danilo arnaldo briskievicz atenção: há...

106
1 danilo arnaldo briskievicz atenção: há tensão

Upload: dinhhanh

Post on 22-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

danilo arnaldo briskievicz

atenção: há tensão

2

danilo arnaldo briskievicz

Ah, tensão: atenção...

Edição do Autor Belo Horizonte – 2016

3

PARTE 1

4

1 procuro a rua certa para o encontro entre mim e ela não há ela nem eu nem há encontro entre mim e ela procuro a realidade não há verdade entre mim e ela há linguagem dentro para dizer de fora entre mim e ela há tensão no ar procuro ela pra escutar e falar ela: FELICIDADE

5

2 a cidade não tem feira suficiente para a fome fome de sentir-se pleno: não tem fome de achar-se santo: não vejo fome de querer-se forte: não vende a cidade não oferece alimento para a alma estou com fome: quero a plenitude estou com fome: quero a salvação estou com fome: quero a fortaleza a cidade não disponibiliza fruto para o corpo corpo quer corpo: limitação corpo quer corpo: pecado corpo quer corpo: fragilidade a cidade não tem feira suficiente para a fome

6

3 o drone voador sobre o teto da cidade vigia o movimento suspeito: atenção pode ser agora (vai virar notícia, já) o homem capta a imagem do marginal ele é o dono da informação: há tensão vai ser agora (pauta para o jornal) o outro sem drone e sem a imagem real compra a informação em tempo louco é agora (homem aliena homem) bem ou mal?

7

4 a polícia sobe o morro de algum lugar de outra cidade não minha seja dada qualquer cidade, por exemplo depois desce com corpos perfurados aquela velha história urbana, sem lenda um jovem negro vestido pobremente correu no momento errado e se tornou a vítima certa no lugar certo pelo policial de mira certeira: indícios de racismo? há tensão na favela, no morro, no mundo matamos, matamos, matamos e que prazer: ver o morto tornado invisível num programa de televisão da tarde de sexta-feira treze se você não é gato corra assim mesmo: alguém deseja seu corpo morto no morro pra descer com ele como troféu de caça

8

5 loucura não é dada em manicômio num código internacional de doenças por psiquiatra de salário miserável nada disso, baby loucura é dada em social convivência diagnóstico dos dias atuais basta olhar a imprensa que não pensa não faz pensar, baby a banalidade da morte do outro do animal esquartejado para matar sua fome, minha fome, nossa fome tá tudo conectado, baby a banalidade do homicídio infantil da mulher morta por ser frágil comer sua carne, comer sua carne descartar o cadáver, baby ainda há solução? loucura, baby procurar solução é loucura é loucura baby

9

6 a noite assaltou a luz do dia matou a tarde, morta virou passado bem feito a noite morreu no dia morta pelo sol, torta virou pretérito idiota, ela eu morro tanto feito dia e noite mas eu sei o quanto dói ir desaparecendo eu dramatizo o finito sumo o sorriso ele some vira um grilo kkkkkkkkkkkkkk como é tenso ir morrendo feito dia e noite noite e dia

10

7 enviesado recalque social transmitido de pai para filho há tantos séculos (disco de vinil arranhado: repetindo, repetindo) machismo homofobia xenofobia racismo trama requintada ligando ponto a ponto do tecido social já não se sabe a frente ou o verso a renda está bem acabada feminicídio infanticídio páginas e páginas de jornais descrevendo quem somos no fundo a trama que nos revela é esquizofrênica altos e baixos circunstanciais acabar com o frenesi violento: será possível?

11

8 a cidade não tem beleza ela ficou na fotografia rara e antiga: éramos outra coisa refinada a cidade não quer a beleza o corpo linchado no poste é homem negro e jovem mortificado bandido bom é bandido morto reporta a louca repórter: lida mais que Drummond, mais ouvida que Gandhi (ela tem projeção social) a direita nunca esteve tão torta a esquerda nunca esteve tão louca por um tanto de dinheiro se quer o poder apenas: a cidade é um verme não: a cidade não quer a beleza ela deseja se purgar pelo feio o feio é seu inconsciente (ela nunca será santificada)

12

9 a lama escorre da cidade para o mar bichos imundos se inundam nas fezes o cheiro na praia exprime o que somos -por dentro somos mágoa a lama de agora um dia foi rio de água pura bichos diversos faziam a festa nas margens no fundo, nos cantos, em cima, embaixo -por dentro o rio era vida o rio se esgotou: nem vida, nem diversidade há morte na água magoada e parada habitação de bichos da sujeira podre -ao mar o dejeto da civilização

13

10 o rosto negro chutado até escorrer o sangue de dentro do corpo antes intacto e sem mancha para delírio da multidão em ódio atiçada: bandido bom é bandido morto e sangrado no poste não sei quem somos quando em barbárie mas não somos o que dizemos ser: bondade e humanismo não nos define nos dias de hoje sangrar o outro não pode ser o melhor de nós “Com o corpo nu amarrado a um poste de luz, um homem foi agredido a socos, pontapés e garrafadas até morrer na periferia de São Luiz (MA) nesta segunda-feira(6). Segundo a Polícia Civil do Maranhão, Cledenilson Pereira Silva, 29, foi rendido por moradores do bairro Jardim São Cristóvão após anunciar um assalto em um bar. Após ser imobilizado, o suspeito foi amarrado, despido e linchado. Ele não resistiu aos ferimentos e morreu no local.”

14

11 o lixão do lazareto da cidade do Serro estado de Minas Gerais existiu até outro dia e as moscas que voavam por lá continuam zunindo na memória dos pobres do lugar antes lugar de despejar os mortos-vivos vitimados pela lepra sem cura até então depois lugar de abandonar os pobres-vivos resultado da miséria gerada pela latifúndio após lugar de deixar o lixo dos consumidores-zumbis para apodrecer nas narinas dos invisíveis moradores o lixão do lazareto da cidade do Serro estado de Minas Gerais existiu até outro dia e as moscas que voavam sobre o imundo hoje farejam outro lixo: a lama de Bento Rodrigues

15

12 o corpo adoece de tanta doença: de baixo e altíssimo risco e cresce nele: bactéria fungo vírus verme salmonela cepas de tipos tantos os seres agregados podem ser bons e maus quando maus causam coceira: deletéria ardor sangramento inchaço vidas paralelas

16

13 sim, há na rua água de chuva escorrida do telhado escura de dar dó sem a pureza da nascente, cresce aumento sua imundície até desaguar no rio canalizado do bulevar arrudas da capital do estado de minas gerais não, não quero pensar na sujeira escorrida de nós dentro de cada gota da cidade em escoamento e vou dentro do caudaloso chumaço de impureza líquido vendo a cena: eu subindo bahia e esgoto descendo floresta

17

14 a fumaça do coletivo explode cano afora espalha o hálito de nossa civilidade mineira escura fica a paisagem: acelera o motorista o velho e a velha são armazenados no container alguns dormem para silenciar o direito deles de acesso não importa: o coletivo vai seguir em frente como progredimos na manhã de quarta-feira para todos os lados do tempo levando fumaça e o silêncio dos esquecidos

18

15 o gari recolhe o lixo do dia da noite da madrugada sacos pretos amontoados nas esquinas são levados para outro lugar da cidade para o invisível lhes prestar a última homenagem possível choveu ontem à noite e os sacos tem gotas limpas vindas do sétimo céu mas não há equilíbrio na cena nada purifica o lixo fétido espremido da cultura urbana é melhor levar os embrulhos abandonados para o aterro

19

16 no meio da convulsão matinal: chegar ao trabalho uns usam fone de ouvido outros olham o telefone a maioria se isola da desgraça de alguma forma não cabe pensar para onde vamos: por que ao trabalho? uns vão pensar outros tentarão refletir mas a maioria vai continuar em convulsão matinal por dinheiro

20

17 falta beleza na cidade cheia de humanos o monumento não nos salva a alma a poesia não chega a inspirar a música não abre a garganta a cidade é feia de humanos feios de carros feios e de ruas estreitas de feiura inconfundível: nos salve outra forma de viver é preciso agora depois, tarde demais agora por favor, preciso salvação

21

18 máquina dotada de fala inteligente o vendedor repete o mesmo hino sem saber com quem dialoga pra que saber, então? “tenho uma meta a cumprir hoje leva mais um item da promoção” pagamento facilitado e não quero nunca mais quero ver você aqui

22

19 senha para ser atendido sem a senha não há possibilidade de trocar palavra com quer que seja não insistir: seja disciplinado o sistema é rigorosamente pensado para atender igualmente a todos por isso: não insista cidadão pegue sua senha e cale a boca

23

20 planos para o dia de hoje segundo a imprensa haja crimes sequestros roubos furtos qualificados e se não for qualificado e estranho (muito melhor!) haja pais matando crianças de maneira premeditada namorado esfaqueando namorada num bairro qualquer de média ou alta renda haja ódio nas mãos dos vândalos quebrando bancos gás lacrimogênio nos olhos da multidão que o jornalista esteja lá bem na hora haja alguém com a câmera a postos para filmar o salto mortal do suicida em algum viaduto ou o inusitado do inusitado desde que real hoje haverá notícia ruim para todos os lados viver na cidade é uma tragédia coletiva a imprensa revela nossa miséria

24

21 roubaram da manhã a manha do nascimento a fumaça tapou o parto da novidade astral a chaminé exaltou o feio tapou os olhos para a lua estava tão cheia de beleza em atividade astral a cidade criou o monstro eu o vejo mais que o anjo a indústria humana cresce os astros nem mais anoitecem

25

22 o corpo estendido no chão era um motoboy pai de família pedaços espalhados na pista não pode haver poesia na lágrima por acidente nem poema fácil há apenas tensão poderia ser com qualquer um

26

23 o semáforo engole os carros motocicletas e caminhões e ônibus e pedestres permite: passe, passe, passe a ordem da cidade é o semáforo a desordem sou eu em pressa o cotidiano enlouqueceu mais um proíbe: não entre em pânico o pânico é para os fracos os fracos a cidade é para os fortes de espírito

27

24 o picho no prédio o pichador em tédio vazio por dentro deseja ver sua mensagem na cara da cidade tatuagem? nada disso: o pichador quer se ver onde ninguém está e por isso sobe onde ninguém quer subir o vazio da ação está em todos em todos os homens em todos os lugares

28

25 a sirene de novo abre alas: acidente precisamos salvar a vida tumulto na praça um suicida pulou nos braços do vácuo a sirene toca em vão

29

26 o piolho dos pombos sobrevive do sangue nutrido pelo lixo da cidade pipoca no chão amendoim no chão grão no chão um velho na praça o piolho vive do lixo da cidade

30

27 não adianta correr o metrô já passou talvez venha outro se não houver caos não adianta subir a escada o metrô não voltará agora ele vai dar uma volta e tanta para recuperar o seu vazio

31

28 enquanto eu me assusto com o crime cometido outro crime está sendo premeditado fechem os jornais populares

32

29 ainda tenho medo do mendigo em cheiro repugnante: não sei jamais me atacaram na rua o problema sou eu

33

30 o esgoto estourou com a chuva a mesma: levou um carro, uma moto uma vida, um poste, uma árvore, uma vírgula da notícia a eletricidade pifou com a chuva a mesma: não tem novela, não tem noticiário, não tem mundo agora resta sua mente e sua solidão: a maior tensão por agora é pensar não se deve não se pode nem se quer: a chuva vai passar a vida voltará ao normal homem de massa fascista

34

31 o corrupto monstro dentro de mim o corrupto mostro sempre em mim o corrupto matou fácil de novo o corrupto marcou ágil o povo

35

32 a cracolândia acordou dependente do sol está frio, por hoje sol, sol, sol a menina, a fumaça o fog são-paulino a garoa matinal sol, sol, sol eu aspiro, tu aspiras a fumaça da manhã a encrenca ancestral sol, sol, sol

36

33 mataram uma travesti na praia em salvador outro dia um corpo foi carbonizado ninguém explica o silêncio resolve debaixo do tapete fica a vida ser o que se é gera tensão antes, talvez tesão

37

34 “perdeu, perdeu” outro assalto para perpetuar a polícia “perdeu, perdeu” outro crime para acabar na polícia

38

35 quem sujou as mãos o ladrão favelado ou o policial antenado na corrupção? quem lavou as mãos da culpa diária eu ou você na dissimulação?

39

36 a página dos crimes me antecipa dia desses eu apareço por lá ou talvez você vá antes de mim ilustrar a manhã de medo

40

37 a morte bizarra se espalha pelos quatro cantos da cidade a morte banal se mistura nos quatro cantos da cidade e é tudo verdade: miséria

41

38 o índio dança no canto da rua vende orquídea da Mata Atlântica arrancada como ele da terra Porto Alegre está sem graça

42

39 ele não pulou: ficou dependurado a tarde inteira até chamarem o corpo de bombeiros: salvação viva a vida!

43

40 a cidade não resolve nada apenas amontoa problemas a morte está por toda parte esperando ser anunciada não ouse ser notícia: deve doer não ouse ser você: deve doer a cidade não melhora nada apenas concatena problemas a vida insiste mas não suporta esperando ser anulada

44

PARTE 2

45

VOCÊ AINDA TEM SOMBRA? lembrei-me de lembrar: era ainda seu rosto e havia um sonho desses em que não se está presente a civilização, apenas a liberdade desses em que não há castração entre o seu e o meu prazer mas era um sonho: como tantos outros com seu corpo não, não me iludam as imagens do sonho de ontem, de novo eu digo pra mim mesmo há muitos anos: não haverá retorno mas algo impuro na minha alma inclina-se à sua completude eu sem seu corpo sou um corpo caindo no sonho adolescente por onde anda sua sombra no mundo, meu prazer de respirar quero, por que quero dentro da fibra mais íntima do meu coração tencionar meus dedos sobre sua pele e ouvir de sua boca severa o gozo de sombra única sobre a luz do quarto de sonhar

46

AINDA EM SARTRE não importa porta porto não comporta aorta torta não sei de mim entre coisas meus deus! as coisas estão por todos os lados e eu: sem lados em giro sou apenas um pensante vazio

47

AINDA SER-PARA-SI eu, apenas eu, eu comigo: eu pensando, pensando, pensando cansado de girar em torno da vida organismo pensado: sou para mim eu, somente eu, eu sozinho: eu engajado, engajado, engajado vidrado no retorno do pensado vida existida: sou condenado a mim

48

DIÁRIO a noite nada acalma em mim: sou diário a vida pulsa dentro e fora: sou solitário a palavra enxuta complica: sou vocabulário o mundo não me abriga, nem pode: sou humanitário

49

SILÊNCIO NO MUNDO o verbo não sai para o papel engasgado, permanece, restado dentro de minha alma e ponto: houve um sujeito e um predicado ocultos do mundo

50

IMPREVISTO fui visto por seus olhos e aconteceu o imprevisto ser visto de improviso não vale

51

OBRA volta o tempo, urge a hora reverter o sonho perdido em memória agradecida: não, não estou brincando eu tenho crescido no amar mesmo dolorosamente sendo eu mesmo a contar a história: não, não estou cansando hoje eu entendi quem me fez e da obra feita reservo-me o direito de dizer de mim: não, não estou acabando

52

A MAIS, AMAR ao invés de ir, estacionei todas as vezes que ia, me perdia mais e mais ai invés de dar, tomei as forças mantive, não podia mais amar

53

RESTARIA restou a imagem, talvez bela sempre decaída, sem presença da mão em seu rosto de manhã alisando meu objeto de amor ninguém fotografou, sem registro inacreditável: até hoje estou preso ao tempo de ter sua face em mim quando toco qualquer coisa nunca lhe encontro: restou muito

54

DIREITO À UNICIDADE a humanidade em mim não vive são tantos: pudera ser muitos sou apenas um pedaço em humildade a existência em mim não vive são tantas: pudera ser outros sou apenas uma parte em projeção

55

PRISÃO onde fico quando penso? apenado, tenso onde estou quando penso? encarcerado, detento onde resto quando penso? dilacerado, doendo o meu jeito de estar dentro é meu jeito de estar perdendo algo se vai aos poucos lento

56

CAIXA E CAIXÃO de quando em quando eu me lembro da infância mais e mais apenas longa distância é preciso recompor o tempo acelera o apagamento das cores das paredes o cheiro do acontecido vai ficando sem relação com a vida de quando em quando eu me lembro da cidade não aquela hoje real de realismo presencial e caduco minha cidade de outro tempo tem alegria tanta e tola é difícil acreditar nas cores desbotadas da lembrança fui ficando para trás de mim mesmo muito na retaguarda há tantos tempos mortos tanta saudade impossibilitada de revisitação viver não pode ser outra coisa: caixa e caixão

57

DONA MEMÓRIA a presença dos mortos em memória dói tanto: dona Milude, sua casa se foi o doce de leite sobre a mesa acabou hoje seu lar virou espaço público -atividades pastorais dona Dodô, sua janela na rua de cima está tão órfã de seus cotovelos e belos cabelos brancos e brilhantes cabelos matinais hoje seu lar virou espaço público -atividades turísticas dona Maria Eremita, sua mesa na copa perto da geladeira inoxidável esfriando o tempo não tem mais a quitanda na tarde sem fim da memória hoje seu lar virou outra coisa -atividades ocasionais dona Leonor, sua varanda está vazia não escuto mais sua voz contando os dias outros eu ficaria para sempre escutando suas histórias hoje seu lar virou silêncio -atividades solitárias

58

FUGA enquanto os olhos buscavam o primeiro raio de sol do dia impuro mais uma vez: rotina incansável havia em mim, no fundo, uma fuga da realidade estar no mundo e querer outra sensação: sonho não se pode correr da imanência matinal arredia o impulso da memória é repetir quem sou numa identidade insuportável por ser diária estar junto de mim sem poder fugir: delírio

59

EQM eu notava nada apenas interioridade o mundo fugiu de mim: era apenas túnel branco eu imaginava tudo somente profundidade o mundo ruiu enfim: era apenas homem morto

60

MENTE SEMPRE a pele informa a temperatura a quem? quem vive em mim regulando o frio o quente, o ontem, o hoje, o sempre? a mente, existente? fantasma na máquina? a tal consciência insiste em registrar nomes, rostos, datas, lugares pra que? por que?

61

VONTADE a manhã esperava o sol brilhante como a tarde a chuva poderosa como a noite a lua consoladora espera sem fim de fatos irreais em vida nada é previsível: a força dos astros é maior que minha vontade não valeu de nada acreditar na fé movendo montanhas: elas se agitam quando querem, com regras próprias meu querer nada acrescenta ao mundo meu ficar nada retira do que é e será independente do meu desejo tolo

62

NOSTALGIA outra vez: a tarde de sábado, o acaso, a música (a canção traz cheiros ao ambiente e contamina) de novo: havia sido tão recente, pensei agora não (a novidade da vida acaba aos quarenta anos?) instalou-se em mim a nostalgia: de que? não sei soubesse fosse fácil quem sabe resolver, não... chega em silêncio e faz parceria dentro de mim lá vou eu dividido em tantas emoções confusas outra vez: a memória do ontem, cobrada centavo por centavo, com juros bancários brasileiros: veio de novo: me pregou ao chão em peso crucificador não adiante correr: a nostalgia me conhece todo (então ficamos assim: ligados um ao outro, por horas de novo, mais uma vez de novo – seja bem-vinda!)

63

BASTASSE bastasse a palavra autoritária eu me obrigando ao silêncio nada disso: eu falo de mim comigo tempo todo: vida cruel calasse a memória visionária eu me faltando partes e partes nada disso: eu me vejo vendo tempo tolo: vida banal

64

JARDIM INTERIOR não me digo esqueça, não adianta nem mesmo pare de idealizar, não resolve em mim agora o mundo é uma cópia triste em tatuagem na alma: memória dói fundo mudar o mundo para fazer você estar aqui rolar o tempo com minha vontade tola, deixa! a culpa é do tempo passeando pelo jardim interior eu sei da finitude das coisas e das coisas que me incluem (resolvi contar 60 segundos pra ver se o tempo para de me cobrar a ancestralidade em mim)

65

A BOCA a boca molhada em sua boca amarradas em beijo a boca cobiçada por ser porta escancarada da fantasia a boca salivada molhar o corpo escorregadia em língua a boca silenciada depois do gozo avermelhada em memória

66

CONTRA TODOS E TUDO cruzo as pernas para dividir o tempo mas que! o tempo é absoluto mordo a língua para calar o pensamento mas que! o pensamento é contínuo fecho os olhos para impedir o desencantamento mas que! o desencantamento é moderno

67

SABER NÃO CAUSA NENHUM EFEITO NO MUNDO se soubesse o estudante o que sabe o mestre não iria (qual dos dois?) jamais para a sala de aula: saber dói

68

AMÉM? espero deus não ouça as palavras todas as ditas palavras malditas as pensadas também espero deus não julgue as palavras todas as imundas palavras sujas as silenciadas em amém

69

ÓPIO o dia não nasce espalha obrigação pelo ar: ser, de novo o dia não surge encalha preocupação pelo mar: ver, o todo o dia não abre farfalha separação pelo par: crer, o ópio o dia não sabe apenas acontece em mim: eu, o próprio

70

CHEIRO DE TÉDIO ao ver o dia acabar, sem luz em noite mordendo minha vida-bolo eu me pergunto mais uma vez: valeu a pena? ao ler o livro memórias póstumas em manhã criando sua agenda-azia eu pergunto ainda mais: valeu? que pena! ao ter uma hora a mais, agora em tarde cuspindo horas-marimbondos eu me pergunto talvez: vá? leu? que? pena!

71

ARTE ouvir a canção cantada por mim dentro da fibra da alma: arte

72

CIDADE Para Affonsinho e Zé Miguel Wisnik misturar para um dia feliz -ou pelo menos reflexivo a música de um com a voz do outro, talvez leblon talvez são paulo, rio de janeiro pegando um ônibus na savassi vagar na rua com picolé de uva numa mão, na outra um baião se meu mundo cair, no trópico de peixes possa eu ser mais simples em zum zum um jardim em coreto aonde cacilda atue para acabar com a mesmice do mundo um dia minha alma terá sintetizada a generosidade na voz do affonsinho e a voz necessária da poesia de wisnik um dia: alma e corpo serão uma única cidade

73

FADO FADO FADO: E NEM HAVIA MAR eu bebo a mais dura dose de realidade, agora/bem sei: não quero muito da vida, talvez uma virgula intensa, pausa, parada, estacionamento para olhar o pôr-do-sol/desemedar a vida do passado para ser mais leve, não deu e não dá, então, como faço?/ fico aqui sem poder sair de mim até arrumar um jeito de me aceitar como estou ou como deveria estar sendo e não caminho/ não consigo aprofundar a vida estando vivo e isso me preocupa: o dia seguinte, o verso seguinte, a pessoa seguinte, a tarde seguinte/ preciso mudar a bebida: meu estômago não me aguenta mais//

74

CIENTE ao tropeçar agora, vaga onda na areia ao ficar de pé, estátua em praça pública ao me deitar, árvore tombada em motosserra ao me assentar, monge budista em dia quente aceito: o dia me foi dado para ser mais um dia aceito: o dia não vai ter chuva nem surpresa aceito: o dia nenhuma alteração vai me propor fico: como ficou dom pedro em alguma mentira da história fico: como ficou sua memória indesejada no meu coração fico: como ficou o espinho mais poderoso ao secar na rosa hoje sou em evento temporário: minha consciência está ciente

75

ABRAÇO NATURAL Nº 1 a orquídea precisa do vento para abraçar a abelha e dar a ela um buque de pólens quando em brisa um abraço matinal quando em vendaval um abraço apaixonado a orquídea precisa do ar para amar sua abelha e fazer dela sua razão de florir

76

ÉBRIO a vida cabe no cérebro no meu, pelo menos, quando ébrio

77

RASCUNHO restasse um dia apenas de vida: correria para depositar sobre um banco de praça um poema em que talvez escrito estivesse: VIVER NÃO SE RESUME, AMPLIA-SE ficasse sabido que um único dia faltasse encararia uma missão quase impossível vibrar em silêncio tão profundo e sutil, ditando: VIVER NÃO SE ESCREVE, RASCUNHA-SE

78

INÚTIL inútil, toda hora foi inútil nada criei, nada inventei futilidade entre acordar e dormir, diariamente não mudei nada, nada somei nada aumentei, nada resolvi futilidade entre se dar e se recolher, idiotamente

79

O VELHO CORPO o velho corpo está ainda comigo na tarde espalhando idade pelas horas ainda bem: nunca estarei sozinho se assim mantiver o contato com o mundo: passando o velho corpo está deixando no mundo histórias, palavras, imagens, outras devassidões ainda bem: nunca estarei totalmente remido pelo menos enquanto o desejo me fizer viver o velho corpo está se despedindo de si mesmo já passou décadas, de um século para outro se foi, de moda em moda se vestiu constante e assim ainda bem: chegou comigo até o momento atual meu velho corpo está ainda cômico rindo de si mesmo em espelho diário ainda bem: não há outro remédio mesmo viver é estar passando, indo, se deixando aos poucos bem aos poucos meu corpo aos cacos de tempo passa

80

O CORPO MORRE deformo, reformo transformo, trabalho meu corpo: há tempos novamente, externamente, sabiamente, paspalho o corpo: há tantos se vamos morrer vi[vamos] amo, amo, amo

81

LONGE DEMAIS o peixe no oceano vê o céu como longe demais para nele se afundar

82

A RUÍNA a ruína é um muro a ruína é uma igreja a ruína é um casarão a ruína é um povo nunca em ruína se valor há nunca em ruína se amor dá nunca em ruína se teor há nunca em ruína se calor dá a ruína é um outro a ruína é uma gente a ruína é um grupo a ruína é um fim

83

MINHA MELHOR PARTE: ARTE enchendo a linha de frases e tabelas periódicas - eu vou preenchendo formulários de gente que me detesta - eu vou encarando o homofóbico atrás de um ódio extra – eu vou chamando a novidade de velha conhecida, eu retorno entre tantos pontos da mesma cidade eu me ligo a uma pequena parte do todo o todo, mesmo, não me cabe: sou parte e da parte distribuo minha melhor arte

84

DETERMINISMO não havia liberdade no navio chegado ao brasil no primeiro momento da invasão tupiniquim não havia liberdade: hoje queremos enforcar a farsa em praça pública: tudo é determinismo o ministro o almirante o marinheiro as ondas tudo era determinismo na chegada de outro povo nada me faz acreditar fosse livre quem ousou atravessar para o lado de cá a fim de encontrar o deserto a consciência é o tempo da espera, eu sei, Bergson!

85

ABRAÇO NATURAL Nº 2 não há luz sobre a fruta crescendo o sol envolve pela manhã e de noite apenas escuridão: a fruta nasce do calor do sol ou do frio da noite?

86

CAETANO, LENINE, BUARQUE ouvir pela milésima vez ‘podres poderes’ não me faz menos alienado: enquanto ouço outras partes de mim estão entrelaçadas à babaquice, á mesmice, à idiotice ouvir pela centésima vez ‘o tempo não para’ não me torna consciente da temporalidade outras tantas partes de mim estão seccionadas vivem em outra emoção, em outro tempo babaca ouvir pela décima vez ‘apesar de você’ não me faz escapar do determinismo histórico entre passado criativo e presente conservador -continuo vendo o pior expresso em manchetes de jornal

87

LINHA E MEADA envolvo a nuvem passando com a linha de um raciocínio tênue, frágil e esguio e as palavras seguem pelo mundo pairando sobre as cabeças dos homens: vivo amarro o fio da meada da minha emoção ao jequitibá centenário na mata do Jequitinhonha e as alegrias seguem pelo mundo se fixando nas faces dos homens: vivo

88

SOLIPSISMO eu não fico parado vou e volto em mim

atado parece mesmice ir e vir por dentro

fechado mas nada disso talvez um dia eu grite

exteriorizado

89

ANTES MÚSICA QUE A REALIDADE fechar o dia em “back to black”, da Amy não me leva a lugar nenhum: acabou pensar a vida em “o tempo não para”, do Cazuza não me deixa mais experto: passou calar a boca em “wish you were here”, do Pink Floyd não me presta à emoção: terminou sentir a alma em “verônica”, da Virgínia Rodrigues não me bate uma salvação: expurgou no fim de um longo traço da vida em mim agora no largo cumprimento da memória em fim embora eu me entrego: antes música que a realidade

90

ANTES DA MÚSICA (H)OUVE A BRISA por trás da montanha vem alguma música vaga, de ventos e brisas e vendavais antecipada mas aparece a alma do cantor: poesia cantada

91

PHYSIS E METHAPHYSYS a unha cresceu tanto desde meu nascimento foi ela em cada dedo quem me trouxe aqui escavando nas horas um sentido qualquer que nunca foi encontrado de tão profundo unha e metafísica não tem mesmo nada a ver só acontecem quando estou assim: vivo

92

PAPEL AMARGO: VIVER entrego ao papel o dia de total fel e pronto: esqueço o papel amargo entrego ao papel a delícia do mel em pontos: bebo o papel adocicado

93

ESPIA! olha, veja, quanta corrupção passou por baixo do viaduto, que caiu ontem... espia, anuncie, quanto desvio aconteceu para o rio chegar até o mar, que ontem enlameou... eu vejo, tu vês, ele vê nós vemos, vós vedes, eles veem eles continuam, eles não param, eles se agrupa, eles são nós

94

ENGASTAMENTO a poeira do tempo se foi envergada na folha depois da chuva forte a poesia da gente se foi engastada na mente que se opôs à dor do coração

95

PRAÇA DA ESTAÇÃO SÁBADO DE MANHÃ Para Robinson o fedor da urina da praça da estação revela a presença de outra pessoa não-eu, não-mim, não-nós talvez todo mundo: sem nome o grafite na parede da praça da estação desvela a presença de outra gente não-si, não-ti, não-eles talvez um único: mas anônimo (a caveira, o pássaro, o banco quebrado havia alguma coisa no meio do caminho de quem passava pelo corredor fedido cheio de histórias desinteressantes)

96

CÓLERA: ATENÇÃO a cólera entrou por cada ouvido e se espalhou por cada fio de cabelo e se alojou nas vísceras do meu corpo e nunca mais vi a nuvem branca e bela e solta como antes o antes ficou para sempre distante e tão longe como fontes de um rio grande impossível de saber o que foi nascente

97

ENCOSTO INÚTIL a sua memória vale a pena sempre mesmo embargando a melhor visão do dia agora: odeio me encostar em sua visão como odeio pagar caro por um produto inútil

98

ENTRE DOIS PONTOS INTERIORES fui ficando entre a rua da bahia e a avenida afonso pena por vezes me cruzava por horas me seguia livre fui deixando o estar na praça da liberdade ou no edifício maletta por vezes me caminhava por horas me bebia simples

99

CLÁSSICO, MODERNO, PÓS-MODERNO não vou virar lobisomem os mitos infantis viraram outra coisa séria, sisuda, intelectual nada de gameleiras e fantasmas e sustos não vou virar homem os mitos modernos viraram outra coisa chata, tola, crítica nada de perfeição e metafísica e progresso não vou virar espírito os mitos pós-modernos viraram outra coisa ateia, niilista, distópica nada de eternidade e heroísmo e reencarnação

100

MELHOR PARTE DA MEMÓRIA o ponto fraco da minha certeza a dúvida do meu cartesianismo hiperbólica incerteza hoje revelada a curva do meu plano cartesiano negativada em meu pessimismo tratar a vida nunca foi fácil desconfio: precisava de sua pérfida presença em mundo interior dado sofrer pode ser a melhor parte da memória

101

CONTOS DE FADAS PARA ADULTOS MEDIOCRES a maldita maçã do paraíso perdido nunca existiu exceto na sua idiota mentalidade ocidental a lambida do conde drácula antes da mordida nunca existiu exceto na sua imaginária mentalidade ocidental a bendita salvação pelas boas obras nunca existiu exceto na religião dominadora decadência ocidental

102

NÃO AMO NINGUÉM POR QUE NINGUÉM ME AMA amor correspondido talvez exista entre um engano e outro da vida ou todos juntos em justa medida

103

MELHOR PEDAÇO: FALSIFICADO meu melhor pedaço ficou no passado hoje nem bom nem mau sou palhaço: mascarado meu melhor ponto aquele do contato hoje nem sério ou inexato sou otário: cabisbaixo meu melhor atrito ficou entediado hoje nem cima nem baixo sou parado: falsificado

104

ALFABETIZADO o ruído de fundo de um livro é o resultado da poluição interior ninguém é puro, se alfabetizado

105

DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ

Nascido em Serro – MG em 1972. Filósofo, poeta, historiador e fotógrafo. Residente em Belo Horizonte.

Todos os livros estão disponíveis para download gratuito no site oficial.

106

Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz, 2016

Todos os direitos reservados. Permitida a cópia/citação, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas desde que lhe sejam atribuídos os devidos

créditos do autor por escrito.

Imagens

Capa: São Paulo, 2014, do autor Autor: Júlio Alessi

SITE OFICIAL www.recantodasletras.com.br/autores/doserro

[email protected]

http://www.facebook.com/daniloarnaldobriskievicz