos processos de recuperação judicial, os planos resumem-se à ampliação dos prazos para o pagamento das dívidas e ao deságio, apresentando soluções que se mostram, muitas vezes, incapazes de permitir a reestruturação necessária à efetiva superação da crise.

Outra dificuldade identificada refere-se à organização e à preparação do Poder Judiciário em âmbito nacional, mostrando-se imprescindível a criação de varas especializadas, diante da reconhecida especificidade e complexidade da matéria, que gera controvérsias até mesmo entre os mais experientes especialistas. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui uma Câmara Reservada à Falência e Recuperação; não obstante, referida Câmara já alterou seu posicionamento sobre algumas questões da recuperação judicial (v.g. recorribilidade da decisão que defere o processamento da recuperação judicial – Ag. I. 6041604800, reserva de 40% da remuneração do administrador judicial – Ag. I. 6876964000) e apresenta entendimento conflitante com o do Superior Tribunal de Justiça sobre importante tópico da lei, conforme será apresentado no presente artigo. Esses fatos demonstram toda a complexidade do tema.

No mesmo sentido, destaca-se a importância do Administrador Judicial, que se mostra essencial como órgão auxiliar do juiz no processo de recuperação judicial, devendo ser profissional idôneo e profundo conhecedor do Direito Empresarial, a fim de contribuir para o seguro e correto desenvolvimento do processo.

A atuação dos credores também se apresenta como um obstáculo ao êxito da recuperação judicial. Muitas vezes, a simples omissão dos credores em participar das assembleias gerais permite ajustes nos planos por aqueles credores que conduzem a recuperação segundo os seus próprios interesses. Embora a lei busque a participação ativa dos credores na recuperação, o que se verifica é a inibição dos credores em participarem ativamente dos processos de recuperação. A ausência da constituição do Comitê de Credores, indicado para as recuperações mais complexas, além do custo e

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da responsabilidade dos seus membros, também decorre do desinteresse dos credores.

Em relação aos efeitos decorrentes da distribuição da recuperação judicial, a maior dificuldade enfrentada pela recuperanda é o acesso ao crédito. O pedido de recuperação resulta na imediata e intransponível restrição ao crédito à recuperanda, justamente no momento em que mais se precisa dele. Nem mesmo os bancos oficiais concedem crédito à recuperanda, diante da insuperável análise de riscos, que trava o sistema e impede a liberação do crédito.

Se não bastasse a restrição ao crédito imposta à recuperanda, os contratos de execução continuada celebrados pela recuperanda que permitem o acesso ao crédito, como o contrato de desconto bancário, são extintos pela simples apresentação do pedido de recuperação judicial, ainda que não exista qualquer inadimplemento. É comum nesses contratos a previsão do pedido de recuperação judicial do contratante como causa de resolução contratual. O ilustre jurista JORGE LOBO, ao tratar da questão, assevera que “a ação de recuperação judicial não é causa de resilição unilateral de contrato assinado com o devedor, mesmo que haja cláusula resolutória expressa prevendo a denúncia em caso de recuperação judicial ou falência” (LOBO, 2007, p.137).

A Lei n° 11.101/2005, objetivando estimular os credores da recuperanda a continuarem a negociar com ela, bem como incentivar o surgimento de novos parceiros comerciais, prevê no art. 67 que os créditos decorrentes de obrigações contraídas pela recuperanda durante a recuperação judicial, inclusive os referentes às despesas com fornecedores de bens ou serviços e contratos de mútuo, são considerados extraconcursais em caso de decretação de falência, respeitada a ordem prevista no art. 83.

Referido dispositivo, em seu parágrafo único, estabelece ainda que os créditos quirografários sujeitos à recuperação judicial pertencentes a fornecedores de bens ou serviços que continuarem a provê-los normalmente após o pedido de recuperação judicial terão privilégio geral de recebimento em caso de decretação de falência, no limite do valor dos bens ou serviços fornecidos durante o período de recuperação.

Se por qualquer motivo a recuperação judicial convolar-se em falência, os credores posteriores à distribuição do pedido serão reclassificados. Além de garantir o recebimento prioritário dos créditos extraconcursais, a lei eleva os créditos quirografários anteriores ao

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ajuizamento da ação de recuperação judicial à categoria de créditos com privilégio geral, estabelecendo como limite o valor dos bens ou serviços fornecidos durante o processo de recuperação.

No caso, se o credor quirografário detinha crédito de R$ 200.000,00 na data do pedido inicial e durante o processo de recuperação firmou contratos no valor de R$ 100.000,00, terá direito, no caso de decretação da falência da recuperanda, à reclassificação de parte de seu crédito originário, passando então a credor quirografário por R$ 100.000,00 e a credor com privilégio geral por R$ 100.000,00, além de credor extraconcursal pelo que não houver recebido durante a recuperação (LOBO, 2007, p.196).

FÁBIO ULHOA COELHO ressalta que a reclassificação em questão alcança apenas os créditos negociais, os tributos devidos em razão de fatos geradores ocorridos durante a tramitação da recuperação judicial decorrem da lei, o credor tributário não está assumindo conscientemente um risco. Não há, por isso, motivos para reclassificar os créditos fiscais, como qualquer outro derivado da lei, como responsabilidade civil por ato ilícito ou responsabilidade objetiva (COELHO, 2005, p.181).

Conforme se observa, o legislador buscou meios de incentivar a celebração de negócios com a recuperanda durante a recuperação judicial; entretanto, diante do risco acentuado de quebra previsto pelos credores, a recuperanda tem o crédito imediatamente cancelado no setor financeiro e encontra dificuldades para a obtenção de prazo de pagamento perante os fornecedores de produtos e serviços. A restrição ao crédito no setor financeiro e a dificuldade de concessão de prazo para pagamento junto aos fornecedores constituem, no âmbito operacional, as maiores dificuldades identificadas para as sociedades empresárias em recuperação judicial, mostrando-se imprescindível a criação premente de uma linha de crédito especial para os devedores em recuperação judicial.

2 – O DELINEAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial corresponde a um benefício legal à disposição do empresário individual e da sociedade empresária em crise que exploram regularmente a atividade econômica há mais de dois anos. Objetiva a superação da crise empresarial, permitindo a continuidade da atividade econômica para evitar a falência, tendo por finalidade, nos termos do art. 47 da Lei n° 11.101/2005, a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e do interesse dos credores no intuito de promover a

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preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

O processo de recuperação judicial é promovido por iniciativa do próprio empresário em crise, que apresenta perante o Poder Judiciário o pedido do benefício. Verificando o atendimento a todos os requisitos legais, o juiz defere o processamento da recuperação judicial, abrindo-se prazo para os credores realizarem as habilitações de crédito perante o administrador judicial e para o devedor apresentar o plano de recuperação judicial.

Neste plano, o devedor apresentará os meios que serão utilizados para a superação da crise. Normalmente, o plano prevê a dilação para o pagamento das dívidas, redução no valor a ser pago, venda de filiais, estratégias comerciais e administrativas, entre outros meios apresentados, em caráter exemplificativo, no art. 50 da lei de regência. Ressalta-se que, com exceção das dívidas trabalhistas, na recuperação judicial comum não há limite legal para a dilação no pagamento das dívidas, existindo casos em que a previsão de pagamentos supera amplamente o prazo de cinco anos. Não resta dúvida que os meios de recuperação previstos no plano impõem sacrifícios aos credores, sendo, muitas vezes, a única forma que alguns deles possuem para garantir o recebimento dos seus créditos.

O plano de recuperação judicial é submetido à apreciação dos próprios credores que, diante da apresentação de objeções consistentes ao plano, provocam a convocação da Assembleia Geral de Credores para a realização da sua análise, que poderá determinar a sua aprovação, modificação ou rejeição. A rejeição do plano implica a determinação legal da convolação da recuperação judicial em falência, o que, de certa forma, conduz à sua aprovação pelos credores ou à apresentação de alterações ao plano, sujeitas à anuência expressa da recuperanda.

Interferências no projeto de lei durante a sua tramitação no Congresso Nacional afastaram da recuperação judicial as dívidas decorrentes de contratos de arrendamento mercantil (leasing), de alienação fiduciária e de adiantamento de contrato de câmbio para exportação, entre outras previstas no art. 49 da Lei n° 11.101/2005. Durante o prazo de 180 dias, contados do deferimento do processamento da recuperação judicial, é vedada a retirada do estabelecimento da recuperanda dos bens de capital essenciais ao exercício da atividade empresarial, existindo decisões ampliando esse prazo para assegurar a preservação da empresa.

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Não havendo objeções dos credores ou aprovado o plano de recuperação judicial pela Assembleia Geral de Credores, a recuperanda deve apresentar certidões negativas de débitos tributários para permitir o deferimento da recuperação judicial. Diante da notória dificuldade no atendimento à exigência legal, vista como sanção política, a recuperação judicial vem sendo deferida sem a exigência prevista, conforme entendimento jurisprudencial.

Deferida a recuperação judicial, a recuperanda e os credores sujeitos ao plano ficam vinculados ao seu cumprimento, ingressando o processo de recuperação judicial no período de observação de dois anos, em que o juiz, o administrador judicial e o comitê de credores, caso exista, fiscalizam o cumprimento das obrigações pela recuperanda. Durante este período, a recuperação judicial transforma-se em falência no caso de descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano pela recuperanda.

O fim do período de observação de dois anos determina o encerramento do processo de recuperação judicial. Caso o plano apresente obrigações com o cumprimento previsto para após o encerramento do processo, hipótese frequente, referidas obrigações continuarão sob a fiscalização dos credores, constituindo o plano de recuperação judicial título executivo judicial. O cumprimento de todas as obrigações previstas no plano pela recuperanda assegura o êxito da recuperação judicial, promovendo a preservação da empresa e a sua função social.

3 – AS CONTROVÉRSIAS IDENTIFICADAS NOS CINCO ANOS DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Ao longo dos cinco anos de aplicação da Lei n° 11.101/2005, em relação à recuperação judicial foi possível a identificação de vários pontos controversos, que muitas vezes surgem pelo fato de a questão não se encontrar disciplinada de forma específica na lei, outras vezes em decorrência da necessária interpretação sistemática de seus artigos com a finalidade de assegurar o pleno êxito da recuperação judicial, nos termos do art. 47, diante das alterações introduzidas no projeto de lei por influência do setor financeiro.

Diante dos inúmeros pontos controvertidos e polêmicos, não serão possíveis a apresentação e a análise de todos no presente artigo. Questões referentes à cessão fiduciária de créditos e à liberação das travas bancárias, possibilidade de inclusão no plano de recuperação judicial dos créditos

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financeiros excluídos pelo art. 49, §§ 3° e 4º, remuneração do administrador judicial e a reserva de 40%, cessão de crédito e direito de voto, novação recuperacional, representação dos credores trabalhistas na assembleia geral de credores, prorrogação dos prazos previstos na lei, nulidade ou anulabilidade das deliberações dos credores ou da Assembleia Geral de Credores, abuso do direito de voto, juízo universal da recuperação judicial e o conflito de competência, bloqueio online, entre outros pontos polêmicos, embora aqui mencionados, não serão abordados nesta oportunidade, ficando apenas consignados.

Entre os pontos controvertidos identificados, são apresentados na sequência: a) possibilidade do litisconsórcio ativo na recuperação judicial; b) sujeição do produtor rural à recuperação judicial; c) definição do valor do bem dado em garantia real para a definição do voto na assembleia geral de credores; d) possibilidade da ampliação do prazo de 180 dias para assegurar a manutenção dos bens essenciais no estabelecimento da recuperanda nos contratos de alienação fiduciária e de arrendamento mercantil; e) apresentação de objeção e a convocação da assembleia geral de credores; e f) efeitos da recuperação judicial em relação aos coobrigados.

3.1 Litisconsórcio Ativo na Recuperação Judicial

A Lei n° 11.101/2005 não trata da possibilidade do pedido de recuperação judicial apresentado por mais de um devedor; entretanto, são inúmeros os casos de litisconsórcio ativo em recuperação judicial. Ao tratar do tema, RICARDO BRITO COSTA conclui:

“A formação do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, a despeito da ausência de previsão na Lei n° 11.101/2005, é possível, em se tratando de empresas que integrem um mesmo grupo econômico (de fato ou de direito). Nesse caso, mesmo havendo empresas do grupo com operações concentradas em foros diversos, o conceito ampliado de ‘empresa’ (que deve refletir o atual estágio do capitalismo abrangendo o ‘grupo econômico’), para os fins da Lei n° 11.101/2005, permite estabelecer a competência do foro do local em que se situa a principal unidade (estabelecimento) do grupo de sociedades. O litisconsórcio ativo, formado pelas empresas que integram o grupo econômico, não viola a sistemática da Lei n° 11.101/2005 e atende ao Princípio basilar da Preservação da Empresa. A estruturação do plano de

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recuperação, contudo, há de merecer cuidadosa atenção para que não haja violação de direitos dos credores” (COSTA, 2009, p. 182).

No caso de grupo de empresas, não há na lei previsão que obrigue a presença de todas as sociedades empresárias integrantes do grupo econômico no processo de recuperação judicial, que pode abranger uma ou algumas delas. No caso, o litisconsórcio formado no polo ativo da recuperação judicial será facultativo, constituindo-se de acordo com a vontade das partes.

A opção das devedoras pelo litisconsórcio ativo exige a apresentação de um único plano de recuperação judicial e submete todas as sociedades empresárias às consequências decorrentes da sua aprovação ou rejeição. Nesse sentido, se por um lado a aprovação do plano beneficia todas as sociedades empresárias integrantes do grupo, havendo a rejeição do plano, ou outra hipótese prevista no art. 73 que determine a convolação da recuperação judicial em falência, todas as sociedades empresárias integrantes do litisconsórcio estarão sujeitas à sentença de falência e às consequências decorrentes.

A possibilidade do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, quando afastada, fundamenta-se na regra de competência presente no art. 3° da Lei n° 11.101/2005, que define como competente para o deferimento da recuperação judicial o Juízo do local do principal estabelecimento do devedor. Por se tratar de regra de competência absoluta, não admite prorrogação voluntária.

De acordo com a regra de competência, a jurisprudência tem negado a formação do litisconsórcio ativo na recuperação judicial na hipótese de as sociedades empresárias não possuírem o principal estabelecimento no mesmo foro. Conforme se verifica nas seguintes decisões da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Agravo de instrumento. Recuperação judicial requerida em litisconsórcio por duas sociedades empresárias distintas, cada uma delas com sede social em comarcas diversas. Alegação de serem integrantes do mesmo grupo econômico. Decisão que determina a emenda da inicial em razão da inviabilidade do litisconsórcio ativo. Natureza contratual da recuperação judicial que impõe se facilite a presença dos credores na assembleia geral para examinar o plano da devedora. A distância entre os estabelecimentos

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principais das empresas requerentes causa dificuldades incontornáveis à participação dos credores, notadamente os trabalhadores, nos conclaves assembleares realizados em comarcas distintas. Princípio da preservação da empresa e da proteção aos trabalhadores, ambos de estatura constitucional que, se em conflito, devem ser objeto de ponderação para a prevalência do mais importante. Tutela dos trabalhadores em razão da hipossuficiência. Manutenção da decisão que repeliu a possibilidade do litisconsórcio ativo no caso vertente, mantida a possibilidade da emenda da inicial para que cada uma das empresas requeira a medida recuperatória individualmente, observada a regra da competência absoluta do art. 3º da LRF. Precedente da Câmara. ‘Manutenção da liminar para obstar a suspensão do fornecimento de serviços de telefonia por débitos anteriores ao requerimento da recuperação, que se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial. Agravo provido, em parte, revogado o efeito suspensivo, com determinação de imediato processamento da recuperação judicial’” (TJSP, Ag. I. n° 6453304400. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Desemb. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 15.09.2009).

“Apelação. Recuperação Judicial requerida em litisconsórcio por três sociedades empresárias distintas, cada uma delas com sede social em Estados diversos da Federação (São Paulo, Minas Gerais e Bahia). Alegação de serem integrantes do mesmo grupo econômico. Deferimento do processamento da recuperação judicial. Posterior constatação da inviabilidade do processamento da medida em litisconsórcio ativo, em face da existência de credores distintos, domiciliados em Estados diferentes. Reconhecimento da incompetência absoluta do juiz requerida inicialmente à recuperação judicial. Extinção do processo, sem resolução do mérito, por força do indeferimento da inicial. Matéria de ordem pública, sobre a qual não ocorre preclusão nas instâncias ordinárias. Soberania da assembleia geral de credores restrita à deliberação sobre o plano de recuperação judicial, mas não sobre pressupostos ou condições da ação. Natureza contratual da recuperação judicial que impõe se facilite a presença dos credores na assembleia geral para examinar o plano da devedora. A grande distância entre os estabelecimentos principais das empresas

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requerentes causa dificuldades incontornáveis à participação dos credores, notadamente os trabalhadores, nos conclaves assembleares realizados em Estados diversos da Federação. Princípio da preservação da empresa e da proteção aos trabalhadores, ambos de estatura constitucional que, se em conflito, devem ser objeto de ponderação para a prevalência do mais importante. Tutela dos trabalhadores em razão da hipossuficiência. Extinção do processo de recuperação judicial, sem resolução do mérito, mantida, situação que não impede que cada uma das empresas requeira a medida recuperatória individualmente, observada a regra da competência absoluta do art. 3º da LRF. Apelo das empresas desprovido. Apelação de credora que se insurgiu contra o processamento da recuperação no juízo original. Pretensão à condenação das devedoras em honorários advocatícios. Inviabilidade. Inteligência do art. 5º, II, da Lei n° 11.101/2005. Não incidência de honorários sucumbenciais na recuperação judicial extinta. Apelo da credora improvido” (TJSP. Apelação sem Revisão n° 6252064200. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Desemb. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 09.06.2009).

3.2 A Recuperação Judicial e o Produtor Rural

De acordo com o art. 1° da Lei n° 11.101/2005, a lei disciplina a recuperação judicial, a falência e a recuperação extrajudicial do empresário e da sociedade empresária. O art. 966 do Código Civil de 2002 define empresário de acordo com a teoria italiana da empresa, prevendo:

“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.”

Por sua vez, o art. 982 do referido diploma legal define sociedade empresária:

“Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.

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Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.”

De acordo com o tratamento previsto no Código Civil de 2002, que tem como base o Código Civil italiano de 1942, quem se dedica à atividade rural poderá ingressar no regime empresarial por opção, mediante a realização do arquivamento no Registro Público de Empresas, a cargo das Juntas Comerciais. Nesse sentido, o art. 971 do Código Civil:

“Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.”

Conforme se verifica, o produtor rural possui a opção de ingressar no regime empresarial e, fazendo essa opção por meio do arquivamento na Junta Comercial, fica equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito ao registro (entenda-se o descrito no art. 966 do CC/2002). Estando equiparado ao empresário, estará sujeito a todas as obrigações previstas aos empresários, sujeitando-se à falência e aos seus efeitos, inclusive no âmbito penal. Por outro lado, gozará de todos os benefícios previstos aos empresários, podendo requerer recuperação judicial e extrajudicial.

De acordo com ordenamento jurídico vigente, para o produtor rural obter o deferimento do processamento da recuperação judicial precisará ter optado pelo regime empresarial, por meio do arquivamento na Junta Comercial. A ausência do arquivamento no Registro Público de Empresas afasta do produtor rural a possibilidade da recuperação judicial, já que nesse caso não se enquadra no art. 1° da Lei n° 11.101/2005, conforme dispõe o art. 971 c.c. o art. 966 do diploma civil. Além disso, o produtor rural que não realizou a opção pelo regime empresarial não preenche os requisitos previstos no art. 51 da Lei n° 11.101/2005, notadamente o previsto no inciso V (certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas).

Nesse sentido, as seguintes decisões: “Recuperação judicial. Ação ajuizada por produtores rurais que

não estão registrados na Junta Comercial. ‘O empresário rural será tratado como empresário se assim o quiser, isto é, se se inscrever no Registro das Empresas, caso em que será considerado um empresário, igual aos outros. ‘ ‘A opção pelo registro na Junta Comercial poderá se justificar para que, desfrutando da posição

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jurídica de empresário, o empresário rural possa se valer das figuras da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, que se apresentam como eficientes meios de viabilizar a reestruturação e preservação da atividade empresarial, instrumentos bem mais abrangentes e eficazes do que aquele posto à disposição do devedor civil (concordata civil – Código de Processo Civil, artigo 783).’ Só a partir da opção pelo registro, estará o empresário rural sujeito integralmente ao regime aplicado ao empresário comum. Sentença mantida. Apelação não provida” (TJSP. Apelação n° 994092930317. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Desemb. Romeu Ricupero. DJ 06.04.2010).

“Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Pedido formulado por produtor rural não inscrito na Junta Comercial. Conhecimento de agravo tirado contra decisão que defere o processamento da recuperação judicial. Decisão que reconhece que o produtor rural é empresário rural inscrito no CNPJ e tem legitimidade para requerer a recuperação. Precedente do STJ que admite a recorribilidade da decisão que examina a legitimidade ativa do requerente da recuperação judicial. Produtor rural que não se vale da faculdade do art. 971 do Código Civil não é equiparado a empresário para os fins do art. 1º da Lei n° 11.101/2005 e não atende ao requisito do art. 48 do mesmo diploma legal. A inscrição do produtor rural no CNPJ-Receita Federal não o equipara a empresário para fins do direito à recuperação judicial. Agravos conhecidos e providos para reformar a decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial. Extinção do processo de recuperação judicial, sem resolução de mérito, com base no art. 267, I, do CPC” (TJSP. Ag. I. n° 6481984200. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Desemb. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 15.09.2009)

Em relação ao arquivamento do produtor rural na Junta Comercial a fim de atender às exigências legais e obter o deferimento do processamento da recuperação judicial, questiona-se a possibilidade de o produtor rural realizar a opção imediatamente antes da apresentação do pedido de recuperação judicial. Nessa hipótese, considera-se o período de desenvolvimento da atividade como produtor rural sem registro na Junta Comercial para atender ao requisito previsto no art. 48 da Lei n° 11.101/2005, que exige o exercício regular da atividade econômica há mais de dois anos?

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O Tribunal de Justiça de São Paulo já sinalizou a possibilidade no caso de grupo empresarial, conforme se verifica abaixo; resta saber se o mesmo entendimento será adotado para a atividade econômica desenvolvida antes do arquivamento na Junta Comercial como produtor rural.

“Agravo de Instrumento. Recuperação judicial. Pronunciamento judicial que apenas defere o processamento da recuperação judicial. Recurso pretendendo a revogação do deferimento, sob a alegação central de não exercício regular da atividade empresária pela recuperanda há mais de dois anos no momento do pedido. Ato que tem a natureza de decisão interlocutória com potencial para causar gravame aos credores e terceiros interessados, além de poder afrontar a lei de ordem pública. Alteração do entendimento que proclamava a irrecorribilidade do ato previsto no artigo 52 da Lei n° 11.101/2005. Agravo conhecido. Falta de recolhimento do porte de retorno equivalente a preparo incompleto, que não autoriza a imediata aplicação da deserção, configurada hipótese de insuficiência. Agravante que, intimado, complementa do preparo com o recolhimento do porte de retorno. Deserção não reconhecida. O requisito do artigo 48, caput, da Lei n° 11.101/2005, ‘exercício regular das atividades empresariais há mais de dois anos no momento do pedido de recuperação judicial’, não exige inscrição na Junta Comercial por tal período mínimo. Integrando a requerente da recuperação judicial grupo econômico existente há 15 anos, e sendo constituída há menos de dois anos mediante transferência de ativos das empresas do grupo para prosseguir no exercício de atividade já exercida por tais empresas, é de se ter como atendido o pressuposto do biênio mínimo de atividade empresarial no momento do pedido. Agravo conhecido e desprovido, mantida a decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial” (TJSP. Ag. I. 6041604800. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Desemb. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 04.03.2009).

3.3 A Definição do Valor do Bem Gravado e o Voto do Credor com Garantia Real na Análise do Plano de Recuperação Judicial

Uma questão que desperta interesse na definição dos votos na Assembleia Geral de Credores é a do credor com garantia real, que na análise do plano de recuperação judicial, nos termos dos arts. 41 e 45 da Lei n° 11.101/2005, vota na classe II (credores com garantia real) até o limite do

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valor do bem dado em garantia, votando na classe III (credores quirografários, privilégio especial, privilégio geral, subordinados) pelo valor que excede o limite de garantia.

Para a votação do plano de recuperação judicial, o art. 45 estabelece o sistema da dupla maioria, dividindo os credores em três classes, previstas no art. 41. Nas classes II (credores com garantia real, até o limite do bem gravado) e III (credores quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados, credores com garantia real pelo valor que excedeu a garantia), a proposta deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes. Na classe I (credores trabalhistas ou decorrentes de acidente do trabalho), a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor do crédito.

O quadro abaixo demonstra a divisão dos credores e os quóruns exigidos para a aprovação do plano de recuperação judicial:

QUÓRUM DE APROVAÇÃO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Art. 45 Classe de Credores (art. 41)

Natureza do crédito

Voto Quantitativo (n° de credores)

Voto Qualitativo (valor crédito)

Quórum de deliberação

Classe I Trabalhistas (sem limite) e acidentários

Maioria simples (mais da metade dos credores presentes)

(NÃO) Não se considera o valor dos créditos desta classe

Somente por cabeça: maioria simples

Classe II Garantia real (até o limite da garantia)

Maioria simples (mais da metade dos credores presentes)

Maioria simples (mais da metade do valor total dos créditos desta classe presentes na AGC )

Por cabeça: maioria simples Por crédito: maioria simples

Classe III Quirografários – Privilégio geral – Privilégio especial – Subordinados e credores com garantia real ao que excedeu o limite de garantia

Maioria simples (mais da metade dos credores presentes)

Maioria simples (mais da metade do valor total dos créditos desta classe presentes na AGC)

Por cabeça: maioria simples Por crédito: maioria simples

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Conforme se verifica, o credor com garantia real vota na classe II até o limite do valor do bem gravado, votando com os credores da classe III pelo valor do crédito que supera o valor do bem dado em garantia. Diante da divisão legal estabelecida, é importante definir o valor do bem dado em garantia na hipótese de ele não ser manifestamente superior ao valor do crédito, já que o resultado referente à análise do plano na Assembleia Geral de Credores poderá depender da diferença apurada. Nesse contexto, constata-se que a legislação não prevê, de forma específica, o momento da definição do valor do bem dado em garantia, nem mesmo o critério a ser utilizado.

De acordo com o art. 9°, II, da Lei n° 11.101/2005, a habilitação de crédito deverá conter “o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação”. Na falência, o art. 83, § 1°, estabelece que o valor do bem gravado corresponderá à importância efetivamente arrecadada com a sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado.

Ao tratar do voto do credor na Assembleia Geral de Credores, o art. 38, parágrafo único, determina que para fins exclusivos de votação em assembleia o crédito em moeda estrangeira será convertido para moeda nacional pelo câmbio da véspera da data da realização da assembleia.

Nesse contexto, parece que a melhor solução é a realização da avaliação do bem gravado pelo valor de mercado, considerando a data da distribuição do pedido de recuperação judicial. Estabelecido o momento para a realização da avaliação, surge outra questão, a quem compete a realização da avaliação: ao credor com garantia real, à recuperanda ou ao administrador judicial?

Nos termos do art. 9°, II, caberia ao credor com garantia real apresentar a avaliação do bem no momento da habilitação do crédito, mediante a apresentação de laudo fundamentado elaborado por empresa especializada ou por profissional legalmente habilitado. Entretanto, não há previsão legal específica para a respectiva exigência e a avaliação do bem realizada pelo próprio credor beneficiário não se mostra adequada ao caso.

Outra solução possível para o caso é a realização da avaliação pelo próprio administrador judicial. A exemplo do que ocorre na falência, nos termos do art. 108 da Lei n° 11.101/2005, caberia ao administrador judicial proceder à avaliação do bem gravado e, não se encontrando habilitado para

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fazê-lo, contrataria avaliadores, de preferência oficiais, mediante autorização judicial, conforme disposto no art. 22, III, h, da lei de regência. Nessa hipótese, o laudo de avaliação deve ser apresentado juntamente com a relação de credores prevista no art. 7°, § 2°, a fim de permitir a manifestação dos interessados antes da realização da Assembleia Geral de Credores.

Ressalta-se, ainda, o disposto no art. 53, III, da Lei n° 11.101/2005, prevendo que o plano de recuperação judicial deverá conter “laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada”. De acordo com referido dispositivo, os valores dos bens do devedor são definidos no plano de recuperação e ficam sob a responsabilidade da recuperanda.

No caso, o valor constante no laudo de avaliação subscrito por profissional legalmente habilitado ou por empresa especializada, desde que estabeleça avaliação individual para os bens da recuperanda, poderá ser o documento utilizado para atender ao disposto no art. 41, § 2°, da Lei nº 11.101/2005. Entretanto, o que se verifica nos casos concretos é a apresentação de uma avaliação global de bens por espécie.

Seja qual for o entendimento a ser adotado pela jurisprudência, a avaliação conferida ao bem sempre estará sujeita à impugnação por qualquer interessado. No caso de o bem gravado apresentar valor manifestamente superior ao valor do crédito, a definição do critério, da forma e do momento da avaliação perde a importância, já que o voto do credor, nesse caso, será considerado apenas na classe II pelo valor do seu crédito. Entre as hipóteses apresentadas, parece que a avaliação realizada pelo administrador judicial, mediante a contratação de avaliadores oficiais, mostra-se como a solução mais segura ao caso, cabendo à jurisprudência a definição.

3.4 Os Créditos Excluídos da Recuperação Judicial e a Possibilidade da Manutenção do Bem Objeto de Alienação Fiduciária ou de Arrendamento Mercantil na Posse da Recuperanda Após o Prazo de 180 Dias

A Lei n° 11.101/2005, em atendimento aos interesses das instituições financeiras, exclui da recuperação judicial alguns créditos de origem financeira, conforme se observa no art. 49, § 3°:

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“Art. 49. (...).

§ 3°. Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4° do art. 6° desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”

Ao comentar o art. 49, § 3°, assevera MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO:

“Esta disposição foi o ponto que mais diretamente contribuiu para que a Lei deixasse de ser conhecida como ‘lei de recuperação de empresas’ e passasse a ser conhecida como ‘lei de recuperação do crédito bancário’, ou ‘crédito financeiro’, ao estabelecer que tais bens não são atingidos pelos efeitos da recuperação judicial. (...) Ficará extremamente dificultada qualquer recuperação, se os maquinários, veículos, ferramentas, etc. com os quais a empresa trabalha e dos quais depende para seu funcionamento, forem retirados” (BEZERRA FILHO, 2005, p.136).

De acordo com o art. 49, § 3°, c.c. o art. 6°, § 4°, da Lei n° 11.101/2005, com o deferimento do processamento da recuperação judicial verifica-se a suspensão das ações e execuções em face da recuperanda, sendo vedado, no prazo de 180 dias, a retirada do estabelecimento da recuperanda de bens de capital essenciais à atividade empresarial.

Durante o prazo previsto, a lei assegura que a recuperanda seja mantida na posse do bem essencial ao desenvolvimento da empresa. No caso, é evidente que o prazo legal de 180 dias é extremamente exíguo e insuficiente para qualquer superação de crise que tenha exigido o pedido de recuperação judicial e causado a suspensão dos pagamentos.

Analisado de forma isolada, o prazo legal de 180 dias mostra-se improrrogável. Entretanto, tratando-se de bem de capital essencial ao desenvolvimento da atividade empresarial pela recuperanda, a retirada do

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bem do seu estabelecimento poderia impedir que a finalidade da recuperação judicial fosse alcançada de forma efetiva, frustrando-se o art. 47 da Lei n° 11.101/2005.

Diante das dificuldades decorrentes da aplicação dos arts. 49, § 3°, e 6°, § 4°, da lei de regência, que colocam em risco o êxito da recuperação judicial no País, existem decisões judiciais e entendimentos doutrinários que não admitem a retirada dos bens essenciais da recuperanda, mesmo após o decurso do prazo de 180 dias.

Justifica-se esse posicionamento com base no art. 47 da Lei n° 11.101/2005, que corresponde ao artigo mais importante da legislação, conforme amplamente divulgado pelos especialistas no tema. Referido dispositivo legal determina a finalidade da recuperação judicial a partir de princípios indicados pelo legislador, conforme se observa:

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

A relevância do art. 47 encontra-se expressada por NEWTON DE LUCCA da seguinte forma:

“Trata-se do artigo que instituiu a maior novidade da NLF. Pode-se dizer, em certo sentido, que ele traduz o espírito que terá enfornado toda a nova disciplina jurídica que acaba de ser dada à estampa em fevereiro do corrente ano de 2005” (DE LUCCA, 2005, p.202).

CALIXTO SALOMÃO FILHO, ao se referir à Lei n° 11.101/2005, conclui:

“Pressupõe e inclui princípios que não podem ser negados ou descumpridos, qualquer que tenha sido o grupo de interesses que mais influenciou sua elaboração. (...) é também necessário reconhecer que a recuperação de empresas pressupõe princípios e objetivos que não podem ser desconsiderados. O principal deles é o da preservação da empresa, expressamente declarado no art. 47 da Lei 11.101/2005, de 9 de fevereiro de 2005 (nova Lei de Falências), como princípio da recuperação de empresas” (SALOMÃO FILHO, 2007, p.42.).

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O princípio da preservação da empresa foi expressamente aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência n° 79.170-SP. Na oportunidade, foi apreciado pelo STJ se o juízo diverso do da recuperação judicial teria competência para apreciar pedido de reintegração de posse contra a devedora, quando já transcorrido o prazo de 180 dias previsto na legislação.

No caso, a Corte entendeu que o art. 47 “estabelece, inequivocamente, o objetivo de preservar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado”, de forma que o destino do patrimônio da recuperanda “não pode ser afetado por decisão prolatada em juízo diverso do que é competente para a recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso do plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo de suspensão”. Do contrário, estaria sendo violado o princípio da preservação da empresa, previsto expressamente no art. 47 da Lei n° 11.101/2005.

O julgado do Superior Tribunal de Justiça, acima indicado, é transcrito abaixo:

“Conflito positivo de competência. Recuperação judicial. Ação de reintegração de posse. Suspensão das ações e execuções. Prazo de 180 dias. Uso das áreas objeto da reintegração para o êxito do plano de recuperação.

1. O caput do art. 6º da Lei 11.101/05 dispõe que ‘a decretação da falência ou deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário’. Por seu turno, o § 4º desse dispositivo estabelece que essa suspensão ‘em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação’.

2. Deve-se interpretar o art. 6º desse diploma legal de modo sistemático com seus demais preceitos, especialmente à luz do princípio da preservação da empresa, esculpido no artigo 47, que preconiza: ‘A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica’.

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3. No caso, o destino do patrimônio da empresa-ré em processo de recuperação judicial não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da Recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo legal de suspensão constante do § 4º do art. 6º da Lei nº 11.101/05, sob pena de violar o princípio da continuidade da empresa.

4. Precedentes: CC 90.075/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 04.08.08; CC 88661/SP, Rel. Min, Fernando Gonçalves, DJ 03.06.08.

5. Conflito positivo de competência conhecido para declarar o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo competente para decidir acerca das medidas que venham a atingir o patrimônio ou negócios jurídicos da Viação Aérea São Paulo – VASP (STJ. CC 79170/SP. Rel. Min. Castro Meira. S1 1ª Seção. DJ 10.09.2008).

Conforme se verifica, o julgado do Superior Tribunal de Justiça permite observar que na busca da preservação da empresa as regras de natureza formal aplicadas ao processo de recuperação judicial (v.g. art. 49, § 3°, c.c. art. 6°, § 4°) podem ser relativizadas quando a sua aplicação colocar em risco a execução do plano de recuperação e o êxito da finalidade precípua prevista no art. 47 da Lei n° 11.101/2005. No caso exposto, cumpre ressaltar que o direito do credor restringido para assegurar a finalidade da recuperação judicial não ocorreu de forma definitiva, apenas a suspensão da sua eficácia foi prorrogada.

O entendimento que determina a manutenção da posse de um bem do devedor em um contrato de arrendamento mercantil ou de alienação fiduciária não é inusitada, conforme se verifica nas seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:

“Ação de rescisão contratual cumulada com reintegração de posse – Tutela antecipada – Bens indispensáveis ao funcionamento da empresa – Precedentes. Admissível se mostra a justificativa da recorrente quanto à necessidade de permanecer com os bens arrendados, considerando-se, ademais, que não se depara com demonstração em contrário, no que concerne à indispensabilidade do maquinário para a continuidade da atividade da empresa. Recurso especial

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provido” (STJ. REsp n° 603.721. 3ª T. Rel. Min. Castro Filho. DJ 04.05.2004. v.u.).

“Agravo de instrumento. Ação de busca e apreensão. Permanência do bem na posse da devedora. Precedentes da corte. 1. A jurisprudência da Corte tem entendido ser possível permanecer o bem na posse da devedora até o julgamento da demanda, quando essencial ao desenvolvimento de suas atividades produtivas, até mesmo em estágio de medida cautelar para conferir efeito suspensivo a recurso especial.

2. Recurso especial conhecido e provido” (STJ. REsp n° 573.704-SP. 3ª T. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. DJ 29.06.2004. v.u.).

“Agravo no agravo de instrumento – Alienação fiduciária – Busca e apreensão – Permanência dos bens em posse do devedor. Em se tratando de maquinaria indispensável à atividade do devedor, porquanto meios necessários à obtenção de recursos para seu sustento, bem como para o pagamento do débito, é lícito que tais bens permaneçam em sua posse, enquanto se discutem questões de fundo, tanto em ação revisional ou como matéria de defesa. Inexiste, no caso, ofensa ao art. 3º do Decreto-Lei nº 911/69” (STJ. AGA nº 225.784/RS. Relatora Ministra Nancy Andrighi. DJ de 23.10.2000).

Conforme se verifica, mesmo nos casos em que a devedora não se encontra em processo de recuperação judicial, prestigia-se a manutenção da posse do bem objeto da lide, quando essencial à atividade empresarial da devedora. Justifica-se referido entendimento pelo fato da retirada do bem, seja no caso de reintegração de posse, seja na hipótese de busca e apreensão, interromper o desenvolvimento da atividade empresarial e agravar a situação de crise da devedora. Se mantida na posse do bem essencial, por meio da exploração da empresa, a devedora conseguiria meios de realizar o pagamento do próprio bem.

Transportando a questão para o âmbito de interesses de um processo de recuperação judicial, o tema ganha proporções ainda maiores, diante das consequências decorrentes perante os demais credores, trabalhadores e parceiros comerciais da recuperanda.

O risco da paralisação do desenvolvimento da atividade econômica pela remoção de bem essencial à cadeia produtiva atinge diretamente a

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finalidade da recuperação judicial, expressamente prevista no art. 47 da Lei n° 11.101/2005, não se mostrando a solução adequada no presente caso, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, acima exposto.

A justificativa para a permanência do bem arrendado no estabelecimento da recuperanda, sob a sua posse, mostra-se amplamente admissível, considerando-se os interesses envolvidos. Por outro lado, não se vislumbra desvantagem significativa para o credor nesse caso; afinal, o interesse é no recebimento do valor devido, não no bem propriamente considerado.

Nesse sentido, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Alienação fiduciária – Ação de busca e apreensão – Bem alienado fiduciariamente – Pessoa jurídica em recuperação judicial – Diante da essencialidade do bem alienado fiduciariamente, deve o mesmo permanecer com a pessoa jurídica empresária em recuperação judicial. Interpretação sistemática dada ao art. 6°, caput, com o art. 47, ambos da Lei 11.101/05. Agravo provido” (TJSP. Ag. I. 990.09345481-5. 25ª Câmara de Direito Privado. Rel. Antonio Benedito Ribeiro Pinto. DJ 12.04.2010).

Sem dúvida, trata-se de questão de grande complexidade que tem atormentado a vida dos Magistrados, que reconhecem a impropriedade da lei, criticando-a expressamente, mas se rendem, muitas vezes, à sua força. Nesse sentido, a seguinte decisão, em que foi Relator o ilustre Desembargador Manoel Justino Bezerra Filho:

“Alienação fiduciária – Busca e apreensão – Liminar indeferida, mantendo os bens na posse da empresa devedora – Recuperação judicial da arrendatária – Credor proprietário fiduciário – Inaplicabilidade do artigo 49, § 3º, da Lei n° 11.101/2005, tendo em vista o decurso do prazo de 180 dias – A busca e apreensão em alienação fiduciária contratada com sociedade empresária requerente de recuperação judicial não pode ser efetuada no prazo de 180 dias, a contar do deferimento do processamento do pedido de recuperação, por força do § 3º do artigo 49 c.c. o § 4º do artigo 6º da Lei 11.101/05. Superado este prazo, a recuperação deve estar concedida (art. 58) ou a falência terá sido decretada, não constituindo mais o processamento do pedido de recuperação óbice ao prosseguimento do pedido de busca e apreensão e consequente exame do pedido

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liminar. Pode-se – e deve-se – criticar a disposição legal que, ao que parece, preocupou-se mais com o favorecimento ao capital financeiro do que propriamente com a possibilidade de recuperação da sociedade empresarial; no entanto, a lei está posta e, pelo menos por ora e nestes autos, não se vislumbra possibilidade de decisão diversa. Recurso provido, v.u.” (TJSP. Ag. I. 990100816187. 35ª Câm. Dir. Privado. Rel. Manoel Justino Bezerra Filho. DJ 25.04.2010).

A Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não possui o mesmo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, prestigiando a análise restrita do art. 6°, § 4°, da Lei n° 11.101/2005, em detrimento do art. 47 da mesma lei, conforme se verifica abaixo:

“Agravo. Recuperação judicial. Indeferimento do pedido de prorrogação do prazo de 180 dias previsto no § 4º do art. 6º da Lei n° 11.101/2005. Prazo improrrogável. Na recuperação judicial, a suspensão do processamento das ações e execuções prevista no caput do art. 6° ‘em nenhuma hipótese excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente do pronunciamento judicial’. Agravo improvido” (TJSP. Ag. I. 990101241510. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Desemb. Pereira Calças. DJ 04.05.2010).

Diante das controvérsias, verifica-se ser a questão uma das mais complexas da recuperação judicial. Por um lado, prestigia-se a interpretação restritiva da lei, não se admitindo a prorrogação do prazo de 180 dias em nenhuma hipótese, ainda que a retirada dos bens essenciais da recuperanda comprometa a execução do plano de recuperação judicial e possa acarretar a sua falência. Por outro lado, a aplicação sistemática da Lei n° 11.101/2005, tendo o art. 47 como foco principal, assegura a manutenção do bem essencial no estabelecimento da recuperanda e contribui para o cumprimento do plano de recuperação, permitindo a manutenção da empresa e do emprego dos trabalhadores, contribuindo para o êxito da recuperação ao mesmo tempo em que impõe dificuldades para o credor financeiro receber o seu crédito.

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A equalização dos interesses envolvidos não constitui tarefa simples e divide entendimentos. Considerando a possibilidade da consolidação da interpretação sistemática da Lei n° 11.101/2005, conforme se vislumbra pelas manifestações do Superior Tribunal de Justiça, para assegurar o êxito da recuperação nos termos do seu art. 47, há a necessidade de os credores financeiros repensarem a estratégia para o recebimento dos créditos decorrentes de alienação fiduciária e de arrendamento mercantil, excluídos da recuperação judicial pela lei para o benefício desses credores, em detrimento do sucesso da própria recuperação.

Talvez a inclusão no plano de recuperação judicial dos créditos financeiros excluídos por força do art. 49, § 3°, constitua uma forma de reajustar os desajustes decorrentes da lei pelos próprios participantes da recuperação, sob pena de o necessário reajuste decorrer do Poder Judiciário, conforme vem se verificando pelas decisões do Superior Tribunal de Justiça e pelos Magistrados que seguem o mesmo entendimento da Corte Superior.

Nesse aspecto, vale lembrar que o disposto no art. 57, ao exigir as certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial, foi interpretado como sanção política e afastado pelas decisões judiciais. Ainda que algumas decisões justifiquem a não aplicação do art. 57 pela ausência de regulamentação específica para o parcelamento tributário previsto no art. 68 da Lei n° 11.101/2005, o fato é que nesse caso o que está previsto expressamente na lei não está sendo exigido; do contrário, a concessão da recuperação judicial no País dificilmente ocorreria.

Portanto, considerando o risco de falência em razão da retirada de bens essenciais do estabelecimento da recuperanda, não se pode negar que a tendência é pela interpretação sistemática da lei visando a assegurar o êxito da recuperação judicial. Nessa perspectiva, a inclusão no plano de recuperação dos créditos excluídos pela lei pode ser a melhor forma de garantir o sucesso da recuperação e de resguardar os interesses dos credores financeiros. De acordo com a legislação vigente, essa inclusão torna-se possível com a concordância dos credores financeiros, a quem cabe a opção entre receber o crédito na forma prevista no plano a ser aprovado na Assembleia Geral de Credores ou buscar outras formas de assegurar os seus direitos, lembrando que poderá enfrentar dificuldades na retirada dos bens essenciais do estabelecimento da recuperanda.

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3.5 A Apresentação de Objeções ao Plano e a Convocação da Assembleia Geral de Credores

A questão da convocação da Assembleia Geral de Credores (AGC) mediante a simples apresentação de objeções ao plano é matéria enfrentada pela doutrina. Trata-se de questão relativamente recente e que desperta interesse em razão de a apresentação de objeções, em alguns casos, ocorrer como mero cumprimento de protocolo de conduta e, em outros casos, como ato que pode caracterizar, até mesmo, abuso de direito.

O art. 55 da Lei n° 11.101/2005 prevê que qualquer credor pode apresentar objeção ao plano. Entretanto, é evidente que a objeção deve conter fundamentos relevantes que justifiquem a sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada; do contrário, as objeções ao plano tornar-se-ão meios meramente procrastinatórios nos processos de recuperação judicial.

A objeção deve ser elaborada de forma criteriosa e responsável pelo credor, diante da possibilidade de configurar abuso de direito e, dependendo do caso, caracterizar até mesmo litigância de má-fé, em razão dos interesses relacionados e da consequência prevista no art. 56, caput, da Lei n° 11.101/2005:

“Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação.”

Diante da respectiva previsão legal, surgem as seguintes indagações: a) a apresentação de objeções por credores não sujeitos ao plano exige, necessariamente, a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz?; b) a apresentação de objeções contendo elementos que podem ser facilmente solucionados diante de manifesto equívoco exige necessariamente a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz?

Sem dúvida trata-se de questões de grande complexidade, que exigem análise cuidadosa e voltada para a finalidade da lei, diante dos interesses envolvidos. A princípio, considerando exclusivamente o disposto no art. 56, caput, a resposta seria positiva para as duas perguntas apresentadas acima. Entretanto, quando ocorre a análise sistemática da lei, a clareza do art. 56 desaparece e a certeza da afirmativa antes apresentada não resiste ao disposto no art. 45, § 3°:

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“§ 3°. O credor não terá o direito a voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação judicial não alterar o valor ou as condições originais de pagamento de seu crédito.”

Nesse sentido, assevera o consagrado Desembargador MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO, ao comentar o art. 45 da Lei n° 11.101/2005:

“O § 3° estipula, ainda, que apenas tem direito a voto nas deliberações sobre o plano de recuperação o credor cujo crédito vier a ser alterado em seu valor ou nas condições de pagamento. Se o crédito não sofre qualquer alteração, o respectivo credor não tem direito a voto, além de não poder ser computada sua presença para fins de verificação de quorum” (BEZERRA FILHO, 2005, p.126).

De acordo com os dispositivos apresentados, qualquer credor poderá apresentar objeção ao plano, mas não é qualquer credor que poderá votar na Assembleia Geral de Credores nas deliberações referentes ao plano. A convocação da Assembleia Geral de Credores estabelece ônus para a recuperanda e também para os credores sujeitos ao plano, retardando o deferimento da recuperação judicial e o respectivo início dos pagamentos previstos, além das despesas impostas à recuperanda (convocação e realização da AGC) e aos credores (viagens e hospedagens).

O respeitado jurista ADALBERTO SIMÃO FILHO, ao tratar do sistema de aprovação tácita do plano de recuperação judicial, enfrenta a questão, apresentando entendimento inovador:

“Este sistema é criado a partir do artigo 55 da lei, que concede a qualquer credor a possibilidade de manifestar ao juiz a sua objeção ao plano de recuperação judicial. O credor poderá objetar o plano, no curso do prazo de 30 (trinta) dias contados ou da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do artigo 7º, ou da publicação do aviso do artigo 53 sobre o recebimento do plano de recuperação, caso na primeira hipótese ainda não se tenha o plano nos autos.

Esta objeção ao plano de recuperação, quando formulada nos moldes da lei, leva à necessidade de convocação de Assembleia Geral de credores por parte do Juiz.

Contudo, a lei não menciona acerca da natureza da objeção que possa levar o juiz à convocação da assembleia. Será qualquer

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objeção de ordem formal ou material que gerará esta consequência? Pensamos que não. Pode haver objeção que não se relaciona efetivamente ao plano de recuperação, mas sim a questões de diversas ordens que possam envolver o credor que objetou e a devedora concernentes ao negócio jurídico subjacente.

Ainda, pode ser apresentada como objeção alguma inconformidade por parte de credor que sequer é concorrente na recuperação judicial.

Pode ainda o devedor, prontamente, refutar os argumentos de objeção e demonstrar que os mesmos não são válidos, gerando o conformismo daquele que objetou.

Nestes casos e assemelhados, entendemos pela desnecessidade da convocação da assembleia de credores por parte do juiz.

A objeção tem aqui a intelecção de contrariedade e esta contraposição deve ser formulada pelo credor diretamente sobre o plano de recuperação judicial, seu conteúdo, consistência e fundamento, gerando, assim, a necessidade de convocação de Assembleia Geral.

Todavia, uma vez não havendo objeção de qualquer credor ou, ainda, solucionados os temas que possam ter gerado objeção com uma posição favorável daquele que objetou, após o curso do prazo previsto no artigo 55, o juiz concederá a recuperação judicial, por ter entendido ter sido o plano aprovado tacitamente. A este conjunto de providências que redundam na aprovação do plano, demos a denominação de sistema de aprovação tácita e o seu fundamento se encontra na primeira parte do caput do artigo 58 da lei” (SIMÃO FILHO, 2009, p.49-50).

Considerando a consequência decorrente da apresentação de objeção ao plano, que pode ser realizada por qualquer credor, o juiz deve analisar o conteúdo da objeção para verificar se a mesma apresenta fundamentos relevantes que justifiquem a sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada; do contrário, as objeções ao plano tornar-se-ão meios meramente procrastinatórios nos processos de recuperação judicial.

O art. 56 da Lei n° 11.101/2005 deve ser interpretado em consonância com os demais dispositivos legais, de forma a não servir de meio

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protelatório a favor de devedor mal intencionado ou para atender a pretensões infundadas de credor, em detrimento dos legítimos interesses dos demais credores.

Nesse contexto, ressalta-se a importância do Juiz na identificação das referidas questões. A Lei n° 11.101/2005 atribui poderes, funções e atribuições maiores e mais amplos ao juiz na condução do processo de recuperação da empresa. Nesse sentido, o art. 58, § 1°, demonstrando que o juiz mantém o poder de decisão nos autos, prevê situação na qual, mesmo rejeitado o plano pela Assembleia Geral de Credores, o juiz poderá conceder a recuperação pretendida pelo devedor.

Ao tratar da atuação do juiz no processo de recuperação judicial, JORGE LOBO ressalta:

“Na ação de recuperação judicial, o juiz exerce poder-fim, portanto de cunho jurisdicional, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, caput; 55, caput; 56, § 4°; 58, caput e § 1°; 63; exerce poder-meio, por conseguinte instrumental, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 51, §§ 1° e 3°; 52, III e V e § 1°; 53, parágrafo único; 65, caput e § 2°; e exerce poder administrativo, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, I, II e IV, § 1°; 60; 66; 69, parágrafo único.

É curial que, ao exercer os poderes de caráter jurisdicional, instrumental ou administrativo, o juiz não é um órgão passivo, mero homologador das decisões da assembleia geral ou do comitê de credores ou do administrador judicial, pois, ao ordenar o processamento da ação, proferir despachos, decisões e sentenças, superintender a administração da empresa em crise, enfim, presidir o processo de recuperação, deve fazê-lo com tirocínio, competência e plena liberdade, formando sua convicção, seu ‘livre convencimento’, de acordo com as provas dos autos, ciente de que seus atos estão sujeitos a recurso de agravo” (LOBO, 2007, p.171).

MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO, ao comentar o art. 56 da Lei n° 11.101/2005, ressalta os poderes do juiz para verificar se as objeções apresentadas são suficientes para motivar a convocação da Assembleia Geral de Credores:

“Terá o juiz que se valer de seu poder de direção do processo e examinar, para formação de conhecimento provisório sobre a viabilidade (ou não) de existência do crédito e, a partir da

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convicção, também provisória, que formar, decidir se deve ou não convocar a assembleia geral” (BEZERRA FILHO, 2005, p.165).

Ressaltando a necessidade de ser atribuído ao julgador atuação além dos limites literais da lei para assegurar o princípio da preservação da empresa, a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Agravo de Instrumento – Recuperação Judicial – Aprovação do Plano – Critérios. Ao julgador há de ser dado certo campo de atuação além dos limites literais da lei para que prevaleça o princípio da manutenção da empresa que revele possibilidade de superar a crise econômico-financeira pela qual esteja passando. Quanto à previsão de pagamento em ações de sociedade anônima, evidente que não se confunde com constrangimento do Agravante a associar-se, não só porque o Agravante não precisa participar ativamente da nova sociedade, usando as ações como valores mobiliários, como porque poderá livremente negociá-las. Agravo desprovido (TJSP. Ag. Inst. 6577334600. Rel. Lino Machado. DJ 27.12.2009).

Em consonância com os entendimentos destacados e de acordo com a interpretação sistemática da Lei n° 11.101/2005 prestigiada pelo Superior Tribunal de Justiça, destinada a assegurar o êxito da recuperação judicial, nos termos do art. 47, ressalta-se a inovadora decisão do ilustre Magistrado Ronaldo Guaranha Merighi:

“Acontece que os créditos dos que objetaram não sofreram modificação alguma por conta do plano de recuperação. Vale dizer: mantiveram-se nas condições originalmente contratadas, conforme o disposto no § 2º, primeira parte, do art. 49 da Lei 11.101/05. Ora, não obstante o disposto no art. 55, evidentemente só pode objetar o credor que tenha interesse jurídico. E esse interesse, pelo tipo de crédito, pela não alteração pelo plano e pelo que foi objetado, não se verificou na situação vertente. Logo, efetivamente, o disposto no art. 56 deve ser interpretado em consonância com o disposto no art. 45, § 3°. Afinal, o credor não sujeito ao plano, que não tem direito a voto e não é considerado para fins de quorum, só de modo excepcionalíssimo poderia gerar o dever de convocação de assembleia. Nunca no caso concreto, que as objeções são flagrantemente inconsistentes. Poder-se-ia argumentar que somente a assembleia teria poderes para deliberar

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sobre plano. Mas, aqui, de se invocar a Doutrina colacionada pelo Administrador: ‘A objeção tem aqui a intelecção de contrariedade e esta contraposição deve ser formulada pelo credor diretamente sobre o plano de recuperação judicial, seu conteúdo, consistência e fundamento, gerando, assim, a necessidade de convocação de Assembleia Geral. Todavia, uma vez não havendo objeção de qualquer credor ou, ainda, solucionados os temas que possam ter gerado objeção com uma posição favorável daquele que objetou, após o curso do prazo previsto no artigo 55, o juiz concederá a recuperação judicial, por ter entendido ter sido o plano aprovado tacitamente. A este conjunto de providências que redundam na aprovação do plano, demos a denominação de sistema de aprovação tácita e o seu fundamento se encontra na primeira parte do caput do artigo 58 da lei’ (SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembleias gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In: DE LUCCA, Newton; DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coord.). Direito Recuperacional: Aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.49-50). Em outras palavras, os credores que tinham interesse jurídico de oferecerem objeção e não o fizeram aprovaram tacitamente o plano e a convocação imotivada da assembleia prejudicaria não só interesses da recuperanda mas também destes próprios credores. No mais, invocando como razão de decidir os argumentos alinhavados pelo Administrador, indefiro as objeções pelos fundamentos já alinhavados e deixo de convocar a assembleia de credores de que cuida o art. 56, da Lei de Regência” (Processo n° 358.01.2009.003284-3. 3ª Vara Judicial de Mirassol, SP. Mag. Ronaldo Guaranha Merighi. DJ. 12.03.2010).

Conforme se verifica, a simples apresentação de objeções ao plano não deve constituir pressuposto inarredável para a convocação da Assembleia Geral de Credores. Muitas vezes, as objeções abrangem questões que podem ser facilmente esclarecidas sem a convocação da AGC. Diante de objeções manifestamente inconsistentes pelos equívocos dos seus conteúdos, o juiz deve, visando à celeridade processual, atender aos interesses dos credores e da própria recuperação judicial, buscar soluções que permitam o saneamento dos pontos controvertidos.

Considerando os poderes conferidos ao juiz, uma vez constatado que as objeções apresentam pontos que podem ser solucionados sem a

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convocação da AGC, parece que a determinação judicial para a manifestação da recuperanda e do próprio administrador judicial sobre as objeções pode constituir uma forma eficiente para solucionar os pontos controvertidos e evitar, muitas vezes, a convocação desnecessária da AGC.

Imagine-se uma objeção apresentada por credor não sujeito ao plano que discorde do prazo de parcelamento apresentado e da ausência da previsão de pagamento de juros e correção monetária por entender, equivocadamente, estar o seu crédito sujeito ao plano. Constatado o equívoco, existindo manifestações da recuperanda e do administrador judicial demonstrando a não sujeição do crédito do objetor ao plano, a questão é esclarecida e o credor verifica que poderá cobrar o seu crédito imediatamente, não se encontrando sujeito às condições de pagamento previstas no plano.

Se houvesse a convocação da AGC, o credor objetor não teria direito a voto e o seu crédito não seria considerado, nos termos do art. 45, § 3°, nem mesmo para a verificação do quorum de deliberação sobre o plano. No caso, a AGC seria convocada em razão da objeção apresentada por um credor que não poderia, por meio do seu voto, aprovar, alterar ou rejeitar o plano apresentado, mostrando-se totalmente desnecessária.

Convocada a AGC em razão da aludida objeção, os credores sujeitos ao plano que já o aprovaram tacitamente, mediante a ausência da apresentação de objeções, seriam convocados para participar da AGC para votar no plano com o qual eles já haviam concordado, lembrando que a participação na AGC exige despesas com viagens, alimentação, hospedagem, entre outros. Por outro lado, rejeitada a objeção após os esclarecimentos dos equívocos constatados, o juiz poderia deferir a recuperação judicial e o processo ingressaria diretamente na fase de execução, sem a convocação da AGC.

O entendimento apresentado mostra-se adequado e prestigia a celeridade e a economia processual, bem como o interesse dos credores e a finalidade da recuperação judicial, prevista no art. 47 da lei de regência. Entretanto, a redação do art. 56, caput, pode constituir obstáculo à sua concretização se não houver por parte dos Tribunais a atenção necessária na busca da aplicação sistemática da Lei n° 11.101/2005, conforme determinado pelo Superior Tribunal de Justiça.

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3.6 A Conservação dos Direitos dos Credores Perante os Coobrigados da Recuperanda

O art. 49, § 1°, da Lei n° 11.101/2005 assegura aos credores da recuperanda a conservação de seus direitos em relação aos coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, permitindo que os credores possam, mesmo com a recuperação judicial, promover a execução de seus créditos contra avalistas, endossantes e fiadores da recuperanda. Na hipótese de a recuperanda ter emitido uma nota promissória que contém um aval ou ter celebrado um contrato de mútuo com fiador, mesmo que o crédito decorrente da nota promissória ou do contrato sujeite-se aos efeitos da recuperação, o credor pode executar o avalista ou o fiador de acordo com o título que apresente a garantia pessoal, independentemente do que esteja previsto no plano de recuperação judicial.

Embora o texto legal mostre-se bastante claro e objetivo, é possível a identificação de quatro correntes distintas sobre a questão. A primeira delas prestigia o texto legal, assegurando ao credor exercer os seus direitos contra os coobrigados, na forma prevista no art. 49, § 1°, conforme se verifica nas seguintes decisões:

“Execução – Avalista – Recuperação judicial prevista na Lei 11.101/2005 que não atinge os direitos de crédito detidos em face de devedores solidários, fiadores e avalistas, podendo o respectivo titular exercê-los em sua inteireza – Aplicação do § 1º do art. 49 da Lei 11.101/2005 – Embargante, pessoa física, que figurou no polo passivo da execução em virtude de ser avalista. Execução – Avalista – Novação da dívida que não impede o banco embargado de promover a execução em face do avalista – Art. 59 da Lei 11.101/2005 que prevê, expressamente, a preservação das garantias do crédito – Novação prevista no art. 59 da Lei 11.101/2005 que não tem a mesma natureza jurídica do instituto regrado pelo art. 360 do CC. Execução – Avalista – Inaplicabilidade do art. 365 do atual CC – Prevalência da norma especial inserida no art. 59, caput, da Lei 11.101/2005 – Caso em que não se verificou a perda superveniente do interesse processual do banco embargado. Execução por título extrajudicial – Contrato de mútuo intitulado de ‘Cédula de Crédito Bancário’ – Instrumento formalmente perfeito – Documento assinado pela devedora principal, pelo embargante, pelo devedor solidário e por duas

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testemunhas – Banco embargado que possui título executivo extrajudicial hábil a promover a execução – Art. 585, II, do CPC – Documento revestido dos requisitos da certeza, liquidez e exigibilidade. (...)” (TJSP. Ap. 990100036645. 23ª Câm. Dir. Privado. Rel. Rizzato Nunes. DJ 07.04.2010).

“Agravo de instrumento – Ação de execução – Embargos do devedor – Recebimento no efeito suspensivo – Alegação de que a recuperação judicial da devedora principal não atinge as obrigações do agravado e de inexistência dos requisitos necessários à concessão do efeito suspensivo – Recuperação judicial – Cabimento da suspensão das ações intentadas somente contra a pessoa jurídica – Prosseguimento das ações em relação aos devedores solidários – Exegese da Lei n° 11.101/05 – Recurso provido” (TJSP. Ag. I. 990093303647. 20ª Câm. Dir. Privado. Rel. Miguel Petroni Neto. DJ 14.06.2010).

A segunda corrente mostra-se totalmente contrária ao disposto no art. 49, § 1°, entendendo que os coobrigados também são beneficiados pela recuperação judicial, conforme se verifica abaixo:

“Embargos de declaração – Acórdão que deu parcial provimento a agravo instrumento, para, após a garantia integral do juízo, suspender o andamento da execução contra os devedores solidários de empresa em recuperação judicial – Existência de omissão e contradição que ficam supridas com a complementação da fundamentação, mas sem o pretendido efeito infringente – Embargos de ambas as partes acolhidos em parte.”

Trecho do acórdão:

“(...) Com a devida vênia das alegações da exequente, inclusive fundamentada em decisões desta C. 16ª Câmara de Direito Privado, não há que se falar em negativa de vigência dos dispositivos legais da nova Lei de Falências e Recuperações Judiciais (11.101/05), tendo em vista que o Acórdão fundamentou sua posição nas disposições do artigo 739-A do Código de Processo Civil, entendendo ser relevante a argumentação dos executados quanto à cobrança em duplicidade do crédito. Em nenhum momento o Acórdão mencionou a extinção da responsabilidade solidária dos agravantes, tanto que deu apenas provimento em parte ao agravo, desacolhendo a pretensão de

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extinção da execução. Não se trata de desrespeito às disposições legais que preservam as garantias do credor contra os coobrigados, mas sim de se estabelecer uma ordem lógica de preferência para cobrança da dívida, aguardando-se o resultado do processo de recuperação judicial, conforme o plano estabelecido na assembleia de credores. Nesse sentido, pertinente a transcrição de parte do Acórdão da Apelação nº 7.166.479-6 da 21ª Câmara de Direito Privado deste e. Tribunal, Relator o Desemb. Souza Lopes, j. 31.10.2007:

‘A questão de fundo é saber se, com o deferimento da recuperação judicial, o sócio da empresa que garante o contrato, ou mesmo títulos de crédito, é atingido, ou não, pelos efeitos daquela lei concedendo o benefício legal. A esse respeito, deve ser destacada a posição do ilustre Magistrado Mauro Conti Machado, que, em brilhante voto do Agravo de Instrumento nº 7.158.047-9, assinala: ‘A redação do artigo 6º da Lei 11.101, de 2005, ao falar em suspensão da obrigação com a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial, suspende o curso da prescrição de todas as ações e execuções promovidas em face do devedor, inclusive contra aquelas dos credores particulares, dos sócios solidários, não quer dizer que suspende, também, as ações em face aos devedores solidários do devedor principal. A interpretação deve ser promovida de forma lógico-sistemática, com a adoção do princípio teleológico, excluindo-se aquela que resulte no absurdo, e se é princípio elementar de hermenêutica que deve ser realizada visando aos fins práticos que foram relevados pelo legislador no momento normogenético de criação da norma, deve-se perguntar, primeiro, se o devedor solidário principal confunde-se, aqui, com os credores particulares do sócio solidário. Uma situação jurídica não leva naturalmente a outra. É princípio elementar de hermenêutica que a inclusão de um implica a exclusão do outro, onde a lei não distinguiu, não cabe ao intérprete fazê-lo, pois a norma jurídica não é um salto no vazio despida de valores, mas, sim, a regra que impõe, visando ao bem comum, com a preservação do mínimo ético, que é a finalidade última do próprio Estado, no plano lógico, para explicar o fenômeno do direito. Assim, se é inequívoco que a norma quis considerar, neste caso, o credor particular do sócio solidário, cuja existência afeta também a massa objetiva que se formará com a falência e que, por injunção lógica, acarretará reflexos em concreto na recuperação judicial, que não se confunde com a do devedor

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solidário do devedor principal, logicamente, pois não se estará diante de uma situação jurídica, porém, diversa, inconfundível’.

Portanto, não há como se concluir de forma diversa, ou seja, os sócios da empresa que obteve a recuperação judicial, com a homologação do plano para pagamento futuro de seus credores, devedores solidários que são, seja como avalistas, ou qualquer outra espécie de garante, são atingidos pelo efeito, repita-se, do benefício da recuperação judicial. Do contrário, estar-se-ia avalizando o absurdo de se ter a pessoa jurídica como beneficiária, enquanto os sócios, devedores solidários que são, sofreriam o prosseguimento de execução.’ É certo que no mencionado julgamento da 21ª Câmara, seus integrantes entenderam pela inexigibilidade do título exequendo, extinguindo por completo a execução, enquanto esta c. 16ª Câmara adota uma posição mitigada, determinando apenas a suspensão da execução até que se tenha o desfecho da recuperação judicial. Contudo, o raciocínio lógico das fundamentações é exatamente o mesmo, qual seja a impossibilidade de cobrança simultânea da mesma dívida em processos distintos. A extinção ou não da execução dependerá do resultado obtido nos autos da recuperação judicial” (TJSP. Emb. de Declaração 991090015542. 16ª Câm. Dir. Privado. Rel. Windor Santos. DJ 06.04.2010).

A terceira corrente prestigia o caráter contratual da recuperação judicial, estendendo os efeitos da novação aos coobrigados desde que prevista no plano de recuperação judicial e que os credores sujeitos aos seus efeitos a tenham aprovado sem qualquer restrição. No caso, os credores que não compareceram à assembleia, votaram contra ou se abstiveram não são atingidos pela previsão constante no plano, prevalecendo o disposto no art. 49, § 1°, em relação a esses credores.

No caso, considera-se a possibilidade de a recuperanda incluir no plano cláusula expressa estabelecendo que a novação prevista no art. 59, caput, da Lei n° 11.101/2005 será aplicada aos coobrigados, devedores solidários, avalistas e fiadores. MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS ressalta que as garantias pessoais de natureza patrimonial constituem direitos disponíveis, inexistindo qualquer empecilho legal para que os credores da recuperanda concordem ou discordem da cláusula extensiva

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dos efeitos da novação a coobrigados, fiadores e avalistas (CALÇAS, 2009, p.127).

De acordo com essa terceira corrente, a novação prevista no plano em face das garantias fidejussórias não se aplica aos credores presentes que se abstiveram de votar o plano ou o rejeitaram e aos credores ausentes. Para que a novação seja aplicada aos coobrigados, excepcionando o disposto no art. 49, § 1°, é necessária a anuência expressa dos credores, que voluntariamente concordam com a previsão excepcional constante no plano.

As decisões abaixo demonstram a aplicação desta terceira corrente:

“Recuperação judicial. Agravo de instrumento. Plano de recuperação judicial que contém cláusula que estende os efeitos da novação aos coobrigados, devedores solidários, fiadores e avalistas. Concessão do plano com aplicação do cram down do art. 58, § 1º e incisos, da LRF. A novação prevista como efeito da recuperação judicial não tem a mesma natureza jurídica da novação disciplinada pelo Código Civil. Pretensão de credor de acolhimento de sua objeção colimando a nulidade da cláusula extensiva da novação aos garantidores fidejussórios (fiadores e avalistas). Nulidade não reconhecida. Validade e eficácia da cláusula em face dos credores que expressamente aprovaram o plano, por se tratar de direito disponível, que, ao assim votarem, renunciam ao direito de executar fiadores/avalistas durante o prazo bienal da ‘supervisão judicial’. Ineficácia da cláusula extensiva da novação aos coobrigados pessoais (fiadores/avalistas) em relação aos credores presentes à Assembleia Geral que se abstiveram de votar, bem como aos ausentes do conclave assemblear. Evidente ineficácia da cláusula no que se refere aos credores que votaram contra o plano e, a fortiori, aos credores que formularam objeção relacionada com a ilegalidade da cláusula extensiva da novação. Agravo provido, em parte, para reconhecer a ineficácia da novação aos coobrigados por débitos da recuperanda, dos quais a agravante é a credora. Extensão dos efeitos deste julgamento aos credores ausentes, abstinentes e aos que formularam objeção à cláusula hostilizada” (TJSP. Ag.I. 5805514000. 10ª Câm. Dir. Privado. Rel. Pereira Calças. DJ 19.11.2008).

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“Recuperação judicial – Coobrigados – Plano de recuperação aprovado pela assembleia geral – Novação que não os atinge automaticamente – Ineficácia da cláusula extensiva da novação aos garantidores em se tratando de credor que votou contra a aprovação do plano – Prosseguimento da execução promovida pelo agravante contra avalistas – Recurso provido (TJSP. Ag. I. 990100916904. Câm. Rservada à Falência e Recuperação. DJ 01.06.2010).

A quarta corrente corresponde a uma variação da terceira e foi desenvolvida pelo Desembargador MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO. De acordo com o ilustre falencista:

“O que se pretende aqui é firmar posição no sentido de que a aprovação expressa do credor só é necessária para o caso do § 1° do art. 50 (supressão de garantia real), não havendo qualquer outro dispositivo que faça a mesma exigência para as demais ‘garantias’, entre elas a prestada pelo fiador, endossante, avalista e garantidores fidejussórios em geral. Em consequência, a decisão da AGC acatando a liberação do coobrigado obriga aqueles que estão sujeitos à recuperação, independentemente da concordância expressa ou mesmo do comparecimento do credor garantido. Ou seja, a decisão da AGC obriga a todos os credores sujeitos à recuperação, mesmo os discordantes e os ausentes” (BEZERRA FILHO, 2009, p.133).

Conforme se verifica, a questão é controvertida. Entre os entendimentos apresentados, considerando a natureza contratual da recuperação judicial, parece que as duas últimas correntes apresentadas mostram-se mais adequadas ao caso concreto, cabendo apenas definir o alcance do disposto no plano em relação aos credores ausentes, abstinentes e que votaram contrariamente ao plano em caso de o mesmo ser aprovado. De qualquer forma, diante das repercussões decorrentes, para assegurar os seus direitos contra os coobrigados, os credores devem ficar atentos ao conteúdo do plano para a definição da votação na Assembleia Geral de Credores.

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme se observa, a Lei n° 11.101/2005 apresenta importantes pontos que permitem questionamentos e entendimentos conflitantes,

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principalmente diante dos inúmeros conflitos de interesses presentes no processo de recuperação judicial, exigindo do aplicador do Direito a interpretação sistemática da legislação em atenção à finalidade prevista no art. 47. Por outro lado, referido dispositivo, denominado por alguns como o “espírito da lei” e por outros como sendo o seu “coração”, deve ser aplicado dentro dos limites necessários à segurança jurídica.

O estabelecimento desse limite constitui o ponto de maior dificuldade, correspondendo ao desafio imposto para assegurar que o princípio da preservação da empresa seja utilizado como um instrumento de interpretação das normas que disciplinam a recuperação judicial, para assegurar a finalidade da legislação e a função social da empresa. O princípio da preservação da empresa não pode ser adotado de forma absoluta e descriteriosa, não prevalecendo sempre que colidir com outros princípios e normas, notadamente os que fundamentam o interesse da coletividade dos credores, de forma a impedir de maneira definitiva e concreta o exercício dos seus direitos.

A Lei n° 11.101/2005 apresenta dispositivos legais que exigem a aplicação ajustada pela doutrina e pela jurisprudência para o efetivo atendimento à finalidade prevista em seu art. 47, de forma a assegurar os fins previstos para a recuperação judicial, em especial a preservação da empresa e os seus fins sociais. Nesse contexto, o direito do credor deve ser compreendido no âmbito da recuperação judicial, analisando-se os demais fatores envolvidos, não parecendo adequada a interpretação literal e isolada de qualquer dispositivo da Lei n° 11.101/2005, sob pena de a finalidade prevista em seu art. 47 ser seriamente comprometida por decisões que não prestigiem a interpretação sistemática da lei.

Por fim, ressalta-se a importante função da jurisprudência, que em consonância com a doutrina possui o importante papel de nortear a aplicação da lei de acordo com a sua finalidade precípua. Nesse contexto, MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO, consciente do imprescindível papel da jurisprudência, conclui:

“Pela novidade que representa a recuperação judicial, vão surgindo problemas que à primeira vista trazem certa perplexidade para o intérprete, o que não espanta, vez que o entendimento de leis de espectro maior, tipo código (e esta Lei é efetivamente o ‘Código’ das Recuperações e das Falências), sempre

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exige interpretação jurisprudencial para correta aplicação” (BEZERRA FILHO, 2009, p.129-30).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005.

______. A responsabilidade do garantidor na recuperação judicial do garantido. Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. São Paulo: AASP, ano XXIX, n.105, set. 2009.

CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Novação recuperacional. In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. São Paulo: AASP, ano XXIX, n.105, set. 2009.

COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

COSTA, Ricardo Brito. Recuperação judicial: é possível o litisconsórcio ativo? In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. São Paulo: AASP, ano XXIX, n.105, set. 2009.

DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Quartier Latin. 2005.

LOBO, Jorge. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. In: TOLEDO, Paulo F. C. Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2007.

SALOMÃO FILHO, Calixto. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antonio Sérgio A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência – Lei 11.101/2005 – artigo por artigo. 2.ed. São Paulo: RT, 2007.

SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembleias gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In: DE LUCCA, Newton; DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coord.). Direito Recuperacional: Aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

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O INTERESSE SOCIAL NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE RECESSO FUNDADO NA

ALTERAÇÃO DO OBJETO DA COMPANHIA LUÍS FERNANDO ROESLER BARUFALDI*

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Definições; 2.1 Interesse social; 2.1.1 A teoria contratualista; 2.1.2 A teoria institucionalista; 2.2 O objeto social e sua tutela; 3 – O interesse social no exercício do direito de recesso fundado na alteração do objeto da companhia; 3.1 O direito dos acionistas ao recesso; 3.2 Alteração não substancial do objeto; 3.3 Alteração do objeto social em razão de fatores externos; 4 – Conclusão. Referências.

1 – INTRODUÇÃO

A sociedade anônima moderna é constituída por órgãos internos, insuprimíveis e inconfundíveis, dotados de poderes-funções fundamentais: o poder de deliberação da assembleia geral, de administração da diretoria e o poder sindicante do conselho fiscal1.

Dentro dessa estrutura, o órgão máximo é a assembleia geral, porquanto investe os demais, elegendo e destituindo os seus membros. Em geral, a assembleia é liderada por uma fração organizada de acionistas, que impõem a sua política aos demais acionistas, já que as deliberações dificilmente são tomadas por unanimidade, de sorte que vige o princípio majoritário. O grupo que compõe a maioria, ou o acionista individual que a

*Mestrando em Direito Empresarial na UFRGS. Especialista em Direito Empresarial pela UFRGS.

Membro do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC e do Instituto de Estudos Jurídicos Empresariais – IEJE. Advogado.

1 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.30-31.

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constitui, detém o poder de controle da sociedade, submetendo a minoria à sua vontade2.

A lei societária atribui ao acionista controlador o dever e a responsabilidade de agir no interesse da empresa3, e presume-se que ele assim o faça, o que torna o controlador, em princípio, o intérprete do interesse social4, apesar de ser comum que o interesse da maioria discorde do interesse social, a exemplo do acionista majoritário que imponha à sociedade as decisões que lhe convêm, como já advertiu JOAQUÍN GARRIGUES5.

Em contrapartida ao governo social pela maioria, cujas decisões podem ser particularmente gravosas e inquietantes para a minoria dissidente6, atribuem-se mecanismos de defesa dos interesses dos acionistas nãocontroladores, entre os quais está o direito de recesso, espécie de remédio jurídico que permite ao sócio dissidente retirar-se da sociedade com o reembolso do valor de sua participação social7.

No direito brasileiro, o recesso está entre os chamados direitos essenciais ou intangíveis do acionista, como se depreende do inciso V do artigo 109 da Lei n° 6.404/76, disciplinadora das sociedades anônimas:

“Art. 109. Nem o estatuto social nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos direitos de:

[...]

V – retirar-se da sociedade nos casos previstos nesta Lei.”

E entre as hipóteses ensejadoras do direito de recesso está a deliberação assemblear que altera o objeto da companhia, conforme disposição do artigo 136, inciso VI, combinado com o artigo 137 da Lei de Sociedades Anônimas:

“Art. 136. É necessária a aprovação de acionistas que representem metade, no mínimo, das ações com direito a voto, se

2 PARAÍSO, Anna Luiza Prisco. O direito de retirada na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 1985, p.10. 3 Arts. 115 e 117 da Lei 6.404/76. 4 COMPARATO, Fábio Konder. Valor de reembolso no recesso acionário. Revista dos Tribunais, São

Paulo, v.71, n.563, p.49, set. 1982b. 5 GARRIGUES, Joaquín. Problemas atuais das sociedades anônimas. Porto Alegre: Fabris, 1982, p.29. 6 CORRÊA LIMA, Osmar Brina. O acionista minoritário no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1994,

p.52. 7 COMPARATO, p.50, 1982b.

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maior quorum não for exigido pelo estatuto da companhia cujas ações não estejam admitidas à negociação em bolsa ou no mercado de balcão, para deliberação sobre:

[...]

VI – mudança do objeto da companhia; [...].

Art. 137. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor das suas ações (art. 45), [...].”

Ocorre que, muitas vezes, em nome de um interesse social obscuro ou indefinido, supostamente prevalente sobre o interesse individual, as empresas obstaculizam o exercício do direito de recesso dos sócios recalcitrantes, obrigando-os a permanecer acionistas de uma empresa com a qual não comungam mais interesses.

Visto o panorama no qual se insere o direito de recesso pela alteração do objeto da sociedade, percebem-se as discussões que cercam a sua aplicação e denota-se a importância de seu estudo para assegurar que a empresa cumpra seus desígnios.

A partir da dialética entre o poder do controlador e o direito dos acionistas minoritários, vista sob a perspectiva do interesse social, o presente estudo buscará analisar a presença (existência), legitimidade (validade) e a força (eficácia) deste no que se refere às hipóteses ensejadoras do direito de recesso pela alteração do objeto social da companhia.

Nesse mister, torna-se necessário averiguar em que medida o direito do acionista ao recesso pode ser exercido quando a deliberação que lhe deu causa se mostra conforme os interesses da sociedade e, ainda, se inexiste o direito de recesso em caso de haver um interesse superior que se pretenda tutelar.

Na primeira parte do trabalho, faremos uma breve incursão nas teorias que definem o interesse social, notadamente a contratualista e a institucionalista, bem como na definição de objeto social, sua relevância e proteção.

Após, adentrar-se-á no objeto deste estudo propriamente dito: a relação existente entre o interesse social e a caracterização do direito de retirada do sócio que dissentir da deliberação que aprova a alteração do objeto social da companhia.

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2 – DEFINIÇÕES

2.1 Interesse Social

O interesse social, compreendido como a razão de ser das sociedades comerciais8, comumente é estudado sob a oposição das doutrinas contratualista e institucionalista.

Enquanto a teoria contratualista nega que o interesse social seja hierarquicamente superior ao interesse dos sócios, para a teoria institucionalista o interesse social transcende o interesse dos sócios e da própria sociedade, identificando-se com o interesse da comunidade na qual a empresa está inserida.

As relações da sociedade com os órgãos que a compõem constituem os interesses internos, que surgem da característica própria do contrato plurilateral, como definiu ASCARELLI9. A interação entre a empresa e a sociedade, por sua vez, forma os chamados interesses externos, relativos à comunidade, ao Estado, aos consumidores, etc.

Todos esses interesses estão presentes na realidade das sociedades empresárias, e em maior intensidade nas sociedades anônimas, dada a sua relevância social. Por isso, é fundamental estudarmos os interesses internos e externos à empresa, a fim de harmonizar o direito dos sócios com os interesses da comunidade na qual ela está inserida e, também por isso, vinculada.

2.1.1 A teoria contratualista

A teoria contratualista apresenta-se em duas grandes vertentes: o contratualismo clássico, ou do interesse comum, e o moderno.

A teoria contratualista clássica foi largamente desenvolvida na Itália, e define-se por contraposição ao institucionalismo, pois nega haver supremacia do interesse social sobre o interesse dos sócios10 e desconsidera, a priori, qualquer fator alheio ao âmbito da própria companhia.

Essa doutrina atribui a titularidade do interesse social ao grupo de sócios, isto é, dos sócios enquanto sócios, já que seus interesses enquanto

8 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.26-27. 9 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945,

p.321. 10 COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2005, p.330.

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indivíduos podem não corresponder ao interesse deles enquanto sócios. Da mesma forma, o interesse da companhia não corresponde ao interesse da maioria dos sócios, mas sim do que é consenso entre todos eles, pois do contrário cairiam por terra todas as regras sobre conflito de interesses e exercício abusivo do direito de voto11.

Assim, o contratualismo clássico ou do interesse comum proclama, como afirma CARVALHOSA, “a prevalência da comunidade de interesses dos sócios”. Essa comunidade de interesses surge com a coincidência de interesses dos sócios acerca de determinadas matérias12.

CARVALHOSA sublinha:

“Para que haja interesse social, deve haver uma zona de interesse comum dos acionistas, os quais devem manifestar-se em consonância com a realização do objetivo social. Alegam os defensores dessa opinião que o sócio, ao votar, não poderia desprender-se de seus interesses concretos e egoísticos, para atender apenas a um abstrato interesse social.”13

Para ASCARELLI, grande expoente do contratualismo, a sociedade constitui uma comunhão voluntária de interesses e escopo, a qual se coordena com um interesse comum a todos os participantes e com estes se identifica14.

Para os contratualistas clássicos, o interesse social é o interesse comum dos sócios, adstrito ao interesse dos sócios atuais, desconsiderando quaisquer fatores externos15.

Segundo LEÃES16, esta concepção contratualista foi adotada para o modelo societário brasileiro pelo Decreto-Lei 2.627/40, e SALOMÃO FILHO17 refere que esta concepção do interesse social é o que vige, ainda que parcialmente, no Brasil.

11 ZANINI, Carlos Klein. A dissolução judicial da sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.99. 12 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2008,

v.2, p.455. 13 Ibid., p.455. 14 ASCARELLI, 1945, p.258 et seq. 15 SALOMÃO FILHO, 2006, p.27. 16 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Estudos e pareceres sobre sociedades anônimas. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1989, p.12. 17 SALOMÃO FILHO. Op. cit., p.27.

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SALOMÃO FILHO18 mostra-nos, também, que há outros autores que, “preocupados com a possibilidade de interferência judicial na determinação do interesse social que sua não definição positiva pode implicar, preferem definir um interesse social abstrato e típico [...], reduzindo-o ao interesse à maximização do lucro”.

A concepção do interesse social para os contratualistas clássicos foi definida de forma ímpar por SALOMÃO FILHO19:

“Para a teoria contratualista, o interesse social é traduzido como o interesse comum dos sócios. No sistema italiano, embora a realização do interesse social possa ser identificada com o exercício de uma atividade econômica (interesse social preliminar), ou com a maximização da eficiência da empresa com vistas à maximização dos lucros (interesse social intermediário), estes não passam de interesses sociais secundários à causa do contrato de sociedade. O fim maior que norteia a disciplina do interesse nesse sistema é a satisfação do interesse dos sócios através da distribuição de dividendos (interesse social final).”

A concepção do interesse social como referente apenas ao grupo dos sócios atuais foi também defendida por JAEGER, que conceituou a sociedade por ações como um instrumento dos sujeitos particulares para a realização dos seus interesses e não para alcançar fins coletivos20.

No entanto, 40 anos depois, o autor reviu a sua teoria e passou a identificar o interesse social com a obtenção de shareholder value, que busca a maximização do valor de venda das ações do sócio21.

Essa visão constitui a teoria do contratualismo moderno, para a qual o interesse social diverge da soma dos interesses dos sócios, incluindo o interesse dos sócios futuros, de sorte que deixa de considerar apenas o lucro e passa a considerar também o valor das ações.

Por tais razões, o contratualismo moderno torna relevante a preservação da empresa, o que o aproxima do institucionalismo, mas diverge deste porque desconsidera qualquer fator alheio ao âmbito interno da companhia.

18 Ibid., p.28. 19 SALOMÃO FILHO, 2006, p.94, n.4. 20 Ibid., p.27-28. 21 Ibid., p.30.

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2.1.2 A teoria institucionalista

Em contraposição ao contratualismo está a teoria institucionalista, baseada no interesse social transcendente ao dos sócios e da própria sociedade.

Na perspectiva institucional, denota-se, através do princípio da preservação da empresa, uma correlação entre finalidade da atividade empresarial e os interesses mediatamente a ela inerentes, como o dos trabalhadores, do Estado, dos consumidores e da comunidade em que ela está inserida.

WALTER RATHENAU, empresário e economista alemão, propagou na Alemanha do primeiro pós-guerra a teoria da “empresa em si” (Unternehmen an sich), segundo a qual os empresários detêm o controle não para servir aos capitalistas – sócios ou acionistas – e sim no interesse público representado pela empresa como organização que transcende a sociedade comercial22.

Para RATHENAU, a empresa é um fenômeno complexo, um fator de economia nacional que está a serviço e pertence à coletividade, e não mais uma organização de interesse particular.

Nessa teoria, o objeto prevaleceria sobre o fim social, com o consequente predomínio dos órgãos administrativos sobre as prerrogativas da assembleia geral, reforçando o poder do controlador e tornando-o depositário e intérprete do interesse social23. Surge, então, uma empresa de nítidos contornos públicos, em que a atividade empresarial deixa de centrar-se no lucro, e os administradores, por sua vez, submetem-se apenas ao controlador e não mais ao julgamento da minoria24.

De forma mais branda do que a teoria de RATHENAU, a teoria institucionalista da “sociedade como pessoa em si” (Person an Sich), que se funda na teoria de GIERKE sobre a pessoa jurídica como entidade real, atribui à sociedade um interesse próprio não coincidente e superior ao interesse particular dos sócios25.

22 CARVALHOSA, 2008, v.2, p.451. 23 Ibid., p.451. 24 Ibid., p.451 25 Ibid., p.451.

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Segundo a escola da Person an Sich, o sócio passa a ser um órgão da sociedade, devendo perseguir o interesse da companhia ou o da coletividade no exercício do direito de voto, mas não o seu próprio26.

A teoria da “sociedade em si” admite o exame judicial do mérito das deliberações da assembleia geral, facultando ao juiz declarar inválidas as deliberações que resultem inoportunas para a companhia. Esta peculiaridade diferencia-a da teoria da “empresa em si”, que outorga amplos poderes à maioria nas deliberações, fortalecendo, assim, o controlador.

No âmbito do presente trabalho, torna-se importante observar os contornos da teoria institucionalista no direito italiano, como bem expostos por CARVALHOSA27:

“A teoria que prevalece na Itália é a de que o direito de voto é um poder concedido ao sócio no interesse social, entendido este como alheio ao seu próprio interesse. Fundamenta-se essa escola na incapacidade da pessoa jurídica de manifestar sua vontade, o que se dá pela atuação das pessoas jurídicas que a compõem.

Por um expediente de técnica jurídica, decorrente da personalidade a um ente incorpóreo, presume-se que a vontade declarada das pessoas físicas componentes do seu órgão deliberativo – a assembleia geral – seja a própria vontade social.

A assembleia geral, portanto, é formada por várias pessoas que, por preceito legal, encontram-se autorizadas a manifestar a vontade da companhia e a desenvolver a atividade jurídica necessária para que ela, sociedade, alcance seu fim.”

Posteriormente, a moderna feição institucional das sociedades anônimas, com forte influência de HAURIOU, reforçou o valor jurídico da preservação da empresa, e que se reflete nos princípios que norteiam a nossa atual lei acionária, como o da função social, que procura integrar na sociedade feixes de interesses nela presentes, tais como: geração de riqueza, criação de empregos; pesquisa; desenvolvimento de novas técnicas; pagamento de tributos; etc.

COMPARATO28 afirma que “a lei de sociedades por ações de 1976 veio consagrar [...] o abandono da teoria do exclusivo atendimento dos interesses 26 Ibid., p.451. 27 Ibid., p.454.

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acionários e, até mesmo, dos interesses intraempresariais [...] em seu conjunto, como objetivo da atuação de controladores e administradores”29. Os contornos institucionalistas da Lei 6.404/76 estão bem nítidos em sua Exposição de Motivos30:

“A empresa, sobretudo na escala que lhe impõe a economia moderna, tem poder e importância social de tal maneira relevantes na comunidade, que os que dirigem devem assumir a primeira cena na vida econômica, seja para fruir do justo reconhecimento pelos benefícios que geram, seja para responder pelos agravos a que dão causa. [...] O princípio básico adotado pelo projeto, e que constitui o padrão para apreciar o comportamento do acionista controlador, é o do que o exercício do poder econômico só é legítimo para fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, enquanto respeita e atende lealmente aos direitos e interesses de todos aqueles vinculados à empresa – e os que nela trabalham, os acionistas minoritários, os investidores do mercado e os membros da comunidade em que atua.”

Segundo LEÃES, a atual lei acionária “teve por norte os vigentes postulados constitucionais pertinentes à ordem econômica e social, que consagram, no mesmo plano da liberdade de iniciativa”, a função social da empresa31.

Resta evidente, portanto, a função social e econômica da empresa na comunidade em que está inserida. Nesta perspectiva, o interesse social supera a soma dos interesses por ela contemplados, constituindo um interesse próprio que a eles se sobrepõe.

Assim, enquanto a teoria contratualista prioriza os interesses internos da sociedade, ligados à vontade dos sócios, o interesse social, na visão institucionalista, inclui, na finalidade da atividade empresarial, a tutela dos

28 COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2005, p.371. 29 Exemplo disso são as normas contidas no parágrafo único do artigo 116, que refere que o

controlador deve “usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social”; a alínea a do artigo 117, § 1°, ao prescrever como abusiva a prática do controlador de “orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional”; o artigo 154, ao definir a finalidade das atribuições administrativas, consigna “as exigências do bem público e da função social da empresa”; e no artigo 154 menciona a “função social da empresa” e em seu § 4° refere as “responsabilidades sociais da companhia”.

30 Exposição de Motivos n° 196, de 24.06.1976, Cap. X, Seção IV. 31 LEÃES, 1989, p.12.

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interesses externos, como aqueles que tocam diretamente aos trabalhadores, ao Estado e aos consumidores. A preservação da empresa passa a ser pressuposto para a concretização de tais interesses.

2.2 O Objeto Social e sua Tutela

O conceito de objeto social, segundo GUERREIRO32, comporta dois ângulos: formal e substancial.

Entende-se por objeto social, sob o ângulo formal, a “definição estatutária da empresa de fim lucrativo, não contrária à lei, à ordem pública e aos bons costumes, visada pela companhia”, nos termos do artigo 2º da Lei de Sociedades Anônimas. Segundo o comando do referido dispositivo, o estatuto deve definir, de modo preciso e completo, a atividade negocial ou empresarial33, conforme o perfil funcional da empresa definido por ASQUINI34.

Quanto ao objeto social em sua face substancial, CARVALHOSA35 o definiu como “a espécie de empresa que será desenvolvida pela companhia, ou seja, a atividade econômica em razão da qual se constitui a sociedade e em torno da qual a vida societária se realiza e se desenvolve. Nesse sentido, o objeto social é a exploração a que se dedica a sociedade”.

O objeto social constitui, assim, o ramo de atividade em que a sociedade atua, fator este determinante para a tomada de decisão daqueles que pretendem a ela se associar36.

Diante de sua relevância, o objeto social recebe, devidamente, uma disciplina rígida para a sua alteração, pois, como bem ilustrado por ANDRÉ TUNC37, não poderia o acionista ir dormir sócio de uma mina de ouro e acordar sócio de uma banca de peixe frito.

32 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Sobre a interpretação do objeto social. Revista de Direito

Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v.54, p.67-72, abr.-jun. 1984. 33 Ibid., p.67. 34 Segundo o autor, “a empresa aparece como aquela força em movimento que é a atividade

empresarial dirigida para um determinado escopo produtivo” (ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Tradução de Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, n.104, p.108-126, p.116, out.-dez. 1996).

35 CARVALHOSA, 2008, v.2, p.866. 36 MARTINS, Fran. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: Forense, 1984, v.2, t.1,

p.248. 37 TUNC, André. Le droit anglais des sociétés anonymes. Paris: Dalloz, 1971, p.35, apud ZANINI, 2005,

p.88.

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Nesse mister, o direito brasileiro sempre tutelou o objeto social, e no Decreto 434, de 1891, em seu artigo 12838, proibia, inclusive, a sua alteração, restrição esta que somente caiu em nosso direito em 1940, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 2.627.

A atual Lei de Sociedades Anônimas não impõe qualquer obstáculo formal à alteração da que é a principal estipulação do estatuto, mas exige maioria qualificada para tanto, nos termos do inciso VI de seu artigo 136.

A fim de que possamos compreender melhor essa afirmação, cumpre trazer os profícuos ensinamentos de NAVARRINI e FAGGANELLA39 acerca do que consiste, ou não, alteração do objeto social:

“O objetivo da sociedade, em sentido menos lato, pode ser compreendido menos pelas simples operações, que ela se propõe a executar, do que pela sua resultante, pelo seu complexo [...] quando tal resultante não mude substancialmente, embora possam variar os elementos que a constituem e a qualidade dos meios empregados para lá chegar [...] é lógico que não se pode dizer que se trata de mudança de objetivo. Se às operações primeiramente estabelecidas se acrescentam outras, se bem que não previstas no primeiro contrato, não constituem uma espécie de operações em si, mas são subordinadas àquelas; se, a fortiori, algumas operações já previstas ficam abandonadas; se são substituídas por outras que entrando na mesma espécie de negócio apresentam-se mais adaptadas à finalidade, não se poderá falar, de modo algum, em mudança do objetivo social.”

Ocorre que muitas vezes o objeto da sociedade é alterado, v.g., para expandir a gama de atividades desenvolvida pela empresa; diminuir os ramos em que esta atua; alterar para outro objeto dissociado do anterior. E por ser a atividade desenvolvida pela empresa decisiva na escolha do investidor em se tornar sócio da companhia, pode ele não mais querer permanecer sócio quando a empresa passar a desenvolver uma atividade diversa.

38 “A assembleia geral tem poder para resolver todos os negócios, tomar quaisquer decisões, e

deliberar, aprovar e ratificar todos os atos que interessam à companhia. Não são suas faculdades, salvo cláusula em contrário, se inclui a de modificar e alterar os estatutos ou contrato social. Não lhe é, porém, permitido mudar ou transformar o objeto essencial da sociedade” (Decreto 434, de 04.07.1891 apud COMPARATO, Fábio Konder. Direito de recesso de acionista de sociedade anônima. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.558, p.33-40, p.35, abr. 1982a).

39 NAVARRINI; FAGGANELLA apud GUERREIRO, 1984, p.69.

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Quando se tratar de uma companhia aberta, com dispersão e um mercado ativo para as suas ações, o sócio que pretenda se retirar pode desinvestir o seu capital através da venda das suas ações. Já ao sócio de companhia fechada ou aquele que não tenha mercado ativo para suas ações restará, segundo NEWTON DE LUCCA40, o mais importante mecanismo de contrapeso ao poder incontrastável do acionista controlador: o direito de recesso.

3 – O INTERESSE SOCIAL NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE RECESSO FUNDADO NA ALTERAÇÃO DO OBJETO DA COMPANHIA

3.1 O Direito dos Acionistas ao Recesso

O direito de recesso constitui-se na faculdade de o acionista retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor patrimonial das ações respectivas. Quanto à sua natureza jurídica, MODESTO CARVALHOSA esclareceu:

“Trata-se de um negócio jurídico, em virtude do qual a companhia é obrigada a pagar aos acionistas dissidentes o valor de suas ações. Constitui uma resilição unilateral ou denúncia. É, portanto, reminiscência da concepção contratualista da sociedade anônima, que ainda subsiste em diversas esferas da sua estrutura.”

Depreende-se da definição de CARVALHOSA que o direito de recesso é um negócio jurídico unilateral inserido na categoria dos direitos potestativos ou formadores41, porque surge da declaração de vontade de uma só parte e extingue uma relação jurídica.

A atual Lei de Sociedades Anônimas ampliou o rol das hipóteses ensejadoras do direito de recesso contempladas pelo Decreto-Lei 2.627/1940, buscando proporcionar maior proteção às minorias acionárias e, assim, fomentar a captação da economia popular.

Entre as causas autorizadoras do direito de recesso está a deliberação que altera o estatuto da sociedade modificando o objeto social. O Decreto-Lei 2.627/40 já contemplava essa hipótese, mas o fazia nos casos de

40 DE LUCCA, Newton. O direito de recesso no direito brasileiro e na legislação comparada. Revista de

Jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, n.41, p.44-93, jan.-mar. 2000. Disponível em: <http://www.trf3.jus.br/lpbin22/lpext.dll?f=templates&fn=main-h.htm&2.0>. Acesso em: 30 jan. 2009.

41 COMPARATO, p.49, 1982b.

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alteração do objeto essencial42. Com o advento da Lei 6.404/76, suprimiu-se a expressão “essencial”, passando o inciso VI do artigo 136 da lei acionária a referir, apenas, a “mudança do objeto da companhia”.

Apesar da alteração legislativa, ainda persiste o dissenso acerca do grau de modificação do objeto que ensejaria o direito de retirada, e se tal direito “essencial” da minoria pode, ou não, ser limitado em prol do interesse social.

Esta contraposição de interesses entre a maioria e a minoria acionárias resulta da dissociação entre poder e propriedade das ações, e é inerente e necessária à estrutura da sociedade anônima. Se por um lado o acionista controlador é, segundo o institucionalismo, o intérprete do interesse social, hão que se proteger, por outro, aqueles submetidos pela estrutura societária ao seu poder.

Portanto, torna-se relevante compreender a inter-relação entre o direito dos acionistas ao recesso e o balizamento oferecido em função do interesse social, a fim de possibilitar a fundamental harmonização desses interesses em jogo, como bem referiu WALD:

“A atual tendência, que encontramos no direito estrangeiro, é no sentido de estabelecer um justo equilíbrio entre as exigências de desenvolvimento da empresa e o resguardo das finalidades sociais que justificaram a subscrição ou aquisição das ações, defendendo-se os interesses sociais sem prejudicar os direitos do acionista, mediante normas que organizaram um verdadeiro sistema de freios e contrapesos que funciona na moderna sociedade anônima.”43

Segundo COMPARATO, o ato praticado pelo acionista controlador ensejador do direito de recesso não se enquadraria no âmbito dos atos ilícitos, significando apenas a compensação de interesses particulares sacrificados legitimamente em favor do interesse social:

“Deste, o intérprete primeiro continua sendo o majoritário ou controlador. Ele tem o direito – e, em certas circunstâncias, até

42 Referia o art. 105, do Decreto-Lei 2.627/40: “Art. 105. As deliberações serão tomadas de

conformidade com a regra do art. 94, sendo, entretanto, necessária a aprovação de acionistas que representem metade, no mínimo, do capital, com direito de voto, para deliberação sobre: [...] d) mudança do objeto essencial da sociedade; [...]”.

43 WALD, Arnoldo. Término da concessão e direito de recesso. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v.40, p.29-35, p.30, out.-dez. 1980.

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mesmo o dever – de tomar a iniciativa das deliberações sociais que contrariam o interesse dos minoritários. Mas o sacrifício destes é considerado iníquo sem uma compensação: o poder atribuído aos dissidentes de se retirarem da sociedade com o reembolso do valor de sua participação social.”44

CESARE VIVANTE45 considera o recesso como direito intangível do acionista, posto que atua como um freio e um remédio contra o poder ilimitado da assembleia de modificar o próprio estatuto e, portanto, não pode ser tolhida dos acionistas, nem pelo estatuto, nem pela assembleia.

WALD46 lembra-nos que o recesso é a contrapartida ao poder discricionário da maioria de modificar o objeto social, consistindo em “sanção decorrente da alteração das regras do jogo”.

Neste sentido, EGBERTO LACERDA TEIXEIRA47 também entende que a deliberação, mesmo que tomada no interesse da sociedade, dá aos acionistas dissidentes o direito de se retirarem:

“Se por exigência lógica, há de admitir-se a atuação do princípio majoritário como expressão da vontade coletiva da companhia, não se pode deixar de reconhecer-lhe duas ordens de limitações. Em primeiro lugar é preciso que o princípio majoritário atue em benefício da sociedade. Quando assim não seja, podem as minorias insurgir-se, mediante apropriados procedimentos judiciais destinados a cortar o abuso do poder. E, em segundo lugar, ainda quando atue em benefício da sociedade, sujeitando a minoria à prevalência de suas decisões, é preciso que o controle não obste a que essa minoria manifeste sua discordância, separando-se da sociedade, reembolsando-se o valor de suas ações.”

E, então, conclui o autor que “o recesso se coloca, assim, como prerrogativa individual do acionista minoritário vencido por uma decisão válida da maioria tomada no interesse da companhia”48.

44 COMPARATO, 1982b. 45 VIVANTE, Cesare. Trattato di Diritto commerciale. 5.ed. [s.l.]: Casa Editrice Dottor Francesco

Vallardi, 1929, v.2, n.517 apud COMPARATO, p. 35, 1982a. 46 WALD, 1980, p.30. 47 TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades anônimas no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1987,

v.1, p.427. 48 Ibid., p.427.

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Importante registrar que o direito do acionista surge independentemente da prova de prejuízo, como já se disse, visto que este é requisito somente das hipóteses de recesso dos incisos I e II do art. 136 da lei acionária49.

Portanto, não encontram respaldo na doutrina os argumentos, recorrentes nas defesas em prol da maioria, de que o direito de recesso não se justificaria quando a alteração do objeto fosse tomada conforme o interesse social, beneficiando todos os acionistas, v.g., com o aumento dos lucros.

Outra alegação “em prol do interesse social” é a de que não caberia o direito de recesso quando o seu exercício, em virtude dos haveres que devem ser pagos ao sócio recalcitrante, colocasse em risco a preservação da empresa.

A despeito de o recesso ser declaração de vontade receptícia, a lei acionária impõe-lhe uma condição, através da possibilidade de ser convocada nova assembleia geral para retificar a decisão que motivou a retirada, caso o custo financeiro do reembolso coloque em risco a estabilidade financeira da empresa50, como facultado pelo artigo 137, § 2°, da lei acionária:

“Art. 137. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor das suas ações (art. 45), observadas as seguintes normas:

[...]

§ 3º. Nos 10 (dez) dias subseqüentes ao término do prazo de que tratam os incisos IV e V do caput deste artigo, conforme o caso,

49 Art. 136. [...]

I – criação de ações preferenciais ou aumento de classe de ações preferenciais existentes, sem guardar proporção com as demais classes de ações preferenciais, salvo se já previstos ou autorizados pelo estatuto; II – alteração nas preferências, vantagens e condições de resgate ou amortização de uma ou mais classes de ações preferenciais, ou criação de nova classe mais favorecida. § 1º. Nos casos dos incisos I e II, a eficácia da deliberação depende de prévia aprovação ou da ratificação, em prazo improrrogável de um ano, por titulares de mais da metade de cada classe de ações preferenciais prejudicadas, reunidos em assembleia especial convocada pelos administradores e instalada com as formalidades desta Lei.

50 PARAÍSO, Anna Luiza Prisco. O direito de retirada na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985, p.63.

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contado da publicação da ata da assembleia-geral ou da assembleia especial que ratificar a deliberação, é facultado aos órgãos da administração convocar a assembleia-geral para ratificar ou reconsiderar a deliberação, se entenderem que o pagamento do preço do reembolso das ações aos acionistas dissidentes que exerceram o direito de retirada porá em risco a estabilidade financeira da empresa.”

RAQUEL SZTAJN afirma que a condição imposta pelo legislador ignorou a construção dogmática quanto a declarações de vontade receptícia e, reconhecendo a possibilidade de haver pedidos de recesso que ponham em risco a continuação da atividade econômica, facultou a convocação de nova assembleia para ratificar ou retificar a deliberação ensejadora do recesso, ficando suspenso o direito sob a condição de ser ou não mantida a deliberação51.

GUERREIRO52 ressalta que essa solução, inovadora em relação ao regime do Decreto-Lei 2.627/40, bem concilia o interesse individual do acionista e a preservação da empresa de forma “realista e funcional”. Esclarece o autor:

“Da mesma forma como não se veda nem se restringe o recesso, a ele não se empresta, de outro lado, força fulminante capaz de capitalizar a companhia, em prejuízo dos interesses sociais. Torna-se imprescindível, por isso mesmo, que o sistema funcione tal como concebido, ou seja, proporcionando à companhia a oportunidade de reapreciação de alterações estatutárias de repercussões gravosas ao patrimônio social.”

Vê-se, portanto, nessas manifestações doutrinárias que a deliberação tomada em consonância com o interesse social não afastaria o direito de recesso, e que a tutela desse se dá pela condição a que sujeita o recesso quando possibilita a companhia retratar-se sempre que o seu exercício possa causar prejuízos à ela mesma.

Por fim, cabe referir que se a alteração formal do objeto social mediante reforma dos estatutos gera o inexorável direito de recesso, como visto supra, na prática, acabam os administradores alterando o objeto social

51 SZTAJN, Raquel. O direito de recesso nas sociedades comerciais. Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n.71, p.50-54, p.51, jul.-set. 1988. 52 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Direito de retirada e poder de retratação. Revista de Direito

Mercantil, São Paulo, n.44, p.22-27, p.23-24, out.-dez. 1981.

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de forma apenas substancial53, o que, se por um lado acarreta a responsabilidade dos administradores pelos atos praticados em desvio do objeto social, frustra, pelo outro, o direito de recesso54.

3.2 Alteração Não Substancial do Objeto

Como já tivemos a oportunidade de referir, sob a vigência do Decreto-Lei 2.627/40, a alteração do objeto da sociedade somente gerava direito ao recesso quando consistisse em mudança do objeto essencial da sociedade. Posteriormente, com o advento da Lei 6.404/76, a hipótese ensejadora do direito de recesso passou a ser a “mudança do objeto da companhia”, sem fazer mais menção ao objeto “essencial”.

Mesmo com a alteração legislativa, suprimindo a referência ao “objeto essencial”, a interpretação que se dá à hipótese legal é claudicante, ora entendendo que houve uma ampliação da incidência do direito de recesso, pois a lei vigente não mais distinguiria entre objeto essencial e acidental55, ora não vendo que a supressão da expressão “essencial” tenha tornado mais flexível a retirada, e que o direito de recesso surgiria apenas quando houvesse mudança do objeto essencial da companhia56.

A controvérsia intensificou-se com o julgamento de um dos casos mais comentados pela doutrina brasileira quando se trata do direito de recesso pela alteração do objeto da companhia, realizado pelo Supremo Tribunal Federal em 1986, o chamado “Caso Ughini”.

53 A referência foi feita por JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO, em contraposição à alteração

formal do objeto social, que se verifica por meio da reforma estatutária (GUERREIRO, 1981, p.71). 54 A CVM, inclusive, já se posicionou que “não há direito de recesso sem alteração estatutária,

formalmente considerada (vide proc. CVM RJ 2003/7612)”, bem como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao afirmar que a alteração que dá ao acionista o direito de recesso “deve ser jurídica e não de fato” (vide AC nº 598425262, TJRS, 5ª Câmara Cível, Rel. Sérgio Pilla da Silva, julgado em 24.06.1999). Em sentido contrário, CARVALHOSA faz referência à previsão do artigo 137, III, da Lei de Sociedades Anônimas, que dá o direito de recesso ao acionista de sociedade cindida mesmo quando houver alteração apenas fática do objeto social (CARVALHOSA, 2008, v.1, p.14-15).

55 CARVALHOSA explica que, diferentemente do nosso sistema, que não diferencia o objeto essencial do acidental, “no sistema da common law, é mais fácil a distinção dada à separação entre ato constitutivo (articles of association ou charter) e o estatuto (by laws), com diferentes requisitos para um e outro. O objeto, sendo elemento essencial, integra o ato constitutivo (articles of association). Não obstante, em questões de âmbito menor podem os administradores modificá-lo naquilo em que o objeto pode ser considerado acidental” (CARVALHOSA, 2008, v.2, p.867).

56 ZANINI, 2005, p.182.

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No julgamento do referido caso, apesar da alteração do texto legal, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu que somente alterações de natureza realmente essencial ou substancial no objeto da companhia poderiam ensejar o direito de recesso57.

O Supremo Tribunal Federal, no entanto, ao apreciar o recurso extraordinário, reformou a decisão do Tribunal gaúcho, entendendo que o direito de recesso surgia quando houvesse qualquer alteração do objeto social, e não mais apenas quando fosse alterado o “objeto essencial” da companhia, como referia a lei acionária de 1940.

O voto prevalente, proferido pelo Relator, Ministro Carlos Madeira, pode ser sintetizado no seguinte excerto: “[...] a lei atual não exige que a alteração diga respeito a objeto essencial da companhia, como o fazia a legislação anterior. Basta que, por sua importância, a alteração prejudique interesses dos acionistas dissidentes”58.

Esse entendimento foi adotado, também, pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao julgar a Apelação Cível n° 5252/9259, mas que, no entanto, foi reformada pelo 1º Grupo Cível daquele Tribunal no julgamento dos Embargos Infringentes60.

A doutrina61, por sua vez, procurou flexibilizar a interpretação do texto legal, deixando de lado o sentido literal e emprestando-lhe uma visão teleológica, chegando, assim, a um resultado diverso daquele adotado pelo Supremo Tribunal Federal.

Se considerarmos que o direito de recesso pela alteração do objeto surge para tutelar o acionista que pode não querer permanecer sócio da empresa quando esta passar a explorar um ramo de atividade diverso daquele no qual ele investiu, somos levados a concluir, com LUIZ LEONARDO CANTIDIANO62, que “é fundamental, para que se possa caracterizar uma

57 CORREA LIMA, Osmar Brina. Sociedade Anônima. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.266. 58 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. RE 104.895-6/RS. Relator: Min. Carlos Madeira. DJ

12 set. 1986. 59 AC 5252/92. TJRJ. 3ª Câmara Cível. Relator: José Rodrigues Lema, julgado em 30 de novembro de

1993 Revista de Direito, v.24, p.221-223 apud EIZIRIK, Nelson. Sociedade anônima: jurisprudência. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, v.2, p.88-90.

60 EI n° 200/94, TJRS, 1º Grupo Câmaras Cíveis, Rel. Laerson Mauro, julgado em 15.02.1995 apud ZANINI, 2005, p.184.

61 Entre outros, COMPARATO; FRAN MARTINS; MÁRIO ENGLER PINTO JUNIOR; e em sentido contrário, BULGARELLI.

62 CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Estudos de direito societário. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.162.

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mudança no objeto da companhia, que ela altere, troque, modifique, a sua atividade, isto é, que a companhia, que até determinado instante explora determinada empresa (ou ramo de negócios), passe a explorar empresa de natureza absolutamente diversa, ou seja, que ela mude de ramo de negócios”.

ALFREDO LAMY FILHO63, um dos autores do anteprojeto da Lei 6.404, esclarece que a referência feita ao objeto essencial pelo Decreto-Lei 2.627/40 é herança dos projetos de código civil italiano que inspiraram a legislação brasileira. Contudo, os projetos italianos foram abandonados, justamente, pela dificuldade de conceituar o que seria objeto “essencial” ou “principal” e “assessório”. O autor traz, ainda, a lição de FRANCESCO GALGANO acerca dessa diferenciação:

“O direito de recesso assiste aos dissidentes em caso de mudança do objeto social, e não em todos os casos de modificação do mesmo objeto: só ocorre, para que o acionista possa exercitar o recesso da sociedade, quando a maioria haja deliberado substituir o objeto social originário por um novo objeto em tudo diverso, de forma a modificar radicalmente as condições de risco em presença das quais o acionista havia aderido à sociedade (da produção automobilística se passa, por exemplo, à indústria têxtil). Modificação secundária do objeto social, como extensão a setores acessórios da produção, ou como a redução dos setores originários de atuação, não dão lugar ao direito de recesso.”

Da mesma forma, WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA64 entende que somente a alteração substancial ou fundamental do objeto social justificaria o recesso, e não a mera modificação, acréscimo ou redução, mas pondera que o núcleo fundamental dos interesses deva persistir íntegro.

É, no entanto, nas palavras de COMPARATO65 que melhor se definiu o alcance da norma em comento:

“É irrelevante assinalar que a nova lei acionária suprimiu o qualificativo de ‘essencial’ do objeto da sociedade, cuja mudança dá ensejo ao recesso. A distinção sobre a qual se discorreu mais

63 LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 1992,

p.324-325. 64 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro:

Forense, 1977, v.2, p.645-646. 65 COMPARATO, p.36, 1982a.

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acima não é de cunho adjetivo, e sim substantivo. As alterações que não digam respeito à natureza da atividade empresarial inscrita no estatuto não mudam o objeto social, nem o essencial nem o secundário (quando a companhia está autorizada, estatutariamente, a desenvolver mais de uma atividade de empresa).”

Posteriormente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça passou a adotar esse entendimento, segundo o qual apenas as alterações substanciais do objeto social contemplam direito de recesso, a exemplo do julgamento do Recurso Especial n° 197.329/SP:

“Sociedade Anônima. Direito de Recesso. Lei 6.404/76, Artigo 137. O direito de recesso visa a garantir a posição do sócio minoritário, quando ocorram modificações substanciais nos estatutos da sociedade, ou que possam afetar o significado econômico das ações de que seja titular. Não merece essa proteção o simples propósito de auferir lucros injustificados como se verifica com a aquisição das ações após a convocação da assembleia que objetiva introduzir as modificações estatutárias de que pode resultar o direito de retirada. Entendimento que se justificava antes mesmo da modificação introduzida pela Lei 9.457/97, tendo em vista a norma de interpretação constante do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.”66

Das manifestações da doutrina e jurisprudência supracolacionadas, depreende-se que a norma contida no artigo 137, combinado com o artigo 136, inciso VI, da Lei n° 6.404/76, outorga o direito de recesso quando dissentir de deliberação que altere o objeto social substancialmente, mudando a natureza da atividade empresarial.

3.3 Alteração do Objeto Social em Razão de Fatores Externos

Por fim, há casos em que fatores externos, alheios à vontade da companhia e do controlador, que, quando não a comprometem, põem em risco a preservação da empresa, e a alteração do objeto social surge como alternativa à extinção da companhia. Resta saber se, mesmo diante destas circunstâncias, justificar-se-ia o direito de recesso.

66 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 197.329/SP. Relator: Min. Eduardo Ribeiro.

DJ 17 maio 1999.

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As constantes inovações tecnológicas, como o surgimento e a rápida expansão das tecnologias digitais que desbancaram o comércio de discos de música e tornaram praticamente obsoletos os filmes fotográficos, obrigaram as empresas que exploravam aqueles nichos a se adaptarem à nova realidade, redirecionando sua atuação para outros segmentos do mercado.

Acrescentem-se a essas hipóteses aquelas provenientes de factum principis, como a cassação de uma licença, a estatização do setor no qual atua a empresa67, ou, ainda, resultantes de políticas econômicas que impõem ou derrubam barreiras para certos produtos e decorrentes das oscilações do câmbio que, de inopino, tornam inexequíveis atividades dependentes do mercado externo.

Em situações como essas, de imprescindível alteração do objeto, deve-se contemporizar a atuação do princípio majoritário, que governa a assembleia e, consequentemente, a própria vida da companhia, com os direitos dos acionistas minoritários.

O recesso não se justificaria nestes casos, pois a alteração do objeto decorre de fatores externos, não podendo ser considerado como modalidade de exercício abusivo do controle societário, este sim justificador da retirada68.

Além disso, diante da concepção institucionalista, que leva em consideração toda forma de interesses afetados pela sociedade, parece-nos que a restrição ao direito dos acionistas de se retirarem da sociedade justificar-se-ia nestes casos em que o seu exercício, com o consequente desembolso dos haveres, ameaçasse a preservação da empresa, tendo por base a defesa do interesse social.

Essa possibilidade decorre da compreensão de que, em se admitindo o direito de recesso, estaria a empresa em xeque, porque o pagamento dos haveres aos sócios retirantes geraria custos que talvez não pudesse suportar e a não alteração do objeto provavelmente a levaria à ruína.

Nessa mesma linha, WALD, a despeito de se referir à hipótese de alteração do objeto decorrente do término de concessão, afirmou que “as modificações estatutárias, na medida em que representam medidas necessárias ao prosseguimento das atividades sociais de companhia de

67 ZANINI, 2005, p.188. 68 WALD, Arnoldo. Término da concessão e direito de recesso. Revista de Direito Mercantil, Industrial,

Econômico e Financeiro, São Paulo, v.40, p.29-35, p.32, out./dez. 1980.

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duração por prazo indeterminado, não podem ensejar a retirada de acionistas dissidentes”, já que, diante da função social atribuída à companhia pelo artigo 116, parágrafo único, da Lei de Sociedades Anônimas, a alteração seria efetuada no interesse comum, para que a empresa “pudesse se preservar”69.

O mesmo se pode inferir da lição de COMPARATO70, ao afirmar que o reembolso das ações não pode ocorrer em prejuízo dos credores sociais, pois “o interesse individual do sócio retirante, repita-se, não prevalece sobre o interesse da companhia e o da empresa, a cuja sorte acham-se jungidos os credores sociais”.

Portanto, a limitação ao direito de recesso mostra-se como meio de se preservar a empresa e, assim, atender aos interesses sociais, sejam os dos próprios sócios e aqueles ligados à vida da empresa, com asseverou HERNANI ESTRELLA71:

“À vida da empresa, ligam-se quantos com ela entram em relações econômicas de suprimentos de bens e serviços, já na posição de dependentes, como empregados de todas as categorias, ou de clientes que lhe adquirem a produção. Tudo isso, a par da soma de esforços e trabalhos que a constituição dela pressupõe, justificam as cautelas da lei, não facilitando, antes pelo contrário, dificultando os casos de sua extinção.”

ANNA LUIZA PRISCO PARAISO consigna, ainda, que a possibilidade de se convocar a assembleia de retratação para evitar que o direito de retirada cause uma descapitalização da sociedade não é a melhor forma de tutelar o interesse social, já que revogaria a deliberação muitas vezes necessária ao desenvolvimento da empresa. A autora entende que a melhor solução teria sido a restrição, ao máximo, das hipóteses do direito de retirada na Lei nº 6.404/7672.

Já FÁBIO ULHOA COELHO73, muito embora afirme que não se justificaria o recesso nas mudanças de objeto que busquem adequar a companhia às novas condições do mercado, ressalva que a alteração não

69 WALD, 1980, p.34. 70 COMPARATO, p.51, 1982b. 71 ESTRELLA, Hernani. Despedida de sócio e apuração dos haveres. Rio de Janeiro: José Konfino, 1948,

p.80. 72 PARAÍSO, 1985, p.157. 73 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2002, v.2, p.302.

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poderá ser de tal monta que comprometa o “objeto essencial previsto no estatuto”.

ZANINI74, através de uma análise minuciosa do instituto e da hipótese aqui em comento, encontra dois resultados distintos, de acordo com a perspectiva dos requisitos à concessão do direito de recesso, quais sejam “a dissidência maioria-minoria; uma deliberação sobre matéria específica na qual a minoria reste vencida; e a geração de um prejuízo efetivo à minoria”.

A deliberação de alteração do objeto decorrente de uma causa externa, por ser uma imposição das circunstâncias alheias à manifestação discricionária da maioria, afastaria a ocorrência da dissidência e do prejuízo aos minoritários, desfalcando o suporte fático do direito de recesso75.

Quando, no entanto, o autor analisa as alternativas existentes à sociedade que está impossibilitada de exercer o seu fim em virtude de uma causa externa, apresentam-se possíveis a sua dissolução por deliberação da assembleia geral ou a modificação do objeto.

Neste caso, ZANINI entende que “o prejuízo causado à minoria pela mudança do objeto estaria em forçar-lhes a seguir participando de uma empresa tendo por objeto uma nova atividade que não seria de seu interesse”. E conclui que “o recesso viria a permitir, dessarte, o resgate de seu investimento. O mesmo que teria lugar com a dissolução caso houvessem por ela optado os acionistas majoritários. Assim posta a situação, caberia o recesso”76.

Posto isso, vimos que o direito de recesso poderia ser afastado nos casos em que a deliberação que altera o objeto social decorresse de uma imposição externa, alheia à vontade da maioria, sempre que tal medida promovesse a preservação da empresa.

4 – CONCLUSÃO

A matéria atinente ao direito de recesso é de capital importância para o direito societário brasileiro, tendo em vista que constitui uma das ferramentas mais poderosas ao alcance dos acionistas minoritários que, se mal usada, pode levar a abusos que causem sérios prejuízos às empresas.

74 ZANINI, 2005, p.186 et seq. 75 Ibid., p.187. 76 Ibid., p.188.

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Notadamente, o presente trabalho está longe de esgotar o assunto, de sorte que objetivamos traçar um liame entre o direito de recesso proporcionado pela deliberação assemblear que altera o objeto da companhia e o interesse social que informa o desenvolvimento da grande empresa capitalista.

Vimos, assim, o recesso como um instituto equilibrador das relações societárias77, capaz de harmonizar os diversos interesses que circundam a sociedade anônima, sejam eles internos ou externos a ela.

Restou demonstrado no curso do presente estudo que, em regra, persiste ao sócio dissidente o direito de retirar-se da companhia mesmo que a deliberação de alterar o estatuto seja tomada no seu interesse.

Apesar de o direito de recesso ser, para alguns autores, intangível, encontramos no artigo 137, § 2°, da lei acionária uma condição que lhe é imposta em prol do interesse social, qual seja a hipótese de realização de assembleia de retratação para retificar a decisão que motivou a retirada sempre que o custo financeiro do reembolso coloque em risco a estabilidade financeira da empresa.

Para que ocorra a alteração do objeto capaz de autorizar o recesso, a maciça doutrina e jurisprudência entendem que a alteração deverá ser formal, ou seja, mediante reforma dos estatutos, e não apenas de fato, bem como deverá haver mudança do objeto substancial da companhia, de sorte que altere a natureza da atividade empresarial.

Quando, no entanto, a alteração do objeto social resultasse de um fator externo, fora da discricionariedade do controlador, e que se apresentasse como única alternativa à dissolução da companhia, o interesse social em preservar a empresa se sobreporia ao interesse individual dos sócios recalcitrantes, caso em que não haveria o direito de recesso.

Contudo, a dificuldade em se definir o interesse social faz com que a aplicação do instituto do recesso e a análise das suas limitações somente possam ser feitas no caso concreto, e nem mesmo a decisão de um caso será válida necessariamente para outro, como advertiu CORREA-LIMA78.

Com esta explanação esperamos contribuir, através de uma análise sistemática, para a compreensão do Direito de Recesso. Desejamos,

77 SZTAJN, 1988, p.54. 78 CORRÊA LIMA, 2005, p.376.

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outrossim, fomentar novos estudos acerca das questões polêmicas que permeiam este instituto e que estão longe de ser solucionadas.

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OS PRINCÍPIOS QUE REGEM A ATIVIDADE DE REGISTRO DE IMÓVEIS E A EVOLUÇÃO

LEGISLATIVA CONCRETIZADORA DO DIREITO FUNDAMENTAL DE PROPRIEDADE

THALES JOSÉ PITOMBEIRA EDUARDO*

Resumo: Na perspectiva da sua importância para a sociedade, a propriedade passa a adquirir, na medida da evolução social, formalidades necessárias à comprovação da sua aquisição, manifestando-se importância na criação de um serviço público incumbido de administrar as tratativas imobiliárias com o intuito final de conferir a chancela estatal. Para trilhar a atuação registral, surgem princípios que se comugam ao conceito de propriedade, fazendo com que o legislador, diante da nova leitura da realidade espacial, econômica, social e ambiental, lance, no ordenamento jurídico, meios aptos a fazer valer a propriedade imobiliária, buscando a reafirmação desse direito fundamental, ideia resgatada pelo neoconstitucionalismo.

Palavras-chave: Atividade de Registro de Imóveis. Evolução Legislativa. Direito Fundamental de Propriedade.

Abstract: In view of its importance to society, the property starts to acquire, by the social evolution, necessary formalities to proof of its purchase, manifesting importance in creating a public service in charge of managing the real estate dealings with the ultimate aim of checking the state seal. To track the performance of register, arise principles that commune with the concept of ownership, making the legislature, before the new reading of the spatial reality, economic, social and environmental, launches, in the legal system, appropriate means to enforce the real property: seeking the reaffirmation of this basic right, rescued idea by

* Bacharel em Direito e Pós-Graduando em Direito e Processo Tributários pela Universidade de

Fortaleza (Unifor). Advogado e sócio-membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI).

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neoconstitutionalism.

Keywords: Activity of properties registration. Legislative development. Fundamental right to property.

INTRODUÇÃO

Este artigo é de fundamental relevância, pois possibilita o estudo sobre o início da manifestação da propriedade pelo homem, contextualizando na posterior necessidade social de se instituírem meios eficazes para controlar as transações imobiliárias, uma vez que ela passa, na evolução social, a ser almejada por todos e adquire importância como meio propulsor da economia.

Dessa forma, o conceito de propriedade vai adquirindo uma forma adequada ao sistema registral imobiliário, regendo-se, precipuamente, por princípios informadores de aplicabilidade nitidamente prática no exercício da atividade cartorária.

Parte-se do pressuposto de que o Estado pouco faz para concretizar muitos direitos fundamentais preconizados na Lei Maior, o que, notamente, esta atuação se afasta do real objetivo de se instituírem direitos sociais nos diplomas topograficamente situados no topo da hierarquia das normas.

A corrente doutrinária que resgata essa ideia, denominada neoconstitucionalismo, prioriza que a Constituição Federal, e seus princípios basilares do Estado Democrático de Direito, não se torne um mero diploma idealista, mas sim um parâmetro para a concretização do direito fundamental do indivíduo, aqui analisado no âmbito da propriedade imobiliária.

Assim, diante dessa perspectiva, objetiva a presente pesquisa analisar a evolução legal e o contexto no qual o legislador está inserido, aferindo o seu intuito direto e indireto na elaboração das leis, justificado na exposição dos motivos e no protocolo de intenções.

O CONCEITO DO DIREITO DE PROPRIEDADE E SUA RELAÇÃO COM O SISTEMA REGISTRAL

Nos primórdios, o homem não condicionava a sua existência à posse exacerbada dos bens, dada a sua característica nômade. Sua condição de vida confundia-se com a dos animais, pois suas manifestações e suas

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insurgências vinham apenas como instinto de sobrevivência. Não havia a consciência do egoísmo nem da propriedade.

Instrumentos eventualmente utilizados para defesa ou auxílio na captura do alimento eram extraídos de forma imediata dos recursos naturais ali dispostos, fazendo-se uso de forma efêmera, sem a intenção de incorporação patrimonial, até mesmo em razão da fartura que a natureza oferecia à época.

A evolução física e cerebral possibilitou a criatividade para confecção de instrumentos e utensílios usados, proporcionando maior conforto e facilidade na superação de seus obstáculos. Há, aqui, a gênese da agricultura, pecuária e extrativismo.

Notadamente, as adversidades do meio ambiente obrigaram o homem a se valer de meios capazes de garantir a sua sobrevivência, agora não mais restrita à alimentação e à defesa dos inimigos. A fixação em regiões menos inconstantes favoreceu a domesticação de animais, o cultivo de plantas e a extração mais profunda dos recursos naturais.

Passou o homem, pois, a manifestar, em caráter inicial, sua propriedade com a posse dos objetos pessoais, o que se entende como teoria atemporal, conforme magistério de LUCIANO DE SOUZA GODOY1.

Verifica-se que a propriedade se fez com a permanência prolongada do homem em determinado espaço, permitindo-lhe a invenção de objetos e utensílios que lhe garantiam o conforto e a sobrevivência em grupo.

Com a aprovação da conhecida Lei Negra, em maio de 1723, na Inglaterra, a propriedade passou a ser defendida em face de seus violadores, chegando, inclusive, a mandar pessoas à forca. Ou seja, a propriedade representava “[...] um espaço fechado ou objeto delimitado de uso e gozo exclusivo, praticamente absoluto e restrito de um senhor, denominado proprietário, sujeito de direito [...]”2, conforme ensinamentos de SÉRGIO SAID STAUT JÚNIOR.

1 GODOY, Luciano de Souza (1999 apud CLARK, Sarah Fernandes Pereira. A evolução do instituto da

propriedade privada ao longo das constituições brasileiras. Revista CEUT, Teresina, v.3, n.1, p.148-161, p.150, jan.-dez. 2003).

2 STAUT JÚNIOR, Sérgio Said. Cuidados metodológicos no estudo da história do direito de propriedade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, n.42, p.155-170, p.158, 2005.

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A doutrina de ANGEL CRISTÓBAL MONTES3 relata que, na antiguidade, o sistema de registro imobiliário já se tornava latente. Em Rodes, um ato transmissivo de propriedade seria válido se inscrito no registro público da cidade. Já em Éfeso, as alienações e partilhas se faziam publicamente, mediante anúncio afixado no átrio do templo de Diana, sendo, ainda, necessário que os pontífices enviassem ao magistrado cópia do registro. Em Thurium, colônia da Itália, interessante que a necessidade de ato formal estava ligada à ideia de garantia fiscal e não à tutela dos direitos individuais, pois o adquirente do imóvel não estava obrigado a pagar o preço ao alienante enquanto não lhe fosse exibido uma certificação expedida pelo arquivista de títulos, atestando que o bem se encontrava sem pendências de impostos e encargos. Na Grécia, a hipoteca de um imóvel era gravada em pedras ou madeiras, denominada de horói, e afixadas no próprio bem, indicando a terceiros a real situação daquela propriedade. No Egito, as transmissões imobiliárias documentavam-se nas repartições públicas, chamadas de grafeia ou agoranomeia, a depender da localização do bem, sendo legítimos os documentos públicos grafados pelos funcionários notariais, denominados de agoranomói. Na Alemanha, durante a Alta Idade Média, costumava-se adotar a manifestação escrita para os negócios que versavam sobre imóveis. As igrejas e conventos, que detinham a arte de escrever, e os grandes proprietários rurais usavam livros de transcrição (Kopialbücher) e de tradição (Traditionsbücher), constituindo um protocolo dos atos de transmissão. Contudo, é no Século XII que os grandes registros públicos aparecem nas cidades.

Tendo por análise a antiguidade brasileira, consoante doutrina de MILTON DUARTE SEGURADO4, os indígenas, apesar de regerem-se pelo direito consuetudinário, já conheciam o direito de propriedade, manifestado através da aquisição da coisa sem dono (res nullius) por ocupação: a cabana era a instalação familiar autóctone. Surgem, em seguida, os forais – legislação peninsular destinada a normalizar e a coordenar a prática da vida quotidiana – que garantiam em pergaminhos os contratos sobre propriedade territorial e arrendamentos de terras.

Constata-se que o registro envolvendo as negociações imobiliárias detinha um caráter eminentemente probatório, diferentemente do que se vê

3 MONTES, Angel Cristóbal. Direito imobiliário registral. Tradução de Francisco Tosto. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 2005, p.47-104. 4 SEGURADO, Milton Duarte. Pequena história do direito brasileiro. 2.ed. Campinas: Mizuno, 2000, p.7.

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na atualidade, pois a lei obriga certas formalidades para o aperfeiçoamento, entendam-se validade, eficácia e existência, do ato.

No Brasil, a Carta Constitucional de 1824 garantia a propriedade em seu artigo 179, prevendo, inclusive, no inciso XXII, indenização, no caso em que o Poder Público exigisse a sua utilização. Ou seja, a sociedade já considerava propriedade como direito quase que inviolável. Ela, como visto, manifestava no ser humano um importante apego que, mais tarde, tornar-se-ia principal fonte dos problemas sociais. A Filósofa e pensadora política HANNAH ARENT remete à reação do homem quando do sentimento de perda da propriedade:

“Antes da era moderna, que começou com a expropriação dos pobres e em seguida passou a emancipar as novas classes destituídas de propriedade, todas as civilizações tiveram por base o caráter sagrado da propriedade privada. [...] a expulsão do cidadão podia significar não apenas o confisco de sua propriedade mas a destruição de sua própria morada [...]. Nos tempos antigos, quem viesse perder o seu lugar perdia automaticamente a cidadania, além da proteção da lei. O caráter sagrado dessa privatividade assemelhava-se ao caráter sagrado do oculto, ou seja, do nascimento e da morte, o começo e o fim dos mortais que, como todas as criaturas vivas, surgem e retornam às trevas de onde vieram. “5

Sendo, pois, a propriedade de tamanha importância para o homem, fazia-se necessária a adoção de um sistema apto a garantir ao titular direitos e, principalmente, segurança jurídica. O sistema criado deveria adaptar-se à realidade, à dinâmica das tramas imobiliárias, ao crescimento social e ao progresso da vida econômica. Deveria, ainda, regular as transferências imobiliárias, pela necessidade de fomentar e ativar o crédito, para aquisição de imóveis, bem como se adequar ao ritmo e à velocidade das mudanças imobiliárias mediante a segurança jurídica das transações.

Na verdade, a exata e nuclear função do sistema de registro da propriedade imobiliária é a publicidade. Isto é, garantir aos terceiros alheios ao negócio jurídico havido entre partes a veracidade e a autenticidade do contrato, uma vez que ele produz efeitos (tanto direitos quanto obrigações) importantes ao conhecimento social, mesmo se tratando de uma relação 5 ARENT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2008, p.71.

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eminentemente privada. Daí se dizer que a propriedade cumpre uma função social, pois o ordenamento jurídico salvaguarda a boa-fé e garante a proteção aos direitos da coletividade, entenda-se, aqui, no sentido de se buscar o bem-estar comum.

Imperiosa se mostra a análise feita por SÍLVIO LUÍS FERREIRA DA ROCHA6 acerca dos ensinamentos de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, que afasta a ideia de a propriedade ser uma função social, isto é, o bem só seria protegido se cumprisse a função social. Tal entendimento mostra-se equivocado, pois levaria à conclusão que as propriedades não cumpridoras da função social estariam desprotegidas à luz do ordenamento jurídico, o que não representa a realidade, já que a indenização, neste caso, far-se-á em títulos especiais da dívida pública, resgatáveis em 20 anos.

Na verdade, há uma conformação da propriedade à sua função social. A propriedade é garantida, mesmo não cumprindo sua função social, pois ninguém, no atual Estado Democrático de Direito, pode ser privado arbitrariamente de seus patrimônios. Seria, portanto, mais adequado referir-se que a propriedade cumpridora da função social possui uma proteção maior, já que o valor da indenização será pago na ocasião do ato expropriatório; contudo, em ambas as propriedades (cumpridoras ou não da função social), a indenização é justa, inclusive com o acréscimo de juros nos casos dos artigos 182, § 4º, inciso III, e 184, ambos da Constituição Federal de 1988, vulgarmente denominados desapropriação-sanção.

Ou seja, a propriedade é o direito conferido a quem detenha os poderes de uso, gozo, disposição e de reivindicação de quem injustamente o possua, exercido em consonância com as finalidades econômicas, sociais e ambientais, necessitando que o titular tenha em seu favor o título gravado em instrumento público no Cartório de Registro de Imóveis competente para que exerça amplamente os poderes inerentes à propriedade.

A ATIVIDADE REGISTRAL IMOBILIÁRIA E SEUS PRINCÍPIOS INFORMADORES

O registro do título é modo de aquisição da propriedade que retrata a situação mais comum entre as outras formas, atribuindo-a sobre bem

6 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005,

p.75-76.

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imóvel a quem o tem em seu favor, gozando este de todos os poderes a ela inerentes.

O magistério de ROBERTO SENISE LISBOA ensina que o “[...] registro público imobiliário alusivo é a inscrição formal realizada por instrumento público junto ao cartório de registro imobiliário sobre algum dado à propriedade do bem” 7 (itálico original).

ROBERTO SENISE LISBOA vai além, complementando que: “[...] A transferência do domínio do bem imóvel apenas se opera com a lavratura da escritura pública e seu registro junto ao cartório imobiliário onde se encontra localizada a coisa. Enquanto não se verificar o novo registro, o alienante será considerado ainda proprietário da coisa [...]”8.

O ato registral é formal e retrata burocracia, devendo, aqui, ser entendida como algo positivo, já que proporciona a aquisição de um direito e tem força probatória, em razão de gerar a presunção de que o direito real pertence à pessoa em cujo nome se registrou, conforme artigo 1.245, caput e §§ 1º e 2º, do Código Civil. A formalidade, aqui, resguarda, sobretudo, direitos, uma vez que o ato registral confere a titularidade sobre o bem, assim como as características a ele inerentes.

A burocracia, muitas vezes, é entendida como algo negativo. Contudo, neste caso, é aconselhável. É importante que haja cadastro de imóveis, já que a propriedade é muito cobiçada. É, portanto, necessário o controle das aquisições e transações imobiliárias para haver segurança jurídica. A lei confere prestígio à anotação para que haja apenas um único critério de aquisição da propriedade pelo registro do título; ou seja, repudia qualquer forma de concorrência com outro critério, garantindo, assim, a segurança dos direitos sobre a res. Nem a sentença judicial transitada em julgado concorre com o registro, pois ela, por si só, não vale como aquisição da propriedade; tem que ser registrada. Analisem-se, nesse contexto, as linhas doutrinárias de HÉRCULES AGHIARIAN:

“[...] o ato de registro de imóveis – de natureza essencialmente constitutiva – atribui definitividade, exclusividade e oponibilidade do titular do registro, em face de terceiros, isto é, a qualidade inquestionável do domínio ali afirmado, declarado, em favor deste

7 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direitos reais e direitos intelectuais. 3.ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2005, v.4, p.483. 8 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direitos reais e direitos intelectuais. 3.ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2005, v.4, p.197.

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determinado ente de direitos, natural ou jurídico, privado ou público”9 (itálico original).

Prevendo, justamente, a má-fé nas transações imobiliárias, o Código Civil, em seu artigo 1.246, já garante o direito de propriedade quando da prenotação do protocolo, notadamente em caso de alienação dúplice de um mesmo imóvel. Isto é, a prenotação não atribui propriedade, mas preserva a sua aquisição, gerando eficácia, inclusive retroativamente (efeito ex tunc). Traduz, assim, o princípio da prioridade, garantindo o direito ao primeiro que registrar o título e assegurando-o em relação a quem prenotou em segundo momento.

O sistema jurídico brasileiro não se contenta com os contratos particulares e as formalidades a eles inerentes. Por isso, são recomendáveis a burocracia e a formalidade para controlar as transmissões e aquisições. A formalidade deve ser entendida como a garantia da veracidade e autenticidade dos termos do registro, pois descreve, sobretudo, o objeto, quem exerce a propriedade e outros dados específicos que a lei determina.

A escritura em si até pode ser entendida como interesse privado das partes, porém o ato registral, que suporta fé pública, é que ganhará publicidade. GABRIEL J. P. JUNQUEIRA explica:

“Uma das principais funções do Registro de Imóveis, além de registrar e cadastrar o imóvel, é dar publicidade dos fatos que envolvem os imóveis registrados. Qualquer pessoa, independente do titular, pode requerer certidão ou consultas sobre qualquer imóvel, independente de qualquer justificativa ou informar o interesse do pedido. O acesso ao registro do imóvel é público (Lei nº 6.015/1973, art. 17).”10

É necessário o acerto entre as partes, ou seja, a manifestação volitiva, e o registro do título, que é ato formal e traduz todo o procedimento de sequência de atos do cartório, tais como a checagem de dados, o confronto de informações, conferindo, ao fim, a chancela do Estado.

O registro, não obstante, para ser efetuado conte com conferência de dados, pode ser passível de erro. Contudo, é possível proceder com a retificação (princípio da retificação) de eventuais equívocos. A retificação

9 AGHIARIAN, Hércules. Curso de direito imobiliário. 5.ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2005, p.57. 10 JUNQUEIRA, Gabriel J. P. Direito imobiliário: aquisição, perda, defesa, ações. 4.ed. Bauru: Edipro,

2008, p.181.

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significa correção, recolocar o registro em seus devidos termos. Mas hão que se observar atentamente os seus efeitos, pois se a retificação lesar direitos de terceiros, deverá ser feita mediante ação judicial. Nomalmente, a competência será das varas de registros públicos.

No Brasil, a atividade cartorária é serviço público delegado. Apesar de ser uma das funções essenciais do Estado, a máquina pública não suporta mais tantos serviços. Contudo, o Estado ainda mantém interesse, fiscalizando através da Corregedoria-Geral de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça, atestando, portanto, que seu funcionamento estará de acordo com as normas inerentes ao serviço público.

Os princípios que regem a atividade registral garantem a concretização do direito de propriedade; consequentemente, asseguram o cumprimento ao princípio econômico da propriedade privada, previsto no artigo 170 da Constituição Republicana. Conforme entendimento de UADI LAMMÊGO BULOS, verifica-se que a propriedade privada “[...] denota a índole do sistema econômico, que se funda na iniciativa privada [...]”11, ou seja, é instrumento para o investimento econômico.

Neste contexto, para garantir este meio propulsor da economia, é necessário registrar a propriedade imobiliária, a qual está regulamentada pelos princípios da atividade notarial, conforme se passam a analisar os principais, entre eles.

Inicia-se, portanto, com o princípio da publicidade. Uma vez efetuado o registro, ele se torna público, passível de conhecimento por qualquer um do povo, sem a necessária apresentação de justificação para quem quer que seja. Sendo o registro público, toda a sociedade pode tomar conhecimento, verificando a sua validade e eficácia.

Contudo, como assevera CARLOS ROBERTO GONÇALVES, a publicidade é materializada através de expedições de certidões cartoriais que garantem o conhecimento da situação do bem, revelando, ainda, hipóteses excepcionais ao princípio da publicidade:

“Com efeito, quaisquer que sejam os característicos ou o fim dos assentamentos mencionados pela Lei nº 6.015/73, devem estar os registros permanentemente abertos, com poucas exceções, ao integral conhecimento de todos. O serventuário é obrigado, sob penas disciplinares, a expedir certidões e informar a parte. O

11 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.1.239.

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registro, assim, salvo exceções relativas a direitos alusivos à família e à filiação, torna público o que nele se contém, criando a presunção de seu conhecimento ou de sua cognoscibilidade.”12

Em continuidade, aborda-se o princípio da legalidade. Com a realização do registro, tem-se que aquela pessoa que o tem em seu favor é proprietário do imóvel e, por presunção, toda a documentação oferecida é reputada como válida e idônea. O serventuário, no exercício do seu mister, checará a validade e a legalidade dos documentos apresentados, tudo para conferir o efeito do próximo princípio a ser analisado.

Chega-se, portanto, ao princípio da força probante, também chamado de fé pública ou presunção, que reforça a ideia de que o proprietário é aquele que cujo nome figura como titular. Até que seja cancelado, a propriedade vale em qualquer circunstância.

Na verdade, conforme doutrina de CARLOS ROBERTO GONÇALVES13, no direito pré-codificado, era atribuída força translativa ao contrato, permitindo-se a transferência imobiliária com a simples manifestação volitiva das partes. Os sistemas civis francês e italiano, em seus artigos 712 e 922, respectivamente, perfilhavam tal ideia, afastando a relevância do registro. Diferentemente é o sistema alemão, pois o registro forma presunção juris et de jure, assentado em dois princípios básicos: o da presunção de exatidão do registro e o da proteção a quem confia no registro.

A doutrina de ARTHUR RIOS14 assevera que o sistema francês considera como transferida a propriedade apenas com o contrato, tendo seu registro na serventia imobiliária apenas para garantia da publicidade.

ANGEL CRISTÓBAL MONTES15 ensina que o direito germânico – no âmbito da propriedade imobiliária – sofreu influência da Escola de Bolonha, responsável por formar juristas que acabaram sendo catedráticos nas universidades alemãs, e do Renascimento Cultural, que despertou interesse pela ciência do direito romano.

12 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasieliro: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2006, v.5,

p.275. 13 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasieliro: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2006, v.5,

p.273-274. 14 RIOS, Arthur. Manual de direito imobiliário. 3.ed. Curitiba: Juruá, 2009, p.132. 15 MONTES, Angel Cristóbal. Direito imobiliário registral. Tradução de Francisco Tosto. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 2005, p.106-108.

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Ou seja, tais considerações se aplicam ao sistema brasileiro, já que este se aproxima do germânico, sendo atenuado o rigor, pois o registro confere presunção juris tantum, conforme se verifica das disposições dos artigos 1.227, 1.247 e 1.245, § 2º, do Código Civil.

No entanto, conforme doutrina de MARIA HELENA DINIZ16, somente no ordenamento brasileiro o registro do Sistema Torrens goza de valor absoluto, revestido de intagibilidade; por isso, exigem-se ação judicial, publicação de editais e pagamento de custas elevadas, haja vista a complexidade sistemática do instituto, que não se incorporou de forma plena à realidade brasileira, manifestando-se de forma maior no Estado de Goiás.

Há, também, outra situação em que o registro possui uma natureza mitigada. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO17 e ORLANDO GOMES18

ensinam que, em caso de herança, o registro funciona apenas como ato declaratório e não como ato transmissor, uma vez que, pelo princípio da saisine, a transmissão do patrimônio se dá no momento da morte, funcionando o registro para fins de disponibilidade e aplicação dos preceitos imobiliários.

Na análise do quarto vetor, depara-se com o princípio da especialidade. Ele garante ao detentor do bem a sua qualificação pessoal, bem como do imóvel, ambos sendo identificados e particularizados, notadamente para evitar problemas no momento em que o bem seja objeto de algum ato civil.

CARLOS ROBERTO GONÇALVES explica acerca das especificações que o artigo 225 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, exige em prestígio ao princípio em liça:

“[...] trata dos dados geográficos do imóvel, especialmente os relativos às suas metragens e confrontações. Objetiva proteger o registro de erros que possam confundir as propriedades e causar prejuízos aos seus titulares. Significa tal princípio que todo registro deve recair sobre objeto precisamente individualizado. Compete ao oficial do cartório exigir que, nas escrituras públicas, nos instrumentos particulares e nos autos judiciais as partes indiquem,

16 DINIZ, Maria Helena. Cursco de direito civil brasileiro: direito das coisas. 20.ed. São Paulo: Saraiva,

2004, v.4, p.138. 17 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 36.ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v.3, p.102-

103. 18 GOMES, Orlando. Direitos reais. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.45.

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com precisão, os característicos, as confrontações e, ainda, quando se tratar de terreno, se fica do lado par ou do lado ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário [...].”19

Prosseguindo com a análise das normas abstratas, verifica-se que o princípio da continuidade retrata o histórico do imóvel, constando no resgitro o que estiver relacionado à existência do bem, perfazendo a relação de causa e efeito. Previsto no artigo 195 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a continuidade determina o encadeamento dos registros pertinentes ao imóvel e às pessoas a ele vinculadas.

Há, portanto, uma cronologia lógica, ou seja, a anotação posterior é compressão lógica da anterior. Este princípio garante a disponibilidade segura da propriedade, uma vez que o titular só poderá dispor aquilo que estiver consignado na matrícula do imóvel. A matrícula deve retratar a realidade, pois a descrição que nela consta garante o êxito de futuras transações envolvendo o imóvel.

Por fim, verifica-se que há a obrigatoriedade da formalização do ato registral na serventia competente, uma vez que há cidades com mais de uma, haja vista a complexidade espacial. Por isso, há respeito ao princípio da territorialidade, que é fixado em lei mediante a divisão em zonas (circunscrição), além de se asseverar que o órgão competente será aquele da situação do imóvel. Não basta registrar o título, mas este ato deverá ser feito no Cartório de Registro de Imóveis competente. A escritura pública até que se autoriza o seu registro em outra serventia, já que retrata basicamente a manifestação volitiva das partes, diferentemente do registro imobiliário, que garante ao titular do direito de propriedade o pleno gozo de todos os poderes a ele inerentes, devendo ser feito na circunscrição local onde se situa a coisa.

A importância do ato registral é verificada nas tratativas diárias que envolvem a propriedade imobiliária, verificando que esta movimenta a economia e manifesta-se pela garantia ao homem de uma vida digna.

Em arremate, verifica-se que o ato registral é indispensável à concretização do direito de propriedade, garantia fundamental elevada à

19 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasieliro: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2006, v.5,

p.281.

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categoria constitucional de cláusula pétrea, pois impossível se imaginar, atualmente, a sobrevivência do homem sem uma simples manifestação de propriedade.

A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA CONCRETIZADORA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

No absolutismo, os indivíduos não gozavam de direitos fundamentais, pois o Estado era soberano na medida em que detinha o poder, sobrepondo sua vontade sem nenhum limite, havendo nítido abuso de direito (se é que havia direito). A dignidade humana sucumbia à vontade do rei, chegando ao extremo de os indivíduos viverem em estado de miserabilidade e sem nenhuma segurança jurídica, haja vista a manifestação exploratória dos bens particulares.

Tal realidade muda com o advento do Estado Democrático de Direito e do princípio da legalidade, aos quais o administrador está vinculado. Na análise da lei pelo constitucionalismo, o direito fundamental é garantido ao homem, de forma que deverá ser exercido plenamente, não se admitindo a hipótese de o Estado feri-lo arbitrariamente ou de ser abusado em prejuízo de um direito de outrem. A doutrina de LUIZ GUILHERME MARINONI corrobora essa ideia:

“Os direitos fundamentais foram vistos, à época do constitucionalismo de matriz liberal-burguesa, apenas como o direito de o particular impedir a ingerência do Poder Público em sua esfera jurídica, ou seja, como direitos de defesa. Porém, passam a ser relevantes, agora, os chamados direitos a prestações, ligados às novas funções do Estado diante da sociedade.”20

A corrente doutrinária neoconstitucionalista fez uma releitura do real significado da Constituição Federal, atribuindo-lhe tamanha importância de forma que a lei ordinária deverá se espelhar nas diretrizes básicas por ela traçadas; tudo para que a Lei Maior não seja encarada como um mero diploma de promessas inalcançáveis ou que não se busque adotá-la como parâmetro nos diversos ramos do Direito (neoconstitucionalismo do futuro).

MARCELO NOVELINO explica este fenômeno que muda o contexto social:

20 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008,

p.74.

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“Ocorre uma rematerialização constitucional, advinda da incorporação explícita de valores, opções políticas e diretrizes aos poderes públicos, bem como da consagração de um extenso rol de direitos fundamentais, ampliado com o surgimento de novas dimensões de direitos ligados à fraternidade (terceira dimensão) e, posteriormente, à pluralidade (quarta dimensão) (grifos originais).”21

A proteção aos direitos fundamentais, portanto, é o vetor maior na aplicação da lei. Isto é, os princípios constitucionais foram elevados à categoria de norma jurídica, não se conceituando como simples valores abstratos. Fala-se, aqui, na força normativa da Constituição Federal, apadrinhada por KONRAD HESSE.

A doutrina de JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO vai além, dividindo os direitos fundamentais em direitos de defesa e os direitos a prestações. Este último grupo é subdividido em direitos originários a prestações e direitos derivados a prestações. No que tange aos direitos originários a prestações, averigua-se que “[...] a partir da garantia constitucional de certos direitos [...] se reconhece, simultanemaente, o dever do Estado na criação dos pressupostos materiais indispensáveis ao exercício efectivo desses direitos [...]”22 (grifo original).

Os ensinamentos de PAULO GUSTAVO GONET BRANCO corroboram esta ideia, afirmando que “[...] os direitos à prestação exigem que o Estado aja para atenuar desigualdades, com isso estabelecendo moldes para o futuro da sociedade”23.

As lições de PAULO GUSTAVO GONET BRANCO ensinam acerca da efetividade que deve ser atribuída à Lei Magna. Analise-se a leitura que este doutrinador faz das ideologias de KONRAD HESSE e VIEIRA DE ANDRADE:

“Esse quadro de características dos direitos à prestação material pode desolar o observador animado pela leitura singela das promessas constitucionais e esperançoso de resolver juridicamente carências de ordem econômica. Não por outro motivo, HESSE adverte para o perigo que corre a própria força normativa da Constituição, quando é tensionada com promessas excessivas, que

21 NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 4.ed. São Paulo: Método, 2010, p.60. 22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes (1992 apud MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo.

3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.74-75). 23 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

direito constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.291.

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resultam em inescapáveis frustrações de expectativas. A doutrina, porém, busca atenuar essas contingências decepcionantes com a teoria do grau mínimo de efetividade dos direitos à prestação material. Tenta-se extrair uma garantia a um mínimo social dos direitos à prestação. Para VIEIRA DE ANDRADE, essa seria a única restrição imposta à liberdade de conformação do legislador e seu desprezo configuraria caso de censurável omissão legislativa”24 (grifo original).

Embora o direito de propriedade esteja previsto no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988, carece de notório desfrute efetivo, não só pela falta de normas que o efetivem, como também por um agudo problema social. Não é incomum verificar que, na atualidade, muitos indivíduos que possuem um imóvel não tenham em seu favor a escritura pública registrada no Cartório de Registros de Imóveis.

Na verdade, acredita-se que a maior queixa se encontra pela burocracia, comodidade e, principalmente, pelo pagamento dos emolumentos decorrentes da atividade notarial. Apesar de ser com uma frequência menor, há, ainda, aqueles que, por não se atentarem da importância que o ordenamento jurídico confere ao registro imobiliário, acreditam ser proprietário pelo simples contrato de compra e venda ou, pasme-se, pelos simples recibo de pagamento.

De fato, as custas cartoriais são elevadas, principalmente quando se fala em imóveis, pois se trata de um mercado em constante valorização. Consequência disso é saber que, na realidade econômica brasileira, muitos não têm recursos para sequer financiar a aquisição imobiliária, o que dirá proceder com o registro. Acrescente-se, ainda, a existência de despesas provenientes do simples fato de se ter propriedade imobiliária. Surge, aqui, a manifestação da arrecadação do Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), de competência da municipalidade. De uma forma ou de outra, há que se considerar que existe, neste contexto, uma obstacularização ao exercício do direito de propriedade.

Urge, portanto, que o direito de propriedade, enquanto garantia social, seja fruída concretamente. Imperiosa se mostra, aqui, a função estatal de instrumentalizar o direito à moradia, elecanda no caput do artigo 6º da Lei Magna. 24 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

direito constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.297.

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O magistério de PAULO GUSTAVO GONET BRANCO embasa este pensamento, senão leia-se a transcrição abaixo:

“A maioria dos direitos à prestação, entretanto, quer pelo modo como enunciados na Constituição, quer pelas peculiaridades do seu objeto, depende da interposição do legislador para produzir efeitos plenos. Os direitos à prestação material, como visto, conectam-se ao propósito de atenuar desigualdades fáticas de oportunidades. Têm que ver, assim, com a distribuição da riqueza na sociedade. São direitos dependentes da existência de uma dada situação econômica favorável à sua efetivação. Os direitos, aqui, submetem-se ao natural condicionante de que não se pode conceder o que não se possui.”25

Isto é, cumpre ao Estado o dever de disponibilizar meios eficazes à concretização do direito fundamental, de forma que o indivíduo possa exercê-lo plenamente. Dessa forma, em razão de o direito de propriedade ser elevado à categoria de direito fundamental, resta ao Poder Público solucionar os problemas constantes ao seu pleno exercício, não, aqui, se referindo à atividade jurisdicional, mas às políticas anticíclicas, as quais devem combater a desigualdade social, a miserabilidade, a má distribuição de renda e, sobretudo, o déficit habitacional.

Assim, não satisfaz a mera constatação dos direitos sociais na Constituição Cidadã, sem que haja efetivamente a existência de leis e políticas públicas concretizadoras dos direitos fundamentais ligados à propriedade para que lhes permitam adquirir plena eficácia, exequibilidade e realização do conjunto de instruções embutidas e implicitamente aferíveis do texto constitucional.

Essas políticas públicas promovem o aumento do nível de investimento e emprego na construção civil e reduzem a arrecadação tributária, na medida em que os emolumentos e as custas devidas pelos serviços notariais e de registro, já considerados pelo Pretório Excelso como taxas, são minorados a fim de que a camada menos favorecida finaceiramente possa se aproximar mais do direito fundamental à moradia, incluindo-a à sombra protetora que garante quase que proteção absoluta dos raios que tangenciam os limites e as restrições da garantia constitucional. 25 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

direito constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.294.

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Nesse diapasão, a Medida Provisória nº 459, de 25 de março de 2009, convertida na Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009, estabelece precipuamente, entre outras atribuições, o registro eletrônico de imóveis, a redução de custas cartorárias, o acesso à moradia própria para as famílias de menor renda e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; tudo com o intuito de garantir a melhor qualidade de vida da população, sobretudo das camadas de baixa renda.

O diploma normativo supracitado vem, portanto, conferir mais segurança, agilidade e menos burocracia. Notadamente, os Cartórios de Registros de Imóveis não possuem, em sua maioria, meios eletrônicos, o que, certamente, impõe maiores custos à guarda de informações e obstaculariza as amplas consultas do estado dos imóves, o que acaba por tornar as tratativas imobiliárias um ato moroso e dispendioso para as partes, impedindo, muitas vezes, a garantia da efetiva segurança jurídica, finalidade primordial do sistema cartorário de imóveis.

Os artigos 42 e 43 da Lei nº 11.977/09 tratam justamente da redução das custas e dos emolumentos cartorários devidos pela abertura de matrícula, registro de incorporações, parcelamento do solo, averbação de construção, instituição de condomínio, registro da carta de “habite-se”, escritura pública, registro de alienação de imóvel e demais atos relativos à aquisição do primeiro imóvel residencial, impodo-se, inclusive, multa e outras sanções às serventias que não cumprirem as normas redutoras das despesas cartorárias, conforme disposição do artigo 44 da lei em liça.

Por fim, além da inserção social gerada às camadas mais vulneráveis pela oportunização de acesso ao mercado habitacional, a lei, em seu artigo 46, resgata a ideia de dirimir os problemas relativos ao meio ambiente, à ordem urbanística e promove a sustentabilidade socioambiental. Ou seja, trata-se de um combate à degradação ambiental promovida pelos conglomerados urbanos assentados irregularmente, sem estrutura de saneamento básico e outros fatores causadores de impactos ambientais.

Há, aqui, na verdade, uma verdadeira tendência do legislador de se adequar tanto ao princípio de chamar à responsabilidade do Poder Público à adoção de medidas que assegurem o exercício dos direitos fundamentais, aqui delimitados no âmbito do direito social à moradia (propriedade imobiliária), quanto à nova realidade mundial de promover e afirmar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à urbanização das grandes metrópoles, o que de fato forma um conjunto harmônico

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responsável pelo ciclo contrabalançado de funcionamento quotidiano das atividades populacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Arremata-se, portanto, que o Estado, diante da responsabilidade de garantir o pleno exercício dos direitos fundamentais do indivíduo, trilha sua nova atuação, na manifestação da função legislativa, na tentativa de modificar o sistema direta ou indiretamente ligado aos direitos fundamentais, concretizando-os e aperfeiçoando-os por meio de novos diplomas.

Na verdade, se quer, portanto, que o formalismo não tenha um fim em si mesmo e obstacularize o desempenho dos direitos subjetivos. Ou seja, buscam-se meios para instrumentalizar a garantia tutelada, aqui analisada no âmbito da aquisição da propriedade, quer reduzindo as custas cartorárias, quer virtualizando o sistema operacional dos Cartórios de Registros de Imóveis, tudo com a finalidade de as camadas menos favorecidas serem inseridas socialmente nos direitos fundamentais que, também, lhes tocam.

Ou seja, na nova tendência mundial, o Estado busca reafirmar os direitos sociais garantidos na Constituição Federal, pois, embora prescritos em seu texto, não gozam de efetividade por parte de seus destinatários. Para alcançar esta efetividade, o legislador, percebendo que os problemas advindos da falta de moradia se multiplicam, transforma o texto normativo para garantir o direito de propriedade, em seu pleno sentido, resolvendo, também, por via reflexa, os vícios constantes no setor urbanístico e ambiental.

Neste contexto, verificou-se que, assegurando o direito à propriedade imobiliária, o Estado está, também, promovendo a regularização fundiária e solucionando os problemas constantes no sistema urbanístico, máxime no que se refere à sustentabilidade socioambiental.

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BREVE ENSAIO SOBRE A RELEVÂNCIA DO

DIREITO AMBIENTAL NA CONTEMPORANEIDADE

JOÃO CARLOS LEAL JÚNIOR* ITIRO KUWAJIMA**

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o objetivo de traçar breve análise sobre a relevância ocupada pelo direito ambiental no mundo contemporâneo. O tema em pauta já vem sendo demasiadamente debatido pela doutrina há muito tempo, e sem nunca perder sua atualidade.

A preocupação com a preservação do meio ambiente tem motivado a criação de documentos nacionais e internacionais contendo normas disciplinando as relações do homem com o meio, pautadas por princípios constitucionais que regem o tema de forma específica.

Esta necessidade de criação de leis e princípios direcionados à regulamentação da preservação dos recursos naturais vem marcada pela busca da compatibilidade entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental. A degradação do meio resulta da temerária – e equívoca – ideia de que somente mediante a destruição da natureza seria possível a ocorrência de progresso.

A importância da utilização de métodos adequados capazes de solucionar os fenômenos naturais ou humanos responsáveis pela alteração do equilíbrio ecológico é fundamental. A preservação e a proteção dos recursos naturais, então, têm como objetivo principal a tutela do meio

* Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR.

Pesquisador, pós-graduando em Direito e Processo Penal e mestrando em Direito Negocial pela UEL/PR. E-mail: [email protected].

** Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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ambiente que, por sua vez, baseia-se na qualidade de vida como modalidade de direito fundamental da pessoa humana.

Em razão de sua grandiosa extensão territorial, o Brasil é marcado por diversos ecossistemas existentes, sendo reputado, por isso, um dos mais importantes países no que se refere à questão ambiental.

A natureza é considerada o espaço onde o homem está situado com posição de destaque, razão pela qual advém a necessidade de regulamentação quanto a seu uso e exploração. A necessidade de tutela jurídica do ambiente fica mais clara a partir do momento em que sua má utilização passa a ameaçar não só o bem-estar, mas a qualidade de vida humana.

Os desastres ecológicos crescentes deram origem à consciência ambientalista, chamando a atenção das autoridades para o problema da degradação e destruição do meio ambiente, em todos os seus aspectos. Logo, surgiu a necessidade de proteção jurídica do meio ambiente, o qual configura patrimônio da humanidade, imprescindível, imprescritível e irrenunciável.

Feitas estas considerações, este estudo iniciar-se-á fazendo breve abordagem sobre o direito ambiental, trazendo conceitos básicos, a classificação doutrinária do meio ambiente e um resumo histórico sobre o surgimento deste ramo jurídico nos contextos nacional e internacional. Após, serão enumerados os princípios constitucionais ambientais, os quais constituem os alicerces do tema, por orientar e iluminar a criação de regras neste âmbito, assim como sua interpretação e aplicação.

Posteriormente, analisará algumas das questões de maior relevância no que atina ao meio ambiente e à degradação do mesmo, tais como as inúmeras formas de poluição, a extinção de espécies animais e vegetais, o efeito estufa e o desflorestamento.

Enfim, em um último momento, serão examinados instrumentos jurídico-ambientais existentes com o fim de preservar e proteger o meio ambiente, abordando tópicos como a reparação e a prevenção ambiental.

1 – APONTAMENTOS CONCEITUAIS E HISTÓRICOS

Neste momento inicial, serão trazidos apontamentos conceituais básicos acerca do direito ambiental, abordando-se conceitos como o de bem ambiental, assim como as características da figura, especificamente quanto

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ao ordenamento jurídico brasileiro. Após, examinam-se a classificação do meio ambiente e suas subdivisões, tudo com base no texto constitucional.

Finalmente, é feito breve resumo histórico sobre o direito ambiental, apontando-se o surgimento e a evolução no âmbito mundial e especialmente no cenário brasileiro, observando-se, ainda, os principais marcos legislativos nacionais e supranacionais sobre o tema.

1.1 Aspectos Iniciais

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, vislumbrou-se uma nova categoria de bens, relativa aos de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida, que não se confundem com os bens públicos nem com os privados1. São bens que pertencem a uma coletividade indeterminável de pessoas e cuja proteção interessa não apenas às pessoas individualmente consideradas, mas à coletividade como um todo. Tem-se, com isso, a consagração dos bens ambientais.

A Constituição, em seu artigo 225, prescreve que:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Nesta linha, a Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, define-o, em seu artigo 3º, como o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”2.

JOSÉ AFONSO DA SILVA3, discorrendo acerca do assunto, esclarece que a qualidade do meio ambiente converte-se em bem, o qual recebe reconhecimento e proteção do Direito. Fala-se, assim, em patrimônio ambiental.

Já a característica de ser de uso comum do povo, inerente ao bem ambiental, significa que tal pode ser desfrutado por toda e qualquer pessoa,

1 PIRES, Natália Taves. Breves comentários sobre a principiologia regente do direito ambiental

brasileiro. Revista Jurídica Empresarial, Porto Alegre, n.13, mar.-abr. 2010. 2 SÉGUIN, Elida; CARRERA, Francisco. Lei dos Crimes Ambientais. Rio de Janeiro: Esplanadas, 1999. 3 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998.

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desde que observados os limites fixados constitucionalmente4. Não cabe, portanto, exclusivamente a uma pessoa ou grupo; tampouco sua titularidade pode ser atribuída a quem quer que seja. O que se atribui à coletividade é apenas seu uso, e, ainda assim, o mesmo deve se verificar de forma a assegurar às próximas gerações as mesmas condições de que as presentes desfrutam.

Os bens ambientais também não integram o patrimônio privado do Estado: não são dominicais, ou alienáveis, já que o Poder Público deles é mero gestor, conforme sustenta SIRVINSKAS5, haja vista que são de uso comum de todos, não cabendo divisão em quotas ou alienação. Enfim, sendo o bem ambiental de uso comum de todos, como é, pode a coletividade dele se utilizar, mas ninguém poderá dele dispor, nem mesmo transacioná-lo6.

Por outro lado, para que se tenha a estrutura em apreço, é preciso ser, além de bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, ou seja, imprescindível à plena realização da dignidade da pessoa humana, integrando o rol de direitos fundamentais. Assim sendo, bem essencial à sadia qualidade de vida é aquele indispensável à garantia da dignidade humana7. JOSÉ AFONSO DA SILVA8 preleciona que a expressão qualidade de vida

é o objeto da tutela jurídica mediata consubstanciada no direito à saúde, ao bem-estar e à segurança da população.

Para uma completa compreensão do tema, cabe advertir, ainda, que o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado constitui espécie de interesse difuso, o qual integra o gênero de direitos chamados de metaindividuais ou transindividuais, categoria, como afirma HUGO NIGRO MAZZILLI9, intermediária às duas classes básicas existentes, a dos interesses públicos e a dos privados. Estes interesses metaindividuais transcendem aos privados, mas não chegam a constituir interesse do Estado. São interesses de grupos de pessoas, ainda que interligadas por situação meramente fática10. 4 GRAF, Ana Cláudia Bento. A tutela dos Estados sobre as águas. In: FREITAS, Vladimir Passos de.

Águas: aspectos jurídicos e ambientais. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2002. 5 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2003. 6 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 7 FIORILLO. Op. cit. 8 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2004. 9 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 1998. 10 O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 81, dividiu-os e, entre suas espécies, cuidou,

em seu inciso I, dos mencionados direitos difusos. São definidos, no dispositivo, como “os

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É em razão desta grande relevância ocupada pelo bem ambiental que o ramo do direito dedicado ao seu estudo tem crescido e se aprimorado mais a cada dia.

Assim, o direito ambiental é tido como a ciência que estuda os problemas ambientais e suas interligações com o homem, objetivando a proteção do meio ambiente para o aprimoramento das condições de vida. Esta ciência lastreia-se em estudos complexos que envolvem biologia, química, antropologia, meteorologia, sistemas educacionais e ciências sociais, entre outras disciplinas, sendo fundamental, então, uma visão interdisciplinar para o desenvolvimento de seu estudo, não sendo útil, aqui, um conhecimento fragmentado, por não ser apto a alcançar a meta principal, que é a efetiva proteção do meio ambiente.11

O direito ao meio ambiente, sua definição e regime jurídico e os princípios e objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente fundamentam o Direito Ambiental, juntamente com temas e conceitos de ecologia, biologia, antropologia, botânica e educação ambiental. Diante disso, é essencial a análise do que vem a ser, de fato, meio ambiente, bem como as subdivisões que podem ser nele verificadas – o que será feito no tópico seguinte.

1.2 Classificação e Subdivisões

CELSO FIORILLO12 ensina que a expressão meio ambiente é indeterminada, exigindo interpretação do jurista. ÉDIS MILARÉ13 indica que ele pode ser visto sob duas acepções: ampla e estrita. Na visão estrita, que despreza o que não se relaciona com os recursos naturais, refere-se à “expressão do patrimônio natural e suas relações com e entre os seres vivos”. Sob a perspectiva ampla, o meio ambiente abrange toda a natureza original e artificial, assim como os bens culturais correlatos14.

transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”. Verifica-se serem indetermináveis seus titulares, assim como indivisível seu objeto. Além disso, não existe relação jurídica vinculando seus interessados, visto que estão unidos por uma circunstância de fato consistente na prática de um único evento, pelo ofensor, em prejuízo de todos os membros do grupo (DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001).

11 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 8.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 12 FIORILLO. Op. cit. 13 MILARÉ apud CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Legislação especial. 3.ed. São Paulo: Saraiva,

2008, p.47. 14 Ibid.

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Deste modo, entre várias classificações existentes, adotou-se aqui a utilizada pela doutrina majoritária, que o classifica e subdivide, basicamente, em meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho.

O primeiro é aquele que existe por si só, independentemente da influência do homem, e se constitui pela atmosfera, pelos elementos da biosfera, pelas águas, pelo solo, pelo subsolo, pela fauna e pela flora15. Ele concentra o fenômeno chamado homeostase, que é o “equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e o meio em que vivem”16.

O meio ambiente natural recebeu proteção constitucional no caput do artigo 225 da Lei Maior, anteriormente transcrito, e nos incisos I, III e VII do § 1º do mesmo artigo, os quais determinam o seguinte:

§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; [...]

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; [...]

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade; […].”

O meio ambiente artificial, por outro lado, é aquele que se forma a partir da criação humana, como o próprio nome aponta. Ele é formado pelo espaço urbano construído, que abrange o conjunto de edificações e equipamentos públicos.

Este aspecto do meio ambiente se relaciona de forma direta com o conceito de cidade, conforme a lição de FIORILLO17, e recebe proteção também do artigo 225 da Constituição, bem como dos artigos 182; 21, inciso XX; 5º, inciso XXIII; entre outros, também da Constituição. Além disso, cabe

15 Ibid. 16 FIORILLO. Op. cit., p. 20. 17 Ibid.

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salientar que o meio ambiente artificial recebe importante regramento infraconstitucional pela Lei nº 10.257/0118.

Quanto ao meio ambiente cultural, sabe-se que é constituído basicamente pelo patrimônio arqueológico, turístico, histórico, paisagístico, artístico, monumental, paleontológico e científico. Ainda que possa resultar de obra humana, ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA19 que se diferencia do meio ambiente artificial, já que o cultural tem reconhecido valor especial, pela importância detida para a cultura histórica do País.

Prescreve o artigo 216 que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos” que formam a sociedade brasileira, nos quais se incluem:

“I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”

E prosseguem os parágrafos do artigo:

“§ 1º. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

§ 3º. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

§ 4º. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

18 Também conhecida como Estatuto da Cidade. 19 SILVA. Op. cit.

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§ 5º. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.”

Por fim, “constitui o meio ambiente do trabalho o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais relacionadas à sua saúde, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio”20 e na ausência de agentes que prejudiquem a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independentemente da condição que ostentem21.

Ele se caracteriza pelo complexo de bens, móveis e imóveis, de uma empresa, “objeto de direitos subjetivos privados e invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que a frequentam”22, e é tutelado pelo texto constitucional no inciso VIII23 do artigo 200 e no inciso XXIII24 do artigo 7º.

Diante do exposto, vê-se que a classificação apresentada encontra fundamento e proteção constitucional, cabendo a observação das aludidas normas para a garantia da preservação ambiental, em sua mais ampla acepção.

1.3 Resumo Histórico

A preocupação com o meio ambiente iniciou-se especialmente a partir do advento das chamadas sociedades de massa, fenômeno observado no início da segunda metade do Século XVIII, estritamente relacionado com a industrialização e a expansão do capitalismo. Conforme FIORILLO, não se tem, entretanto, uma data precisa fixada pelos historiadores quanto a este momento.

Enormes populações abandonaram suas cidades para se concentrar em grandes conglomerados urbanos, na busca de obter conforto, emprego e entretenimento, causando inchamento populacional. Logo, ainda que de um lado o crescimento econômico gerasse o desenvolvimento da indústria e

20 FIORILLO. Op. cit., p. 22. 21 Ou seja: é irrelevante que seja homem ou mulher, maior ou menor de idade. Todo trabalhador faz

jus a um ambiente de trabalho sadio (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2004).

22 FIORILLO. Op. cit., p. 23. 23 “Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: […]

VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.” 24 “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de

sua condição social: […] XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei [...].”

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também do próprio Estado, de outro, provocava, entre outras improficuidades, a degradação do ambiente, em razão da carência de infraestrutura para suportar tamanhas alterações.

Com o vertiginoso avanço do processo de degradação ambiental, aos poucos foi surgindo paralelamente o que se denomina consciência ecológica ou consciência ambientalista, obtendo a atenção das autoridades para o problema da destruição do meio ambiente, especialmente natural e cultural. Isso gerou o reconhecimento da necessidade de proteção jurídica do ambiente, que levou a um processo gradual de elaboração de normas disciplinadoras da matéria.

Nesta esteira, JOSÉ AFONSO DA SILVA25 acrescenta que “a essa evolução de normatividade jurídica do meio ambiente […] já se pode acrescentar um novo passo importante, qual seja o de que Constituições mais recentes já incluem em seus textos normas sobre o tema [...]”, assunto a seguir observado.

1.3.1 Surgimento e evolução no âmbito mundial

Como salientado, o ambientalismo passou a ser tema de elevada importância nos documentos constitucionais mais recentes, ingressando neles como direito fundamental da pessoa humana, e “não como simples aspecto da atribuição de órgãos ou de entidades públicas, como ocorria em Constituições mais antigas”26.

Inicialmente, a Constituição mais característica quanto ao tema ambientalismo foi, certamente, a da Bulgária, de 1971, por declarar, em seu artigo 31, que “a proteção, a salvaguarda da Natureza e das riquezas naturais, da água, ar e solo […] incumbem aos órgãos do Estado e é dever também de cada cidadão”27. Em seguida, cita-se a Constituição Cubana, datada de 1976, a qual incumbiu ao Estado e à Sociedade, como forma de garantir o bem-estar dos cidadãos, a proteção da Natureza, que abrange a mantença das águas e da atmosfera limpas e o cuidado do solo, da flora e da fauna. No mesmo ano, a Constituição Portuguesa inova na temática, já que correlaciona em seu texto meio ambiente ao direito à vida, estabelecendo ser direito de todos um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado.

25 SILVA. Op. cit., p.34. 26 Ibid., p.43. 27 Ibid., p.44.

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Pode-se dizer que a Constituição Espanhola, de 1978, inspirou-se na última para tratar do tema; além disso, impende lembrar que a Constituição da União Soviética, de 1977 (hoje revogada), do Chile, de 1981, e da China, de 1982, igualmente abordaram em seu texto a necessidade de preservação do meio ambiente como meio de salvaguardar, além da presente, as futuras gerações dos males inerentes à degradação ambiental, prejudicial à vida digna28.

1.3.2 O direito ambiental no Brasil

No Brasil, a Constituição de 1988 foi a primeira a tratar deliberadamente sobre a questão ambiental, já que as anteriores nada traziam especificamente acerca do assunto. Neste passo, pode-se dizer que o diploma atual é eminentemente ambientalista, relacionando a proteção ambiental com a realização da dignidade da pessoa humana ao afirmar que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual é essencial à sadia qualidade de vida29.

O artigo 174, ademais, consagra a defesa do meio ambiente como princípio balizador da ordem econômica, atenuando os valores liberais existentes no Estado brasileiro. Assim, a economia nacional deve atentar para a preservação do meio ambiente, não podendo tal ser desrespeitado.

Impõe-se, ainda, ao Poder Público e à coletividade o dever de defesa e preservação do ambiente para as gerações presentes e futuras, em razão do reconhecimento de que o equilíbrio ambiental é algo essencial para que o homem viva dignamente. Com o advento da Lei Magna de 1988, então, ganhou maior destaque o estudo do direito ambiental, que passou a ser sistematizado e a receber dedicação não só de juristas, mas de pesquisadores das mais diversas áreas.

1.3.3 Marcos legislativos nacionais e internacionais

A tutela jurídica do meio ambiente no Brasil sofreu grande transformação com o passar do tempo. Preliminarmente, em virtude da concepção clássica acerca do direito de propriedade vigente, prevaleceu total desproteção, inexistindo norma com o condão de coibir a atuação depredatória.

28 Ibid. 29 Conforme o já citado artigo 225.

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Conforme preconiza a doutrina, as primeiras normas protetoras que surgiram eram de incidência restrita, já que tinham por alvo imediato a tutela do direito privado de vizinhança. Portanto, as regras primitivas preocupavam-se com o direito de propriedade e levavam em consideração o interesse do homem individualmente considerado. Nessa linha se encontravam dispositivos do Código Civil de 1916, como ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA.

Após, o Regulamento de Saúde Pública (Decreto 16.300/23) criou a Inspetoria de Higiene Industrial e Profissional, com o fim proteger a saúde dos moradores da vizinhança, e, pouco a pouco, foram sendo editadas leis tratando de matérias ambientais específicas, como o Código Florestal (Decreto 23.793/34), o Código de Águas (Decreto 26.643/34) e o Código de Pesca (Decreto-Lei 794/38).

Mas só posteriormente é que foi reconhecida a real importância do meio ambiente para a vida humana e, consequentemente, os prejuízos que advêm da prática de degradação ambiental.

Em uma fase posterior, já com uma consciência ambiental mais realçada, foi criado, em 1967, o Decreto-Lei 248, que instituiu a Política Nacional do Saneamento Básico, e o Decreto-Lei 303, que criou o Conselho Nacional de Controle da Poluição Ambiental. Não chegaram a ser aplicados, pois oito meses depois foram revogados pela Lei nº 5.318/67, que instituiu nova Política Nacional do Saneamento Básico.

No ano de 1973, foi retomada a sistematização da matéria, com a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente. Dois anos depois, foram editados o Decreto-Lei 1.413, tratando do controle da poluição causada por indústrias, e o Decreto 76.389, dispondo sobre medidas preventivas da referida forma de poluição. Paralelamente, os Estados federados também criaram algumas normas com cunho protetivo, mas ainda sem que houvesse a incidência de uma visão global da matéria.

Finalmente, tem-se a Lei nº 6.938/81, dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, que tem por objetivo “a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana [...]”30.

30 Artigo 2º da lei.

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A Política Nacional do Meio Ambiente se orienta por dez princípios de elevada importância, sendo eles os seguintes31:

“I – ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo;

II – racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do ar;

III – planejamento e fiscalização do uso dos recursos ambientais;

IV – proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas representativas;

V – controle e zoneamento das atividades potencial ou efetivamente poluidoras;

VI – incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias orientadas para o uso racional e a proteção dos recursos ambientais;

VII – acompanhamento do estado da qualidade ambiental;

VIII – recuperação de áreas degradadas;

IX – proteção de áreas ameaçadas de degradação;

X – educação ambiental a todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente.”

Foi criado, pelo mesmo diploma, o Sistema Nacional do Meio Ambiente, cujo objetivo é a fixação de padrões que viabilizem o desenvolvimento sustentável, através de mecanismos e instrumentos capazes de conferir ao meio ambiente uma maior proteção.

Examinados, enfim, alguns dos marcos legislativos nacionais relacionados com o tema, cumpre agora citar alguns dos eventos transnacionais mais importantes em matéria ambiental.

O primeiro marco supranacional de relevância marcante deu-se com a realização da Conferência sobre o Ambiente Humano das Nações Unidas em Estocolmo, na Suécia, no ano de 1972. Nesta oportunidade, “foi proclamado que a forma ideal de planejamento ambiental é aquela que

31 Conforme indica o supracitado artigo 2º.

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associa a prudência ecológica às ações pró-desenvolvimento [...]”32, e iniciada cooperação internacional para a proteção do meio ambiente. Elaborou-se uma declaração contendo 26 princípios ambientais, os quais deveriam nortear o agir humano de forma a ser preservado o meio ambiente.

Vinte anos depois, em 1992, foi realizada no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento33, com objetivo precípuo de buscar meios de conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a conservação e proteção dos ecossistemas da Terra. A partir daí, então, surge o conceito de desenvolvimento sustentável, o qual integra o rol de princípios ambientais que serão analisados posteriormente.

Da conferência em tela, surgiu a Convenção de Biodiversidade, assinada e ratificada pelo Brasil, objetivando a conservação da biodiversidade, o uso sustentável de seus componentes e a divisão equitativa e justa dos benefícios gerados com a utilização de recursos genéticos; o programa Agenda 21, que viabiliza um novo padrão de desenvolvimento ambientalmente racional, harmonizando métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica; a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a mudança do clima, tratado assinado por quase todos os países do mundo com o escopo de estabilizar a concentração de gases do efeito estufa na atmosfera de forma a evitar a interferência perigosa com o sistema climático; e o Protocolo de Quioto, acordo internacional discutido no Japão em 1997, contendo compromissos mais rígidos para a redução da emissão dos gases que agravam o efeito estufa, considerados, de acordo com a maioria das investigações científicas, como causa antropogênica do aquecimento global.

Por derradeiro, cita-se a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a chamada Rio+10, realizada no ano de 2002, com o objetivo de rever as metas propostas pela Agenda 21 e direcionar as realizações às áreas carentes de um esforço adicional para sua implementação.

32 MÖLLER, Ana Karina Ticianelli; MUNIZ, Tânia Lobo. A proteção internacional dos Direitos

Humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente: considerações iniciais. Scientia iuris: Revista do Curso de Mestrado em Direito Negocial da UEL, Londrina, v.11, p.259-277, p.264, 2007.

33 Conhecida como Rio-92 ou ECO-92.

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2 – A PRINCIPIOLOGIA REGENTE DO DIREITO AMBIENTAL

O direito ambiental está alicerçado em princípios próprios, específicos e interligados entre si, devido à relevância e à magnitude de seu objeto de proteção: o meio ambiente. Neste capítulo, serão enumerados os mais relevantes, que são os princípios constitucionais ambientais, isto é, aqueles que encontram guarida na Constituição brasileira atual.

Princípios jurídicos são espécies normativas que constituem “enunciados lógicos, implícitos ou explícitos, que, por sua grande generalidade, ocupam posição de destaque, vinculando, forçosamente, a exegese e a boa aplicação das demais normas jurídicas que com eles se conectam”34. Os denominados princípios constitucionais, por sua vez, constituem a base de determinado ordenamento jurídico, sendo as normas mais gerais do mesmo, as quais devem ser observadas, especialmente se encerrarem em seu interior direitos fundamentais35.

Os princípios do direito ambiental têm, paulatinamente, caído no senso comum, o que tem propiciado eficiente aplicabilidade no mundo prático. Inúmeras são as demonstrações deste relevante avanço, como, por exemplo, a utilização de instrumentos como o zoneamento ambiental e o licenciamento, os incentivos à produção, as unidades de conservação, o sistema de informação do meio ambiente, afora fenômenos como o crescimento do número de organizações não governamentais voltadas à proteção ambiental, o gigantesco aumento de separação de resíduos orgânicos e recicláveis e a utilização, cada vez maior, de materiais reciclados no cotidiano das pessoas.

Apesar dos passos dados, há ainda muito a se fazer para que os princípios ambientais passem a ser mais respeitados e recebam, com isso, maior observância pela sociedade e pelo Estado.

2.1 Princípio Democrático

PAULO DE BESSA ANTUNES36 ensina que o direito ambiental “tem uma das vertentes de sua origem nos movimentos reivindicatórios dos cidadãos e, como tal, é essencialmente democrático”. Assim, o princípio democrático

34 LEAL JÚNIOR; João Carlos; DE PAULA MACHADO, Denise Weiss. Análise crítica do duplo grau de

jurisdição sob o prisma do direito à razoável duração do processo. Revista de Processo, São Paulo, v.35, n.183, maio 2010.

35 Ibid. 36 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 8.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.27.

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faz-se presente aqui, iluminando o ramo jurídico em pauta, tanto na criação quanto na interpretação e aplicação das normas que o regem.

Este princípio é aquele que se funda na democracia e materializa-se através dos direitos à informação e à participação.

Conforme dita o artigo 1º da Constituição, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado de Direito Democrático, o que denota a adoção do princípio democrático como base da República pátria. JOSÉ AFONSO DA SILVA37 ensina que, nos termos do diploma constitucional, a democracia nacional é representativa e participativa, pluralista e garantidora da vigência e eficácia dos direitos fundamentais. Aduz que o Estado Democrático funda-se no princípio da soberania popular, que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública.

PINTO FERREIRA38 esclarece que, para a melhor doutrina, é o “governo constitucional das maiorias que, sobre as bases de uma relativa liberdade e igualdade, […] proporciona ao povo o poder de representação e fiscalização dos negócios públicos”.

A democracia oferece aos cidadãos a “possibilidade de desenvolvimento integral e de liberdade de participação crítica no processo político”39 em condições de igualdade econômica, política e social.

Deste modo, no direito ambiental, o princípio em tela assegura aos cidadãos a prerrogativa de participar na elaboração das políticas públicas ambientais e de obter informações dos órgãos públicos sobre matéria relacionada à proteção do ambiente e de empreendimentos utilizadores de recursos ambientais e que tenham repercussão significativa sobre ele.

As consequências para o sistema da adoção deste princípio são as seguintes:

“a) o dever jurídico universal de proteger e preservar o meio ambiente;

b) o direito de opinar sobre as políticas públicas ambientais adotadas, através de mecanismos legislativos (tais como o instituto da iniciativa popular e do plebiscito), administrativos (como o direito de petição, as audiências públicas e o estudo prévio de

37 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 1998. 38 FERREIRA, L. Pinto. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1991, p.88. 39 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra:

Almedina, 2003, p.289.

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impacto ambiental) e judiciais (ação popular e ação civil pública).”40

2.2 Princípio da Precaução

Também conhecido como princípio da prudência ou da cautela, o princípio da precaução constitui garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados.

Desta forma, sempre que houver perigo da ocorrência de um dano grave ou irreversível, a ausência de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para o adiamento da adoção de medidas eficazes, com a finalidade de coibir a degradação ambiental41.

Segundo MORATO LEITE42, a precaução objetiva prevenir “suspeita de perigo ou garantir uma suficiente margem de segurança da linha de perigo”. Seu trabalho é anterior à manifestação de risco e, assim, prevê uma política ambiental adequada a este princípio43.

O princípio “não determina a paralisação da atividade, mas que ela seja realizada com os cuidados necessários”44, até mesmo para que o conhecimento científico possa avançar e a dúvida ser esclarecida.

2.3 Princípio da Prevenção

A ideia da prevenção se aproxima da de precaução, mas como ela não se confunde, conforme entende a melhor doutrina. A prevenção aplica-se a impactos ambientais já conhecidos e dos quais se possa, “com segurança, estabelecer um conjunto de nexos de causalidade que seja suficiente para a identificação dos impactos futuros mais prováveis”, ao passo que o critério da precaução respeita a fatos cujos riscos são supostos45.

É baseado no princípio em exame que o licenciamento ambiental e os estudos de impacto são solicitados pelas autoridades, já que são feitos com base em conhecimentos já existentes.

40 ANTUNES. Op. cit. 41 LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000. 42 Ibid., p.49. 43 PIRES. Op. cit. 44 ANTUNES. Op. cit., p.33. 45 Ibid., p.35.

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A prevenção de danos aqui tratada não significa a eliminação absoluta dos mesmos. Sua existência originada por um empreendimento específico é avaliada em conjunto com os benefícios que o mesmo gera e, a partir de uma análise balanceada, é que surge a opção política consubstanciada no deferimento ou não do licenciamento46.

MACHADO47 conclui, com sabedoria, afirmando que a prevenção não é estática, mas dinâmica; exige, portanto, atualização e reavaliações, de forma a “poder influenciar a formulação das novas políticas ambientais, das ações dos empreendedores e das atividades da Administração Pública, dos legisladores do Judiciário”.

2.4 Princípios do Usuário-Pagador e do Poluidor-Pagador

O princípio do usuário-pagador significa que o utilizador do recurso deve suportar o conjunto de custos destinados a tornar viável sua utilização, bem como os que advêm de seu efetivo uso, de forma a não recaírem sobre terceiros nem sobre o Poder Público48. Interno a este critério, encontra-se, ainda, o chamado princípio do poluidor-pagador.

De acordo com o § 3º do artigo 225 da Constituição, “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, às sanções penal e administrativa, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

Logo, diante do princípio do poluidor-pagador, fica assentado que, independentemente de culpa ou dolo, o poluidor é obrigado a indenizar e a reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade, assim como arcar com os custos diretos e indiretos de medidas preventivas e de controle da poluição49.

Dentro deste último, então, há duas órbitas de alcance: a primeira, de caráter preventivo, que busca evitar a ocorrência de danos ambientais; e a segunda, com caráter repressivo, no caso de ocorrer dano, visando à sua reparação50. Impõe-se ao poluidor, então, o dever de prevenir os danos ambientais decorrentes de sua atividade, devendo utilizar-se de

46 Ibid. 47 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 48 Ibid. 49 PIRES. Op. cit. 50 FIORILLO. Op. cit.

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instrumentos preventivos. Entretanto, sobrevindo dano da atividade do poluidor, este será responsável pela reparação.

Vale destacar que o princípio do poluidor-pagador deve ser analisado em conjunto com os princípios da precaução e da prevenção. Assim, a poluição deve ser coibida e evitada. Se, contudo, ocorrer, a seu causador incumbe a máxima reparação51.

2.5 Princípio da Responsabilidade

Segundo o princípio da responsabilidade, qualquer violação ao direito implica a sanção do responsável pela quebra da ordem jurídica. O ventilado § 3º do artigo 225 da Constituição traz em seu interior a obrigação de reparar o dano causado, imposta àquele que o gerar.

A Constituição, assim, firmou que a criação de um dano pode gerar responsabilização nas esferas administrativa, civil e até mesmo criminal, dependendo da gravidade do dano causado.

Insta afirmar, quanto à órbita civil, que coube à norma infraconstitucional estabelecer a natureza da responsabilidade. No caso, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente dispôs ser ela objetiva, o que significa que, ainda que seu causador não tenha agido com culpa, deverá ele se sujeitar às sanções civis.

2.6 Princípio do Desenvolvimento Sustentável

Por fim, tem-se o princípio do desenvolvimento sustentável como um dos mais importantes entre os que iluminam o direito ambiental. Este postulado encontra-se inserido no caput do artigo 225 da Constituição Federal, no exato momento em que dispõe que todos têm direito ao meio ambiente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o “dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Os recursos ambientais não são inesgotáveis; por isso, há necessidade da coexistência harmônica entre o desenvolvimento econômico e o meio ambiente. O desenvolvimento é permitido, mas de forma sustentável e planejada, para que os recursos existentes não se esgotem.

51 Ibid.

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CELSO PACHECO FIORILLO52 diz não haver dúvida de que o desenvolvimento econômico também é um valor precioso da sociedade; mas este deve coexistir com a preservação ambiental, de modo que um não acarrete a anulação do outro.

A finalidade deste princípio, portanto, é a utilização racional dos recursos naturais para que o desenvolvimento econômico “ocorra com o mínimo possível de dano ambiental no atendimento às funções básicas do homem”53.

Diante disso, o direito de propriedade passou a ter seu exercício condicionado ao bem-estar social e a ter de cumprir, consectariamente, uma função social e ambiental com o advento da atual Constituição54, havendo, assim, a necessidade do respeito a esta função socioambiental dos bens.

3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELEVÂNCIA DO DIREITO AMBIENTAL NO MUNDO MODERNO

O Brasil é formado por um patrimônio ambiental com valor inestimável, o que dá à população a responsabilidade de protegê-lo, de forma a ser respeitado o direito fundamental previsto no caput do artigo 225 da Constituição, o qual assegura para presentes e futuras gerações um meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida.

O indigitado diploma tem forte cunho ambientalista, sendo, inclusive, um dos mais notáveis neste aspecto entre as Constituições nacionais vigentes.

Existe um consenso de que, ao longo das últimas décadas, o ambiente vem sofrendo variadas intervenções prejudiciais, tais como a implantação de empreendimentos hoteleiros e turísticos em locais que exigem preservação e isolamento, desmatamento de grandes áreas verdes e poluição nas mais diversas formas. Essa tecitura, é certo, coloca em risco toda a vida do planeta, já que afeta a qualidade da água, o clima e a diversidade das espécies animais e vegetais.

O Poder Público brasileiro reconhece a situação ambiental emergencial que se instalou em virtude especialmente da Globalização, bem

52 FIORILLO. Op. cit. 53 SÉGUIN, Elida; CARRERA, Francisco. Lei dos Crimes Ambientais. Rio de Janeiro: Esplanadas, 1999,

p.82. 54 PIRES. Op. cit.

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como a consectária necessidade de ação imediata; por isso, políticas ambientais são criadas, tendo o governo por tarefa principal estabelecer diálogo construtivo e proativo com as instituições públicas e privadas e com a sociedade de modo geral, na busca de desenvolver uma consciência ambiental cada vez maior, criando uma cultura de efetivo respeito ao meio ambiente.

Como apontado, inúmeros são os problemas que surgem com a desatenção às normas ambientais. O presente capítulo, enfim, tem por escopo analisar brevemente algumas das questões de maior relevância no que atina ao meio ambiente e à degradação do mesmo.

3.1 Da Problemática da Água

Até um passado recente, o uso e a importância da água eram temas que não costumavam integrar o elenco de preocupações do povo brasileiro, ainda que a água, como recurso ambiental, tenha sido preocupação já existente na Grécia e na Roma antigas. De qualquer forma, juntamente com a valorização do meio ambiente e com as políticas de concretização de desenvolvimento sustentável, as questões envolvendo a água passaram a ganhar atenção em debates no meio jurídico, assim como no cotidiano da população.

Isto se deve a transformações verificadas no mundo contemporâneo: viu-se que a água, elemento sempre considerado inesgotável, assim como outros recursos naturais até então tidos por infinitos, passou a denotar esgotamento. Nesta trilha, o crescimento populacional progressivo foi fator de grande peso para o aparecimento desta preocupação. Diversos países já vêm atravessando dificuldades para obter água potável e até mesmo o Brasil encontra estas espécies de entraves em estados da Região Nordeste, em razão das peculiaridades climáticas lá existentes.

Fala-se, então, hodiernamente, em direito fundamental à água, que abrange o acesso de cada pessoa ao abastecimento de água e a proteção contra interrupção injustificada desta disponibilidade.

Como indicado, há, na Região Nordeste o chamado Polígono das Secas, área em que as chuvas atingem o grau último da escassez e da má distribuição, prejudicando, de forma inquestionável, a concretização da dignidade da vida humana. O acesso à água lá é verdadeira questão de

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sobrevivência, porque a região, grande em população e território, detém menos de 5% dos recursos hídricos nacionais55.

É cediço que a preservação da saúde pública, assim como da saúde ambiental, guarda conexão com a qualidade das águas, a qual pode ser afetada pela poluição. Nessa linha, conforme dispõe o Decreto 70.030/73, a poluição hídrica dá-se com qualquer

“alteração química, física ou biológica que possa importar em prejuízo à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações, causar dano à flora e fauna, ou comprometer o seu uso para finalidades sociais e econômicas”.

Por diversos meios pode se dar a poluição de águas: despejo de esgotos domésticos, agrotóxicos, inseticidas, detergentes sintéticos, mineração, dentre outros.56

Descarregada a matéria orgânica nos aterros sanitários, há comprometimento dos lençóis freáticos, já que ocorre, com isso, a proliferação de bactérias, o que causa desequilíbrio ecológico. A matéria inorgânica, de outro lado, por ser biologicamente resistente, acumula-se e poluiu o meio aquático, podendo impedir a locomoção de animais e as trocas gasosas entre o ar e a água.

A contaminação da água gera gigantescos prejuízos à saúde do homem, funcionando como causa de 80% das patologias existentes no mundo. Assim, há indiscutível necessidade de ampla gestão (com monitoramento, vigilância e levantamentos especiais) dos Recursos Hídricos nacionais, segundo a Organização Mundial de Saúde, como leciona ÉDIS MILARÉ57.

Como se infere, a utilização ponderada deste bem, assim como sua proteção e cuidado, é dever não só do Poder Público, mas também da coletividade, já que a ela interessa, por ser um bem ambiental58. E é por ocupar tamanho posto de destaque que as águas são tuteladas por normas de direito civil, direito administrativo e até mesmo de direito penal, para que este bem vital seja respeitado devidamente.

55 FIORILLO. Op. cit. 56 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: A gestão ambiental em foco. 5.ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2007. 57 MILARÉ. Op. cit. 58 GRAF. Op. cit.

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3.2 Dos Diversos Tipos de Poluição

Degradar a qualidade do meio ambiente equivale a causar alteração adversa de suas características originais. Nessa linha, poluição é a deterioração da qualidade ambiental resultante de atividades que, diretamente ou não, prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população, “criem condições adversas às atividades sociais e econômicas, afetem desfavoravelmente a biota e as condições estéticas e sanitárias do Meio Ambiente, lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”59.

De acordo com a Lei nº 6.938/81, considera-se poluidor a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, ainda que de forma indireta, pela atividade geradora de degradação ambiental60. Assim, são poluidores pessoas e entidades que degradem o ambiente.

Poluentes são quaisquer formas de matéria ou energia que, direta ou indiretamente, causam intervenção nociva no meio ambiente. “São aquelas substâncias sólidas, líquidas, gasosas ou em qualquer estado da matéria que geram a poluição”61.

JOSÉ AFONSO DA SILVA destaca o impacto que têm, já há anos, causado a atuação industrial, a ação das mineradoras, dos veículos automotores e das represas hidrelétricas, principalmente na Amazônia. Outros focos podem ser citados, tais como chaminés domésticas, queima de campos e florestas, instalações de incineração, de combustão ou de aquecimento, sendo a fumaça o principal agente poluidor nesse contexto.

Assim, tem-se que mesmo produtos relativamente benignos da atividade humana podem vir a ser reputados poluentes, se eles gerarem efeitos negativos posteriormente. Essa foi a linha seguida pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que concedeu ao termo “poluição” conceito bastante amplo. A doutrina cita, então, como principais espécies de poluição as seguintes:

a) atmosférica: causada pela liberação de gases na atmosfera ou outras partículas, líquidas ou sólidas, dispersas em taxas muito altas para serem dissipadas ou incorporadas à terra ou à água. Como exemplo, cita-se a emissão de monóxido de carbono e de hidrocarbonetos por motores de

59 SÉGUIN; CARRERA, p.50. 60 Ibid. 61 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 32.

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veículos automobilísticos, os clorofluorcarbonetos utilizados como propelentes de aerossóis e a queima de combustíveis fósseis em centrais termelétricas;

b) visual: causada pelo excesso de faixas, cartazes, placas e letreiros que veiculam propagandas, expostos ao ar livre, à margem de vias públicas ou em locais de visibilidade estratégica;

c) sonora: provocada por excessivos níveis de ruídos, os quais, diferentemente do conceito de som, têm natureza jurídica de agentes poluentes. Esse tipo de poluição é causado usualmente por bares e casas noturnas, carros e aeroportos62;

d) do solo: “contaminação da camada superior da terra na qual crescem as plantas”63. Destaca-se que, por ser o solo poroso, este tipo de poluição atinge frequentemente o subsolo. São exemplos de agentes poluentes do solo lixos tóxicos, resíduos sólidos64 e remédios;

e) radioativa: causada especialmente por usinas e detritos nucleares, resíduos de radioisótopos, testes e explosões nucleares, podendo causar câncer, redução da capacidade visual, queda de cabelos e até mutações genéticas e morte;

f) hídrica: tipo de poluição que causa prejuízo aos recursos hídricos, assunto já examinado incidentalmente no tópico anterior.

A poluição é tema de grande importância na atualidade, eis que tem causado consequências gravíssimas como as citadas. Prejudica a água, tornando-a imprópria para o consumo; afeta a qualidade do ar, causando doenças; acarreta estresse e outros danos à saúde, tanto física quanto psíquica; compromete o solo e, por consequência, a produção de alimentos; ocasiona, além de tudo, fenômenos de gravidade incomensurável, como a chuva ácida, a elevação da temperatura global (que gera o derretimento das calotas polares), a redução da camada de ozônio e o chamado efeito estufa, assunto a ser comentado posteriormente.

É em razão do reconhecimento de tamanha relevância que a poluição foi tipificada como crime contra o meio ambiente no artigo 54 da Lei nº 9.605/98. Mas só a poluição causada “em níveis tais que resultem ou

62 FIORILLO. Op. cit. 63 CAPEZ. Op. cit., p.134. 64 Destaque-se que resíduos sólidos são materiais, abrangendo qualquer tipo de lixo, sólidos

provenientes das operações industriais, comerciais, agrícolas e da comunidade.

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possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora” que se inserirá na figura típica.

De qualquer forma, vê-se que a sociedade repugna a poluição, já que transformou tal fato até em crime. Todavia, há muito o que se fazer ainda, sendo necessária a implantação de uma cultura antipoluição de maior eficiência, alterando o estado em que a sociedade contemporânea se encontra, a fim de serem atingidas mudanças futuras concretas.

3.3 Da Extinção de Espécies Animais e Vegetais

Extinção é o desaparecimento completo de espécies, subespécies ou grupos de espécies. Ela ocorre efetivamente com a morte do último indivíduo da espécie. No mundo hodierno, muitos ambientalistas e governos têm se preocupado com a extinção de espécies causada pela interferência humana no meio ambiente.

Entre as causas mais comuns, têm-se a poluição e a destruição do habitat dos seres vivos.

A extinção de uma espécie é problema de alta importância, uma vez que ocasiona desequilíbrio ambiental, na medida em que afeta a cadeia alimentar. Além disso, para um ambiente saudável, a biodiversidade deve ser mantida e repugnada a extinção de quaisquer espécies. A fauna e a flora devem ser sempre preservadas, e situações tais como o tráfico de animais silvestres, que, apesar de proibido, é comum especialmente tratando-se de espécies em extinção, devem ser coibidas.

Percebe-se que o homem deve ser cauteloso ao intervir na natureza, de modo a não prejudicar as espécies existentes. Por força disso, mesmo atividades como a pesca são regulamentadas e devem ser observadas as regras pertinentes, tudo com vistas à mantença da diversidade biológica e a não causar desequilíbrio aos bens ambientais.

3.4 Do Desflorestamento

Desflorestação, desflorestamento ou desmatamento é o processo de desaparecimento de massas florestais, fundamentalmente causada pela atividade humana. Referida situação é causada pela ação direta do homem sobre a natureza, precipuamente devido à destruição de florestas para a

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obtenção de solo para cultivos agrícolas ou para extração de madeira por parte da indústria madeireira.

Grande e prejudicial consequência do desflorestamento é a diminuição de agentes absorventes de dióxido de carbono, reduzindo-se a capacidade do ambiente de absorver as enormes quantidades deste composto que é causador do fenômeno do efeito estufa. Com isso, agrava-se a problemática do temido aquecimento global.

O Código Florestal, Lei nº 4.771/65, preceitua que “as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País”. Infere-se que a lei, antes mesmo da Constituição de 1988, vislumbrou o caráter de bem difuso que detêm as florestas e demais formas de vegetação.

Sendo as florestas e demais vegetações bens ambientais, o desflorestamento é coibido. A lei impõe regras certas para derrubadas de árvores e alterações na vegetação65, as quais devem ser seguidas por todos.

Para tentar conter o avanço do aquecimento global e na busca de recompor áreas verdes destruídas, diversos organismos internacionais assim como organizações não governamentais pátrias propõem o reflorestamento; todavia, a medida só terá real eficácia se com ela advier, conjuntamente, a consciência da população da gravidade que está por trás do desmatamento e a fiscalização efetiva do Poder Público, visando a coibir a destruição de áreas protegidas e seus respectivos ecossistemas.

3.5 Do Efeito Estufa

Entende-se por efeito estufa o fenômeno de isolamento térmico do planeta provocado pela presença de determinados gases na atmosfera66, a maioria produzida naturalmente. Este efeito, ordinariamente, é essencial para a manutenção da temperatura do planeta; no entanto, “o acúmulo desses gases poluentes aumenta a retenção e encapsula o calor do sol, impedindo-o de escapar para o espaço sideral, causando, assim, um aumento contínuo da temperatura”67.

65 As quais não serão examinadas por fugir do escopo deste estudo. 66 Os gases do efeito estufa: GEEs (Dióxido de carbono (CO2) – 70%; metano (CH4) – 27%; óxido

nitroso (N2O) – 3%; clorofluorcarbonos (CFCs), ozônio (O3) e vapor d’água). 67 YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Os desafios à implementação do protocolo de Kyoto: a

experiência e a contribuição japonesas e a realidade brasileira. Disponível em:

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A intensificação desta situação é atribuída à conduta humana, principalmente através da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural), da irradiação de calor causada pelas grandes cidades (ilhas de calor) e do aumento do desmatamento, provocado pela expansão agropecuária e pela indústria madeireira68.

Como já apontado, o fenômeno em apreço ocasiona o derretimento gradual das neves eternas e das camadas de gelo dos polos, aumento do volume dos oceanos, mais chuvas em algumas regiões, mais seca em outras, “aumento do número e intensidade de furacões, tufões, tempestades, inundações, desertificações e do fenômeno El Niño, que altera o clima no mundo”69. Visíveis são os sinais destas consequências e, caso nada seja feito, as previsões são catastróficas.

Os diferentes países, pelas características de seu desenvolvimento industrial, contribuem de diferenciados modos para o agravamento do efeito. O Brasil é responsável por 3% das emissões mundiais de gás carbônico, sendo 2% dessas emissões referentes às florestas (queimadas de biomas) e 1% concernente aos setores industrial e de transporte70.

Portanto, percebe-se ser tamanha a gravidade do fenômeno em estudo, gerando consequências temerárias para a higidez do meio ambiente. É com base nisso que acordos internacionais têm sido firmados (tais como a aludida Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a mudança do clima e o Protocolo de Quioto), bem como encontros de igual natureza têm sido a todo tempo realizados, tudo na busca de reduzir esta situação prejudicial, que advém de afrontas ao meio ambiente e que, ao mesmo tempo, conforme cresce, prejudica ainda mais aquele.

4 – DA TUTELA DO MEIO AMBIENTE

A Lei nº 6.938/81 prevê vários instrumentos voltados à tutela do meio ambiente. A razão de ser dos mesmos é obter proteção ambiental efetiva. São, na dicção legal, “instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente”, sendo possível destacar os seguintes: o estabelecimento de padrões ambientais; o zoneamento ambiental; as avaliações de impactos; as

<http://www.cori.rei.unicamp.br/BrasilJapao3/Trabalhos2005/Trabalhos%20Completos/Protocolo%20de%20Kioto%20Workshop.doc>. Acesso em: 04 maio 2010.

68 Ibid. 69 Ibid., p.03. 70 Ibid., loc. cit.

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áreas de preservação permanente; a reserva legal; o licenciamento ambiental; as unidades de conservação (áreas protegidas); a produção e a circulação de informações ambientais; a responsabilidade civil pelo dano ambiental; sanções administrativas e penais; incentivos econômicos; termos de ajustamento de conduta; entre outros.

Os elementos em tela são essenciais para a preservação e a proteção do meio ambiente, e o presente capítulo estudará, ainda que superficialmente, alguns dos usados no âmbito administrativo. Por fim, será feita abordagem sobre reparação e prevenção ambiental, aludindo-se, neste passo, ao manejo da ação civil pública como instrumento judicial para a efetiva tutela do meio ambiente.

4.1 Instrumentos Jurídico-Ambientais

4.1.1 Do zoneamento ambiental

Como é sabido, o ambiente é resultado da interação da espécie humana com os demais elementos naturais. Assim, a utilização do espaço natural e do espaço social precisa obedecer às leis e às condições que os distinguem e diferenciam. Os seres humanos “têm uma característica própria e diferenciada de criação, idealização e de edificação do seu próprio mundo, de forma que acabam por alterar o ambiente natural em que vivem”71.

Para viabilizar estas modificações, deve ocorrer o chamado zoneamento ambiental, que é o “resultado de estudos conduzidos para o conhecimento sistematizado de características, fragilidades e potencialidades do meio, a partir de aspectos ambientais escolhidos em determinado espaço”72. Devem ser considerados, então, os princípios da precaução e da preservação, já estudados em capítulo anterior.

Assim, tem-se que o zoneamento é uma medida não jurisdicional, oriunda do poder de polícia e tendo por fundamento a repartição do solo municipal e a designação de seu uso73. Constitui “limitação de uso do solo particular, incidindo diretamente na limitação da propriedade, com base no

71 PIRES. Op. cit. 72 Ibid. 73 FIORILLO. Op. cit.

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preceito constitucional de que a propriedade deva cumprir sua função social”74.

O zoneamento ocupa-se das bases de sustentação das atividades humanas que requisitam os espaços naturais de cunho social, como o solo, para utilização de seus recursos e o desenvolvimento das atividades econômicas. Consiste em dividir o território em parcelas nas quais se autorizam determinadas atividades ou interdita-se, de modo absoluto ou relativo, o exercício de outras. Ainda que o zoneamento não seja, por si só, a solução de todos os problemas ambientais, constitui ele um significativo passo em tal sentido, especialmente por ter incorporado a ideia de desenvolvimento sustentável, elemento crucial para o futuro do desenvolvimento econômico, ambiental e social do País.

4.1.2 Estudo Prévio de Impacto Ambiental e licenciamento ambiental

O Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA) é também instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente. Havendo instalação de obra ou atividade potencial ou efetivamente causadora de significativa degradação ambiental, o estudo em questão deve ser exigido pelo Poder Público, na forma da lei, conforme a redação do inciso IV do § 1º do artigo 225 da Constituição75.

Através do Decreto nº 99.274, de 1990, foi atribuída ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) competência para fixar critérios quanto à exigência de estudo de impacto ambiental para fins de licenciamento.

Nesse sentido, conforme o artigo 2º da Resolução nº 1 do CONAMA, de 1986, há determinadas atividades e construções modificadoras do meio que sempre exigem o estudo prévio, tais como ferrovias; portos e terminais de minério, petróleo e produtos químicos; oleodutos, gasodutos, minerodutos; aterros sanitários; distritos industriais e zonas estritamente industriais; entre outras.

Consoante PAULO AFFONSO LEME MACHADO76, o estudo de impacto ambiental é, desta forma, espécie de procedimento público que tem por finalidade avaliar as proporções das possíveis alterações que um

74 Ibid., p.111. 75 PIRES. Op. cit. 76 MACHADO. Op. cit.

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empreendimento, público ou privado, pode ocasionar ao meio ambiente. Trata-se de meio de atuação preventiva, que objetiva evitar as consequências danosas, sobre o ambiente, de um projeto de obras, de urbanização ou de qualquer atividade77.

Qualquer atividade ou obra sujeita a estudo de impacto ambiental sujeita-se, também, a licenciamento ambiental. Ao ser solicitado o estudo, deverão ser atendidos os requisitos técnicos mínimos, conforme o artigo 6º da aludida Resolução nº 1 do CONAMA, como diagnóstico ambiental da área de influência do projeto; meio físico; meio biológico; meio socioeconômico; análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas; definição das medidas mitigadoras; programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos positivos e negativos78.

Insta destacar que várias são as atividades e obras públicas e privadas que devem passar pela elaboração deste estudo. Segundo a resolução supramencionada, o licenciamento de quaisquer atividades modificadoras do meio ambiente dele depende. Destarte, sem a exigida licença, uma atividade econômica considerada potencialmente idônea a degradar o meio ambiente não pode ser exercida e, para a concessão do licenciamento, é exigido prévio estudo. Dessa forma, o EPIA integra o processo de licenciamento ambiental, e sua inexistência ou realização inadequada prejudica o licenciamento79.

Quanto ao licenciamento, é ele o complexo de etapas que compõe o procedimento administrativo que “objetiva a concessão de licença ambiental”80. É também instrumento de caráter preventivo de tutela do meio ambiente, nas palavras de CELSO FIORILLO81. Este conjunto de atos difere da licença administrativa comum por ser discricionário, enquanto aquela é ato administrativo vinculado. Logo, será possível a outorga de licença ambiental ainda que o estudo prévio seja desfavorável, devendo a Administração Pública balizar-se, no caso, pelo critério do desenvolvimento sustentável82.

77 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998. 78 PIRES. Op. cit. 79 Ibid. 80 FIORILLO. Op. cit., p.92. 81 Ibid. 82 Ibid.

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4.2 Reparação e Prevenção

Os bens ambientais ocupam papel de relevo na ordem jurídica por serem essenciais à sadia qualidade de vida e, consequentemente, à plena realização da dignidade humana. O meio ambiente equilibrado e sadio constitui, então, direito humano fundamental e o regime jurídico de direitos desta espécie é deveras diferenciado: as normas que os consagram encontram-se no ápice do ordenamento, vinculando de forma imediata o Poder Público; constituem a estrutura básica do Estado e da Sociedade; são cláusulas pétreas, não comportando mitigação ou supressão; e, ainda, têm aplicabilidade imediata83.

Assim sendo, percebe-se que o meio ambiente deve ser preservado, devendo haver mecanismos que previnam qualquer forma de depredação do mesmo. Isso não só pelo fato de ser direito fundamental, essencial para a vida digna, mas, além disso, já que muitas vezes a alteração no ambiente é irreversível.

O dano ambiental é coletivo, e não meramente individual, de modo que a ofensa ao ambiente lesiona toda a coletividade.

Nesta linha, conforme define a Lei nº 7.347/85, cabe ação civil pública, modalidade de ação coletiva, para a tutela de bens ambientais. O Ministério Público é um dos colegitimados à propositura desta ação, já que se cuida, no caso, de ofensa à coletividade e não há como um único prejudicado buscar a tutela jurisdicional individualmente.

De acordo com o artigo 83 do Código de Defesa do Consumidor, perfeitamente aplicável ao caso, para a defesa dos direitos de natureza ambiental, são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. A ação civil pública, assim, pode buscar qualquer tipo de provimento jurisdicional: condenatório, declaratório, constitutivo, mandamental ou executivo84.

O objetivo principal deste sistema é evitar a ocorrência de dano. Assim, em primeiro lugar, cabe ação preventiva, que vise à inocorrência ou à remoção do ilícito. O provimento a ser buscado é uma abstenção da outra parte, ou seja, um não fazer, para que não ocorra a lesão85.

83 LEAL JÚNIOR; DE PAULA MACHADO. Op. cit. 84 DINAMARCO. Op. cit. 85 MARINONI, L. G.; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: Processo de Conhecimento. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v.2.

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Não sendo possível evitar o dano, deve ser buscada, então, sua recuperação, isto é, uma tutela reparatória, que se consubstancia em obrigação de fazer. Em último caso, sendo irrecuperável a lesão, surge a hipótese de perdas e danos, devendo ser buscada tutela pelo equivalente, vale dizer: indenização em dinheiro86.

Assim, a doutrina reconhece uma hierarquia entre objetivos no sistema de tutela do meio ambiente, em virtude do interesse social que se encontra em jogo. O escopo primeiro é a inocorrência do dano – abstenção de atuação que o ocasione; sobrevindo ele, porém, deve ser reparado ou, em último caso, indenizado. Essa é a trilha seguida e pregada pela legislação ambiental, confirmada pela doutrina e jurisprudência pátrias. Impende dizer: o meio ambiente deve por todos ser preservado, sendo dever do Estado e da Sociedade a sua proteção.

Assim, resta clara a importância do Direito Ambiental no mundo contemporâneo como mecanismo capaz de viabilizar o mandamento contido no debatido artigo 225 da Constituição Federal, no sentido de se preservar da melhor maneira o meio ambiente, em todas as suas acepções possíveis, e, com isso, possibilitar a realização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

CONCLUSÃO

A partir da pesquisa realizada, pode-se constatar a proeminência que o Direito Ambiental detém no mundo contemporâneo, em razão do reconhecimento universal de que o meio ambiente hígido, sadio e íntegro é necessário para que as pessoas tenham uma vida digna.

Por muito tempo, o meio ambiente foi visto como ponto dissociado da humanidade, mas aos poucos tal concepção foi sendo modificada.

Neste passo, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro, seguindo a tendência mundial, consagrou o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana, inafastável, imprescritível, imprescindível e irrevogável.

Assim, o sistema jurídico-ambiental pátrio contempla verdadeiro arcabouço tutelar deste importante direito, exatamente em razão de sua primazia, sendo imperioso, ainda, que o Poder Público e a coletividade

86 MAZZILLI. Op. cit.

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atentem para os comandos legais e tornem efetivas as prescrições que deles emanam.

Assim, o homem deve se visualizar dentro do conceito de meio ambiente e a cultura de respeito aos bens ambientais urge ser fomentada, a fim de criar raízes de forma eficaz na sociedade.

Uma vez que o ambiente configura patrimônio da humanidade, de âmbito mundial, e que os efeitos da degradação ocorridas em um continente se projetam mesmo a milhares de quilômetros de distância, atingindo populações de locais longínquos, organizações transnacionais têm se dedicado a promover a proteção ambiental, com ações voltadas à realização do desenvolvimento sustentável, princípio-guia em matéria de meio ambiente.

Vê-se que a destruição de florestas, a caça predatória em desrespeito às normas, a poluição, seja ela de qualquer forma, entre outras atividades, têm gerado a ocorrência de fenômenos prejudiciais ao ser humano, tais como a chuva ácida, o efeito estufa, o derretimento das calotas polares, a extinção de espécies animais e vegetais, o esgotamento de recursos naturais essenciais e a deterioração da qualidade do ar. Conclui-se, portanto, que o respeito ao meio-ambiente é respeito, também, à pessoa humana, devendo, por tal razão, ser observado.

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CLÁUSULA DE EXCLUSIVIDADE NOS CONTRATOS DE DISTRIBUIÇÃO DE

BEBIDAS E O DIREITO DA CONCORRÊNCIA ROBERTA SCALZILLI*

Sumário: 1 – Considerações iniciais; 2 – Cláusula de exclusividade nos contratos de distribuição de bebidas; 3 – Prejuízos e eficiências da cláusula de exclusividade nos contratos de distribuição; 4 – O direito do consumidor e a lei antitruste; 5 – Sanções aplicáveis às práticas anticoncorrenciais; 6 – Considerações finais.

Resumo: Trata-se de um estudo dos aspectos jurídicos controversos referentes à cláusula de exclusividade nos contratos de distribuição de bebidas, para o fim de esclarecer de que forma repercute entre as partes envolvidas no contrato e no mercado econômico em geral.

Palavras-chave: Contrato de Distribuição de Bebidas, Cláusula de Exclusividade, Direito Concorrencial.

Summary: 1 – Initial considerations; 2 – Exclusivity clause in contracts for the distribution of beverages; 3 – Losses and efficiencies of the exclusivity clause in contracts for distribution; 4 – The consumer law and antitrust law; 5 – Sanctions for anti-competitive practices; 6 – Final considerations.

Abstract: This is a controversial study of legal aspects concerning the exclusivity clause in contracts for distribution of beverages to clarify how it affects the clause between the parties to the contract and the market economy in general.

Keywords: Contract distributions Beverage, clauses Exclusivity, Antitrust Law.

* Especialista em Direito Empresarial pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural – IDC. Advogada

em Porto Alegre/RS.

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1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Muito se tem discutido no universo jurídico acerca da tipicidade ou atipicidade dos contratos de distribuição. A fundamentação utilizada pela corrente que entende pela atipicidade do contrato, à qual se filiam GUSTAVO TEPEDINO e ORLANDO GOMES1, entre outros, sustenta que o distribuidor efetua a compra e a revenda da mercadoria a ser negociada, sendo autônomo e, portanto, figura distinta da estabelecida no Código Civil. Por outro lado, na visão de RUBENS REQUIÃO2, o distribuidor é apenas um intermediário/depositário do bem, não sendo, portanto autônomo. Em que pese a doutrina se divida nos entendimentos, não se pode desprezar a norma disciplinadora constante nos artigos 710 e seguintes do Código Civil, que diz:

“Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada.”

Esta regra sugere uma espécie de agência onde o distribuidor tem as mercadorias à sua disposição, porém não as adquire.

Como em outros contratos empresariais, os de distribuição são preferencialmente escritos e via de regra de execução continuada, em que pese possam ser por tempo determinado. Para interpretá-los, utilizam-se de forma complementar a legislação existente, os princípios gerais de direito, entre os quais se destaca o da função social que age como limitador da autonomia da vontade e se perfectibiliza quando as partes atingem eficiências, bem como o princípio da boa-fé, que gera deveres anexos aos contratantes, tais como: o fornecedor deve respeitar a exclusividade reservada ao distribuidor, pagando a este uma remuneração pelos negócios realizados em seu território, bem como o distribuidor deverá agir com diligência, atendendo a todas as instruções do fabricante e arcando com todas as despesas decorrentes da atividade.

Ambas as partes devem compartilhar informações transparentes sobre as tratativas e colaborarem entre si quando não houver prejuízo ou

1 GOMES, Orlando. Contratos. 26.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.464. 2 REQUIÃO, Rubens. Nova regulamentação da representação comercial autônoma. 2.ed. São Paulo: Saraiva,

2003, p.35.

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proveito aos contratantes. Além dos princípios gerais incidentes nos contratos em tela, destaca-se também o da livre concorrência, elencado no artigo 170 da Constituição Federal, princípio da ordem econômica, que busca manter íntegra a competição entre as empresas.

2 – CLÁUSULA DE EXCLUSIVIDADE NOS CONTRATOS DE DISTRIBUIÇÃO DE BEBIDAS

Entre as cláusulas passíveis de compor este contrato, encontra-se a de exclusividade, que possui boa definição nas palavras da Professora PAULA FORGIONI3: “Costuma-se utilizar o termo exclusividade para denominar vasto leque de obrigações que podem tocar tanto aos fabricantes quanto aos distribuidores, de forma que a mesma palavra é empregada para designar veios contratuais diversos”. A cláusula de exclusividade é considerada um acordo vertical que consiste nas condutas praticadas pelos agentes econômicos nos contratos de distribuição com intuito de restringir a concorrência em uma dimensão geográfica, que consiste na área territorial onde se trava a concorrência, e em outra material, em que é considerada a natureza do bem ou serviço.

O controle de 20% do mercado relevante já constitui, segundo a Lei 8.884/94, que regula a concorrência no Brasil, abuso de posição dominante; no entanto, em verdade, apenas a análise no caso concreto irá dizer se existe o abuso de fato. Importante ressaltar que, em decorrência de vantagens trazidas ao se pactuar sob a égide da exclusividade, muitas vezes observamos um abuso da posição dominante do fabricante com a consequente subordinação econômica do distribuidor, o que tem gerado não raras vezes a ruptura desses contratos.

Nos últimos anos, houve um aumento da intensidade de atuação e do prestígio das autoridades antitruste. Neste sentido, importante ressaltar que tramita no Congresso Nacional um projeto que fará alterações na lei específica, buscando fortalecer o CADE e desburocratizar principalmente os processos no tocante às fusões e aquisições. Espera-se, assim, que nos próximos anos o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência se torne mais ágil e consolide, definitivamente, seu prestígio institucional.

3 FORGIONI, Paula Andrea. Direito concorrencial e restrições verticais. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2007, p.158.

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A posição do Judiciário quanto às decisões do CADE ainda está em formação. Várias ações judiciais recentes tiveram decisões favoráveis às autoridades antitruste; porém, de outro lado, há também várias sentenças que lhes são desfavoráveis, principalmente relacionadas a nulidades processuais.

Especificamente no que toca aos contratos de distribuição de bebidas, a prática se dá, via de regra, no abastecimento mínimo de mercadorias por parte do distribuidor no estabelecimento do fornecedor. Embora não haja legislação específica ao contrato de distribuição de bebidas, tal como a Lei Ferrari para regular a concessão de veículos terrestres, que, segundo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não se aplica à distribuição de bebidas, não se pode considerar a distribuição um contrato atípico em razão da disciplina dos artigos 710 e seguintes do Código Civil, além da necessária interpretação com base nos princípios gerais de direito e principalmente nos estruturadores da ordem econômica.

Com relação à exclusividade nos referidos contratos, importante ilustrar o recente caso da AmBev, empresa gerada pela união das empresas Brahma e Antarctica no ano 2000, e após cinco anos vendida para um grupo belga, a InBev; no entanto, a mesma continua a investir no País.

Um exemplo emblemático de exclusividade foi o acordo chamado “tô contigo” da empresa AmBev, que consistia em um programa de acúmulo de pontos e troca por prêmios equivalentes a descontos. Os pontos-de-venda deveriam vender exclusivamente a marca e, caso vendessem produtos de marcas concorrentes, o estabelecimento era retirado do programa. Esse programa foi considerado anticoncorrencial pelo CADE, que aplicou a maior multa já atribuída a uma empresa brasileira, no valor de R$ 352,7 milhões, relativo a 1,5% do faturamento da época, e mais 0,5% pela má-fé por tentar esconder da Secretaria de Direito Econômico (SDE) a prática. Neste caso, evidenciou-se a ausência de eficiências, ou seja, de reflexos positivos ao mercado4.

No entanto, a exclusividade não raras vezes gera diminuição dos custos de transação e melhor qualidade do serviço, além de proteger o fundo de comércio, meio de subsistência do distribuidor, evitando que o

4 O GLOBO ONLINE. Cade aplica à AmBev maior multa a uma empresa no país: R$ 352 milhões.

Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/mat/2009/07/22/cade-aplica-ambev-maior-multa-uma-empresa-no-pais-352-milhoes-756923775.asp>. Acesso em: 01 out. 2009.

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fornecedor se aproprie do trabalho desenvolvido como o esforço durante anos para a captação de mercado.

A Resolução nº 205 do CADE inclui a cláusula de exclusividade entre as práticas restritivas da concorrência; no entanto, ressalva que a mesma só poderá ser considerada ilícita quando for passível de gerar danos à concorrência, como, por exemplo, dependência econômica entre os contratantes. A referida cláusula pode ser um veículo tanto de eficiências, entendam-se aspectos positivos, quanto de prejuízos para os contratantes e mercado como um todo. Assim, as práticas intituladas grosso modo como condutas monopolísticas, passíveis de gerar barreiras à entrada no mercado, devem ser submetidas à apreciação do CADE, que analisará no caso concreto se as práticas são justificadas através de eficiências que se tornam compensatórias. Se positivas, os atos devem ser aprovados, razão pela qual não se deve considerar a cláusula ilícita per se.

3 – PREJUÍZOS E EFICIÊNCIAS DA CLÁUSULA DE EXCLUSIVIDADE NOS CONTRATOS DE DISTRIBUIÇÃO

Os atos que impliquem restrições à livre concorrência devem ser submetidos à apreciação do CADE, tais como os descritos no artigo 54, § 3º, da Lei 8.884/946. Desta forma, toda vez que ocorrer uma prática prevista em lei como infração à ordem econômica, o órgão competente poderá entendê-lo como prática restritiva ou não restritiva.

A inserção de cláusula de exclusividade nos contratos de distribuição constitui prática frequente, podendo até afirmar que se trata de uma característica desses contratos. Na medida em que a utilização desse acordo não restringe a entrada de novos distribuidores no mercado, tampouco agride consumidores com práticas abusivas, pode-se dizer que a cláusula de exclusividade não apenas é inofensiva à concorrência, como sua aplicação se faz necessária para as eficiências de uma empresa. 5 Anexo I da Resolução nº 20, de 9 de junho de 1999 (publicada no Diário Oficial da União de 28.06.99). 6 Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma

prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE.

§ 3º. Incluem-se nos atos de que trata o caput aqueles que visem a qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário, que implique participação de empresa ou grupo de empresas resultante em vinte por cento de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais).

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É mister analisar a referida cláusula em concreto, a fim de verificar se está produzindo efeitos nocivos à concorrência, causando impactos estruturais em razão da existência de barreiras à entrada no mercado, abuso de posição dominante e inexistência de eficiências compensatórias que justifiquem a ausência de competição. Caso se configurem essas hipóteses, a cláusula será considerada ilícita.

4 – O DIREITO DO CONSUMIDOR E A LEI ANTITRUSTE

Existem aspectos semelhantes entre a lei de defesa da concorrência e a lei de defesa do consumidor. No entanto, é possível que determinadas condutas de mercado não produzam os efeitos retratados no artigo 20 da Lei 8.884/947; assim não haverá infração à ordem econômica, porém é possível que seja aplicado outro diploma, como a Lei 8.078/908.

No artigo 1º da Lei 8.884/949, fica claro o interesse na proteção dos consumidores, bem como seu artigo 2410 autoriza os consumidores a 7 Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob

qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; IV – exercer de forma abusiva posição dominante. 8 SANTIAGO, Luciano Sotero. Direito da concorrência doutrina e jurisprudência. Bahia: Podivm, 2008,

p.109. 9 Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica,

orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

10 Art. 24. Sem prejuízo das penas cominadas no artigo anterior, quando assim o exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente:

I – a publicação, em meia página e às expensas do infrator, em jornal indicado na decisão, de extrato da decisão condenatória, por dois dias seguidos, de uma a três semanas consecutivas;

II – a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, junto à Administração Pública Federal, Estadual, Municipal e do Distrito Federal, bem como entidades da administração indireta, por prazo não inferior a cinco anos;

III – a inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor; IV – a recomendação aos órgãos públicos competentes para que: a) seja concedida licença compulsória de patentes de titularidade do infrator; b) não seja concedido ao infrator parcelamento de tributos federais por ele devidos ou para que

sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos fiscais ou subsídios públicos; V – a cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos, cessação parcial de

atividade, ou qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.

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ingressarem em juízo a fim de fazer cessar as práticas abusivas. Pela análise do artigo 54, II, § 2º11, é possível concluir que deverá ser conciliada ao fortalecimento da economia nacional a efetividade dos direitos dos consumidores.

Porém, não se pode esquecer que o interesse primordial da Lei 8.884/84 é a defesa imediata da livre iniciativa e da livre concorrência, visando à proteção apenas mediata dos consumidores, enquanto que a Lei 8.078/90 busca especificamente a defesa destes.

A proteção do consumidor constitui garantia constitucional, sendo direito indisponível elencado no artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal, sendo que no artigo 1º prevê-se a defesa da livre iniciativa. Igualmente, o artigo 170 da Carta Magna estabelece, respectivamente, nos incisos IV e V, a proteção à livre concorrência e ao consumidor.

Esta é erigida pela Constituição à condição de princípio. Como tal contemplada no seu artigo 170, IV, integra-se, ao lado de outros, no grupo dos que têm sido referidos como princípios da ordem econômica12.

Os dois diplomas mencionados, quais sejam Código de Defesa do Consumidor e a Lei Antitruste, em que pese tenham alguns pontos em comum, protegem interesses diversos: a livre iniciativa e a livre concorrência de um lado; o consumidor de outro. No entanto, quando a livre concorrência é protegida, também o consumidor o é13.

A aplicação desses diplomas busca em linhas gerais uma harmonia no mercado, evitando a imposição de preços excessivos capazes de violar

11 Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma

prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE.

(...) II – os benefícios decorrentes sejam distribuídos equitativamente entre os seus participantes, de

um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro; (...) § 2º. Também poderão ser considerados legítimos os atos previstos neste artigo, desde que

atendidas pelo menos três das condições previstas nos incisos do parágrafo anterior, quando necessários por motivo preponderantes da economia nacional e do bem comum, e desde que não impliquem prejuízo ao consumidor ou usuário final.

12 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 11.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros. 2006, p.208.

13 FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.294.

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direitos do consumidor, tão importante no desenvolvimento econômico de uma sociedade.

Destarte, as Leis 8.884/94 e 8.078/90 complementam-se em muitos momentos, sendo que, no caso em tela, podem e devem ser aplicadas concomitantemente, no intuito de evitar infrações à concorrência sem esquecer a proteção ao consumidor quando exista lucro arbitrário do agente econômico.

5 – SANÇÕES APLICÁVEIS ÀS PRÁTICAS ANTICONCORRENCIAIS

Tramitou no Senado Federal projeto de número 164/2002, que se destinava a disciplinar o contrato de distribuição de bebidas; no entanto, o mesmo restou arquivado no ano de 2007, permanecendo sem regramento específico este contrato tão utilizado na prática empresarial.

A lei antitruste prevê a aplicação de multas tanto para pessoa jurídica quanto para pessoa física.

As sanções que alcançam as empresas no âmbito administrativo podem variar entre 1% e 30% do seu faturamento, além de serem obrigadas a publicar a decisão em jornal de grande circulação, não participar de licitações por até cinco anos, bem como a perda de benefícios fiscais. No tocante a pessoas físicas, normalmente gira em torno de 10% a 50% da multa aplicada à empresa, além da responsabilização civil e criminal. Em caso de reincidência, a multa pode ser aplicada em dobro14.

Portanto, a melhor atitude que a empresa pode tomar certamente não será a busca desesperada de um acordo de leniência, mediante compromisso da cessação da prática, no caso de o ilícito já ter ocorrido, e sim sua prevenção pela aplicação de princípios capazes de garantir boas práticas de mercado.

6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na doutrina atual, como se pôde observar, há diversas interpretações sobre o tema. Verificou-se que, caso as práticas havidas como monopolísticas, passíveis de gerar barreiras à entrada no mercado, forem

14 FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Cartilha de direito concorrencial,

elaborada por Grandino Rodas Advogados. Disponível em: <www.fiesp.com.br/download/acessoria_ jurídica/cartilha_concorerncial.pdf>. Acesso em: 01 out. 2009.

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justificadas através de eficiências que se tornam compensatórias, os atos devem ser aprovados pelo CADE, pois a exclusividade não é ilícita per se.

Hoje em dia, a segurança jurídica encontra-se abalada pela falta de consenso na jurisprudência administrativa, em razão de as situações deverem ser analisadas no caso concreto.

Dentro da atual realidade, a procura pelo poder judiciário torna-se inevitável. No entanto, a melhor estratégia para a empresa é a prevenção, com observância dos princípios basilares aplicados a esses contratos, tais como a razoabilidade e a proporcionalidade, no intuito de praticar as melhores condutas, com bons reflexos para economia e sociedade como um todo.

Os contratos de distribuição, os quais não têm um regramento específico, devem ser interpretados com base nos princípios estruturadores da ordem econômica elencados na Constituição Federal, além, é claro, dos princípios gerais dos contratos do Código Civil.

Assim, através da análise minuciosa do caso concreto pelo CADE, à luz de coerente regra da razão, pode-se verificar que práticas restritivas muitas vezes se justificam em razão das eficiências obtidas.

Em suma, uma avença não deve ser considerada ilícita quando produz benefícios para os contratantes e também para o mercado como um todo.

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A MAJORAÇÃO DA CLÁUSULA PENAL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

(INTELIGÊNCIA DO ART. 413 DO CCB) DANIEL USTÁRROZ*

Sumário: I – Introdução; 1 – Breve mirada nos princípios informadores do direito contratual brasileiro; 2 – A cláusula penal no direito brasileiro; 3 – A redução judicial da penal excessiva (art. 413 do CCB); 4 – A majoração da penal para o equilíbrio da relação de consumo; II – Conclusões; III – Referências bibliográficas

I – INTRODUÇÃO

Os negócios jurídicos compõem-se de variados elementos. Alguns, inseparáveis, visto que essenciais para a sua regular criação (capacidade das partes, possibilidade física e jurídica da prestação e a livre declaração de vontade, etc.). Outros, que decorrem da lei e dos usos e costumes negociais, que cumprem o objetivo de dotar o negócio jurídico de sua natural eficácia no meio social. Por fim, mas igualmente importantes, são as cláusulas acidentais, as quais são criadas exclusivamente pela vontade das partes. Ainda que sua presença seja absolutamente irrelevante, sob o ângulo da existência e da validade do negócio jurídico, elas ampliam.

Desempenham, nesse sentido, variadas funções dentro do panorama obrigacional, como disciplinar sua eficácia, possibilitar a liberação das partes, autorizar o ingresso de terceiros, e, naquilo que interessa ao presente ensaio, reforçar a chance de adimplemento, bem como pré-quantificar o prejuízo decorrente do eventual inadimplemento da avença.

* Professor convidado nos cursos de pós-graduação de Direito Civil Aplicado e de Direito do

Consumidor e Direitos Fundamentais, ambos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre outras instituições. Mestre e Doutorando em Direito pela UFRGS. Advogado. E-mail: [email protected].

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Dada a heterogeneidade da vida negocial, é tarefa difícil – para não dizer impossível – catalogar todas as manifestações de cláusulas acidentais. A observação de NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA é correta, quando salienta que “face à complexidade e à diversidade dos interesses envolvidos na conclusão dos negócios jurídicos, as cláusulas ou estipulações acessórias podem variar ao infinito, resistindo a todas as tentativas de classificação ou de sistematização”1. Contudo, em que pese essa abstrata imprevisibilidade, observa-se, a partir da realidade, a preferência social pelo uso de algumas formas. Existem, pela força da lex mercatoria e do Direito, cláusulas acidentais típicas.

Analisando o Código Civil português, o Professor NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA apresenta seis manifestações de cláusulas acidentais nos negócios jurídicos. São elas: 1) a condição2; 2) o termo3; 3) o modo4; 4) cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indenizar5; 5) as cláusulas penais; e 6) o sinal6. Todas essas figuras estão presentes no sistema brasileiro, conquanto seu regramento seja parcialmente diverso.

A cláusula penal é conhecida na história do direito. Permitiu a consecução de diversos objetivos, entre os quais o reforço do vínculo (ideia romana) e a quantificação do dano oriundo do inadimplemento (ideia canônica)7. Não houve uniformidade de tratamento da cláusula penal, o que é plenamente justificado pelas exigências sociais de cada época.

1 Cláusulas Acessórias ao Contrato. 3.ed. Coimbra: Almedina, 2008, p.15. 2 Artigo 270º (Noção de condição): “As partes podem subordinar a um acontecimento futuro e

incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva”.

3 Artigo 278º (Termo): “Se for estipulado que os efeitos do negócio jurídico comecem ou cessem a partir de certo momento, é aplicável à estipulação, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 272º e 273º”.

4 Artigo 963º (Cláusulas modais): “1. As doações podem ser oneradas com encargos. 2. O donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado”.

5 Art. 800º (Actos dos representantes legais ou auxiliares): “1. O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor. 2. A responsabilidade pode ser convencionalmente excluída ou limitada, mediante acordo prévio dos interessados, desde que a exclusão ou limitação não compreenda actos que representem a violação de deveres impostos por normas de ordem pública”.

6 Op. cit., p.16. 7 A questão é bem conhecida da doutrina: “C’est une question capitale, parce que dans ce dilemne

se joue la vie de la clause comme institution autonome: ou bien l´on estime que la cause pénale est une véritable peine privée et remplit une fonction semblable à celle qu´elle assumait dans le droit romain primitif, en constituant, dans notre droit, une dês si nombreuses manifestations du

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Contudo, interessante observar que uma mirada nos ordenamentos latino-americanos8, africanos9, europeus10 e asiáticos11 confirma a presença cláusula penal nos mais variados sistemas, com peculiaridades.

O presente estudo busca, a partir de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, revitalizar a interpretação da cláusula penal, para o fim de melhor adaptá-la às exigências da sociedade brasileira neste início de milênio. Inicialmente, são abordados os princípios que regem o direito contratual brasileiro, bem como aspectos históricos, que explicam a conformação atual da cláusula penal. A seguir, suscitam-se temas polêmicos e apontam-se algumas perspectivas para a sua resolução. Enfoca-se, especialmente, a melhor interpretação do art. 413 do Código Civil e a possibilidade jurídica de majoração da penal em favor do consumidor.

1 – BREVE MIRADA NOS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO

Um dos fundamentos do contrato, quiçá o mais caro para a doutrina clássica, é o consenso. Este encontro de vontades é obtido a partir da aproximação das pessoas, não raro sendo precedido de longas negociações.

concept de pénalité dans le droit civil: ou bien l´on estime qu´elle n´est qu´une liquidation conventionnelle et préalable dês dommages et intérêts”. PEIRANO, Jorge. Nature juridique de la clause pénale dans les droits français et latino-américain. Revue Internationale de Droit Compare, v.1, n.3, p.322, juillet-septembre.

8 No Código Civil colombiano, art. 1.592. Definición de cláusula penal: “La cláusula penal es aquella en que una persona, para asegurar el cumplimiento de una obligación, se sujeta a una pena que consiste en dar o hacer algo en caso de no ejecutar o retardar la obligación principal”.

9 Por força da influência dos sistemas europeus, notadamente o francês e o português. 10 No Code Civile, art. 1226: “La clause pénale est celle par laquelle une personne, pour assurer

l’exécution d’une convention, s’engage à quelque chose en cas d’inexécution”. 11 Por ilustração, o Código Civil de Macau (1999) contempla o seguinte regramento básico: art. 799º

(Cláusula penal): “1. As partes podem fixar por acordo a indemnização exigível ou a sanção aplicável, para os casos de não cumprimento, cumprimento defeituoso ou mora no cumprimento; a cláusula do primeiro tipo designa-se por cláusula penal compensatória e a do segundo por cláusula penal compulsória. 2. Em caso de dúvida, a cláusula penal é compensatória. 3. As partes podem estabelecer num mesmo contrato cláusulas penais para diferentes fins, mas se só tiverem estabelecido uma cláusula penal pelo não cumprimento, e esta for compensatória, presume-se que ela cobre todos os danos, e se for compulsória, que esta abrange toda a sanção aplicável. 4. A cláusula penal está sujeita às formalidades exigidas para a obrigação principal, e é nula se for nula esta obrigação”. Art. 800º (Funcionamento da cláusula penal): “1. Sem prejuízo de estipulação expressa em contrário, o cumprimento da cláusula penal só é exigível havendo culpa do devedor. 2. A cláusula penal compensatória obsta a que o credor exija o cumprimento da mesma cumulativamente com a realização coactiva da prestação a que diga respeito ou exija a indemnização pelo dano por ela coberto, mas, salvo convenção em contrário, não impede a indemnização pelo dano excedente quando este seja consideravelmente superior”.

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Os contratos são celebrados para a satisfação dos sujeitos neles envolvidos, de sorte que seus termos, em linhas gerais, são acertados em razão do interesse das partes. A contratação, tradicionalmente, é vista como um símbolo do exercício da liberdade, razão pela qual o princípio fundante do direito contratual é a autonomia privada, reconhecida – em maior ou menor escala – em todos os sistemas. É conhecido o brocardo qui dit contractuel dit juste, o qual bem ilustra o contrato como um símbolo do encontro de vontades.

Contudo, especialmente após o Século XX, a visão clássica do contrato, desenvolvida nos séculos anteriores e que encontrou no Code Civil seu ícone, foi sendo alterada para recepcionar novos anseios de uma sociedade distinta12. O contrato, longe de representar o livre encontro de vontades entre iguais, passou a servir como meio de opressão, em alguns casos, de sorte que a doutrina procurou resgatar outros princípios para renovar seu conceito13. Atualmente, são conhecidas doutrinas que interpretam o contrato como um fenômeno social, cuja razão de ser repousaria no ideal de solidariedade entre as pessoas. O contrato, para alguns autores, promoveria o encontro das pessoas e a socialidade14. Dentro desse contexto, ideias que antes soariam como despropositadas passam a trafegar pelo ambiente contratual, como os recentes deveres de contratar e de renegociação15.

12 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS irá destacar a dependência do homem contemporâneo ao contrato:

“Ora, como a celebração de contratos é uma necessidade do homem moderno, e não apenas uma faculdade limitada à sua liberdade de escolha, já se vê claramente mitigada a autonomia da vontade. Já não se cogita da liberdade de estipular cláusulas e convenções, dada a imperiosidade de contratar para sobreviver na sociedade contemporânea, porosa, aberta, plural e globalizada”. Miradas sobre a cláusula penal no direito contemporâneo. Disponível em: <www.fat.edu.br>. Acesso em: 14 jun. 2010.

13 É o alvitre de CLÁUDIA LIMA MARQUES: “Com a industrialização e a massificação das relações contratuais, especialmente através da conclusão de contratos de adesão, ficou evidente que o conceito clássico de contrato não mais se adaptava à realidade socioeconômica do Século XX. Em muitos casos o acordo de vontade era mais aparente do que real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra, e deixaram claro o desnível entre os contratantes – um autor efetivo das cláusulas, outro, simples aderente – desmentindo a ideia de que assegurando-se a liberdade contratual estaríamos assegurando a justiça contratual”. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.150.

14 MAZEAUD, Denis. Loyauté, solidarité, fraternité: la nouvelle devise contractuelle? In: Mélanges Terré. Paris: Dalloz, 1999.

15 GALGANO, Francesco. Diritto Privato. Padova: CEDAM, 2008, p.238.14. Em nossa jurisprudência: “Seguro de vida em grupo. Não renovação. Previsão contratual. Comunicação prévia. Dano moral. A par da comunicação prévia, mostra-se abusiva a não renovação do contrato de seguro pela ré, com alteração no valor do prêmio e exclusão da cobertura de invalidez permanente total por doença. IPD. Incidência do art. 51, IV, do CDC. Contrato cativo, de longa duração e trato sucessivo. Boa-fé

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Para a doutrina clássica, se o consenso é o elemento que caracteriza grande parte das contratações, uma vez que os contratos se formam pelo encontro entre os sujeitos, é natural que usualmente os efeitos do relacionamento obrigacional não atinjam terceiros. Essa é justamente a ideia central de outro princípio clássico, qual seja o da relatividade dos efeitos do contrato, bem exposto no brocardo que o “contrato faz lei entre as partes”16. As pessoas estranhas ao pacto não deveriam ser atingidas. Por decorrência, soa estranho que terceiro possa ser responsabilizado pelo inadimplemento de relação contratual alheia, bem como tenha ação contra os contraentes.

Todavia, a consagração de uma sociedade massificada, ao longo do Século XX, demonstrou que, não raro, relações contratuais projetam efeitos para pessoas que sequer conhecem seus termos. Foi colocado em xeque o princípio da relatividade, a partir de casos em que manifestamente era reconhecido um interesse de terceiros digno de tutela17.

Algumas questões ainda não respondidas dizem respeito a até que ponto os contratantes seriam alheios à sociedade ou em que medida o

objetiva e fim social na espécie contratual. Arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do novo Código Civil. Contudo, não gera indenização por dano moral. Agravo retido não conhecido e apelação provida em parte” (Apelação Cível nº 70024960312, 5ª CC, TJRS, Rel. Desemb. Leo Lima, julgado em 24.09.2008).

16 É mensagem histórica do art. 1.134, do Code Napoleon (1804): “Les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites. Elles ne peuvent être révoquées que de leur consentement mutuel, ou pour les causes que la loi autorise. Elles doivent être exécutées de bonne foi”.

17 A situação já fora detectada por KARL LARENZ. Analisando como deveria se dar a criação do direito superador da lei, LARENZ se valeu de critérios aceitos pela jurisprudência tedesca: “Desarollo del derecho atendiendo a las necesidades del trafico jurídico”; “desarollo del derecho atendiendo a la naturaleza de las cosas”; “desarollo del derecho atendiendo a un principio etico-jurídico”, etc. E para ilustrar um caso de criação do direito superador da lei, no qual era utilizado um postulado ético-jurídico, o professor apresentou justamente o caso do contrato com efeitos perante terceiros, explicando: “Se trata al respecto de que los deberes de protección, fundados en una relación contractual o en una relación de confianza precontractual, pueden extenderse a aquellos terceros – que no han tomado parte por si mismos en la conclusión del contrato – que entran en contacto manifiesto con la prestación contractual o con la preparación de la conclusión del contrato pretendida y que tienen un interés, cognoscible por la otra parte, en ser incluidos en la relación de protección de una de las partes contratantes. (...) El tercero, incluido en la relación de deber de protección contractual o precontractual, no puede, por cierto, exigir la prestación contractual, pero sí la indemnización de daños si él sufre, a causa de ello, un daño que lesiona un deber de protección, existente a su favor, a uno de los participantes en la conclusión del contrato o en las negociaciones contractuales. El resultado está claramente de acuerdo con un postulado de la justicia distributiva; la fundamentación no procede de la ley, pero está en consonancia con el principio de ‘buena fe’ y con la doctrina a partir de él desarrollada sobre los deberes de protección contractual”. Metodologia de la ciencia del derecho. Tradução de Marcelino Rodrigues Molinero. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p.421.

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contrato poderia ser enfocado como uma bolha, que abrigaria os participantes? Igualmente foi contestado o papel do terceiro que se mostra alheio e absolutamente indiferente ao destino do contrato, pela consideração de que todas as pessoas deveriam, no mínimo, evitar a colaboração para o ilícito contratual.

A exigência de funcionalização dos direitos acabou por permitir o reconhecimento de que alguns contratos possuem função social importante. Essa circunstância é bem observada quando da análise judicial de contratos de massa, em que a decisão proferida ocasiona a necessidade de adequações em relação aos demais contratantes. Os tribunais, por tal razão, vêm acertadamente indagar sobre os efeitos concretos de sua pronúncia, atendendo assim à função social que se espera dos pactos.

Se a função social é o princípio que vai guiar a relação entre os contraentes e a sociedade, para viabilizar a consideração dos interesses de terceiros, o princípio da boa-fé é cada vez mais utilizado para controlar o relacionamento entre os contratantes18. Três são as suas mais nítidas funções: a) condicionar o exercício das posições jurídicas; b) criar deveres anexos para viabilizar o adimplemento perfeito; e c) servir como critério de interpretação. Todas as projeções possuem como norte estimular a consideração dos interesses do parceiro negocial, para outorgar maior segurança e satisfação aos contraentes19.

É a boa-fé que permitirá a tutela adequada do declaratário. Isto é, a vontade externada é apreendida pela confiança despertada na contraparte, e não propriamente de acordo com o íntimo do declarante. Valorizam-se as expectativas criadas pela aproximação negocial, os usos e costumes e, inclusive, o papel do silêncio, tutelando as “legítimas expectativas” que o contato social desperta20. Tudo com o objetivo de oferecer tranquilidade para ambos os contraentes.

18 No direito brasileiro, clássica é a obra de MARTINS-COSTA, Judith. Da Boa-Fé no Direito Civil. São

Paulo: RT, 2000. 19 Bem refere MOTA PINTO que “a boa fé é hoje um princípio fundamental da ordem jurídica,

particularmente relevante no campo das relações civis e, mesmo, de todo o direito privado. Exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético-jurídicos da comunidade, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma juridicidade social e materialmente fundada. A consagração da boa fé corresponde, pois, à superação de uma perspectiva positivista do direito, pela abertura a princípios e valores extra-legais e pela dimensão concreto-social e material do jurídico que perfilha”. Teoria Geral do Direito Civil. 4.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.124.

20 Sobre o tema, ver trabalho da Professora VERA MARIA JACOB DE FRADERA: O Valor do Silêncio no Novo Código Civil. Revista Jurídica Empresarial, v.2, maio-jun. 2008.

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Por fim, mas não menos importante, é o princípio do equilíbrio. O sistema privado almeja que as trocas impulsionadas pelo contrato ostentem proporcionalidade nas prestações assumidas, a fim de gerar satisfação a ambos os contraentes. Tanto na fase de formação quanto na de execução, o direito passou a oferecer mecanismos para a manutenção do sinalagma, como a lesão, a revisão da cláusula penal abusiva e a resolução por onerosidade excessiva, entre outros. Diplomas revestidos de maior interesse público, como o Código de Defesa do Consumidor, irão apontar normas ainda mais específicas para equilibrar a relação entre os agentes do mercado, seguindo a diretriz constitucional que impõe a tutela do consumidor, enquanto pessoa vulnerável.

É da consideração desses cinco grandes princípios do direito contratual que o presente estudo almeja oferecer novas perspectivas para o uso da cláusula penal no direito brasileiro. No próximo tópico, à luz da doutrina, serão abordados seus traços fundamentais. Após, em perspectiva crítica, o ensaio contesta posições majoritárias em nosso direito, sinalizando alternativas para o melhor aproveitamento do secular instituto. Ao final, será apresentada proposta para equilibrar a relação de consumo, mediante a majoração da cláusula penal infimamente arbitrada.

2 – A CLÁUSULA PENAL NO DIREITO BRASILEIRO

Ao contrário de outros ordenamentos, o Código Civil de 2002 não apresenta um conceito de cláusula penal21. Esta opção do legislador foi correta, pois viabiliza o trabalho sério da doutrina, que assume o constante desafio de caracterizá-la à luz das novas exigências sociais. Portanto, de forma alguma, essa omissão impede que a jurisprudência e a doutrina desenvolvam as linhas fundamentais do tema.

É lícita, no direito brasileiro, sua estipulação em momento posterior à celebração do contrato22. Desnecessária é sua inclusão no próprio contrato, embora na prática esse seja o fenômeno mais corriqueiro, por oferecer maior praticidade. Sua eventual nulidade não invalida o contrato, dado que ela é

21 O Código Civil português, de seu turno, caracteriza o instituto nesses termos: “As partes podem,

porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal”. 22 No nosso Código Civil, pelo art. 409: “A cláusula penal estipulada conjuntamente com a

obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora”.

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acidental. Entretanto, anulado o pacto, ela segue a mesma sorte, uma vez que acessória23.

Historicamente, apontam-se duas principais funções desempenhadas pela penal. Mais remotamente, no direito romano primitivo, servia essencialmente para reforçar o vínculo, constrangendo o devedor à perfeita prestação. Por inexistir limite para a sua estipulação, alguns autores apontam uma finalidade criminal, como o nome indica. Derivou da stipulatio poenae e ostentava a função de coação em favor do vínculo24.

Foi por influência dos canonistas que a liberdade individual, antes reinante, passa a ser limitada, inicialmente com o escopo do coibir a usura25. Passa-se a enfocar a penal como uma indenização pré-quantificada pelas partes26. Ambas as funções sobrevivem no direito, embora a segunda tenha logrado alcançar maior projeção na atualidade, a nosso sentir.

Quanto à predominância de um ou outro escopo, a doutrina nacional se divide. Para CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “a finalidade essencial da

23 Didática a redação do art. 1.155 do Código Civil espanhol: “La nulidad de la cláusula penal no

lleva consigo la de la obligación principal. La nulidad de la obligación principal lleva consigo la de la cláusula penal”.

24 ANTONIO PINTO MONTEIRO refere que “não obstante a figura ser já conhecida e largamente utilizada, ao que parece, no mundo grego, é à stipulatio poenae do direito romano que generalizadamente se atribui a paternidade histórica da cláusula penal” (...) “que a stipulatio poenae foi concebida pelos romanos essencialmente como medida de reforço das obrigações, ao serviço do interesse do credor, e a fim de este forçar o devedor ao cumprimento, é ponto que não suscita dúvidas”. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 1999, p.350; p.354. O mesmo autor sublinha que “o direito romano não estabelecia limites ao montante da pena. As partes gozavam da liberdade de fixar a soma ou prestação que lhes aprouvesse”. Op. cit., p.357.

25 Novamente, é esclarecedora a opinião de PINTO MONTEIRO sobre a influência dos canonistas na conformação atual da penal: “Seguir-se-á uma referência à contribuição dos canonistas da Idade Média, pela importância que a mesma reveste para a fisionomia actual do instituto. A derrapagem para a concepção indemnizatória do instituto ter-se-ia iniciado aqui: muitos dos equívocos e da confusão do presente devem procurar-se na construção dos canonistas, na sequência de sua tentativa de evitar que a cláusula penal servisse para contornar a proibição da usura”. Cláusula Penal e Indeminização, p.350.

26 O conceito de perdas e danos é bem apreendido pela pena de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA: “Na sua apuração, há de levar-se em conta que o fato culposo privou o credor de uma vantagem, deixando de lhe proporcionar um certo valor econômico, e também o privou de haver um certo benefício que a entrega oportuna da res debita lhe poderia granjear, e que também se inscreve na linha do dano. Como sua finalidade é restaurar o equilíbrio rompido, seria insuficiente que o credor recebesse apenas a prestação em espécie, ou o seu equivalente pecuniário, porque assim estaria reintegrado no seu patrimônio tão somente o que lhe faltou, em razão do dano sofrido, mas continuaria o destaque correspondente ao benefício que a prestação completa e oportuna lhe poderia proporcionar. Não haveria, conseguintemente, o restabelecimento patrimonial no estado em que ficaria, se o devedor tivesse cumprido a obrigação, e, ipso facto, não seria indenização”. Instituições de Direito Civil. 19.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.214.

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pena convencional, a nosso ver, é o reforçamento do vínculo obrigacional, e é com este caráter que mais assiduamente se apõe a obrigação. A pré-liquidação do id quod interest aparece, então, como finalidade subsidiária, pois que nem sempre como tal se configura”27.

Outro é o alvitre de SILVIO RODRIGUES, que prefere a finalidade reparatória: “A função mais importante da cláusula penal, e que se prende à sua origem histórica, é a de servir como cálculo predeterminado de perdas e danos. No contrato, encontra-se, não raro, disposição em que o credor se reserva o direito de exigir do devedor uma pena, em caso de inadimplemento. Tal pena representa o montante das perdas e danos preestabelecidos pelas partes, calculados tendo em vista o eventual prejuízo decorrente do descumprimento da obrigação”28.

Ora a cláusula penal é destinada a incidir diante do atraso, ora em razão da incumprimento definitivo. Em face dessas finalidades específicas, classificam-se as cláusulas penais em moratórias ou compensatórias. Haverá casos em que a estipulação almeja reprimir a demora. Em outros, o objetivo maior é remediar o inadimplemento. Daí as expressões: moratória, na primeira hipótese, e compensatória, na última29.

Longe de possuir apenas interesse acadêmico, a correta qualificação da cláusula penal serve para que o intérprete encontre as normas que regem a aplicação delas nos debates concretos. Exemplificativamente, o ordenamento, no art. 410, impede a cumulação da penal com perdas e danos. Logicamente, se trata da cláusula penal compensatória, que será manejada para a hipótese de inadimplemento da obrigação, abrindo ao credor uma alternativa entre exigir a prestação ou a pena convencionada30.

27 Instituições de Direito Civil, p.94. Prossegue o autor: “O efeito fundamental da pena convencional, e

que pode ser assinalado como determinação cardeal, é a sua exigibilidade pleno iure, no sentido de que independe da indagação se o credor foi ou não prejudicado pela inexecução do obrigado. Daí autorizar a boa hermenêutica do princípio a declaração de que o credor não está obrigado a alegar e provar o prejuízo que do inadimplemento lhe resulte. O que tem a demonstrar, e isto é o pressuposto da pena convencional, é a ocorrência da inexecução, pois que a vontade das partes, neste passo soberana, não pode ser violentada, bastando assim que hajam estatuído uma técnica de libertar-se dos riscos e das delongas de uma apuração de danos”. Op. cit., p.100.

28 Direito Civil. 30.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v.2, p.264. 29 Diante da autonomia, é admissível o acúmulo de penas no instrumento contratual, como pondera

CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA: “Nenhuma razão existe, quer em doutrina quer em legislação, para que se repute vedado o acúmulo de penas convencionais. É lícito, portanto, ajustar uma penalidade para o caso de total inadimplemento e outra para o de mora ou com a finalidade de assegurar o cumprimento de certa e determinada cláusula”. Op. cit., p.99.

30 Art. 410: “Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor”. A jurisprudência é correta na

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Com efeito, não se justificaria que a coibição do atraso impedisse a percepção das perdas e danos31.

Afirma-se correntemente que a cláusula penal oferece ao credor o valor prefixado das perdas e danos. Ocorrendo o inadimplemento, naturalmente incide a penal, pela imputabilidade32. Não é necessária a comprovação exata do prejuízo sofrido, pois é esta justamente a finalidade da cláusula penal compensatória: liquidar antecipadamente o dano sofrido33.

Sob este ângulo, não deixa de representar uma vantagem para o devedor, pela ciência antecipada acerca do risco contratual. Apenas quando expressamente pactuado pelas partes a indenização suplementar, servirá a penal como piso34. Reputando o credor ínfima a cláusula penal, caber-lhe-á indicar expressamente a possibilidade da perquirição do prejuízo ulterior, uma vez que a doutrina e a jurisprudência majoritária não admitem a majoração da penal insuficiente. Essa é justamente a principal resistência para a interpretação inversa do art. 413 do CCB, que prevê a redução da penal manifestamente excessiva35. De toda sorte, existindo a previsão, cumprirá ao credor demonstrar o efetivo prejuízo sofrido.

linha de que apenas a cláusula penal compensatória inibe a perquirição das perdas e danos: “Recurso especial. Ação rescisória. Obrigação. Descumprimento. Cláusula penal moratória. Cumulação com lucros cessantes. Possibilidade. Violação a literal disposição de lei. Inexistência. Dissídio jurisprudencial. Ausência de similitude fática. 1. A instituição de cláusula penal moratória não compensa o inadimplemento, pois se traduz em punição ao devedor que, a despeito de sua incidência, se vê obrigado ao pagamento de indenização relativa aos prejuízos dele decorrentes. Precedente. 2. O reconhecimento de violação a literal disposição de lei somente se dá quando dela se extrai interpretação desarrazoada, o que não é o caso dos autos. 3. Dissídio jurisprudencial não configurado em face da ausência de similitude fática entre os arestos confrontados. 4. Recurso especial não conhecido” (REsp 968.091/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves. DJE: 30.03.2009).

31 Art. 411: “Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal”.

32 Não se confunda imputação com culpa, pois esta é apenas uma das formas daquela. 33 Art. 416, caput: “Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo”. 34 Art. 416, parágrafo único: “Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o

credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente”.

35 Essa justificativa é bem apreendida pela Professora ANA PRATA: “Se é certo que da estrita noção legal não emerge qualquer elemento que esclareça um significado funcional da pena, que exceda o da liquidação preventiva da indenização – e por isso mesmo – parece sintomático da ideia de que a lei considera a cláusula penal como um instrumento privilegiado de protecção do credor o vir admitir que as partes, do mesmo passo que a estipulam, prevejam o seu afastamento, se ela se não mostrar adequada a desempenhar tal papel. Não obstante a vantagem que sempre para o

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Outro benefício ao devedor, no sistema nacional, diz respeito ao limite da cláusula penal, o qual não deve ultrapassar “o da obrigação principal”36. Discutível essa orientação, pois nem sempre a consideração do valor da obrigação será suficiente para atender ao interesse do credor37. Há bens imateriais a que a cláusula penal dificilmente, dentro de uma visão patrimonialista, irá atender. Isso sem contar com as obrigações de fazer e de abstenção, cujo “valor” é de difícil mensuração. De toda sorte, esta norma indica que a cláusula perde o caráter de pena e assume a natureza de pré-quantificação do dano. Englobará, de qualquer forma, todos os dados oriundos do inadimplemento, para a adequada tutela do credor.

Existem muito aspectos interessantes. Contudo, o presente ensaio irá se debruçar sobre o dito “dever” de redução da cláusula penal abusiva, para, ao final, admitir o fenômeno inverso nas relações de consumo, ou seja, a majoração da penal ínfima.

3 – A REDUÇÃO JUDICIAL DA PENAL EXCESSIVA (ART. 413 DO CCB)

Seguindo linha visualizada no direito comparado, o Código Civil de 2002 autorizou a redução da cláusula penal, em seu art. 413.38 Reza o

credor decorre da simplificação de exercício do direito indenizatório que a cláusula penal consubstancia, pode ele entender que tal vantagem não é compensada pela diferença quantitativa entre o seu valor por defeito e o dos danos: e, nesse caso, optará pela aplicação do regime legal da responsabilidade contratual, obtendo a indenização correspondente aos prejuízos que realmente sofreu. A regra é a de que a cláusula penal constitui sempre uma liquidação definitiva dos danos, fixa sempre o montante indiscutível da indemnização exigível, excepto quando as partes, prevenindo o risco de o credor ser prejudicado pela cláusula, salvaguardem a aplicação do regime legal, se o credor vier a preferi-lo, ou quando, sendo o incumprimento doloso, tal aplicação prescinda da convenção das partes”. Cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina, 2005, p.647.

36 Art. 412: “O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal”.

37 Melhor é a orientação do Código das Obrigações suíço, que alude à ampla liberdade na fixação da pena, porém autoriza o controle judicial das penais abusivas: “Art. 163: 1. Les parties fixent librement le montant de la peine. 2. La peine stipulée ne peut être exigée lorsqu’elle a pour but de sanctionner une obligation illicite ou immorale, ni, sauf convention contraire, lorsque l’exécution de l’obligation est devenue impossible par l’effet d’une circonstance dont le débiteur n’est pas responsable. 3. Le juge doit réduire les peines qu’il estime excessives”. É que, a nosso sentir, não é apenas o fato da penal superar o valor da “obrigação” que caracterizaria automaticamente sua abusividade.

38 O direito argentino consagrava o princípio da imutabilidade da penal. Contudo, diante da jurisprudência majoritária que suavizava a regra, houve a introdução do parágrafo único ao art. 656, autorizando a redução da pena. Aplaudiu a reforma GUILLERMO BORDA: “La jurisprudencia habia decidido, con toda razón, que los jueces pueden reducir las penas cuando éstas sean a todas luces abusivas y desproporcionadas con el perjuicio ocasionado con el incumplimiento. Esta

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dispositivo que “a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”. A ideia de redução – e não de majoração – pode ser explicada por duas razões. Inicialmente, a experiência demonstra que, nas últimas décadas, o abuso do direito ocorria pela cláusula penal excessiva, e não pela ínfima. Em segundo plano, o ordenamento oferece uma possibilidade abstrata para que os contratantes corrijam a penal insuficiente, qual seja a autorização para que o contrato admita expressamente a indenização complementar39.

Como referido, a norma segue a tendência de outros ordenamentos. Por ilustração, o Código Italiano (1942) autoriza riduzione della penale, pela via da equidade, quando a obrigação principal é parcialmente executada ou na hipótese de o montante da cláusula penal ser manifestamente excessivo, indicando como critério de aferição o interesse do credor no resultado do adimplemento40. A norma amplia a previsão do direito francês, cujo Code

jurisprudencia ha sido consagrada por la ley 17,711, que agregó al art. 656 un párrafo según el cual: los jueces podrán, sin embargo, reducir las penas cuando su monto desproporcionado con la gravedad de la falta que sancionan, habida cuenta del valor de las prestaciones y demás circunstancias del caso, configuren un abusivo aprovechamiento de la situación del deudor”. Derecho de Obligaciones, p.123.

39 Essa justificativa é bem apreendida pela Professora ANA PRATA: “Se é certo que da estrita noção legal não emerge qualquer elemento que esclareça um significado funcional da pena, que exceda o da liquidação preventiva da indenização – e por isso mesmo – parece sintomático da ideia de que a lei considera a cláusula penal como um instrumento privilegiado de protecção do credor o vir admitir que as partes, do mesmo passo que a estipulam, prevejam o seu afastamento, se ela se não mostrar adequada a desempenhar tal papel. Não obstante a vantagem que sempre para o credor decorre da simplificação de exercício do direito indenizatório que a cláusula penal consubstancia, pode ele entender que tal vantagem não é compensada pela diferença quantitativa entre o seu valor por defeito e o dos danos: e, nesse caso, optará pela aplicação do regime legal da responsabilidade contratual, obtendo a indenização correspondente aos prejuízos que realmente sofreu. A regra é a de que a cláusula penal constitui sempre uma liquidação definitiva dos danos, fixa sempre o montante indiscutível da indemnização exigível, excepto quando as partes, prevenindo o risco de o credor ser prejudicado pela cláusula, salvaguardem a aplicação do regime legal, se o credor vier a preferi-lo, ou quando, sendo o incumprimento doloso, tal aplicação prescinda da convenção das partes”. Cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina, 2005, p.647.

40 Art. 1384: “Riduzione della penale. La penale può essere diminuita equamente dal giudice, se l’obbligazione principale è stata eseguita in parte ovvero se l’ammontare della penale è manifestamente eccessivo, avuto sempre riguardo all’interesse che il creditore aveva all’adempimento (1181, 1526-2, att. 163)”.

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(1804) apenas admite o ajuste quando comprovado o benefício gerado pela execução parcial41.

Adotando semelhante entendimento, o Código Civil português (1966) impõe que a análise acerca do excesso da cláusula seja realizada mediante a consideração das circunstâncias supervenientes à formação do contrato. Objetiva a conservação do sinalagma funcional e sinaliza interesse público na matéria ao afastar toda estipulação em sentido contrário. O legislador igualmente faz apelo à equidade42.

Como se observa, ainda que em face de apenas três exemplos escolhidos, na grande maioria dos sistemas que regulam a figura da cláusula penal, existe autorização expressa para a redução judicial. A doutrina, nessa linha, aplaude a excepcional autorização legislativa para o magistrado atuar dentro do conteúdo do contrato, para o fim de reequilibrá-lo.

Não surpreende, portanto, que o Código Civil de 2002, elaborado na década de 1970, contemple uma disciplina bastante próxima de seus irmãos europeus. Entretanto, a “nova” previsão traz diversas questões complexas, a começar pelos critérios que deveriam guiar a intérprete na aferição da abusividade da penal.

Com razão, caso não seja alcançado um consenso científico acerca dos limites de aplicação do dispositivo, surgirá o risco de grave insegurança jurídica a partir da atuação do Poder Judiciário. Não há dúvidas que a norma é um marco importante, por sublinhar o caráter relacional do direito, na busca pela tutela eficaz do credor, sem a ruína completa do devedor. Contudo, se mal utilizada pelos juízes, trará o inconveniente de promover uma nova forma de dirigismo judiciário, despido de fundamento e perigoso43.

41 Art. 1231: “Lorsque l’engagement a été exécuté en partie, la peine convenue peut, même d’office,

être diminuée par le juge à proportion de l’intérêt que l’exécution partielle a procuré au créancier, sans préjudice de l’application de l’article 1152. Toute stipulation contraire sera réputée non écrite”.

42 Eis a redação do art. 812º (Redução equitativa da cláusula penal): “1. A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário. 2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida”.

43 Pela pertinência, utilizamos a expressão de JEAN-LUC AUBERT, ao apresentar a teoria solidarista do contrato: “Le theorie a le mérite de rappeler la nécessaire vigilance à l´endroit des excés de l´individualisme. Mais, si elle peut, comme telle, constituer un moteur pour la doctrine et un modèle pour le legislateur, elle présente l´inconvenient de promouvoir un nouveau dirigisme

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Percebendo a importância de um debate sério acerca dos limites da aplicação do art. 413, parcela da doutrina apresenta critérios objetivos passíveis de utilização pelo intérprete. A Professora JUDITH MARTINS-COSTA destaca: 1) a espécie da cláusula penal, se coercitiva ou substitutiva; 2) sua modalidade, se moratória ou compensatória; 3) diferença entre o valor do prejuízo efetivo e o montante da pena; 4) a valorização do interesse do credor; 5) a gravidade da infração ao contrato e o grau de culpa do devedor; 6) o efetivo poder negociatório das partes; 7) as vantagens que o não cumprimento pode trazer ao devedor; 8) a consideração da totalidade do contrato e da relação por ele instaurada; 9) as peculiaridades da fase formativa do negócio; 10) os fatos relevantes na fase de desenvolvimento; e, por fim, 11) a análise do contexto negocial, com a valorização dos usos e costumes do mercado específico, no qual é celebrado o contrato44.

Todas essas diretrizes são importantes, a começar pelo reconhecimento da função desempenhada pela cláusula penal discutida, pela natureza do negócio, pelo interesse do credor e o próprio comportamento do devedor45. Um exemplo auxilia a colocação do problema. Suponhamos a celebração de um contrato de agência, no qual é inserta previsão no sentido de que, diante do inadimplemento do agente, deve ele indenizar o agenciado em determinado valor. O mesmo contrato fixa a diretriz no sentido de que a atuação do agente deve produzir uma receita mínima anual próxima a 100. Caracterizada que a atividade do agente produziu um acréscimo patrimonial de 80, já incorporado ao acervo do agenciado, a plena incidência de cláusula penal compensatória – destinada a servir como todas as perdas e danos pelo inadimplemento integral – geraria um grave desequilíbrio, pois desconsidera a atuação do devedor, que quase atingiu a meta. Nessas situações, em que o devedor descumpre, porém evidenciando interesse no contrato e comprovando ao menos sua tentativa de alcançar o pleno adimplemento, soaria injusto premiar o credor

généralisé et, surtout, un dirigisme judiciaire dépourvu de fondement et dangereux”. Le Contrat, p.27.

44 Op. cit., p.69-70. 45 “Agravo regimental no agravo de instrumento. Contrato de promessa de compra e venda. Rescisão

contratual. Inadimplência. Cláusula penal. Art. 53 do CDC. Agravo regimental improvido. I – A estipulação de multa contratual de 10% sobre o valor total do contrato, em caso de desfazimento do acordo, não ofende o disposto no art. 53 do CDC, porquanto apenas parte do valor total já pago será retido pelo fornecedor. II – Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida (Súmula 83 do STJ). Agravo Regimental improvido” (AgRg no Ag 748.559/MG, 3ª Turma, DJE: 08.10.2008).

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com todo o produto da cláusula penal, olvidando-se o benefício parcial a si gerado pela atuação do devedor.

Admitir a redução da cláusula penal, diante da hipótese de execução parcial, permite a harmonização dos princípios de direito contratual. Porém, a norma nada diz a respeito da simetria entre o percentual adimplido e o desconto da penal. É que haverá casos, e não poucos, em que o inadimplemento, embora reduzido, atingirá em cheio o interesse do credor, de sorte que a redução postulada não poderá ser matematicamente calculada tão somente a partir do quanto adimplido46.

Outra questão que surge a partir do art. 413 diz respeito à possibilidade de as partes renunciarem ao benefício nele instituído. Será viável que o devedor, de forma antecipada, renuncie ao direito de postular a redução equitativa do montante, quando arbitrariamente fixado? O princípio da autonomia privada autorizaria o acerto entre os contraentes nesse sentido?

O tema foi alvo de debates na I Jornada de Estudos de Direito Civil, promovida pela Justiça Federal. Foi aprovado o Enunciado nº 355, pelo qual “não podem as partes renunciar à possibilidade de redução da cláusula penal se ocorrer qualquer das hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, por se tratar de preceito de ordem pública”. É a posição da doutrina majoritária47.

Argumentos sólidos levaram eminentes professores a subscrever o enunciado, a começar pela aspiração de equidade. Entretanto, ousamos divergir de sua redação. É que, no plano abstrato, nada tem de ilegal a previsão pela qual as partes renunciam ao direito de postular a redução judicial do valor, desde que produzida pelo livre exercício negocial das partes. A negociação entre os contraentes é a melhor forma para se encontrar o equilíbrio e o interesse das partes, na fixação do “justo valor da penal” deve ser considerado, até mesmo com o objetivo de eliminar o risco de atuação judicial aleatória. Qualquer cláusula somente pode ser

46 Nesse passo, acertou o Enunciado nº 413 da Jornada de Estudos da Justiça Federal, ao reputar que

“a redação do art. 413 do Código Civil não impõe que a redução da penalidade seja proporcionalmente idêntica ao percentual adimplido”.

47 Interessante o trabalho de TATIANA FLORENCE, onde defende, à luz das premissas da constitucionalização do direito privado e da jurisprudência do STJ: “Resta definitivamente afastada a possibilidade de as partes dispensarem a apreciação do Judiciário a respeito da redução da penal convencional”. Aspectos Pontuais da Cláusula Penal, p.529. Esta é a opinião amplamente majoritária em doutrina, com a qual não concordamos.

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adequadamente compreendida pelo todo contratual. É possível – e provável – que a renúncia tenha produzido algum outro efeito dentro do contrato, como a influência no preço ou nas condições de prazo, etc.

Embora os critérios para guiar a atuação do juiz estejam sendo indicados pela doutrina, as partes, mediante a renúncia, podem ampliar a própria satisfação, evitando o risco de interferência judicial no contrato48. São os contraentes e não o magistrado os principais atores do tráfego negocial e, por tal razão, se encontram em melhores condições que os profissionais do direito para arbitrá-la com razoabilidade. A renúncia, dentro dessa perspectiva, conserva às partes o direito de encontrar o ponto de equilíbrio, evitando o risco de que a vontade de terceiro (juiz ou árbitro) substitua a avaliação realizada pelos contraentes.

Entretanto, esse raciocínio desenvolvido no plano abstrato não impede que, no caso concreto, algum abuso seja diagnosticado. Isto é, a renúncia não deve servir de disfarce do ilícito. Certamente, haverá casos em que lícita será sua desconsideração, em prol da afirmação de outros princípios obrigacionais relevantes. Presume-se que a sua estipulação tenha se dado de forma acordada, com a consideração global do negócio. Competirá ao contraente prejudicado demonstrar, inclusive por indícios, sua desvirtuação.

Portanto, a admissão de que, no plano abstrato, lícita se mostra a renúncia ao benefício do art. 413 do CCB não impede que, no plano concreto, à luz das premissas de ilicitude do Código Civil (especialmente o art. 187) e da consideração global do relacionamento obrigacional, seja reconhecida a abusividade no seu exercício.

Por fim, surge o problema da consideração oficiosa do tema. Ou seja, poderá o magistrado, sem a iniciativa formal da parte interessada, revisar o contrato neste tópico, a pretexto de equilibrá-lo? A doutrina majoritária, em solo brasileiro, irá se posicionar favoravelmente, como dá conta o Enunciado nº 356, da novamente lembrada Jornada de Direito Civil: “Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício”49. 48 Em tese, uma cláusula, de determinado valor, pode ser tida como adequada pelo contraente e

excessiva pelo magistrado. Daí a autorização legislativa para que as partes limitem a atuação do juiz.

49 O autor EDUARDO HENRIQUE BRENNAND DORNELAS CÂMARA defende argumento contrário. Em interessante estudo, admite a revisão oficiosa, justificando sua posição inclusive pela redação da norma: “Notemos que a nova lei usa o verbo dever. Nesse caso, a redução passa a ser

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Esta conclusão é equivocada por duas razões fundamentais.

A primeira reside na manifesta ofensa ao princípio constitucional do contraditório. Ora, quando o autor não postula a atuação do juiz sobre determinado ponto, dificilmente o réu, por mais diligente que seja, irá se preocupar em debatê-lo. Sem o debate prévio das partes, acerca da abusividade da penal, a chance de o magistrado trazer benefício ao relacionamento obrigacional é mínima.

Em segundo plano, a pronúncia oficiosa do magistrado implica desconsideração do princípio dispositivo, pelo qual compete a cada pessoa cuidar de sua própria esfera de direitos. Se o contraente pede ao magistrado algo diverso (como o cumprimento, resolução, etc.), a sentença que atua em outro plano, por melhor que tenha sido a intenção de seu prolator, tampouco ajuda a segurança contratual. Cumpre ao interessado levantar o tema, ainda que o faça na via incidental50.

Por tais razões, reputamos incoerente e ilegal a atuação oficiosa do juiz nesse particular, de forma que competirá ao interessado postular a redução da penal. Seu pronunciamento quanto à abusividade, longe de oferecer segurança para os contraentes, irá assombrar a já combalida segurança no tráfego negocial51.

Outra questão complexa diz respeito à admissibilidade do magistrado, a partir da ratio autorizadora da redução da penal, elevá-la para re-equilibrar a relação obrigacional. Poucos são os autores que subscrevem tal possibilidade, a qual, ao menos no plano literal, colide com o sentido do art. 413 do CCB. Entretanto, são, no mínimo, merecedores de atenção os argumentos lançados pela Professora ANA PRATA, a partir dos princípios

definitivamente um dever do juiz, e não mais uma faculdade. Cabe ao juiz, também no caso concreto, reduzir a multa se esta for manifestamente excessiva, levando-se em conta a natureza e a finalidade do negócio. O campo é o da equidade”. O texto apresenta a posição de diversos autores em idêntico sentido, como CARLOS ROBERTO GONÇALVES e SÍLVIO VENOSA. (Da redução ex officio da cláusula penal prevista em acordo. Enfoque à luz do artigo 413 do Código Civil. Disponível em:<http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 10 maio 2010).

50 Essa iniciativa pode ocorrer através da propositura de demanda com o fim de revisá-la ou mediante defesa, quando postulado o pagamento. O fundamental é que o devedor lance nos autos o argumento da abusividade, para legitimar a atuação do juiz. Acerta ANTONIO PINTO MONTEIRO, quando afirma que “a primeira condição a preencher para que o tribunal possa ajuizar sobre o montante excessivo da pena, é que o devedor solicite a sua redução, ainda que tão só de forma indirecta e mediata, contestando o seu elevado valor”. Cláusula Penal e Indemnização, p.735.

51 ROBERTO CALVO reputa paternal a postura do magistrado que considera oficiosamente a penal fixada pelas partes. Il Controllo della penale eccessiva tra autonomia privata e paternalismo giudiziale.

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que informam o direito contratual contemporâneo: “Não parece inviável que, em alguns casos, possa o credor obter a modificação do contrato, com aumento da indenização convencional, desde que demonstre que a inadequação desta, por defeito, é tão gravosa para si, que é iníqua a situação resultante de tão insuficiente remédio para as consequências da frustração do seu interesse. E isto tanto no caso de a manifesta insuficiência emergir de uma não intencional desajustada previsão da pena, como naquele outro, de ocorrência de qualquer causa superveniente amplamente agravadora dos prejuízos. Parece, pois, possível afirmar que a especial previsão do art. 812 não constitui uma solução excepcional de um problema específico, mas uma aplicação do princípio geral da boa-fé no exercício dos direitos contratuais, cuja expressa previsão se explica historicamente, e cuja ratio procede identicamente no caso de ser o credor o lesado pela cláusula”52.

O próximo tópico defenderá a possibilidade de majoração da penal nas relações de consumo, matéria atualíssima no direito brasileiro.

4 – A MAJORAÇÃO DA PENAL PARA O EQUILÍBRIO DA RELAÇÃO DE CONSUMO

O regramento da cláusula penal, no Código Civil, é bastante razoável, na harmonização dos interesses dos contraentes53. Por tal razão, sua utilização em outras áreas do direito, ainda que mais específicas, como o direito do consumidor, em tese é plenamente justificada. O pluralismo das fontes é uma das marcas do direito contemporâneo. Para melhor atender a esse fenômeno – que é social –, novas técnicas são apresentadas com o intuito de oxigenar o sistema, que conserva seu ideal de coerência. Nesse sentido, o método do diálogo das fontes mostra-se extremamente útil para o intérprete, na medida em que amplia o horizonte de pesquisa para a

52 Cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina, 2005, p.650. 53 A harmonia da relação de consumo é expressamente buscada pela incidência do Código de

Defesa do Consumidor, como se vê do art. 4°: “A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (...) III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (...)”.

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decisão. Como bem sublinhou o Professor ERIK JAYME, “antes se considerava apenas a ideia de hierarquia entre as fontes e não a de uma aplicação simultânea, de um diálogo entre elas”54. Não se busca retirar qualquer das fontes do sistema, mas conjugá-las, através de diálogo55.

Atualmente, pois, para se encontrarem as melhores soluções práticas e a própria coerência do sistema, é fundamental que o operador não isole uma ou outra fonte jurígena, mas a coteje com as demais. Essa mensagem é bem recebida pelo Código de Defesa do Consumidor, quando, em seu art. 7º, introduz uma cláusula-abertura, para admitir a consideração de outras fontes de direito capazes de atender aos seus objetivos56.

Desta forma, a admissão da analogia entre o regramento da cláusula penal no Código Civil para a definição das demandas que envolvem relação de consumo não impede que suas peculiaridades sejam apreendidas, inclusive com apego a outros princípios específicos. Entre estes, observa-se a preocupação com o “equilíbrio mínimo”. É que o Código de Defesa do Consumidor almeja a harmonização dos interesses dos sujeitos envolvidos no mercado, inclusive (ou principalmente) pela adoção de técnicas protetivas às pessoas que são consideradas hipossuficientes. Como bem exposto pela pena da Professora CLÁUDIA LIMA MARQUES: “Efetivamente, com o advento do CDC, o contrato passa a ter seu equilíbrio, conteúdo ou equidade mais controlados, valorizando-se o seu sinalagma. Segundo GERNHUBER, sinalagma é um elemento imanente estrutural do contrato, é a dependência genética, condicionada e funcional de pelo menos duas prestações correspectivas, é o nexo final que oriundo da vontade das partes

54 ERIK JAYME. Direito Internacional Privado e Cultura Pós-Moderna. Cadernos do Programa de Pós-

Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, v.1, n.1, p.114, mar. 2003. 55 Aliás, correta CLÁUDIA LIMA MARQUES, ao asseverar que “diálogo pressupõe o efeito útil de dois

(di) e uma lógica ou fala (logos), enquanto o ‘conflito’ leva à exclusão de uma das leis e bem expressa a monossolução ou o ‘monólogo’ de uma só lei. Este esforço para procurar novas soluções plurais está visando justamente a evitar-se a ‘antinomia’ (conflitos ‘pontuais’ da convergência eventual e parcial do campo de aplicação de duas normas no caso concreto) pela correta definição dos campos de aplicação. Evitar, assim, a ‘incompatibilidade’ total (‘conflitos de normas’ ou conflitos entre normas de duas leis, conflitos ‘reais’ ou ‘aparentes’), que leve à retirada de uma lei do sistema, a qual levaria à ‘não coerência’ do sistema plural brasileiro, que deixaria desprotegido os sujeitos mais fracos, que a Constituição Federal de 1988 visou a proteger de forma especial, os consumidores”. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, p.44.

56 Reza a norma, art. 7°, caput: “Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade”.

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é moldado pela lei. Sinalagma não significa apenas bilateralidade, como muitos acreditam, influenciados pelo art. 1.102 do Code Civil francês, mas sim contrato, convenção, é um modelo de organização (Organisationsmodell) das relações privadas. O papel preponderante da lei sobre a vontade das partes, a impor uma maior boa-fé nas relações no mercado, conduz o ordenamento jurídico a controlar mais efetivamente este sinalagma e, por consequência, o equilíbrio contratual. (...) o desequilíbrio significativo de direitos e deveres, em detrimento do consumidor, na relação contratual vista como um todo passa a ser indício de abuso, a chamar a ação reequilibradora do novo direito contratual em sua visão social”57.

Essa visão social considera o fenômeno das contratações via adesão, presente em todo o mundo. Por um lado, não há como se negar que o contrato standard, oferecido pelo fornecedor, oferece vantagens para a sociedade, como a redução dos custos, a celeridade e a racionalização da atividade econômica. Por outro, entretanto, pode viabilizar a excessiva limitação dos direitos de uma parte, em favor de expectativas, nem sempre legítimas, da outra58. Isso explica a preocupação observada em variados países em estabelecer regras para a atuação estatal no conteúdo dos contratos, tanto pela via judicial quanto administrativa e legal.

Nesse contexto, a utilização da claúsula penal, como qualquer outro elemento do contrato, pode ser desvirtuada. Em vez de ser um símbolo do encontro de vontades e da saudável tutela da relação obrigacional, em alguns casos, ela reflete a assunção de vantagens não autorizadas pela ordem jurídica. Ao mesmo tempo, pode servir para a limitação ilícita dos direitos reconhecidos pelo ordenamento. É que, como pondera ANTONIO PINTO MONTEIRO, “acontecerá frequentemente que a empresa, valendo-se da situação de força que a sua posição no mercado lhe confere e da forma como este contrato é estabelecido, aproveite para inserir cláusulas abusivas ou injustas, sem consideração pelos interesses da contraparte, máxime se o aderente não passa de simples consumidor final, explorando, quantas vezes, a situação débil deste. Daí a necessidade de controlo dos contratos de adesão se faça sentir, quer ao nível da tutela da vontade do aceitante, quer

57 Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4.ed. São Paulo: RT, 2000, p.240-241. 58 À luz do CDC, em linha de princípio, as cláusulas que exonerem ou limitem excessivamente a

responsabilidade da empresa são tidas como nulas, como se vê, ilustrativamente, das previsões insertas no art. 25 e no art. 51, I.

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ao nível de uma fiscalização do conteúdo das condições gerais do contrato, ditada por razões de justiça comutativa”59.

O contraente, ademais, tende a confiar no próprio adimplemento, quiçá emocionado pela satisfação idealizada no contrato. A experiência demonstra que a pessoa, ao encetar uma relação obrigacional, menos pensa no eventual fracasso que no êxito; afinal, para a felicidade de todos, a imensa maioria dos relacionamentos gera satisfação mútua60. Essa naturalidade também favorece a inserção contratual de elementos que em nada refletem a verdadeira intenção das partes.

Nesse sentido, no cotidiano forense, observa-se uma situação no mínimo curiosa. Sucede que a cláusula penal, tantas vezes utilizada na história para viabilizar o recebimento de indenizações manifestamente superiores ao dano, passa a constar nos contratos para reduzir significativamente a reparação do dano sofrido por uma das partes. Ou seja, a empresa lança mão da penal em favor do consumidor para limitar ao máximo sua responsabilidade, na hipótese de inadimplemento do pacto. A cláusula penal, nesses casos, em vez de reforçar o vínculo, constrangendo o devedor para o pontual adimplemento, serve-lhe de escudo para o atraso na prestação.

No Brasil, essa realidade parece ainda não ter sido identificada. Um passeio pela jurisprudência permite visualizar o seguinte argumento: quando o julgador se depara com cláusulas penais distintas na relação de consumo, busca a sua equalização, o que se dá com a redução da penal abusivamente fixada em favor do fornecedor. Nem sequer se cogita quanto à majoração da cláusula penal ínfima fixada em favor do consumidor e que atenua arbitrariamente a responsabilidade da empresa. É neste ponto que reside o equívoco.

59 Cláusula Penal e Indemnização, p.750. 60 A ponderação de ANTONIO PINTO MONTEIRO é oportuna: “Tratando-se de simples promessa a

cumprir no futuro, facilmente se será tentado a aceitar qualquer pena, ainda que se afigure excessiva, pois a possibilidade de se vir a incorrer nela surge como hipótese distante e remota. A natural inclinação para aceder, de forma ligeira, a uma cláusula penal que se destina a actuar somente no futuro – cuja aplicação efectiva não passa de mera eventualidade, e que, na maioria dos casos, quem se lhe submete o faz na ilusão de não vir a incorrer nela – favorece a outra parte na definição de sanções que podem mostrar-se especialmente gravosas e abusivas. Igualmente uma avaliação exagerada do dano previsível pode levar a que a liquidação antecipada se revele de todo inadequada a um fim indemnizatório”. Cláusula Penal e Indemnização, p.718.

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Imagine-se a hipótese em que a empresa construtora se compromete a indenizar o consumidor, em virtude do atraso da obra, em 0,4% mensais sobre a parcela dos valores pagos pelo comprador. Caso o saldo devedor seja corrigido por índice cuja variação supere o percentual acima referido, dependendo do caso, o débito do consumidor nem mesmo irá ser reduzido. Ao contrário, em razão do atraso alheio, será cada vez maior. A mesma quebra de isonomia e de equilíbrio ocorre quando o contrato prevê cláusulas penais em desfavor do consumidor calculadas sobre montante diverso daquele que é tido como parâmetro ao fornecedor. Ainda que o percentual seja idêntico, a incidência sobre maior ou menor valor de referência, logicamente, leva a resultados práticos distintos. Outra situação, e que pode ser ainda mais grave, é o estabelecimento de percentuais distintos para o inadimplemento de um e outro participante.

Em tais casos, normalmente, o que se observa é que a jurisprudência e a doutrina – no afã de proteger a parte hipossuficiente – postulam a redução da penal benéfica à empresa, na linha do Código Civil. Essa solução pode ser extremamente útil para o consumidor inadimplente. Mas é irrelevante – para não dizer ilegal e injusta – para o consumidor que se depara com o inadimplemento da contraparte. Para este cidadão, a melhor alternativa seria equilibrar a relação de consumo, mediante a majoração da cláusula penal desfavorável à empresa, pois é ela que irá lhe garantir a reparação do dano contratual experimentado.

Nos exemplos hipotéticos, o cotejo da diferença das cláusulas penais fixadas para o inadimplemento da empresa e do consumidor pode caracterizar a abusividade de qualquer uma das previsões. A cláusula penal poderá ser tida por irrisória ou excessiva, a depender do beneficiário e, principalmente, da realidade subjacente ao contrato. E em ambas as hipóteses, a nosso sentir, podem ser reavaliadas pelo juiz, à luz dos princípios que guiam o Código de Defesa do Consumidor, pois o norte é o equilíbrio61.

61 “Agravo regimental. Agravo de instrumento. Recurso especial. Contrato de financiamento de imóvel.

Rescisão contratual. Cláusula penal. Percentual a ser retido pelo promitente vendedor. I – É abusiva a cláusula que fixa a multa pelo descumprimento do contrato com base não no valor das prestações pagas, mas no valor do imóvel, onerando demasiadamente o devedor. II – Em caso de resilição unilateral do compromisso de compra e venda, por iniciativa do devedor, é permitida a retenção de 25% do valor das prestações pagas, pela alienante, a título de ressarcimento com as despesas administrativas do contrato. Agravo improvido” (AgRg nos EDcl no Ag 664744/MG, Rel. Min. Sidnei Benetti. DJE: 11.09.2008).

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Não custa lembrar que, entre as cláusulas tidas por abusivas no catálogo do diploma, encontram-se aquelas que “atenuam ou exoneram a responsabilidade do fornecedor” (art. 51, I, do CDC), bem como aquelas que estabeleçam “obrigações consideradas iníquas e abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade” (art. 51, II, do CDC), pois é vedado ao fornecedor “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva” (art. 39, V, do CDC). É direito básico do hipossuficiente “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais” (art. 6, V, do CDC).

Ainda na linha do Código, reputam-se exageradas as vantagens ao fornecedor quando ofendidos os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; restringidos direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; e ocasionarem onerosidade excessiva para o consumidor, considerando-se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso (art. 51, § 1°, do CDC).

Por fim, tampouco se deve olvidar que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”, conforme art. 47 do CDC e o art. 423 do CCB62. A interpretação benévola não indica, a priori, a redução do montante excessivo ou a majoração da penal irrisória, pois a solução irá depender do comportamento do consumidor na dinâmica obrigacional.

Da análise das normas citadas, conclui-se que é justamente o equilíbrio mínimo que deve guiar o intérprete na revisão da cláusula penal, quer para reduzi-la, quando abusiva, quer para majorá-la, quando ínfima. Trata-se de duas faces da mesma moeda, que afetam o equilíbrio da relação obrigacional e autorizam a revisão judicial63.

62 Art. 423 do CCB: “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias,

dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. Mais ampla é a diretriz do Código Civil da Argélia, quando apresenta uma norma geral para guiar a atividade do juiz diante de contrato de adesão: Art. 110: “Lorsque le contrat se forme par adhésion, le juge peut, si le contrat contient des clauses léonines, modifier ces clauses ou en dispenser la partie adhérente et cela, conformément aux règles de l’équité. Toute convention contraire est nulle”.

63 Sobre o trabalho do jurista na identificação da função efetiva dos institutos, refere TULLIO ASCARELLI: “Non è inutile pel giurista passare a volte a considerare la funzione assolta dall´istituto giuridico nella realtà di un luogo e di una epoca determinata. Sarà così condotto fuori da quella considerazione formale e strutturale che è tipica della scienza giuridica per entrare

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Essa coerência reclamada, a partir da realidade social e da abstração da norma, leva à conclusão de que, em sede de relação de consumo, não apenas a redução da penal excessiva vai autorizada, mas também a majoração da indenização ínfima. Encontra-se, assim, outra via de mão dupla no Código, a merecer a devida atenção do intérprete.

II – CONCLUSÕES

O instituto da cláusula penal está presente na grande maioria dos sistemas contemporâneos e desempenha importantes funções no direito obrigacional, como o estímulo ao adimplemento e a quantificação forfataire. A interpretação do regramento da cláusula penal brasileira deve levar em conta os princípios que orientam o direito contratual, a saber: autonomia privada, boa fé objetiva, relatividade de efeitos e função social do contrato, bem como o equilíbrio.

O norte do sistema, ao autorizar a redução da penal excessiva, é alcançar um mínimo de equilíbrio no panorama obrigacional, protegendo o contraente do abuso no exercício jurídico alheio. Este escopo não vem sendo atingido quando, no debate judicial, o magistrado se depara com cláusulas penais ínfimas, que atenuam ou afastam a responsabilidade de uma das partes, especialmente na relação de consumo.

Tanto a penal excessiva quanto a ínfima podem afetar o equilíbrio do contrato. A primeira, porque premia o credor com o recebimento de indenização manifestamente superior àquela que seria devida pelo critério

invece nel campo storico e sociologico, ma questa escursione non gli sarà inutile per un miglior apprezzamento della realtè sociale anche dal punto di vista giuridico. Chè altrimenti il giurista corre il rischio de venir meno al suo compito che è poi quello dell´applicazzione di un corpus juris costituito a una realtà continuamente mutevole e perciò necessariamente suppone non solo la conoscenza di detta realtà, ma la conoscenza del modo come in essa operino, di fatto, le varie forme, della funzione effettivamente assolta dai vari istituti. Chè questi, sembre inutile ricordarlo, assolvono con frequenza una funzione diversa da quella tipica alla quale si ispira la loro struttura ed è logicamente la funzione effetivamente assolta e non quella tipica, l´elemento fondamentale nella realtà storica e il punto di partenza nell´apprezzamento critico. Qualunque sistema giuridico, nella varietà degli elementi diversi e contrastanti che lo compongono e che lo sforzo dell´interprete mira a ordinare in un sistema coerente, rappresenta sempre, entro certi limiti, uno schema tramandato – seppure a volte da pochi anni – che si contrapponde a una realtà perennemente mutevole. C´è perciò sempre come una tensione tra qualunque sistema giuridico e la realtà sociale; perciò tra qualunque sistema giuridico dato e la sua effetiva applicazione; tra la struttura e la funzione tipica in un istituto, da un lato, e la sua funzione reale e effettiva, dall´altro”. Funzione Economiche e Istituti Giuridici, p.83-84. Saggi Giuridici. Disponível em: <http://www.scribd.com>. Acesso em: 10 jul. 2010.

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da previsibilidade do dano. A segunda, na medida em que atenua ilicitamente a responsabilidade do devedor, privando o credor de seu legítimo interesse.

A partir da incidência do Código de Defesa do Consumidor, o qual consagra o equilíbrio mínimo como valor fundamental nas relações de consumo, lícito se mostra ao juiz majorar a penal ínfima estabelecida em desfavor da empresa, para oferecer ao consumidor adimplente uma tutela eficaz. A cláusula penal, tal como qualquer outro elemento do contrato, possui funções conhecidas na história do direito, não servindo para encobrir o abuso, o qual se dá pela sua manifesta desproporção com o dano oriundo do inadimplemento, quer para mais, quer para menos.

III – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A PRESCRIÇÃO NA JUSTIÇA DO TRABALHO APÓS A EMENDA

CONSTITUCIONAL Nº 45 ANDRÉ BARUFFI*

Resumo: A entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45 reformou o sistema judiciário brasileiro, trazendo mudanças significativas na competência da Justiça do Trabalho, através da nova redação atribuída ao artigo 114 da Constituição Federal. Essa alteração designou à Justiça do Trabalho as ações resultantes da relação de trabalho, e não mais apenas da relação de emprego, como referia a antiga redação do mencionado artigo. Portanto, ações indenizatórias de Responsabilidade Civil, que antes eram processadas e julgadas na Justiça Comum, com ritos e prazos processuais diferentes, passaram a ser, após a Emenda nº 45, de competência da Justiça do Trabalho. Em decorrência disto, surgem dúvidas quanto ao prazo prescricional a ser aplicado nessas ações, uma vez que tais ações estão previstas em um ordenamento civil com um prazo prescricional maior que o utilizado na Justiça do Trabalho.

Palavras-chave: Emenda Constitucional 45. Competência. Constituição Federal. Prescrição. Justiça do Trabalho.

Abstract: The entry into force of the Constitutional Amendment Number 45, reformed the Brazilian judicial system, bringing significant changes in the jurisdiction of the Labor Court, through the new wording given to Article 114 of the Federal Constitution. This alteration, appointed to the Labor Court the arising actions from the work relationship, and no more only the employment relationship, as referred to the former wording of that Article. Therefore, action for damages in civil liability, which were previously processed and adjudicated in State

* Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho – IMED – Passo Fundo/RS.

Advogado. Sócio Administrador do Escritório Baruffi & Mello Advogados Associados.

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Courts, with rites and various procedural time, became, after the amendment number 45, Jurisdiction of the Labor Court. As a consequence, there is concern about the time limitation to be applied to these actions, since such actions are provided in a planning civil with a limitation period greater than that used in the Labor Court.

Keywords: Constitutional Amendment 45. Competence. Federal Constitution. Prescription. Labor Court.

1 – INTRODUÇÃO

Com as alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, surgiu uma nova competência para a Justiça do Trabalho, e, entre as mudanças ocorridas, foi conferida competência a Justiça do Trabalho para processar e julgar ações de danos materiais e morais decorrentes da relação de trabalho. Porém, a nova competência, além de ampliar o campo de atuação da Justiça do Trabalho, trouxe também dúvidas quanto a alguns temas.

As ações de caráter indenizatório, de responsabilidade civil, sempre foram julgadas e processadas na justiça comum, e sempre foram tratadas como matérias do direito civil. Porém, com a entrada em vigor da EC 45, mudando a competência de tais ações para a Justiça do Trabalho, é que se pergunta sobre qual prazo prescricional utilizar nessas demandas. Busca, assim, o presente artigo, de forma simples e objetiva, resolver a questão levantada.

Assim, foram abordadas sucintamente as novas mudanças trazidas pela aludida emenda no que tange à competência da Justiça do Trabalho e suas alterações no artigo 114 da Constituição Federal.

Dentro das mudanças trazidas pela EC 45, no âmbito da nova competência atribuída à Justiça do Trabalho, fez-se necessário estabelecer as diferenças entre a relação de emprego e a relação de trabalho, bem como a caracterização de danos decorrentes de acidente de trabalho.

Examinando a nova competência para processar e julgar as ações de natureza indenizatória, de responsabilidade civil decorrente de relação de trabalho, iniciou-se uma abordagem sobre a existência de dúvidas quanto qual prescrição utilizar para tais demandas, uma vez que se trata de matéria de direito privado, que está incrustada em um ordenamento jurídico de

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cunho privado, sendo de competência trabalhista estatal. Portanto, indaga-se sobre a aplicação da prescrição civil prevista no art. 206, b, § 3º, do Código Civil ou a prescrição trabalhista fundada no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal.

Por fim, faz-se uma análise sobre o instituto da prescrição, das correntes existentes quanto sua aplicação nas demandas da nova competência trabalhista, de cunho indenizatório, de responsabilidade civil. E, ainda, uma análise jurisprudencial, colacionando jurisprudências relativas à prescrição aplicada.

Ao final, encontra-se o posicionamento adotado, bem como as razões e sua fundamentação.

2 – A NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO

Antes de adentrar ao foco principal do presente artigo, se faz necessário trazer uma breve síntese sobre as alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, acerca da nova competência outorgada à Justiça do Trabalho.

A tão aguardada Reforma do Judiciário, que veio a ocorrer em dezembro de 2004, teve amplas repercussões sobre a competência material da Justiça do Trabalho. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 114, dispunha, ao fixar a competência da Justiça do Trabalho, que: “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregados, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”.

Com o novo texto constitucional, alterado pela Reforma do Judiciário em 2004, através da Emenda Constitucional nº 45, o artigo 114 foi alterado para:

“Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar;

I – as ações oriundas da relação de trabalho;

(...);

IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.”

Assim, com a nova redação atribuída ao artigo 114 da Constituição Federal, houve uma grande e significativa mudança entre a nova e a velha redação do texto constitucional, em especial no que se refere à competência

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material natural, que não mais se limita a conhecer e a julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, incluindo os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Portanto, a Justiça do Trabalho tornou-se o juízo natural para o qual devem afluir todos os conflitos decorrentes do trabalho pessoal prestado a outrem, subordinado, ou não, assim como diversas lides conexas decorrentes da exceção de um contrato de emprego, não havendo mais limitação, que anteriormente requeria que o dissídio ocorresse entre patrões e empregados.

Segundo evidencia SILVA (2005, p. 53): “Preliminarmente deve ficar claro que a Reforma da competência tem natureza formal. O direito material, que a ela se submete, permanece intocado”.

Segue o referido doutrinador ensinando que é “uma reforma do telhado e não dos pilares da construção jurídica que se pretende mudar. Os grandes problemas do direito material do trabalho permanecem sem solução”(2005, p. 53).

Conforme a nova redação outorgada ao artigo 1141 da Constituição Federal, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações provenientes das relações de trabalho.

1 I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da

administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

II – as ações que envolvam exercício do direito de greve; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

III – as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

IV – os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

V – os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

VII – as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

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De acordo com a Emenda Constitucional nº 45, a competência da Justiça do Trabalho foi consideravelmente aumentada. A Justiça do Trabalho, que, na redação originária do texto constitucional, era competente para processar e julgar os conflitos resultantes da relação de emprego, passou a ser, com a reforma, competente para processar e julgar os conflitos resultantes da relação de trabalho. Então, as ações de natureza privada, como as ações de danos morais ou materiais, que estão previstas no Código Civil, passaram a ser de competência da Justiça do Trabalho.

No entendimento de SILVA (2005, p. 55), “mesmo deslocando-se o eixo da competência trabalhista do trabalho subordinado para a relação de trabalho, foi bem modesta a novidade do atual art. 114 da CF, com redação da EC. 45/04”.

Ainda, garante o autor aludido acima, que “a maioria dos seus dispositivos é instrumental da relação individual de trabalho, para dar-lhe maior eficiência, ou dizem respeito a controvérsias, que já estavam consolidadas na jurisprudência ou poderiam ter sido por ela mesma introduzidas” (2005, p. 55).

Nesse sentido, SILVA (2005, p. 57) nos ensina que:

“O aumento da competência, ao contrário do afirmado, integra o Direito do Trabalho na problemática que o fator ‘trabalho’ enfrenta nos dias atuais. Se a relação de emprego ainda é predominante, há sólidos motivos para crer em sua preconização. A concorrência com outros tipos de prestação de trabalho é evidente. O fenômeno é mundialmente conhecido e reconhecido. Portanto, a unidade do Direito do Trabalho se há de fazer ampliando, nunca restringindo seus objetivos.”

Como se observa, o mais importante da nova competência da Justiça do Trabalho trazida pela Emenda Constitucional 45 é a ampliação da competência que se restringia à relação de emprego para a nova competência, que traz a relação de trabalho.

Ocorre que, com tal ampliação, passou-se a processar e a julgar na Justiça do Trabalho matérias que sempre foram processadas e julgadas na Justiça Comum, o que veio gerar grandes dúvidas no campo jurídico.

Desse modo, com a nova competência da Justiça do Trabalho, as ações indenizatórias de responsabilidade civil, que antes eram processadas e julgadas pela Justiça Comum, por Juízes de Direito, passaram a ser

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processadas e julgadas por Juízes Trabalhistas, que até então não tinham apreciado o mérito desse tipo de ação. E sendo a responsabilidade civil prevista num ordenamento jurídico de caráter privado e não público como o direito do trabalho, ocasiona discussão sobre qual a prescrição a ser aplicada.

Mas para ajuizar uma ação de cunho indenizatório, ou seja, uma ação de responsabilidade civil, tem de haver uma relação de emprego, que consiste na subordinação do empregado ao empregador em um contrato individual de emprego. Diz-se que por isso sua subordinação é total, que está inserida no próprio conteúdo do contrato, possibilitando a qualificação de subordinação jurídica e a mudança mais significativa trazida pela Emenda Constitucional 45, a ampliação do rol de relações de trabalho submetidas ao seu julgamento.

A nomenclatura “relação de trabalho”, que foi acrescentada ao artigo 114 da Constituição Federal através da EC nº 45/04, provocou grande tumulto no meio jurídico, tendo em vista a significativa ampliação da competência da Justiça do Trabalho, uma vez que na sua redação original (anterior à emenda) o artigo 114 da Constituição Federal se referia apenas a empregados. O papel do Judiciário Trabalhista a partir das mudanças provocadas pela Emenda Constitucional n° 45/2004 é o de pacificar todos os conflitos decorrentes de todo e qualquer trabalho humano, sem distinção entre o emprego formal e o trabalho; as expressões relação de trabalho e relação de emprego não são sinônimas, sendo essa a diferença fundamental para a significativa ampliação da competência trabalhista.

Hoje, existem relevantes diferenças entre relação de trabalho e relação de emprego. Sendo que uma tem caráter genérico, pois se refere a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano.

Dessa forma, a expressão “relação de trabalho” traduz o gênero a que se acomodam todas as formas de contratação e pactuação de trabalho existentes no mundo jurídico de agora, ou seja, todo e qualquer trabalho que possui como objeto o emprego de energia humana para realização de determinado fim em proveito de determinado destinatário.

Perante isso, a expressão “relação de trabalho” compreende os chamados contratos de atividade, que são todos aqueles que apresentam um ponto em comum, ou seja, o objeto de todos eles consiste na utilização da energia humana e pessoal de um dos contratantes em proveito do outro.

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Para GOMES (1996, p. 87):

“A expressão ‘trabalho’, se utilizada de forma genérica como objeto de uma relação contratual, pode levar à confusão terminológica com o que se convencionou chamar de contratos de atividade, que são aqueles caracterizados pelo fato de um dos contratantes aplicar sua atividade pessoal na consecução de um fim desejado pelo outro.”

Ainda nos dizeres de GOMES, são consideradas relações de trabalho, entre outras, a empreitada, a locação de serviços, o trabalho prestado por profissional liberal, o trabalho avulso, a parceria rural, o trabalho eventual e o autônomo, o temporário, a representação comercial autônoma, o trabalho do servidor público e o trabalho do empregado, mas para caracterizar essa relação é imperativa a presença de quatro elementos que são indispensáveis para configurar a relação de emprego, prossegue o autor (1996, p. 89):

[...] a Pessoalidade; porque o contrato de emprego é estabelecido intuito personae, a Onerosidade; o contrato de trabalho subordinado, definitivamente não é gratuito, devendo haver sempre uma contraprestação pelo trabalho prestado; [...] a não eventualidade, ou seja, a habitualidade na prestação laboral, para a presença desse elemento, não se exige o trabalho em todos os dias da semana, mas, sim, com uma periodicidade razoável e a subordinação, que se trata do estado em que se coloca o empregado perante o empregador, quando, por força do contrato individual, põe sua energia pessoal à disposição da empresa para a execução dos serviços necessários aos seus fins.”

Compreendidos os elementos para a caracterização do vínculo de emprego, se vê quem são os sujeitos dessa relação, ou seja, empregador e empregado; a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 2°2, considera empregador a empresa individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços, e, no seu artigo 3°3, considera empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

2 Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da

atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. 3 Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual

a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

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Inexistindo essa relação de causa e efeito entre o acidente e o trabalho, não se poderá falar em acidente do trabalho. Mesmo que haja lesão, mas que esta não venha a deixar o segurado incapacitado para o trabalho, haverá direito a qualquer prestação indenizatória (GOMES, 1996).

E sendo essa indenização, como, por exemplo, decorrente de acidente de trabalho, sua definição, conforme o artigo 2º da Lei nº 6.367, de 19 de outubro de 1976, é: “Acidente do trabalho é aquele que ocorrer pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou perda, ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”.

Integra o conceito de acidente o fato lesivo à saúde física ou mental, o nexo causal entre este e o trabalho e a redução da capacidade laborativa.

A lesão é caracterizada pelo dano físico anatômico ou mesmo psíquico. A perturbação funcional implica dano fisiológico ou psíquico nem sempre aparente, relacionada com órgãos ou funções específicas. Já a doença se caracteriza pelo estado mórbido de perturbação da saúde física ou mental, com sintomas específicos em cada caso (GOMES, 1996).

Assim, com a nova definição concedida pela Lei nº 8.213/91, temos o artigo 19 deste Diploma Legal, in verbis:

“Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.”

E o que vem a ser esse dano? Dano é prejuízo, é diminuição de patrimônio ou detrimento de afeições legítimas. Todo ato que diminua ou cause menoscabo aos bens materiais ou imateriais pode ser considerado dano. O dano é o mal, um desvalor contra valor, algo que se padece com dor, posto que diminua e reduza; tira algo que era de alguém, e se queria aproveitar, que era nossa integridade psíquica ou física, as possibilidades e acréscimos com novas incorporações.

Cabe ressaltar as diferenças entre danos morais e materiais: o dano patrimonial atinge a vítima em seu patrimônio, que pode ser medido financeiramente, enquanto o dano moral atinge a vítima em seu bem-estar, em seus sentimentos mais íntimos.

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Quando o dano decorre de acidente de trabalho, o operário vitimado pode, excepcionalmente, somar o valor da indenização conferida pela legislação de infortunística com a indenização de Direito Comum, regida pela responsabilidade civil.

É preciso que, para a existência do acidente do trabalho, exista um nexo entre o trabalho e o efeito do acidente. Esse nexo de causa/efeito é dúplice, pois envolve o trabalho, o acidente, com a consequente lesão, e a incapacidade resultante da lesão. Deve haver um nexo causal entre o acidente e o trabalho exercido.

As questões de prova do dano, ônus decorrente e culpa, para estabelecimento de nexo causal, são especificadas por MARTINS (1999, p. 388):

“Esse direito à indenização decorre da iniciativa da parte interessada, sem a iniciativa do Estado em promover tal processo, então o dano a ser indenizado decorria da demonstração de culpa e havia necessidade de se estabelecer a prova do dano, quem o tinha cometido, se havia nexo entre o dano e a falta. A teoria da culpa era aplicada na Inglaterra em 1837. No Brasil, antes da Lei nº 3.724, de 15.01.1919, adotava-se a teoria da culpa. Poder-se-ia dizer que o ônus da prova era de incumbência das vítimas, caso pretendessem receber indenizações, tendo por base a culpa do empregador, comprovada a negligência, imprudência ou imperícia do último. Aplicava-se, na verdade, o art. 159 do Código Civil, no sentido de que aquele que por ação ou omissão causasse prejuízo a outrem ficava obrigado a reparar o dano. Na prática, o acidentado não conseguia provar a culpa do empregador, ficando totalmente desamparado em razão do infortúnio.”

Entendendo-se por relações de emprego somente o período da vigência do contrato de trabalho, excluindo as demais fases, em que pese não ser este o entendimento da maioria dos doutrinadores, pois se trata de um fato de natureza extracontratual, portanto sujeito às regras do Código Civil.

O artigo 8º, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho prevê que o direito comum será fonte subsidiária do Direito do Trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste, o que possibilita a aplicação de prazo prescricional, diverso da CLT.

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A fixação da competência da Justiça do Trabalho para julgar conflitos decorrentes do acidente do trabalho, no qual a parte requer indenização, por dano moral e/ou material, nas ações de natureza civil, gera para os operadores do direito divergência acerca da prescrição a ser utilizada nessas ações, se deverá utilizar-se da prescrição civil ou da prescrição trabalhista.

Visto de uma forma breve e sucinta a nova competência trabalhista, passo a discorrer acerca de quais os prazos prescricionais utilizados e quais as correntes doutrinárias existentes com relação ao prazo prescricional a ser aplicado no processo trabalhista.

3 – A APLICAÇÃO DA PRESCRIÇÃO, OS PRAZOS PRESCRICIONAIS APLICÁVEIS E O POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL

O exercício de um direito pelo detentor deste não pode ficar por tempo indeterminado em aberto; esse direito tem de ter um prazo para ser exercido, caso contrário se criaria uma instabilidade sociojurídica. Para que isso não ocorra, existe no direito o instituto da prescrição, que num primeiro momento parece proteger o devedor de cumprir com uma obrigação, mas se faz de grande necessidade para a estabilidade das relações jurídicas. O antigo Código Civil de 1916 foi, até 2002, o grande norteador da prescrição das ações de natureza privada no Brasil, porque no tempo de sua vigência o país teve cinco Constituições, vivendo um período de instabilidade política e jurídica até a promulgação de sua última Constituição, a de 1988, que trata da prescrição no seu artigo 7°, inciso XXIX. O antigo Código Civil tinha um prazo prescricional de 20 anos para tais ações (artigo 177). Com a promulgação da Lei 10.406 em 10.01.2002, a qual instituiu o novo Código Civil, o prazo prescricional foi reduzido significativamente para três anos, (artigo 206, b, § 3°), mas manteve os prazos do Código anterior se na data de sua entrada em vigor já houvesse transcorrido metade do tempo estabelecido na lei anterior, regra de transição do artigo 2.028 do novo Código Civil.

A prescrição extingue diretamente a ação e com ela o direito que a protege. A prescrição tem por objeto a ação para reclamar esse direito. Estabelece-se em relação a esta ação e tem por função imediata extingui-la. Portanto, a prescrição é a perda do direito de ação por quem não exerceu no devido tempo o seu direito e a prescrição não tem o seu início com o nascimento do direito, e sim quando esse é violado, ameaçado ou desrespeitado. Porque, nesse momento, nasce o direito de ação, contra a

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qual a prescrição se dirige. A prescrição supõe um direito nascido efetivo, mas que pereceu pela falta de ação contra a violação sofrida.

Pode-se dizer que prescrição é o reconhecimento da modificação sofrida pelo direito do detentor deste, em virtude de sua inércia durante um certo período de tempo (MARTINS, 2007).

Para MARTINS (2007, p. 125), “são prescritíveis todas as ações que têm por finalidade defender o direito do titular contra as modificações por ele sofridas em virtude de um fato posterior ao seu nascimento, atribuindo a um ato ou omissão por parte de outrem”.

Portanto, é deste fato que vem nascer a ação do titular, sendo que é o ponto de partida da inércia deste, do qual começa a contar o prazo prescricional (MARTINS, 2007).

Para a análise do instituto da prescrição no Direito Trabalhista, devem ser vistos e levados em consideração os princípios e as peculiaridades que o cercam, a subordinação do trabalhador perante o empregador, ou seja, diferente dos outros ramos do Direito, portanto, a interpretação deve ser feita em favor do trabalhador hipossuficiente e não contra o mesmo. Não se deve esquecer o princípio da norma mais favorável, que ainda vigora até hoje no direito do trabalho.

A prescrição trabalhista também implica a perda de um direito e, por consequência, o direito de ação; como no direito civil a diferença ocorre quanto aos prazos e quanto ao momento de alegação, a doutrina trabalhista diverge nesse sentido.

Segundo MARTINS (2007, p. 125), “é da violação ao direito que nasce ao seu titular a respectiva pretensão (actio nata)”.

Existem duas correntes, ou duas teorias predominantes, em relação a qual prazo prescricional aplicar nas ações indenizatórias de responsabilidade civil na Justiça do Trabalho, ou seja, ações que buscam indenizações por danos morais e materiais.

A primeira corrente doutrinária traz o posicionamento de que a prescrição a ser aplicada nas ações indenizatórias de responsabilidade civil na Justiça do Trabalho é a prevista no inciso XXIX do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, sendo que o referido artigo dispõe que a “ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o

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limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho” (MARTINS, 2007).

Ou seja, o trabalhador urbano ou rural possui dois anos para ajuizar a ação contados do término do contrato de trabalho (MARTINS, 2007).

Já a segunda corrente doutrinária traz o posicionamento de que a prescrição a ser aplicada nas ações indenizatórias de responsabilidade civil na Justiça do Trabalho é a prescrição contida no Código Civil, sendo que na vigência do Código de 1916 a prescrição era de 20 anos (art. 177) e no novo Código Civil de 2002, a prescrição é de três anos (art. 206 § 3º), isso por se entender que a indenização é de matéria civil (MARTINS, 2007).

O atual Código Civil, que em comparação com o seu antecessor, o Código de 1916, encurtou, e muito, os prazos prescricionais, fazendo parcecer, à primeira vista, mais interessante a prescrição contida no inciso XXIX do art. 7º da Constituição Federal de 1988. Assim, diz-se que a partir do Código Civil de 2002 o prazo prescricional é de três anos, conforme o caso.

Sendo assim, essas ações eram então previstas no Código Civil, sendo julgadas e processadas na justiça comum, sem grandes divergências acerca de sua prescrição. Ocorre que com a vigência da Emenda Constitucional n° 45, houve uma mudança da competência dessas ações; se decorrentes de uma relação de trabalho, passam a ser processadas e julgadas pela Justiça do Trabalho, que tem uma prescrição menor, de dois anos após o término do contrato de trabalho, o que vem ocasionando uma discussão sobre o prazo prescricional para o empregado reclamar danos sofridos. Surgem, assim, as duas principais correntes acima descritas sobre a prescrição a ser utilizada nessas ações.

A título de conhecimento, faz-se importante salientar a existência de duas outras correntes, porém sem muita credibilidade jurídica, sendo elas:

A corrente que sustenta a imprescritibilidade de tais pretensões, uma vez que decorrem as mesmas de danos aos direitos da personalidade, que são caracteristicamente imprescritíveis. E a outra corrente sustenta ser aplicável o prazo genérico de 10 anos, previsto do art. 205 do Código Civil, para as pretensões sem prazo específico fixado na lei.

Porém, para este trabalho, contemplamos a corrente que prevê a prescrição do inciso XXIX do art. 7º da Constituição Federal de 1988 e a

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corrente que defende a utilização da prescrição contida no art. 206, inciso 3º, do Código Civil.

Para entendermos melhor a aplicação dos prazos prescricionais, assistimos ao que a jurisprudência nos diz a respeito do assunto.

A jurisprudência trabalhista está dividida quanto ao assunto; em alguns casos, tem decidido em favor do prazo prescricional do Código Civil nas ações de indenização, conforme os acórdãos a seguir retirados do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul:

“Acórdão do Processo nº 01155-2005-401-04-00-3 (RO)

Data de Publicação: 21.03.2007

Fonte: Diário Oficial do Estado do RGS – Justiça

Juíza Relatora: Tânia Maciel de Souza

Ementa: Indenização por dano moral e material. Prescrição. O prazo prescricional será de vinte anos (artigo 177 do CCB/1916), para as lesões ocorridas antes da vigência do novo código, bem como a partir da vigência do novo Código Civil (11.01.2003) quando transcorrida mais da metade deste tempo, conforme disposto no art. 2.028 do Código Civil de 2002. Hipótese em que a prescrição aplicável é de 20 anos. Recurso do reclamante provido. (...).”

Na decisão supracitada, foi utilizado o prazo prescricional civil do artigo 206 do Código Civil para declarar não extinto o direito à indenização do Reclamante.

Mas a jurisprudência não é unânime sobre o assunto; algumas decisões consideravam apenas o prazo do artigo 206 do novo Código Civil, outras, conforme os acórdãos. A seguir, em outro acórdão, a decisão em 1º grau foi com base na prescrição bienal trabalhista:

“Acórdão do Processo nº 00487-2005-831-04-00-5 (REO/RO)

Data de Publicação: 18.10.2006

Fonte: Diário Oficial do Estado do RGS – Justiça

Juiz Relator: José Felipe Ledur

Ementa: Prescrição total do direito de ação. Acidente de trabalho. À época do alegado acidente de trabalho vigia o art. 177 do CC/1916, que previa o prazo de vinte anos para a prescrição de ações pessoais. Sobrevindo o novo Código Civil, o prazo prescricional foi

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reduzido para três anos. Considerando que o novo CCB, em razão da vacatio legis, passou a viger em 12.01.03, a pretensão do autor não foi atingida pela prescrição trienal, pela impossibilidade de se aplicar retroativamente a norma. Invoca-se a Súmula 50 da Jornada de Direito Civil do STJ, de setembro de 2002. Prevalência do entendimento acerca das regras da prescrição do Código Civil, com interpretação dada pelo STJ. Recurso provido para afastar a prescrição total do direito de ação, determinando-se o retorno dos autos à origem para o julgamento do mérito da demanda. Vistos e relatados estes autos, oriundos da Vara do Trabalho de Santiago, em Remessa Ex Officio e Recurso Ordinário, sendo recorrente Auri Ferreira da Silva e recorrido Município de São Francisco de Assis. Inconformado com a sentença que extinguiu o processo com julgamento do mérito, em decorrência da declaração de prescrição, o reclamante apresenta recurso ordinário. Em suas razões de recurso ordinário das fls. 128-38 busca afastar a prescrição declarada em relação ao pedido de indenização decorrente de acidente do trabalho e requer o retorno dos autos à origem para instrução do feito. Sem contrarrazões, os autos são remetidos ao Tribunal para julgamento. O Ministério Público do Trabalho, em parecer das fls. 145-6, opina pelo provimento do recurso. É o relatório. Isto posto: Prescrição. Acidente do trabalho. A sentença declarou a prescrição total do direito de ação e extinguiu o processo com julgamento do mérito, porque transcorridos mais de dois anos entre o acidente de trabalho e o ajuizamento da ação, considerando tratar-se de contrato em curso (sic). O reclamante não se conforma. Argumenta que a regra geral do art. 7º (...)” (TRF4 23.04.2007).

No mesmo sentido temos:

“Acórdão do Processo nº 00397-2005-831-04-00-4 (RO)

Data de Publicação: 02.03.2007

Fonte: Diário Oficial do Estado do RGS – Justiça

Juiz Relator: Leonardo Meurer Brasil

Ementa: Prescrição. Ação de indenização. A prescrição aplicável às ações de reparações de danos, oriundas da Justiça Comum, por força da Emenda Constitucional nº 45/2004, é a prevista no Código Civil Brasileiro. Recurso provido. (...).”

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Aqui, novamente, foi mantido o prazo civil do artigo 206, ou seja, a mudança de competência não ocasionou a mudança do prazo prescricional da ação indenizatória.

Nesse caso, o Juiz de 1º grau considerou prescrito o direito de ação do Reclamante, tendo em 2º grau sido reformada a decisão e aplicado o prazo civil novamente.

Em outras decisões, tem-se aplicado a prescrição trabalhista, como no acórdão a seguir:

“TRT-PR 16.10.2006. Prescrição. Ação de indenização por acidente do trabalho ou doença profissional ajuizada na Justiça Comum. Migração dos autos à Justiça do Trabalho com o advento da Emenda Constitucional 45/04. Regra de transição. Nos feitos em que o ajuizamento ocorreu perante a Justiça comum e que, por força da ampliação da competência da Justiça do Trabalho, por esta serão julgados, regem-se pela regra de transição do Código Civil de 2002. De acordo com o art. 2.028 daquele diploma, se decorreu menos da metade do prazo prescricional da lei anterior, aplica-se o prazo da lei nova, contado a partir da data de sua vigência. Não faria sentido pronunciar a prescrição do direito de ação – e, assim, classificar de negligente aquele que, na verdade, diligenciou em tempo a busca de seus direitos – especialmente porque, quando do ajuizamento da ação, ainda persistiam sérias dúvidas quanto à nova competência material. Haveria, ainda, afronta às regras de direito intertemporal que tratam da incidência da lei nova. De toda sorte, nas ações ajuizadas na Justiça do Trabalho após a edição da EC 45/04, aplica-se o critério de contagem da prescrição trabalhista. Recurso do autor a que se nega provimento para manter o decreto de prescrição, em razão do ajuizamento perante a Justiça do Trabalho TRT-PR-99513-2005-668-09-00-7-ACO-29199-2006 – 2ª. Turma. Relatora: Marlene T. Fuverki Suguimatsu. Publicado no DJPR em 16.10.2006” (TRT4 26.04.2007).

No seguinte acórdão, a utilização da prescrição civil foi tratada como forma de conveniência da parte, tratando a ação de indenização como matéria trabalhista e, com isso, utilizando a prescrição trabalhista.

A divergência acerca de tal tema é grande na jurisprudência; fazendo uma breve análise jurisprudencial, observam-se divergências quanto ao prazo prescricional aplicável às ações de indenização de responsabilidade

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civil. Contudo, somente o caso concreto trará uma resposta à lide e a prescrição aplicável ao caso.

Aqui, observa-se a utilização do prazo prescricional trabalhista para a ação de indenização do Reclamante em virtude da mudança de competência para a Justiça do Trabalho.

“TRT-PR 05.05.2006. Dano moral decorrente de acidente de trabalho. Inaplicabilidade da prescrição vintenária prevista no artigo 177 do CCB. Incidência da regra geral sobre prescrição trabalhista. Incabível a aplicação do prazo prescricional de 20 anos previsto no artigo 177 do CCB, atualmente de 10 anos, segundo o disposto no artigo 205 do nCCB, porquanto o pedido de indenização por dano moral, passível de julgamento nesta Justiça Especializada, é aquele decorrente da relação de emprego. Eventuais créditos de natureza indenizatória sujeitam-se aos princípios e normas próprias ao Direito do Trabalho, inclusive no que se refere ao prazo prescricional. Não se pode, sob pena de evidente contradição, reconhecer a competência da Justiça do Trabalho para decidir acerca da questão sob o fundamento de que a lesão ‘decorre da relação de trabalho’, e, ao mesmo tempo, se deixar de reconhecer o prazo prescricional previsto para as demandas trabalhistas sob o argumento de que se trata de ‘tema civilista’. Tal pretensão, data venia, não encontra amparo nem no Direito nem na lógica, pois, em última análise, o que se estaria autorizando seria o ‘aproveitamento/adequação’ de normas sobre competência/prescrição, segundo a mera conveniência da parte. Ou, dito de outro modo, quando à parte aprouvesse, o mesmo fundamento jurídico (natureza jurídica da demanda – origem trabalhista) seria utilizado para atrair ou afastar a incidência de determinadas regras sobre determinadas matérias. O ordenamento, sem embargo, não dá guarida a tal linha de raciocínio. TRT-PR-19507-2004-016-09-00-5-ACO-12806-2006. Relatora: Sueli Gil El-Rafihi. Publicado no DJPR em 05.05.2006” (TRT4 26.04.2007).

Nas ações de cunho indenizatório de responsabilidade civil, os juízes da Justiça do Trabalho têm julgado com base na responsabilidade civil do empregador. Sendo assim, tratam essas ações como de natureza privada, apesar de sua nova competência, e utilizam a prescrição do Código Civil de

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três anos, para ações novas, e utilizam a regra de transição do artigo 2.028, para as ações mais antigas, afastando assim a prescrição bienal do Direito do Trabalho. Os advogados quando ajuizarem uma ação de indenização por dano moral e material utilizam o prazo civil por também tratarem essas ações com base na responsabilidade civil do empregador, mas, como visto anteriormente, a divergência jurisprudencial, quanto ao assunto, ainda é grande em alguns Estados.

Entretanto, outros Estados ainda divergem quanto ao assunto. Nos acórdãos do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, utiliza-se bastante a prescrição trabalhista nas ações de cunho indenizatório de responsabilidade civil; a aplicação da prescrição civil pelos juízes da Justiça do Trabalho dá-se pelo fato de considerarem que com a mudança da competência dessas ações ocorreu a mudança de um direito processual. Isso significa que não se altera o direito material, do qual origina o direito à indenização do empregado, e a aplicação da prescrição civil torna-se possível na Justiça do Trabalho. Apesar de o instituto da prescrição não fazer direito adquirido, com a aplicação do princípio da norma mais favorável ao empregado, que é um dos fundamentos da Justiça do Trabalho, a proteção ao trabalhador, por isso aplica-se a prescrição civil nessas ações, que, em alguns casos, é mais favorável ao empregado e também pela natureza da ação ser de direito privado.

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hoje em dia, com as constantes mudanças na sociedade, o Direito não pode ficar estagnado, muito menos o Direito do Trabalho.

Assistindo à necessidade de uma ampliação na competência da Justiça do Trabalho, a Emenda Constitucional 45 veio ao mundo para ampliar e garantir uma maior atuação da Justiça do Trabalho.

Com as mudanças ocorridas, contemplam-se também muitas incertezas no campo jurídico, que se somadas a tais dúvidas acabam acarretando inseguranças jurídicas.

Este artigo buscou, de uma forma simples, esclarecer e mostrar as mudanças ocorridas após a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, bem como entrando na problemática da mudança na competência para processar e julgar ações indenizatórias de responsabilidade civil, passar-se-ia a contar o prazo prescricional utilizado na Justiça Federal, ou seja, o

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disposto no art. 7º, XXIX, da Constituição Federal ou se continuaria a utilizar-se a prescrição contida no art. 206, b, § 3º, do Código Civil.

Tais problemas vêm causando inseguranças no mundo jurídico, uma vez que ainda não foi pacificado o entendimento pelos nossos Tribunais, e este artigo teve como fim entender os posicionamentos existentes e verificar qual o que deve prosperar.

Importante frisar que o Direito do Trabalho sempre teve um caráter protetor para com os Empregados, em virtude da hipossuficiência deste frente o empregador, sendo que não seria diferente na escolha da prescrição, senão a que seja mais favorável ao trabalhador, uma vez que é principio básico do Direito do Trabalho aplicar a norma mais favorável ao trabalhador.

Enfim, dentro de todo o estudo procedido, veem-se grandes evoluções na Justiça do Trabalho, e que o aumento significativo da competência veio beneficiar ainda mais os trabalhadores.

Imperioso ressaltar que nas ações de cunho indenizatório de responsabilidade civil, que de pouco passaram a ter seu julgamento na Justiça do Trabalho, o que mudou, mesmo, além de a prescrição civil ser a mais benéfica ao trabalhador, foi apenas a competência de quem processa e julga; porém, o direito material utilizado é o mesmo, sendo então aplicada a prescrição que sempre o fora, a do art. 206, b, § 3º, do Código Civil.

Porém, ainda resta muito para uma sedimentação do posicionamento, mas é com grande ênfase que se conclui que o Direito do Trabalho está acompanhando as mudanças da sociedade e dos trabalhadores, e se adaptando às mudanças, a ponto que jamais deverá perder seu caráter protetor do trabalhador, sendo um importante instrumento para garantir uma sociedade justa para todos.

BIBLIOGRAFIA

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