danto a transfiguracao do lugar comum

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  • A r t h u r C . D a n t o

    A transfigurao do lugar-comumuma filosofia da arte

    Traduo de Vera Perei ra

    COSACNAIFY

  • Para Dick e Peggy Kuhns

  • Hamlet: No ests vendo nada a l i?

    Rainha: Absolutamente nada, mas tudo o que h eu vejo.

  • PREFACIO A EDIAO BRASILEIRA Arthur C. Danto

    Uma vez li um texto que descrevia Wittgenstein como um crtico sarcstico, dos que acreditam que todas as questes filosficas tm de ser resolvidas ao mesmo tempo suponho que tivesse em mente Bertrand Russell. E verdade que Wittgenstein achava que nenhum problema filosfico podia ser resolvido, to-somente dissolvido, pois nenhum real e a filosofia um completo e rematado nonsense. Minha opinio era e ainda que todos os problemas realmente filosficos so legtimos e devem ser, de fato, resolvidos ao mesmo tempo, pois constituem um todo interligado. E como a natureza da filosofia , em si, um problema filosfico, que necessita de uma soluo filosfica, se Wittgenstein estava errado com respeito filosofia em si, deve estar errado sobre tudo o mais na filosofia. Fazer filosofia em qualquer nvel que seja fazer toda a filosofia ao mesmo tempo. Isso significa que os filsofos no podem ser especialistas. Significa, principalmente, que para fazer filosofia da arte preciso pr em ao todo um sistema filosfico.

    Meu livro Connections to the World [Conexes com o mundo], de 1989, uma filosofia da filosofia. Nele exponho idias que surgiram desde cedo em meu pensamento, a saber: que a filosofia em sua totalidade tem de algum modo uma relao com o conceito de representao que os seres humanos so ens representans, seres que representam o mundo; que nossas histrias individuais so as histrias

  • de nossas representaes e de como essas representaes se modificam no decorrer de nossas vidas; que as representaes formam sistemas que constituem nossa imagem do mundo; que a histria humana a histria de como esse sistema de representaes se altera com o tempo; que o mundo e nosso sistema de representaes so interdependentes, isto , algumas vezes mudamos o mundo para que ele se encaixe em nossas representaes, e outras vezes mudamos nossas representaes para que elas se encaixem no mundo. A certa altura eu decidira que meu trabalho como filsofo deveria ser o de construir uma teoria das representaes; na realidade, uma filosofia do significado do ser humano. Devia ser uma filosofia da histria, do conhecimento, da ao, da arte e da mente. O projeto era extremamente ambicioso e foi concebido numa poca em que tarefas desse flego tinham sado de moda na filosofia acadmica, onde as reputaes filosficas se baseavam na produo de pequenos artigos analticos publicados em peridicos especializados. Mas achei que seria uma grande experincia intelectual aventurar-me na construo de um sistema filosfico total, e desenvolv-lo ao longo de vrios livros. Quatro deles j tinham sido escritos e publicados quando parei para escrever Connections to the World, que representou uma espcie de levantamento do territrio j percorrido e uma projeo do que eu pretendia fazer dali por diante.

    Inspirei-me de certa forma na obra em cinco volumes do grande filsofo hispano-americano George Santayana, intitulada The Life of Reason [A vida da razo]. Santayana pertenceu a uma gerao anterior minha, em que ser filsofo realmente significava criar um sistema capaz de abrigar a totalidade das coisas. A idia de abrigar a totalidade das coisas sugere uma certa viso arquitetnica, e embora haja um pouco de arrogncia na crena de que algum seria capaz de arquitetar uma construo filosfica de tamanha envergadura parecia-me que todos ns vivemos em meio a uma ou outra dessas construes, s que erigidas por outros e repassadas a ns por herana. Por que no tentar construir algo mais adaptado maneira como as pessoas concebem o modo de ser das coisas? Assim, resolvi, um tanto temerariamente, pr mos obra e comecei a escrever uma filosofia da representao em cinco volumes, um de cada vez. No me propunha a ser um discpulo de Santayana ou de quem quer que fosse, mas um outro arquiteto de comparvel liberdade, com uma inclina-

  • o semelhante dele para uma prosa de qualidade esttica. Afinal, se algum decide tornar-se escritor, melhor que tenha gosto pelas palavras. No me parecia haver nenhuma incompatibilidade entre a verdade filosfica e a habilidade literria.

    A transfigurao do lugar-comum, escrito no final da dcada de 1970 e publicado em 1981, deveria ser o quarto volume do meu projeto, mas tanto em seu aspecto fsico quanto no estilo filosfico o livro saiu muito diferente dos anteriores. Todos os cinco volumes de The Life of Reason, de Santayana, foram publicados com a mesma capa dura de tecido vermelho gravada com letras douradas e sobrecapa similar. Os volumes lembravam uma obra de referncia ou a Bblia, o que lhes conferia uma aura de autoridade. Os trs primeiros volumes de minha obra, publicados pela Cambridge University Press, tambm tinham uma aparncia uniforme. A sobrecapa do primeiro volume, Analytical Phi- losophy of History [Filosofia analtica da histria], datado de 1965, era feita de papel verde grosso, com maravilhosas letras romanas em preto, no tipo de fonte usado nas inscries latinas. Os dois volumes posteriores, Analytical Philosophy of Knowledge [Filosofia analtica do conhecimento] (1968) e Analytical Philosophy of Action [Filosofia analtica da ao] (1973), saram parecidos, a no ser pela cor das sobrecapas, em azul e rosa. Seguindo a regra, o quarto volume, que pelos meus planos iniciais deveria tratar da filosofia da arte, teria o ttulo Analytical Philo- sophy of Art [Filosofia analtica da arte]. No entanto, embora eu ainda me considerasse um filsofo analtico na poca em que o escrevi, minhas simpatias pelo que se publicava ento como filosofia analtica vinham diminuindo a passos largos, e eu tampouco tinha a menor afinidade com o que se andava publicando como filosofia analtica da arte. Alm disso, j havia uma antologia com esse mesmo ttulo, para a qual me recusara a colaborar. A filosofia analtica da arte que se fazia ento me parecia demasiado abstrata e muito distante da arte em si. E eu estava muito mais interessado em ser lido por artistas do que por profissionais da esttica, visto que minhas idias haviam se originado do confronto direto com os acontecimentos, particularmente os da arte nova-iorquina da dcada de 60, que me pareciam ter suscitado questes nunca antes levantadas na filosofia. Assim, procurei um novo ttulo e uma nova editora.

    Encontrei meu ttulo num maravilhoso romance de Muriel Spark, em que uma das personagens uma freira de passado duvidoso

    PRt . C A FDIAO BRASIL L IRA I 1

  • escreve um livro famoso, A transfigurao do lugar-comum. Acho que eu tambm esperava que meu livro ficasse famoso, e de certa forma foi isso que acabou acontecendo. De todos os meus livros, o mais traduzido e provavelmente ser o mais lido depois de minha morte. O ttulo j indicava o tema central da obra, referente ao modo como os objetos mais banais, lugares-comuns, so transfigurados em obras de arte. Eu queria que meu livro, considerado como um objeto, sugerisse esse tema. A sobrecapa no podia ter a austeridade dos primeiros livros, com seus caracteres que lembravam as inscries das tumbas romanas. Por isso, pensei em usar a imagem de uma das pinturas de Jim Dine, onde se v uma gravata listrada pintada acima das palavras Universal Tie.' O ttulo Universal Tie me pareceu deliciosamente ambguo, aludindo simultaneamente s gravatas que os homens usam no mundo inteiro quando querem estar bem-vestidos e a um conceito filosfico

    o de causao universal, que liga tudo o que h no mundo em um nico sistema. E uma gravata na sobrecapa se prestava a uma espcie de trocadilho visual. O livro deveria ter muitos exemplos tirados da arte contempornea e um estilo gil e recheado de piadas. Wittgenstein disse certa vez que era possvel escrever um livro de filosofia s com piadas, e foi assim que planejei o meu. Ele foi pensado para ser ao mesmo tempo oportuno uma expresso do mundo da arte contempornea e eterno, tal como eu achava que a filosofia deveria ser um dia: verdadeira em todos os tempos e em todos os lugares.

    Em virtude desse duplo enfoque, A transfigurao do lugar-co- mum i um texto um tanto dividido, porque tecnicamente mais filosfico do que a maioria dos livros escritos para leitores no versados em filosofia e ao mesmo tempo mais voltado para as preocupaes correntes do mundo da arte do que a maioria dos livros escritos para um pblico de filsofos. Nessa poca, nas dcadas de 50 e 60, eu estava muito bem enfronhado no ambiente da arte nova-iorquina no comeo, como um artista que viera a Nova York em busca de uma carreira profissional, a que dei prosseguimento enquanto iniciava minhas atividades de filsofo e professor de filosofia; e mais tarde atuando como observador, depois que conclu j estar por demais

    r . Li teralmente , gravata universal . Note-se que a palavra tie tambm tem os sen

    t idos de lao, vnculo, e lo , l igao. |n . i . |

  • comprometido com a atividade filosfica para continuar fazendo arte, por mais bem-sucedido que fosse. A verdade que as condies do mundo da arte da dcada de 6o no me permitiriam obter sucesso sem mudar radicalmente a concepo um pouco romntica da pintura que eu compartilhara com a maioria dos artistas dos anos 50. Eu no tinha o menor interesse em fazer arte pop. Ao mesmo tempo, a arte de meados dos anos 60 a arte pop e o minimalismo me parecia fascinante do ponto de vista filosfico. Contudo, os artistas que mais me despertavam interesse Andy Warhol, sobretudo, Roy Lichtenstein e Claes Oldenburg no movimento pop; os escultores que participaram da importante exposio Primary Structures [Estruturas Primrias], realizada no Jewish Museum em 1966 eram quase completamente desconhecidos da maioria dos estudiosos da esttica, inclusive dos poucos que conheciam bem a arte moderna. E certo que o leitor ideal teria de estar muito bem informado sobre filosofia e arte contemporneas para acompanhar meus passos na construo de uma senda para a filosofia da arte em fins do sculo xx. Mas foi o esprito essencialmente pioneiro do livro que lhe granjeou interesse e repercusso.

    Meu primeiro estudo sobre filosofia da arte foi escrito em 1964, num momento em que minha criatividade filosfica estava no auge. Comecei a me interessar pela arte pop depois de ver uma tela de Roy Lichtenstein reproduzida na Artnews, que era ento a mais importante revista de arte dos Estados Unidos. Nessa poca eu morava no sul da Frana, onde me dedicava a escrever a Analytical Philosophy of History, e tinha viajado a Paris para passar os feriados do Natal. Estava ansioso para me informar sobre a cena artstica de Nova York, de modo que me dirigi Biblioteca Americana para folhear revistas de arte. O quadro de Lichtenstein intitulava-se O beijo e mostrava um piloto beijando uma moa, como se a imagem tivesse sado diretamente da tira de uma histria em quadrinhos, como Steve Canyon, por exemplo. Fiquei absolutamente perplexo: nunca imaginara que uma cpia de uma tira de histria em quadrinhos pudesse ser exibida numa galeria de arte como a de Leo Castelli. Minha primeira reao foi de indignao, porque acreditava nos mais altos ideais da pintura. Depois resolvi ver pessoalmente o quadro. E a verdade que minha vida mudou completamente depois de contemplar essa pintura, e quando voltei a Nova York sa cata das galerias que mostravam a arte pop.

    p R r r C i O a l ; j i : : o h h a s i s f i r a I 1

  • Em 1964, as embalagens de papelo de Andy Warhol, exibidas em grandes pilhas como num depsito de supermercado, me deixaram estupefato. Aceitei-as prontamente como arte, mas depois me perguntei por que aquelas caixas eram arte enquanto as embalagens comuns dos supermercados no eram. Compreendi ento que essa dvida tinha a forma de um problema filosfico. Recentemente, o dissidente sovitico Vitaly Komar me contou por que se interessava por filosofia. Os filsofos nos dizem que coisas que parecem completamente diferentes umas das outras so iguais, enquanto coisas que so completamente idnticas so diferentes. Era exatamente isso o que se passava entre a Brillo Box [Caixa Brillo] de Warhol, exposta na galeria, e as mesmas embalagens de sabo em p Brillo armazenadas em depsitos. Dizer que a diferena, em ltima anlise, se deve diferena entre as instituies da galeria e do depsito escamotear o problema.

    Nesse mesmo ano tive a sorte de ser convidado a apresentar um ensaio sobre esttica no encontro anual da American Philosophical Association, e resolvi expor os novos problemas que a arte recente me tinham sugerido. Dei ao ensaio o ttulo de The Art World [O mundo da arte], referindo-me ao mundo das obras de arte. Meu argumento, em consonncia com o clima da hora, tinha um contedo poltico: como um objeto adquire o direito de participar, como obra, do mundo da arte? O ano de 1964 foi de grande importncia poltica para os ativistas da campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos; muitos desses militantes deslocaram-se para os estados do Sul a fim de alistar eleitores negros, proibidos de votar por causa do preconceito racial. De modo anlogo, ser uma obra de arte significava que certos objetos gozavam de toda sorte de direitos e privilgios de que careciam os objetos comuns eram respeitados, valorizados, protegidos, estudados e contemplados com reverncia. A Brillo Box fazia jus a esses direitos, e as caixas comuns de sabo em p Brillo no. Como explicar isso? A razo no podia ser de ordem perceptiva, porque os dois tipos de objetos eram perceptualmente indistinguveis. Isso indicava que as diferenas entre eles e por extenso entre as obras de arte e os objetos comuns tinham de ser invisveis. Qual o significado de considerar a Brillo Box como digna de seu status de arte?

    Meu ensaio The Art World no avanou muito numa resposta a essa indagao. Utilizei a estratgia de diferenciao que a filosofia da

  • poca recomendava e argumentei que os dois objetos tinham causas distintas. As causas das caixas comuns de Brillo eram prticas: o produto tinha de ser transportado das fbricas para os galpes de depsito e dos depsitos para os supermercados, onde era desempacotado, colocado em prateleiras e vendido. Isso tornava importantssimo o logotipo da marca, porque as caixas de papelo so muito parecidas umas com as outras. A logomarca tinha de chamar a ateno e ser facilmente reconhecvel. A cadeia causal a que pertencia a Brillo Box de Warhol no era dessa ordem: ela descendia da evoluo da teoria da obra de arte, bem como da histria recente da arte. Para considerar um objeto como obra de arte era preciso conhecer essa histria, ter participado dos vrios debates ocorridos. A condio de obra de arte era um resultado da histria e da teoria. Na maior parte das fases da histria da arte, algo parecido com a Brillo Box, ainda que pudesse ter existido como objeto, no o teria como obra de arte. O trabalho s se tornou vivel como arte quando o mundo da arte o mundo das obras de arte estava pronto para receb-lo entre seus pares.

    O ensaio The Art World ganhou fama, pelo menos entre os filsofos. Foi publicado inmeras vezes, amplamente comentado e adotado como texto de cursos. Serviu de base para a Teoria Institucional da Arte e tornou-se um texto de leitura obrigatria no s na esttica, como tambm na sociologia da arte. Mas no dei seguimento de imediato aos problemas ali levantados. O fato que eu no estava interessado em me especializar em esttica. Minha grande ambio era levar a cabo o projeto de construir um sistema de filosofia. Assim, publiquei dois volumes que faziam parte de meu trabalho principal, alm de uma srie de outros livros, entre os quais uma primeira sistematizao geral da filosofia conforme a concebia na poca, que recebeu o ttulo de What Philosophy Is [O que filosofia]. Nos anos 6o eu no estava realmente preparado para assumir o desafio de tratar das grandes questes s quais um livro de filosofia da arte inevitavelmente teria de responder. Somente quinze anos depois da publicao de The Art World me senti capaz de enfrentar os problemas filosficos que esse projeto exigia. Nessa poca, conforme j expliquei, eu comeava a me sentir limitado pela maneira como a filosofia analtica vinha sendo estudada.

    De certa forma, A transfigurao do lugar-comum um livro de filosofia extremamente tradicional. Sua pauta de questes segue o

  • programa-padro do dilogo platnico, que fundamentou a estrutura bsica da investigao filosfica. O procedimento era definir um conceito por meio do dilogo, e o livro, de fato, emprega estratgias dial- gicas. Quando comecei a elaborar minhas estratgias, no incio da dcada de 70, eu lecionava como professor visitante na Universidade da Califrnia, em San Diego; um dos meus alunos, Jeffrey Lohn, artista plstico e msico, destacava-se por seu brilho e vivacidade. No livro ele se tornou o personagem J, que aparece nos primeiros captulos, que alis tomam como modelo o romance de Diderot Jacques, o fatalista

    um dilogo entre o servo, Jacques, e seu amo, sobre a questo do livre- arbtrio. Hegel inspirou-se nesse grande texto quando escreveu o captulo sobre a relao senhorescravo da Fetiomenologia do esprito, mais tarde tambm usado pelo jovem Marx na elaborao da concepo dialtica da histria. Meus objetivos eram mais modestos: formular uma definio da arte por meio de um dilogo entre mim e J, embora J saia de cena quando o assunto demanda uma anlise filosfica mais rigorosa. O motivo disso era estabelecer uma primeira condio necessria, qual seja, a de que toda obra de arte deve dizer respeito a algo ter um significado. Ainda que no fosse suficiente, essa condio deveria bastar para justificar a afirmao de que toda arte repre- sentacional, e por isso mesmo passvel de uma espcie de anlise semntica, e de que o formalismo inadequado como filosofia da arte.

    Como veculos de representao, as obras de arte se encaixavam na filosofia da representao que eu estava tentando estabelecer. Mas evidente que nem todos os veculos de representao so obras de arte, de modo que era necessrio encontrar outra condio diferenciadora. Assim, sugeri que a obra de arte um veculo de representao que cor- porifica seu significado. No avancei muito na anlise do conceito de corporificao, mas conclu provisoriamente que as obras de arte so significados corporifiados. Creio que a noo de significados corpori- ficados capta um pouco do que aprendi com minha mestra, Susanne K. Langer, que em seu melhor livro, Philosophy in a New Key,'- estabeleceu uma distino entre o que chamou de formas discursivas e formas presentificadoras: as obras de arte presentificam seus significados,

    2. Ed. bras . : hlosofia em nova chave: um estudo do simbolismo da razo, rito e arte.(So Paulo: Perspect iva, 1971) . [n .t . ]

  • enquanto o significado de uma descrio exterior a esses significados. Geralmente, o sujeito de uma frase refere-se a algo que est contido na extenso do predicado da frase, pelo menos no caso de oraes declarativas simples. Grande parte da filosofia analtica associa-se semntica das formas discursivas. Mas a chave para entender a corporifica- o, pelo contrrio, a interpretao.

    A interpretao de obras de arte o cerne do exerccio da crtica de arte. O crtico procura identificar o significado de uma obra e mostrar como o objeto em que o significado est corporificado efetivamente o incorpora. Uma definio to simples da interpretao evidentemente deixa de lado uma grande parte do quadro observado, mas chamo a ateno para os dois termos operativos: obra e objeto. O problema fundamental da filosofia da arte explicar como a obra se relaciona com o objeto. A obra o objeto mais o significado, e a interpretao explica como o objeto traz em si o significado que o observador no caso das artes visuais percebe e ao qual reage de acordo com o modo como o objeto o apresenta. Um bom exerccio verificar quais so as propriedades do objeto que pertencem obra e quais no so. Vejamos um exemplo do que estou querendo dizer. No romance A nusea, de Jean-Paul Sartre, o protagonista, um bigrafo chamado Roquentin, est ouvindo num fongrafo uma gravao de uma conhecida cano de amor, Some of These Days, provavelmente na voz da mulher que a tornou famosa, Sophie Tucker conhecida como The Last of the Red Hot Mamas.' O disco est arranhado, mas no se ouvem os arranhes: ouve-se a cano atravs do rudo dos arranhes, que no fazem parte da msica. No somente a cano que emociona Roquentin; ele tambm se impressiona com o modo pelo qual a cano transcende seu veculo material, o velho disco de goma-laca, que toca numa antiga vitrola. Isso o leva a deduzir uma filosofia da arte que transcende a matria uma viso muito platnica da obra de arte. Se algum quisesse fazer um filme com a histria de A nusea, esse episdio exigiria um

    3. The Last of the Re/d Ho: Mamas" c o t tulo de uma cano lanada por Sophie

    Tucker (1894-1966) , famosa atr iz e cantora do teatro de vaudevi le dos Estados Uni

    dos na pr imeira metade do sculo xx. Some of These Days foi o maior sucesso

    de sua carreira . Gostava de ser chamada de the L.ast of the Red Hot Mamas ' ' , que

    s ignif ica a mais sensual cas cantoras corpulentas de vaudevi le ' ' . |n . t . |

    P P F F A C ! A r D i : : A O I K A S I I I - M b I I

  • disco arranhado. Seria uma traio ao significado do romance, que o tornaria ininteligvel, se pusessem Roquentin assistindo a um dvd dos greatest hits de Sophie Tucker. Teria de ser um disco tipicamente de poca. No filme, os arranhes fariam parte da obra, mesmo que Roquentin no a entendesse assim.

    A transfigurao do lugar-comum entrou para a vida da arte dos Estados Unidos, como eu esperava que acontecesse. Foi comentado em jornais e revistas muito antes de ser apreciado pelos estudiosos da esttica, que representavam para mim um pblico secundrio. Por causa desse livro fui convidado a escrever para outros leitores alm dos filsofos, e poucos anos depois da sua publicao recebi um convite para assinar uma coluna de crtica de arte na revista The Nation, o que tenho feito desde ento. Como obra de filosofia, o livro contribui para uma ontologia da obra de arte para a anlise da diferena ontolgica entre as obras de arte e os objetos comuns que eventualmente lhes so indistinguveis. Como filsofo da arte, tambm me dediquei a outras dimenses da arte a estrutura da histria da arte, em After the End of Art [Depois do fim da arte] (1997), e o papel da esttica, se que a esttica tem algum papel, na definio de arte, em The Abuse of Beauty [O insulto da beleza]. O quarto livro da obra em cinco volumes que eu havia planejado escrever tornou-se o primeiro de um estudo em trs volumes sobre filosofia da arte, com base na arte produzida durante os anos 60. Quanto ao quinto volume, ficou inacabado e talvez nunca venha a ser terminado.

    Gostaria de dizer uma ltima coisa sobre o livro, como texto. Ele contm tantas referncias e detalhes sobre a cultura da poca em que foi escrito, e do ambiente de arte em que se baseou, que um amigo meu, o filsofo e crtico David Carrier, disse que o livro necessita de notas explicativas para ser entendido pelos leitores de hoje. O passado outro mundo e hoje em dia alguns detalhes que lhe davam vida h vinte anos talvez sejam como os arranhes do disco de Sartre preciso ouvir a filosofia atravs deles, a menos que possam ser de alguma forma explicados para o leitor. E no entanto esses detalhes tm importncia, conforme assinalou to primorosamente, no trecho de um ensaio que citarei na ntegra, meu querido amigo j falecido Richard Wollheim, um grande filsofo e terico da pintura, mas que no compartilhava da minha simpatia pela arte de nosso tempo:

  • A filosofia da arre de Danto desabrocha do solo da pintura c da escul

    tura de meados do sculo xx. Ningum pode ler o texto de Danto sem

    rememorar os cheiros, as paisagens, o infatigvel alvoroo do ambiente

    que a circundava, do Village, das galerias do Uptown, das ruas agitadas

    e imundas, do Soho.

    No exatamente isso que se espera dos livros de filosofia, mas considero uma imensa virtude ter trazido o sabor de uma determinada poca e lugar aos meus leitores, onde quer e quando quer que vivam.

    Nova York, 2005

    PRF rCin A f DIO BPAC I f NA ! 2 1

  • PREFCIO Arthur C. Danto

    No romance de Muriel Spark The Prime of Miss Jean Brodie [A primavera da srta. Jean Brodie], uma das personagens irm Helena da Transfigurao, que antes se chamava Sandy Stranger, uma adolescente de Glasgow, novia dedicada e ardilosa apresentada como autora de um livro intitulado The Transfiguration of the Commonplace [A transfigurao do lugar-comum]. Sempre admirei e cobicei esse ttulo, e resolvi que iria adot-lo se um dia escrevesse um livro que combinasse com ele. Por sorte, os fatos do mundo da arte que motivaram as reflexes filosficas presentes neste livro diziam respeito exatamente a isso: transfiguraes do lugar-comum, banalidades transformadas em arte. Quando me pareceu ento que havia encontrado um uso para o ttulo, escrevi a Muriel Spark sobre minha apropriao, curioso por saber qual o assunto do livro de irm Helena, que o romance no esclarece. Os drages de fico tm to-somente as caractersticas biolgicas que seus criadores resolvem lhes dar nas obras em que aparecem, e por isso que o silncio de Wagner deixa perguntas logicamente impossveis de responder sobre o metabolismo de Fafner e o modo como ele (ela?) se reproduz. Do mesmo modo, as obras mencionadas em livros de fico geralmente tm um contedo indeterminado, e os escritores costumam ser bastante espertos para no tentar escrever os Grandes Romances ou qualquer outra coisa

    P R t F A C I O ! 2 3

  • que atribuem ficcionalmente aos seus personagens. Apesar disso, pa- receu-me que Muriel Spark devia fazer uma idia do possvel assunto do livro, caso tivesse resolvido que ele teria algum. Para minha imensa satisfao, ela me respondeu que o livro teria sido sobre arte, segundo sua prtica pessoal. Imagino que essa prtica consistia em transformar moas comuns em criaturas de fico, radiantes de mistrio: uma espcie de caravaggismo literrio. Meditando sobre isso, descobri que eu havia feito algo mais surpreendente, embora menos espetacular: transformara a fico em realidade, pois um ttulo antes fictcio era agora real. Essa curiosa faanha nos ensina uma lio, j que os artistas, desde os tempos de Plato at os dias de hoje, tm a ambio de resgatar a arte para a realidade. As possibilidades de realizar esse desejo so muito limitadas, restringindo-se talvez aos ttulos, e interessante observar que se fez muito pouco para concretizar esse sonho milenar. Ainda assim, bom ter um ttulo que vai alm dos limites que o livro por ele denotado deve estabelecer, caso algum pense que os ttulos so apenas os nomes das obras.

    Isso quanto ao ttulo. No que se refere aos episdios artsticos que o livro parecia descrever to admiravelmente, creio que se deve pensar antes de mais nada em Duchamp, pois ter sido ele o primeiro a realizar na histria da arte o sutil milagre de transformar objetos do Lebenswelt cotidiano em obras de arte: um pente de plos, um porta- garrafas, uma roda de bicicleta, um urinol. perfeitamente possvel interpretar os atos de Duchamp como tentativas de impor um certo distanciamento esttico a esses objetos nada edificantes, apresentan- do-os como improvveis candidatos fruio esttica: demonstraes prticas de que se pode descobrir alguma espcie de beleza onde menos se espera. At o familiar recipiente de porcelana pode ser percebido como alvo e reluzente, para usar a expresso de So Lucas no relato da transfigurao original. possvel entender Duchamp nesses termos, mas seu gesto no passaria ento de um comentrio assptico sobre uma teoria pelo menos to antiga quanto Santo Agostinho, e ela mesma, talvez, uma transposio esttica do preceito essencialmente cristo de que o mais humilde de ns especialmente o mais humilde, talvez resplandece em graa divina. Mas reduzir os gestos de Duchamp a uma pregao performativa da esttica democrata-crist obscurece sua profunda originalidade filosfica, e de qualquer modo

  • essa interpretao no esclarece a questo de como tais objetos se tornam obras de arte, pois tudo o que mostraria que eles contm uma dimenso esttica imprevista. Era preciso, portanto, uma nova abordagem, na qual os objetos transfigurados estivessem to imersos na banalidade que seu potencial para a contemplao esttica permaneceria inacessvel ao escrutnio mesmo depois da metamorfose. Dessa forma, podia-se iniciar a discusso sobre o que os transformou em obras de arte sem introduzir qualquer tipo de considerao esttica. Foi essa, a meu ver, a contribuio do artista pop Andy Warhol.

    Lembro-me bem da euforia filosfica que subsistiu repulsa esttica provocada pela exposio de Warhol de 1964, no local em que ento se situava a Stable Gallery, na Rua 74 Leste, onde foram empilhadas rplicas perfeitas de embalagens do sabo em p Brillo, como se a galeria tivesse sido transformada num depsito de sobras de artigos de limpeza. (Havia tambm uma sala cheia de rplicas de caixas de cereais Kelloggs, que no entanto no atiaram tanto a imaginao quanto as carismticas caixas de Brillo.) parte alguns irrelevantes murmrios de desaprovao, a Brillo Box foi prontamente aceita como arte. Mas a pergunta que mais incomodava era por que as caixas de Warhol eram obras de arte enquanto suas contrapartidas banais, guardadas nos depsitos de supermercados por toda a cristandade, no eram. Claro que havia diferenas bvias: as caixas de Warhol eram de compensado e as outras de papelo. Mesmo que fosse o contrrio a questo filosfica permaneceria inalterada, restando a opo de que diferenas materiais no seriam realmente necessrias para distinguir a obra de arte da coisa real. Alis, Warhol exercitou essa opo com suas famosas latas de sopa Campbells, simplesmente tiradas das prateleiras dos supermercados onde compramos nossas sopas. Mas mesmo que ele as tivesse laboriosamente modelado mo, num invulgar exerccio da arte da funilaria latas confeccionadas manualmente com tanta perfeio que no se distinguiriam do artigo fabricado , Warhol no as teria feito subir um nico degrau na categoria de arte em que j se situavam. Pedro, Joo e Tiago viram com os prprios olhos Jesus transfigurado: Sua face resplandecia como o Sol e suas vestes eram alvas como a luz. bem possvel que a obra de arte que resplandecesse, mas incandescncia no podia ser a marca de diferena a que uma definio de arte aspirasse, salvo como metfora: o que a

  • luminosidade pode muito bem ser no prprio Evangelho de So Mateus. Qualquer que fosse a diferena, ela no podia consistir no que a obra de arte e a indistinguvel coisa real tivessem em comum que poderia ser qualquer coisa material e acessvel a observaes comparativas imediatas. Como toda definio de arte deve abarcar as caixas de sabo Brillo, evidente que nenhuma definio pode fundamentar- se numa inspeo direta das obras de arte. Foi tal convico que me levou ao mtodo usado neste livro, no qual procuro encontrar essa esquiva definio.

    Definir arte uma tarefa to esquiva que a quase cmica inapli- cabilidade das definies filosficas da arte prpria arte tem sido explicada, pelos poucos que perceberam nessa inaplicabilidade um problema, como resultado da indefinibilidade da arte. Tanto assim que Wittgenstein eliminou o problema, embora o fizesse por razes demasiado complexas para discutir num prefcio. Mas as caixas de Warhol tornam problemtica at mesmo essa suposta indefinibilidade: que elas se assemelham to perfeitamente a objetos que na opinio comum no so considerados obras de arte que, por ironia, acentuam a urgncia de uma definio. Meu ponto de vista que o inevitvel vazio das definies de arte tradicionais provm do fato de que todas elas se basearam em aspectos que as caixas de Warhol tornaram irrelevantes para definies dessa natureza; quer dizer, as revolues no mundo da arte deixaram as definies bem-intencionadas sem quaisquer recursos em face do arrojo das novas obras de arte. Qualquer definio que pretenda sustentar-se precisa adquirir imunidades contra essas revolues; eu gostaria de crer que depois das caixas de Brillo as possibilidades para isso realmente se encerraram e a histria da arte chegou, de certa maneira, a um fim. A histria da arte no foi interrompida, mas acabada, no sentido de que passou a ter uma espcie de autoconscincia, convertendo-se, de certo modo, em sua prpria filosofia: um estado de coisas que Hegel previu em sua filosofia da histria. O que estou querendo dizer que, em certa medida, era preciso que o desenvolvimento interno do mundo da arte adquirisse solidez suficiente para que a prpria filosofia da arte se tornasse uma possibilidade sria. De repente, na arte avanada das dcadas de 6o e 70, arte e filosofia estavam prontas uma para a outra. De fato, repentinamente elas precisavam uma da outra para se diferenciarem.

  • Os problemas de que trata este livro se manifestam com maior nitidez no que se poderia chamar de pintura-e-escultura, e por isso muitos dos meus exemplos remetem a esse gnero de arte. Mas eles tambm podem surgir de modo transgenrico em todos os ramos da arte: literatura e arquitetura, msica e dana. Portanto, de quando em quando uso exemplos tirados desses outros campos da arte. E importante assinalar que se qualquer das minhas idias no se aplicar a todo o universo da arte considerarei esse fato como uma refutao, pois este livro pretende ser uma filosofia analtica da arte, ainda que tambm possa ser lido como uma reflexo filosfica sustentvel sobre a pintura-e-escultura da poca atual.

    Minhas respostas filosficas s caixas de Brillo foram publicadas em um artigo que escrevi em 1965 a pedido da American Philosophical Association. O ttulo era The Artworld [O mundo da arte], e tive a mrbida satisfao de ver que ningum o entendeu. Assim, o texto poderia ter ficado esquecido em um nmero atrasado do sepulcral Journal of Philosophy, caso no tivesse cado nas mos de dois ousados filsofos, Richard Sclafani e George Dickie, que lhe deram certa notoriedade. Sou muito grato a ambos e a todos os que fundaram a chamada Teoria Institucional de Arte a partir de anlises contidas em

    The Artworld, ainda que essa teoria seja totalmente alheia a tudo em que acredito: nem sempre nossos filhos saem como pretendamos. Contudo, clssica maneira edipiana, tenho de lutar contra minha prognie, pois no creio que a filosofia da arte deva render-se quele que dizem que gerei.

    Nova York e Brookhaven

    R F F C I I 2 7

  • AGRADECIMENTOS

    Alm de The Artworld, vrios artigos meus anteciparam a forma de certos argumentos e anlises contidos neste livro. Entre eles, menciono

    Artworks and Real Things [Obras de arte e coisas reais], Theoria, 29 (1973); The Transfigurations of the Commonplace [As transfiguraes do lugar-comum] e An Answer or Two for Sparshott [Uma ou duas respostas para Sparshott], The Journal of Aesthetics and Art Criticism, de 1974 e 1976 respectivamente; e Pictorial Representations and Works of Art [Representaes pictricas e obras de arte], em C. F. Nodine e D. F. Fisher, orgs., Perception and Pictorial Representation [Percepo e representao pictrica] (Praeger, 1979). Agradeo aos editores e diretores dessas publicaes pela permisso para incluir materiais, exemplos e em alguns casos passagens dessas reflexes anteriores.

    E impossvel agradecer a cada um dos artistas, historiadores da arte e filsofos com os quais aprendi coisas que provavelmente jamais teria descoberto sozinho. Gostaria de mencionar particularmente o falecido Rudolph Wittkower, cuja obra Architectural Principles in the Age of Humanism [Princpios arquitetnicos na era do humanismo] me abriu os olhos e me mostrou que era possvel fazer filosofia sobre a arte. Rudy foi, alm disso, um grande ser humano, um desses raros estudiosos que no se deixam infantilizar por sua vocao, uma

  • pessoa cuja vida foi um exemplo de virtudes morais. Devo-lhe mais do que a qualquer outro. Relaciono abaixo, sem uma ordem especial, aqueles cuja contribuio ao meu pensamento me vem lembrana: os historiadores da arte Leo Steinberg, Meyer Schapiro, Albert Elsen, Otto Brendel, Howard Hibbard, Theodore Reff, Linda Nochlin e H. W. Janson; os artistas Arakawa, Madeleine Gins, Newton e Helen Harrison, Andr Racz, Joseph Beuys, Jeffrey Lohn, Pat Adams, Louis Finkelstein e Barbara Westman Danto; e os filsofos Richard Wollheim, Nelson Goodman, Stanley Cavell, Richard Kuhns, Hide Ishiguru, Geor- ge Dickie, Josef Stern, Ted Cohen, David Carrier e Ti-Grace Atkinson.

    O National Endowment for the Humanities possibilitou-me expor boa parte deste trabalho, quando ainda em elaborao, para alguns filsofos talentosos, durante um seminrio de vero patrocinado por essa instituio na Universidade de Colmbia, em 1976. Outras oportunidades me foram proporcionadas pela Universidade de Yale; pela Annenberg School da Universidade da Pensilvnia, durante cinco palestras organizadas por Barbara Herrstein Smith com quem aprendi muito sobre argumentao e discusso; e na qualidade de professor visitante na Universidade de Iowa, no mbito do programa Ida Beam, onde passei uma semana a convite de Paul Hernadi e do Departamento de Literatura Comparada.

    Joyce Backman, responsvel pela editorao dos meus textos na Harvard University Press, entendeu bem a cadncia do meu pensamento e do meu estilo de escrever, e me ajudou a torn-lo mais claro. Tenho certeza de que o livro seria ainda mais claro se eu tivesse seguido suas observaes com maior freqncia.

    A ltima parte deste livro foi escrita no vero de 1978, aps a morte de minha primeira mulher, Shirley Rovetch Danto. Somente um ano depois, quando descobri o quanto me emocionavam minhas interpretaes dos retratos que alguns artistas fizeram de suas mulheres

    Monet, Czanne, Rembrandt , que me dei conta do significado que esses exemplos tinham para mim e percebi que tinha escrito uma espcie de memorial filosfico para ela e para nosso casamento.

  • A TRANSFIGURAO DO LUGAR-COMUM

  • 1 OBRAS DE ARTE E MERAS COISAS REAIS

    Consideremos um quadro certa vez descrito pelo espirituoso dinamarqus, Sren Kierkegaard. Era uma pintura dos hebreus atravessando o mar Vermelho. Olhando o quadro, vamos algo bem diferente do que se poderia esperar de uma pintura com tal tema se fosse pintada, suponhamos, por um artista como Poussin ou Altdorfer: agrupamentos de pessoas em diversas posturas de pnico, carregando os fardos de suas vidas transtornadas, e ao longe, perseguindo-a, soldados da cavalaria egpcia. Mas o que tnhamos diante de ns, ao contrrio, era um quadrado de tinta vermelha, que o artista explicou dizendo que os hebreus j haviam cruzado o mar Vermelho e os egpcios se afogaram. Kierkegaard comenta que, no balano final, sua vida se parecia com aquela pintura. Toda a sua inquietao espiritual, o pai amaldioando Deus no alto de uma colina, o rompimento com Regina Olsen, a busca interior do significado do cristianismo, o permanente conflito de uma alma atormentada, tudo acabou se fundindo, como nos ecos das cavernas de Marabar, num estado de alma, numa cor nica.

    Coloquemos agora ao lado da pintura descrita por Kierkegaard outra exatamente igual, s que desta vez realizada, hipoteticamente, por um retratista dinamarqus que, com imensa argcia psicolgica, produziu uma obra intitulada O estado de esprito de Kierkegaard. Seguindo o mesmo raciocnio, imaginemos ento uma srie de retngulos

    O B R A S D l - A k : h F - M F R A S C O I S A S R t A I S I

  • vermelhos dispostos lado a lado. Alm dos dois primeiros quadros, e to idntico a eles quanto eles entre si, vamos colocar Praa Vermelha (Red Square], uma agradvel paisagem de Moscou. Nossa prxima obra um exemplar minimalista da arte geomtrica, Quadrado vermelho [Red Square],1 que por coincidncia tem [em ingls] o mesmo ttulo da anterior. Em seguida vem Nirvana, uma pintura metafsica baseada no entendimento do artista de que as ordens do Nirvana e do Samsara so idnticas e de que o mundo do Samsara credulamente chamado de Poeira Vermelha pelos que o menosprezam. Depois, uma natureza-morta intitulada Toalha de mesa vermelha, produzida por um ressentido admirador de Matisse; nesse caso, admitimos que a tinta tenha sido aplicada de modo mais tnue. Nosso prximo objeto no propriamente uma obra de arte, mas uma simples tela preparada com uma base de zarco, na qual Giorgione, se tivesse vivido o suficiente, teria pintado sua obra-prima no realizada, Sacra conversazione. Trata-se de uma superfcie vermelha que, apesar de no ser uma obra de arte, no desprovida de interesse para a histria da arte, pois foi o prprio Giorgione quem a preparou. Por ltimo, colocarei uma superfcie pintada diretamente com zarco, mas que no uma base de tela: trata-se de um mero artefato, cujo interesse filosfico consiste to-so- mente no fato de no ser uma obra de arte, e cuja nica importncia para a histria da arte decorre da circunstncia de que o estamos considerando; apenas uma coisa, com tinta por cima.

    Com esse ltimo quadro minha exposio est completa. O catlogo, todo em cores, um tanto montono porque todas as ilustraes se parecem, embora sejam reprodues de obras ligadas aos mais diversos gneros, como a pintura histrica, o retrato psicolgico, a paisagem, a abstrao geomtrica, a arte religiosa e a natureza-morta. Constam tambm do catlogo ilustraes de um objeto proveniente do ateli de Giorgione e de uma mera coisa, sem pretenso alguma ao elevado status de arte.

    Um dos visitantes da exposio, um jovem artista mal-humorado e de idias igualitrias, a quem chamarei de J, mostra-se indignado com o que considera a injustia hierrquica de atribuir o status superior de

    i . O jogo de palavras e a inteno do autor so bvios , explorando duas acepesda palavra inglesa square , como praa e como quadrado. |n .t . |

  • obra de arte maioria dos itens de minha exposio e de simultaneamente neg-lo a um objeto que em todos os detalhes visveis se assemelha aos demais. Tomado por uma espcie de furor poltico, J produz um trabalho idntico ao meu simples retngulo de tinta vermelha, e asseverando que sua pintura uma obra de arte exige que eu a inclua na minha mostra, o que fao com prazer. No dos melhores trabalhos de J, mas o penduro na parede assim mesmo. Parece um tanto vazio, digo-lhe, como de fato se comparado com a riqueza narrativa de Os hebreus atravessando o mar Vermelho ou com a esplndida profundidade de Nirvana, para no mencionar A legenda da Cruz, de Piero delia Francesca, ou A tempestade, de Giorgione. Epteto igual poderia qualificar uma outra obra de J, que ele considera uma escultura e que consiste, se bem me lembro, em uma caixa feita em carpintaria comum, coberta por uma camada de tinta ltex bege displicentemente aplicada com rolo. Mas sua pintura no tem o mesmo vazio daquele mero pedao de tela pintado de vermelho, que no chega a ser to vazio quanto uma pgina em branco j que no fica evidente se a obra est espera de uma inscrio , pelo menos no da mesma forma como estaria uma parede da minha casa que eu tivesse resolvido pintar de vermelho. A escultura tampouco vazia como um caixote do qual se removeu o contedo. Isso porque o termo vazio que usei para qualificar os trabalhos de J representa um juzo esttico e uma apreciao crtica, e pressupe que o objeto ao qual aplicado j uma obra de arte, por insondveis que sejam as diferenas entre ele e meros objetos logicamente insuscetveis de tais atribuies como uma classe. Seus trabalhos so vazios num sentido literal, assim como o so as demais obras da minha exposio. Mas no estou pensando em literalidade quando digo que, com efeito, os trabalhos de J carecem de riqueza.

    Pergunto a J qual o ttulo de sua nova obra e ele previsivelmente me diz que Sem ttulo to bom quanto qualquer outro. Isso mais um ttulo genrico do que a simples afirmao de um fato, como s vezes acontece quando um artista descuida de batizar sua obra ou no sabemos que ttulo ele deu ou teria dado. Observo que o mero objeto em cuja causa poltica J produziu seu trabalho tambm no tem ttulo, mas apenas por fora de uma classificao ontolgica: meras coisas no tm direito a ttulos. Um ttulo mais que um nome; geralmente

    j I -< a ' . u i a k i i F M r PAs :< l a / - .

  • uma orientao para a interpretao ou a leitura de uma obra. E at pode no ajudar muito, como no caso de um artista que perversamente d o ttulo Anunciao a uma pintura de mas. J no chega a ser to extravagante: seu ttulo indicativo, pelo menos no sentido de que a coisa a que se aplica no foi feita para ser interpretada. Pergunto-lhe ento sobre o que seu trabalho e ele me diz, tambm previsivelmente, que sobre nada. A resposta no , por certo, uma descrio do contedo do trabalho (pelo menos no da mesma maneira como o captulo 2 de O ser e o nada2 sobre o nada, sobre a falta). Se a questo essa, tambm se poderia dizer que Nirvana sobre nada no sentido de que seu assunto o nada, uma imagem do vazio.J salienta que seu trabalho vazio de imagem, menos um caso de mi- mese da vacuidade do que de vacuidade da mimese, e por isso, repete, sobre nada. Argumento que aquela superfcie vermelha em defesa da qual ele pintou Sem ttulo tampouco trata de nada, mas isso porque uma coisa, e as coisas, como classe, no tm um sobre-o-qu5 exatamente porque so coisas. Sem ttulo, em contraposio, uma obra de arte, e as obras de arte, conforme demonstra minha exposio, geralmente dizem respeito a algo. Portanto, a falta de contedo parece ser intencional no trabalho de J.

    Por enquanto, s posso alegar que embora ele tenha produzido uma obra de arte (um tanto minimalista), indiscernvel inspeo direta de uma mera superfcie pintada de vermelho, ainda assim no fez uma obra de arte a partir daquela mera superfcie vermelha. Seu trabalho continua a ser o que sempre foi, um estranho comunidade das obras de arte, ainda que essa comunidade contenha tantos membros indiscernveis do trabalho dele. Portanto, o gesto de J foi simptico mas incuo: incrementou minha pequena coleo de obras de arte, mas no rompeu as fronteiras que as separam do mundo das simples coisas. Isso deixa o artista to perplexo quanto eu. No possvel que

    2. Jean-Paul Sar t re , O ser e o nada, t rad. Paulo Perdigo (Petrpol is : Vozes, 2005) . [ n . t . ]

    3. Km ingls , abontness, que no sent ido usado neste l ivro s ignif ica aqui lo de que ta la '

    ou de que t ra ta" a obra, a que diz respei to , sobre o que" ela (comunicao

    pessoal do autor com a t radutora) . A t raduo adotada, sobre-o-qu", procura

    manter coerncia com a construo de concei tos por hifenizao que o autor usa

    em outras s i tuaes no l ivro. (n . t . |

  • a explicao esteja apenas no fato de J ser um artista, j que nem tudo em que um artista pe a mo se torna arte. Basta pensar na tela preparada por Giorgione, supondo-se que o pigmento tenha sido mesmo aplicado por ele: uma cerca pintada por J somente uma cerca pintada. Resta portanto uma nica opo, da qual J agora se d conta: declarar que aquela controvertida superfcie vermelha uma obra de arte. Por que no? Duchamp declarou que uma p de neve era uma obra de arte e ela passou a ser; afirmou que um porta-garrafas era uma obra de arte e ele passou a ser reconhecido como tal. Admito que J tem o mesmo direito, e ento ele proclama que a superfcie vermelha obra de arte e a faz cruzar triunfalmente a fronteira como se tivesse resgatado uma raridade. Agora tudo o que est na minha coleo obra de arte, mas nada ficou esclarecido sobre o que foi alcanado. A natureza da fronteira filosoficamente obscura, apesar do sucesso da investida de J.

    Chama a ateno o fato de que um exemplo como o que acabei de construir, formado por contrapartes indiscernveis entre si e que podem ter filiaes ontolgicas radicalmente distintas, possa ser construdo em outras reas da filosofia, quando no em todas. Na seqncia, examinarei tanto o princpio que permite a construo desses exemplos quanto os exemplos reais que formularei. Neste momento, talvez caiba citar apenas uma construo anloga, at como medida profiltica contra a suposio de que estamos lidando com estruturas peculiares filosofia da arte. Apresento, portanto, um exemplo tirado da filosofia da ao, que cito no para sugerir que a filosofia da arte subsidiria da filosofia da ao, mas para indicar que possvel distinguir estruturas semelhantes nesses dois campos, assim como, de fato, em todas as reas da anlise filosfica. Em escritos anteriores examinei as equi- valncias estruturais entre a teoria da ao e a teoria do conhecimento sem cair na tentao de proclamar uma identidade entre a cognio e a ao. Em todo caso, se me permitem citar a mim mesmo, eis um exemplo com o qual iniciei- Analytical Philosophy of Action:

    Na faixa central de seis quadros exibidos na parede norte da capela da

    Arena de Pdua, Giotto narrou em seis episdios a fase missionria da

    vida de Cristo. Em cada painel, a figura dominante de Cristo aparece

  • com um brao levantado. Apesar da posio invariante do brao, cada

    cena mostra com esse gesto um tipo diferente de ao, e devemos inter

    pretar cada ao a partir do contexto em que se realiza. Na discusso

    com os ancios, o brao levantado admoestatrio, para no dizer dog

    mtico; no banquete do casamento em Cana, o brao levantado do

    prestidigitador que transforma a gua em vinho; no batismo, o brao

    erguido em sinal de aceitao; o brao d uma ordem a Lzaro; abenoa

    o povo no porto de Jerusalm; expulsa os vendilhes do templo. Como o

    brao levantado est invariavelmente presente, essas diferentes aes tm

    de ser explicadas pelas variaes no contexto, e se verdade que o con

    texto no determina sozinho as diferenas e que preciso evocar as in

    tenes e propsitos de Cristo, ainda assim no podemos superestimar o

    grau em que o contexto permeia as intenes.4

    Ora, no campo da teoria da ao j se demonstrou a utilidade de indagar, maneira de Wittgenstein, o que resta quando se subtrai do fato de que voc levanta seu brao o fato de que seu brao se ergue. Estou convencido de que a resposta predileta de Wittgenstein para essa pergunta para-aritmtica zero, isto , que meu ato de levantar o brao e o ato de meu brao erguer-se so idnticos. Como afirmou Gertru- de E. M. Anscombe em Intention [1957I, Eu fao o que acontece. A parte outras dificuldades, difcil ver como essa resposta radical resiste ao exemplo acima citado, na medida em que o brao levantado no somente subdetermina as diferenas entre abenoar e admoestar, mas tambm entre um tipo qualquer de ao e um mero reflexo, um tique ou um espasmo, em que o brao se ergue sem ser levantado pelo dono, em contraste com uma ao bsica da espcie que estou supondo ser a de Cristo naquelas representaes. A diferena entre uma ao bsica e um mero movimento corporal comparvel em muitos aspectos s diferenas entre uma obra de arte e uma simples coisa, e a pergunta subtracionista poderia ser equiparada com outra, em que a questo saber o que resta quando se subtrai o quadrado vermelho de tela da obra intitulada Quadrado vermelho. Apesar da tentao de dizer, fazendo eco a Wittgentstein, que no resta nada, que esta ltima to-somente

    4. Athur C. l )anto, Analytical 1hilosophy f Action (Cambridge: Cambridge Um- vers i ty Press , 1973) , p . ixx.

  • aquele quadrado vermelho de tela, ou, de modo mais genrico e solene, que a obra de arte apenas o material de que feita, fica difcil entender como essa respeitvel teoria pode sobreviver a um exemplo no qual um quadrado vermelho de tela subdetermina as diferenas entre Os hebreus atravessando o mar Vermelho e O estado de esprito de Kierkegaard, assim como as diferenas filosoficamente mais profundas entre ambos e aquele quadrado vermelho que no uma obra de arte, mas uma simples coisa pelo menos at J t-lo redimido.

    Os seguidores de Wittgenstein compreenderam que, no campo da ao, sempre restava algo. Isso deu origem a uma proposio segundo a qual uma ao um movimento corporal mais x, o que, por analogia estrutural, originou a proposio de que uma obra de arte um objeto corpreo mais y. Em ambos os casos, o problema resolver x e y de algum modo filosoficamente aceitvel. Uma primeira soluo wittgens- teiniana foi a de afirmar que uma ao um movimento corporal que segue uma regra. E claro que essa soluo no resolveu o problema da distino entre movimentos corporais suficientemente voluntrios para permitir que os agentes em questo internalizem e sigam uma regra como na comunicao por sinais, para citar um exemplo simples e convincente e movimentos corporais que, embora indiferenciveis dos primeiros, so involuntrios, como os tiques e os espasmos. Admitindo-se que os ltimos no se submetem a regras porque no so aes, segue-se que ser uma ao uma condio necessria para que um movimento corporal seja includo numa regra apropriada. Por conseguinte, a submisso a regra no pode explicar uma distino que a prpria regra pressupe. Creio que subsistem perplexidades anlogas na anloga teoria da arte segundo a qual um objeto material (ou um artefato) uma obra de arte quando o arcabouo institucional do mundo da arte assim o considera. A teoria institucional da arte no explica, embora permita justificar, por que a Fonte de Duchamp passou de mera coisa a obra de arte, por que aquele urinol especfico mereceu to impressionante promoo, enquanto outros urinis obviamente idnticos a ele continuaram relegados a uma categoria ontologicamente degradada. A teoria deixa ainda em aberto o problema de outros objetos indiscern- veis, dos quais um uma obra de arte e o outro no.

    O impacto wittgensteiniano na filosofia da ao foi claramente polmico. Subsumindo as aes nos movimentos corporais, os

    ' i H K A S D l A H T I ; v i 1 k A ' > ' ; r ; - , A S K f A 1 ' .

  • wittgensteinianos procuraram evitar as contaminaes dualistas das teorias da ao tradicionais, segundo as quais um movimento corporal uma ao quando tem alguma causa interior o que quer dizer mental , como uma volio ou um motivo, e mero movimento fsico quando lhe falta uma causa mental. Os wittgensteinianos, que desprezavam o Mundo Interior e associavam mentalismo com dualismo, preferiram se refugiar nas externalidades da vida institucional a admitir as comprometedoras internalidades da vida mental quando reconheceram que a identificao radical era problemtica. Mas isso assunto para outro livro. Aqui suficiente assinalar que j predominaram teorias sobre a diferena entre obras de arte e meras coisas que parecem to filosoficamente inaceitveis quanto o mentalismo para os wittgensteinianos teorias para as quais a prpria teoria institucional, seja qual for a motivao dos seus seguidores, um bvio e implacvel antdoto.

    Uma dessas teorias, que menciono apenas por se encaixar perfeitamente nas teorias da ao que os wittgensteinianos rejeitavam, a seguinte: uma obra de arte um objeto apropriadamente chamado de expresso porque sua causa um sentimento ou uma emoo particular de quem a realizou e que ela efetivamente expressa. Segundo essa concepo, uma ao e uma obra de arte se distinguem por suas respectivas ordens de causas mentais e, alm disso, pela diferena entre corresponder a uma inteno e exprimir um sentimento. A teoria certamente ter dificuldades para diferenciar obras de arte do caso paradigmtico de coisas que expressam sentimentos sem ser obras de arte lgrimas, gritos, caretas, por exemplo. Se a simples ocorrncia de um sentimento no permite discriminar entre obras de arte e soluos, compreende-se a importncia de buscar uma marca externa. Mas, como demonstram nossos quadrados vermelhos, pode ser que tampouco haja uma marca externa. J que as caractersticas diferen- ciadoras parecem no ser nem internas nem externas, fcil simpatizar com a resposta inicial dos wittgensteinianos de que a arte talvez seja indefinvel e admitir que (numa resposta posterior, mais ponderada) a definio deve ser procurada em fatores institucionais. De todo modo, porm, no estamos aptos a concluir que a indiscernibilidade no pode servir de base para uma boa teoria da arte nem para uma boa teoria filosfica sobre qualquer outra matria. Voltaremos a tratar

  • das conseqncias dessa idia, que talvez tenha sido prematuramente enunciada aqui, medida que nossa argumentao evoluir.

    Consideremos agora um espcime um pouco mais precioso da obra de J: no ano passado, inspirado por algumas famosas teorias da arte propostas por Plato e Shakespeare, J mostrou um espelho numa exposio. O mundo da arte estava pronto para um acontecimento dessa ordem, de modo que no se chegou a questionar se o objeto era ou no uma obra de arte, embora no deixe de ter um interesse filosfico saber o que qualificava o espelho a ser reconhecido como tal. Surpreendentemente, apesar de ser uma metfora natural para a teoria de que a arte uma imitao, esse espelho contestava a teoria, porque no era, em si, imitao de nada. J fez questo de dizer, com sua habitual rispidez, que aquilo era s um espelho, um espelho comum. Ele poderia ter pendurado uma fileira de espelhos nas paredes da galeria e batizado a obra de Galerie des glaces, maliciosa imitao do clebre salo do Palcio de Versalhes. Mas apesar de ser uma imitao, no sentido de usar espelhos para imitar espelhos, o fato de os espelhos serem o tema e a obra parece ser uma questo acessria para o fato da imitao: por sinal, uma fileira de cabos de vassoura postos na vertical, a intervalos regulares, ao redor da sala bem poderia imitar ou espelhar o peristilo de Karnac: sem necessidade alguma de colunas. Nesse caso, uma coisa poderia ser uma imitao sem ser um espelho, ao contrrio do trabalho de J, que um espelho sem ser uma imitao. Portanto, as teorias que inspiraram J so negadas pelo trabalho que princpio devia ilustr-las.

    Eu seria a ltima pessoa no mundo a recusar o ttulo honroso de obra de arte ao Espelho, pois minha nica preocupao investigar como a obra adquiriu esse status. Uma coisa, porm, evidente: embora um espelho possa ser uma obra de arte, o fato de que esse espelho em particular seja uma obra de arte tem muito pouco a ver com sua condio de espelho. A teoria de que a arte um espelho voltado para a natureza curiosamente irrelevante para determinar o status de obra de arte desse espelho, uma vez que a qualidade de espelho parece ter to pouca relevncia para sua condio. No lugar do espelho, J poderia ter mostrado uma cesta de pes apoiando-se na mesma teoria; o problema de saber por que essa particular cesta de pes

  • uma obra de arte enquanto no o a que est em cima de minha mesa equivale precisamente questo de saber por que razo o espelho de J uma obra de arte e o espelho na bolsa de Frayda Feldman dona da galeria que teve a felicidade de expor os trabalhos do artista no . A riqueza do Espelho est em acreditarmos que a obra se relaciona com uma teoria que aparentemente no tem nada a ver com ela, e dessa forma o objeto no parece ser muito diferente das duas superfcies pintadas de vermelho que J conseguiu que fossem qualificadas como obras de arte.

    No estou tentando me justificar diante de J: apenas procuro entender onde est a lgica desses feitos. Seria cmico se J quisesse me fazer acreditar que uma cesta de pes um espelho. Por que ento ele conseguiu me fazer aceitar com tanta facilidade que um espelho uma obra de arte? Afinal, que tipo de predicado uma obra de arte? Talvez seja oportuno voltarmos a uma classe mais manejvel de obras, as mesmas que a teoria de J evocou: coisas que so obras de arte porque so espelhos e no apesar de serem espelhos, como parece acontecer com os trabalhos de J. Pois essa mesma teoria sustenta que h uma distino entre obras de arte e meras coisas, e assim talvez possa nos ajudar a entender a fronteira que nossos exemplos ultrapassam sem eliminar.

    Exprimindo ou no com fidelidade as teorias que Plato e Shakespea- re conceberam, o fato que as vozes de Scrates e Hamlet enunciaram a tese de que a arte um espelho da realidade. Mas a partir dessa metfora comum eles chegaram a avaliaes conflitantes a respeito da condio cognitiva e, suponho, ontolgica da arte. Certamente no fcil dizer se Scrates estava sendo irnico, como sempre, ao evocar os espelhos como um contra-exemplo astucioso para refutar uma teoria que os espelhos ilustram, pois ele devia saber to bem quanto Shakespeare que as imagens no espelho de coisas reais no so, como tais, obras de arte. Creio que a tese de Scrates era a de que a arte uma imitao da realidade, e a imitao foi caracterizada meramente como aquilo que reproduz uma realidade preexistente. Se nada mais que isso fosse exigido para definir uma obra de arte, no haveria critrio algum para diferenciar imagens refletidas no espelho, que na opi-

  • nio geral nem sempre so obras de arte, de exemplos mais rotineiros de mimese. Portanto, preciso buscar uma outra condio. Na melhor das hipteses, teramos uma condio necessria condio de arte. Scrates talvez estivesse sugerindo que se a mimese perfeita era afinal o grande objetivo dos artistas, como parecia estar ocorrendo no mundo da arte do seu tempo e, na opinio dele, de maneira cada vez mais perigosa, ento, se era s isso que se almejava fazer uma cpia exata , seria bem mais fcil obt-la no pelos mtodos usuais da educao artstica, mas pelo simples estratagema de colocar um espelho voltado para o mundo: Em breve criars o Sol e os astros, e a Terra e a ti mesmo, e os outros animais e plantas, e todas as demais coisas das quais acabamos de falar, no espelho.' Tentativa semelhante foi a que levou Digenes a propor o exemplo de uma galinha depenada para invalidar uma definio do homem como um bpede sem penas, e que, num ato de crtica de arte, antecipou o gesto anlogo de Picasso de colar o rtulo de uma garrafa de Suze no desenho de uma garrafa, insinuando que no havia muito sentido em buscar uma similitude com a realidade mediante rduos exerccios acadmicos, quando bastava anexar fragmentos da realidade e incorpor-los s obras para obter o que os melhores artistas acadmicos somente podiam aspirar. Quem precisa, e qual o sentido e a finalidade de ter cpias exatas de uma realidade que j temos diante de ns? Quem precisa de imagens isoladas do Sol, das estrelas e de tudo o mais, se podemos ver todas essas coisas e se tudo que aparece refletido num espelho pode ser visto no mundo sem ele? Qual a finalidade de destacar aparncias do mundo e mostr-las refletidas numa superfcie? Isso escapava compreenso de Scrates. E se tudo o que a mimese fazia era uma intil reproduo de aparncias, a perplexidade de Scrates quanto condio da arte assim caracterizada justificava-se perfeitamente.

    Mas at os espelhos, seja qual for a relao que mantenham com as mimeses como classe, contm extraordinrias propriedades cognitivas s quais Scrates foi estranhamente insensvel, uma vez que h coisas que podemos ver nos espelhos mas que no podemos ver sem eles, notadamente ns mesmos. Fixando-se nessa assimetria dos reflexos no espelho, Hamlet usou a metfora de modo muito mais

    5 - Plato, A repblica, x . | n . t . ]

    H R A : v ( j f A f v ' f l M ( K / V . f < f A I S I 4 3

  • profundo: os espelhos e, por extenso, as obras de arte, em vez de nos devolverem o que podemos conhecer sem eles, so instrumentos de autoconhecimento. Isso envolve uma complexa epistemologia na qual vale a pena nos determos por um momento.

    Para comear, consideremos Narciso, que Leon Battista Alberti acreditava, no se sabe bem em que bases, ter sido o iniciador da representao artstica, segundo os antigos. Se isso for verdade, Scrates traduziu as idias do seu tempo. Embora seja verdade que Narciso se enamorou de si prprio, ele no sabia de incio que estava apaixonado por si mesmo. O objeto inicial de sua paixo foi sua prpria imagem, devolvida a ele pela superfcie serena de uma fonte cristalina

    um espelho natural , que Narciso a princpio acreditou ser um jovem maravilhoso e encantador que o mirava desde as profundezas. Seria fascinante especular como Narciso deduziu que era sua prpria imagem, ele mesmo portanto, que lhe parecia to obsessivamente sedutora: afinal de contas, ele poderia ter interpretado o mundo do espelho como uma realidade alternativa impenetrvel, qual somente se tem acesso pela viso (como o mundo dos filmes de cinema), e assim poderia ter explicado a no-consumao do amor, causa de sua morte, por outra coisa que no as nossas limitaes anatmicas. Apesar disso, Narciso morreu de autoconhecimento, exatamente como previra Tirsias, numa lio prtica do suicdio epistemolgico que deveria ser levada a srio por aqueles que pensam que a famosa mxima cognitiva de Scrates, conhece-te a ti mesmo, pode ser seguida impunemente. Scrates teria afastado com desdm essa hiptese, dizendo que ela no seria mais que um exemplo de paixo cega pelas aparncias, a mesma que sua averso pelos reflexos no espelho e pela mimese em geral pretendia repudiar: a autocatexia de Narciso seria uma lio prtica dessa paixo (embora seja curioso que ele no se enamorasse pelo som de sua voz, a pattica obsesso de Eco).

    Contudo, essa interpretao talvez seja fruto de um entendimento superficial da estrutura do autoconhecimento, se for lcito aplicar certa anlise dessa estrutura derivada das teorias de Sartre sobre o assunto. Sartre distingue o conhecimento imediato e direto que temos (ou que filosoficamente alegamos ter) de nossos prprios estados de conscincia do conhecimento que temos dos objetos, dos quais podemos estar conscientes sem que estes sejam estados da conscincia: podemos estar

  • conscientes deles como objetos, como coisas do nosso mundo, sem termos conscincia de ns mesmos como um objeto ou, em conseqncia, como uma coisa no mundo. Uma conscincia que est consciente de si mesma (e para Sartre no h outro tipo de conscincia) o que ele designa como um para-si (pour-soi), uma entidade imediatamente consciente de si mesma como um self, um eu, e imediatamente consciente de que no um dos objetos dos quais tem conscincia. No h nada na estrutura interna do ser para-si, assim compreendido, que o leve a conceber a si mesmo como um objeto, uma vez que ele pertence a uma ordem ontolgica radicalmente distinta da ordem dos meros objetos. At aqui, o pour-soi se assemelha quilo que Berkeley define como esprito e os objetos, respectivamente s coisas. Assim, com inusitada surpresa metafsica que vemos a possibilidade de que o pour-soi compreenda que tem um outro modo de ser, que ele um objeto para outros, tem uma existncia para para-o-outro (pour-autrui) e dessa forma participa do modo degradado de ser das coisas de que sempre se distinguiu: ele reconhece possuir, por assim dizer, um lado exterior e um lado interior, enquanto a experincia de si como pour-soi no o teria levado a nenhuma das duas concluses seria metafisicamente sem lados.

    Sartre ilustra brilhantemente essa teoria com o exemplo de um voyeur que inicialmente apenas um olhar fixo deleitando-se com vises proibidas pelo buraco da fechadura, at que de repente ouve passos se aproximando e percebe que ele mesmo est sendo visto, que possui uma identidade exterior, de voyeur, aos olhos do outro. Consideraes morais parte, a estrutura filosfica da descoberta muito forte: tomo conhecimento ao mesmo tempo de que sou um objeto e de que um outro um sujeito noto que aqueles olhos no so apenas dois bonitos pontos coloridos, mas esto olhando para mim, e descubro que tenho um lado exterior logicamente inseparvel da descoberta de que os outros tm um lado interior. Esse um reconhecimento muito complexo, principalmente, suponho, na situao de Narciso que, pela primeira vez v, no espelho das guas do Tspia, o que os outros viam, seu prprio rosto e sua prpria forma, e conclui ento que estava apaixonado pelo que tinha visto. J que o olhar em que ele fora aprisionado como objeto era o seu prprio olhar, devolvido a ele pela mediao de uma superfcia refletora, Narciso tornou-se servo e senhor numa s pessoa e sem dvida morreu daquilo que Sartre diz

    ; I !RAS IH ART 1 . I - N ' t KA ' ;> . j 'SA l kFA: ' , I 45

  • ser uma paixo intil, que tornar-se uma coisa autoconsciente, cujo exterior e cujo interior so um s.

    Hamlet certamente deve ter em mente a funo do espelho como um modo de autoconhecimento quando, por meio da Morte de Gonzaga, busca surpreender a conscincia do rei. As constataes que Cludio faz so muito mais complexas que as de Narciso, j que o rei provavelmente a nica pessoa da platia que compreende que a pea um espelho e reproduz fatos histricos especficos que ele mesmo protagonizou. Assim, ele sabe que seus atos so objetos na conscincia do outro Hamlet , e no momento culminante percebe que Hamlet sabe que Cludio sabe que Hamlet sabe das torpes verdades. Esse um magnfico exemplo de conscincias capturadas na mesma armadilha, mas por isso mesmo difcil generaliz-lo numa boa teoria, mesmo sobre arte mimtica. A idia de Hamlet de fazer de uma pea de teatro um espelho adequada ao contexto, porque ele tem a inteno de mostrar ao rei um reflexo da sua prpria estatura moral. Mas para o rei a pea parece ser bem diferente daquela que o resto da platia compreende; os outros espectadores talvez a vissem como uma imitao de uma ao, se tivessem lido Aristteles, ou como uma aluso genrica volubilidade da afeio das mulheres e aos meandros da usurpao poltica, ou, ainda, como um mero entretenimento palaciano. Qualquer pessoa pode se ver refletida numa obra de arte e descobrir algo sobre si mesma, mas somente num sentido muito geral se poderia ver naquele arcaico torso de Apoio que inspirou a Rilke versos esplndidos uma imagem de espelho do poeta que resolveu mudar sua vida por causa dele; creio que o poeta viu sua fragilidade refletida na fora da esttua: da ist keine Stelle, / die dich nicht sieht.' Uma mulher libertina poderia ver sua degradao numa pintura da Virgem Maria. Ainda assim, no h necessidade da arte para esse tipo de autoconscincia, como demonstram as anlises de Sartre. Questo superficial ou no, funo replicadora dos espelhos, doravante das obras de arte, como imitaes que devemos voltar. Plato teria de fazer um enorme ajustamento metafsico para acomodar o que aparentamos ser na estrutura do que somos, e no

    6. Km alemo no or iginal : "pois nela no h lugar / que no te mire ("O torso ar

    caico de de Apoio) . [ n . t . |

  • obstante extraordinrio que tanto Plato quanto Shakespeare (em sua declarao final) tenham posto a arte, as aparncias, os reflexos no espelho e os sonhos na classe ontolgica mais baixa: um cortejo incorpreo desvanecido.

    Plato no disse propriamente que a arte era mimese, mas que a arte mimtica era perniciosa, embora o fizesse de uma forma difcil de entender sem que sejam compreendidas ao mesmo tempo as complexas estruturas metafsicas que formam o ncleo da teoria platnica. Para comear, esse tipo de arte situa-se numa desprezvel distncia da realidade, isto , da realidade daquilo que Plato denominou como formas. S as formas so verdadeiramente reais, por serem imunes a mudanas: as coisas podem aparecer e desaparecer, mas as formas que essas coisas exemplificam no aparecem e desaparecem elas ganham ou perdem exemplificaes, claro, mas em si mesmas existem independentemente delas. Assim, deve-se distinguir a forma da Cama das camas feitas pelos carpinteiros e que participam dessa forma comum: as camas especficas devem sua propriedade geral de Cama a tal participao, e so menos reais do que as formas que exemplificam. As imitaes de camas nem sequer exemplificam a propriedade geral de Cama; elas apenas parecem faz-lo, como aparncias de aparncias, e esto a uma distncia de dois graus da realidade. Por isso, apenas tm direito ao status ontolgico mais baixo. Dado que as produes dos artistas seduzem as almas dos amantes da arte com o que so, pouco mais que sombras de sombras, desviam nossa ateno no s do mundo das coisas comuns, mas tambm do domnio mais profundo das formas por meio das quais o mundo das coisas comuns se torna inteligvel. Como a filosofia tem justamente o objetivo de chamar a ateno para essa realidade superior e a arte tem como conseqncia distanciar-nos dela, arte e filosofia so an- titticas. Essa uma segunda razo de acusao contra a arte, tendo em vista a importncia moral e intelectual que a filosofia tem para Plato. Por fim, falando como um terapeuta precoce e um verdadeiro filistino, Plato insinua que a arte mimtica uma espcie de perverso uma atividade substituta, defletida, compensatria, a que se dedicam, como

    7. Shakespeare, A tempestade, a to iv , cena 1. [n . i . |

  • ltimo recurso, aqueles que so impotentes para ser o que meramente imitam. E quem pergunta Plato preferiria a aparncia da coisa coisa mesma? Quem se disporia a pintar uma pessoa que se pode ter, por assim dizer, em carne e osso? Quem preferiria fingir que uma coisa a ser essa coisa? Quem pode, faz talvez seja esse o sentido das perguntas de Plato; quem no pode, imita.

    Toda a histria da arte posterior pode ser lida como uma resposta a essa tripla acusao; pode-se imaginar que os artistas se empenharam numa espcie de promoo ontolgica, no sentido de superar a distncia entre a arte e a realidade e assim galgar uma posio na escala do ser. O artista norte-americano Robert Rauschenberg declarou certa vez: A pintura diz respeito tanto arte quanto vida (eu procuro trabalhar no vo entre elas). No ter sido por acaso que em certa ocasio Rauschenberg exps uma cama, como se a arte, assim como a filosofia, de acordo com [Alfred North] Whitehead, no fosse mais que um conjunto de notas de rodap s idias de Plato. A cama no era para dormir, com certeza, pois estava colocada em p, presa parede, e besuntada de tinta. Mais ou menos na mesma poca, Claes Oldenburg mostrou numa exposio um objeto mais parecido com o que um carpinteiro poderia ter construdo: uma horrenda cama de plstico em que teria sido um suplcio dormir, mas nada mal para um artista se o desnvel entre este e o carpinteiro for mesmo to grande quanto Plato supunha. Ao nosso artista J s restaria a alternativa de terminar o que comeou e expor sua cama como obra de arte, sem ter de lambuz-la com aquele rastro de tinta que Rauschenberg supersticiosamente derramou sobre a dele, talvez para deixar claro que se tratava de uma obra de arte. J alega que sua cama no imita coisa alguma: s uma cama. No h dvida de que foi feita por um carpinteiro, mas se este fez a cama, J fez a obra de arte. Considerando que outras camas exatamente iguais dele so camas e no obras de arte, ser colocado lado a lado com um carpinteiro no chega a ser um xito filosfico, por mais sucesso que a Cama de J tenha alcanado como obra de arte.

    Talvez seja o caso de repensarmos a histria da arte: se ainda existe uma lacuna, e se, alm do mais, a tentativa de estreit-la maneira de J simplesmente abre um novo hiato entre as suas obras de arte e as coisas reais que lhes so perfeitamente semelhantes, a

  • lacuna pode ser mais interessante do que o que se passa de um lado e do outro. Suponhamos que se examine o hiato entre as imitaes e a realidade para determinar de que tipo de hiato se trata, e depois se procure descobrir o que ele tem de comum com a lacuna entre a arte e a vida que os artistas contemporneos parecem to empenhados em explorar bem possvel que o resultado seja uma compreenso melhor da arte e da vida simultaneamente. Voltemos ento considerao mais elementar da arte como imitao, como duplicao de uma realidade ulterior que est para esta tal como uma imagem de espelho est para a coisa refletida, abstrainao-se as complicaes shakespearianas relacionadas conscincia e as reflexes platnicas acerca da metafsica. O que me leva a investigar essa antiga teoria que o hiato entre imitao e realidade pode ser uma forma bem mais inteligvel de estimar o hiato entre arte e vida. A estratgia ser excelente se nos levar a descobrir que ambos exemplificam o mesmo tipo de hiato.

    w

    E um fato reconhecido que a semelhana ou mesmo a similitude perfeita entre pares de coisas no faz de uma a imitao da outra. Uma das exigncias de minha exposio de superfcies vermelhas, decorrente da lgica mesma do princpio que deviam exemplificar, era que todos os itens se assemelhassem uns aos outros. Mas cada um era independente dos demais, como se nota em minha descrio, e nenhum imita qualquer outro (embora eu pudesse acrescentar uma pintura do mero quadrado vermelho, exatamente igual ao seu tema, que o imitasse perfeitamente, ou adicionar ao exemplo original algumas cpias de obras de arte reconhecidas). Da mesma maneira, a cama de J se parece com uma cama qualquer, mas no imita nenhuma. O artista explica pacientemente que de fato apenas uma cama, no a imitao de uma cama, como a que Van Gogh pintou em uma das paisagens de seu quarto. As imitaes contrastam com a realidade, mas no posso usar na anlise da imitao um dos termos que pretendo esclarecer. Dizer isto no real certamente contribui para o prazer das pessoas com as representaes imitativas, de acordo com um admirvel estudo de psicologia escrito por Aristteles. A viso de determinadas coisas nos causa angstia, escreve Aristteles na Potica, mas apreciamos

  • olhar suas imitaes mais perfeitas, sejam as formas de animais que desprezamos muito, sejam cadveres.

    Esse tipo de prazer pressupe o conhecimento de que seu objeto uma imitao, ou, correlativamente, o conhecimento de que no real. H portanto uma dimenso cognitiva nessa forma de prazer, assim como em muitos outros prazeres, inclusive os mais intensos. A crena de que estamos fazendo sexo com o parceiro certo, ou pelo menos com o tipo certo de parceiro, certamente faz parte do prazer sexual, mas no claro se o prazer resistiria ao reconhecimento de que essas crenas tcitas so, na verdade, falsas. Analogamente, suponho que o prazer de comer determinadas coisas pressupe algumas crenas, como a de que elas so o que pensamos estar comendo. Mas a comida pode se tornar um punhado de cinzas quando se descobre que isso no verdade que carne de porco, para um judeu ortodoxo, ou carne de vaca, para um hindu praticante, ou carne humana, para a maioria de ns (por mais que o sabor nos agrade). No preciso sentir a diferena para haver uma diferena, pois o prazer de comer geralmente mais complexo, pelo menos entre os seres humanos, do que o prazer de sentir o gosto. Conforme observou [Nelson] Goodman a respeito de um exemplo anlogo, saber que algo diferente pode fazer diferena para o gosto que sentimos. Se no o fizer, que a diferena de gostos talvez no seja uma coisa que preocupe o bastante para que as respectivas crenas sejam um requisito do prazer.

    E evidente que carne de vaca no carne de porco de imitao assim como os homens no so mulheres de imitao, para retomar o exemplo sexual segundo o qual pensamos estar envolvidos com um tipo de parceiro quando na realidade outro completamente diferente. A as crenas que so falsas, pois tomamos uma coisa por outra. No sei muito bem se o que distingue a imitao da realidade da mesma ordem daquilo que diferencia o homem da mulher ou a carne de porco da carne de vaca, em parte porque no tenho certeza sobre que espcie de propriedade diferenciadora a realidade em si. Mas surpreendente que a fonte de prazer, no caso das imitaes, tenha de ser compreendida como no real, seja o que isso for, e que se parta do pressuposto de que o conceito acessvel a qualquer um que experimente essa categoria de prazer. E possvel que as crianas sintam menos prazer que os adultos com as imitaes, porque ainda no de-

  • senvolveram um senso de realidade ou no dominaram o conceito de realidade. E se as imitaes lhes proporcionam realmente prazer, no por serem imitaes, como supe a observao de Aristteles. Voc pode dar uma imensa alegria a uma pessoa crdula imitando o filho que ela perdeu h anos, fingindo ser esse filho mas a alegria da pessoa dificilmente sobreviver descoberta de que voc um filho de imitao. O prazer de um pai ou de uma me exatamente o inverso do prazer descrito por Aristteles, que exige saber que uma imitao e para o qual o fato de ser uma imitao faz parte da explicao do prazer usufrudo. Assim, uma pessoa pode se comprazer com o que julga ser uma imitao do seu filho, mas esse prazer se modificar profundamente se ela descobrir ou reconhecer, como diria Aristteles que o que pensava ser uma imitao era afinal de contas seu filho verdadeiro. O prazer que sentimos com as imitaes pertence, portanto, mesma ordem da satisfao que as fantasias nos proporcionam quando sabemos que se trata de uma fantasia e que no estamos sendo induzidos a crer que seja uma coisa real. As pessoas fantasiosas s vezes se sentem perseguidas pela culpa, achando que se suas fantasias so mrbidas ou sdicas elas tambm o so, quando na verdade a maioria se sentiria horrorizada se estivesse diante das realidades que correspondem a seus devaneios, assim como nos sentimos diante do que Aristteles chama de animais que mais desprezamos, e cujas efgies quanto mais perfeitas mais apreciamos ver. No h aqui nenhuma inferncia de que no fundo amamos esses animais. evidente que parte do prazer se deve ao conhecimento de que aquilo no est realmente acontecendo, e no a um aprendizado decorrente da imitao, como Aristteles acrescenta, parecendo dar uma explicao mas na verdade mudando de assunto.

    Esse tipo de prazer, portanto, s est ao alcance dos que tm um conceito de realidade oposto ao de fantasia ou de imitao e daqueles que compreendem que o prazer seria muito diferente se tentassem concretizar suas fantasias. Ou, se no houver diferena nos prazeres, o primeiro no pode ser explicado como fruto das fantasias, porque a diferena entre fantasia e fato evidentemente no tem a menor importncia no plano hedonista: uma fantasia que causa o prazer, mas no por ser uma fantasia. Assim, tanto o conhecimento sobre a explicao do prazer quanto o da origem do prazer devem

  • ser igualmente pressupostos. E nada disso possvel se a noo de diferena entre realidade e fantasia ou imitao ainda no se formou, como na criana, ou inoperante, como no louco, de acordo com o princpio de Plato de que o louco vive como reais os prazeres com que a maioria de ns apenas sonha. Essa falsa crena muito di-' ferente de pensar que a carne de vaca quando ela de porco. Aprender a distinguir entre aparncia e realidade uma experincia de outra ordem, um pouco mais filosfica do que a de aprender a distinguir entre carne de porco e carne de vaca ou entre homem e mulher, e somos obrigados a fazer um esforo para esclarecer as coisas, tanto mais que distinguir entre aparncia e realidade tem muito a ver com aprender a diferena entre uma obra de arte e um objeto real. Mas o apreciador da arte no como o homem da caverna de Plato, que no consegue distinguir a diferena entre realidade e aparncia: o prazer do apreciador da arte baseia-se exatamente numa diferena que ele deve ser capaz de estabelecer logicamente.

    Voltemos a Narciso, que se enamora do que acredita ver na gua: um belo rapaz. Naquele momento, Narciso poderia estar convencido da existncia de duas categorias de rapazes: os que vivem na gua e os que, como ele, vivem no ar. Com base nessa crena, ele poderia ter imaginado toda uma complexa antropologia dos habitantes da gua e descoberto, depois de longa observao, que eles tm formas e modos de ser notavelmente correspondentes aos nossos, embora sejam estranhamente anisotrpicos e insuscetveis a ferimentos: lanas que lhes atravessam os corpos no produzem sangue. E esses seres lhe parecem irritantemente inacessveis. Como quer que Narciso tenha chegado noo de reflexo, ela imensamente simplificadora da antropologia, da fisiologia e da hidrologia, com pequeno prejuzo para a ptica. Os rapazes-de-reflexo,8 supe Narciso, no so verdadeiros rapazes, mas simulacros, e assim ele descobre espontaneamente um predicado (-de-reflexo) que, quando ligado a um sujeito, no produz as inferncias que os predicados normalmente ligados aos sujeitos produzem rapazes gordos so rapazes, rapazes esguios so rapazes,

    8. No or iginal , reflection-boys. |nvi . |

  • mas rapazes-de-reflexo no so rapazes. Como o mundo est cheio dessas classes de correspondncias, mais cedo ou mais tarde todos ns acabamos dominando um certo nmero desses predicados. Assim, um menino conta para sua me que havia um gato no quarto dele noite, e que o gato queria com-lo. A me, por incrvel que parea, dada sua atitude habitualmente protetora, no sai caa do gato, mas explica ao menino o conceito de sonho: um gato-de-sonho no um gato.

    difcil no admirar o imenso esforo terico investido na criao de tais predicados. Alguns povos tribais crem que as experincias vividas nos sonhos realmente acontecem e descartam as evidentes incoerncias da seguinte maneira: durante o sono a pessoa deixa seu corpo por algum tempo e vai ocupar um outro, e nesse corpo que ela passa, realmente, pelas experincias que ns dizemos no ter sido vividas, mas sonhadas. As distores que geralmente consideramos tpicas dos sonhos so explicadas felizmente pela dificuldade de trocar de corpo. Digo felizmente porque a alternativa seria imputar as distores ao mundo e crer que a realidade muito mais intrincada do que nos faz supor a vida em nossos corpos enfadonhos, uma realidade cheia de metamorfoses e transmutaes alucinadas, em que tudo o que meramente desejamos pode ser realizado de verdade. Explicando as distores da fantasia como fazem, essas tribos tm melhores chances de esboar uma cincia plausvel do que se tivessem de integrar o que sonham com o que observam cotidianamente: quase no h leis da natureza para eles. Quando dizemos um sonho, um reflexo, um eco, introduzimos um amortecedor de choques no sistema de crenas que define o mundo de modo conservador, j que expulsa para um espao ontologicamente diferente entidades que, se fossem aceitas no mundo, complicariam demais o sistema. De fato, mesmo quando dominamos tais conceitos nem sempre fcil aplic- los em certas figuraes, sobretudo quando so to semelhantes s suas contrapartes reais que nenhum aspecto interno a elas nos permitiria classific-las corretamente.

    Tal o caso .daqueles pobres viajantes a quem a mgica de Prspero convenceu de que seu navio estava pegando fogo e havia uma tempestade no mar: afinal, esses desastres acontecem e seria quase loucura sugerir, no meio do tumulto, que tudo era uma alucinao. De fato, quando Prspero proclama ter criado a tempestade com sua mgica

    l PAS r - AP ' t | - M l PA ' - , 0 SAS P A ' c - , I 5

  • era mais plausvel consider a ele como louco. A funo epistmica da inspida alegoria do quarto ato de A tempestade justamente provar para Ferdinando que ele, Prspero, possua realmente tais poderes:

    Preciso / mostrar a esse jovem casal / algumas bobagens de minha arte.9 Pois de que outra maneira iriam acreditar nele sem sacrificar a confiana prpria para distinguir o real da fantasia? O naufrgio, portanto, no tem mais peso ontolgico do que a trama v dessa viso,'0 de modo que preciso rever todas as certezas baseadas na aparncia dessa realidade e resgatar a verdadeira histria dos ltimos acontecimentos da histria contrafactual construda a partir da iluso. Imaginem como seria difcil explicar que o navio foi encontrado intacto se as pessoas continuassem a crer na realidade do incndio em alto-mar e no naufrgio. Embora o exemplo se complique com a introduo do conceito de magia que quase da mesma ordem lgica de sonho e reflexo , a questo tem tamanho peso que est na origem de toda a problemtica do ceticismo na filosofia. Os predicados que nos preocupam e que pressupem a idia de que a coisa a que se referem uma falsa coisa no sentido de que um falso amigo no um amigo, ou que uma falsa gravidez no uma gravidez possibilitam interpretar um falso x como um x, j que, visto do exterior, um falso x suficientemente parecido com um x para ser aceito como um x, do mesmo modo que Descartes supunha que poderamos aceitar o mundo de sonho como o mundo real. Se uma imitao de x tambm um falso x, a arte mimtica, para um esprito desconfiado como Plato, oferecia uma permanente possibilidade de iluso. E claro que as crenas sobre falsas coisas no so necessariamente falsas crenas, e cabe notar (pois esta uma ambigidade que voltarei a examinar mais adiante) que uma falsa crena uma crena da mesma forma que uma falsa proposio uma proposio. Deixando de lado a discusso sobre a iluso, esse estigma de falsidade descritiva deve ter preocupado Plato em relao s obras de arte mimticas, embora no lhe tivesse ocorrido que o conceito de obra de arte tem a mesma funo de expulsar da realidade os objetos aos quais aplicado, independentemente de que o objeto em questo venha a ser, ademais, uma imitao. E como se

    9. Shakespeare, A tempestade, a to IV, cena 1. |n . i . ]10. Id., ibid. JN .1 .j

    54 C A P T U L O

  • no tivesse ocorrido a Plato que existem outros modos, alm das imitaes, de desqualificar as coisas como irreais.

    Consideremos a funo de uma expresso como foi sem querer aplicada a uma ao. Ela serve justamente para tira