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Sobre a obra:

A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

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Ttulo original: DER MANN OHNE EIGENSCHAFTEN

1978, by ROWOHLT VERLAG - Gmbh, Reinbeck bei Hamburg

Direitos de edio da obra em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S/ARua Bambina, 25 - CEP 22251 - Botafogo - Tel.: 286-7822 Endereo telegrfico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR Rio de

Janeiro, RJ

Traduo do Livro Primeiro e captulos 1 a 38 do Livro Segundo feita por Lya Luft, com reviso de Carlos Abbenseth.Traduo da obra pstuma feita por Carlos Abbenseth, com reviso de Cristina Blink.

Organizao da edio brasileira:

Carlos Abbenseth, de acordo com a edio original alem de Adolf Fris.

Reviso tipogrfica CRISTINA BLINKVERA LCIA SANTANA DE SOUZA VALDETE LIMA

TEREZA BATISTA DA ROCHA CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Musil, Robert 1880-1942M975h O homem sem qualidades / Robert Musil; traduo de Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1989. (Grandes romances) Traduo do original. 1. Romance alemo. I. Luft, Lya. 1938. II. Abbenseth, Carlos.III. Ttulo. IV. Srie CDD - 833 89-0726

LIVRO PRIMEIRO

PRIMEIRA PARTE

UMA ESPCIE DE INTRODUO

1

DO QUAL SINGULARMENTE NADA SE DEP REENDE Uma presso baromtrica mnima pairava sobre o Atlntico; dirigia-se para leste, rumo presso mxima instalada sobre a Rssia, e ainda no mostrava tendncia de se desviar delapara o norte. As isotermas e isteras cumpriam suas funes. A temperatura do ar estava numarelao correta com a temperatura mdia do ano, a do ms mais Mo e a do ms mais quente e aoscilao aperidica mensal. O nascer e o pr do Sol e da Lua, a variao do brilho da Lua,de Vnus, do anel de Saturno, e outros fenmenos importantes transcorriam segundo asprevises dos armrios de astronomia. O vapor dgua no ar estava na fase de maiordistenso, a umidade era baixa. Numa frase que, embora antiquada, descreve bem ascondies: era um belo dia de agosto de 1913.Automveis emergiam disparando das ruas estreitas e fundas para a rasa claridade das praas.A mancha escura de transeuntes formava fios nevoentos. Onde riscos de velocidade maiorcruzavam aquele ritmo negligente, os fios se adensavam, corriam mais depressa, retornandodepois de algumas pulsaes ao ritmo regular. Centenas de sons enroscavam-se, produzindoum rumor metlico do qual brotavam pontas isoladas, correndo ao longo de suas beiradascortantes e recolhendo-se outra vez; saltavam dele lascas de tons claros, que logo sumiamesvoaantes. Nesse rumor, sem poder defini-lo, algum que tivesse estado ausente vrios anosteria, de olhos fechados, reconhecido a capital do Imprio, Viena, a Residncia. As cidades sereconhecem pelo andar, como as pessoas. Abrindo os olhos, o recm-chegado deduziria omesmo da vibrao do movimento nas ruas, muito antes do que de qualquer detalhe tpico.Ainda que fosse s imaginao, no importa. A supervalorizao da pergunta: onde estou?vem do tempo dos nmades, em que era preciso registrar os locais de pastagem. Seriaimportante saber por qu, ao falarmos num nariz vermelho, nos contentamos que sejavermelho, sem nos importarmos com o tom especial de vermelho, embora este possa serdescrito com exatido em micromilmetros, pela frequncia das ondas. Mas numa coisa tomais complexa como a cidade em que nos encontramos, sempre gostaramos de saberexatamente que cidade . Isso nos distrai de pontos mais importantes.Portanto, no se d valor maior ao nome da cidade. Como todas as cidades grandes, era feitade irregularidade, mudana, avano, passo desigual, choque de coisas e acontecimentos, e, nomeio disso tudo, pontos de silncio, sem fundo; era feita de caminhos e descaminhos, de umgrande pulsar rtmico e do eterno desencontro e dissonncia de todos os ritmos, como umabolha fervente pousada num recipiente feito da substncia duradoura das casas, leis, ordens etradies histricas.

As duas pessoas que subiam uma rua larga e movimentada no tinham naturalmente essaimpresso. Via-se que eram de uma camada privilegiada da sociedade, elegantes no vestir, napostura, no modo de conversar; as iniciais de seus nomes estavam caprichosamente bordadasem sua roupa branca; da mesma forma, sem exibio, mas na fina roupa de baixo de sua

conscincia, sabiam quem eram, e que seu lugar era ali, na capital e Residncia. Presumindoque se chamassem Arnheim e Ermelinda Tuzzi o que no verdade porque em agosto a Sra.Tuzzi estava com o marido em Bad Aussee, e o Dr. Arnheim ainda em Constantinopla deparamos com o enigma da identidade deles. Pessoas curiosas frequentemente encontramesse tipo de enigma nas ruas. A maneira como se resolvem digna de nota. So esquecidos,caso nos prximos cinquenta passos no consigamos lembrar onde j vimos os dois. Quantoqueles dois, eles pararam de sbito, percebendo um tumulto frente. J um segundo antes,alguma coisa saltara do alinhamento, obliquamente; qualquer coisa se virar, derrapara para olado, e agora, que estava encalhada ali, com uma das rodas sobre a calada, via-se que era umpesado caminho, que freara bruscamente. Logo se juntaram pessoas volta, como abelhas naentrada da colmia, uma multido que deixava o centro livre. O motorista descera do veculo epostara-se ali no meio, cinzento como papel de embrulho, explicando o acidente com gestosdesajeitados. Os que vinham olhavam para ele, depois baixavam o olhar, cautelosos, para ofundo do buraco onde haviam colocado, na beira da calada, um homem que parecia morto.Todos admitiam que fora atropelado por estar distrado. Ajoelhavam-se junto dele,alternadamente, querendo fazer alguma coisa; abriram seu casaco, fecharam-no outra vez;tentaram sent-lo ou, ao contrrio, deit-lo novamente; na verdade todos queriam apenaspassar o tempo at que, com a ambulncia, viesse uma ajuda competente e autorizada.

Tambm aquela dama e seu acompanhante tinham chegado perto e, por cima das cabeas ecostas baixadas, olhado o homem deitado. Depois recuaram e ficaram por ali, hesitantes. Adama estava com uma sensao ruim no corao e no estmago, que tinha o direito deconsiderar compaixo; uma sensao vaga, paralisante. Depois de algum tempo, o cavalheirodisse:

Os caminhes pesados que se usam aqui tm um tempo de freagem longo demais.

A dama sentiu-se mais aliviada, e agradeceu com o olhar. Devia ter ouvido antes aquelaexpresso, mas no sabia o que era, nem queria saber; bastava-lhe que aquilo explicasse oterrvel acidente, reduzindo-o a um problema tcnico, que j no a interessava diretamente.Ouviram a sirene estridente da ambulncia e todos ficaram satisfeitos com a rapidez de suachegada. So admirveis essas instituies sociais. Colocaram o acidentado numa maa eenfiaram-na no carro. Homens com uma espcie de uniforme cuidaram dele, e o interior doveculo, que se divisava rapidamente, parecia limpo e ordenado como um quarto de hospital.Afastaram-se quase com a justa impresso de que acontecera um fato dentro da ordem elegalidade. Segundo as estatsticas americanas comentou o senhor , morrem l anualmente190.000 pessoas em acidentes de automvel, e 450.000 ficam feridas. Acha que ele est morto? perguntou sua acompanhante, ainda com a sensaoinjustificada de ter visto algo fora do comum. Espero que esteja vivo respondeu o senhor. Parecia vivo quando o colocaram nocarro.

2

CASA E MORADIA DO HOMEM SEM QUALIDADES A rua em que acontecera o pequeno acidente era um daqueles longos e sinuosos rios detrnsito que brotam como raios do corao da cidade, varam os bairros afastados e acabamnos subrbios. Se o elegante casal seguisse por ela mais um pouco, teria visto algo quecertamente lhe agradaria. Era um jardim do sculo XVIII, ou at XVII, ainda parcialmenteconservado; passando diante de suas grades de ferro batido, via-se entre as rvores, sobrerelvados cuidadosamente aparados, algo que parecia um castelinho de alas curtas, umcastelinho de caa ou de amor, de tempos passados. Para ser exato, as abbadas desustentao eram do sculo XVII, o parque e o andar superior pareciam do sculo XVIII, asfachadas tinham sido renovadas e um pouco prejudicadas no sculo XIX; portanto o todoestava um tanto confuso, como em retratos fotografados uns por cima dos outros; mas acabava-se parando ali, infalivelmente, e dizendo: Ah! E quando aquela coisa alva, graciosa e belaestava de janelas abertas, avistavam-se as paredes de livros, nobres e silenciosas, da casa deum homem de cultura.A moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.Ele estava postado atrs de uma janela, e atravs do filtro verde-plido do ar do jardimcontemplava a rua pardacenta; h dez minutos contava com o relgio os automveis,carruagens, bondes e os rostos de transeuntes embaciados pela distncia, que cobriam a retinacom um rpido redemoinho; avaliava as velocidades, os ngulos, as foras vivas das massasque passavam, que atraam o olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e,durante um tempo para o qual no existe medida, foravam a ateno a resistir-lhes,desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e jogar-se atrs dele; em suma, depois decalcular mentalmente por um momento, ele meteu o relgio no bolso, rindo, e constatou queestivera fazendo uma tolice.Se se pudessem medir esses saltos da ateno, a atividade dos msculos dos olhos, osmovimentos pendulares da alma, e todos os esforos que um ser humano precisa executar parase manter em p na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente fora isso que elepensara, tentando, por uma brincadeira, calcular o impossvel uma grandeza comparada qual a fora de que Atlas necessita para sustentar o mundo insignificante; e poder-se-iaavaliar que gigantesca faanha realiza hoje em dia uma pessoa que no faz coisa alguma.Pois nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E algum que faz?Podem-se deduzir duas coisas, disse ele para si mesmo.

A atividade muscular de um cidado que segue calmamente seu caminho um dia inteiro muitomaior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovadofisiologicamente, e provvel tambm que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma

social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que asaes hericas; sim, o herico parece minsculo como um gro de areia colocado sobre umamontanha com extraordinria iluso. Essa idia lhe agradou.

Deve-se acrescentar, porm, que ela no lhe agradava por ele amar a vida burguesa; aocontrrio, gostava apenas de contrariar suas inclinaes, que outrora tinham sido diferentes.Talvez seja exatamente o pequeno-burgus quem prev o comeo de um herosmo coletivo, deformigueiro, extraordinariamente novo. Vo cham-lo de herosmo racionalizado, e achar tudomuito bonito. Hoje em dia, quem pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas deindagaes irrespondidas desse tipo, da maior importncia. Pairavam no ar, ardiam sob osps. O tempo corria. Pessoas que ainda no viviam ento no ho de querer acreditar, mas jento o tempo se movia com a rapidez de um camelo de montaria; isso no de hoje. Apenasno se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que estava em cima ouembaixo, o que ia para diante ou para trs.

A gente pode fazer o que quiser, disse o homem sem qualidades para si mesmo, dando deombros, que isso no tem a menor importncia nesse emaranhado de foras! Depois afastou-se, como uma pessoa que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que temequalquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir anexo, passou por umpunching ball ali pendurado, deu-lhe um soco rpido e forte, que no propriamente comumem momentos de resignao ou estados de fraqueza.

3TAMBM UM HOMEM SEM QUALIDADES TEM UM PAI COM QUALIDADES

Ao voltar h algum tempo do estrangeiro, o homem sem qualidades, s por capricho e pordetestar moradias vulgares, alugara aquele castelinho, outrora residncia de vero fora dosportes da cidade; ele perdera sua funo quando a cidade grande, crescendo, o ultrapassara,e ultimamente era apenas propriedade desabitada e baldia, espera de que subissem ospreos dos terrenos. O aluguel era to baixo quanto se podia imaginar, mas custara muitodinheiro arrumar tudo de novo segundo as exigncias atuais; fora uma aventura, que o obrigaraa pedir ajuda ao pai, o que no lhe agradava, pois gostava de ser independente. Tinha trinta edois anos, e seu pai sessenta e nove.

O ancio ficou horrorizado. No diretamente por causa do repentino pedido, embora em partetambm por isso, pois detestava coisas irrefletidas; nem por causa da contribuio que teriade fazer, pois no fundo apreciava que seu filho quisesse aconchego e ordem. Mas a aquisiode uma casa que, embora no diminutivo, s se podia chamar de castelo, feria seus sentimentose assustava-o como uma arrogncia de mau agouro.Ele prprio comeara como preceptor em casas da alta aristocracia, quando estudante edepois como jovem assistente de advogado, e na verdade fizera isso sem precisar, pois seupai j fora homem de posses.Quando mais tarde se tornara professor universitrio e catedrtico, sentira-se recompensadopor tudo aquilo, pois o cultivo cuidadoso dessas relaes fez com que aos poucos se tornasseconsultor jurdico de quase toda a nobreza feudal de sua terra, embora nem precisasse maisdessa profisso secundria. Sim, muito depois que a fortuna assim conseguida j se podiacomparar com o dote matinal{1} de uma famlia de industriais renanos, que a me de seu filho,prematuramente falecida, trouxera para o casamento, aquelas relaes, conquistadas najuventude e fortalecidas na idade adulta, no se apagaram. Embora o mestre agora coberto dehonrarias se tivesse retirado da advocacia, e s eventualmente exercesse alguma atividademuito bem paga, como consultor, todos os acontecimentos relacionados ao crculo de seusantigos benfeitores eram cuidadosamente registrados por sua prpria mo, passando comgrande esmero de pais para filhos e netos; e nenhuma distino, nenhum casamento, nenhumaniversrio ou onomstico se passavam sem registro escrito, congratulando a pessoa emquesto com uma terna mistura de venerao e lembranas comuns. Breves respostas escritaschegavam com igual pontualidade, agradecendo ao querido amigo e admirado mestre. Dessemodo, seu filho conhecera desde a juventude esse talento aristocrtico de uma altivez quaseinconsciente mas segura em seus juzos, que sabe dar valor a uma gentileza; e a subservinciade uma pessoa da aristocracia espiritual diante dos donos de cavalos, campos e tradiessempre o irritara. Mas no fora o calculismo que tornara seu pai insensvel a isso; por impulsonatural, realizara assim uma grande carreira, tornara-se no apenas professor catedrtico,membro de academias e muitas comisses cientficas e governamentais, mas tambmcavalheiro, comendador; sim, fora at condecorado com uma Gr-Cruz, e por fim SuaMajestade o elevara nobreza hereditria, nomeando-o antes disso membro do Senado. L odistinguido intelectual se ligara ala burguesa liberal que por vezes se opunha aos nobres,

mas significativamente nenhum dos seus benfeitores da nobreza levava isso a mal, nem seadmirava; nunca tinham visto nele seno o esprito da burguesia que desejava ascender. Ovelho senhor participava ativamente dos trabalhos especializados de legislao, e mesmo queuma dura votao o mostrasse do lado burgus, do outro lado no se irritavam com isso,tinham a impresso de que ele no fora convidado. Na poltica no fazia seno o que j foraseu ofcio, unir uma sabedoria superior, por vezes sutilmente pedaggica, impresso de queapesar de tudo podiam confiar na sua dedicao pessoal; como afirmava seu filho, ele passarasem grandes alteraes de professor particular a professor do Senado.Sabendo da histria do castelo, ele a considerou infrao de uma fronteira tcita mas tantomais respeitvel, e fez ao filho acusaes ainda mais amargas do que as muitas que lhe fizerano curso dos anos, quase a profecia de um mau final que agora iniciava. Ferira- se osentimento fundamental de sua vida. Como acontece com muitos homens que conseguem algonotvel, esse sentimento, longe de ser interesse pessoal, era um profundo amor ao chamadointeresse geral e suprapessoal; em outras palavras, um respeito honesto por aquilo sobre quese constrem as prprias vantagens, no por serem vantagens, mas por razes gerais que seharmonizam com elas. Isso muito importante; at um co nobre procura seu lugar debaixo damesa de jantar, sem ligar para os pontaps, no por servilismo canino mas por devoo elealdade; e as pessoas frias e calculistas no conseguem na vida metade do sucesso daquelaspersonalidades bem dosadas, capazes de ter sentimentos profundos por pessoas ecircunstncias que lhes trazem vantagens.

4SE EXISTE SENSO DE REALIDADE, TEM DE HAVER SENSO DE P OSSIBILIDADE

Quem deseja passar bem por portas abertas deve prestar ateno ao fato de elas teremmolduras firmes: esse princpio, segundo o qual o velho professor sempre vivera, simplesmente uma exigncia do senso de realidade. Mas se existe senso de realidade, eningum duvida que ele tenha justificada existncia, tem de haver tambm algo que se podechamar senso de possibilidade.

Quem o possui no diz, por exemplo: aqui aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer isto ouaquilo; mas inventa: aqui poderia, deveria ou teria de acontecer isto ou aquilo; e se lheexplicarmos que uma coisa como , ele pensa: bem, provavelmente tambm poderia ser deoutro modo. Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensartudo aquilo que tambm poderia ser, e no julgar que aquilo que seja mais importante do queaquilo que no . V-se que as consequncias dessa tendncia criativa podem ser notveis, elamentavelmente no raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecerpermitido o que probem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. Essas pessoascom senso de possibilidade vivem, como se diz, numa teia mais sutil, feita de nevoeiro,fantasia, devaneio e condicionais; crianas com essa tendncia so educadas para selibertarem dela, e lhes dizemos que tais pessoas so utopistas, sonhadores, fracos, epresunosos ou crticos mesquinhos.

Quando os queremos elogiar, tambm chamamos esses loucos de idealistas, mas obviamentetudo isso apenas se relaciona aos espcimes frgeis, que no podem entender a realidade, outalvez fujam dela; portanto, pessoas nas quais a ausncia de senso de realidade uma falha.Mas o possvel no abrange apenas os sonhos de pessoas de nervos fracos, e sim os desgniosdivinos ainda desconhecidos. Uma experincia possvel, ou uma verdade possvel, no soiguais experincia real e verdade real menos o valor da realidade; ao contrrio, ao menos doponto de vista de seus seguidores, tm em si algo divino, um fogo, um vo, um desejo deconstruo e uma utopia consciente, que no teme a realidade mas a trata como misso einveno. Afinal, a Terra no velha, e aparentemente nunca foi muito abenoada. Sequisermos distinguir entre si as pessoas com senso de realidade e senso de possibilidade,basta pensar em determinada quantia de dinheiro. Tudo o que mil marcos contm empossibilidades est ali contido, sem dvida, no importa se possumos os mil marcos ou no; ofato de o Sr. Eu ou o Sr. Voc os possurem acrescenta to pouco aos mil marcos quantoacrescentaria a uma rosa ou uma mulher. Mas um louco os enfiar na meia, dizem as pessoasrealistas, e um empreendedor h de realizar alguma coisa com eles; at a beleza de uma mulhersofrer indubitavelmente acrscimo ou perda segundo quem a possua. a realidade que traz aspossibilidades, e nada mais errado do que negar isso. Mesmo assim, no total ou na mdiasero sempre as mesmas possibilidades repetidas, at chegar uma pessoa para a qual umacoisa real no signifique mais do que o imaginado. Ser ela quem dar sentido e destinao snovas possibilidades, que h de provocar.Mas um homem desses no um caso muito claro. J que, na medida em que no forem

devaneios ociosos, suas idias so apenas realidades ainda no nascidas, naturalmentetambm ele tem senso de realidade; mas um senso para a realidade possvel, e chega ao seuobjetivo muito mais devagar do que o senso para possibilidades reais, que a maioria daspessoas possui. Ele deseja a floresta toda, o outro quer as rvores; e floresta algo difcil deexpressar, enquanto rvores significam tantos e tantos metros cbicos de determinadaqualidade. Ou talvez se exprima isso melhor de outro modo, e o homem com senso comum derealidade se assemelha a um peixe que abocanha o anzol sem ver a unha, enquanto o homemcom aquele senso de realidade, que tambm se pode chamar senso de possibilidade, puxa umalinha pela gua e no tem idia se existe uma isca presa nela. Uma extraordinria indiferenaem relao vida que morde a isca traz consigo o perigo de fazer coisas totalmente aleatrias.Um homem sem senso prtico ele no apenas parece assim, mas assim inconfivel eimprevisvel no trato com as pessoas. Cometer atos que lhe significam outra coisa do quepara os demais, mas tudo o deixa tranquilo, desde que possa ser sintetizado numa idiaextraordinria. Alm disso, ele hoje ainda est muito longe de ser consequente. bempossvel que um crime que prejudique a outros lhe parea apenas um erro social, cuja culpano cabe ao criminoso mas ordem social. Mas de duvidar que, recebendo uma bofetada,ele a considere insulto da sociedade, ou to impessoal quanto lhe pareceria a mordida de umco; provavelmente, primeiro ele devolver a bofetada, depois pensar que no devia ter feitoisso. E por fim, se lhe roubarem uma amada, ele hoje ainda no conseguir ignorarinteiramente a realidade desse fato e consolar-se dessa perda com uma emoo nova esurpreendente. Essa evoluo ainda est em curso, e para o indivduo representa ao mesmotempo fraqueza e fora.E como a posse de qualidades pressupe certa alegria por serem reais, podemos entrevercomo uma pessoa que no tenha senso de realidade nem em relao a ela prpria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades.

5ULRICH

O homem sem qualidades de quem estamos falando chamava-se Ulrich, e Ulrich no agradvel chamar algum o tempo todo pelo nome de batismo, se o conhecemos to pouco porenquanto!, mas seu sobrenome ser omitido em considerao a seu pai dera, na fronteira dameninice e adolescncia, numa composio escolar, a primeira prova de sua maneira de ser. Acomposio tinha como tema um pensa mento patritico. Na ustria o patriotismo era assuntomuito especial. Pois crianas alems aprendiam simplesmente a desprezar as guerras dascrianas austracas, e ensinavam-lhes que as crianas francesas eram netas de libertinos semfibra, que fogem aos milhares quando um soldado alemo barbudo avana sobre eles. E compapis trocados, bem como as modificaes desejveis, aprendiam a mesma coisa as crianasfrancesas, russas e inglesas, que tambm tinham sido frequentemente vencedoras. Mas crianasso fanfarronas, gostam de brincar de polcia-e-ladro, e esto sempre dispostas a considerara famlia X da rua Y a maior famlia do mundo, caso faam parte dela. Assim, se deixaminfluenciar facilmente pelo patriotismo. Mas na ustria isso era um pouco mais complicado.Pois os austracos tambm tinham vencido todas as guerras da sua histria, mas depois damaioria dessas guerras tinham feito algum tipo de concesso. Isso faz pensar, e na suacomposio sobre amor ptria Ulrich escreveu que um verdadeiro patriota nunca deviaconsiderar sua ptria a melhor de todas; sim, com um lampejo que lhe pareceu especialmentebelo, embora ficasse mais ofuscado por seu brilho do que visse o que estava contido nele,acrescentara quela frase suspeita mais outra: que provavelmente tambm Deus gostava defalar do seu mundo no conjunctivus potentialis (hic dixerit quispiam = aqui se poderiaobjetar...), pois era Deus quem fazia o mundo, pensando que bem podia ser de outra maneira.

Ele sentira muito orgulho dessa frase, mas talvez no se tivesse expressado de maneira muitocompreensvel, pois causara grande agitao, e quase o afastaram da escola, embora nochegassem a tomar essa deciso por no descobrirem se aquele comentrio inadequado erablasfmia contra a ptria ou contra Deus. Naquele tempo, ele estava sendo educado noaristocrtico Ginsio Teresiano, que fornecia os mais nobres esteios do Estado. E seu pai,furioso com a vergonha causada por aquele filho degenerado, mandou Ulrich para oestrangeiro, para um pequeno colgio belga, localizado numa cidade desconhecida e queatravs de uma administrao inteligente e esprito comercial, conseguia a preos baixosgrande nmero de alunos transviados. L Ulrich aprendeu a ampliar internacionalmente seudesprezo pelos ideais alheios.

Desde ento tinham-se passado dezesseis ou dezessete anos, rpidos como nuvens no cu.Ulrich no lamentava por eles, nem deles se orgulhava; simplesmente os contemplava comespanto, no seu trigsimo segundo ano de vida. Entrementes estivera em vrios lugares,algumas vezes por breve tempo ficara em casa, e por toda parte fizera coisas de valor e coisasinteis. J se insinuou que era matemtico, e no se precisa por enquanto dizer mais sobreisso, pois em toda a profisso que no exercida por dinheiro mas por amor, chega ummomento em que o acmulo dos anos parece levar a nada. Como esse momento se estendia porum perodo mais longo, Ulrich lembrou que se atribui terra natal a capacidade misteriosa de

dar raiz e autenticidade aos pensamentos, e instalou-se nela com a sensao de um peregrinoque se senta num banco para toda a eternidade, embora saiba que logo vai se levantar dali.

Quando, ento, arrumou sua casa, como diz a Bblia, teve uma experincia pela qual naverdade estava esperando. Entregara-se agradvel atividade de organizar sua devastadapequena propriedade a partir do zero, segundo seu prprio capricho. Desde a reconstruo emestilo puro at a arbitrariedade total, possua todas as premissas para fazer o que quisesse, ena sua mente ofereciam-se todos os estilos, desde o assrio ao cubista. O que escolher? Ohomem moderno nasce e morre numa clnica; portanto, tambm deve morar como numa clnica!Um arquiteto famoso acabava de estabelecer este postulado; outro decorador reformista exigiaque se colocassem paredes mveis, dizendo que o homem, convivendo com outros, tinha deaprender a confiar, e no devia confinar- se de maneira separatista. Naquele momentocomeara uma nova era (pois elas comeam a todo instante!), e uma nova era pedia um novoestilo. Para sorte de Ulrich, o castelinho, assim como estava, j constava de trs estilossuperpostos, de modo que no se podia obedecer a todas essas exigncias; ainda assim ele sesentia instigado pela responsabilidade de organizar uma casa, e a ameaa Dize-me comomoras e dir-te-ei quem s, que lera tantas vezes em revistas de arte, pairava sobre suacabea. Depois de muito se ocupar dessas revistas, decidiu que era melhor trabalharpessoalmente na construo da sua personalidade, e comeou a desenhar seus futuros mveis.Mas assim que imaginava uma forma impressionante e impetuosa, ocorria-lhe que podia emseu lugar colocar uma forma utilitria, tcnica e menor; e quando desenhava uma despojadaforma de concreto, lembrava-se das magras formas primaveris de uma menina de treze anos, ecomeava a sonhar em vez de tomar decises.

Era numa circunstncia que no o afetava muito a srio a conhecida incongruncia dasidias, e sua difuso sem um ponto central, caracterstica da atualidade, cuja singulararitmtica vai de cem a mil sem ter a unidade. Por fim ele s conseguia imaginar salasinexequveis, quartos giratrios, decoraes caleidoscpicas, caixas de mudana para a alma,e suas idias eram cada vez mais inconsistentes. Finalmente chegara ao ponto que o atraa. Seupai teria dito mais ou menos assim: aquele a quem permitem fazer tudo o que deseja, em breveno sabe mais o que desejar. Ulrich repetia isso com grande prazer. Aquela sabedoria develho lhe pareceu uma idia extraordinariamente nova. O homem precisa ser limitado em todasas suas possibilidades, planos e sentimentos, por preconceitos, tradies, dificuldades elimitaes de toda sorte, como um louco na sua camisa-de-fora; e s ento aquilo que tem aproduzir talvez tenha valor, coerncia e solidez; na verdade, difcil perceber o alcance dessaidia! Bem, o homem sem qualidades, que voltara sua terra, deu tambm o segundo passopara se deixar modelar de fora, pelas condies da vida. Nesse momento entregou adecorao de sua casa ao capricho dos fornecedores, convencido de que cuidariam datradio, dos preconceitos e limitaes. Apenas renovou pessoalmente linhas provindas detempos remotos, as escuras galhadas de cervos sob as abbadas brancas do pequenovestbulo, ou o severo teto do salo, e acrescentou tudo o que lhe parecia til ou confortvel.

Quando estava tudo pronto, pde balanar a cabea e indagar-se: Ento isso que vai ser a

minha vida?Possua um pequeno palcio encantador quase se teria de cham-lo assim, pois era tudo oque se pensa de uma residncia de bom gosto para uma capital, segundo imaginao dos maisimportantes vendedores de mveis, tapetes e instalaes. Faltava apenas um fator: no tinhamdado corda quele fascinante relgio; pois, se tivessem, haveria coches de altos dignitrios edamas aristocrticas subindo a rampa de acesso, haveria lacaios saltando dos estribos eperguntando a Ulrich, com certa suspeita: Moo, onde est o seu patro?Ele voltara da lua e imediatamente se estabelecera como se ainda estivesse l.

6

LEONA, OU UMA MUDANA DE P ERSP ECTIVA Quando se arruma a casa, tambm se deve encontrar uma mulher. A amiga de Ulrich, naquelestempos, chamava-se Leontina e era cantora num pequeno teatro de variedades; era grande,esbelta e cheia de corpo, de uma apatia irritante; ele a chamava Leona.Ela despertara seu interesse pelo negrume mido dos olhos, uma expresso dolorida eapaixonada do belo rosto longo e regular, e pelas canes sentimentais que cantava em lugarde canes lascivas. Todas aquelas canezinhas antiquadas falavam de amor, sofrimento,fidelidade, abandono, rumores de florestas e cintilaes de trutas. Leona colocava-se, alta esolitria, no pequeno palco, cantando com voz de uma dona de casa pacientemente em direoao pblico; e quando deixava escapar pequenas ousadias morais, pareciam maisfantasmagricas ainda, porque a moa acompanhava emoes trgicas ou travessas com osmesmos gestos penosamente soletrados. Ulrich recordou imediatamente retratos antigos oubelas mulheres de velhas revistas para famlias; observando o rosto daquela mulher percebeunele uma poro de pequenos traos que no podiam ser reais, mas que o caracterizavam.Naturalmente todas as pocas tm todas variedades de rostos; mas a moda destaca sempre umdeles, fazendo-o modelo de felicidade e beleza, e os demais tentam imit-lo; at as feias oconseguem com ajuda de roupa e penteado, s as que nasceram para coisas especiais no oconseguem nunca nelas manifesta-se sem concesses o ideal de beleza banido earistocrtico de tempos passados. Esses rostos andam como cadveres de antigos prazeressensuais na grande iluso da troca amorosa; e os homens que, boquiabertos, fitavam o tdioimenso das canes de Leontina, inconscientes disso fremiam as narinas com emoes bemdiferentes do que as que lhes inspiravam as atrevidas cantoras com penteados de danarina detango. Ulrich decidiu cham-la Leona, e possu-la lhe pareceu mais desejvel do que possuirum leo empalhado pelo taxidermista.Mas, iniciada a sua relao, Leona revelou outra caracterstica: era incrivelmente comilona,vcio que h muito sara de moda. Nascera do desejo reprimido da criana pobre de comerguloseimas, mas assumira a fora de um ideal que finalmente rompe as grades e domina apersonalidade. O pai dela parecia ter sido um honrado pequeno- burgus, batia-lhe sempreque a via com admiradores; mas Leona saa com rapazes apenas porque adorava sentar-se noterrao de uma confeitaria comendo sorvete enquanto observava dignamente os transeuntes.No se poderia dizer que no fosse sensual, mas, como em todas as coisas, tambm nisso erapreguiosa e detestava atividade. Qualquer excitao em seu avantajado corpo precisava demuito tempo at chegar ao crebro, e s vezes no meio do dia seus olhos comeavam a seenevoar sem motivo, enquanto noite tinham-se fixado imveis num ponto do teto, como seobservassem uma mosca ali pousada. Assim, tambm podia comear a rir, em pleno silncio,de uma anedota que s ento entendia embora a tivesse escutado dias atrs, quieta, sem acompreender. Quando no tinha nenhum motivo para fazer o contrrio, era portanto muito

decente. Nunca contara como chegara quela profisso. Aparentemente, tinha esquecido. Via-se apenas que considerava a atividade de cantora parte necessria de sua vida, ligando-a atudo o que de grandioso jamais ouvira sobre arte e artistas, de modo que lhe parecia umaatividade correta, edificante e nobre, postar-se cada noite num pequeno palco imerso emfumaa de charutos, e apresentar canes que nunca deixavam de emocionar os outros.Naturalmente, como necessrio para temperar a decncia, no recuava diante de umaindecncia eventual, mas estava firmemente convencida de que a prima-dona da peraImperial fazia a mesma coisa.Na verdade, se teimarmos em chamar prostituio algum entregar-se por dinheiro, no, como comum, com toda a sua pessoa, mas apenas o seu corpo, ento de vez em quando Leona seprostitua. Mas quem durante nove anos, como ela fazia desde os dezesseis, conhece amesquinharia dos ordenados que se pagam por dia nos cabars vagabundos, e leva emconsiderao o preo das roupas, os descontos, a avareza e arbitrariedade dos proprietrios, aporcentagem sobre a comida e bebida de clientes animados e sobre as contas dos quartos dohotel vizinho, quem tem de lidar com tudo isso diariamente, brigar e calcular tudocomercialmente, sabe que aquilo a que os leigos chamam devassido uma profisso plena delgica; objetividade e regulamentos. Exatamente a prostituio um fenmeno no qual fazgrande diferena se o encaramos de cima ou de baixo.Mas embora Leona tivesse uma concepo absolutamente objetiva da questo sexual, no eradesprovida de romantismo. Apenas todo o excesso, vaidade, desperdcio, os sentimentos deorgulho, inveja, sensualidade, ambio, entrega, em suma, os instintos da personalidade e daascenso social, se tinham nela ligado, por um capricho da natureza, no ao corao, mas aotractus abdominalis, aos processos da alimentao; com os quais, alis, em tempos antigosestavam regularmente ligados, o que hoje ainda se observa nos povos primitivos ou noscamponeses glutes que conseguem expressar a nobreza, e tudo o que distingue o ser humano,numa refeio festiva na qual se come em excesso, com toda a solenidade e todos osfenmenos concomitantes. Nas mesas do cabar de segunda categoria, Leona cumpria o seudever; mas sonhava com um cavalheiro que lhe permitisse, atravs de uma relao que durasseo tempo de seu contrato, sentar-se em fina postura diante do fino cardpio de um restaurantefino. Ento teria gostado de comer de uma s vez de todos os pratos, e provocava-lhe umasatisfao dolorida e contraditria poder mostrar, ao mesmo tempo, que sabia escolher ospratos, e compor um menu sofisticado. S nas sobremesas podia soltar a fantasia, ehabitualmente, numa sequncia inversa, estas se tornavam um lauto segundo jantar. Com cafpreto e bebidas Leona recuperava sua capacidade de comer e excitava-se com surpresas, atsaciar sua paixo. Ento seu corpo quase estourava de coisas finas. Ela olhava em torno,indolente e radiante, e embora nunca falasse muito, nesse estado gostava de comentar asdelcias que comera. Quando dizia Polmone la Torlogna ou Mas la Melville,pronunciava isso como outra pessoa diria, em tom calculadamente casual, que falara com oprncipe ou lorde do mesmo nome.Como aparecer em pblico com Leona no fosse exatamente do agrado de Ulrich, elehabitualmente a alimentava em sua casa, onde ela poderia comer em honra das galhadas decervo e dos mveis de estilo. Mas assim, Leona sentia-se frustrada em seu prazer social, e

quando o homem sem qualidades a excitava com os mais estranhos pratos que um cozinheiroconsegue produzir, levando-a a solitrios excessos, ela se sentia usada, como uma mulher quesabe que no amada por suas qualidades espirituais. Era bonita, era uma cantora, noprecisava se esconder, e todas as noites era objeto dos desejos de algumas dzias de homensque lhe teriam dado razo. Mas aquele homem, embora quisesse ficar sozinho com ela, nem aomenos dizia: Santo Deus, Leona, a tua b... me deixa louco!, lambendo os bigodes de apetites de a contemplar, como habitualmente faziam os cavalheiros. Leona o desprezava um pouco,mas naturalmente lhe era fiel, e Ulrich sabia disso. Alis, sabia muito bem o que fazer emcompanhia de Leona, mas passara h muito a poca em que teria dito uma coisa daquelas eusara bigode. E quando no se consegue repetir o que se fazia em outros tempos, por tolo queseja, como perder o uso da mo ou da perna.Os olhos dele tremeluziam ao ver sua amiga depois que comida e bebida lhe tinham subido cabea. Podia-se separar cuidadosamente a beleza dela da pessoa dela. Era a beleza daduquesa que o Ekkerhard de Scheffel carregara sobre a soleira do convento, a beleza dacastel com o falco pousado na luva, a beleza da lendria imperatriz Elisabete com suapesada coroa de cabelos, uma delcia para pessoas j mortas. Para ser mais exato, ela tambmlembrava a divina Juno, mas no uma Juno eterna e permanente, e sim aquilo que num tempopassado ou quase se pensava de Juno. Assim, o sonho do ser fora emborcado apenasfrouxamente sobre a matria. Mas Leona sabia que um convite refinado merece recompensa,mesmo que o anfitrio nada espere, e que no devia apenas deixar-se olhar daquele jeito; porisso, assim que conseguia faz-lo novamente, punha-se de p e comeava a cantar sem emoomas com voz forte.Para seu amigo, noites como aquela pareciam folhas arrancadas, animadas por toda a sorte deidias e fantasias, mas mumificadas como tudo que retirado de um contexto; e cheias daquelatirania do que se fixou eternamente e que constitui o fantasmagrico encanto dos quadrosvivos, como se tivessem dado um sonfero vida, e agora ela estivesse parada ali, hirta echeia de aluses, com contornos ntidos, mas monstruosamente desprovida de sentido noquadro geral.

7

NUM MOMENTO DE FRAQUEZA, ULRICH ARRANJA OUTRA AMANTE Certa manh, Ulrich chegou em casa em pssimo estado. Suas roupas pendiam rasgadas, tevede fazer compressas molhadas na cabea ferida, faltavam-lhe relgio e carteira. No sabia seos trs homens com quem brigara os tinham roubado ou se algum silencioso benfeitor ospegara quando ele estava desmaiado no asfalto. Deitou-se na cama, e enquanto o corpo abatidose sentia abrigado e cuidado, Ulrich refletiu mais uma vez sobre toda a aventura.

De repente, tinham aparecido trs sujeitos: talvez tivesse roado num deles na rua, numa horatardia e solitria, pois estava distrado com outras idias; mas mesmo assim, aqueles rostos,contorcidos luz do lampio, expressavam uma raiva mais antiga. Ele cometera ento um erro.Deveria ter recuado imediatamente, como quem tem medo, mas empurrando com as costas osujeito que se metera atrs dele, ou enfiando o cotovelo em seu estmago, tentando ao mesmotempo fugir, pois contra trs homens fortes no se luta. Em vez disso, hesitara um instante. Eraa idade: trinta &dois anos. A essa altura, hostilidade e amor exigem mais tempo. Ele noacreditava que os trs rostos que o encaravam na noite com raiva e desprezo quisessemapenas seu dinheiro, imaginou que era dio, dio que conflura contra ele e se personificara;enquanto os malandros o insultavam com palavras grosseiras, pensou que podiam nem sermalandros mas cidados como ele, apenas bbados e liberando suas inibies, e que, notandoo vulto dele ao passar, descarregavam sobre ele o dio que est sempre em todo mundo espera de qualquer pessoa estranha, como uma tempestade iminente no ar. Ele prprio jsentira algo parecido. Hoje em dia, muitssimas pessoas se sentem numa lamentvel oposioa muitssimas outras. um trao fundamental de nossa cultura o homem desconfiarprofundamente de pessoas fora do seu prprio meio; portanto, no s um ariano considera umjudeu um ser incompreensvel e inferior, mas um jogador de futebol sente o mesmo diante deum pianista. Afinal, cada coisa s existe dentro de seus limites, afirmando-se como atorelativamente hostil contra o ambiente; sem Papa no teria havido Lutero, sem pagos noteria havido Papa; por isso, no se pode negar que a mais intensa inclinao do homem porseus irmos se baseie na repulsa deles.

Ulrich no pensou em tudo isso to minuciosamente, claro; mas reconhecia aquela vagahostilidade que inunda nossa civilizao; e quando ela de repente se cristaliza em trsdesconhecidos que atacaro como raios e trovoadas, sumindo depois para sempre, quase nossentimos aliviados.

Mesmo assim, em se tratando de trs malandros, a reflexo parece ter sido um tanto excessiva.Pois quando o primeiro atacou, e voou de volta porque Ulrich se adiantara dando-lhe um socono queixo, teria sido necessrio eliminar imediatamente o segundo; mas este foi apenas roadopelo punho de Ulrich, a quem um golpe vindo de trs quase rachou o crnio. Ele caiu dejoelhos, foi agarrado, conseguiu levantar-se com fora quase sobrenatural, como em geral

acontece depois do primeiro choque, esmurrou uma massa indefinida de corpos estranhos eacabou abatido por punhos que lhe pareciam crescer cada vez mais.Constatado o erro que cometera, e que se limitava ao campo esportivo, como quando se d umsalto curto demais, Ulrich, com nervos excelentes, adormeceu tranquilamente, atrado pelasmesmas espirais flutuantes da inconscincia que o tinham engolido quando fora derrubado.

Ao acordar, certificou-se de que os ferimentos no eram graves, e refletiu de novo sobre oacontecido. Uma briga sempre deixa uma sensao ruim, por assim dizer de uma intimidadeprecipitada, e Ulrich sentiu que, mesmo tendo sido atacado, no se portara adequadamente.Mas adequar-se a qu? Junto das ruas onde a cada trezentos passos um policial pune a menorinfrao da ordem, h outras que exigem fora e ateno, como uma floresta virgem. Ahumanidade produz bblias e armas, tuberculose e tuberculina. uma democracia com reis earistocratas; constri igrejas, mas constri universidades que as combatem; transformamosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capeles militares; naturalmente tambmcoloca nas mos de bandidos mangueiras de borracha recheadas de chumbo, paraatormentarem outras pessoas, e depois prepara cobertores macios para as vtimas dessesmaus-tratos, como as cobertas que agora envolviam Ulrich com carinho e proteo.

Tudo isso o conhecido fato dos paradoxos, da incoerncia e imperfeio da vida, que nosfazem rir ou chorar. Ulrich porm no era assim. Odiava aquela mescla de desapego eexagerado apego vida, com que suportamos suas contradies e meias- verdades, como umatia solteirona tolera as m-criaes de um jovem sobrinho. Mas no saltou da cama ao ver queficar deitado nela era tirar vantagem da desordem nas relaes humanas; pois evitarpessoalmente o mal e fazer o bem, mas no se importar com a ordem geral , em muitossentidos, um compromisso precipitado com a conscincia custa da causa, um curto-circuito,uma fuga para o mundo particular. Depois daquela involuntria experincia, Ulrich chegou apensar que valia muito pouco eliminarem-se armas, ou reis, e reduzir a ignorncia e maldadehumanas com o progresso; pois as objees e maldades so sempre substitudas por outras,como se uma perna do mundo escorregasse para trs cada vez que a outra avana. Seriapreciso entender a causa e mecanismo secreto desse processo! Isso seria mais importante doque ser um bom homem segundo princpios breve superados; assim, em assuntos de moralUlrich preferia o servio no estado-maior ao herosmo cotidiano da prtica do bem.

Recordou mais uma vez a continuao daquela aventura noturna. Quando voltara a si depois dabriga de final infeliz, um txi parar beira da calada; o motorista tentara erguer pelosombros o estranho ferido, e uma dama de expresso angelical inclinara-se sobre ele. Nessesmomentos em que a conscincia volta de muito fundo, tudo nos parece um livro de contos defadas; mas logo o desmaio cedera lucidez, e a presena daquela mulher que se interessavapor ele bafejou Ulrich, reanimando-o como gua-de-colnia; ele logo viu que no estava muitomachucado, e tentou pr-se de p da melhor maneira possvel. No conseguiu isso logo comodesejava, e a dama ofereceu-se, preocupada, para lev-lo a algum lugar onde encontrasseajuda. Ulrich pediu que o levassem para casa, e como ainda parecesse desamparado econfuso, a dama consentiu. No carro ele se recuperara depressa. Sentia nela uma presenamaternal, uma doce nuvem de romntica solicitude, em cujo calor agora comeavam a formar-

se os pequenos cristais de gelo da dvida e do medo de um ato irrefletido, enquanto elevoltava a ser um homem, e os cristaizinhos enchiam o ar, macios como neve caindo. Contousua experincia, e a bela mulher, s um pouco mais jovem do que ele, portanto com talveztrinta anos, lamentou a brutalidade das pessoas, e sentiu uma pena imensa.Naturalmente Ulrich comeou a justificar vivamente o que acontecera e declarou supreendida beldade maternal que brigas no podiam ser avaliadas segundo seu resultado. Oencanto delas residia no fato de que em um pequeno lapso de tempo preciso agir com umarapidez que habitualmente no tem lugar na vida burguesa e, guiado por sinais quaseimperceptveis, executar tantos movimentos variados, violentos, mas ainda assim exatos, que totalmente impossvel control-los com a conscincia. Ao contrrio, qualquer esportista sabeque j alguns dias antes de uma competio preciso parar com o treinamento, para que osmsculos e nervos possam fazer um ltimo acordo entre si, sem que a vontade, a inteno e aconscincia estejam presentes ou possam intervir. No momento da ao sempre assim,descreveu Ulrich: os msculos e nervos saltam e lutam com o eu; mas este, o corpo como umtodo, a alma, a vontade, toda essa pessoa limitada como individualidade pelo direito civil, carregada por eles como Europa sentada sobre o touro; e se no fosse assim, se infelizmente omenor raio de reflexo casse nessa treva, a empresa fracassaria.Ulrich dissera tudo isso sempre mais entusiasmado. No fundo, afirmou ento, achava queaquela experincia de total retraimento ou ruptura da conscincia se ligava a experinciasperdidas que os msticos de todas as religies conheciam, portanto de certa forma eram umsubstituto atual de necessidades eternas; e embora fossem um mau substituto, ao menos eraalguma coisa; e o boxe, ou esportes semelhantes, que colocam isso num sistema racional,seriam uma espcie de teologia, embora no se possa esperar que todo mundo compreendaisso.Talvez Ulrich falasse to vivamente com sua companheira por desejar faz-la esquecer a tristesituao em que o encontrara. Nessas circunstncias era difcil para ela saber se ele falava asrio ou de brincadeira. De qualquer modo, parecia-lhe natural ele tentar explicar a teologiacom o esporte, e talvez at fosse interessante, pois esporte uma coisa moderna, e teologiaalgo misterioso, embora inegavelmente ainda existam muitas igrejas. E, fosse como fosse, elaachava que um acaso feliz a fizera salvar um homem muito brilhante; mas tambm ficoupensando se ele no teria sofrido uma comoo cerebral.Ulrich, querendo dizer alguma coisa sensata, aproveitou a ocasio para comentar, em tomcasual, que tambm o amor fazia parte das experincias religiosas e perigosas, porque tiravaos homens dos braos da razo para deix-los flutuando no ar.Sim, disse a dama, mas esporte era uma coisa rude.Certamente, admitiu Ulrich depressa, esporte era uma coisa rude. Podia-se dizer que nascompeties se descarrega um dio sutilmente distribudo, um dio generalizado.Naturalmente afirmava-se o contrrio, que o esporte une, faz camaradas, e coisas assim; masisso no fundo apenas comprovava que rudeza e amor no esto mais distantes um do outro doque as duas asas de um grande pssaro colorido e silencioso.Ele acentuara as asas e o colorido pssaro silencioso idia sem muito sentido, mas cheiadaquela incrvel sensualidade com que a vida, em seu corpo desmedido, une todos os

contrrios rivais. Notou que sua vizinha no compreendia nada disso; a macia sensao deneve caindo, que a presena dela espalhava pelo carro, tomara-se entretanto ainda mais densa.Ento ele se virou bem para ela e perguntou se no gostava de falar em assuntos do corpo. Ocorpo estava se tomando moda, e no fundo isso dava uma sensao sinistra, pois ele, quandomuito bem treinado, assumia o comando e reagia a cada excitao, sem nada perguntar, commovimentos automatizados, com tamanha segurana, que ao seu dono restava apenas ainquietante sensao de observar, enquanto seu carter se evadia junto com uma parte qualquerdo corpo.Pareceu realmente que essa pergunta tocara fundo a jovem; ela se mostrou excitada com essaspalavras, ficou de respirao agitada e afastou-se um pouquinho, cautelosa. Um mecanismosemelhante ao descrito acima, uma inspirao funda, um rubor da pele, pulsaes do corao,e talvez alguma coisa mais, parecia estar agindo nela. Mas exatamente nesse momento o carroparar diante da casa de Ulrich. Ele apenas pde sorrir e pedir o endereo de sua salvadora,para o devido agradecimento, mas para seu espanto ela no lhe concedeu esse favor. Assim, oporto de ferro preto batido fechou-se atrs de um estranho surpreso. Provavelmente depoisdisso as rvores de um parque antigo tinham-se erguido, altas e escuras, na luz de lampieseltricos, janelas se haviam acendido, e as alas inferiores de um castelinho semelhante a umboudoir haviam-se estendido sobre um relvado verde-esmeralda bem aparado, um pouco dasparedes aparecera, cobertas de quadros e prateleiras de livros coloridos, e o companheiro deviagem, depois das despedidas, fora absorvido por aquela existncia inesperadamente bela.Assim tinha acontecido; mas enquanto Ulrich ainda refletia sobre a inconvenincia de vir a terperdido tempo com mais uma dessas aventuras amorosas das quais estava cheio, foi-lheanunciada uma dama que no queria dizer o nome e entrou coberta por um longo vu. Era ela,que no tinha mencionado nome nem endereo, e que agora, com o pretexto de ver como eleestava, tomava, romntica e caridosa, a iniciativa de prosseguir a aventura.Duas semanas depois, Bonadia j era amante dele h catorze dias.

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KAKNIA Na idade em que ainda se levam a srio coisas como alfaiate e barbeiro e se gosta de olhar noespelho, muitas vezes nos imaginamos em algum lugar onde gostaramos de passar a vida, oupelo menos um lugar onde elegante viver, mesmo sentindo que, pessoalmente, no seria tobom estar l. Uma dessas obsesses h muito tempo uma espcie de cidade superamericana,onde todo mundo corre ou pra com cronmetro na mo. Cu e terra formam um formigueirovarado pelos diversos andares de ruas sobrepostas. Trens areos, trens terrestres, trenssubterrneos, pessoas transportadas por correio pneumtico, comboios de automveisdisparam na horizontal, ascensores rpidos bombeiam verticalmente massas humanas de umnvel de trnsito a outro; salta-se de um meio locomotor a outro nos pontos de juno, sempensar, sugado e arrebatado pelo ritmo dos veculos, que entre duas corridas trovejantes fazemuma sncope, uma pausa, uma pequena brecha de vinte segundos; trocam-se algumas palavrasnos intervalos desse ritmo geral. Perguntas e respostas articulam-se como peas de mquina,cada pessoa tem apenas tarefas bem determinadas, as profisses esto agrupadas em lugarescertos, come-se em pleno movimento, as diverses esto reunidas noutras partes da cidade, eem outros locais encontram-se as torres onde ficam esposa, famlia, gramofone e alma. Tensoe distenso, atividade e amor so minuciosamente separadas no tempo, e equilibradas segundoexperincias de laboratrio. Caso haja alguma dificuldade em qualquer dessas aes,simplesmente se larga tudo; pois encontra-se outra coisa, ou eventualmente algum caminhomelhor, ou outro encontrar o caminho que ns no achamos; no tem nenhuma importncia,uma vez que nada causa tanto desperdcio da fora comum quanto presumir que se tem missode no largar determinado objetivo pessoal. Numa comunidade atravs da qual corremenergias, todo caminho leva a um bom objetivo, desde que no se hesite nem reflita demais.Os objetivos so a curto prazo; mas tambm a vida curta, e assim conseguimos arrancar delaum mximo de realizao. A pessoa no precisa mais que isso para ser feliz, pois aquilo quese obtm modela a alma, enquanto aquilo que se deseja, sem conseguir, apenas a deforma;para a felicidade importa muito pouco o que se deseja, mas apenas que seja obtido. Almdisso, a zoologia ensina que de uma soma de indivduos reduzidos pode resultar um todogenial.

No certo que tudo tenha de acontecer dessa maneira, mas esse tipo de idias faz parte dossonhos de viagem, nos quais se espelha a impresso de movimento incessante que nosarrebata. So superficiais, inquietas e breves. Sabe Deus o que vir. A cada minuto pensamoster na mo um comeo, e achamos que deveramos traar um plano para todos ns. Se asvelocidades no nos agradam, inventemos outra coisa! Por exemplo, algo bem lento, umafelicidade nevoenta como uma serpente marinha misteriosa e com o profundo olhar bovino comque j os gregos sonhavam. Mas no nada disso. A marcha do tempo nos domina. Andamoscom ela dia e noite, e fazemos dentro dela todo o resto; nos barbeamos, comemos, amamos,

lemos livros, exercemos nossa profisso, como se as quatro paredes estivessem imveis; e oinquietante saber que as paredes se movem, sem notarmos nada, lanam seus trilhos frentecomo longos fios sinuosos, tateiam, sem que se saiba para onde. Alm disso queremos sepossvel fazer parte das foras que determinam o curso do tempo. um papel obscuro, eacontece, quando olhamos para fora aps um intervalo mais longo, que a paisagem mudou; oque passa voando o faz porque s pode ser assim, mas apesar da resignao cresce a sensaoincmoda de que seguimos alm de nossa meta ou entramos por um caminho errado. E um dia,surge a necessidade urgente: desembarcar! Saltar! nsia de parar, de no avanar mais, deficar atolado, de voltar a um ponto antes daquela encruzilhada falsa! Nos bons velhos temposdo Imprio Austraco podia-se saltar do trem do tempo, entrar num trem comum e voltar terra natal.

Na Kaknia, esse pas desaparecido, incompreendido, em tantas coisas exemplar mas noreconhecido, havia dinamismo, mas no demais. Sempre que, indo para o exterior, se pensavanaquela terra, pairava diante dos olhos a imagem das estradas alvas, largas e nobres do tempodas caminhadas e diligncias, cortando o pas em todas as direes como rios ordenados,claras fitas de tecido riscado, rodeando as terras com o alvo brao de papel da administrao.Que provncias aquelas! Havia geleira e mar, aluvio e trigais da Bomia, noites do Adriticocricrilando com a inquietao dos grilos, aldeias eslovacas onde a fumaa sobe de chaminscomo de narinas arrebitadas e a aldeia se agacha entre duas colinas baixas como se a terraabrisse os lbios para soprar calor em sua filha. Naturalmente tambm corriam automveisnessas estradas, mas no muitos; tambm ali se preparavam para conquistar os ares, mas nocom muita nfase. Aqui e ali mandava-se um navio para a Amrica do Sul ou sia Oriental,mas no muito seguidamente. No se tinham ambies de economia mundial nem potnciamundial; estvamos instalados no centro da Europa onde se cruzam os velhos eixos do mundo;as palavras colnia e alm-mar pareciam algo novo e remoto. Apreciava-se o luxo, masnem de longe to sofisticado como o dos franceses. Praticavam- se esportes, mas no com aloucura dos anglo-saxes. Gastavam-se imensas somas com o exrcito, mas s o suficientepara continuar sendo a penltima das grandes potncias. Tambm a capital era um pouquinhomenor do que todas as demais maiores cidades do mundo, mas um pouquinho maior do que soas meras grandes cidades. Esse pas era governado de maneira esclarecida, quaseimperceptvel, limando prudentemente toda as arestas, pela melhor burocracia da Europa, ques se podia acusar de um erro: o gnio e o esprito genial de iniciativa em indivduosparticulares, que no tinham por nascimento aristocrtico ou misso oficial esse privilgio,eram considerados por ela um comportamento petulante e presunoso. Mas quem gosta dedeixar que incompetentes se metam em sua vida? E na Kaknia s se tomava um gnio porpatife, nunca se tomava um patife por gnio, como acontecia em outras partes.Alis, quanta coisa singular se podia dizer sobre essa Kaknia submersa! Por exemplo, ela erakaiserlich-kniglich e kaiserlich und kniglich, ou seja, imperial e real; um dos dois sinais,K.K. ou K. e K., marcava cada pessoa e coisa, mas mesmo assim era preciso uma sabedoriasecreta para poder distinguir sempre com segurana que instituio ou pessoa se devia chamarK.K. ou K. e K. Por extenso, chamava-se Monarquia Austro- Hngara, mas popularmente erachamada ustria, com um nome, portanto, a que havia renunciado com um solene juramento de

estado, mas que mantinha em todos os assuntos sentimentais, para mostrar que sentimentos soto importantes quanto o direito pblico, e que regulamentos no so a coisa realmente sriada vida. A constituio era liberal, mas o regime era clerical. O regime era clerical, mas sevivia de forma liberal. Todos os cidados eram iguais diante da lei, mas nem todos eramcidados. Havia um parlamento que fazia tamanho uso de sua liberdade, que habitualmente omantinham fechado; mas tambm havia um pargrafo de exceo com ajuda do qual passavamsem o Parlamento, e quando todos j estavam contentes com o absolutismo, a Coroainvariavelmente determinava a volta do regime parlamentar. Havia muitas dessassingularidades naquele pas, e entre elas estavam as brigas nacionais, que chamavamjustamente a ateno da Europa, e hoje so descritas de maneira to errada. Eram to fortes,que por sua causa a mquina do estado parava vrias vezes ao ano, mas nos intervalos epausas de governo todos se davam magnificamente bem, fazendo de conta que nadaacontecera. E no acontecera mesmo nada de real. Apenas a resistncia de todo ser humanocontra os esforos de outro ser humano, que hoje geral, tinha naquele pas j muito cedo sedesenvolvido; podemos mesmo dizer que se tornara um cerimonial sublimado, que poderia terconsequncias bem maiores se sua evoluo no tivesse sido interrompida antes do tempo poruma catstrofe.Pois no apenas a repulsa aos concidados ascendera ali condio de sentimentocomunitrio: tambm a desconfiana com relao prpria pessoa e destino assumira carterde profunda convico. Naquele pas, sempre se pensava uma coisa e fazia outra e isso atmesmo de forma extremamente apaixonada, sem medir consequncias ou se fazia uma coisae pensava outra. Observadores desinformados julgavam isso cortesia, ou at fraqueza do quepensavam ser o carter austraco. Mas era falso; e sempre falso explicar os fenmenos de umpas atravs do carter de seus habitantes. Pois um habitante tem no mnimo nove carteres, oprofissional, o nacional, o estatal, o de classe, o geogrfico, o sexual, o consciente e oinconsciente, e talvez ainda um carter particular: rene todos em si, mas eles o desagregam;na verdade, ele no passa de uma pequena cova lavada por muitos riachinhos, quedesaparecem nela, para depois voltarem a brotar e, junto com outros riachinhos, encheremoutra cova. Por isso, todo habitante da terra tem ainda um dcimo carter, que no seno afantasia passiva de espaos no preenchidos; este permite tudo ao ser humano, menos umacoisa: levar a srio aquilo que seus outros nove no mnimo carteres fazem, e o queacontece com eles; em outras palavras, exatamente aquilo que o deveria preencher. Esseespao que, como se v, de difcil descrio, varia na cor e na forma, por exemplo da Itliapara a Inglaterra, na medida em que variam a cor e a forma daquilo que dele se destaca, mas,de fato, sempre idntico, um aposento vazio e invisvel, no qual se posta a realidade comouma cidadezinha de blocos, de brinquedo, que a fantasia tenha abandonado.Na medida em que possa ser visvel aos olhos de todos, isso acontecera na Kaknia, e nesseponto, sem que o mundo soubesse, a Kaknia era o estado mais adiantado; era o estado que dealguma forma ia apenas se levando; nele, as pessoas eram negativamente livres,constantemente envoltas na conscincia dos motivos insuficientes da prpria existncia, ebanhadas pela grande fantasia do no-acontecido, ou do ainda-no- definitivamente-acontecido, como pelo sopro dos oceanos dos quais surgiu a humanidade.

Passou-se, diziam l, quando outras pessoas, de outros lugares, acreditavam ter acontecidono se sabe que milagre; era uma expresso singular, que no aparece em nenhum outro lugarde lngua alem, nem em outros idiomas; em seu sopro, fatos e golpes do destino se tornavamleves como plumas e pensamentos. Sim, apesar de muita coisa que depe em contrrio, aKaknia talvez ainda fosse um pas para gnios; e provavelmente foi isso que a arruinou.

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P RIMEIRA DE TRS TENTATIVAS DE TORNAR-SE UM HOMEM IMP ORTANTE Esse homem que voltara para casa no conseguia lembrar nenhum perodo de sua vida que notivesse sido animado pela vontade de se tornar uma pessoa importante; Ulrich parecia ternascido com esse desejo. verdade que nesse desejo tambm se podem esconder vaidade eignorncia; apesar disso, no menos verdade que um desejo belo e correto, sem o qualprovavelmente no haveria muitas pessoas importantes.O fatal era apenas que ele no sabia como a gente se torna importante, nem o que um homemimportante. Nos seus tempos de escola, pensava que Napoleo o fosse, em parte devido natural admirao dos jovens pelo crime, em parte porque os professores apontavam essetirano, que tentou colocar a Europa de cabea para baixo, como sendo o pior criminoso dahistria. O resultado foi que, assim que escapou da escola, Ulrich se tornou alferes de umregimento de cavalaria. Naquela poca, se indagassem dos motivos dessa escolha, eleprovavelmente no teria mais respondido: para me tornar um tirano; mas esses desejos sojesuticos; o gnio de Napoleo apenas comeou a se desenvolver depois que ele se tornarageneral, e como que Ulrich, simples alferes, teria podido convencer seu comandante danecessidade de chegar a essa condio?! J nos exerccios de esquadro, via-se no raro queo comandante pensava de outro modo. Apesar disso, Ulrich no teria amaldioado a praa deexerccios, em cujo pacfico relvado no se distingue presuno de vocao, se no fosse toambicioso. Naquele tempo, no dava o mnimo valor a expresses pacifistas como educaoarmada do povo, mas recordava com paixo os tempos hericos de feudalismo, violncia eorgulho. Participava de corridas de cavalo, duelava, e distinguia apenas trs espcies depessoas: oficiais, mulheres e civis; os ltimos eram uma classe fisicamente no desenvolvidae espiritualmente desprezvel, cujas mulheres e filhas eram arrebatadas pelos oficiais.Entregou-se a um pessimismo sublime: parecia-lhe que se a profisso de soldado uminstrumento aguado e ardente, era preciso queimar e cortar o mundo com esse instrumento,para seu prprio bem.Teve sorte de mesmo assim no lhe acontecer nada de mal naquele tempo, mas certo diapassou por uma experincia. Sofreu, numa reunio, uma pequena desavena com um conhecidofinancista, e quis resolver tudo sua maneira grandiosa, verificando ento que tambm entreos civis h homens que sabem defender os membros femininos de suas famlias. O financistateve uma conversa com o Ministro da Guerra, a quem conhecia pessoalmente, e o resultado foique Ulrich teve um longo encontro com seu superior, no qual lhe explicaram a diferena entreum arquiduque e um simples oficial. A partir dali, a profisso militar no lhe agradou mais.Esperara encontrar-se num palco de aventuras que abalassem o mundo, cujo heri seria eleprprio, e de repente via um jovem embriagado fazendo desordem numa grande praa vazia,onde s as pedras lhe respondiam. Percebendo isso, despediu-se daquela carreira ingrata, naqual acabara de chegar a tenente, e deixou o servio militar.

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SEGUNDA TENTATIVA. INCIOS DE UMA MORAL DO HOMEM SEM QUALIDADES Mas, ao passar da cavalaria para a tcnica, Ulrich apenas trocou de cavalo; o novo tinhamembros de ao, e corria dez vezes mais depressa.No mundo de Goethe, o rudo dos teares ainda perturbava, mas no tempo de Ulrich comeava-se a descobrir a cano das salas de maquinas, martelos de arrebite e sirenes de fbrica. Nose acredite com isso que as pessoas tenham imediatamente notado que um arranha-cu maiordo que um homem a cavalo; ao contrrio, ainda hoje, quando se querem dar importncia, nose sentam sobre um arranha-cu e sim sobre um cavalo alto{2}, so rpidas como o vento e tmviso aguada, mas no como um telescpio gigante, e sim como uma guia. Sua emoo noaprendeu ainda a servir-se da razo, e entre as duas h uma diferena de evoluo to grandecomo entre o apndice e o crtex cerebral. Portanto, no uma grande sorte descobrir, comoUlrich logo depois da adolescncia, que em tudo o que considera superior o homem bemmais antiquado do que suas mquinas.No momento em que iniciou o estudo de mecnica, Ulrich sentiu um entusiasmo febril. Paraque se precisa do Apolo del Belvedere, se temos diante dos olhos novas formas de um turbo-dnamo ou o jogo de pistes de uma mquina a vapor? Quem se encantaria com a milenarconversa sobre o bem e o mal depois de constatar que no so constantes, mas valoresfuncionais, de forma que o valor das obras depende das circunstncias histricas, e o valordas pessoas depende da habilidade psicotcnica com que avaliamos suas qualidades? Omundo realmente cmico, analisado do ponto de vista da tcnica; nada prtico nas relaeshumanas, altamente antieconmico e inexato em seus mtodos; e quem estiver habituado aresolver seus problemas com a rgua de clculo, simplesmente no pode mais levar a sriometade das afirmaes dos homens. A rgua de clculo consta de dois sistemas de cifras etraos combinados com inaudita argcia, de duas varetas laqueadas de branco, que deslizamuma sobre a outra, dois recortes em forma de trapzio, com ajuda dos quais se resolvem numinstante as tarefas mais complicadas, sem desperdiar nem um pensamento; a rgua de clculo um pequeno smbolo que se carrega no bolso interno do casaco, e se sente sobre o coraocomo um trao branco e duro: quem possui uma rgua de clculo, e encontra algum que fazafirmaes grandiosas ou tem sentimentos grandiosos, diz: um momento, primeiro vamoscalcular as margens de erro e o valor mais provvel de tudo isso!

Era sem dvida uma concepo vigorosa da engenharia. Formava a moldura de um belo futuroauto-retrato, mostrando um homem com traos decididos, cachimbo entre os dentes, gorro deesporte na cabea, movendo-se entre a Cidade do Cabo e o Canad em magnficas botas demontaria, concretizando grandes projetos para a sua empresa. Entrementes, ainda h tempopara extrair do pensamento tcnico algum conselho para a organizao e governo do mundo,ou formular ditos como o de Emerson, que se devia pendurar em todas as oficinas: Aspessoas andam pelo mundo como profecias do futuro, e todos os seus atos so tentativas e

experincias, pois cada ao pode ser superada pela ao seguinte!

Para ser exato, essa frase fora fabricada por Ulrich, com vrias frases de Emerson.

difcil dizer por que engenheiros no correspondem exatamente a essa imagem. Por que, porexemplo, usam to frequentemente a corrente de relgio subindo numa curva vertical dobolsinho do colete at um boto mais alto, ou a deixam cair sobre o ventre formando umaslaba longa e duas curtas, como num poema? Por que gostam de usar alfinetes de lapela comdentes de cervo, ou colocar pequenas ferraduras nas gravatas? Por que seus ternos so feitoscomo os primeiros automveis? E, finalmente, por que raro falarem de outra coisa alm dasua profisso? E, quando o fazem, por que tm essa maneira de falar especial, rgida,indiferente, alheada, apenas da boca para fora? Naturalmente isso no vale para todos, maspara muitos, e os que Ulrich conheceu ao comear o trabalho num escritrio de fbrica eramassim, e no seu segundo emprego tambm eram. Mostravam-se estreitamente ligados spranchetas de desenho, amantes da sua profisso, com uma admirvel eficincia; mas, se lhessugerissem aplicar a si prprios e no s suas mquinas aquelas idias audaciosas, achariamisso to antinatural quanto usar um martelo para matar.

Assim, terminou depressa a segunda tentativa, mais madura, de Ulrich tornar-se um homemextraordinrio, usando o caminho da tcnica.

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A TENTATIVA MAIS IMP ORTANTE Pensando naquele tempo, Ulrich poderia hoje sacudir a cabea, como se lhe falassem datransmigrao de sua alma; sua terceira tentativa era diferente. Entende-se que um engenheirose deixe absorver por sua especialidade, em vez de entregar-se liberdade e amplido domundo dos pensamentos, embora suas mquinas sejam entregues at nos confins do mundo;pois precisa to pouco ser capaz de transportar para sua alma particular o que h de audaciosoe novo na alma de sua tcnica, quanto uma mquina capaz de aplicar a si mesma as equaesinfinitesimais que serviram para a sua criao. Mas da matemtica no se pode dizer isso; nelareside a nova lgica, o prprio esprito, nela esto as fontes do tempo e a origem de umaextraordinria transformao.

Se for a concretizao de sonhos ancestrais voar e viajar com os peixes, atravessar montanhasgigantescas, enviar mensagens com velocidade de deuses, ver o invisvel a distncia e ouvi-lofalar, ouvir falarem os mortos, deixar-se mergulhar em miraculosos sonos teraputicos, poderver como pareceremos vinte anos aps nossa morte, saber em noites estreladas que hmilhares de coisas acima e debaixo desta terra, das quais ningum outrora tinha conhecimento;se luz, calor, fora, prazer, conforto, forem sonhos ancestrais do homem ento a pesquisaatual no apenas cincia mas magia, uma cerimnia de altssima fora emocional e cerebraldiante da qual Deus desdobra uma a uma as pregas do seu manto, uma religio, cujo dogma repassado e impelido pela dura, corajosa e flexvel lgica matemtica, fria e afiada como umbisturi.

Na verdade, no se pode negar que esses sonhos ancestrais, na opinio dos no- matemticos,se concretizaram de repente de um modo bem diverso do que se imaginara. A cometa dopostilho de Munchhausen era mais bela do que a voz em conserva, industrial; a bota de setelguas, mais bela do que um caminho; o reino de Larino, mais belo do que um tnel deferrovia; a mandrgora, mais bela do que um foto-telegrama; comer o corao da prpria mepara compreender os pssaros era mais belo do que estudar psicologia animal sobre aexpressividade dos pios. Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho. No nos deitamosmais sob a rvore, espiando o cu entre o dedo grande do p e o dedo mdio, mastrabalhamos; tambm no devemos passar fome nem sonhar demais, se quisermos sereficientes, mas comer bifes e fazer exerccio. exatamente como se a velha humanidadeineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro; quando despertou a humanidade nova, asformigas tinham entrado no seu sangue, e desde ento ela precisa fazer movimentosincessantes, sem conseguir se livrar desse chatssimo mpeto de fanatismo pelo trabalho.Realmente no preciso falar muito a respeito; a maioria das pessoas sabe perfeitamente,hoje, que a matemtica entrou em todos os campos de nossa vida, como um demnio. Talveznem todas essas pessoas acreditem na histria do Diabo a quem se pode vender a alma; mas

todas as pessoas que entendem alguma coisa de alma, por serem sacerdotes, historiadores eartistas, e tirarem boas vantagens disso, testemunham que foi a matemtica que arruinou aalma, que a matemtica a fonte de uma inteligncia perversa que faz do homem senhor daterra mas escravo da mquina. A secura interior, a monstruosa mistura de sensibilidade paraos detalhes e indiferena para o todo, o enorme desamparo do ser humano num deserto demincias, sua inquietao, maldade, a incrvel frieza do corao, cobia, crueldade eviolncia que caracterizam nossa era, seriam, segundo esses relatos, resultado dos prejuzosque um aguado pensamento lgico traz alma! E assim, j no tempo em que Ulrich se tomoumatemtico, havia pessoas que profetizavam a derrocada da cultura europia, porque nenhumacrena, nenhum amor, nenhuma candura restavam no ser humano; e significativamente todosforam maus matemticos na juventude e nos anos escolares. Isso provou para eles, mais tarde,que a matemtica, me da cincia natural exata, av da tcnica, tambm me ancestraldaquele esprito do qual finalmente brotaram os gases venenosos e os pilotos de guerra.S os prprios matemticos e seus discpulos, os cientistas naturais, que sentiam em suasalmas to pouco disso tudo quanto os corredores de bicicleta, que pisam no pedal e nada vemdo mundo seno a roda traseira do concorrente diante deles, viviam na ignorncia dessesperigos. Ulrich, porm, com certeza amava a matemtica, por causa das pessoas que no asuportavam. Era menos um cientista do que algum humanamente apaixonado pela cincia. Viaque em todas as questes que esta julga de sua competncia, cultiva um pensamento diverso dodas pessoas comuns. Se colocssemos, em lugar de idias cientficas, idias filosficas, emvez de hiptese, experincia, e em vez de verdade, ao, no haveria obra de cientista naturalou matemtico respeitvel que, por sua coragem e fora revolucionria, no superasse emmuito as maiores faanhas da histria. Ainda no nasceu o homem capaz de dizer aos seusdiscpulos: Roubem, matem, sejam lascivos... nossa doutrina to forte que transforma oestrume desses pecados em claros e espumantes riachos de montanha; mas na cincia aconteceperiodicamente que algo que at ento era considerado erro, de repente inverte todas asidias, ou qu um pensamento insignificante e desprezado comea a dominar todo um novoreino de idias; e esses fatos no so apenas revolues, mas constituem um caminhoascendente, como uma escada para o cu. Na cincia as coisas so to fortes, superiores emagnficas como num conto de fadas. E Ulrich sentia: as pessoas apenas no sabem disso; notm idia de como se pode pensar; se pudssemos ensin-las a pensar diferente, tambmviveriam de modo diferente.Certamente h de se perguntar se o mundo to errado que se precise mud-lo a toda hora.Mas o prprio mundo j deu duas respostas. Pois desde que ele existe a maior parte daspessoas foi favorvel mudana, na juventude. Acharam ridculo que os mais velhos seprendessem s coisas permanentes e pensassem com seu corao, aquele pedacinho de carne,em vez de pensarem com o crebro. Esses jovens sempre perceberam que a ignorncia moraldos mais velhos uma falta de capacidade para estabelecer novas ligaes, como a habitualignorncia intelectual, e que a sua prpria moral natural uma moral de realizaes, herosmoe transformao. Contudo, assim que chegavam idade de concretizar, no sabiam mais nadade tudo aquilo, nem queriam saber. Por isso, muitas pessoas para quem a matemtica ou acincia natural so profisses julgariam abusivo decidir-se pela cincia por motivos como os

de Ulrich.Apesar disso, na opinio dos especialistas no foi pouco o que ele fez nessa terceiraprofisso, desde que a abraou, h anos.

12 A DAMA CUJO AMOR ULRICH CONQUISTOU DEP OIS DE UMA CONVERSA SOBRE ESP ORTE E

MSTICA Afinal, tambm Bonadia aspirava s grandes idias.

Bonadia era a dama que salvara Ulrich naquela sua infeliz noite de boxeador, e na manhseguinte o visitara, coberta de espessos vus. Ele a batizara Bonadia, a boa deusa, por terentrado daquele modo em sua vida, e tambm segundo o nome de uma deusa da castidade quetivera, na velha Roma, um templo que, por uma bizarra inverso, se tornara centro de todos osexcessos. Aquele nome sonoro que Ulrich lhe dera agradou dama, e ela o usava nas suasvisitas, como um traje luxuosamente bordado.

Ento eu sou a sua boa deusa perguntou , a sua bona dea? E para pronunciarcorretamente essas duas palavras passava os braos pelo pescoo dele e o encarava,emocionada, a cabea levemente inclinada para trs.

Era esposa de um homem importante, e me carinhosa de dois belos meninos. Sua expressopreferida era decentssimo, e aplicava-a a pessoas, criados, negcios e sentimentos, sempreque queria fazer-lhes um elogio. Era capaz de dizer o que verdadeiro, bom e belo com amesma frequncia e naturalidade com que as outras pessoas dizem quinta-feira. O que maissatisfazia sua necessidade de idias era imaginar uma vida sossegada e idealizada no crculodo marido e dos filhos, e, muito abaixo, o mundo sombrio do no me deixes cair emtentao, com seu horror enevoando aquela felicidade radiante, transformando-a em fraca luzde lmpada. Ela s tinha um defeito: a simples viso de um homem a excitava de maneiraincrvel. No que fosse lasciva; era sensual, como outras pessoas tm l seus problemas, porexemplo, transpirar nas mos ou corar com facilidade. Aparentemente nascera assim, e no oconseguia evitar. Quando conhecera Ulrich, em condies to romanescas que lhe excitavam afantasia, tornara-se no mesmo momento vtima de uma paixo que comeara como piedade,mas depois de breve e intensa luta transformou-se em emoes secretas e proibidas,continuando ento como alternantes acessos de pecado e remorso.

Ulrich era mais um dos incontveis casos em sua vida. Os homens, percebendo uma talsituao, costumam tratar essas mulheres sedentas de amor como tratariam idiotas a quem seengana com os truques mais tolos, fazendo-os cair sempre no mesmo tropeo. Pois os maisdelicados sentimentos masculinos so mais ou menos como o rosnado de um tigre diante de umnaco de carne, e qualquer coisa que os perturba os irrita imensamente. Assim, muitas vezesBonadia levava uma vida dupla, como qualquer cidado respeitvel que nas fiestas maissombrias da conscincia um assaltante de trens; portanto, sempre que no estava nos braosde um homem, aquela dama tranquila e majestosa sentia-se sufocar de autodesprezo devido smentiras e humilhaes a que se expunha para ser abraada. Quando excitada, era melanclica

e bondosa, numa mescla de fervor e lgrimas, brutal naturalidade e inevitvel remorso.Quando seu fervor se retraa depresso iminente, ela adquiria um encanto excitante como orufar de um tambor envolto em panos negros.

Mas no intervalo entre duas crises, no remorso entre duas fraquezas, quando sentia suaimpotncia, ela assumia muitas pretenses respeitabilidade, que tornavam o convviocomplicado. Queria que todos fossem bons e verdadeiros, compassivos para com asdesgraas, amantes da famlia imperial, respeitando tudo o que era respeitvel e to delicadosem assuntos morais como quem estivesse cabeceira de um doente.

Mas mesmo que isso no acontecesse, nada mudava no curso dos fatos. Para desculpar-se,inventara a lenda de que, nos primeiros inocentes anos de casados, o marido que a deixaranaquele triste estado. O marido, muito mais velho e fisicamente maior que ela, parecia entoum monstro de brutalidade, e j nas primeiras horas do novo amor ela mencionara isso aUlrich, com uma tristeza ambgua. S mais tarde ele descobriria que o marido era um juristarespeitado e conhecido, eficiente na profisso, um inofensivo aficcionado de caadas,visitante muito querido de vrias rodas de caadores e de juristas, onde se debatiam questesmasculinas em vez de arte e amor. O nico erro desse homem bondoso e alegre, um tantoingnuo, era ser casado com aquela esposa, e por isso mais frequentemente do que outroshomens manter com ela aquela relao que em linguagem jurdica se chama de relao decircunstncia. O efeito moral de submeter-se anos a fio a uma pessoa com que se casara maispor esperteza do que por afeto formara em Bonadia a iluso de ser fisicamentesuperexcitvel, tornando essa idia quase que independente de sua conscincia. Uma forainterior, que ela mesma no entendia, ligava- a quele homem favorecido pelas circunstncias;desprezava-o por sua prpria fraqueza de vontade, e sentia-se fraca demais para o poderdesprezar; traa-o para fugir dele, mas nos momentos mais inadequados falava dele e dosfilhos que tivera com ele, e nunca conseguia libertar-se dele inteiramente. Por fim, comomuitas mulheres infelizes, num espao oscilante, apoiava-se exatamente naquela repulsa peloslido esposo, e transferia seu conflito com ele para cada nova experincia que a deveria delelivrar.

Praticamente, nada restava para acalmar suas dores do que lanar-se rapidamente dadepresso para o fervor. Mas aos homens que isso concretizavam e se aproveitavam de suafraqueza, ela negava ao mesmo tempo qualquer inteno nobre; e quando se inclinava paraesse novo homem, como costumava dizer com objetividade cientfica, o sofrimento cobriaseus olhos com um vu de mida ternura.

13 UM CAVALO DE CORRIDA GENIAL FAZ AMADURECER EM ULRICH A IDIA DE SER

UM HOMEM SEM QUALIDADES No era sem importncia Ulrich poder dizer que realizara muitas coisas na cincia. Seustrabalhos lhe tinham granjeado reconhecimento alheio. Esperar admirao seria pedir demais,pois mesmo no reino da verdade s se admiram sbios mais velhos, dos quais dependeconseguirmos ou no o mestrado ou a ctedra. Para ser exato, ele continuava sendo o que sechama de uma esperana, e, na repblica dos espritos, consideram-se uma esperana aquelesrepublicanos, propriamente ditos, que imaginam ter de dedicar causa todas as suas foras,em lugar de empregar a maior parte delas para fazer carreira; esquecem que as contribuiesindividuais so pouca coisa, enquanto a carreira desejo de todos, e negligenciam o deversocial de lutar para subir na vida, comeando como carreirista, para, nos tempos de sucesso,poder ser apoio e instigao para outros tentarem subir.

Certo dia, Ulrich deixou de querer ser uma esperana. Naquela poca j se comeava a falarde gnios do futebol ou do boxe, mas para no mnimo dez inventores, tenores ou escritoresgeniais, os jornais no citavam mais do que, no mximo, um centro- mdio genial, ou umgrande ttico de tnis. A nova mentalidade ainda no estava muito segura de si. Mas foiexatamente a que Ulrich leu em alguma parte, como antecipao de vero, a expressocavalo de corrida genial. Era uma notcia sobre um grande sucesso nas pistas de corrida, e oautor talvez nem tivesse conscincia de toda a dimenso da sua idia, que o esprito dostempos lhe inspirara. Mas Ulrich compreendeu que ligao inevitvel existia entre a sua vida eaquele cavalo de corrida genial. Pois o cavalo sempre fora o animal sagrado da cavalaria, ena sua juventude de militar Ulrich praticamente s ouvira falar de cavalos e mulheres, e fugirapara se tornar um homem importante; e quando agora, depois de variados esforos, poderiasentir bem prximo o cume de suas aspiraes, de l o saudava o cavalo, que a ele seantecipara.

Isso se justifica cronologicamente, pois no faz muito imaginava-se, como esprito viril dignode admirao, uma criatura cuja coragem fosse tica, cuja fora fosse persuaso, cuja firmezafosse a do corao e da virtude; julgava-se a velocidade coisa de adolescentes, a trapaacoisa proibida, e a agilidade e o mpeto eram considerados indignos. Por fim, essa criaturaexistia apenas no corpo docente de algum ginsio e em expresses escritas; tornara-se umespectro ideolgico, e a vida teve de construir uma nova imagem de homem. Olhando emtorno, ela descobriu porm que os golpes e manhas que uma cabea inventiva aplica numclculo lgico no se distinguem muito dos ataques de um corpo bem treinado, e que h umafora de combate espiritual geral que as dificuldades e improbabilidades tornam fria e sbia,quer adivinhe o ponto fraco de um problema, ou de um inimigo fsico. Se analisssemos, doponto de vista psicotcnico, um grande intelecto ou um campeo de boxe, a esperteza,

coragem, exatido e capacidade de estabelecer associaes bem como a rapidez de reaesnum terreno que lhes importante sero provavelmente as mesmas nos dois; nas virtudes ecapacidades que lhes significam um xito especial, os dois no se distinguiriam de um cavalode salto famoso, pois no se deve menosprezar as muitas qualidades em jogo quando se saltauma sebe. Mas um cavalo e um campeo de boxe tm vantagem sobre um intelecto, pois suaimportncia e suas realizaes se podem medir diretamente, e se reconhece o melhor entreeles como sendo realmente o melhor; dessa forma, o esporte e a objetividade se adiantarammerecidamente, substituindo os conceitos antiquados de gnio e grandeza humana.

Quanto a Ulrich, deve-se dizer que ele nesse ponto estava bastante frente de seu tempo. Poisfora exatamente assim, melhorando o prprio recorde em uma vitria, um centmetro ou quilo,que trabalhara quando se dedicava cincia. Provara ter esprito forte e aguado, e realizaratrabalho de fortes. Esse prazer na fora do esprito era uma expectativa, um jogo belicoso,uma espcie de indefinido mas imperioso direito sobre o futuro. Ele no sabia bem o que fariacom essa fora; podia-se fazer tudo ou nada, ser um salvador do mundo ou um criminoso. Eprovavelmente essa a condio psquica geral da qual se originam novos reforos para omundo das mquinas e descobertas. Ulrich encarava a cincia como preparao eendurecimento, uma espcie de treinamento. Se visse que esse pensamento cientfico erademasiadamente seco, spero e limitado, sem maior campo de viso, aceit-lo-ia como seaceita a expresso de tenso e privaes nos rostos durante grandes realizaes do corpo e davontade. Anos a fio ele amara o ascetismo espiritual. Odiava pessoas que no seguem aexpresso de Nietzsche: passar fome na alma, por amor verdade; os que recuam,fracassam, os moles que se consolam com doces palavras sobre a alma, e a alimentam comsentimentos religiosos, filosficos e poticos que so como pezinhos desmanchados no leite,por recearem que a razo lhes d pedras em vez de po.Ele pensava que neste sculo toda a humanidade se encontrava numa expedio, e o orgulhoexigia que a todas as perguntas inteis se respondesse ainda no e que se vivesse uma vidabaseada em conceitos provisrios mas consciente de um objetivo que seus descendentesatingiriam. A verdade que a cincia desenvolveu um conceito de fora espiritual dura elcida, que torna insuportveis todos os antigos conceitos metafsicos e morais dahumanidade, embora em seu lugar s possa colocar a esperana de que haver um dialongnquo, em que descer aos vales da fertilidade espiritual uma raa de conquistadoresespirituais.Mas isso s funciona enquanto no somos forados a afastar o olhar das distncias visionriaspara a proximidade atual, lendo que um cavalo acaba de se tornar genial. Na manh seguinteUlrich levantou de p esquerdo, e com o direito tentou pescar, indeciso, o chinelo. Fora numacidade e rua diferentes daquela onde morava agora, mas no fazia mais que algumas semanas.J passavam automveis disparando no asfalto marrom sob sua janela; a pureza do ar matinalcomeava a encher-se com o azedume do dia, e naquela luz luminosa que entrava pelascortinas, pareceu-lhe indizivelmente insensato fazer como de costume, movendo seu corpo nupara frente e para trs, erguendo-o do solo com os msculos da barriga, deitando-se de novo,e por fim batendo os punhos contra um punching ball, como fazem tantas pessoas mesma

hora antes de irem ao escritrio. Uma hora por dia, um doze avs da vida consciente, e bastapara manter um corpo treinado como o de uma pantera, capaz de enfrentar qualquer aventura;mas desperdiada numa expectativa insensata, pois nunca chegam aventuras dignas de talpreparativo. O mesmo acontece com o amor, para o qual o ser humano preparado da maneiramais monstruosa.Por fim, Ulrich ainda descobriu que tambm na cincia parecia um homem que escalou umamontanha aps a outra sem avistar seu objetivo. Possua fragmentos de uma nova maneira depensar e sentir, mas a nova viso, inicialmente to forte, perdera-se em detalhes cada vez maisabundantes; e se ele acreditara estar bebendo da fonte da vida, esgotara agora quase todas assuas expectativas.Foi ento que interrompeu pela metade um grande e promissor trabalho. Seus colegas lhepareciam em parte furiosos e implacveis promotores pblicos e chefes-de- segurana daLgica, e em parte viciados em pio ou alguma droga rara, que povoava seu mundo comvises de cifras e equaes abstratas. Meu Deus!, pensou, nunca tive inteno de sermatemtico durante a vida inteira.Mas que inteno tivera, afinal? Naquele momento, s poderia se voltar para a filosofia. Masa filosofia, no estado em que ento estava, lembrava-lhe a histria de Dido, na qual se cortaum couro em tiras sem saber ao certo se estas podero rodear um reino; e o que se fazia denovo parecia-se com aquilo que ele prprio fizera, e no o conseguia atrair. Ele s sabia quese sentia mais distante daquilo que desejara ser do que se sentia quando jovem, se que umavez soubera o que desejava. exceo da capacidade de ganhar dinheiro, de que noprecisava, via em si prprio com incrvel nitidez todas as capacidades e qualidades que seutempo prestigiava. Mas a capacidade de aplic-las perdera-se; e como, finalmente, agora quejogadores de futebol e cavalos de corrida tm gnio, apenas o uso que dele se fizer nos restapara salvarmos nossa singularidade, decidiu tirar um ano de frias da sua vida, e procurar umaaplicao adequada para suas capacidades.

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AMIGOS DE JUVENTUDE Depois de seu regresso, Ulrich j estivera algumas vezes com seus amigos Walter e Clariss