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MELHORESPOEMAS

FerreiraGullar

SeleoALFREDO BOSI

1 edio digitalSo Paulo

2012

Alfredo Bosi nasceu em So Paulo, em 26 de agosto de 1936. Filho de TeresaMeli, salernitana, e Alfredo Bosi, paulista de razes toscanas e vnetas. CursouLetras Neolatinas na ento Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras daUniversidade de So Paulo. Estudou Filosofia da Renascena e Esttica naFacolt di Lettere de Florena entre 1961 e 1962. Lecionou Literatura Italiana naUSP, onde defendeu doutoramento sobre a narrativa de Pirandello e livre-docncia sobre poesia e mito em Leopardi.

Voltando-se para os estudos brasileiros, passou, desde 1971, a integrar a reade Literatura Brasileira da USP, onde professor-titular. Professor convidadojunto cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (Paris, 1996-99). Diretor doInstituto de Estudos Avanados entre 1997 e 2001. Editor da revista EstudosAvanados. Presidente da Comisso de tica da Universidade de So Paulo.

Autor de:

O pr-modernismo. So Paulo, Cultrix, 1966. Histria concisa da literatura brasileira. So Paulo, Cultrix, 1970. 40 ed., 2002. Historia concisa de la literatura brasilea. Mxico, Fondo de Cultura

Econmica, 1983. 2 ed., 2001. As letras na Primeira Repblica. Em O Brasil Republicano, vol. II. So Paulo,

Difel, 1977. O conto brasileiro contemporneo. So Paulo, Cultrix, 1975. 14 ed., 2002. O ser e o tempo da poesia. So Paulo, Cultrix, 1977. 6 ed., So Paulo,

Companhia das Letras, 2000. Reflexes sobre a arte. So Paulo, tica, 1985. 7 ed., 2002. Cultura brasileira. Temas e situaes (org.). So Paulo, tica, 1987. Cu, inferno. So Paulo, tica, 1988. 2 ed., So Paulo, Ed. 34, 2003. Fenomenologia do olhar. Em O olhar. So Paulo, Companhia das Letras,

1988. Dialtica da colonizao. So Paulo, Companhia das Letras, 1992. 4 ed., com

posfcio, 2001. La culture brsilienne: une dialectique de la colonisation. Paris, L Harmattan,

2000. O tempo e os tempos. Em Tempo e Histria. So Paulo, Companhia das

Letras, 1992. Leitura de poesia (org. e apresentao). So Paulo, tica, 1996. Literatura e resistncia. So Paulo, Companhia das Letras, 2002. Machado de Assis. O enigma do olhar. So Paulo, tica, 1999. Machado de Assis. So Paulo, Publifolha, 2002. Prefcios a obras de Benedetto Croce, Pirandello, Svevo, Araripe Jr., Euclides

da Cunha, Otto Maria Carpeaux, Jos Lins do Rego, Ceclia Meireles, LcioCardoso, Dyonelio Machado, Joo Antnio, Jos Paulo Paes, Dante Moreira

Leite, Domingos Barb, Darcy Ribeiro, Oswaldo Elias Xidieh, FerreiraGullar, entre outros.

Artigos de crtica e intervenes culturais e polticas em vrios jornais erevistas: Brasil Urgente, Encontros com a Civilizao Brasileira, Movimento,O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, Colquio Letras,Novos Estudos Cebrap, Estudos Avanados, Teresa, Metamorfoses etc.

Roteiro do Poeta Ferreira Gullar

O roteiro do poeta Ferreira Gullar j so trinta anos de ofcio! pode servisto na secreta coerncia de seus motivos, imagens e afetos, ou nos cortes e nasdescontinuidades com que a sua poesia acompanhou a vida brasileira nestasegunda metade do sculo.

A primeira leitura, imanente, discernir temas que voltam e, mais do que isso,descobrir um modo peculiar do eu lrico sentir a fora da natureza e situar-seentre os objetos da cultura, modo que define o pathos de Ferreira Gullar e oestrema dos seus contemporneos. H uma personalidade potica bastante coesano interior da obra de Gullar, que, fora de dizer-se, acaba nos dando osentimento vivo de um tom, a viso de uma paisagem estilstica, a identidade deum rosto. O leitor, primeira vista desnorteado com as diferenas entre oimaginrio solto de A luta corporal, o neo-realismo dos romances de cordel e apotica do memorialismo engajado dos anos 60 e 70, aprender, afinal, depois dealgumas releituras, que Gullar foi, tem sido e o poeta de um universo bemdeterminado, e no resistir tentao de desenhar-lhe o mapa.

A matriz do seu mundo potico a Cidade da infncia e da adolescncia,aquela So Lus mtica e realssima onde o Sol irradia por um cu cruelmenteazul e arde como um fogo que a prpria figura do Tempo. A chama calcinacomo as horas. O fogo queima, se rpido, ou, se lento, faz o germe explodir, apolpa adoar at o mel e, obsesso fecunda, leveda a natureza at oapodrecimento, a nusea, a inexorvel combusto dos seus mais ocultos tecidos.Gullar o poeta do azul tenaz (cido cu, cu contumaz), da chama veloz,do vero fermentado que desmancha os frutos da terra e estiola os filhos doshomens. A voz do poema, produzida no mago desse universo (belo e ferinocomo o eterno retorno), traz uma conscincia alerta que capta os diferentesritmos e as diferentes velocidades com que a chama do Tempo consome osdestinos em So Lus e nas muitas cidades do poeta: Rio, Santiago, Lima, BuenosAires... Sol e lodo, fulgor e decomposio, o Tempo e os tempos e, no centro daperspectiva, a necessidade do canto para resgatar o encontro feroz com aexistncia.

O resgate , paradoxalmente, obrigatrio e vo, como o canto da ave, nopoema Galo galo, que no basta para salvar o indivduo e serve afinal de merocomplemento de auroras. A natureza definitivamente vive a sua prpria vida enos ignora como as peras que apodrecem no porto (para nada?). Apesar dalucidez de nossa voz, tampouco as horas nos subtrairo aos fermentos que jtrabalham dentro de ns. No poema de Ferreira Gullar, uma intimidade febrilune o Sol e a morte, e esta, repito, me parece ser a forma imaginria com que o

poeta diz o seu sentimento do Tempo.At aqui, o discurso da unidade, voltado para uma possvel coerncia de

figuras e temas, discurso cujo risco maior supor um espao lrico-metafsicocerrado onde a voz interior regeria as foras em tenso na obra potica.

Mas, preciso convir, essa apenas uma leitura que, por motivos tticos, seacenou aqui como primeira.

Uma segunda e necessria abordagem no se deter apenas nas recorrncias;antes, se voltar para as rupturas. E um novo olhar descobre que o poeta vemrespondendo, passo a passo, s crises e aos desafios da luta cultural e poltica dopas desde os anos 50 at os dias de hoje.

O ps-modernismo de 45 raiado de veios existenciais, a poesia concreta eneoconcreta, a experincia popular-nacionalista do CPC, o texto de ira e protestoante o conluio de imperialismo e ditadura, a renovada sondagem na memriapessoal e coletiva... so todos momentos de uma dialtica da cultura brasileira deque Ferreira Gullar tem participado como ator de primeira grandeza.

luz dessa leitura, contextual, a conscincia que ditou o Poema sujo no exatamente a mesma que inventou A luta corporal, assim como a maturidade doescritor e cidado ps-64 superou os seus horizontes ideolgicos dos anos 50. Nose trata de evoluo na ordem dos acertos estticos (estes no dependem,mecanicamente, da posio poltica do poeta); trata-se de ver maisconcretamente a Histria, julgar mais criticamente o prprio lugar de poeta natrama da sociedade, refletir mais dramaticamente a condio do homembrasileiro e do homem latino-americano sem medusar-se no fetiche abstrato, nofundo egtico, do homem em geral.

Para romper com o subjetivismo da sua estao potica inicial, em que ressoaainda muito daquele existencialismo selvagem deflagrado na Europa durante ops-guerra, Ferreira Gullar conheceu e praticou duas opes, que o tempoprovou mutuamente exclusivas: a objectualidade material (a poesia grfica, aarte-coisa, mquina de sons e letras) e a objetividade no nvel dos temas, queimpe um tipo de verso poltico-pedaggico. Gullar tentou as duas sadasescrevendo textos neoconcretos e romances de cordel, mas ambas as solues serevelaram becos onde fazia sua morada a conscincia reificante ou aconscincia infeliz. E a busca teve que continuar.

A porta certa do labirinto ele ir procur-la no nos engenhos de arte-objeto,no nos enganos da arte-instrumento, mas na aliana verdadeiramente nupcial desujeito e objeto, que s se realiza quando a alma consegue objetivar-se namesma medida em que a histria consegue subjetivar-se entre os ritmos e asfiguras da linguagem. Aqum dessa palavra, amorosa e agnica, jazem aalienao, o equvoco, a cerebrina retrica, o pesado conteudismo.

Esse adensamento sinnimo hegeliano do processo que leva ao concreto permitiu que o autor do Poema sujo alcanasse uma dimenso coral sem por isso

perder o calor daqueles afetos singularssimos que s as imagens de sua cidadede So Lus seriam capazes de provocar. A superao do surrealismo juvenilatravessou um purgatrio brechtiano programado (alguns poemas abertamentedidticos e o tom geral de Dentro da noite veloz) para conquistar uma novapotica na qual memria e crtica no se pejam de dar as mos.

O sol ainda esplende mortalmente, os frutos se desfazem solitrios, a vertigemdo dia nos arrasta, mas o canto se crispou e j quase um desafio:

No quero morrer no queroapodrecer no poema

De Barulhos a Muitas Vozes

A lgica mida das classificaes didticas ope metafsica a materialismo.Mas a lgica potica (para usar a expresso inovadora de Vico), na medida emque vive por dentro a fora das contradies, no encalha nessa fcil antinomia.

Entremos fundo na poesia de Ferreira Gullar. A matria imediata e tangvel dascoisas no sai nunca do seu campo de percepo a que adere sua palavraverdadeiramente concreta, porque densa e saturada de experincia epensamento. A matria traduzida no poema se d toda aos sentidos, tem cor echeiro: a polpa da fruta sazonada e j quase desfeita por obra da ardnciatropical; pele suada no embate amoroso; so os rudos da Cidade ensurdecidade rock, motos, e at de um Electra II que pousa inesperado no meio dasramagens da rua Paula Matos, quase ao alcance das mos. Matria sempre ede todos os lados, presente no vasto mundo e nas sensaes com que vibra ocorpo do poeta. O crtico Fausto Cunha, comentando Barulhos, lembrou os versosde Marianne Moore:

the raw materialall its rawness.

a matria e o material em toda a sua crueza, e que faz o poeta dizer emcerto momento como Ricardo Reis: o mundo se explica / s por existir.

Entretanto, dizer que a palavra de Ferreira Gullar poesia da matria,simplesmente, sem empreender qualquer discurso mais atento ao dinamismo desua significao, no basta ao sentimento do leitor que partilha as suas ntimastenses e sente aquele sopro incessante de desejo e conscincia penetrando cadaimagem e cada frase. E por que poesia da matria no basta? O poeta d apista que responde a essa questo vital:

Toda coisa tem peso:uma noite em seu centro.O poema uma coisaque no tem nada dentro,

a no ser o ressoarde uma imprecisa vozque no quer se apagar essa voz somos ns.

(No coisa)

Em primeiro plano vem o reconhecimento da materialidade do mundo real, dacoisa que tem peso, indefectvel como a lei da gravidade poderosamenteexpressa pela imagem da noite: o escuro, o espesso, o opaco no centro damatria. Contudo, a coisa-poema no tem nada dentro; logo, o seu modo de serno reproduz o objeto fsico em sua pesada coisalidade. O que o poema temdentro de si o nada (como no lembrar a fissura da negatividade pensada porSartre em O ser e o nada?). Mas um nada que soa e ressoa, voz que no se querapagar, da ser carncia e desejo, no um nada absoluto, zero, maspotencialidade. Essa voz, ainda pura vontade-de-ser procura de forma, e porisso imprecisa, somos ns enquanto pr-sentimento de que somos e no somosapenas coisa entre coisas, somos e no somos aquela matria de que feita arealidade fsica da nossa prpria voz.

Somos matria, porque a voz do corpo som, barulho, tumulto palavrasrecorrentes na obra de Gullar. Mas, ao mesmo tempo, no o somos, porque onada (que a passagem do tempo imprime s coisas), o nada que est no horizontedo homem enquanto ser-para-a-morte, o nada cavou no corpo animado epensante uma fenda que nada parece preencher. Um hiato. Essa voz carente, afalta que ama de Drummond, vai apagar-se, certo, como todas as outras, mas,diferentemente de todas as outras, ela conhece o seu destino, e uma voz queno quer se apagar.

O materialismo, ao viver e reconhecer esse drama, passa a ter acentometafsico enquanto vigora a tenso entre as sensaes do mundo e a conscinciaagnica do tempo; tenso que em todos os grandes lricos, de Petrarca a Leopardie a Ungaretti, de Cames a Manuel Bandeira, de Villon a Baudelaire, estindissoluvelmente presa melancolia e intuio de nossa finitude.

A conscincia se faz testemunha pungente da precariedade do nosso desejo,eterno enquanto dura. A conscincia ser, em momentos diversos, ora adenunciante do tempo, da morte e do nada, ora a anunciadora do ser, cujaimagem solar a matria mesma, sobrevivente bela impassvel morte doindivduo. Gullar sabe, como poucos (Drummond, Vinicius, Rubem Braga...),evocar a natureza do Rio de Janeiro sob os ardores e esplendores de um estio quese renova o ano todo. A conscincia do homem, posto que impotente, podeatribuir ao cosmos um sentido, algum sentido que o atravessa e transcende: assimfazendo, tenta ir alm, tenta compreender a materialidade surda da coisa,habitando o limite entre o materialismo e a metafsica, presentes ambos namelhor poesia de Ferreira Gullar. O mnimo que se pode dizer dessa

compresena que instvel, oscilando entre os polos do sujeito e do objeto.H, ao lado da aproximao do eu com o mundo, e da sua mtua atrao, o

outro momento, em que o sujeito contempla a distncia aparentementeinfranquevel que os separa. Assim, a histria feita do tempo das paixeshumanas, demasiado humanas, mas os astros (como j o disseram com diversasfilosofias Pascal e Machado de Assis) moram e demoram l no alto e noescutam os gritos desse bicho da terra to pequeno. Homem e cosmos ignoram-se: coexistem apenas, em tempos diferentes. O abismo vence o olhar.

Ano-Novo

Meia-noite. Fimde um ano, inciode outro. Olho o cu:nenhum indcio.

Olho o cu:o abismo vence oolhar. O mesmoespantoso silncioda Via Lctea feitoum ectoplasmasobre a minha cabeanada ali indicaque um ano-novo comea.

E no comeanem no cu nem no chodo planeta:comea no corao.

Comea como a esperanade vida melhorque entre os astrosno se escutanem se vnem pode haver:que isso coisa de homemesse bicho

estelarque sonha(e luta).

(De Barulhos).

Distncia ontolgica entre o homem e o cosmos que, no entanto (sempre asurpresa da contradio), se encurta at o limite possvel da interpenetrao e da

quase identificao no poema Olhar:

o que eu vejome atravessa

como ao ara ave

o que eu vejo passaatravs de mimquase fica

atrs de mim

o que eu vejo a montanha por exemplobanhada de sol

me ocupa

e sou ento apenasessa rude pedra iluminadaou quasese no fora

saber que a vejo.

Trata-se aqui de um verdadeiro exerccio de percepo, que seria cartesiano(eu no sou o mundo, porque penso) se no fosse pascaliano. O homem apenasum canio, o mais frgil da natureza, mas, diferentemente desta, um caniopensante. Por um momento sou apenas aquela rude pedra iluminada pelo sol quemeu olhar est alcanando; mas no o sou sempre nem absolutamente: quasesou, e seria se no fora saber que a vejo. O olhar que aproxima, a ponto deparecer fundir as identidades do eu e da pedra, far, em outro momento, as vezesda conscincia vigilante de Pascal, a qual sabe de si, o que no acontece com anatureza. E o eu se move, no poema, entre o ser (quase) inconsciente, confundidocom as coisas, e o nada pulsante e consciente que delas sabe distinguir-se. O euentre a coisa e a conscincia: e eu entre os seres e o nada.

Ressoo dos barulhos que vm de fora, reflexo das coisas que se espelham nosolhos, ou, no outro extremo, reflexo do drama histrico a que o cu pareceindiferente: seriam estas as alternativas nicas da relao entre o eu e o mundona obra recente de Gullar? A disjuntiva parece drstica: ou reflexo ou reflexo. possvel super-la se ficarmos atentos qualidade desta voz, que e se declaraplural, csmica e social, porque formada de mltiplas vozes, de diferentes sons etons. Na sua apario simultnea, essas vozes se do ao ouvido do poeta comotumulto e alarido.

A dimenso coral que se adverte em Barulhos e mais abertamente em Muitasvozes traz em si a modernidade renitente da dissonncia. Predominam as

estridncias aleatrias, repentinas, da cidade grande no contexto do capitalismoselvagem brasileiro e latino-americano. Em Gullar, a percepo dessasdissonncias vem de longe, como bem sabe o seu leitor que o tem acompanhadodesde os anos 60. Gullar viveu intensamente as utopias do tempo em que secriaram os CPCs e as trovas do Violo de rua. E o poeta jamais ocultou a suacrena na funo da arte como ponta de lana crtica da sociedade burguesa.

No refluxo da mar ideolgica que se deu nas dcadas de 80 e 90, eleconheceu o clima de desnorte e angstia que a derrocada do socialismo realproduziu em tantos intelectuais de esquerda. O poeta deixou, no seu mais recentelivro, de tematizar explicitamente a violncia econmica e poltica da poliscapitalista. O leitor encontrar em Muitas vozes um nico poema que se referetopicamente a um fato poltico, Queda de Allende. Porm, essa ausncia dotema no significa, como fcil perceber, negao do seu sentido profundo; aocontrrio, Muitas vozes nos remete a um ethos mais recente, pelo qual airracionalidade em alta e a anomia moral do capitalismo avanado, so dediferentes maneiras, penetradas e denunciadas pela dico potica do fim dosculo.

A forma literria que as novas perplexidades tm assumido nos poetas maisjovens no inteiramente nova e longe est de ser homognea. A linguagempotica dos anos 70 aos 90 muitas vezes glosou ou esquematizou certas conquistasexpressivas e construtivas de alguns clssicos de nossa modernidade. No casobrasileiro foram revisitados ou esquematizados com alta frequncia os estilos deMrio de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Drummond e JooCabral. O poema-piada e a poesia pau-brasil foram transpostos para o versocoloquial, dito marginal. A simplicidade fluente da lrica de Bandeira foimimetizada na oralidade prosaica da chamada poesia do cotidiano. O humorestoico e pungente de Drummond gerou milhentos poemetos cticos, escarninhosou ostensivamente nihilistas. Enfim, de Joo Cabral saiu a secura lacnica dopoema-coisa amaneiradamente nominal.

Na ltima poesia de Gullar, contudo, se houve reelaborao de um certo modode dizer, o movimento se fez no interior mesmo do seu roteiro.

Creio perceber em Muitas vozes um trabalho de interiorizao e depurao damatria poltica dispersa nos seus outros livros. Agora tudo parece concentrar-sena atitude fundamental do seu esprito, que consiste em resistir ao sistemasondando e revelando o mal-estar que a condio ultramoderna produz na mentee no corao do poeta. De um poeta que tambm ouve em si mesmo a voz dohomem comum.

sempre arriscado reduzir uma obra lrica singular chave alegrica, o que a grande tentao da leitura macrossociolgica. De quantos e to diferentespoetas j se disse que os seus versos eram alegorias da condio burguesadegradada! Para compensar o que h de genrico nessa tendncia redutora,

deve-se repuxar com firmeza o fio da individualizao. Em Gullar, a condio daultramodernidade capitalista em pas dependente captada e filtrada pelas vozesde uma conscincia reflexiva cada vez mais centrada no pensamento da finitudee da morte. O seu sentimento do mundo atravessado de ponta a ponta pelosentimento do tempo.

Os objetos produzidos pela civilizao de massas aparecem ao olhardesenganado do poeta sob as formas de resduo e sucata. O tempo ri, corri ascoisas. Os automveis entregues ferrugem so ossadas (eixos placas) nomatagal do domingo. Mas quando tudo parece lanado mera exterioridade,os dejetos da era industrial esto entranhados de afetos (Falagens, II). Opoema desdobra uma certeira metfora, no sentido original do termo: umatransferncia de imagem da coisa industrial morta, os automveis enferrujados,para o esqueleto humano, as ossadas. Sucatas so carcaas expostas, umas eoutras comidas pela ao inexorvel do tempo. Tempo vertiginoso que corre norelgio ps-moderno mais veloz do que nunca:

fogemos sculosno capim (entre os talos)

(Falagens, IV)

De outra qualidade o sentimento das coisas-no-tempo quando o poeta evocaos objetos da casa j marcados de abismo. Passem embora ah, dias e dias etardes e dias, sempre restar a lembrana de uma cor encardida, um caco decermica no quintal, a memria do perfume na horta, o metal da hortel. A vozlrica j no falar de sucata e ossadas, mas de restos de objetos familiares,relquias da casa da infncia que ainda guardam cor e perfume, e

souma raraalegria

(Falagens, VI)

A dialtica de ser e tempo, de resistncia e destruio, gesta-se no poema apartir de experincias singulares. So vivncias trabalhadas tanto pelas forashistrico-sociais quanto pelo dinamismo do pensamento criador. medida que ascontradies se aprofundam e se interiorizam, tangenciando o limite entre a vidae a morte, emerge aquele sentimento universalizante que faz a poesia da matriareceber acentos de drama metafsico. E o que era instante solitrio e fugaz dapercepo, o que era pulso do corpo e da alma de um s indivduo, entra noprocesso de comunicao, atravessa o tempo e ganha a consistncia (vulnervelembora) de um sentido.

Pedro Dantas j havia apontado essa amplitude de significao na poesia de

Ferreira Gullar:Nenhum outro poeta viveu, exprimiu e experimentou como ele as angstias

de uma crise cultural que vai alm da cultura para abranger, no seu todo, oprprio sentido da vida.

notao aguda e compreensiva que vale ainda e com maior fora de razopara estas Muitas vozes.

Alfredo Bosi

POEMAS

A LUTA CORPORAL(1950 -1953)

Nada vos ofertoalm destas mortesde que me alimento

Caminhos no hMas os ps na gramaos inventaro

Aqui se iniciauma viagem clarapara a encantao

Fonte, flor em fogo,que que nos esperapor detrs da noite?

Nada vos sovino:com a minha incertezavos ilumino

Calco sob os ps srdidos o mitoque os cus segura e sobre um caos me assento.Piso a manh cada no cimentocomo flor violentada. Anjo maldito,

(pretendi devassar o nascimentoda terrvel magia) agora hesito,e queimo e tudo o desmoronamentodo mistrio que sofro e necessito.

Hesito, certo, mas aguardo o assombrocom que verei descer de cus remotoso raio que me fender no ombro.

Vinda a paz, rosa-aps dos terremotos,eu mesmo juntarei a estrela ou a pedraque de mim reste sob os meus escombros.

Neste leito de ausncia em que me esqueodesperta o longo rio solitrio:se ele cresce de mim, se dele creso,mal sabe o corao desnecessrio.

O rio corre e vai sem ter comeonem foz, e o curso, que constante, vrio.Vai nas guas levando, involuntrio,luas onde me acordo e me adormeo.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:duplo espelho o precrio no precrio.Flore um lado de mim? No outro, ao contrrio,de silncio em silncio me apodreo.

Entre o que rosa e lodo necessrio,passa um rio sem foz e sem comeo.

O ANJO

O anjo, contidoem pedrae silncio,me esperava.

Olho-o, identifico-otal se em profundo sigilode mim o procurasse desde o incio.

Me ilumino! todoo existidofora apenas a preparaodeste encontro.

2

Antes que o olhar, detendo o pssarono voo, do cu descesseat o ombro slidodo anjo,

criando-o que tempo mgicoele habitava?

3

To todo nele me percoque de mim se arrebentamas razes do mundo;

tamanhaa violncia de seu corpo contrao meu,

que a sua neutra existnciase quebra:

e os ptreos olhosse acendem;o facho

emborcado contra o solo, num desprezo

vidaarde intensamente;

a leve brisafaz mover a suatnica de pedra.

4

O anjo graveagora.Comeo a esperar a morte.

GALO GALO

O galono saguo quieto.

Galo galode alarmante crista, guerreiro,medieval.

De crneo bico eespores, armadocontra a morte,passeia.

Mede os passos. Para.Inclina a cabea coroadadentro do silncio que fao entre coisas? de que me defendo?

Anda

no saguo.O cimento esqueceo seu ltimo passo.

Galo: as penas queflorescem da carne silenciosae o duro bico e as unhas e o olhosem amor. Gravesolidez.Em que se apoiatal arquitetura?

Saber que, no centrode seu corpo, um gritose elabora?

Como, porm, conter,uma vez concludo,o canto obrigatrio?

Eis que bate as asas, vaimorrer, encurva o vertiginoso pescoodonde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde,o prprio feroz galosubsistem ao grito.

V-se: o canto intil.

O galo permanece apesarde todo o seu porte marcial s, desamparado,num saguo do mundo.Pobre ave guerreira!

Outro grito cresceagora no sigilode seu corpo; gritoque, sem essas penase espores e cristae sobretudo sem esse olharde dio,

no seria to roucoe sangrento.

Grito, fruto obscuroe extremo dessa rvore: galo.Mas que, fora dele, mero complemento de auroras.

So Lus, abril de 1951

A GALINHA

Mortaflutua no cho.

Galinha.

No teve o mar nemquis, nem compreendeuaquele ciscar quase feroz. Cis-cava. Olhava o muro,aceitava-o, negro e absurdo.

Nada perdeu. O quintalno tinha

qualquer beleza.

Agoraas penas so s o que o ventoroa, leves.

Apagou-se-lhetoda a cintilao, o medo.Morta. Evola-se do olho secoo sono. Ela dorme.

Onde? onde?

AS PERAS

As peras, no prato,apodrecem.O relgio, sobre elas,medea sua morte?Paremos a pndula. De-teramos, assim, amorte das frutas?

Oh as peras cansaram-sede suas formas e desua doura! As peras,concludas, gastam-se nofulgor de estarem prontaspara nada.

O relgiono mede. Trabalhano vazio: sua voz deslizafora dos corpos.

Tudo o cansaode si. As peras se consomemno seu doiradosossego. As flores, no canteirodirio, ardem,ardem, em vermelhos e azuis. Tudodesliza e est s.

O diacomum, dia de todos, adistncia entre as coisas.Mas o dia do gato, o felinoe sem palavrasdia do gato que passa entre os mveis passar. No entre os mveis. Pas-sar como eupasso: entre nada.

O dia das peras

o seu apodrecimento.

tranquilo o diadas peras? Elasno gritam, comoo galo.

Gritarpara qu? se o canto apenas um arcoefmero fora docorao?

Era preciso queo canto no cessassenunca. No pelocanto (canto que oshomens ouvem) masporque can-tando o galo sem morte.

A AVENIDA

O relgio alto, asflores que o vento subjuga,

a grama a crescerna ausncia doshomens.

No obstante,as praias no cessam.Simultaneidade!

diurnomilagre, fruto delcida matria imputrescvel! Oclaro contorno elaboradosem descanso. Alegrialimpa, roubada sem qualquerviolncia aodoloroso trabalhodas coisas!

2

Misria! esta avenida eterna!

Que fazem os galhoserguidos no

vaziose no garantem suapermanncia!

O relgiori.O

canteiro um marsbio con-tidosuicidado.

Na luzdesamparada, as corolasdesamparadas.

3

Precrias so as praias doshomens:

praiasque morrem na cama como dio e osexo: perdem-seno p sem voz.A importncia das praias para o mar!Praias, amadurecimento:

aquio mar crepita e fulgura, fru-to trabalhado dum fogoseu, acesodas guas,pela faina das guas.

11, setembro de 1951

OS JOGADORESDE DAMA

Se te voltas, a verdura esplende O rosto dos homens se perdeu no cho das ruasDura, nas folhas, o sol sem tempo

Voa com o pssaro a solido do seu corpo Somos arames estendidos no ar de umptio que ningum visita Vamos, o que sempre h, e no cessa, o temposoprando no tempo A orelha dobrada sobre o som do mundo

ningum sabe em que territrio de fogo e sob que nuvens os homens arquejam ependem entre os clares da poeira um rosto dourado e cego

nem em que tarde das tardes as derradeiras aves desceram para a terrae um vento desfez seu corpo!

O ABISMO DA VERDURA

J na grama atual, verde a luz destes cabelos, o brilho das unhas; vegetal, opequeno sol do sorriso. Nada reter a figura do corpo, que s a palavra, o seusecreto claro, ilumina; ou a alegria do exerccio.

Movo-me, aqui; mas, largado, resseco num deserto que a pura luz dos barulhosedifica; onde o azul faminto, cu contumaz, descido nos meus ps como umcorvo.

Aqui sentou-se o som, o opaco, som; aqui? lugar de vento!; e a luz sentada, a luz!;tempo mais ar mais ar e ar e ar; aqui, tempo sentado; no sopra, no, meescondo, a cor me gasta.

Varre, varre, no disseste, varre, e dentro dos olhos, onde a morte se inveja; e omedo menor que fende a nuca vacilas, cravejado, sobre instantneo choferico; varre, mas a nossa pele j se estende, velha, entre um campo spero deesferas.

Fora, o jardim, o sol o nosso reino.Sob a fresca linguagem, porm,dentro de suas folhas mais fechadas,a cabea, os chavelhos reais de lcifer,esse diurno.

Assim o trabalho. Onde a luz da palavratorna sua fonte,detrs, detrs do amor,ergue-se para a morte, o rosto.

O mito nos apuraem seus cristais.

Os ventos que enterramosno nos deixam.Esto nos castigandocom seu escuro fogo.

A altura em que queimamoso sonoestabelece o nosso infernoe as nossas armas.

Cho verbal,campos de sis pulverizados.As asas da vida aqui se desfazeme mais puras regressam.

O mar lapida os trabalhosde sua solido.

A palavra erguidavigiaacima das fomeso terreno ganho.

Sobre a poeira dos abraosconstruo meu rosto

Entre a mo e o que ela fereo pueril sopra seu fogo

Oficina impiedosa!Minha alquimia real

O VIL METAL(1954-1960)

Aranha,como rvore, engendra na sombraa sua festa, seu voo qualquer.Velhos sis que a folhagem bebeu,luz, poeiraagora, tecida no escuro. Alto abandonoem que os frutos alvorecem,e rompem!

Mas no se exale a madurezdesse tempo: e role o ouro, escravo,no cho,para que o que canto se redima sem ajuda.

9, dezembro de 1952

OCORRNCIA

A o homem srio entrou e disse: bom diaA o outro homem srio respondeu: bom diaA a mulher sria respondeu: bom diaA a menininha no cho respondeu: bom diaA todos riram de uma vezMenos as duas cadeiras, a mesa, o jarro, as flores, as paredes, o relgio, almpada, o retrato, os livros, o mata-borro, os sapatos, as gravatas, as camisas,os lenos

FRUTAS

Sobre a mesa no domingo(o mar atrs)duas mas e oito bananas num prato de louaSo duas manchas vermelhas e uma faixa amarelacom pintas de verde selvagem:uma fogueira slidaacesa no centro do dia.O fogo escuro e no cabe hoje nas frutas:chamas,as chamas do que est pronto e alimenta

DEZEMBRO

Fora da casao dia mantm solidrioseu corpo de chama e de verdura

Dia terrestre,falam num mesmo nvel de fogominha boca e a tua

UM HOMEM RI

Ele ria da cintura para cima. Abaixoda cintura, atrs, sua mofurtivainspecionava na roupa

Na frente e sobretudo no rosto, ele ria,expelia um claro, um sumoservilfeito uma flor carnvora se esfora na beleza da corolana doura do melAtrs dessa aurola, saindodela feito um galho, descia o braocom a mo e os dedose altura das ndegas trabalhavamno brim azul das calas

(como um animal no campo na primaveravisto de longe, masvisto de perto, o focinho, sinistro,de calor e osso come o capim do cho)

O homem lanava o riso como o polvo lana a sua[tinta e foge

Mas a mo buscava o cs da cuecatalvez desabotoadaum calombo que coavauma pulga sob a roupaqualquer coisa que fazia a vida pior

O ESCRAVO

Detrs da flor me subjugam,atam-me os ps e as mos.E um pssaro vem cantarpara que eu me negue.

Mas eu sei que a nica haste do tempo o sulco do riso na terra a boca espedaada que continua falando.

POEMASCONCRETOS/

NEOCONCRETOS(1957-1958)

mar azul

mar azul marco azul

mar azul marco azul barco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

o co v a flora flor vermelha

anda para a flora flor vermelha

passa pela flora flor vermelha

DENTRO DANOITE VELOZ

(1962-1975)

MEU POVO, MEU POEMA

Meu povo e meu poema crescem juntoscomo cresce no frutoa rvore nova

No povo meu poema vai nascendocomo no canavialnasce verde o acar

No povo meu poema est madurocomo o solna garganta do futuro

Meu povo em meu poemase refletecomo a espiga se funde em terra frtil

Ao povo seu poema aqui devolvomenos como quem cantado que planta

A BOMBA SUJA

Introduzo na poesiaa palavra diarreia.No pela palavra friamas pelo que ela semeia.

Quem fala em flor no diz tudo.Quem me fala em dor diz demais.O poeta se torna mudosem as palavras reais.

No dicionrio a palavra mera ideia abstrata.Mais que palavra, diarreia arma que fere e mata.

Que mata mais do que faca,mais que bala de fuzil,homem, mulher e crianano interior do Brasil.

Por exemplo, a diarreia,no Rio Grande do Norte,de cem crianas que nascem,setenta e seis leva morte.

como uma bomba Dque explode dentro do homemquando se dispara, lenta,a espoleta da fome.

uma bomba-relgio(o relgio o corao)que enquanto o homem trabalhavai preparando a exploso.

Bomba colocada nelemuito antes dele nascer;que quando a vida despertanele, comea a bater.

Bomba colocada nelepelos sculos de fomee que explode em diarreiano corpo de quem no come.

No uma bomba limpa: uma bomba suja e mansaque elimina sem barulhovrios milhes de crianas.

Sobretudo no Nordestemas no apenas ali,que a fome do Piause espalha de leste a oeste.

Cabe agora perguntarquem que faz essa fome,quem foi que ligou a bombaao corao desse homem.

Quem que rouba a esse homemo cereal que ele planta,quem come o arroz que ele colhese ele o colhe e no janta.

Quem faz caf virar dlare faz arroz virar fome o mesmo que pe a bombasuja no corpo do homem.

Mas precisamos agoradesarmar com nossas mosa espoleta da fomeque mata nossos irmos.

Mas precisamos agoradeter o sabotadorque instala a bomba da fomedentro do trabalhador.

E sobretudo precisotrabalhar com seguranapra dentro de cada homemtrocar a arma da fomepela arma da esperana.

POEMA BRASILEIRO

No Piau de cada 100 crianas que nascem78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piaude cada 100 crianas que nascem78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piaude cada 100 crianasque nascem78 morremantesde completar8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idadeantes de completar 8 anos de idadeantes de completar 8 anos de idadeantes de completar 8 anos de idade

NO H VAGAS

O preo do feijono cabe no poema. O preodo arrozno cabe no poema.No cabem no poema o gsa luz o telefonea sonegaodo leiteda carnedo acardo po

O funcionrio pblicono cabe no poemacom seu salrio de fomesua vida fechadaem arquivos.Como no cabe no poemao operrioque esmerila seu dia de aoe carvonas oficinas escuras

porque o poema, senhores,est fechado:no h vagas

S cabe no poemao homem sem estmagoa mulher de nuvensa fruta sem preo

O poema, senhores,no fedenem cheira

NO MUNDO HMUITAS ARMADILHAS

No mundo h muitas armadilhase o que armadilha pode ser refgioe o que refgio pode ser armadilha

Tua janela por exemploaberta para o cue uma estrela a te dizer que o homem nada

ou a manh espumando na praiaa bater antes de Cabral, antes de Troia(h quatro sculos Toms Bequimotomou a cidade, criou uma milcia populare depois foi trado, preso, enforcado)

No mundo h muitas armadilhase muitas bocas a te dizerque a vida poucaque a vida loucaE por que no a Bomba? te perguntam.Por que no a Bomba para acabar com tudo, j que a vida louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinhoque no sabeque afoito se entranha vida e quera vida

e busca o sol, a bola, fascinado vo avio e indaga e indaga

A vida poucaa vida loucamas no h seno ela.E no te mataste, essa a verdade.

Ests preso vida como numa jaula.Estamos todos presosnesta jaula que Gagrin foi o primeiro a verde fora e nos dizer: azul.E j o sabamos, tantoque no te mataste e no vaiste matare aguentars at o fim.

O certo que nesta jaula h os que tme os que no tmh os que tm tanto que sozinhos poderiamalimentar a cidadee os que no tm nem para o almoo de hoje

A estrela menteo mar sofisma. De fato,o homem est preso vida e precisa vivero homem tem fomee precisa comero homem tem filhose precisa cri-losH muitas armadilhas no mundo e preciso

[quebr-las.

O ACAR

O branco acar que adoar meu cafnesta manh de Ipanemano foi produzido por mimnem surgiu dentro do aucareiro por milagre.

Vejo-o puroe afvel ao paladarcomo beijo de moa, guana pele, florque se dissolve na boca. Mas este acarno foi feito por mim.

Este acar veioda mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,dono da mercearia.Este acar veiode uma usina de acar em Pernambucoou no Estado do Rioe tampouco o fez o dono da usina.

Este acar era canae veio dos canaviais extensosque no nascem por acasono regao do vale.

Em lugares distantes, onde no h hospitalnem escola,homens que no sabem ler e morrem de fomeaos 27 anosplantaram e colheram a canaque viraria acar.

Em usinas escuras,homens de vida amargae duraproduziram este acarbranco e purocom que adoo meu caf esta manh em Ipanema.

HOMEM COMUM

Sou um homem comumde carne e de memriade osso e esquecimento.Ando a p, de nibus, de txi, de avio

e a vida sopra dentro de mimpnicafeito a chama de um maarico

e podesubitamente

cessar.

Sou como vocfeito de coisas lembradase esquecidas

rostos emos, o guarda-sol vermelho ao meio-diaem Pastos-Bons,defuntas alegrias flores passarinhosfacho de tarde luminosanomes que j nem seibocas bafos baciasbandejas bandeiras bananeiras

tudo

misturadoessa lenha perfumadaque se acendee me faz caminhar

Sou um homem comumbrasileiro, maior, casado, reservista,e no vejo na vida, amigo,nenhum sentido, senolutarmos juntos por um mundo melhor.

Poeta fui de rpido destino.Mas a poesia rara e no comovenem move o pau de arara.

Quero, por isso, falar com voc,de homem para homem,apoiar-me em vocoferecer-lhe o meu brao

que o tempo poucoe o latifndio est a, matando.

Que o tempo poucoe a esto o Chase Bank,a IT & T, a Bond and Share,a Wilson, a Hanna, a Anderson Clay ton,e sabe-se l quantos outros

braos do polvo a nos sugar a vidae a bolsa

Homem comum, iguala voc,

cruzo a Avenida sob a presso do imperialismo.A sombra do latifndiomancha a paisagem,turva as guas do mare a infncia nos volta boca, amarga,suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhes de homenscomunse podemos formar uma muralhacom nossos corpos de sonho e

[margaridas.

MAIO 1964

Na leiteria a tarde se reparteem iogurtes, coalhadas, coposde leitee no espelho meu rosto. So

quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amoa vida

que cheia de crianas, de florese mulheres, a vida,

esse direito de estar no mundo,ter dois ps e mos, uma carae a fome de tudo, a esperana.

Esse direito de todosque nenhum atoinstitucional ou constitucionalpode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!quantos em crceres escurosonde a tarde fede a urina e terror.

H muita famlias sem rumo esta tardenos subrbios de ferro e gs

onde brinca irremida a infncia da classe operria.

Estou aqui. O espelhono guardar a marca deste rosto,

se simplesmente saio do lugarou se morrose me matam.Estou aqui e no estarei, um dia,

em parte alguma.Que importa, pois?A luta comum me acende o sanguee me bate no peitocomo o coice de uma lembrana.

DOIS E DOIS: QUATRO

Como dois e dois so quatrosei que a vida vale a penaembora o po seja caroe a liberdade pequena

Como teus olhos so clarose a tua pele, morena

como azul o oceanoe a lagoa, serena

como um tempo de alegriapor trs do terror me acena

e a noite carrega o diano seu colo de aucena

sei que dois e dois so quatrosei que a vida vale a pena

mesmo que o po seja caroe a liberdade, pequena.

VERO

Este fevereiro azulcomo a chama da paixonascido com a morte certacom prevista durao

deflagra suas manhssobre as montanhas e o marcom o desatino de tudoque est para se acabar.

A carne de fevereirotem o sabor suicidade coisa que est vivendovivendo mas j perdida.

Mas como tudo que viveno desiste de viver,fevereiro no desiste:vai morrer, no quer morrer.

E a luta de resistnciase trava em todo lugar:por cima dos edifciospor sobre as guas do mar.

O vento que empurra a tardearrasta a fera ferida,rasga-lhe o corpo de nuvens,dessangra-a sobre a Avenida

Vieira Souto e o Arpoadornuma ampla hemorragia.Suja de sangue as montanhas,tinge as guas da baa.

E nesse esquartejamentoa que outros chamam vero,fevereiro ainda agoniaresiste mordendo o cho.

Sim, fevereiro resistecomo uma fera ferida. essa esperana doidaque o prprio nome da vida.

Vai morrer, no quer morrer.Se apega a tudo que existe:na areia, no mar, na relva,no meu corao resiste.

UMA VOZ

Sua voz quando ela cantame lembra um pssaro masno um pssaro cantando:lembra um pssaro voando

PRAIA DO CAJU

Escuta:o que passou passoue no h foracapaz de mudar isto.

Nesta tarde de frias, disponvel, podes,se quiseres, relembrar.Mas nada acender de novoo lumeque na carne das horas se perdeu.

Ah, se perdeu!Nas guas da piscina se perdeusob as folhas da tardenas vozes conversando na varandano riso de Marlia no vermelhoguarda-sol esquecido na calada.

O que passou passou e, muito embora,voltas s velhas ruas procura.Aqui esto as casas, a amarela,a branca, a de azulejo, e o solque nelas bate o mesmosolque o Universo no mudou nestes vinte anos.

Caminhas no passado e no presente.Aquela porta, o batente de pedra,o cimento da calada, at a falha do cimento.

[No sabes jse lembras, se descobres.E com surpresa vs o poste, o muro,a esquina, o gato na janela,em soluos quase te perguntasonde est o meninoigual quele que cruza a rua agora,franzino assim, moreno assim.

Se tudo continua, a portaa calada a platibanda,onde est o menino que tambmaqui esteve? aqui nesta caladase sentou?

E chegas amurada. O sol quentecomo era, a esta hora. L embaixoa lama fede igual, a poa de gua negraa mesma gua o mesmourubu pousado ao lado a mesmalata velha que enferruja.Entre dois braos dguaesplende a croa do Anil. E na intensaclaridade, como sombra,surge o meninocorrendo sobre a areia. ele, sim,gritas teu nome: Zeca,Zeca!

Mas a distncia vastato vasta que nenhuma voz alcana.

O que passou passou.Jamais acenders de novoo lumedo tempo que apagou.

POR VOC POR MIM

A noite, a noite, que se passa? dizque se passa, esta serpente vasta em convulso, esta pantera lils, de carne

lils, a noite, esta usinano ventre da floresta, no vale,sob lenis de lama e acetileno, a aurora,o relgio da aurora, batendo, batendo,quebrado entre cabelos, entre msculos mortos,

[na podridoa boca destroada j no diz a esperana,

batendoAh, como difcil amanhecer em Thua Thien.

Mas amanhece.

Que se passa em Hu? em Da Nang? No Deltado Mekong? Te pergunto,

nesta manh de abril no Rio de Janeiro,te pergunto,

que se passa no Vietnam?

As guas explodem como granadas, os arrozaisse queimam em fsforo e sangue

entre fuzisas crianas

fogem dos jardins onde aucenas pulsamcomo bombas-relgio, os jasmineirossoltam gases, a mquina

da primaveradanificadano consegue sorrir.

H mortos demais no regao de Mac Hoa.H mortos demais

nos campos de arroz, sob os pinheiros,s margens dos caminhos que conduzem a Camau.

O Vietnam agora uma vasta oficina da morte,[nos campos

da morte, o motor

da vida gira ao contrrio, nopara sustentar a cor da ris,a tessitura da carne, gira

ao contrrio, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelhodo corpo, giraao contrrio das constelaes, a vidaao contrrio, dentrode blusas, de calas, dentro

de rudes sapatos feitos de pano e palha, giraao contrrio a vida feita morte.

Surdosistema de lcool, giragira, apaga rostos, mos,esta mo jovem

que sabia ajudar o arroz, tecer a palha. H mortosdemais, h mortes

demais, coisas da infncia, a hortel, os sustosdo amor, aquela tarde aquela tarde clara, amada, aquela tarde claratudo

tudo se dissolve nas guas marronse entre nenfares e limosa correnteza arrasta para o mar o mar o mar azul

dia feito em Botafogo.Homens de pasta, palet, camisa limpa,dirigem-se para o trabalho.Mulheres voltam da feira, as bolsas cheias de legumes.Crianas passam para o colgio.As nuvens nuveme as guas batem naturalmente em toda a orla

[martima.Nenhuma ameaa pesa sobre a cidade.

As pessoasmarcam encontros, iro ao cinema, boate, se amaro

nas praiasna camanos carros. As pessoasacertam negcios, marcam viagens, frias.

Nenhuma ameaapesa sobre a cidade.Os barulhos apitos baques rumores

se decifram sem alarma. O avio no cuvai para So Paulo.

O avio no cu no um Thunderchief da Usafque chega trazendo a morte

como em Hani.No um Thunderchief da Usaf que chegaseguido de outros

e outrosda USAF

carregados de bombas e foguetescomo em Hani

que chega lanando bombas e foguetescomo em Hanicomo em Haiphong

incendiando o portodestruindo as centrais eltricasas estradas de ferro

como em Hanicomo em Hoa Bac

queimando crianas com napalmcomo em Hanicomo em Chien Tiencomo em Don Hoicomo em Tai Minhcomo em Vihn Thancomo em Hani

Como pode uma cidade, como podeuma cidade

resistirOs americanos esto agora investindo muito no Vietnam

O Vietnam agora nada em ouroe fogoBases areasArsenaisDepsitos de combustveisLaboratrios na rochaRadarFoguetes

A cincia eletrnica invade a selvagases novos, armas novas

O lazy-doglana em todas as direes mil flechas de ao

o bull-pupprocura o alvo com seus 200 quilos de explosivos

o olho de serpentepousa sobre uma casa e espera a hora certa de matarO Vietnam agora est cheio de arame farpado

de homens lourosfarpadosarmadosvigiadoscercadosassustados

est cheio de jovens homens lourose cadveres jovens

de homens lourosenganados

Prximo base de Da Nangque tudo escuta e tudo v,prximo base de Da Nang, esgueira-seentre rvores um homem,prximo base cheia de soldados,metralhadoras, bombas,avies, cheia

de ouvidos e de olhoseletrnicos, um homem, chamado Tram,

entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,cauteloso se move

entre as folhas da noite, Tram Van Dam,cauteloso se moveentre as flores da morteTram Van Damquinze anos se moveentre as guas da noitedentro da lamaonde bate a auroraTram Van Damonde bate a auroraTram Van Damcom a sua granada

entre cercas de arameentre as minas no choTram Van Damcom o seu coraoTram Van Damonde bate a aurorapor voc por mimsob o fogo inimigocom o grampo no dentecom brao no arpor voc por mimTram Van Damonde bate a aurorapor voc por mimno Vietnam

MEMRIA

menino no capinzalcaminha

nesta tarde e em outrahavida

Entre capins e mata-pastosvai, pisanas ervas mortas onteme vivas hojee revividas no claro da lembrana

E h qualquer coisa azul que o iluminae que no vem do cu, e se no vemdo cho, vemdecerto do mar batendo noutra tardee no meu corpo agora um mar defunto que se acende na carnecomo noutras vezes se acende o saborde uma frutaou a suja luz dos perfumes da vidaah vida!

VENDO A NOITE

Jpiter, Saturno.De dentro de meu corpoestou vendoo universo noturno.

Velhas exploses de gsque meu corpo no ouve:vejo a noite que houvee no existe mais

a mesma, veloz, em Troia,no rosto de Heitor hoje na pele de meu rostono Arpoador.

DENTRO DA NOITE VELOZ

Na quebrada do Yuroeram 13,30 horas

(em So Pauloera mais tarde; em Paris anoitecera;na sia o sono era seda)

Na quebradado rio Yuroa claridade da horamostrava seu fundo escuro:as guas limpas batiamsem passado e sem futuro.Estalo de mato, piode ave, brisanas folhas

era silncio o barulhoa paisagem(que se move)est imvel, se movedentro de si

(igual que uma mquina de lavarlavando

sob o cu boliviano, a paisagemcom suas polias e correntes

de ar)Na quebrada do Yurono era hora nenhumas pedras plantas e guas

II

No era hora nenhumaat que um tiro

explode em pssarose animais

at que passosvozes na gua rosto nas folhaspeito ofegando

a clorofila

penetra o sangue humanoe a histria

se movea paisagemcomo um trem

comea a andarNa quebrada do Yuro eram 13,30 horas

III

Ernesto Che Guevarateu fim est pertono basta estar certopra vencer a batalha

Ernesto Che Guevaraentrega-te prisono basta ter razopra no morrer de bala

Ernesto Che Guevarano estejas iludidoa bala entra em teu corpocomo em qualquer bandido

Ernesto Che Guevarapor que lutas ainda?a batalha est findaantes que o dia acabe

Ernesto Che Guevara chegada a tua horae o povo ignorase por ele lutavas

IV

Correm as guas do Yuro, o tiroteio agora mais intenso, o inimigo avanae fecha o cerco.

Os guerrilheirosem grupos pequenos divididos

aguentama luta, protegem a retirada

dos companheiros feridos.No alto,

grandes massas de nuvens se deslocam[lentamente

sobrevoando pasesem direo ao Pacfico, de cabeleira azul.Uma greve em Santiago. Chovena Jamaica. Em Buenos Aires h solnas alamedas arborizadas, um general maquina

[um golpe.Uma famlia festeja bodas de prata num trem

[que se aproximade Montevidu. beira da estradamuge um boi da Swift. A Bolsano Rio fecha em alta

ou baixa.Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustquio, atocastigam o avanodos rangers.

Urbano tomba,Eustquio,Che Guevara sustenta

o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda,[solve-se-lhe

o joelho, no espantoos companheiros voltampara apanh-lo. tarde. Fogem.

A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.

V

No est morto, s ferido.Num helicptero ianque levado para Higueraonde a morte o espera

No morrer das feridasganhas no combatemas de mo assassinaque o abate

No morrer das feridas

ganhas a cu abertomas de um golpe escondidoao nascer do dia

Assim o levam pra morte(sujo de terra e de sangue)subjugado no bojode um helicptero ianque

o seu ltimo voosobre a Amrica Latinasob o fulgor das estrelasque nada sabem dos homens

que nada sabem do sonho,da esperana, da alegria,da luta surda do homempela flor de cada dia

o seu ltimo voosobre a choupana de homensque no sabem o que se passanaquela noite de outubro

quem passa sobre seu tetodentro daquele barulhoquem levado pra mortenaquela noite noturna

VI

A noite mais veloz nos trpicos(com seus na vertigem das folhas na explosomonturos) das guas sujas

surdasnos pantanais

mais veloz sob a pele da treva, naconspirao de azuise vermelhos pulsandocomo vaginas frutos bocas

vegetais(confundidos nos sonhos)

ou

um ramo florido feito um relmpagoparado sobre uma cisterna dgua

no escuro mais fundaa noite do sonodo homem na sua carnede cocae de fomee dentro do pote uma canecade lata velha de ervilhada Armour Company

A noite mais veloz nos trpicoscom seus monturose cassinos de jogoentre as pernas das putaso assaltoa mo armada

aberta em sangue a vida mais veloz

(e mais demorada)nos crceres

a noite latino-americanaentre interrogatriose torturas

(l fora as violetas)e mais violenta (a noite)na cona da ditadura

Sob a pele da treva, os frutoscrescemconspira o acar(de boca para baixo) debaixodas pedras, debaixoda palavra escrita no muro

ABAIXe inacabada

Tlalhuicoleas vozes soterradas da platinaDas plumas que ondularam j no restamais que a lembranano vento

Mas o dia (comseus monturos)

pulsandodentro do chocomo um pulso

apesar da South American Gold and Platinum a lngua do diano azinhavre

Golpebamos en tanto los muros de adobey era nuestra herencia una red de agujeros

a lngua do homemsob a noite

no leprosrio de San Pablonas runas de Tiahuanaconas galerias de chumbo e silicoseda Cerro de Pasco Corporation

Hemos comido grama salitrosapiedras de adobe lagartijas ratonestierra en polvo y gusanos

at que o dia(de dentro dos monturos) irrompa

com seu basto de turquesa

VII

Sbito vimos ao mundoe nos chamamos ErnestoSbito vimos ao mundoe estamosna Amrica Latina

Mas a vida onde estnos perguntamos

Nas tavernas?nas eternastardes tardas?

nas favelasonde a histria fede a merda?

no cinema?na fmea caverna de sonhose de urina?

ou na ingrata

faina do poema?(a vidaque se esvaino esturio do Prata)

Serei cantorserei poeta?

Responde o cobre (da Anaconda Copper):Sers assaltantee proxenetapolicial jaguno alcagueta

Serei pederasta e homicida?serei viciado?

Responde o ferro (da Bethlehem Steel):Sers ministro de Estadoe suicidaSerei dentista?

talvez quem sabe oftalmologista?otorrinolaringologista?

Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium):sers mdico aborteiroque d mais dinheiro

Serei um merdaquero ser um merdaQuero de fato viver.Mas onde est essa imundavida mesmo imunda?

No hospcio?num santoofcio?

no orifcioda bunda?Devo mudar o mundo,a Repblica? A vidaterei de plant-lacomo um estandarteem praa pblica?

VIII

A vida muda como a cor dos frutoslentamentee para sempre

A vida muda como a flor em frutovelozmente

A vida muda como a gua em folhaso sonho em luz eltricaa rosa desembrulha do carbonoo pssaro, da boca

masquando for tempo

E tempo todo tempomas

no basta um sculo para fazer a ptalaque um s minuto fazou no

masa vida mudaa vida muda o morto em multido

NOTCIA DA MORTE DEALBERTO DA SILVA

(poema dramtico para muitas vozes)

Eis aqui o mortochegado a bom porto

Eis aqui o mortocomo um rei deposto

Eis aqui o mortocom seu terno curto

Eis aqui o mortocom seu corpo duro

Eis aqui o mortoenfim no seguro

IIDe barba feita, cabelo penteadojamais esteve to bem arrumado

De camisa nova, gravata borboletaparece at que vai para uma festaNo rosto calmo, um leve sorrisonem parece aquele mais-morto-que-vivo

Imvel e rijo assim como o vsparece que nunca esteve to feliz

III

Morava no Mier desde meninoSeu grande sonho era tocar violino

Fez o curso primrio numa escola pblicaquanto ao secundrio resta muita dvida

Aos treze anos j estava empregadonum escritrio da rua do Senado

Quando o pai morreu criou os irmos

Sempre foi um homem de bom corao

Comeou contnuo e acabou funcionrioSempre eficiente e cumpridor do horrio

Gostou de Nezinha, de cabelos longos,que um dia sumiu com um tal de Raimundo

Gostou de Esmeralda uma de olhos pretosEla nunca soube desse amor secreto

Endoidou de fato por Laura Marleneque dormiu com todos menos com ele

Casou com Lusa, que morava longe,no tinha olhos pretos nem cabelos longos

Apesar de tudo, foi bom pai de famliasua casa tinha um boa moblia

Conversava pouco mas foi bom maridocomprou televiso e um rdio transistor

No foi carinhoso com a mulher e a filhamas deixou para elas um seguro de vida

Morreu de repente ao chegar em casaainda com o terno pudo que usava

No saiu notcia em jornal algumFoi apenas a morte de um homem comum

E porque ningum noticiou o fatofazemos aqui este breve relato

IV

No foi nada de mais, claro, o que aconteceu:apenas um homem, igual aos outros, que morreu

Que nos importa agora se quando meninoo seu grande sonho foi tocar violino?

Que nos importa agora quando o vamos enterrarse ele no teve sequer tempo de namorar?

Que nos importa agora quando tudo est findose um dia ele achou que o mar estava lindo?

Que nos importa agora se algum dia ele quisconhecer Nova York, Londres ou Paris?

Que nos importa agora se na mente confusaele s vezes pensava que a vida era injusta?

Agora est completo, j nada lhe falta:nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda

V

Mas preciso dizer que ele foi como um fiodgua que no chegou a ser rio

Refletiu no seu curso o laranjal douradosem que nada desse ouro lhe fosse dado

Refletiu na sua pele o cu azul de outubroe as esplendentes runas do crepsculo

E agora, quando se vai perder no mar imenso,tudo isso, nele, virou rigidez e silncio:

toda palavra dita, toda palavra ouvida,todo riso adiado ou esperana escondida

toda fria guardada, todo gesto detidoo orgulho humilhado, o carinho contido

o violino sonhado, as nuvens, a espumadas nebulosas, a bomba nuclear

agora nele so coisa alguma

VIMas no fim do relato preciso dizerque esse morto no teve tempo de viverNa verdade vendeu-se, no como Fausto, ao Co:vendeu sua vida aos seus irmos

Na verdade vendeu-a, no como Fausto, a prazo:vendeu-a vista ou melhor, deu-a adiantado

Na verdade vendeu-a, no como Fausto, caro:

vendeu-a barato e, mais, no lhe pagaram

VII

Enfim este o mortoagora homem completo:s carne e esqueleto

Enfim este o mortototalmente presente:unha, cabelo, dente

Enfim este o morto:um annimo brasileirodo Rio de Janeirode quem nesta oportunidadedamos notcia cidade

NO CORPO

De que vale tentar reconstruir com palavraso que o vero levouentre nuvens e risos

junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incndio na cama,o apelo na noiteagora so apenas estacontrao (este claro)de maxilar dentro do rosto.

A poesia o presente.

CANTIGA PARA NO MORRER

Quando voc for se embora,moa branca como a neve,me leve.

Se acaso voc no possame carregar pela mo,menina branca de neve,me leve no corao.

Se no corao no possapor acaso me levar,moa de sonho e de neve,me leve no seu lembrar.

E se a tambm no possapor tanta coisa que levej viva em seu pensamento,menina branca de neve,me leve no esquecimento.

A POESIA

Onde esta poesia? indaga-sepor toda parte. E a poesiavai esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Pchkin e Baudelaire.Exegetas desmontam a mquina da linguagem.A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: proibidomisturar o poema com Ipanema.O poeta depe no inqurito:meu poema puro, florsem haste, juro!No tem passado nem futuro.No sabe a fel nem sabe a mel: de papel.No como a aucenaque efmerapassa.E no est sujeito traapois tem a proteo do inseticida.Creia,o meu poema est infenso vida.

Claro, a vida suja, a vida dura.E sobretudo insegura:

Suspeito de atividades subversivas foi detido[ontem

o poeta Casimiro de Abreu.A Fbrica de Fiao Camboa abriu falncia e deixousem emprego uma centena de operrios.A adltera Rosa Gonalves, depondo na 3. Vara

de Famlia,afirmou descaradamente: Tra ele, sim. O amor

acaba, seu juiz.

O anel que tu me deste

era vidro e se quebrouo amor que tu me tinhasera pouco e se acabou

Era pouco? era muito?Era uma fome azul e navalhauma vertigem de cabelos dentescheiros que transpassam o metale me impedem de viver ainda

Era pouco? Era louco,um mergulho

no fundo de tua seda aberta em flor embaixoonde eu morria

Branca e verdebranca e verdebranca branca branca branca

E agorarecostada no div da sala

depois de tudoa poesia ri de mim

Ih, preciso arrumar a casaque Andr vai chegar preciso preparar o jantar preciso ir buscar o menino no colgiolavar a roupa limpar a vidraa

O amor(era muito? era pouco?era calmo? era louco?)

passaA infnciapassaa ambulnciapassa

S no passa, Ingrcia,a tua grcia!

E pensar que nunca mais a tereireal e efmera (na penumbra da tarde)como a primavera.

E pensarque ela tambm vai se juntar

ao esqueleto das noites estreladase dos perfumes

que dentro de mim gravitamfeito p

(e um dia, claro,ao acender um cigarrotalvez se deflagre com o fogo do fsforoseu sorrisoentre meus dedos. E s).Poesia deter a vida com palavras?

No libert-la,faz-la voz e fogo em nossa voz. Po-

esia falaro dia

acend-lo do pabri-locomo carne em cada slaba, de-flagr-lo

como bala em cada nocomo arma em cada mo

E sbito da calada sobee explodejunto ao meu rosto o ps-

saro? o ps-?

Como cham-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?Ele

bicava o cho h poucoera um pombo mas

sbito explodeem ajas brulhos zules bulha zalas

e foge!como cham-lo? Pombo? No:poesiapaixorevoluo

Santiago, 12, julho de 1973

POEMA SUJO(1975)

.............................................................................................Quantas tardes numa tarde!

e era outra, fresca,debaixo das rvores boas a tardena praia do Jenipapeiro

Ou do outro lado aindaa tarde maior da cidade

amontoada de sobrados e mirantesladeiras quintais quitandashortas j iraus galinheiros

ou na cozinha (distante) onde Bizuzaprepara o jantar

e no canta

ah quantas s numatarde geral que cobre de nuvens a cidade

tecendo no alto e conoscoa histria brancada vida qualquer

ah ventos soprando verdes nas palmeiras dos Remdiosgramas crescendo obscuras sob meus ps

entre os trilhose dentro da tarde a tarde-

locomotivaque vem como um paquiderme

de aotarda pesada

maxilares cerrados cabea zinindouma catedral que se moveenvolta em vaporbufando pnico

prestesa explodir

tchi tchitr tr tr

tar TAR TARtchi tchi tchi tchi tchiTAR TAR TAR TAR TAR

(Para ser cantada com a musica da Bachiana n. 2, Tocata, de Villa-Lobos)

l vai o trem com o meninol vai a vida a rodarl vai ciranda e destinocidade e noite a girarl vai o trem sem destinopro dia novo encontrarcorrendo vai pela terra

vai pela serravai pelo mar

cantando pela serra do luarcorrendo entre as estrelas a voar

no arpiiu! piu piu

no arpiu piu piuadeus meu grupo escolaradeus meu anzol de pescaradeus menina que eu quis amarque o trem me leva e nunca mais vai parar

VAAR VAAR VAAR VAARtuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc

brisa branca brisa friacinzentura quase dia

IU IU IU IU IUtuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc

lar lar lararlar lar larar

lar lar lararlar lar larar lar larar lar lararlar lar larlar lar lar

IU IU IU IU IUiu i iu iu iu iu iu

samos de casa s quatrocom as luzes da rua acesas

meu pai levava a maleta

eu levava uma sacola

rumamos por Afogadosoutras ladeiras e ruas

o que pra ele era rotinapara mim era aventura

quando chegamos gareo trem realmente estava

ali parado esperandomuito comprido e chiava

entramos no carro os doiseu entre alegre e assustado

meu pai (que j no existe)me fez sentar ao seu lado

talvez mais feliz que eupor me levar na viagem

meu pai (que j no existe)sorria, os olhos brilhando

VAAR VAAR VAAR VAAR

tchuc tchuc tchuctchuc tchuc tchuc

TRAR TRAR TRARTRAR TRAR TRAR

ultrapassamos a noitequando cruzamos Perizesera exatamente alique principiava o dia

VAAR VAAR VAAR VAARVAAR VAAR VAAR VAAR

e ver que a vida era muitaespalhada pelos camposque aqueles bois e marrecosexistiam ali sem mim

e aquelas rvores todasguas capins nuvens comoera pequena a cidade!

E como era grande o mundo:h horas que o trem corriasem nunca chegar ao fimde tanto cu tanta terrade tantos campos e serrassem contar o Piau

J passamos por Rosriopor Vale-Quem-Tem, Quelru.Passamos por Pirapemase por Itapicuru:mundo de bois, siriemas,jaan, pato e nhambu

caf com pobolacha no

caf com pobolacha no

vale quem temvale quem tem

vale quem temvale quem tem

nada valequem no tem

nada no valenada vale

quem nadatem

neste vale

nadavalenadavalequemnotemnada

novale

TCHIBUM!!!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Muitosmuitos dias h num dia s

porque as coisas mesmasos compemcom sua carne (ou ferro

que nome tenha essamatria-tempo

suja ouno)os compem

nos silncios aparentes ou grossoscomo colchas de flanelaou gua vertiginosamente imvel

comona quinta dos Medeiros, no pooda quinta

coberto pela sombra quase pnicadas rvores

de galhos que subiam mudoscomo enigmastudo parado

feito uma noite verde ou vegetale de gua

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

impossvel dizerem quantas velocidades diferentes

se move uma cidadea cada instante(sem falar nos mortosque voam para trs)ou mesmo uma casa

onde a velocidade da cozinhano igual da sala (aparentemente imvelnos seus jarros e bibels de porcelana)

nem do quintalescancarado s ventanias da poca

e que dizer das ruasde trfego intenso e da circulao do dinheiroe das mercadorias

desigual segundo o bairro e a classe, e darotao do capitalmais lenta nos legumesmais rpida no setor industrial, e

da rotao do sonosob a pele,

do sonhonos cabelos?

e as tantas situaes da gua nas vasilhas(pronta a fugir)

a rotaoda mo que busca entre os pentelhoso sonho molhado os muitos lbiosdo corpoque ao afago se abre em rosa, a moque ali se detm a sujar-sede cheiros de mulher,

e a rotaodos cheiros outrosque na quinta se fabricamjunto com a resina das rvores e o cantodos passarinhos?

Que dizer da circulaoda luz solar

arrastando-se no p debaixo do guarda-roupaentre sapatos?

e da circulao

dos gatos pela casados pombos pela brisa?

e cada um desses fatos numa velocidade prpriasem falar na prpria velocidadeque em cada coisa h

como os muitossistemas de acar e lcool numa pera

girandotodos em diferentes ritmos

(que quasese pode ouvir)

e compondo a velocidade geralque a pera

do mesmo modo que todas essas velocidades[mencionadas

compem(nosso rosto refletido na gua do tanque)

o diaque passa ou passou na cidade de So Lus.

E do mesmo modoque h muitas velocidades num

s diae nesse mesmo dia muitos dias

assimno se pode tambm dizer que o diatem um nico centro

(feito um carooou um sol)

porque na verdade um diatem inumerveis centros

como, por exemplo, o pote de guana sala de jantarou na cozinhaem torno do qual

desordenadamente giram os membros da famlia.

E se nesse caso a sede a fora de gravitao

outras funes metablicasoutros centros geram

como a sentinaa cama

ou a mesa de jantar(sob uma luz encardida numa

porta-e-janela da Rua da Alegriana poca da guerra)

sem falar nos centros cvicos, nos centrosespritas, no Centro Cultural

Gonalves Dias ou nos mercados de peixe,colgios, igrejas e prostbulos,outros tantos centros do sistemaem que o dia se move

(sempre em velocidades diferentes)sem sair do lugar.

Porquequando todos esses sis se apagamresta a cidade vazia(como Alcntara)no mesmo lugar.

Porquediferentemente do sistema solar

a esses sistemasno os sustm o sol e sim

os corposque em torno dele giram:no os sustm a mesamas a fomeno os sustm a camae sim o sonono os sustm o bancoe sim o trabalho no pago

E essa a razo por quequando as pessoas se vo

(como em Alcntara)apagam-se os sis (os

potes, os foges)que delas recebiam o calor

essa a razopor que em So Lus

donde as pessoas no se foramainda neste momento a cidade se moveem seus muitos sistemase velocidadespois quando um pote se quebraoutro pote se faz

outra cama se fazoutra jarra se fazoutro homemse faz

para que no se extingao fogona cozinha da casa

O que eles falavam na cozinhaou no alpendre do sobrado(na Rua do Sol)saa pelas janelas

se ouvia nos quartos de baixona casa vizinha, nos fundos da Movelaria

(e v algum saberquanta coisa se fala numa cidadequantas vozesresvalam por esse intrincado labirintode paredes e quartos e sagues,de banheiros, de ptios, de quintais

vozesentre muros e plantas,

risos,que duram um segundo e se apagam)

E so coisas vivas as palavrase vibram da alegria do corpo que as gritoutm mesmo o seu perfume, o gosto

da carneque nunca se entrega realmentenem na cama

seno a si mesma

sua prpria vertigemou assimfalandoou rindono ambiente familiar

enquanto como um ratotu podes ouvir e verde teu buracocomo essas vozes batem nas paredes do ptio vaziona armao de ferro onde seca uma parreiraentre aramesde tarde

numa pequena cidade latino-americana.

E nelas huma iluminao mortal

que da bocaem qualquer tempo

mas que alina nossa casa

entre mveis baratos

e nenhuma dignidade especialminava a prpria existncia.

Ramos, certo,em torno da mesa de aniversrio coberta de pastilhasde hortel enroladas em papel de seda colorido,

ramos, sim,masera como se nenhum afeto valessecomo se no tivesse sentido rir

numa cidade to pequena.

O homem est na cidadecomo uma coisa est em outrae a cidade est no homemque est em outra cidade

mas variados so os modoscomo uma coisaest em outra coisa:o homem, por exemplo, no est

[na cidadecomo uma rvore est

em qualquer outranem como uma rvoreest em qualquer uma de suas folhas(mesmo rolando longe dela)O homem no est na cidadecomo uma rvore est num livroquando um vento ali a folheia

a cidade est no homemmas no da mesma maneiraque um pssaro est numa rvoreno da mesma maneira que um pssaro(a imagem dele)est/va na gua

e nem da mesma maneiraque o susto do pssaroest no pssaro que eu escrevo

a cidade est no homemquase como a rvore voano pssaro que a deixa

cada coisa est em outrade sua prpria maneirae de maneira distintade como est em si mesma

a cidade no est no homemdo mesmo modo que em suasquitandas praas e ruas

Buenos Aires, maio/outubro de 1975

NA VERTIGEM DO DIA(1975-1980)

MORTE DE CLARICE LISPECTOR

Enquanto te enterravam no cemitrio judeude S. Francisco Xavier(e o claro de teu olhar soterradoresistindo ainda)o txi corria comigo borda da Lagoana direo de BotafogoE as pedras e as nuvens e as rvoresno ventomostravam alegrementeque no dependem de ns

O POO DOS MEDEIROS

No quero a poesia, o caprichodo poema: queroreaver a manh que virou lixo

quero a voza tua a minhaaberta no ar como fruta na casafora da casa

a vozdizendo coisas banaisentre risos e ralhosna vertigem do dia;

no a poesiao poema o discurso limpoonde a morte no grita

A mentirano me alimenta:

alimentam-meas guas

ainda que sujas rasasafogadasdo velho poohoje entulhadoonde outrora sorrimos

BANANAS PODRES

Como um relgio de ouro o podreoculto nas frutassobre o balco (ainda meldentro da cascana carne que se faz gua) eraainda ouroo turvo acarvindo do cho

e agoraali: bananas negras

como bolsas molesonde pousa uma abelhae girae gira ponteiro no universo dourado(parte mnima da tarde)

em abrilenquanto vivemos

E detrs da cidade(das pessoas na salaou costurando)s costas das pessoas frente delas direita ou(detrs das palmas dos coqueirosalegrese do vento)feito um cinturo azule ardenteo marbatendo o seu tambor

queda quitandano se escuta

Que tem a ver o mar

com estas bananasj manchadas de morte?

que ao nossolado viajampara o caos

e azedandoe ardendo em gua e cidosa caminho da noitevertiginosamente devagar?

Que tem a ver o marcom esse marulhode guas sujasfervendo nas bananas?com estas vozes que falam de vizinhos,de bundas, de cachaa?

Que tem a ver o mar com esse barulho?

Que tem a ver o mar com este quintal?Aqui, de azul,apenas h um cacode vidro de leite de magnsia(osso de anjo)que se perder na terra fofaconforme a ao giratria da noitee dos perfumes nas folhasdo hortel

Nenhum alardenenhum alarmemesmo quando o vero passa gritandosobre os nossos telhados

Pouco tem a ver o marcom este banheiro de cimentoe zinco

onde o silncio gua:uma esmeraldaengastada no tanque(e que

soltase esvai pelos esgotos

por baixo da cidade)Em tudo aqui h mais passado que futuromais morte do que festa:

nestebanheirode gua salobra e sombra

muito mais que de marh de floresta

Muito mais que de marneste banheiroh de bananas podres na quitanda

e nem tanto pela guaem que se puem (ondeum fogo ao revsfoge no acar)do que pelo macio dessa vidade frutainserida na vida da famlia:um macio de banho s trs da tarde

Um macio de casa no Nordestecom seus quartos e salaseu banheiroque esta tarde atravessa para sempre

Um macio de luz ferindo a vidano corpo das pessoasl no fundoonde bananas podres mar azulfome tanque florestaso um mesmo estampidoum mesmo grito

E as pessoas conversamna cozinhaou na sala contam casose na fala que falam(esse barulho)tanto marulha o mar quanto a florestatantofulgura o mel da tarde

o podre fogo como fulge

a esmeralda de guaque se foi

S tem que ver o mar com seu marulhocom seus martelos brancosseu diurnorelmpagoque nos cinge a cintura?

O mars tem a ver o mar com este banheiro

com este verde quintal com esta quitandas tem a vero mar

com esta noturnaterra de quintalonde gravitam perfumes e futuros

o mar o marcom seus pistes azuis com sua festa

tem a ver tem a vercom estas bananas

onde a tarde apodrece feito umacarnia vegetal que atrai abelhasvarejeiras

tem a ver com esta gente com estes homensque o trazem no corpo e at no nome

tem a ver com estes cmodos escuroscom esses mveis queimados de pobrezacom estas paredes velhas com esta poucavida que na boca riso e na barriga fome

No fundo da quitandana penumbra

ferve a chaga da tardee suas moscas;em torno dessa chaga est a casae seus fregueseso bairroas avenidasas ruas os quintais outras quitandasoutras casas com suas cristaleirasoutras praas ladeiras e mirantesdonde se v o marnosso horizonte

OVNI

Sou uma coisa entre coisasO espelho me refleteEu (meusolhos)reflito o espelho

Se me afasto um passoo espelho me esquece: reflete a paredea janela aberta

Eu guardo o espelhoo espelho no me guarda(eu guardo o espelhoa janela a parederosaeu guardo a mim mesmorefletido nele):sou possivelmenteuma coisa onde o tempodeu defeito

UM SORRISO

Quandocom minhas mos de labaredate acendo e em rosa

embaixote espetalas

quandocom meu aceso facho e cego

penetro a noite de tua flor que exalaurinae melque busco eu com toda essa assassinafria de macho?

que busco euem fogo

aqui embaixo?seno colher com a repentinamo do delriouma outra flor: a do sorrisoque no alto o teu rosto ilumina?

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim todo mundo:outra parte ningum:fundo sem fundo.

Uma parte de mim multido:outra parte estranhezae solido.

Uma parte de mimpesa, pondera:outra partedelira.

Uma parte de mimalmoa e janta:outra partese espanta.

Uma parte de mim permanente:outra partese sabe de repente.

Uma parte de mim s vertigem:outra parte,linguagem.

Traduzir uma partena outra parte

que uma questode vida ou morte ser arte?

ARTE POTICA

No quero morrer no queroapodrecer no poemaque o cadver de minhas tardesno venha feder em tua manh feliz

e o lumeque tua boca acenda acaso das palavras ainda que nascido da morte

some-seaos outros fogos do dia

aos barulhos da casa e da avenidano presente veloz

Nada que se pareaa pssaro empalhado mmiade flordentro do livro

e o que da noite voltevolte em chamas

ou em chaga

vertiginosamente como o jasmimque num lampejo silumina a cidade inteira

BARULHOS(1980-1987)

DESPEDIDA

Eu deixarei o mundo com fria.No importa o que aparentemente acontea,se docemente me retiro.

De fatonesse momentoestaro de mim se arrebentando

razes to fundasquanto estes cus brasileiros.

Num alarido de gente e ventaniaolhos que ameirostos amigos tardes e veres vividosestaro gritando a meus ouvidospara que eu fiquepara que eu fique.

No chorarei.No h soluo maior que despedir-se da vida.

MANCHA

Em que parte de mim ficouaquela mancha azul?

ou melhor, estamancha

de um azul que nenhum cu teriaou teve ou mar?um azul

que a mo de Leonardo achouao acaso e inevitavelmente

e no s:um azulque h sculos

numa tarde talvezfeito um lampejo surgiu no mundo

essa coressa mancha

que a mim chegoude detrs de dezenas de milhares de manhse noites estreladas

como um pudoaceno humano.

Mancha azulque carrego comigo como carrego meus cabelosou uma lesooculta onde ningum sabe.

GLAUBER MORTO

O mortono est de sobrecasacano est de casacano est de gravata.

O morto est morto

no est barbeadono est penteadono tem na lapelauma flor

no calasapatos de verniz

no finge de vivono vai tomar possena Academia.

O morto est mortoem cima da camano quarto vazio.

Como j no comecomo j no morreenfermeiras e mdicosno se ocupam mais dele.

Cruzaram-lhe as mosataram-lhe os ps.

S falta embrulh-loe jog-lo fora.

OLHAR

o que eu vejome atravessa

como ao ara ave

o que eu vejo passaatravs de mimquase fica

atrs de mim

o que eu vejo a montanha por exemplobanhada de sol

me ocupae sou ento apenasessa rude pedra iluminadaou quasese no fora

saber que a vejo.

QUEM SOU EU?

Quem sou eu dentro da minha boca?Quem sou eu nos meus dentesdetrs dos dentes

na lngua que se movepresa no fundo da garganta? que nome tenhona escurido do esfago?

no estmagona qumicados intestinos?

Quem em mim secretasaliva? excretafezes?

quem embranquece em meus cabelose vira pus nas gengivas?

Quem sou euao lado da Biblioteca Nacionalto frgil, meu deus, na noitesob as estrelas?e no entanto impvido!(a mexer no armrio de roupasnum apartamento da Rua Tenente Possoloem 1952vivo a histria do homem).

Jirai sous la terreet toi, tu marcheras dans le soleil.

Tudo o que sobrar de mim papel impresso.Com um pouco de manhengastado nas slabas, certo, masque issoem comparao com meu corpo real? meucorpoonde a alegria possvelse mos lhe tocam os pelosse uma boca o beija

o salivao chupa com dois olhos brilhantes?

E sou entopraia vento florestaresposta sem perguntao eixo do corpona saliva dourada

giroe giramoscom o vero que se estende por todo o hemisfrio sul.

Como dizer ento: poucome importa a morte?

E sobretudo se existem as histrias em quadrinhose os programas de televisoque continuaro a passar noite aps noiteno recesso dos lares

numa tera-feira que antecede quartanuma quinta-feira que antecede sextaou num sbadoou num domingo.

Como dizerpouco me importa?

PERDA

aMrio Pedrosa

Foi no dia seguinte. Na janela pensei:Mrio no existe mais.Com seu sorriso o olhar afetuoso a utopia

entranhada na carneenterraram-no

e com suas brancas mos de jovem aos 82 anos.

Penso e vejoacima dos edifcios mais ou menos altura do

[Lemeuma gaivota que voa na manh radiante

e lembro de um verso de Burnett: no acrobticomilagre do voo.

E Mrio?A gaivota voafora da morte:

e dizer que voa pouco:ela faz o voocom asa e brisao realiza

num mundo onde ele j no estpara sempre.

E penso: quantas manhs viro ainda na histria da Terra? perda demais para um simples homem.

DETRS DO ROSTO

Acho que mais me imaginodo que souou o que sou no cabeno que consigo ser

e apenas ardedetrs desta mscara morenaque j foi rosto de menino.

Conduzosob a minha peleuma fogueira de um metro e setenta de altura.

No quero assustar ningum.Mas se todos se escondem no sorriso

na palavra medidadevo dizerque o poeta gullar uma criana

que no consegue morrer

e que podea qualquer momentodesintegrar-se em soluos.

Voc vai rir se lhe disserque estou cheio de flor e passarinho

que nadado que amei na vida se acabou:

e mal consigo andartanto isso pesa.

Pode voc calcular quantas toneladas de luzcomportaum simples roar de mos?ou o doce penetrarna mulher amorosa?

S disponho de meu corpopara operar o milagre

esse milagreque a vida traz

e zsdissipa s gargalhadas.

OMISSO

No estranhoque um poeta poltico

d as costas a tudo e se fixeem trs ou quatro frutas que apodrecemnum pratoem cima da geladeiranuma cozinha da Rua Duvivier?

E isso quando vinte famliasso expulsas de casa na Tijuca,os estaleiros entram em greve em Niterie no Atlntico Sul comea

a guerra das Malvinas.

No estranho?por que entomergulho nessa minicatstrofedomstica

de frutas que morreme que nem minhas parentas so?

por queme abismono sinistro claro dessas formasoutrora coloridas

e que nos abandonam agora inapelavelmentedeixando a nossa cidadecom suas praias e cinemasdeixando a casa

onde frequentemente toca o telefone?para virar lama.

II compreensvel que tua pele se ligue pele dessas

[frutas que apodrecempois alih uma intensificao do espao, das forasque trabalham dentro da polpa

(enferrujando na cascaa corem ndoas negras)

e ligamuma tarde a outra tarde e a outra ainda

ondebananas apodreceramsubvertendo a ordem da histria humana, tardes

de hoje e de ontemque so outras cada uma em mime a mesma talvezno processo noturno da morte nas frutase que te ligam a ti atravs das dcadas

como um trem que rompe a noitefuriosamente dentroe em parte alguma

compreensvelque ds as costas guerra das Malvinas luta de classese te precipites nesse abismode mel

que o claro do acar nos cegae diverte ser espectador da morte, que tambm a nossa,e que nos atrai com sua boca de lama sua vagina

de nadapor onde escorregamos docemente no sono

e bom morrerno teatrovendo morrerperas ardendo

na sua prpria friae urinandoe afundando em si mesmas

a converter-se em mijo, a pera, a banana ou o que sejae assistes hecatombeno pratosob uma nuvem de mosquitos

e no ouves o clamor da vidaaqui fora

na rua na fbrica na favela do Borelno ouveso tiro que matou Palitoe no ouves, poeta,o alarido da multido que pede emprego(so dois milhes sem trabalho

h mesessem ter como dar de comer famliae cuja histria assunto arredio ao poema).

a morte que te chama? tua prpria histria

reduzida ao inventrio de escombrosno avesso do dia

e no mais a esperanade uma vida melhor?

que se passa, poeta?adiaste o futuro?

APRENDIZADO

Do mesmo modo que te abriste alegriaabre-te agora ao sofrimentoque fruto delae seu avesso ardente.

Do mesmo modoque da alegria foste

ao fundoe te perdeste nela

e te achastenessa perda

deixa que a dor se exera agorasem mentirasnem desculpas

e em tua carne vaporizetoda iluso

que a vida s consomeo que a alimenta.

BARULHO

Todo poema feito de arapenas:

a mo do poetano rasga a madeirano fere

o metala pedra

no tinge de azulos dedosquando escreve manhou brisaou blusa

de mulher.

O poema sem matria palpvel

tudoo que h nele barulho

quando rumorejaao sopro da leitura.

ANO-NOVO

Meia-noite. Fimde um ano, inciode outro. Olho o cu:nenhum indcio.

Olho o cu:o abismo vence oolhar. O mesmoespantoso silncioda Via Lctea feitoum ectoplasmasobre a minha cabea:nada ali indicaque um ano-novo comea.

E no comeanem no cu nem no chodo planeta:comea no corao.

Comea como a esperanade vida melhorque entre os astrosno se escutanem se vnem pode haver:que isso coisa de homemesse bicho

estelarque sonha(e luta).

DENTRO SEM FORA

A vida estdentro da vidaem si mesma circunscritasem sada.

Nenhum risonem soluorompea barreira de barulhos.

A vaso para o nada.Por conseguinteno vasa.

MEU POVO, MEU ABISMO

Meu povo meu abismo.Nele me perco:a sua tanta dor me deixasurdo e cego.

Meu povo meu castigomeu flagelo:seu desamparo,meu erro.

Meu povo meu destinomeu futuro:se ele no vira em mimveneno ou canto

apenas morro.

UMA NORDESTINA

Ela uma pessoano mundo nascida.Como toda pessoa dona da vida.

No importa a roupade que est vestida.No importa a almaaberta em ferida.Ela uma pessoae nada a fardesistir da vida.Nem o sol de infernoa terra ressequidaa falta de amora falta de comida. mulher me:rainha da vida.

De ps na poeirade trapos vestida uma rainhae parece mendiga:a pedir esmolasa fome a obriga.

Algo est erradonesta nossa vida:ela uma rainhae no h quem diga.

MUITAS VOZES(1999)

ELECTRA II

Qualquer coisaeu esperariaver

no cuda rua Paula Matosaquele dia por voltadas dez da manh

menosum Electra IIda Varig (entreos ramos quaseao alcancedas mos)

num susto!

II

Foi um sustov-lo: vastopssaro metlico

azulparado(um

segundo)entre

os ramos renteaos velhos telhados

quela horada manh,de dentro de meu carro.

III

Electra II para mim

ponte areaRio-S. Paulo

carto

de embarquena mo e ventonos cabelos

subir a escadae voar

Electra IIpara mim a cidadedo alto a pontee a salgada

baae a Ilha

Fiscalantes de pousar

e sentir depoiso odordo queroseneardente

Natural poisencontr-lono aeroportoSantos Dumont

mas nuncana rua Paula Matosainda que

acima da minhacabea (edas casas)

espiandoentre os ramos

como se me buscassepela cidade

IV

Os moradoresda rua ignoram

que naqueleinstante

um poematenha talvez

nascido

no escutaramseu estampidoconversavamna sala nacozinha oupreparandoo almooeno quintalalgum ergueum giraupara plantasSe fosse um assalto

com tiros um crimede morte na esquinatodos saberiam masna rua haviaaquela hora

muito barulho:de code motoe do prprio avio

que gerou o poema:

so vozes do diaque ningumestranha: comoo trepidar

do tempoque escorreda torneira

por issose um poemanasceali no se percebe

e mesmo senaquele momentofizesse total

silnciona ruaainda assimningum ouviriadetonaro poema

porque seu estampido(como certosgritos)por alto demaisno pode ser ouvido

Talvez que um gatoouum co

e quem sabe ocanrio

de melhor ouvido tenham escutadoa detonao.

NA LAGOA

A cidadedebruada sobreseus afazeres surdade rockno sabe aindaque a garavoltou.

Faz pouco, longedaqui entre aveslacustres a notciacorreu: a lagoarodrigo de freitasest assim de tainhas! oba, vamos ldar o arde nossa graa,disse a gara

e veio:

desceudo cu azulsobre uma pedrado aterroa branca filha das lagoas

e est l agorareal e implausvelcomo o poemaque o gullar no consegue escrever

NASCE O POETA

em solo humanoo nome lanado(ou caido acaso)

uma auroraoculta num barulho

uma pedraturva

a palavradita entre rfagasde chuvae lampejos na noite:

lobo

um soproum susto

um nomesem coisa

o uivona treva

o golpena vidraa

o vento?

o lobo

a palavra sem rostoque se busca no espelho

2

ou se busca um espelho?

na lmina das vozesperdidas no sonho

nalminadosono

da guasonora

das coisas velozes

3

s sabia o nomes sabia o medoque esse nome dava

se era um mendigoum gigante um bichoisso no sabia

mas fosse o que fosseviria do escuroviria da noiteque oculta o mundo:a rua da Alegriae a moblia da casa

4

o que era aquilodebaixo da cama?

uma coisa brancamolhada asquerosa

o que era aquiloque no tinha nome?

parecia um bolomas no era um bolo

parecia um bichoparecia um vmito

e que me espiava

sem olho nem nada

aquilo era o lobo

(a palavra loboenfim encarnada)

5

a palavraestavadentro da folha

(na quintado Caga Osso)

estava dentroda margaridauma

borboletadentro (a pa-

lavra)estavadentro

do fruto(na alvanoite

do acar)

e a folhadizia

folhaa rosa

diziarosa

e a gua(em si mesmarefletida)seu prprio nome diziarindoentre as pedras

mas no havia

ningum alipara ouvi-las

e s por issofalavam

se vinha algumse calavam

6

a manh apagaas pergunta