dados de copyright...— bem, é, sim. — ele hesitou por um instante, depois apontou para a...
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"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluira
umnovonível."
Copyright©2016byJennaEvansWelchPublicadooriginalmentepelaSimonPulse,umselodaSimon&SchusterChildren’sPublishingDivision.
TÍTULOORIGINALLove&Gelato
PREPARAÇÃOCristianePacanowskiIsisBatistaPinto
REVISÃOMarinaGóesLaísCurvão
ARTEDECAPAKarinaGranda
ADAPTAÇÃODECAPAôdecasa
REVISÃODEE-BOOKRobertaClapp
GERAÇÃODEE-BOOKJoanaDeConti
E-ISBN978-85-510-0235-3
Ediçãodigital:2017
1ªedição
TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORAINTRÍNSECALTDA.RuaMarquêsdeSãoVicente,99,3ºandar22451-041–GáveaRiodeJaneiro–RJTel./Fax:(21)3206-7400www.intrinseca.com.br
Sumário
FolhaderostoCréditosMídiassociaisDedicatóriaPrólogoCapítulo1Capítulo2Capítulo3Capítulo4Capítulo5Capítulo6Capítulo7Capítulo8Capítulo9Capítulo10Capítulo11Capítulo12Capítulo13Capítulo14Capítulo15Capítulo16Capítulo17Capítulo18Capítulo19Capítulo20Capítulo21Capítulo22Capítulo23Capítulo24Capítulo25Capítulo26Capítulo27Capítulo28AgradecimentosSobreaautora
Leiatambém
ParaDavid,Porserminhahistóriadeamor
Prólogo
VOCÊJÁTEVEdias ruins,nãoé?Sabeaquelesemqueoalarmenão toca,opãopraticamentepegafogonatorradeiraevocêlembratardedemaisquetodasassuasroupasestãoencharcadas,esquecidasnamáquinadelavar?Aívocêentracorrendo na escola, quinzeminutos atrasada, rezando para ninguém notar queseu cabelo está igual ao da noiva do Frankenstein, mas bem na hora em quesentanoseu lugar,oprofessorberraum“Atrasadahoje,Lina?”e todomundoolhaparavocê.
Apostoquevocêjátevediasassim.Todosnóstemos.Masequantoaosdiaspéssimos? Aqueles tão tensos e horríveis que trituram as coisas de que vocêgostasópeloprazerdecuspi-lasnasuacara?
OdiaemqueminhamãemecontousobreHowardseencaixaperfeitamentena categoria dos péssimos, mas, na época, isso era a menor das minhaspreocupações.
Eu tinha começado o segundo ano do ensinomédio duas semanas antes eestavavoltandocomminhamãedeumaconsultamédicadela.Osilêncioreinavadentrodocarro,excetopelocomercialnorádiocomasvozesdedoisimitadoresdo Arnold Schwarzenegger, e, embora fosse um dia quente, minhas pernasestavam arrepiadas. Naquela manhã, eu havia chegado em segundo lugar naminhaprimeiramaratonaestudantilenãoconseguiaacreditaremcomoaquilosetornarainsignificante.
Minhamãedesligouorádio.—Comoestásesentindo,Lina?Suavozestavacalma,masquandoolheiparaelacomeceiachorardenovo.
Elaestavamuitopálidaemagra.Comoeunãotinhanotadoqueelaemagreceratanto?
—Nãosei—respondi,tentandomanteravozcalma.—Achoqueestouemchoque.
Elaassentiu,parandonosinal.Osolfaziadetudoparanosofuscar,eeuolheidiretamenteparaele,mesmocomosolhosardendo.Esteéodiaemquetudovaimudar,pensei.Deagoraemdiante,haveráoanteseodepoisdehoje.
Minhamãepigarreoueseempertigoucomosetivessealgoimportanteamedizer.
—Lina,jáconteisobreavezemquemedesafiaramanadarnumchafariz?
Eumevireiparaela.—Oquê?—LembraqueconteiquepasseiumanoestudandoemFlorença?Eu tinha
saídoparatirarfotoscomumpessoaldaminhaturma,eodiaestavatãoquentequeacheiquefossederreter.Umamigomeu,Howard,medesafiouaentrarnumchafariz.
Não se esqueçam de que tínhamos acabado de receber a pior notícia domundo.Apior.
— ...Euassusteiumgrupode turistasalemães.Elesestavamposandoparauma foto, e quando saí da água umdeles perdeu o equilíbrio e quase caiu nochafarizcomigo.Eles ficaramfuriosos,entãoHowardgritouqueeuestavameafogandoepulounaminhadireção.
Elaolhouparamimedeuumsorrisinho.—Hã...mãe?É engraçado e tal,mas por que você estáme contando isso
agora?—EusóqueriafalardoHoward.Eleeramuitodivertido.Osinalabriu,eelapisounoacelerador.Oquê?,pensei.Oquê?Oquê?Oquê?
***
A princípio, achei que a história do chafariz fosse ummecanismo de defesa,como se talvez ela achasseque falar sobreumvelho amigopudessenos fazeresquecer aqueles dois blocos de concreto que pendiam sobre nossa cabeça.Inoperável. Incurável. Mas então ela me contou outra história. E mais umadepoisdessa.Echegouaopontoemqueelacomeçavaafalare,depoisdetrêspalavras,eusabiaque iamencionaro taldeHoward.Equandofinalmentemecontou o porquê de todas aquelas histórias sobre o amigo, bem... Digamosapenasqueaignorânciaéumabênção.
—Lina,euqueroquevocêváparaaItália.Estávamosnomeiodenovembro,eeuhaviamesentadodiantedacamade
hospitaldelacomumapilhaderevistasvelhasdebelezaqueroubaradasaladeespera. Eu tinha passado os últimos dez minutos fazendo um quiz chamado“Numaescaladefrioafervente:quãosexyvocêé?”,efizsetepontosnumtotaldedez.
—Itália?—perguntei,meiodistraída.A pessoa que fizera o quiz antes de mim gabaritou, e eu estava tentando
descobrircomoissoerapossível.
—FaleiquequeroquevocêvámorarnaItália.Depois.Aquilo chamouminhaatenção.Para começar, eunãoacreditavanodepois.
Sim, o câncer da minha mãe estava progredindo exatamente do jeito que osmédicos explicaram que aconteceria, mas eles não sabiam de tudo. Naquelamanhã mesmo, eu tinha salvado nos meus favoritos uma matéria sobre umamulherquesubiraoMonteKilimanjarodepoisdevencerumcâncer.Etemoutracoisa:Itália?
—Masporquê?—perguntei,semsergrosseira.Era importante não contrariar minha mãe. Evitar estresse ajuda na
recuperação.—QueroquevocêfiquecomoHoward.OanoquepasseinaItáliasignificou
muitoparamim,equeroquevocêvivaamesmaexperiência.Olheiobotãoparachamarasenfermeiras.FicarcomHowardnaItália?Será
quetinhamdadomorfinademaisaela?—Lina,olheparamim.—Elausouseutomautoritárioquedizia“Mocinha,
eusousuamãe”.—Howard?Ocaradequemvocênãoparadefalar?—Sim.Eleéomelhorhomemquejáconheci.Vaimantê-laasalvo.—Asalvodequê?Euolheiparaela,ede repentecomeceia ficarofegante.Minhamãeestava
falandosério.Seráquetinhaalgumsacodepapelporali?Elabalançouacabeça,comosolhosbrilhando.—Vaiser...difícil.Nãoprecisamos falardissoagora,masqueriaquevocê
ouvissedemimmesmasobreessadecisão.Vocêvaiprecisardealguém.Depois.Eachoqueeleéamelhorpessoa.
—Mãe,issonemfazsentido.Porqueeuiriamorarcomumdesconhecido?Eume levantei e comecei a vasculhar as gavetas namesinha de cabeceira
dela.Deviaterumsacodepapelemalgumlugar.—Lina,sente-se.—Mas,mãe...—Sente-se.Vocêvaificarbem.Vocêvaiconseguir.Suavidavaiseguirem
frenteevaisermaravilhosa.—Não.Vocêvaiconseguir.Àsvezesaspessoasserecuperam.—Lina,Howardéumamigomaravilhoso.Vocêvaiamá-lo.—Duvido.Eseeleéumamigotãobomassim,porquenuncaoconheci?Desistideencontrarumsaco,entãomejogueidenovonacadeiraecoloquei
acabeçaentreosjoelhos.Ela se sentou com dificuldade, depois estendeu amão, tocando asminhas
costas.
—Ascoisaserammeiocomplicadasentrenós,maselequerconhecê-la.Edissequeadorariaquevocêficassecomele.Prometaquevaitentar.Pelomenosporalgunsmeses.
Bateramàporta.Nósduaserguemosorostoevimosumaenfermeiracomumuniformeazul-bebê.
—Sóvimchecarcomovocêsestão—disseela,cantarolando.Ouestavaignorandoounãopercebeuminhaexpressão.NumaEscaladeTranquiloaTenso,oquartoestavamaisoumenos100para
10.—Bomdia.EuestavadizendoàminhafilhaqueeladeveirparaaItália.—Itália—repetiuaenfermeira,comumsuspiro.—Passeiminhaluademel
lá.Gelato,aTorredePisa,asgôndolasdeVeneza...Vocêvaiadorar.Minhamãeabriuumsorrisotriunfanteparamim.—Mãe,não.EunãovoupraItáliadejeitonenhum.—Mas, querida, você precisa ir— insistiu a enfermeira.—Vai ser uma
experiênciaúnica.Nofimdascontas,aenfermeiraestavacertasobreumacoisa:euprecisavair.
Masninguémmedeunenhumapistadoqueeuencontrariaquandochegasselá.
Capítulo1
A CASA SE destacava ao longe como um farol num mar de lápides.Não épossível que aquela fosse a casa dele! Provavelmente, só estávamos seguindoalgum costume italiano.Sempre dê uma passada no cemitério com os recém-chegados.Paradarumanoçãodaculturalocal.É,sópodiaserisso.
Entrelacei os dedos no colo e meu estômago gelou conforme nosaproximávamos da casa. Era como ver o tubarão saindo das profundezas dooceanoevindonaminhadireção.Taaantan.Sóqueeunãoestavanumfilme.Aquiloerareal.Emeesperavaaumacurvadedistância.Nãoentraempânico.Nãopodeser.Suamãenãoteriamandadovocêmorarnumcemitério.Elateriaavisado.Elateria...
Eleligouaseta,eeuperdiofôlego.Elasimplesmentenãomecontou.—Vocêestábem?Howard, a quem eu talvez devesse chamar de pai, me olhava com uma
expressão preocupada. Provavelmente porque eu tinha acabado de soltar umchiado.
—Éaquiquevocê...?—Fiqueisempalavras,entãotivequeapontar.—Bem,é,sim.—Elehesitouporuminstante,depoisapontouparaajanela.
—Lina,vocênãosabia?Sobretudoisso?“Tudo isso” não chegava nem perto de descrever o imenso cemitério
iluminadopeloluar.— Minha avó disse que eu ficaria na propriedade de um americano. Ela
contou que você administra um memorial da Segunda Guerra. Eu não acheique...
O pânico escorria sobre mim como calda quente. Além disso, eu nãoconseguiaconcluirumaúnicafrase.Respira,Lina.Vocêjásobreviveuaopior.Podesobreviveraistotambém.
Eleapontouparaaextremidadedoterreno.— O memorial é aquele prédio lá, mas no resto da propriedade ficam os
túmulosdossoldadosamericanosmortosnaItáliaduranteaguerra.—Masestanãoésuacasadeverdade,é?Ésóseulocaldetrabalho.Emvezderesponder,eleparounaentradaesentiminhaúltimaesperançase
apagar junto com os faróis do carro. Não era apenas uma casa. Era um lar.Gerânios vermelhos ladeavam o caminho da entrada, e um balanço rangia na
varanda,comosealguémtivesseacabadodeselevantar.Tirandoascruzesquecobriam os gramados ao redor, era uma casa normal num bairro como outroqualquer. Só que não era um bairro como outro qualquer. E não parecia queaquelascruzessairiamdali.Nunca.
—Eles preferem que um administrador fique aqui em tempo integral, porissoconstruíramestacasanosanos1960.—Howardtirouachavedaignição,depoistamborilouosdedosnovolante,nervoso.—Sintomuito,Lina.Acheiquevocêsoubesse.Nãopossonemimaginaroqueestásepassandopelasuacabeçaagora.
—Éumcemitério.—Minhavozestavafracacomocháaguado.Elesevirouparamimsemmeolharnosolhos.—Eusei.Eaúltimacoisadequevocêprecisaéumlembretedetudopelo
quepassouesteano.Masachoquevaiacabargostando.Ébemtranquiloetemumahistóriamuito interessante.Suamãeamavaeste lugar.Edepoisdepassarquasedezesseteanosaqui,nãoconsigomeimaginarmorandoemnenhumoutro.
A voz dele era esperançosa, mas eu afundei no banco, com ummonte deperguntassurgindonacabeça.Seelaamavatantoestelugar,porquenuncamefaloudele?Porquenuncamefaloudevocêatéficardoente?E,portudooqueémaissagrado,porqueelaseesqueceudestepequenodetalhe:contarquevocêémeuPAI?
Howardabsorveumeusilêncioporuminstante,depoisabriuaportadocarro.—Vamosentrar.Deixaqueeupegosuamala.Comseuummetroenoventaecincodealtura,elecontornoua traseirado
carro, e eu me estiquei para a frente para observá-lo pelo retrovisor. Quempreencheraaslacunasforaminhaavó.Eleéseupai;éporissoquesuamãequisquevocêfossemorarlá.Eudeveriaterimaginado,masaverdadeiraidentidadedo bom e velho Howard era algo que minha mãe deveria pelo menos termencionado.
Howard fechou o porta-malas, e eu me recompus e comecei a mexer namochila, ganhandomais alguns segundos.Coloca essa cabeça pra funcionar,Lina. Você está sozinha em outro país, um verdadeiro gigante acabou deassumir que é seu pai e sua nova casa poderia ser o cenário de um filme deapocalipsezumbi.Fazalgumacoisa.
Mas o quê? A não ser que eu arrancasse as chaves do carro dasmãos doHoward, não conseguia pensar em nenhum jeito de escapar daquela casa.Finalmente,solteiocintodesegurançaeoseguiatélá.
***
A casa era rigorosamente normal, como se para compensar a localização.Howard deixouminhamala ao lado da porta e fomos para a sala, onde haviaduaspoltronaseumsofádecouro.Váriospôsteresdeviagemantigosestavampenduradosnasparedes,eo lugar inteirocheiravaaalhoecebola,masdeumjeitobom,éclaro.
—Bem-vindaaolar—disseHoward,acendendoaluz.Umnovopânicomeatingiuemcheio,eeleestremeceuaoverminhaexpressão.—Querdizer,bem-vindaàItália.Estoumuitofelizporvocêestaraqui.
—Howard.—Oi,Sonia.Umamulheraltacomposturadegazelaentrounasala.Eladeviaseralguns
anosmaisvelhaqueHoward,tinhaapelecordecaféeostentavaváriaspulseirasdouradasnosbraços.Estavadeslumbrante.Etambémsurpresa.
— Lina — disse ela, enunciando meu nome cuidadosamente. — Vocêchegou.Comoforamosvoos?
Fiquei um pouco sem jeito. Será que ninguém ia fazer a gentileza de nosapresentar?
—Bons.Masoúltimofoimuitolongo.—Estamosmuitofelizesporvocêestaraqui.Elasorriuparamim,eumsilênciopesadoseinstalou.Finalmente,eudeiumpassoàfrente.—Então...vocêéaesposadoHoward?HowardeSoniaseentreolharamequasetiveramumataquederiso.LinaEmerson,gêniodacomédia.Howardsóconseguiupararderiralgunssegundosdepois.— Lina, esta é Sonia. Ela é a superintendente-assistente do cemitério. E
trabalhaaquihámaistempodoqueeu.— Só alguns meses a mais — explicou Sonia, enxugando os olhos. —
Howard sempreme fazparecerumdinossauro.Minhacasa também ficanestapropriedade,umpoucomaispertodomemorial.
—Quantaspessoasmoramaqui?—Sónósdois.Agoranóstrês—respondeuele.—Eunsquatromilsoldados—acrescentouSonia,sorrindo.ElaestreitouosolhosparaHoward,eeuolheiparatrásbematempodevê-lo
passar o indicador freneticamente sobre a garganta. Comunicação não verbal.Ótimo.
OsorrisodaSoniadesapareceu.—Lina,vocêestácomfome?Eufizlasanha.Entãoeradaíquevinhaocheiro.
—Estoumorrendodefome—admiti.Enãoestavaexagerando.—Quebom.Lasanhacompãodealhocheiodealhoéminhaespecialidade.— Boa! — exclamou Howard, dando um soco no ar, exageradamente
triunfante.—NadacomosermimadoporSonia.—Éumanoiteespecial, entãoacheiquedeveriacaprichar.Lina, achoque
vocêvaiquerer lavarasmãos,certo?Voupôramesa,nosencontrenasaladejantar.
Howardapontouparaooutroladodasala.—Obanheiroficaali.Eu assenti, depois coloquei a mochila na poltrona mais próxima e
praticamente fugiparaobanheiro.Ocômodoeraminúsculo,mal tinhaespaçopara um vaso sanitário e uma pia. Deixei a água ficar o mais quente queconseguiaguentareesfregueiasmãoscomumpedaçodesabonetequeestavanabordadapia,paramelivrardequalquervestígiodaviagem.
Enquantome lavava, tiveumvislumbredemimmesmanoespelhoesolteiumgemido.Eupareciaalguémquefoiarrastadaportrêsfusoshorários.Oque,para ser sincera, tinha de fato acontecido. Além das olheiras,minha pele, emgeralbronzeada,estavapálidaeamarelada.Meucabeloenfimtinhaconseguidodesafiarasleisdafísica.Molheiasmãosetenteidomaroscachos,masissosóserviuparadeixá-losaindamaisdesgrenhados.Acabeidesistindo.Edaíqueeuestavaparecendoumporco-espinhoquetinhaacabadodetomarRedBull?Paisdevemaceitarosfilhoscomoelessão,nãoé?
Doladodeforadobanheiro,umamúsicacomeçouatocareachamaqueerameu nervosismo se transformou numa fogueira. Será que eu precisavamesmojantar? Talvez pudesse me esconder em algum quarto enquanto caía a fichadaquelacoisatodadecemitério.Ounão.Masmeuestômagoroncouemprotestoeaiii...Sim,euprecisavamesmojantar.
—Aíestáela—disseHoward,levantando-se.Amesaestavapostacomumatoalhaxadrezvermelha,eumrockdasantigas,
que eu já tinha ouvido em algum lugar, tocava num iPod perto da entrada dasala.Eumesentei,numlugardiantedeles,eHowardfezomesmo.
—Esperoquevocê esteja com fome.Sonia cozinhamuitobem.Achoqueessaéaverdadeiravocaçãodela.
Agoraquenãoestávamosmaissozinhos,elepareciamuitomaisrelaxado.Soniasorriu.—Nempensar.Omeudestinoeramorarnomemorial.—Estácomumacaraboa.—Ecom“boa”euqueriadizerdeliciosa.Havia uma travessa fumegante de lasanha ao lado de uma cesta de fatias
grossas de pão de alho e uma tigela de salada cheia de tomates e alfacescrocantes.Preciseidetodaaminhaforçadevontadeparanãoatacaracomida.
Soniacortoua lasanhaecolocouumgrandepedaçocomqueijoescorrendonomeiodomeuprato.
—Fiqueàvontadeparaseservirdepãoesalada.Buonappetito.—Buonappetito—repetiuHoward.—Buonappe...seiláoquê—murmurei.Assim que todos foram servidos, peguei o garfo e comecei a devorar a
lasanha.Eusabiaquedeviaestarparecendoumanimalselvagem,masdepoisdeum dia inteiro à base de comida de avião, não consegui me controlar. Asrefeições do voo pareciam vir em porçõesminiaturas. Quando finalmente fizuma pausa para respirar, Sonia e Howard estavamme olhando, e ele parecialigeiramentehorrorizado.
—Então,Lina,oquevocêgostadefazer?—perguntouSonia.Eupegueiumguardanapo.—Alémdeassustaraspessoascommeusmodosàmesa?Howardsoltouumarisadinha.—Sua avóme contou que você adora correr. Ela disse que você faz uma
média de sessenta e cinco quilômetros por semana e que pretende praticarcorridanafaculdade.
—Bem, issoexplicaoapetite.—Sonia fezmençãodemeservirmaisumpedaçoeeuerguioprato,agradecida.—Vocêcorrenaescola?
— Corria. Eu era da equipe principal, mas perdi a vaga depois quedescobrimos.
Osdoisficarammeolhandosemdizernada.—...depoisquedescobrimosocâncer.Ostreinosmetomavammuitotempo,
eeunãoqueriaficarsaindosempredacidadeecoisasdotipo.Howardassentiu.—Achoocemitérioumótimolugarparaumacorredora.Temmuitoespaço
eruasplanas.Eucostumavacorreraqui,antesdeficargordoepreguiçoso.Soniarevirouosolhos.—Ah,porfavor.Vocênãoconseguiriaficargordonemsetentasse.—Ela
empurrouacestadepãodealhonaminhadireção.—Vocêsabiaqueeuesuamãeéramosamigas?Elaeraencantadora.Muitotalentosaealegre.Não,ela tambémnãomecontou isso.Seráqueeu tinha sidovítimadeum
elaborado esquema de sequestro? Será que sequestradores me dariam doispedaçosdamelhorlasanhaqueeujátinhacomidonavida?Eseeuimplorasse,seráquemepassariamareceita?
Howardpigarreou,eissomefezvoltaraprestaratençãonaconversa.
—Desculpem.Humm,não.Elanuncafaloudevocê.Sonia assentiu, com o rosto indecifrável, e Howard olhou para ela, depois
paramim.— Você deve estar exausta. Quer ligar para alguém? Eu mandei uma
mensagem para sua avó quando você chegou,mas fique à vontade para ligarparaela.Tenhoumplanodechamadasinternacionaisnocelular.
—PossoligarparaaAddie?—Éaquelaamigacomquemvocêestavamorando?—É.Maseutrouxeolaptop.Emvezdeligar,possofazerumFaceTime.—Talveznãofuncionehoje.AtecnologiaaquinaItálianãoédasmelhores,
e nossa conexãode internet ficou lenta o dia inteiro.Chamei alguémpara darumaolhadaamanhã,masnessemeio-tempovocêpodeusarmeucelular.
—Obrigada.Eleselevantoudamesa.—Alguémquervinho?—Sim,porfavor—disseSonia.—Lina?—Humm...eumeioqueaindanãotenhoidadeprabeber.Elesorriu.—NaItálianão tem idademínimaparabeber,entãoachoqueaquiémeio
diferente,masfiqueàvontade.—Bem,ficaprapróxima.—Jávolto.—Elefoiatéacozinha.Asalaficouemsilêncioporunsdezsegundos,depoisSoniapousouogarfo
noprato.—Estoumuito feliz por você estar aqui, Lina. E quero que saiba que, se
precisardequalquercoisa,ésógritar.Literalmente.—Obrigada.Fixeioolharnumpontologoacimadoombroesquerdodela.Adultossempre
se esforçavam demais comigo. Eles achavam que se fossem muito legaisconseguiriam compensar a perda da minha mãe. Isso era fofo e horrível aomesmotempo.
Soniasevirouparaacozinhaebaixouavoz.—Vocêseincomodariadepassarnaminhacasaamanhã?Querolhedaruma
coisa.—Oquê?—Falamosdissolá.Aproveiteestanoiteparaseambientar.Eumelimiteiabalançaracabeça.Iameambientaromínimopossível.Nãoia
nemdesfazeramala.
***
Depoisdojantar,Howardfezquestãodecarregarminhascoisasparaosegundoandar.
—Esperoquegostedoseuquarto.Temumassemanasquepinteieredecorei,eachoqueficoubembonito.Mantenhoamaioriadasjanelasabertasnoverão,assim ficamais fresco,mas pode fechar quando quiser.— Ele deixouminhamala perto da porta, e falava rápido, como se tivesse passado a tarde inteiraensaiandoseudiscursodeboas-vindas.
—Obanheiroédooutro ladodocorredor,ecoloqueiumsabonetenovoexampu lá. Avise se precisar de mais alguma coisa que compro amanhã, estábem?
—Ok.—E,comofalei,ainternetandabemirregular,masseresolvertentar,owi-fi
é“cemitérioamericano”.Claro.—Equaléasenha?—Murodosdesaparecidos.Tudojunto.—Murodosdesaparecidos—repeti.—Oqueissosignifica?—Éumapartedomemorial.Sãováriasplacasdepedra comuma listade
nomesdos soldados cujos corpos nunca foramencontrados.Posso lhemostraramanhãsevocêquiser.Nããão,obrigada.—Bem,estoubemcansada,então...—Eumeaproximeidaporta.Entendendoaindireta,elemeentregouocelulareumpedaçodepapel.— Anotei as instruções para ligar para os Estados Unidos. Você precisa
colocarocódigodopaíseocódigodeárea.Avisesetiveralgumproblema.—Obrigada.—Coloqueiopapelnobolso.—Boanoite,Lina.—Boanoite.Eledeuascostasesaiupelocorredor,eeuarrasteiminhamalaparadentro,
sentindoosombrosrelaxaremdealívioporfinalmenteestarsozinha.Bem,vocêestámesmoaqui,pensei,vocêeseusquatromilnovosamigos.Haviaumachavenaporta,efiqueisatisfeitaaoouvirocliquequandoatranquei.Entãomevireidevagar,mepreparandoparaoquequerqueHowardquisessedizercom“bembonito”,masmeucoraçãoquaseparoudebater,porquenossa...
Oquarto era perfeito.Uma luz suave emanavado lindo abajur douradonocriado-mudo,eacama,cheiadealmofadas,pareciaserdoséculopassado.Uma
escrivaninha e uma cômoda pintadas ficavam uma de cada lado do quarto, ehavia um grande espelho oval pendurado na parede ao lado da porta. Váriosporta-retratosvaziosocupavamocriado-mudoeacômoda,comoseesperandoqueeuospreenchesse.
Fiquei ali observando tudo por umminuto. Era tão eu. Como era possívelalguémque nemme conhecia termontado o quarto dosmeus sonhos?Talveznemtudoestivesseperdido...
Eentãoumarajadadeventosoprouparadentrodoquarto,chamandominhaatençãoparaagrande janelaaberta.Eu tinha ignoradominhaprópriaregra:Separecer bom demais para ser verdade, provavelmente é mentira. Fui até lá eespiei pela janela. As lápides brilhavam sob o luar como dentes num sorrisosombrio e estranhamente silencioso. Nenhuma beleza poderia compensar umavistacomoaquela.
Saídajanelaetireiopapeldobolso.Erahoradecomeçaraplanejarminhafuga.
Capítulo2
SADIEDANESPODEatéserumadaspiorespessoasdoplaneta,massempreocuparáumlugarespecialnomeucoração.Afinaldecontas,devoaelaminhamelhoramiga..
Euestavacomeçandoosétimoano.AddietinhaacabadodesemudardeLosAngelesparaSeattle,eumdia,depoisdaauladeeducaçãofísica,ouviuSadiecomentarquealgumasmeninasdaturmanãoprecisavamusarsutiã.Sóque,naboa...estávamosnosétimoano...Sóumporcentodasalaprecisavausarsutiã.Eeu, no caso, precisava menos ainda, então todo mundo sabia que ela estavafalandomim.TudooquefizfoiignorarSadie(emoutraspalavras,enfieiminhacabeçapré-adolescentenoarmário,piscandoparaconteraslágrimas), jáAddieempurrouagarotanasaídadovestiário.Desdeentão,elanuncamaisparoudemedefender.
— Sai. Pode ser a Lina.—A voz da Addie estava distante, como se elaestivessesegurandoocelularafastadodorosto.—Alô?
—Addie,soueu.—Lina!IAN,SAIDEPERTODEMIM.Ouvigritosabafadosedepoisoquepareceuumabrigadefacasentreelaeo
irmão.Addie tinha três irmãosmais velhos,mas não tinha nada de irmãzinhamaisnovamimada.Naverdade,elespareciammaisterfeitoumpactoparatratá-lacomoumgaroto.Issoexplicavamuitosobreapersonalidadedela.
—Desculpa—disseelaquandofinalmentevoltouafalarcomigo.—OIanéum idiota. Passaram com o carro por cima do celular dele e agorameus paisqueremqueagentedividaomeu.Nãomeinteressaoqueaconteceu.Nãovoudarmeunúmeroparaosamigostrogloditasdele.
—Ah,qualé,elesnãosãotãoruinsassim.—Nemvem.Vocêsabequesão.Hojedemanhãpegueiumdelescomendoo
nosso cereal. Ele tinha despejado uma caixa inteira numa tigela e estavacomendocomumaconchadesopa.AchoqueoIannemestavaemcasa.
Eusorriefecheiosolhosporuminstante.SeAddiefosseumasuper-heroína,seu poder seria a capacidade de fazer sua melhor amiga se sentir normal.Naquelasprimeirassemanassombriasdepoisdoenterro,eraelaquemmetiravadecasaparacorrereinsistiaqueeufizessecoisascomocomeretomarbanho.Aqueletipodeamigaqueagentesabequenãomerece.
—Esperaumpouco.Porqueestamosperdendo tempo falandodosamigosdoIan?VocêjádeveterconhecidooHoward.
Abriosolhos.—Meupai,vocêquerdizer?—Eumerecusoachamardeseupai.Nemsabíamosqueeleexistiaatédois
mesesatrás.—Menosaté.—Lina,estoumorrendodecuriosidade.Comoeleé?Olheiparaaportadoquarto.Aindadavaparaouviramúsicaládebaixo,mas
mesmoassimbaixeiavoz.—Digamosapenasqueprecisosairdaqui.Imediatamente.—Comoassim?Eleébizarro?—Não.Naverdade,eleatéqueélegal.É,tipo,altoquenemumjogadorda
NBA, o queme surpreende.Mas essa não é a parte ruim.—Respirei fundo.Addie precisava daquela pausa dramática. — Ele é administrador de umcemitério.Ouseja,eutenhoquemorarnumcemitério.
—OQUÊ?Eu já estava segurando o celular a uns bons dez centímetros da orelha,
esperandosuareação.—Vocêestámorandonumcemitério?Eleécoveirooucoisadotipo?—Ela
sussurrouaúltimaparte.— Acho que não enterram mais ninguém aqui. Todos os túmulos são da
SegundaGuerraMundial.—Comoseissomelhorasseascoisas!Lina,precisamostirarvocêdaí.Nãoé
justo.Primeirovocêperdeamãe,eagora temquesemudarprooutro ladodomundoemorarcomumcaraquederepentedizserseupai?Eacasadeleénumcemitério?Falasério,issojápassoudoslimites.
Eumesenteiàescrivaninha,virandoacadeiradecostasparaajanela.— Juro, se eu imaginasse no que estava me metendo, teria resistido mais
ainda.Este lugaréestranho.Tem lápidespor todo lado,eparecequeestamosmuitolongedacivilização.Nocaminhoatéaquivialgumascasaspelaestrada,masforaissoparecequeaoredordocemitérionãotemnadaalémdemato.
—Não acredito. Vou buscar você.Quanto custa uma passagem de avião?Mais de trezentos dólares? Porque é tudo o que eu tenho depois do nossoprobleminhacomohidrante.
—Vocênembateucomtantaforça!— Diz isso pro mecânico. Pelo visto, ele teve que trocar o para-choque
inteiro. E a culpa é toda sua. Se você não estivesse dançando que nem umalouca,provavelmenteeunãoteriasidoobrigadaadançartambém.
Eusorriecruzeiaspernasnacadeira.—SevocênãoconseguesecontrolarquandotocaumclássicodaBritneyno
rádionãoéculpaminha.Masvocêprecisadeajudaprapagar?Meusavósestãotomandocontadomeudinheiro,mastenhomesada.
—Não,claroquenão.VocêvaiprecisardodinheiroprairemboradaItália.Eachomesmoquemeuspaisvãoadorarsevocêvoltaramoraraqui.Minhamãeachavocêumaboainfluência.Elaficouummêscomentandoquevocêcolocaospratosnalava-louças.
—Poisé,souextraordinária.—Nãomediga.Tudo bem, vou conversar com eles embreve. Só preciso
esperarminhamãeseacalmar.Elaestácuidandodeumeventobeneficentedefutebol americano pro Ian, mas parece que está organizando um baile dedebutantes.Sério,elaestásuperestressada.Surtoucompletamenteontemànoiteporquenenhumdenóscomeuomacarrãogratinadoqueelafez.
—Poxa,eugostodomacarrãogratinadodela.Aquelecomatum,né?— Eca, duvido. Você devia ter acabado de correr cento e cinquenta
quilômetroseestarmorrendode fomequandocomeu.Semfalarquevocênãorecusacomidanenhuma.
—Issoéverdade—admiti.—Mas,Addie,nãoseesquecedequeéminhaavóquemprecisamosconvencer.Elaestáadorandoqueeumoreaqui.
—Oquenãofazomenorsentido.Porqueelamandouvocêprooutroladodomundoparaficarcomumdesconhecido?Elanemconheceocara.
—Achoqueelanãosabiamaisoquefazer.Acaminhodoaeroportoelamedissequeestavapensandoemirmorarcommeuavônumlarpraidosos.Cuidardeleestásendopesadopraela.
—Eéporissoquevocêdevemorarcomagente.—Addiebufou.—Nãoesquenta.Deixacomigo.VoulevaravóRachellepracompraraquelasbalasdecarameloqueosvelhinhosgostameaproveitoprafalarqueacasadosBennetéamelhoropçãopravocê.
—Obrigada,Addie.Ambas paramos de falar, e o som dos insetos e da música do Howard
preencheuobrevesilêncioentrenós.EuqueriaentrarpelocelularevoltarparaSeattle.Comoiasobreviversemminhamelhoramiga?
—Porquevocêestátãoquieta?OCoveiroestáaí?—Estounomeuquarto,mastenhoasensaçãodequeosomsepropaganesta
casa.Nãoseiseeleconseguemeouvirounão.—Queótimo.Entãovocênãopodenemfalarcomprivacidade.Seriamelhor
criarmos um código pra eu saber se você está bem. Diga “azulão” se estiversendomantidacomorefém.
—Azulão?Nãodeveriaserumapalavramaiscomum?—Droga.Agorafiqueiconfusa.Vocêdisseapalavra,masnãoseiseestava
falandosério.Vocêestáounãosendomantidacomorefém?—Não, Addie. Não estou sendomantida como refém.— Eu suspirei.—
Talvezeusejarefémapenasdapromessaquefizpraminhamãe.— É, mas será que as promessas valemmesmo se forem feitas com base
numamentira? Sem querer ofender,mas suamãe não foi exatamente honestasobreporquequeriaquevocêfosseparaaItália.
—Eusei.—Respireifundo.—Esperoquehajaummotivopraisso.—Talvez.Eu me virei para trás e olhei pela janela. A lua tocava a copa escura das
árvores,eseeunãosoubesseondeestava,teriaachadoavistadeslumbrante.— Preciso desligar. Estou usando o celular dele e devo ter gastado uma
fortuna.— Tudo bem. Liga de novo assim que puder. E, sério, não se preocupa.
Tiraremosvocêdaílogologo.— Obrigada, Addie. Espero conseguir falar com você pelo FaceTime
amanhã.—Vou esperar ao lado do computador. Como as pessoas se despedem na
Itália?“Chou”?“Chau”?—Nãofaçoamenorideia.—Mentirosa.Eravocêquesemprefalavaemviajarpelomundo.—Elescumprimentamesedespedemcom“ciao”.—Eusabia.Ciao,Lina.—Ciao.Nossaligaçãoterminouecoloqueiocelularnaescrivaninha,sentindoumnó
nagarganta.Eujáestavacomsaudadedela.—Lina?Howard!Quasecaídacadeira.Seráqueeleestavaescutandoaconversa?Eumelevanteiàspressaseabriumafrestadaporta.Howardestavaparado
no corredor segurando várias toalhas brancas dobradas, empilhadas como umbolodecasamento.
— Espero não ter interrompido— disse rapidamente. — Só lembrei queprecisavalheentregaristo.
Eu observei seu rosto,mas estava inexpressivo como água parada.Ao queparecia, o parentesco não significava nada. Eu não sabia se ele tinha ouvidominhaconversacomAddie.
Hesitei por um segundo, depois abri a porta um pouco mais e peguei astoalhas.
— Obrigada. E aqui está seu celular. — Eu o peguei na escrivaninha eentregueiaele.
—Então...oquevocêacha?Euenrubesci.—Sobre...?—Sobreseuquarto.—Ah.Ficouótimo.Lindo.Umgrandesorrisodealívioseabriunorostodele.Semdúvidaeraoprimeiro
sorriso genuíno da noite, e ele pareceu uns cinquenta quilosmais leve. Alémdisso,seusorrisoerameioassimétrico.
—Quebom.—Eleseapoiounobatentedaporta.—Seiquemeugostonãoédosmelhores,masqueriaqueficassebonito.Umaamigameajudouapintaraescrivaninha e a cômoda, e Sonia e eu encontramos o espelho numa feira deantiguidades.
Putz.ComeceiaimaginarHowardpasseandopelaItáliaàprocuradeobjetosqueachavaqueeuiagostar.Porqueointeresserepentino?Atéondeeusabia,elenuncatinhaenviadonemumcartãodeaniversário.
—Nãoprecisavaterseincomodado.—Nãofoiincômodonenhum.Sério.Ele sorriu outra vez, e houve um momento de silêncio longo e
desconfortável.Anoiteinteirapareceraumencontroàscegascomalguémcomquemeunãotinhanadaemcomum.Não,eraaindapior.Porquenós tínhamosalgo em comum. Só não estávamos tocando no assunto.Quando vamos tocarnesseassunto?
Tomaraquenunca.Howardbalançouacabeça.—Bem,boanoite,Lina.—Boanoite.Seus passos desaparecerampelo corredor e eu tranquei novamente a porta.
Minhasdezenovehorasdeviagemtinhammeatingidobemnomeiodatesta,eeuestavacomumadordecabeçainsana.Jáerahoradeaquelediaterminar.
Coloquei as toalhas em cima da cômoda, tirei os sapatos e pulei na cama,jogandoasalmofadasparatodososlados.Finalmente.Ocolchãoeratãomacioquantoparecia,eoslençóistinhamumcheiromaravilhoso,omesmocheirodequando minha mãe pendurava os nossos na corda para secar. Eu me enfieiembaixodascobertasedesligueioabajur.
Uma gargalhada veio lá de baixo. A música continuava alta e, ou elesestavamlavandopratosoujogandoumapartidabarulhentadecríquetenasala.Masnãoimporta.Depoisdodiaquetive,eupoderiadormiremqualquerlugar.
Eu havia acabado de cair naquela fase nebulosa, apenas ligeiramenteadormecida,quandoavozdoHowardmetrouxedevoltaàconsciência.
—Elaémuitoquieta.Meusolhosseabriramderepente.—Écompreensível,considerandoascircunstâncias—disseSonia.Não movi um músculo. Ao que parecia, Howard não achava que o som
viajassepelasjanelasabertas.Elebaixouavoz.—Claro.Foimeioqueumasurpresa.Hadleyeratão...— Cheia de vida? Era mesmo, mas Lina pode surpreender você. Eu não
ficarianemumpoucosurpresaseelaacabassedemonstrandoumpoucodovigordamãe.
Elesoltouumarisadabaixa.—Vigor.Éumadefiniçãointeressante.—Dêumtempinhoaela.—Claro.Obrigadooutravezpelojantar...Estavadelicioso.— O prazer foi todo meu. Estou planejando ficar no centro de visitantes
amanhãdemanhã.Vocêvaiestarnoescritório?—Sóvoudarumapassada.QueriasaircedoparalevarLinaàcidade.—Ótimaideia.Boanoite,chefe.Os passos da Sonia ressoaram no cascalho da entrada para carros, e logo
depoisaportadafrenteseabriuesefechoudenovo.Eumeobrigueiafecharosolhos,maspareciaquetinharefrigerantecorrendo
por minhas veias. O que Howard esperava? Que eu ficasse radiante por memudarparaacasadealguémquenãoconhecia?Queficasseanimadapormorarnum cemitério? Ninguém sabia que eu não queria ir para a Itália. Eu sóconcordeiquandominhaavóapeloupara“Vocêprometeuàsuamãe”.
Eporqueeletinhaquedizerqueeuera“quieta”?Eudetestavaserchamadaassim.Aspessoassemprediziamissocomosefossealgumtipodedeficiência,como se só porque eu não contava minha vida toda logo de cara eu fosseantipáticaearrogante.Minhamãemeentendia.“Vocêpodeatédemorarparasesoltar,masquandosesoltaemanaalegria.”
Meus olhos se encheram de lágrimas e eu me virei, enfiando o rosto notravesseiro. Já faziamais de seismeses, e às vezes eu conseguia passar horasfingindo que estava bem sem ela, mas isso nunca durava muito. No fim dascontas,arealidadeeratãoduraeimplacávelquantoaquelehidrantenoqualeueAddietínhamosbatido.
Eeuteriaquepassarorestodavidasemela.Teriamesmo.
Capítulo3
—OLHE,AQUELAJANELAestáaberta.Deveteralguémporali.Avozestavapraticamentenomeuouvido,emesenteiderepente.Ondeeu
estava?Ah,sim.Nocemitério.Sóqueagoraaluzdosoltinhainvadidoolugar,edentrodoquartofaziaumcalordeoitocentosenoventagraus,maisoumenos.
—Nãoachaquedeveriaterplacasinformandoparaondeir?—Eraavozdeumamulher,comumsotaquetãofortequantomolhobarbecue.
Umhomemrespondeu:—Gloria, isto aquipareceuma residência.Achoquenãodeveríamosestar
bisbilhotando...—Iuu-huuu!Olá?Temalguémemcasa?Tireiascobertasesaídacama,tropeçandoemummontedealmofadas.Eu
nemhaviatrocadoderoupaantesdedormir.Estavatãocansadaquenemsequercogiteicolocaropijama.
—Ol-ááá—gorjeououtravezamulher.—Temalguémaí?Fiz um coque para não assustar ninguém, depois fui até a janela e vi duas
pessoas que combinavam perfeitamente com suas vozes. A mulher tinha umcabelo vermelho-bombeiro e vestia uma bermuda de cintura alta, e o homemusava chapéu de pescaria e carregava uma câmera enorme pendurada nopescoço. Eles estavam até de pochete. Segurei uma risadinha. Uma vez, eu eAddie ganhamos um concurso de fantasias vestidas como Turistas Cafonas.Aquelesdoispoderiamtersidonossainspiração.
—Olá-á— disse lentamente a Turista Cafona da Vida Real. Ela apontouparamim.—Vocêfalainglês?
—Eutambémsouamericana.—Graçasaoscéus!EstamosprocurandoHowardMercer,osuperintendente.
Ondepodemosencontrá-lo?—Nãosei.Eusou...novaaqui.Avistachamouminhaatençãoeolheiparacima.Asárvoresdoladodefora
daminha janela eram de umverde denso e aveludado, e o céu talvez fosse omais azul que eu já tinha visto.Mesmo assim, eu continuava num cemitério.Repito:continuava.Em.Um.Cemitério.
ATuristaCafonaolhouparaohomem,depoisoutravezparamim,colocandoasmãosnacinturacomoquemdiz:“Vocênãovai se livrardemimassim tão
fácil.”—Vouverseeleestáemcasa.—Ah,issoaí—disseela.—Vamosesperarlánafrente.Abriamalaevestiumaregataeumshortdecorrida,encontreimeustênise
desci.O térreoerabempequenoe, foraoquartodoHoward,oúnicocômodoqueeunãotinhavistoeraoescritório.Batinaportasóporprecauçãoantesdeentrar. As paredes eram cobertas por discos dos Beatles e fotos emolduradas.PareiparaobservarumadoHowardjuntocomalgumaspessoasjogandobaldesdeáguanumelefanteenormeelindo.Eleestavadebermudacargoechapéudesafáriepareciaoastrodealgumprogramadeaventurasnanatureza.Howarddábanho em animais selvagens. Era óbvio que ele não tinha passado os últimosdezesseisanossentadocomsaudadedaminhamãeedemim.Desculpem,TuristasCafonas.NemsinaldoHoward.Fuiatéaentrada,prontaparadizeraosCafonasquenãopodiaajudá-los,mas
quandoentreinasala,deiumpulocomosetivessepisadonumfiodesencapado.Amulhernãoapenasestavameesperandonafrente,comotinhaimprensadoorostonajanelaemeolhavacomouminsetoenorme.
—Aqui.Aqui!—murmurouela,apontandoparaaportadafrente.—Vocêsópodeestarbrincando.Coloqueiamãonopeito.Meucoraçãobatiaummilhãodevezesporminuto.
Euimaginavaqueavidanumcemitériofossemuitomais...morta.Badumtss!Minhaprimeirapiadaoficialdecemitério.Eoprimeirorevirardeolhosoficialporcausadaprópriapiadadecemitério.
Abriaportaeamulherrecuoualgunspassos.—Desculpe,querida.Assusteivocê?Pareciaqueseusolhosiamsaltar.Elausavaumadaquelasetiquetasdeidentificação.OLÁ,MEUNOMEÉGLORIA.— Eu não esperava que você estivesse... olhando aqui pra dentro. —
Balanceiacabeça.—Sintomuito,masHowardnãoestá.Elecomentouquetemumescritórioporaqui.Talvezvocêspossamprocurarlá.
Gloriaassentiu.—Aham.Aham.Bem,oproblemaéo seguinte, florzinha.Daqui a apenas
trêshorasoônibusvaivoltarparanospegar,equeremosconhecer tudo.Achoquenãotemostempoparaficarandandoporaíàprocuradosr.Mercer.
—Vocêsforamaocentrodevisitantes?Amulherquetrabalhaládevesaberondeeleestá.
—Eufaleiquedevíamosterfeitoisso—disseohomem.—Istoaquiéumaresidência.
—Qualéocentrodevisitantes?—perguntouGloria.—Eraaqueleprédiopertodaentrada?
—Desculpe,eunãoseimesmo.Talvez porque na noite anterior eu estivesse apavorada demais para notar
qualquercoisaalémdoexércitodelápidesmeencarando.Amulherergueuumadassobrancelhas.— Olha, detesto incomodá-la, querida, mas tenho certeza de que você
conheceestelugarmelhorqueumcasaldeturistasdoAlabama.—Parasersincera,não.—Oquê?Eususpirei,lançandomaisumolharesperançosoparadentrodecasa,maso
lugarestavasilenciosocomoumtúmulo.(Credo!Segundapiadadecemitério.)Parecia que eu ia ter que entrar de cabeça naquela coisa toda de morar nummemorial.Entãofuiparaavarandaefecheiaporta.
—Eurealmentenãoseiondeficamascoisasporaqui,masvoutentarajudar.Gloriaabriuumsorrisoextasiado.—Gratziei.Desciaescada,eosdoismeseguiram.—Cuidammuitobemdestelugar—observouGloria.—Muitobem.Ela estava certa.Osgramados eram tãoverdes quepareciampintados com
tinta spray, e em praticamente todos os cantos havia um arranjo com asbandeiras italiana e americana cercadas de flores que pareciam saídas de OmágicodeOz.Aslápideserambrancasereluzentes,umpoucomenossinistrasduranteodia.Masnãomeentendamal:elascontinuavamsendosinistras.
—Vamosporaqui.—FuiemdireçãoàruapelaqualHowardeeutínhamoschegado.
Gloriamecutucoucomocotovelo.—EueHanknosconhecemosnumcruzeiro.Ah,não.Gloriaiamecontarahistóriadeles?Deiumaolhadarápidaparaela,
queabriuumsorrisosimpático.Claroqueia.— Ele tinha acabado de perder a esposa, Anna Maria. Ela era uma boa
mulher,masmuitopeculiarnaformademanteracasa...Umadaquelaspessoasqueforramtodaamobíliacomplástico.Meumarido,Clint,tinhamorridoalgunsanos antes, então era por isso que eu e Hank estávamos no cruzeiro parasolteiros. A comida era ótima... Montanhas de camarão e sorvete à vontade.Vocêselembradaquelecamarão,Hank?
Elenãopareciaestarouvindo.Euaperteiopasso,eGloriafezomesmo.—Haviaummontedevelhostaradosnobarco,unscarasnojentos,maspor
sorteeueHankfomoscolocadosnamesmamesanojantar.Onavionemtinhaatracadoeelejátinhamepedidoemcasamentodetãodecididoqueestava.Nósnos casamos apenas dois meses depois. Eu já estava instalada na casa dele,
obviamente,masapressamosascoisasporquenãoqueríamosficar,sabe...—Elafezumapausa,meolhandocomoseeuentendessetudo.
—Oquê?—perguntei,hesitante.—Vivendoempecado—disseela,baixinho.Olheiemvolta,desesperada.EuprecisavaencontrarHowardoualgumlugar
paravomitar.Talvezosdois.—Aprimeiracoisaquefiz foiarrancar todooplásticodamobília.Nãodá
paravivercomotraseirocoladonadrogadosofá.Nãoé,Hank?Ohomememitiuumsomgutural.— Esta viagem é como uma segunda lua de mel para nós. Passei a vida
inteira querendo visitar a Itália, e consegui realizarmeu sonho.Você émuitosortudapormoraraqui.Muito!,pensei.Fizemosumacurvaedemosdecaracomumpequenoprédio.Ficavaaolado
da entrada principal e nele havia uma placa gigantesca dizendo VISITANTES,REGISTREM-SEAQUI.FácildeconfundircomVISITANTES,ENCONTREMACASAMAISPRÓXIMAEGRITEMPARAQUEMESTIVERLÁDENTRO.
—Achoqueéaqui—falei.—Eufalei!—exclamouHankparaGloria.—Vocênãofalounada.—Gloriabufou.—Sóficoumeseguindoquenem
umvira-lata.Eu praticamente corri para a entrada do prédio,mas antes que conseguisse
tocar amaçaneta,Howard abriu a porta e saiu. Ele usava bermuda e chinelo,comoseplanejassepegarumvooparaoTaitimaistarde.
—Lina.Nãoacheiquevocêjáestivesseacordada.—Estesdoisforamprocurarvocênacasa.Gloriadeuumpassoàfrente.— Sr. Mercer? Somos os Jorgansen, de Mobile, Alabama. Você deve se
lembrardoe-mailquemandei.Somosaquelesquequeriamum tourparticularespecial pelo cemitério. Sabe, meu marido, Hank, tem verdadeiro amor pelahistóriadaSegundaGuerraMundial.Conteaeles,Hank.
—Verdadeiroamor—repetiuHank.Howardassentiuatenciosamente,masoscantosdesuabocasecurvaram.—Bem,sóexisteumtour,mas tenhocertezadequeSoniaficariafelizem
guiá-losporaqui.Porquenãoentramparaqueelacomece?Gloriabateupalmas.— Sr. Mercer, estou vendo que você também é do Sul. De onde? Do
Tennessee?—DaCarolinadoSul.
—Foioqueeuquisdizer.CarolinadoSul.Equeméestalindajovemqueveioemnossoauxílio?Suafilha?
Elenãodissenemfeznadaporumnanossegundo.Masfoiosuficienteparaqueeupercebesse.
—Sim.EstaéLina.Enosconhecemosontemànoite.Gloriabalançouacabeça.—Deusmeperdoe.Achoquenuncavi umpai e uma filha tão diferentes.
Masàsvezeséassim.Eupuxeiestecabelovermelhodaminhatia-avómaterna.Àsvezesosgenessimplesmentepulamalgumasgerações.
Tanto eu quanto Howard olhamos para ela com ceticismo. Aquele cabelovermelhonãopodiatervindodenenhumoutrolugarquenãoumacaixadetinta,mastínhamosqueadmirarseuempenho.
Elaestreitouosolhosparamim,depoissevirouparaHoward.—Suaesposaéitaliana?—Elapronunciou“italhana”.—Amãedelaéamericana.Linaseparecemuitocomela.Lanceiumolhargratoaele.Falarnopresentecomplicavamenosascoisas,
masentãomelembreidoqueHowardfalouparaSonianavaranda,emevirei,recolhendominhagratidão.
Gloriacolocouasmãosnacintura.—Bem,Lina,vocêseencaixamuitobemaqui,nãoé?Vejasóessesolhos
escuros e todo esse cabelo deslumbrante. Aposto que todo mundo pensa quevocêédaregião.
—Eunãosoudaqui.Sóestouvisitando.Hankfinalmenterecuperouavoz.— Gloria, vamos andando. Se continuarmos nessa conversa, não vamos
conseguirveromalditocemitério.—Tudobem,tudobem.Nãoprecisafalarassimcomigo.Vamos,Hank.—
Elanoslançouumolharconspiratório,comoseomaridofosseumirmãomaisnovocomquemtodosnósestivéssemossendoforçadosaandar,edepoisabriuaporta.—Vocêsdoistenhamumbom-dia,estábem?Arrivedente!
—Nossa—disseHowardquandoaportasefechou.—Poisé.Cruzeiosbraços.—Desculpeporisso.Aspessoasnãocostumamiratéacasa.Eemgeralsão
um pouco menos... — Ele hesitou, como se achasse que podia pensar numapalavraeducadaparadescreverosJorgansen,masselimitouabalançaracabeça.—Parecequevocêiasairparacorrer.
Olheiparaminhas roupas.Eraumhábito tão fortemevestirdaquela forma
quenemtinhareparado.—Normalmenteéaprimeiracoisaquefaço.—Comofalei,fiqueàvontadeparacorrerpelocemitério,massequisersair
eexplorar,ésóatravessaraquelesportões.Sóexisteumaestrada,entãoachoquevocênãovaiseperder.
AportadocentrodevisitantesseabriueGloriaenfiouacabeçaparafora.—Sr.Mercer?Estamulheraquiestádizendoqueotoursódurameiahora.
Eusoliciteiespecificamenteduashorasoumais.—Jáestouindoaí.—Eleolhouparamim.—Boacorrida.QuandoHowardseafastou,impulsivamentedeiumpassoàfrenteparapoder
verosreflexosdenósdoisnaportadevidro.Gloriapodiaserridícula,masnãotiverareceiodedizeroóbvio.Howardtinhamaisdeummetroeoitenta,cabelolouro-avermelhado eolhos azuis.Eu eramorena e tinhaque comprar todas asminhasroupasnaseçãoinfantil.Àsvezesosgenespulamalgumasgerações.
Nãoémesmo?
***
Saí pelos portões da frente e comecei a correr, cruzando o estacionamento devisitantes. Para que lado ir? Não importava. Eu só precisava me afastar docemitérioporumtempo.Esquerda.Não,direita.
Aestradaquepassavapelomemorialtinhaapenasduaspistas,ememantivena faixa de grama lateral, acelerando cada vez mais. Em geral, eu corria atéesquecerospensamentosquemeperturbavam,masaqueleeramuitodifícildetirardacabeça.PorqueeunãomepareçoemnadacomHoward?
Deviaserumadaquelascoisassemexplicação,querdizer,muitagentenãosepareceemnadacomospais.Addieeraaúnicalouradafamília,eeuconheciaumgarotoque,quandoestavanosextoano,jáeramaisaltoqueopaieamãe.Mesmo assim. Será que eu e Howard não deveríamos ser pelo menos umpouquinhoparecidos?
Continuei olhandopara o chão.Você vai se adaptar bem rápido.Ele é umsujeito muito legal. Eram palavras da minha avó, que até onde eu sabia nãoconheciaHoward.Pelomenosnãopessoalmente.
Umenormeônibusazulpassouemaltavelocidade,lançandoumarajadadear quente nomeu rosto, e quando olhei para cima, perdi o fôlego.Que drogaé...?Euestavacorrendopelocenáriodocardápiodeumrestauranteitaliano?Eratãoidílico.Aestradaeraladeadaporárvoreseserpenteavalevementeentrecasaseprédiosrústicos,pintadosemcoressuaves.Colinasemváriostonssurgiamao
longeehaviavinhedosdeverdadeatrásdemetadedascasas.EntãoaquelaeraaItáliadaqualaspessoasfalavam.Davaparaentenderporqueolugarencantavatantagente.
Outro veículo apareceu correndo atrás de mim, buzinando alto e mearrancandodomeumomentodeadmiraçãodabelezaitaliana.Eumeafasteidaruaemevireiparaolharparatrás.Eraumcarrinhovermelhoquepareciaestarse esforçando muito para parecer mais caro do que na verdade era e quediminuiuavelocidadequandoseaproximoudemim.Omotoristaeopassageirotinham cabelo escuro e uns vinte e poucos anos. Quando nos encaramos, omotoristasorriuecomeçouabuzinaroutravez.
—Ei,calma.Eunemestounoseucaminho—murmurei.Então ele pisou no freio com força, como se tivesse conseguidome ouvir,
depoisparoubemnomeiodaestrada.Ooutrocara,talvezumoudoisanosmaisvelho,abriuajaneladobancodetráscomumgrandesorrisonorosto.
—Ciao,bella!Cosafaistasera?Balanceiacabeçaevolteiacorrer,masomotoristaavançoualgunsmetros,
parandoaomeuladonaestrada.Queótimo.Depoisdequatroanosdecorrida,euconheciamuitobemaquele
tipode cara.Não sei quemdisse a eles que “sair para correr sozinha” era umcódigo para “quero ouvir cantadas”. Eu tinha aprendido que falar “não estouinteressada”nãobastava.Elessimplesmenteachavamqueeuestavamefazendodedifícil.
Atravesseiaestradaemevireinadireçãodocemitério,parandoumsegundoparaapertaroscadarços.Depois,respireifundoeouviotiroimagináriodeumapistoladandoalargada.Corre!
Elessoltaramumgritodesurpresa.—Dovevai?Nemolheiparatrás.Comamotivaçãocerta,euconseguiacorrermaisrápido
que qualquer um,mesmo homens italianos em latas-velhas vermelhas. Eu atéescalariaumacercasefossepreciso.
Quando cheguei ao cemitério, os caras tinhampassado pormimmais duasvezesedepoisdesistiram,eeutinhaquasecertezadequeatéminhaspálpebrasestavamsuando.HowardeSonia,decostasparaoportão,seviraramdepressaquandomeouviram,provavelmenteporqueeupareciaumlobisomemasmático.
—Vocêvoltourápido.Estátudobem?—perguntouHoward.—Eu...fui...perseguida.—Porquem?—Umcarro...cheiodecaras.—Ah,elessódevemterseapaixonado—disseSonia.
—Calmaaí.Umcarrocheiodecarasperseguiuvocê?Comoeleseram?Howardcontraiuomaxilareolhouparaaestradacomoseestivessepensando
em ir até lá com um taco de beisebol ou coisa do tipo. Aquilo meio quecompensouo“Elaémuitoquieta”danoiteanterior.
Balanceiacabeça,enfimrecuperandoofôlego.—Nãofoinadademais.Dapróximavez,ficodentrodocemitério.—Oupodecorreratrásdocemitério—sugeriuSonia.—Háumportãoque
dáparaosfundosdoterreno.Deveserótimoseexercitarnaquelascolinas,eapaisagemélinda.Alémdisso,nãohaveriacarrosparapersegui-la.
Howardaindapareciafurioso,entãomudeideassunto.—OndeestãoosJorgansen?Soniasorriu.—Houveumpequeno...conflito.Elesoptaramporfazerotoursozinhos.—
Elaapontouparaooutro ladodocemitério,ondeGloriacaminhavacomHankporumafileiradelápides.—Seupaiestavamedizendoquequer levá-laparajantaremFlorençahojeànoite.
Howardassentiu,finalmenterelaxandoorosto.—AcheiquepodíamosveroDuomoedepoiscomerumapizza.Será que eu deveria saber o que era aquilo? Fiqueimeio sem jeito. Se eu
dissesse sim, estaria concordando com o que sem dúvida seria um jantarconstrangedorsócomHoward.Sedissessenão,provavelmenteficariapresaalino mesmo cenário. Pelo menos daquele jeito eu teria oportunidade de ver acidade.EoDuomo.Sejaláoqueissofosse.
—Tudobem.— Ótimo.— Ele parecia animado, como se eu tivesse falado que queria
muitoir.—Assimvamosterachancedeconversar.Sobreascoisas.Eume contraí. Será que eu nãomerecia uma espécie de prazo de carência
antesdeterquelidarcomqualquerquefosseagrandeexplicaçãoqueHowardmereservara?Sóestaralijáerademaisparamim.
Eumevireiparalimparosuordatesta,torcendoparaquenãopercebessemcomoeuestavacontrariada.
—Vouvoltarpracasa.Comeceiameafastar,masSoniacorreuatrásdemim.—Vocêseimportariadepassarláemcasaantes?Tenhoumacoisaqueera
dasuamãeeeugostariadelheentregar.Deiumpassoparaolado,colocandomaisunsquinzecentímetrosentrenós.—Desculpa,masprecisomuitotomarumbanho.Podeficarpraoutrahora?— Ah. — Ela franziu as sobrancelhas. — Claro. Avise quando tiver um
minuto.Naverdade,eupoderia...
—Obrigada.Agentesevê.Comeceinumtrote, sentindooolhardaSoniaemmimquandomevireide
costas.Eunãoqueriasergrosseira,mas tambémnãoqueriade jeitonenhumoqueelatinhaparameentregar.Aspessoasestavamsempremedandocoisasquehaviampertencidoaminhamãe,sobretudofotos,eeununcasabiaoquefazercomelas.Eramcomolembrançasdaminhavidaanterior.
Olheiparaocemitérioesuspirei.Eunãoprecisavademaisnenhumlembretedequeascoisastinhammudado.
Capítulo4
ASSIMQUEENTREI,fuidiretoparaacozinha.Acheiqueseeuperguntasse,Howardfariaodiscursomicasa,sucasa,provavelmenteemitaliano,entãoemvezdeperguntar,ataqueiageladeira.
As duas primeiras prateleiras estavam cheias de coisas como azeitonas emostardasgourmet,quedãoumsaboramais,masnãosãoacomidaemsi,entãoolheiasgavetas,finalmenteencontrandoumpotequepareciaiogurtedecocoeumpãomassudo.Fiqueiarrasadapornãoencontrarnenhumasobradalasanha.
Depoisdedevorarmetadedopãoequaselamberofundodopotedeiogurte(de longe omelhor que já tinha tomado), vasculhei os armários até encontraruma caixa de granola cujo rótulo dizia CIOCCOLATO. Bingo. Eu identificava apalavrachocolateemqualquerlíngua.
Comiumatigelaenormedegranola,depoislimpeiacozinhacomosefosseacena de um crime. E agora? Bem, em Seattle, eu provavelmente estaria mearrumandoparairàpiscinacomAddieoutalvezpegandoabicicletanagarageme exigindo que fôssemos tomar um daquelesmilk-shakes triplos de chocolatequepraticamentememantinhamempé.Masali?Eunãotinhaneminternet.
—Banho—falei,emvozalta.Eraalgoparafazer.E,alémdisso,euestavamesmoprecisando.Subi, peguei a pilha de toalhas no meu quarto e fui para o banheiro. Era
muito limpo, como se Howard o esfregasse toda semana com água sanitária.Talvez fosse por isso que ele e minha mãe não tinham dado certo. Ela eraincrivelmentebagunceira.Umavezencontreinamesadelaumpotedemacarrãotãovelhoquetinhaficadoazul.Azul.
Fechei a cortina do box, mas não tinha a menor ideia do que fazer emseguida.Ochuveiroerapequenoepareciafrágil,esobelehaviaduastorneirascomasletrasCeF.
—Calorefrio?Congelanteefervente?EuligueioFedeixeiaáguajorrarporalgunsinstantes,masquandocoloquei
amãosobojato,estavagelada.Ok.TalvezoC?Exatamente o mesmo resultado, ou meio grau mais quente. Soltei um
gemido. Será que aquele probleminha com a tecnologia aqui na Itália incluíachuveirosgélidos?Equeescolhaeutinha?Depoisdeviajarumdiainteiroedefazer um dos treinos de velocidademais difíceis daminha vida, euprecisava
muitotomarumbanho.—QuandoemRoma...—Trinqueiosdenteseentrei.—Frio!Frio!Ahh!Pegueiumfrascodealgumacoisanabordadabanheiraeesfregueinocabelo
enocorpo,enxaguandoesaindodeláomaisdepressapossível.Depoispegueiapilhainteiradetoalhasecomeceiameenrolarcomoumamúmia.
Bateramàportaeeucongelei.Denovo.—Quemé?—Soueu,Sonia.Vocêestá...bemaídentro?Fizumacareta.—Hum, estou. Só tive uns problemas com a água. Não tem água quente
aqui?—Tem,sóquedemoraumpouco.Naminhacasa,àsvezesprecisodeixaro
chuveiroligadoporunsbonsdezminutosantesdeficarnumatemperaturaboa.Csignifica“caldo”,ouseja,“quente”.
Balanceiacabeça.—Bomsaber.—Olhe,desculpeincomodá-ladenovo,maseusóqueriadizerquedeixeio
diárionasuacama.Fiqueiparalisada.Odiário?Espera,eudevia terouvidomal.Talvezela só
tivesse dito “o aquário”. Um aquário seria um presentemuito gentil. E se eufossedarumaquárioparaalguém,semdúvidaocolocariana...
—Lina...Estámeouvindo?Eutrouxeodiárioque...—Sóumminuto—gritei.Tudo bem, ela claramente dissera “diário”, mas não significava que era
algumdiárioemespecial.Aspessoasdãodiáriosparaasoutrasotempotodo.Eumeenxugueiemevestidepressa.Quandoabriaporta,Soniaestavanocorredorsegurandoumvasocomflores.
—Vocêmedeuumdiárionovo?—perguntei,esperançosa.—Bem,naverdadeévelho.Éumcadernoquepertenciaasuamãe.Eumeapoieinobatentedaporta.— Está falando de um caderno grande de couro cheio de fotos e coisas
escritas?—Sim.Exatamenteele.—Elafranziuatesta.—Vocêjáviuantes?Ignoreiapergunta.—Acheiquevocêsóiamedarumadasfotosdelaoucoisadotipo.—Naverdade,eutenhoumafoto,masestápenduradanaparededoquarto
de hóspedes e não quero me desfazer dela. É um close do Muro dosdesaparecidos.Élinda.Vocêdeveriapassarláparaver.
Aoqueparecia,oMurodosdesaparecidoseramuitoimportanteporali.
—Porquevocêficoucomumdosdiáriosdela?Minha pergunta soou como um interrogatório policial, mas ela apenas
assentiu.—Elaoenviouparaocemitérioemsetembro.Nãohavianenhumbilhete,eo
pacotenãoestavaendereçadoaninguém,masquandooabri,reconhecinahora.Quandomoravanocemitério,elalevavaaquelediárioparatodocanto.Moravanocemitério?—Enfim,penseiementregarparao seupai,mas suamãesempre foiuma
espéciedetabu.Semprequeeutocavanonomedela,eleficava...—Oquê?Elasuspirou.—Foidifícilparaelequandoelafoiembora.Muitodifícil.Emesmodepois
detodosessesanos,eutivemedodetrazeroassuntoàtona.Enfim,enroleiporuns dias e depois seu paime contou o plano de você vir para cá. Foi quandoentendiporquesuamãetinhaenviadoodiário.
Ela me lançou um olhar esquisito e de repente percebi que tinha meaproximado lentamente.Estávamosa apenasquinzecentímetrosumadaoutra.Ops.Recueiàspressas,eperguntascomeçaramasairdaminhaboca.
—Minhamãemorounocemitério?Porquantotempo?—Nãomuito.Achoqueporummêsmaisoumenos.Foilogodepoisqueseu
paiarrumouoemprego.Elemaltinhasemudadoparaestacasa.—Entãoelesestavam,tipo,juntospravaler?Nãofoiumlancedeumanoite
entreamigosoucoisadotipo?—EssaeraateoriadaAddie.Soniaestremeceu.—Humm...não.Achoquenãofoi...isso.Elespareciammuitoapaixonados.
Seupaiaadorava.—Entãoporqueelafoiembora?Porqueestavagrávida?Howardnãoestava
prontopraserpai?—Não. Howard teria sido um ótimo pai... Eu achava...— Ela ergueu as
mãos.—Espereumminuto.Nãoconversaramcomvocêsobreoqueaconteceu?Suamãenãocontou?
Eubaixeiacabeça.—Nãoseidenada.SósoubequeHowarderameupaidepoisqueminhamãe
morreu.Que ótimo. Agora eu ia chorar. Perder minha mãe tinha me transformado
numatorneirahumana.Dotipocomumcomquente/frio.—Ah,Lina.Eunãosabia.Sintomuito.Acheiquetivessemconversadocom
você sobre o que aconteceu. Para ser sincera, nem eu sei o que deu errado.Parecequeo relacionamentodeles terminoumuitode repente e seupai nunca
maisquisfalarsobreoassunto.—Elejátinhafaladodemim?Antes?Elabalançouacabeçaeseuslongosbrincospendentesoscilaramdeumlado
paraoutro.— Não. Eu fiquei muito surpresa quando soube da sua vinda, mas você
precisa mesmo falar com Howard. Tenho certeza de que ele vai responder atodasassuasperguntas.Etalvezodiáriotambémresponda.—Elameentregouum vaso de flores. — Fui à cidade hoje de manhã e seu pai pediu que eucomprasseistoparavocê.Eledissequeestavamfaltandofloresnoseuquarto,equevioletaseramaspreferidasdasuamãe.
Euopegueidasmãosdelaeoavalieicomatenção.Asfloreserambemroxase exalavam um cheiro suave. Eu tinha noventa por cento de certeza de queminhamãenãosentianadadeespecialporvioletas.
—Preferequeeufiquecomodiárioporumtempo?Peloqueparece,émuitainformaçãodeumavezparavocêassimilar.Talvezvocêdevesseconversarcomseupaiantes.
Eubalanceiacabeça.Aprincípiodevagar,edepoiscommaisímpeto.—Não,queroficarcomodiário.Tecnicamente,eramentira.Eutinhaencaixotadoosoutrosdiáriosdaminha
mãe havia meses, quando vi que não conseguiria ler aquilo tudo semdesmoronar,masaqueleeutinhaqueler.Minhamãeoenviaraparamim.
Pisquei algumasvezes,depois abrimeu sorrisode“está tudo sobcontrole”para Sonia, queme olhava com a expressão de uma pobre coitada presa numcorredorcomumaadolescenteemocionalmente instável.Eeraexatamente issoqueestavaacontecendo.
Eupigarreei.—Vaiserlegal.SaberoqueelafezenquantoestevenaItália.AexpressãodaSoniaseamenizou.—Sim,poisé.Tenhocertezadequefoiporissoqueelaoenviou.Vocêvai
vivenciarFlorençaexatamentecomoela,etalvezsejaumabelaconexão.—É,talvez.Seeuconseguissepassardaprimeirapáginasemdesmoronar.—Lina,émaravilhoso tervocêaqui.Epassenaminhacasaquandoquiser
paraverafotodasuamãe.—Elafoiatéopatamardaescadaeolhouparatrás.—Asvioletasdevemestarprecisandodeumpoucodeágua,masavisoqueémelhorregarporbaixo.Ésóencherumpratodeáguaecolocarovasodentro.Assimvocênãoexagera.
—Obrigada,Sonia.Eeu,humm...Desculpaportodasaquelasperguntas.—Euentendo.Euadoravasuamãe.Elaeramuitoespecial.
—É.Eramesmo.—Hesitei.—Vocêseimportariadenãomencionaressaconversa proHoward?Não quero que ele pense que estou... humm... zangadacomeleoucoisaassim.Nem quero instigar qualquer conversa constrangedora que não seja
estritamentenecessária.Elaassentiu.—Minhabocaéumtúmulo.SóprometaquevaiconversarcomHoward.Ele
éumcaraótimo,etenhocertezadequevaiesclarecerqualquerdúvidaquevocêtiver.
—Ok.Desvieioolharehouvelongossegundosdesilêncio.—Tenhaumbom-dia,Lina.Eladesceuaescadaesaiupelaportadafrente,masfiqueialiparadaolhando
para aportadoquarto.Estavaquasepiscandocomoumaadvertência: horadeentrarempânico.É apenas um dos diários dela. Você consegue. Você consegue. Enfim,
comecei a atravessar o corredor, mas no último instante me desviei para aescada,tombandoperigosamenteovasocomasvioletas.
Segundo Sonia, as flores estavam sedentas. Eu tinha que cuidar delasprimeiro.Desciaescadacorrendo,depoisolheiduasvezesosarmáriosantesdeencontrarumpratorasoegrandeosuficienteparaovaso.
—Pronto,meninas.Enchi o prato com dois centímetros de água da pia (F) e coloquei o vaso
sobreele.Minhasvioletasnãopareciammuito interessadasem ter companhia,masmesenteiàmesadacozinhaefiqueiolhandoparaelasassimmesmo.
Eunãoestavaenrolando.Imagina.
Capítulo5
ESCREVERDIÁRIOSERAmeioqueumhábitodaminhamãe.Bem,muitascoisas erammeio que umhábito dela, que tambémgostava de hot yoga, foodtruckserealityshowshorríveis,ecertavezdesenvolveuuminteresserepentinopor fazer cosméticos em casa. Passamos basicamente um mês inteiro com orostolambuzadodeóleodecocoepurêdeabacate.
Mas os diários... eram uma constante. Algumas vezes por ano ela gastavauma grana na nossa livraria preferida no centro de Seattle com um daquelescadernosgrossosparadesenho.Depois,passavamesespreenchendo-ocomsuavida: fotos, textos, listas de compras, ideias para sessões de fotos, sachês deketchupvelhos...tudooquevocêpudesseimaginar.
E o estranho era o seguinte: ela deixava outras pessoas lerem. E maisestranho ainda era que todos adoravam. Talvez porque os diários fossemcriativosehilários,edepoisqueseliaum,apessoasentiaquetinhaacabadodefazerumaviagempeloPaísdasMaravilhas.
Fuiparaoquartoefiqueiparadaaopédacama.Soniadeixaraodiáriobemno meio do travesseiro, como se temesse que eu não fosse percebê-lo, e eleafundavaocolchãocomosefosseumapilhadetijolos.
—Pronta?—falei,emvozalta.Eu não estava nada pronta, mas mesmo assim me aproximei e segurei o
caderno.Acapaeradecouromacio,ehaviaumagrandeflor-de-lisdouradanocentro.Nãoparecianemumpoucocomosdiáriosquetínhamosemcasa.
Respirei fundo e o abri, meio que esperando uma chuva de confetes, masapenaspanfletosecanhotosdetíquetescaíramnochão,esentiumcheiromeiobolorento.Catei todosospapéisecomeceiafolheá-lo, ignorandootextoemeconcentrandonasfotos.
Lá estava minha mãe na entrada de uma igreja antiga com a câmerapendurada no ombro. E depois ela sorrindo diante de uma enorme tigela demacarrão.Eentão...Howard.Euquasedeixeiodiáriocair.Certo,claroqueeleestarianodiáriodela.Eunãotinhasurgidodonada,masmesmoassim.Minhamenteresistiacomtodasasforçasapensarnosdoisjuntos.
Analiseiaimagem.Sim,semdúvidaeraele.Maisjovem,comocabelomaislongo(aquilonobraçoeraumatatuagem?),massemdúvidaeraHoward.Eleeminhamãeestavamsentadosemdegrausdepedra,eelaestavadecabelocurto,
batomestilofilmeantigoecaradeapaixonada.Euafundeina cama.Porque elamesmanão tinhamecontado suahistória
comHoward?Seráqueachouqueodiáriofariaissomelhor?Tevemedodequeeunãoestivesseprontaparaouvir?
Hesiteiporuminstante,depoisenfieiodiárionagavetadocriado-mudoeafecheicomumbaquealto.Bem,eunãoestavapronta.
Aindanão.
***
Oalarmedeumcarrodisparouemalgumlugardocemitério,eosomreverberounaminhacabeça.EstadordecabeçaéumoferecimentodeJetLag&Estresse.Obrigada,Itália.
Eumevireieolheiparaorelógionaparede.Eramtrêsda tarde.Oquemedeixavacomumaquantidadeabsurdadetempolivre.
Saí da cama devagar, fui até a mala e fiz uma tentativa desanimada deorganizar as coisas: camisas do lado direito, calças do lado esquerdo, pijamasali...Eu tinha colocadoas roupas ali dentrodequalquer jeito, e amala estavaumabagunça.Porfim,decidicolocaralgumasfotosminhascomminhamãenosporta-retratosvaziosdoquarto,depoisamarreiostênisefuiparaavaranda.
Nãosabiaaonde ir,entãomesenteinobalanço,ondefiqueiporumtempo.Dali eu tinha uma boa vista domemorial.Umprédio longo e baixo, com umtrecho de inscrições gravadas que eu podia apostar que era o Muro dosdesaparecidos.Nafrentedele,haviaumacolunaaltacomaestátuadeumanjosegurandoumabraçadadegalhosdeoliveira.Doishomenstiravamfotosdiantedela,eumdelesacenouparamimaomever.
Acenei também,masme levantei e fui até a cerca dos fundos.Não estavadispostaalidarcomoutrasituaçãocomoadosJorgansen.
Foifácilencontraroportãodosfundose,quandosaí,percebiqueSonianãoestava brincando: a colina atrás do cemitério era íngreme. Pela segunda veznaquele dia, o suor escorreu pelas minhas costas, mas me forcei a continuarcorrendo.Euvouconquistarvocê,colina.Finalmente,chegueiaotopo,comaspernaseospulmõesardendo.Estavaquasedesmaiandoquandoouviumbarulhoelevanteiorosto.Eunãoestavasozinha.
Havia um garoto brincando com uma bola de futebol. Tinhaminha idade,talvez um poucomais velho, e devia fazer uns três meses que não cortava ocabelo. Ele usava um short e uma camiseta de uniforme de futebol e faziaembaixadinhas,cantandobaixoemitalianooquequerqueestivessetocandoem
seus fones de ouvido. Hesitei. Será que conseguiria sair dali sem que elemevisse?Talvezseeudesseumacambalhotaefugisserolando?
Eleolhounaminhadireçãoenosencaramos.Quemaravilha.Agoraeuteriaque seguir em frente ou ficar parecendo uma maluca. Assenti para ele econtinueidepressapela trilha, comoseestivesseatrasadaparauma reuniãooucoisadotipo.Totalmentenatural.Deviaserbemnormalpessoascorrendoparacompromissosimportantesnotopodecolinasitalianas.
Eletirouosfones,deixandoescaparamúsicaalta.—Oi,vocêestáperdida?OalbergueBellaVitaficalogoàfrente.Euparei.—Vocêfalainglês?—Sóumpouquinho—respondeuele,comumsotaqueitalianoexagerado.—Vocêéamericano?—Maisoumenos.Euoavaliei.Elefalavacomoamericano,maspareciatãoitalianoquantoum
pratodealmôndegas.Alturamediana,pelemorenaeumnarizcaracterístico.Oque fazia ali?Mas, pensandobem,oqueeu fazia ali?Atéondepudenotar, aregiãoruraldaToscanaestavalotadadeadolescentesamericanos.
Elecruzouosbraçosefranziuatesta.Estavameimitando.Quegrosseria.Fiqueisemgraça.—Comoassim“maisoumenosamericano”?—Minhamãe é americana,mas eumorei aqui amaior parte da vida. De
ondevocêé?—Seattle,masvoupassaroverãoaqui.—Émesmo?Onde?Aponteinadireçãodacasa.—Nocemitério?—É.Howard,meupai,éoadministrador.Acabeidechegar.Eleergueuumadassobrancelhas.—Quesinistro.— Na verdade, não é. É mais um memorial. Todos os túmulos são da
Segunda Guerra, então não acontece nenhum enterro. — Por que eu estavadefendendoocemitério?Aquelelugarerasinistro,sim.
Ogarotoassentiuerecolocouosfonesnosouvidos.Eraminhadeixa.—Foiumprazerconhecê-lo, ítalo-americanomisterioso.Agentesevêpor
aí.—MeunomeéLorenzo.Fiqueivermelha.Peloqueparecia,Lorenzotinhaumaaudiçãosupersônica.
—Foi umprazer conhecê-lo,Lo-ren...—Tentei repetir o nomedele,masempaqueinasegundasílaba.EleenrolaraoRdeumjeitoqueminhalínguaserecusavaafazer.—Desculpa,nãoconsigopronunciardireito.
—Nãotemproblema.Sejacomofor,mechamamde“Ren”.—Elesorriu.—“Ítalo-americanomisterioso”tambémfunciona.Aii.—Desculpa.—Equantoavocê?Atendepor“Carolina”outambémtemumapelido?Por um segundo achei que fosse um sonho.Um sonho estranho.Ninguém
alémdaminhamãeedosmeusprofessoresnoprimeirodiadeaulamechamavapelomeunomecompleto.
—Comovocêsabemeunome?—perguntei,devagar.Quemeraaquelecara?—EuestudonaEAIF.Seupaiapareceuláparaperguntarsobrematrículas.
Asfofocasvoam.—OqueéEAIF?—AEscolaAmericanaInternacionaldeFlorença.Solteioar.—Ah,sim.Aescoladeensinomédio.Aescolaqueeuteoricamentefrequentariasedecidisseficardepoisdoverão.
Muitoteoricamente.Comosenemexistissenoâmbitodaspossibilidades.—Na verdade, vai do jardim de infância até o ensinomédio, e as nossas
turmas são bem pequenas. No ano passado éramos apenas dezoito, por issonovos alunos dão o que falar. A gente vem comentando sobre você desdejaneiro.Viroumeioqueumalenda.Umcara,Marco,atéjáfalouquevaiformarduplacomvocênaauladebiologia.Elerepetiunoprojetofinaleficoutentandoculparvocê.
—Issoébemesquisito.—Euacheiquevocêseriacompletamentediferente.—Porquê?—Vocêébembaixinha.Epareceitaliana.—Entãocomosoubequedeviafalaringlêscomigo?—Porcausadassuasroupas.Olheiparabaixo.Leggingeumacamisetaamarela.Eunãoestavavestidade
EstátuadaLiberdadenemnadadotipo.—Oqueminharoupatemdetãoamericano?—Coresfortes.Tênisdecorrida...—Elefezumgestodedesdém.—Daqui
aumoudoismesesvocêvaientenderperfeitamente.MuitagentedaquinãovaialugarnenhumsenãoestiverusandoalgumapeçadaGucci.
—MasvocênãoestáusandoGucciouseiláoquê,nãoé?Estádeuniformedefutebol.
Elebalançouacabeça.—Issonãoseaplicaauniformesdefutebol,quesãoacoisamaisitalianaque
existe. Além disso, eu sou italiano. Então tudo fica naturalmente elegante emmim.
Eunãosabiaseeleestavabrincandoounão.—VocênãodeveriaterentradonaEAIFemfevereiro?—DeciditerminaroanoletivoemSeattle.Eletirouocelulardobolsodetrás.—Possotirarumafotosua?—Praquê?—Praprovarquevocêexiste.Respondi“não”justonahoraemqueeleclicou.—Desculpa,Carolina—disseele,parecendonemumpoucoarrependido.—
Vocêdeveriafalarmaisalto.—Eminglêsmeunomesoacomo“Carolaina”,mastodomundomechama
de“Lina”.—CarolainaCarolina.Gostei.Ébemitaliano.Renrecolocouosfones, lançouabolanoarevoltoua jogar.Eleprecisava
muitode aulasde etiqueta.Eumevireipara ir embora,maselemedetevedenovo.
—Ei,querconhecerminhamãe?Elaficadesesperadaquerendoacompanhiadeamericanos.
—Não,obrigada.PrecisovoltarlogoeencontrarHoward.ElevaimelevarparajantaremFlorença.
—Aquehoras?—Nãosei.— A maioria dos restaurantes não abre antes das sete. Prometo que não
vamosdemorarmuito.Eumevireiparaocemitério,masa ideiadeencararHowardeodiáriome
fezestremecer.—Élonge?—Não,ébemali.—Eleapontouvagamenteparaumamontoadodeárvores.
—Vaiserlegal.Ejuroquenãosouumserialkiller.Fizumacareta.—Eunãoestavaachandonadadisso.Atévocêfalar.—Soumagrodemaisparaserumserialkiller.Eodeiosangue.—Eca.
Voltei a olhar para o cemitério, avaliando minhas opções. Ler um diárioemocionalmente desafiador?Visitar amãe de umpotencial serial killer semomenortraquejosocial?Asduaseramhorríveis.
—Tudobem,vamos.—Legal.Rencolocouaboladefuteboldebaixodobraçoefomosparaooutroladoda
colina.Eleeramaisaltoqueeu,eandávamosrápido.—Quandofoimesmoquevocêchegou?—Ontemànoite.—Entãodeveestarquasemorrendocomojetlag,nãoé?—Na verdade, eu dormi bemontem,mas, sim. Parece que estou embaixo
d’água.Semfalarnadordecabeça,quedeveserapiordaminhavida.—Esperasóatéhojeànoite.Asegundanoiteésemprepior.Lápelastrêsda
manhã você vai estar totalmente acordada e vai ter que inventar alguma coisaestranhaprafazer.Umavez,eusubinumaárvore.
—Porquê?—Meulaptopestavaquebradoeeusóconseguiapensaremjogarpaciência,
massouhorrívelnessejogo.—Eujogopaciênciamuitobem.—Eusuboemárvoresmuitobem,masnãoacreditoemvocê.Sóébomem
paciênciaquemrouba.—Não,eusouboasemroubar.Aspessoaspararamdejogarcartascomigo
quando eu estava no segundo ano, então aprendi a jogar paciência. Num diabom,consigoterminarojogoemunsseisminutos.
—Porqueaspessoaspararamdejogarcomvocê?—Porqueeusempreganhava.Eleparoudeandar,abrindoumgrandesorriso.—Querdizerquevocêémuitocompetitiva?—Eunãofaleiisso.Sódissequesempreganho.—Aham.Entãovocênãojoganadadesdeosseteanos?—SóPaciência.—Nadadeburaco?Uno?Pôquer?—Nada.—Interessante.Olha,aquelaláéminhacasa.Apostocorridacomvocêatéo
portão.—Ecomeçouacorrer.—Ei!—Saíatrásdele,aumentandoopassoatéalcançá-loeultrapassá-lo,e
não diminuí a velocidade até chegar ao portão. Eu me virei, triunfante. —Ganhei!
Eleestavaparadoaalgunsmetrosdemim,aindacomaquelesorrisoidiotano
rosto.—Éverdade.Vocênãoénemumpoucocompetitiva.Fecheiacara.—Calaaboca.—Devíamosjogarburacomaistarde.—Não.—Mahjong?Bridge?—Vocêéidoso,poracaso?Eleriu.—Podepensaroquequiser,Carolina.E,por falarnisso,essanãoéminha
casa. É aquela.— Ele apontou para uma entrada ao longe.—Mas não vouapostarcorridaatélá.Vocêestácerta...vocêganharia.
—Euavisei.Continuamosandando.Sóqueagoraeusómesentiaidiota.— Então, qual é a do seu pai? — perguntou Ren. — Ele sempre foi o
administradordocemitério,né?—Aham,eledissequefazdezesseteanos.Minhamãemorreu,entãofoipor
issoquevimmorarcomele.—Ah!Mentalmente,tapeiabocacomamão.Lina,para de falar. Mencionar a morte da minha mãe era garantia de criarconstrangimento com gente da minha idade. Adultos sentiam compaixão.Adolescentesficavamdesconfortáveis.
Eleolhouparamimcomocabelocaindonosolhos.—Comosuamãemorreu?—Câncernopâncreas.—Elapassoumuitotempodoente?—Não.Morreuquatromesesdepoisquedescobrimos.—Nossa.Sintomuito.—Obrigada.FicamosquietosporumtempoantesdeRenvoltarafalar.—Achoessediálogotãoestranho.Umdiz“sintomuito”,ooutroagradece.Eujátinhapensadoexatamenteamesmacoisaumascemvezes.—Tambémacho,maséoqueaspessoascostumamdizermesmo,jápercebi.—Então,comoé?—Oquê?—Perderamãe.Parei de andar. Não só era a primeira vez que alguém me fazia aquela
pergunta,comotambémpareciaqueelequeriamesmosaber.Porumsegundo,penseiemdizerqueeracomoserumailha,queeupodiaestarnumasalacheiadegenteeaindaassimmesentiriasozinha,comumoceanodetristezatentando
chegaratémimportodasasdireções,masmesegureiatempo.Mesmoquandoperguntam,aspessoasnãoqueremouvir suasmetáforasesquisitasparao luto.Então,deideombros.
—Éhorrível.—Imagino.Sintomuito.—Obrigada.—Sorri.—Ei,olhaodiálogodenovo.—Sintomuito.—Obrigada.Paramosdiantedeportõesrebuscados,eeuoajudeiaempurrá-los,causando
umrangidoalto.—Vocênãoestavabrincando.Suacasaémuitopertodocemitério—falei.— Eu sei. Sempre achei estranho morar tão perto de cemitério. Mas aí
conheciumapessoaquemoradentrodocemitério.— Eu não podia deixar você ganhar. Faz parte da minha natureza
competitiva.Eleriu.—Vem.Subimos pela entrada estreita ladeada de árvores, e quando chegamos ao
topo,eleestendeuosbraços.—Ta-dá.Casamia.Pareideandar.—Vocêmoraaqui?Elebalançouacabeçacomtristeza.—Infelizmente.Poderir.Nãovoumeofender.—Nãovourir.Atéqueé...interessante.—Masaísolteiumleveroncoeo
olharqueRenmelançoumandouminhacomposturapelosares.—Vaiemfrente.Podesesoltar,masaspessoasquemoramemcemitérios
nãodeveriamatirarpedras,ousejaláqualforoditado.Enfimconseguipararderirportemposuficientepararecuperarofôlego.—Desculpa.Eunãodeveriaestarrindo.Équenãoesperava.Voltamosaolharacasa, eRensoltouumsuspirocansadoenquantoeume
esforçavaparanãosergrosseiraoutravez.Demanhã,euachavaquemoravanolugar mais estranho possível, mas algumas horas depois conheci alguém quemorava numa casa de biscoito de gengibre. E não estou falando de uma casalevemente inspirada numa casa de biscoito de gengibre: parecia que a gentepodiaquebraralgumastelhasemergulharnumcopodeleite.Olugartinhadoisandares com parede de pedra e um telhado de palha com detalhes intricadoscomo confeito de glacê.O quintal era cheio de flores em tons pastel, e haviapequenoslimoeirosplantadosemvasosazul-cobaltoaoredordacasa.Amaioria
dasjanelasdotérreoeradevidrocoloridocomdesenhosespiraladosdebalasdehortelã,ehaviaumabengaladocegigantescaentalhadanaportadafrente.Emoutraspalavras,imagineacasamaisridículaquepuderedepoisacrescenteummontedepirulitosàfachada.
—Qualéahistóriadessacasa?Renbalançouacabeçadenovo.—Sempretemumahistória,nãoémesmo?Umcaraexcêntricodointeriorde
NovaYorkconstruiuissoaquidepoisdefazerfortunacomareceitadefudgedaavó.EleseautointitulavaoBarãodosDoces.
—Entãoocaraconstruiuumacasadebiscoitoemtamanhoreal?—Issomesmo.Foiumpresentepranovaesposa.Achoqueelaeraunstrinta
anosmaisnovadoqueele,masacabouseapaixonandoporoutro,umcaraqueconheceunum festivalda trufa emPiemonte.Depoisque foi abandonadopelamulher, o Barão vendeu a casa. Por acaso, meus pais estavam procurando, eclaroqueumacasadedoceséexatamenteotipodeesquisiticequeconquistariaosdois.
—Vocêstiveramqueexpulsaralgumabruxacanibaldaqui?Elemeolhouconfuso.—Sabe...abruxadeJoãoeMaria.—Ah.—Eleriu.—Não,elaaindanosvisitanosferiadosmaisimportantes.
Vocêestáfalandodaminhaavó,nãoé?—Voucontaraelaquevocêdisseisso.—Boa sorte. Ela não entende uma palavra de inglês. E toda vez que vem
visitar,convenientementeminhamãeesquececomosefalaitaliano.—Deondesuamãeé?—DoTexas.SemprepassamosoverãonosEstadosUnidoscoma família
dela,masesteanomeupaiestavaenroladonotrabalho.—Entãoéporissoquevocêtemessesotaquetãoamericano?—É.Todoverãofinjoquesoudelá.—Edácerto?Elesorriu.—Emgeral,sim.Vocêachouqueeufosseamericano,nãoé?—Sódepoisquevocêcomeçouafalar.—Maséissoqueconta,nãoéverdade?—Achoquesim.Elemelevouatéaportadafrente,enósentramos.—Bem-vindaàVillaCaramella.“Caramella”significa“doce”.—Nossa...livros.Ointerioreraopiorpesadelodeumbibliotecário.Asalainteiraeracoberta
de estantes que iam do chão ao teto, e centenas (talvez milhares) de livrosestavambagunçadosnasprateleiras.
—Meuspaisadoram ler—explicouRen.—E,alémdisso,queremosnospreparar pro caso de um dia haver uma revolta dos robôs e precisarmos nosesconder.Muitoslivrossignificammuitopapelpraqueimarnafogueira.
—Inteligente.—Vemcomigo,eladeveestarnoestúdio.Atravessamosaspilhasde livrosepassamosporumaportaduplaquedava
para um jardim de inverno.O chão estava coberto de lona e havia umamesaantigacheiadetubosdetintaeladrilhosdecerâmica.
—Mãe?UmaversãofemininadoRenencolhia-senumaespreguiçadeiracomocabelo
sujodetintaamarela.Elapareciaterunsvinteanos.Talveztrinta.—Mãe.—Renseabaixouesacudiuoombrodela.—Mamma.Elatemum
sono meio pesado, mas olha... — Aproximando-se do rosto da mãe, elesussurrou:—EuacabeideveroBonoemTavarnuzze.
Osolhosdelaseabrirameamulherdeuumpulo.Rencomeçouarir.—LorenzoFerrara!Nãofaçaisso.—Carolina, esta éminhamãe,Odette. Ela era groupie doU2. Passou um
tempãoseguindoabandanocomeçodosanos1990duranteaturnêpelaEuropa.Estánacaraqueaindasenteumacoisamuitoforteporeles.
—Voumostrarumacoisa forte.—Elapegouseusóculoseoscolocounorosto,olhando-medecimaabaixo.—Ah,Lorenzo,ondevocêaencontrou?
—Acabamosdenosconhecernacolinaatrásdocemitério.Elevaipassaroverãolácomopai.
—Vocêéumadenós!—Americana?—Expatriada.“Refém”eraapalavraquedescreviamelhor,masnãoeraotipodecoisaque
sedizaalguémqueacabamosdeconhecer.—Esperaumminuto.—Elaseinclinouparaafrente.—Eusoubequevocê
estavavindo.VocêéafilhadoHowardMercer?—Sim.Lina.—OnomedelaéCarolina—acrescentouRen.—PodemechamarsódeLina.—Bem,graçasaDeus,Lina...Precisamosdemaisamericanosporaqui.De
preferência, vivos — disse ela, fazendo um gesto de desdém na direção docemitério.—Éumprazerconhecê-la.Jáaprendeualgumacoisadeitaliano?
—Eudecoreiumascincofrasesnovooparacá.
—Quais?—perguntouRen.—Nãovoudizernafrentedevocês.Provavelmentevoupareceridiota.Eledeudeombros.—Chepeccato.Odettefezumacareta.—Prometaquenuncavaiusarnenhumadessas frases aqui emcasa.Neste
verão,estoufingindonãoestarnaItália.Rensorriu.—Ecomoestásesaindo?Sabe,comseumaridoeseusfilhositalianos?—
perguntou,zombando.Elaignorouagracinhadofilho.—Voupegaralgumacoisaparabeber.Fiquemàvontade.—AmãedoRen
apertoumeuombroesaiudasala.Elemeolhou.—Eufaleiqueelaficariafelizdeconhecervocê.—ElarealmentedetestaaItália?—Dejeitonenhum.Elaestázangadaporquenãopudemospassaresteverão
noTexas,mas todoanoéamesmacoisa.Vamospra láeelapassa trêsmesesreclamandodacomidahorríveledaspessoasqueandamdepijamaempúblico.
—Quemusapijamaempúblico?—Muitagente.Podeacreditaremmim.Éumaepidemia.Euaponteiparaamesa.—Elaéartista?— É. Pinta cerâmica, basicamente cenas da Toscana. Tem um cara em
Florençaquevendeaspeçasna lojadele,eos turistaspagam, tipo, trilhõesdedólaresporelas.Provavelmenteteriamumataquehistéricosedescobrissemquesãofeitasporumaamericana.
Elemedeuumladrilhocomapinturadeumchaléamareloaninhadoentreduascolinas.
—Quelindo.—Vocêdeveriaverosegundoandar.Minhamãeestásubstituindoladrilhos
comunsdeumaparedeinteirapelosdela.Eucoloqueioladrilhodevoltanamesa.—Evocê,temalgumtalento?—Eu?Não.Naverdade,não.—Nemeu,masminhamãetambémeraartista.Fotógrafa.—Legal.Tiravaretratosdefamíliaoucoisasassim?—Não.Basicamente fotografias artísticas.O trabalho dela era exibido em
galeriasevernissages.Elatambémdavaaulasemfaculdades.
—Legal.Qualeraonomedela?—HadleyEmerson.OdettereapareceucomduaslatasdeFantalaranjaeumaembalagemaberta
decookies.—Aqui, pegue um pouco. Ren come um pacote desses por dia. Você vai
adorar.Aceiteium.Eraumaespéciedesanduíchedebiscoitocombaunilhadeum
lado e chocolate dooutro.UmOreo italiano.Dei umamordida e umcoral deanjoscomeçouacantar.Seráqueacomidaitalianatinhaalgumtemperodefadasqueadeixavamuitomelhordoquequalquercoisafeitapelosamericanos?
—Ofereceoutro—disseRen.—Senãoelavaicomeroprópriobraço.— Ei...— falei, mas Odette me entregou o restante dos cookies e acabei
ocupadademaisdevorandotudoparamedefenderdireito.Elasorriu.—Adorogarotasquegostamdecomer.Bem,ondeestávamos?Ah...Eunão
me apresentei, não é? Sinceramente, este lugar está me transformando numaselvagem.Meu nome é Odette Ferrara. É como “Ferrari”, mas com a. É umprazerconhecê-la.—Limpeiamãoantesdecumprimentá-la.—Podemosfalarde ar-condicionado? E restaurantes drive-thru? São as duas coisas das quaisestousentindomaisfaltanesteverão.
— Você nem deixa a gente comer essas porcarias quando estamos nosEstadosUnidos—retrucouRen.
—Issonãoquerdizerqueeunãocoma.Edeque ladovocêestáafinaldecontas?DomeuoudoSignore?
—Semcomentários.—QueméSignore?—perguntei.—Meupai.Nãoseicomoessesdoisacabaramjuntos.Sabeaquelesvídeos
de relacionamentos estranhos entre animais, em que um urso e um pato setornammelhoresamigos?Poisé,elessãomaisoumenosassim.
Odettesoltouumarisada.— Ah, por favor, não somos tão diferentes assim. Mas agora eu fiquei
curiosa.Nessecenário,vocêmeconsiderariaoursoouopato?—Nãovouentrarnessa.Elasevirouparamim.—Então,oquevocêachoudomeuRen?ComimaisumeentregueiorestantedoscookiesaRen,queestavacomum
olharde“meuprecioso”.—Eleé...muitosimpático.—Ebonitotambém,nãoé?
—Mãe.Sentiminhasbochechascoraremumpouco.Renera fofo,masdeum jeito
quenão senota aprincípio.Ele tinhaolhoscastanhosbemescuroscomcíliosincrivelmentelongos,equandosorriaerapossívelverumpequenovãoentreosdentes da frente. Mas, enfim, aquilo também não era o tipo de coisa que sedissesseaalguémqueacabamosdeconhecer.
Odetteacenouparamim.—Bem,estamosmuitofelizesportê-lanacidade.TenhocertezadequeRen
estavatendooverãomaisentediantedavidadele.Hojedemanhãfaleiqueeledeviasairmais.
—Qual é,mãe. Até parece que eu passo o dia inteiro em casa sem fazernada.
— Eu só sei que depois que certa ragazza saiu da cidade, você perdeu ointeressedesair.
—Eusaioquandotenhovontade.Miminãotemnadaavercomisso.—QueméMimi?—perguntei.—Umagarotadequemelegosta—respondeuOdette,numsussurrofingido.—Mããããe—resmungouRen.—Eunãotenhonoveanos.Umcelularcomeçouatocar,eOdettetiroupapéisemateriaisdeartedecima
damesa.—Ondeseráque...?Pronto?Umamenininha apareceu à porta com uma calcinha de babados e sapatos
pretosdefesta.—Eufizcocô!Odetteergueuospolegaresparaelaeentrounacasa,falandoaocelularnum
italianorápido.Rensoltouumgemido.—Ai,Gabriella...Quevergonha.Voltaprobanheiro.Temosvisita,nãoestá
vendo?Elaoignorouesevirouparamim.—Tuchisei?—Elanãofalaitaliano—disseRen.—Elaéamericana.—Anch’io!VocêénamoradadoLorenzo?—perguntouamenina.— Não. Saí pra fazer uma caminhada e acabamos de nos conhecer. Meu
nomeéLina.Elameavaliouporuminstante.—Você temcaradeprincipessa.PareceaRapunzelporcausadoseupelo
louco.—Écabelo,nãopelo,Gabriella—corrigiuRen.—Enãoélegaldizerqueo
cabelodealguémélouco.—Meupeloéloucomesmo.—Quervermeucriceto?—Gabriellaseaproximoucorrendoepegouminha
mão.—Venha,principessa.Vocêvaigostarmuitodele.Ocabelodeleémuitomacio.
—Claro.Rencolocouamãonoombrodela.—Carolina,não.E,Gabriella,elanãoquerir.Elaprecisairemboradaquia
pouco.—Eunãomeincomodo.Gostodecrianças.—Não,é sério,podeacreditaremmim. Iratéoquartodelaécomoentrar
numadobranotempo.Quandovocêmenosesperar,vaiterpassadocincohorasbrincandodeBarbieeestarásendochamadadeprincesaPurpurina.
—Nonèvero,Lorenzo.Vocêémuitomalvado!Ren respondeu em italiano.Gabriellame lançou um olharmagoado e saiu
correndoparaoquarto,batendoaportaaoentrar.—Oqueécriceto?— Acho que vocês chamam de hamster. Um bichinho irritante que corre
numaroda.—Éissomesmo.Hamster.Elaéfofa.—Elaéfofaàsvezes.Vocêtemirmãos?—Não,massempretrabalhavacomobabáparaumafamíliadomeuprédio.
Elestinhamtrigêmeosdecincoanos.—Nossa.— Sempre que a mãe deles saía, dizia: “É só mantê-los vivos. Não se
preocupecommaisnada.”—Entãovocêosamarravaoualgoassim?—Não.Naprimeiravezeu luteicomeles,masdepoiselespassaramame
amar.Alémdisso,eusemprechegavacomosbolsoscheiosdebalas.Nofuneraldaminhamãe,umdosgarotosperguntouporondeeuandavaeo
irmãodisse: “Amãedelavaidormirpormuito tempo.Épor issoqueelanãopodemais brincar comagente.”Senti umnónagarganta quandome lembreidisso.
—Precisoir.Howarddeveestarseperguntandoaondeeufui.—falei.—Sim,claro.—Voltamospelasala,eRenparounaporta.—Ei,querira
umafestaamanhã?—Humm...Desvieioolhar,depoismeabaixeidepressaparaamarrarmeuscadarços.Ésó
umafesta.Aquiloqueadolescentesnormaisfrequentam,sabe?Depoisdeperder
minha mãe, os eventos sociais tinham começado a parecer uma excursão aoMonte Everest. Além disso, eu andava falando muito sozinha nos últimostempos.
—VouterqueperguntarparaoHoward—falei,enfim,melevantando.—Tudobem.Possobuscarvocêdescooter.Lápelasoito?—Talvez.Euligosepuderir.—Estendiamãoparaamaçaneta.—Espera.Vocêprecisadomeunúmero.Ren pegou uma caneta numamesa ali perto, depois segurouminhamão e
escreveu seu número depressa. Seu hálito era quente, e quando ele terminou,segurouminhamãoporumsegundoamais.Ah.Elemeolhouesorriu.—Ciao,Carolina.Vejovocêamanhã.—Talvez.Saídacasaefuiemborasemolharpara trás.Tivemedodequeelevisseo
sorrisoradianteestampadonomeurosto.
Capítulo6
AQUELACOISADERensegurarminhamãomedeuumfriozinhonabarriga,mas bastaramdoisminutos no carro comHoward para tudovoltar ao normal.Eratudomuitoconstrangedor.
Eleestavacomgrandesmarcasdepentenocabelorecém-lavadoeusavaumacalça social e uma camisa melhorzinha. Eu não tinha recebido o memorandoparamevestirbem,porissocontinuavadecamisetaetênis.
—Pronta?—Pronta.—Bom,entãovamosparaFlorença.Apostoquevocêvaiadoraracidade.Ele colocouumCD (quemaindaouveCDs?) e “YouShookMeAllNight
Long”doAC/DCcomeçouatocarnocarro.Sabe,tipoatrilhasonoraoficialdo“Ignoreoprimeiropasseionadaàvontadeentrepaiefilha”.
SegundoHoward, a cidade ficava a apenasonzequilômetros,mas levamosmeia hora para chegar lá.A estrada estava lotada de scooters e automóveis, etodoprédio pelo qual passávamosparecia velho.Apesar do clima estranhonocarro, a animação dentro de mim começou a aumentar como vapor seacumulandonumapaneladepressão.Talvezascircunstânciasnãofossemideais,maseuestavaemFlorença.Queincrível!
Quandochegamosàcidade,Howardentrounumaruaestreitademãoúnicaeestacionoudojeitomaisimpressionantequeeujátinhavisto.Tipo,eleteriasidoum ótimo professor de direção se não gostasse tanto de administrar umcemitério.
—Desculpa pela viagem longa— disse ele.—O trânsito estava horrívelhoje.
—Nãoéculpasua.Eupraticamenteestavacomonarizgrudadona janela.Aruaeradepedras
quadradasentremeadasecomcalçadasestreitas.Prédiosaltosemtonspastelseespremiam, e todas as janelas tinham lindas venezianas verdes.Uma bicicletapassoucorrendonacalçada,praticamentearrancandooretrovisordocarro.
Howardolhouparamim.—Querirpelocaminhopitoresco?Verumpoucodacidade?—Quero!Tireiocintodesegurançaepuleidocarro.Aindafaziacalordoladofora,ea
cidadetinhaumlevefedordelixoquente,mastudoeratãointeressantequenãoviomenorproblema.Howardcomeçouaandarpelacalçadaeeuosegui.
Eu me sentia num filme italiano. A rua era cheia de lojas de roupas epequenos cafés e restaurantes, e as pessoas gritavam umas com as outras dasjanelasedoscarros.Quandochegamosmaisoumenosnametadedarua,umabuzina discreta tocou e todos abriram caminho para uma família inteiraamontoadanumascooter.Haviaatéumvaralcomroupaspenduradasentredoisprédios,comumvestidovermelhobalançandonomeio.Pareciaqueaqualquerinstanteumdiretoriaapareceregritar:“Corta!”
—Láestá.ViramosumaesquinaeHowardapontouparaumprédioaltonofimdarua.—Láestáoquê?—AqueleéoDuomo.AcatedraldeFlorença.Duomo.Pareciaanavemãe.Todomundoestavaentrandolá,equantomais
nos aproximávamos, mais devagar tínhamos que andar. Enfim, chegamos aocentro de umgrande espaço aberto e olhei para cima, vendo o enorme prédiomeioiluminadopelopôrdosol.
—Uau.Émesmo...Enorme? Lindo? Impressionante? Era tudo isso e muito mais. A catedral
ocupavaumaáreaequivalenteaváriosquarteirões,easparedeseramcobertasdeentalhesdetalhadosemmármorecor-de-rosa,verdeebranco.Eracemvezesmaisbonita,impressionanteegrandiosadoquequalqueroutroprédioqueeujátinha visto. Além disso, eu nunca havia usado a palavra “grandiosa” na vida.Nuncapreciseiatéentão.
—Naverdade,onomedacatedraléSantaMariadelFiore,mastodomundoachamaapenasdeDuomo.
—Porcausadotetoabobadado?Umdosladosdoprédioeracobertoporumimensotelhadocircularlaranja-
avermelhado.— Não, mas boa sacada. “Duomo” significa “catedral”, mas como a
sonoridaderemeteà“domo”,muitagenteseconfunde.Elalevouquasecentoecinquenta anos para ser construída, e foi o maior domo do mundo até osurgimento da tecnologia moderna. Assim que eu tiver uma tarde livre,subiremosaotopo.
—O que é aquilo?—Apontei para um prédio octogonal, bemmenor, nafrentedoDuomo.
Tinha portas altas, douradas e com entalhes, e vários turistas tiravam fotosdiantedele.
—Obatistério.AquelasportassechamamPortõesdoParaísoesãoumadas
obrasdeartemais famosasdacidade.ForamfeitasporGhiberti,quedemorouvinte e sete anos para concluir o trabalho.Tambémvou levar você lá.—Eleapontouparaumarualogodepoisdobatistério.—Orestauranteébemali.
Atravesseiograndeespaçoaberto(apiazza,segundoHoward),eelesegurouaportadorestauranteparamim.Umhomemcomagravataenfiadanoavental,paradoatrásdeumabancada,olhouparanóseseempertigouumpouco.Howarderaunssessentacentímetrosmaisaltoqueele.
—Eestanoite,quantossão?—perguntouohomemnumavozanasalada.—Possiamoavereunatavolaperdue?Ohomemassentiuechamouumgarçomquepassava.—Buonasera—disseogarçom.—Buonasera.Possiamostaresedutivicinoallacucina?—Certo.Então,pelovisto,meupaifalavaitaliano.Ecomfluência.Atéenrolavao“r”
comoRen.Tenteinãoficarolhandoparaelequandoseguimosnossogarçomatéamesa.EurealmentenãosabianadasobreHoward.Issoeramuitoestranho.
— Adivinha por que gosto daqui? — perguntou Howard quando nossentamos.
Olheiemvolta.Asmesaseramcobertascomtoalhasdepapelbaratasehaviauma cozinha aberta com um forno a lenha aceso. “Lucy in the Sky withDiamonds”tocavaaofundo.
Eleapontouparaoteto.—Aqui tocaBeatles o dia todo, tododia, então encontroduas dasminhas
coisaspreferidas:pizzaePaulMcCartney.—Ah,sim.Euviosdiscosemolduradosnoseuescritório.Engoli em seco.Agora ele ia achar que eu estavabisbilhotando.Oque foi
maisoumenosoqueeufizmesmo.Eleapenassorriu.—Minhairmãmandoutodoselesdepresenteháalgunsanos.Elatemdois
filhos,umdedezeoutrodedozeanos.ElesmoramemDenvere,dedoisemdoisanos,passamoverãoaquicomigo.
Seráqueelessabiamdemim?Howard deve ter pensado algo semelhante, porque houve ummomento de
silêncio,edepoisnósdoisficamostotalmenteconcentradosnocardápio.—Oquevocêquerpedir?Eusemprecomoapizzadeprosciutto,mastudo
aquiébom.Podemospediralgunsaperitivosou...—Quetalumapizzasimples?Demuçarela.Simples e rápido. Eu queria voltar a caminhar por Florença e preferia que
aquelejantaracabasseoquantoantes.
—Entãovocêdeveriapediramarguerita.Ébembásica.Sómolhodetomate,muçarelaemanjericão.
—Pareceboa.— Você vai adorar a comida daqui. A pizza italiana é completamente
diferentedaquesecomenosEstadosUnidos.Euabaixeiocardápio.—Porquê?—Ébemfinaeelesservemumapizzagrandesóparavocê.Eamuçarelaé
fresca...—Elesuspirou.—Nãotemnadaquesecompare.Howard estava mesmo com um olhar sonhador. Será que eu herdei dele
minha paixão por comida?Hesitei. Talvez fosse uma boa ideia conhecê-lo aomenosumpouco.Afinaldecontas,eleerameupai.
—Então...deondevocêé?—EucrescinumacidadezinhadaCarolinadoSulchamadaDueWest.Dá
praacreditar?FicaaunsduzentosecinquentaquilômetrosdeAdrienne.— Foi em DueWest que você rearranjou todas as barreiras de trânsito e
causouumengarrafamento?Elemeolhou,surpreso.—Suamãecontouisso?—Sim.Elacontouummontedehistóriassobrevocê.Eledeuumarisada.— Em DueWest não havia muito o que fazer, e infelizmente obriguei a
cidadeinteiraapagarporisso.Queoutrashistóriaselacontou?—Eladissequevocêjogavahóquei,equemesmotendoumtemperamento
calmosemetiaembrigasnorinque.— Aqui está a prova.— Ele virou a cabeça e passou os dedos por uma
cicatrizquedesapareciasobomaxilar.—Estaédeumdosmeusúltimosjogos.Eunãoconseguiamecontrolar.Oquemais?
—Vocêeminhamãe foramaRoma,odonodeumrestauranteachouquevocêeraumjogadordebasquetefamosoevocêscomeramdegraça.
—Eutinhameesquecidodisso!Omelhorcordeiroquejácomi.Esópreciseitirarfotoscomopessoalquetrabalhavanacozinha.
Ogarçomseaproximoueanotouospedidos,depoisnosserviuáguacomgás.Tomei umgrande gole e estremeci. Será que só eu achava que água comgáspareciaomesmoquebeberfaíscaslíquidas?
Howardcruzouosbraços.—Desculpepordizeroóbvio,maséinacreditáveloquantovocêseparece
comHadley.Aspessoasdiziamissosempre?—Diziam.Àsvezesachavamqueéramosirmãs.
—Nãoficonemumpoucosurpreso.Atésuasmãossãoiguaisàsdela.Meus cotovelos estavam apoiados na mesa, e minhas mãos, cruzadas. De
repente,Howardchegouparaafrentealgunscentímetros,comosetivessesidofisgadoporumanzol.
Estavaolhandoparameuanel.Eumeajeitei,desconfortável.—Humm,vocêestábem?—Oaneldela.Eleestendeuamãoequaseotocou.Seusdedospraticamenteencostaramnos
meus.Eraumaantiguidade,umanelfinodeourocomumentalhedearabescos.Minhamãeousaraatéficarmagrademaisparamantê-lonodedo.Edesdeentãoeupasseiausar.
—Elacontouquefuieuquedei?—Não.—Puxeiamãoparaocolo,sentindoorostocorar.Minhamãetinha
mecontadoalgumacoisa?—Eratipoumaneldenoivadooucoisadotipo?—Não.Sóumpresente.Outrolongosilêncioseinstalouentrenós,enessemomentodemonstreium
interesse inédito pela decoração do restaurante. Pelas paredes havia fotosautografadas do que deviam ser grandes celebridades italianas, alémde váriosaventais. “Yellow Submarine” tocava ao fundo. Minhas bochechas ferviamcomoumapanelademolhodetomate.
Howardbalançouacabeça.—Então,deixoualgumnamoradoesperandoporvocênosEstadosUnidos?—Não.—Sortesua.Vaitermuitotempoparapartircoraçõesquandoformaisvelha.
—Elehesitou.—Hojedemanhãeuestavapensandoqueémelhorligarparaaescola internacionalever sealguémdoseuanovai ficarparaoverão.Talvezsejaumaboamaneiradeversevocêseanimaaestudaraqui.
Concordei de um jeito evasivo, tentando não me comprometer, e fiqueisubitamentemuitointeressadanafotodeumamulherusandoumatiaracomumafaixapenduradanoombro.MissRavióli2015?
—Euqueriadizerque, seumdiavocêprecisardealguémpara conversar,alguémalémdemimedaSonia,claro, tenhoumaamigaquemoranacidade.Elaéassistentesocialefalainglêsmuitobem.Elamedissequeficariafelizemseencontrarcomvocêseprecisar,sabe...
Ótimo.Outrapsicóloga.AquehaviaconversadocomigonosEstadosUnidostinha basicamente dito uhum-uhum, uhum-uhume perguntado “Comovocê sesente em relação a isso?” até eu achar queminhas orelhas fossemderreter.Aresposta era sempre “Péssima”. Eu me sentia péssima sem minha mãe. A
psicólogadisseraqueascoisas iamcomeçaramelhoraraospoucos,masatéomomentoelaestavaerrada.
Comeceiarasgaraspontasdoguardanapo,semolharparaoanel.—Vocêestásesentindo...àvontadeaqui?Hesitei.—Estou.—Sabe,seprecisardealgumacoisa,ésópedir.—Estoubem.Minha resposta foi seca, mas Howard apenas assentiu. Depois do que
pareceramdezhoras,enfimogarçomchegouecolocouduaspizzasfumegantesdiante de nós. Eram do tamanho de um prato grande e tinham um cheiromaravilhoso.Comiumpedaço.
Todooconstrangimentoevaporounamesmahora.Eraopoderdapizza.—Achoqueminhabocaexplodiu—falei.Ou pelo menos foi isso o que tentei dizer. Saiu mais parecido com
“nhaboquexplodiu”.—Oquê?—Howardergueuorosto.Comioutropedaço.—Isto.É.Maravilhoso.—Eletinharazão.Aquelapizzafaziapartedeumuniversocompletamentediferentedetudoque
eujátinhavivido.—Euavisei,Lina.AItáliaéolugarperfeitoparaumacorredoraesfomeada.Elesorriuparamimecontinuamosacomeravidamente.Nomomentoestava
tocando“TickettoRide”,quetornavaqualquerconversadesnecessária.—Vocêdeveestarcuriosaparasaberondeeuestiveessetempotodo.Eucongelei,comabocacheiadepizzaeumpedaçodabordanamão.Ele
estáperguntandooqueeuachoqueestáperguntando?Aquelenãopodiaserogrande momento de revelação; ninguém conta ao filho por que não estevepresentenavidadeleenquantoapessoaestáseentupindodepizza.
Olhei para ele. Howard tinha colocado o garfo e a faca na mesa e estavainclinadoparaafrente,comumaexpressãoséria.Ah,não.
Engolioqueestavanaminhaboca.—Humm,não.Eunãoestavacuriosa.MentiracomMmaiúsculo.Enfieiabordadapizzanaboca,masnãosentio
gosto.—Suamãecontoumuitacoisasobrenossorelacionamento?Fizquenão.—Não.Só,humm,históriasengraçadas.—Entendi.Bom,averdadeéqueeunãosabiasobrevocê.
Derepente,orestauranteinteiropareceuficaremsilêncio.MenososBeatles.“Thegirlthat’sdrivingmemad,isgoingawaaaayyyy...”,cantavameles.
Engoliemseco.Nuncasequertinhacogitadoessapossibilidade.—Porquê?—Ascoisaseram...complicadasentrenós.Complicadas.Minhamãedisseraexatamenteamesmacoisa.—Ela entrou emcontato comigomais oumenosnamesma época emque
começouafazerosexames.Sabiaqueestavadoente,sónãosabiaoqueera,masachoquetinhaumpressentimento.Enfim,queroquevocêsaibaqueeuteriasidopresente.Sesoubesse.Éque...—Eleestendeuasmãosporcimadamesa.—Tudooqueeuqueroéumachance.Nãoestouesperandonenhummilagre.Seiqueédifícil.Suaavómecontouquevocênãoqueriavir,eeuentendo.Sóqueroqueentendaqueagradeçomuitoporterestachancedeconhecervocê.
Ele olhou nos meus olhos, e de repente desejei de todo o coração poderevaporar como a fumaça que ainda saía daminha pizza. Afastei a cadeira damesa.
—Eu...euprecisoiraobanheiro.Saí às pressas do salão, mal conseguindo entrar no banheiro antes que as
lágrimascomeçassemarolar.Estar ali era horrível.Antes daquele dia, eu sabia exatamente quemminha
mãe era, e com certeza não era aquela mulher que amava violetas, enviavadiáriosmisteriosos para a filha ou se esquecia de dizer ao cara com quem serelacionara:“Ah,vocênãovaiacreditar,temosumafilha!”
Levei todos os trêsminutos de “Here Comes the Sun” parame recompor,respirando fundo,equandoenfimabriaporta,Howardaindaestavasentadoàmesacomosombroscurvados.Euoobserveiporuminstanteesentiaraivamecobrircomoumalevecamadadequeijoparmesão.
Minhamãenosmantivera afastadospordezesseis anos.Porqueestávamosjuntosagora?
Capítulo7
NAQUELANOITE,NÃOconseguidormir.O quarto doHoward também ficava no segundo andar e as tábuas do piso
rangiamquandoeleandavapelocorredor.Eunãosabiasobrevocê.Porquê?O relógio da parede do quarto fazia um tique-taque irritante. Eu não tinha
percebido na noite anterior, mas de repente o barulho se tornou insuportável.Coloqueiumtravesseirosobreacabeça,masnãoadiantoue,alémdisso,fiqueimeio sufocada.Uma brisa soprava pela janela e as violetas balançavam comorockeirosbatendocabelonumshow.Ok.Tudobem.Acendioabajuretireioaneldodedoparaanalisá-lo.Embora
nãovisseHowardhaviadezesseisanos,minhamãeusaraoanelqueelelhedera.Todosantodia.Masporquê?Seráqueelesforammesmoapaixonados,comoSoniadissera?
Esefossem,oqueosseparou?Antes que eu perdesse a calma, abri a gaveta do criado-mudo e peguei o
diário.Abrinaprimeirapágina.
Eutomeiadecisãoerrada.
Umcalafriopercorreuminhaespinha.Minhamãetinhaescritocomcanetinhapretagrossa,easpalavrasseespalhavampelaparteinternadacapacomoumafileira de aranhas. Será que aquelamensagem era paramim?Uma espécie deprenúnciodoqueeuestavaprestesaler?
Crieicoragemevireiapágina.Éagoraoununca.
22DEMAIOPergunta: Imediatamente após sua reunião com os funcionários dasecretariadematrículasdaUniversidadedeWashington (logodepoisdeavisar ao funcionário que você não vai começar a faculdade deenfermagemnooutono),você:
A.Vaiparacasaecontaaosseuspais.
B.Temumataquedepânicoevoltacorrendoparaasalaalegandoumlapsotemporáriodesanidade.
C.Saiparacomprarumdiário.
Resposta:C.
Sim, no fim das contas, você vai contar aos seus pais. E também temconsciênciadequemarcoua reuniãoparaoúltimohoráriodasecretariadepropósito.Masassimqueapoeirabaixar,tenhocertezadequevocêvaise lembrarde todososmotivosque teveparafazeroquefez.Éhoradeentrar na livrariamais próxima e gastar todo o seu dinheiro numdiárionovo e sofisticado, porque pormais assustador que estemomento seja,tambéméomomentoemquesuavida(suavidadeverdade)começa.
Diário,agoraéoficial.Háumahoraevinteeseisminutosdeixeideseruma futura estudante de enfermagem. Em vez disso, em apenas trêssemanasvouarrumarminhascoisas(ouseja, tudooqueminhamãenãodestruir quando ficar sabendo da notícia) e embarcar num avião para aItália (ITÁLIA!), para fazer o que sempre quis (FOTOGRAFIA!) naAcademiadeBelas-ArtesdeFlorença(ABAF!).
Sóprecisopensarnumjeitodedaranotíciaaosmeuspais.Amelhordasminhas ideias envolve fazer uma ligação anônima de algum lugar daAntártida.
23DEMAIOBom, contei. E foi ainda pior do que eu esperava. Para um observadorincauto,aGrandeExplosãoFamiliarteriaparecidoalgoassim:
Eu:Mãe,pai,precisocontarumacoisa.
Mãe:Ah,meuDeus.Hadley,vocêestágrávida?
Pai:Rachelle,elanãotemnemnamorado.
Eu: Pai, obrigada por me lembrar disso. E, mãe, não sei por que aprimeiracoisaemquevocêpensoufoigravidez.[Pigarreia]Querofalar com vocês sobre uma decisão recente que tomei para aminha vida. [Palavras tiradas diretamente de um livro chamado
Comunicação inteligente: Como falar para que os outrosconcordem.]
Mãe:Ah,meuDeus.Hadley,vocêélésbica?
Pai:Rachelle,elanãotemnemnamorada.
Eu:[Abandonandotodasastentativasdeterumaconversacivilizada.]NÃO. O que estou tentando dizer é que não vou mais fazerfaculdade de enfermagem. Acabei de ser aceita numa escola deartesemFlorença,naItália,evoupassarseismesesláestudandofotografia.E...ocursocomeçaemtrêssemanas.
Mãe/Pai: [Silêncio prolongado envolvendo duas bocas abertas comodedoispeixes.]
Eu:Então...
Mãe/Pai:[Continuamboquiabertos]
Eu:Seráquevocêspoderiamdizeralgumacoisa,porfavor?
Pai:[Comavozquasesumindo]Mas,Hadley,vocênãotemnemumacâmeradecente.
Mãe: [Recuperando a voz]COMOASSIMVOCÊNÃOVAIFAZERFACULDADEDEENFERMAGEM...
[Oscachorrosdovizinhocomeçamauivar.]
Vou poupar você do sermão que tive que ouvir, mas basicamente seresume ao seguinte: estou desperdiçando minha vida. Jogando no lixomeu tempo, minha bolsa de estudos e o dinheiro deles, conquistado aduraspenas, parapassar seismeses frívolosnumpaís onde asmulheresnem sequer depilam as axilas. (Essa última informação foi umacontribuiçãodaminhamãe.Nãoseiseéverdade.)
Expliqueiquevoupagartudo.Agradeciacontribuiçãodelesparaaminhaeducação. Garanti que voumanter minha rotina de depilação. E depoissubiparaomeuquartoe choreiporpelomenosumahoraporqueestouAPAVORADA.Mas que escolha eu tenho?No segundo em que recebi
aquela cartade aceitação soubequequeria aquilomaisdoquequalqueroutracoisaquejáquisnavida.Euvou,porqueémaisassustadornãoir!
Fecheiodiário.Umaverdadeira tempestadecastigavameurosto,easpalavrasse juntavamnumagrandemassaembaçada.Erapor issoqueeunãoconseguialerosdiáriosdela.Elesmedavamasensaçãodeestarouvindominhamãefalarao celular comuma amiga,mas então eu erguia os olhos da página e ela nãoestavaali...Se controla. Esfreguei os olhos com raiva. Ela havia me mandado aquele
diárioporalgummotivo,eeuprecisavadescobrirqualera.
13DEJUNHOÉmeioagourentoviajarnodia treze,masaquiestoueu.Depoisdeumadespedidaparaládegélidaporpartedaminhamãe,meupaimedeixounoaeroporto.Olá,mundodesconhecido.
20DEJUNHOESTOU AQUI. Eu poderia escrever cinquenta páginas sobre minhaprimeira semana em Florença, mas basta dizer que estou aqui. AAcademiadeBelas-ArtesdeFlorençaéexatamenteoqueeuimaginava:pequena, atravancada e cheia de gente talentosa.Meu apartamento ficabememcimadeumapadariabarulhentaemeucolchãoparecedepapelão,masquemseimportaquandoacidademaisdeslumbrantedomundoestábemdiantedajanela?
MinhacolegadequartosechamaFrancesca,eelaveiodonortedaItáliapara estudar fotografia demoda. Só usa preto, passa do italiano para ofrancêseo inglêsnomeiodas frases semnempercebereestá fumandocomo uma chaminé na nossa janela desde o instante em que chegou.Adoroela.
23DEJUNHOPrimeiro dia livre na Itália. Eu estava ansiosa para passar uma manhãpreguiçosa comendo um pote de Nutella com pão da padaria aqui de
baixo,masFrancescatinhaoutrosplanos.Quandosaídoquarto,elafaloupara eu me vestir, depois passou a meia hora seguinte discutindoanimadamente com alguém no celular enquanto eu a esperava. Quandoenfim desligou, disse que eu precisava trocar o sapato. “Nada desandálias. Já passa das onze da manhã.” Ela me fez trocar outras duasvezes. (“Nada de jeans escuros depois de abril.” “Nunca combine ossapatoscomabolsa.”)Foicansativo.
Finalmente,saímoseFrancescacomeçouamecontaraversãoresumidadahistóriadacidade.“FlorençaéoberçodaRenascença.VocêsabeoqueéaRenascença,nãosabe?”GarantiaelaquetodomundosabeoqueéaRenascença,maselameexplicoumesmoassim.“Umterçodapopulaçãomorreuduranteaepidemiadepestebubônicanosanos1300,edepoisaEuropa passou por um renascimento cultural. De repente, houve umaexplosãodearte.EtudocomeçouaquiantesdeseespalharparaorestodaEuropa. Pintura, escultura, arquitetura... Aqui era a capital artística domundo.Florençafoiumadascidadesmaisricasdahistória...”eelafalou,falouefaloumuito.
Ela entrava e saía das ruas, sem nem sequer olhar para trás por umsegundo para ter certeza de que eu estava acompanhando, quando derepenteeuovi.ODUOMO.Ointricado,coloridoegóticoDuomo.Fiqueicompletamente arrebatada,masmesmo que não tivesse ficado, ele teriametiradoofôlego.
Francescaapagouocigarro,melevouparaaentradalateraldoDuomoemedissequeíamosatéotopo.Efomosmesmo.Quatrocentosesessentaetrês degraus de pedra, e Francesca subiu as escadas como se houvessemolasemseussaltos-agulha.Quandoenfimchegamos,eunãoconseguiaparardetirarfotos.Florençapareceumlabirintotingidodelaranja,comtorres e prédios sobressaindo-se aqui e ali, mas nada tão alto quanto oDuomo.Haviacolinasverdesaolonge,eocéueradeumtomperfeitodeazul.Francescasóparoudefalarquandoviucomoeuestavamaravilhada.Ela nem ficou zangada quando abri os braços, sentindo o vento esaboreandoumasensaçãonova,aliberdade.Antesdedescermos,deiumabraçoapertadonela,quemeafastouedisse:“Chega,chega.Vocêchegouaquisozinha.EusóatrouxeparaveroDuomo.Agoravamosàscompras.Nuncaviumacalçajeansmaistriste.Sério,Hadley,elamedávontadede
chorar.”
—Nãoacredito—sussurreiparamimmesma.Qualeraachancedeeuleraquelapassagemdodiárionomesmodiaemque
eu tinha visto o Duomo pela primeira vez? Passei os dedos pelas palavras,imaginandominhamãe,comvinteepoucosanos,correndoparaacompanharatirânica e ágil Francesca. Será que em parte fora por isso que ela enviara odiário?ParavivenciarmosFlorençajuntas?
Marqueiapáginaeapagueialuz,sentindoumapertonopeito.Sim,ouviravozdelaeraoequivalenteemocionalàáguaentrandonumnavioavariado,mastambémerabom.Elaamava Florença.Talvez ler seudiário fosse comover acidadeaoladodela.
Eusótinhaqueiraospoucos.
Capítulo8
PRECISOCONTARAAddiesobreodiário.Namanhãseguinte,desciaescadaaindadepijama.Renestavatotalmenteequivocadosobreojetlag.Depoisdeterlidooiníciododiário,euoenfiarasobascobertascomigoedormiratrezehorasseguidas.Acordeimesentindoumbeija-flordescansado.
Pouco antes de eu escapar para o quarto, Howard dissera que ia deixar ocelularcomigo,efiqueiridiculamentegratapornãoterquepedir.Seavoltaparacasananoiteanteriorfosseumlivro,o títuloseriaalgocomo“Aviagemmaislonga,silenciosaeinfelizdetodosostempos”,eeunãoestavanemumpoucoansiosaparaleracontinuação.Quantomenosinteração,melhor.
De volta ao quarto, fechei a porta e liguei o celular. Primeiro o código dopaís? O código de área? Onde estavam minhas instruções? Depois de trêstentativas,finalmentecomeçouachamar.Ianatendeu.
—Alô?—Oi,Ian.ÉaLina.Umvideogameberravaaofundo.—Sabe...aquelaquemoroucomvocêsporcincomeses?—Ah,sim.Oi,Lina.Ondevocêestámesmo?NaFrança?—NaItália.Addieestáaí?—Não.Nãoseiondeelaestá.—Nãosãotipoduasdamanhãaí?— São. Acho que ela foi dormir na casa de alguém. Agora dividimos o
celular.—Estousabendo.Podeavisarqueeuliguei?—Claro.Nãocomacaracóis.Clique.Soltei um gemido. Pelo histórico de Ian,minhamensagem tinhamenos de
zeroporcentodechancedechegaraAddie.Eeuprecisavamuitofalarcomela,sobreodiário,sobreoqueHowardmecontara,sobre...tudo.AndeipeloquartocomoogatocomTOCdaminhaavó.Nãomesentiaprontaparavoltaraodiário,mastambémnãopodiaficarparadapensandodejeitonenhum.Vestiaroupadecorridadepressaesaí.
—Oi,Lina.Dormiubem?Eu me sobressaltei. Howard estava sentado no balanço da varanda com
olheiraseumapilhadepapéisnocolo.Eraumaemboscada.—Sim.Acabeideacordar.—Apoieiopénocorrimãoemeconcentreitotal
ecompletamentenosmeuscadarços.—Ah,quemmederavoltaraseradolescente.Achoquenuncaacordeicedo
antesdostrinta.—Eleparoudesebalançaremeioquesoltouaseguintefrase,de repente: — Como você está se sentindo em relação ao que conversamosontemànoite?Fiqueipensandoseeunãopoderiatercontadoaquilodeumjeitomelhor.
—Nãoestouzangada—falei,depressa.—Gostariamuitodeconversarmaiscomvocêsobresuamãeeeu.Elanão
lhecontoualgumascoisasque...Tireiopédocorrimãocomosefosseumadançarina.— Vamos deixar pra outra hora? Eu quero começar minha corrida. — E
saberprimeiroaversãodaminhamãe.Howardhesitou.—Tudo bem, claro.—Ele tentou fazer contato visual comigo.—Vamos
fazerissonoseutempo.Ésómedizerquandoestiverpronta.Desciaescadacorrendo.—Ligaramparaocentrodevisitantesprocurandoporvocêhojedemanhã.Eumevirei.—EraAddie?—Porfavor,quesejaAddie.—Não,foiumachamadalocal.Onomedeleeraestranho.Red?Rem?Um
americano.Dissequeconheceuvocêontemdurantesuacorrida.Foicomose tivessemjogadoumpunhadodeconfeteemcimademim.Ele
ligou?—Ren.Éapelidode“Lorenzo”.—Fazsentido.Rendissequevocêiaaumafestacomelehojeànoite.—Ah,é.Talvezeuvá.Toda aquelahistóriadeHoward/diário tinha feitomeucérebro esquecerdo
resto.Seráqueeutinhacoragemmesmodeir?Howardfranziuatesta.—Bem,queméele?— Ren mora aqui perto. A mãe dele é americana, e ele estuda na escola
internacional.Achoquetemaminhaidade.Percebiumaanimaçãonorostodele.—Queótimo.Sóque...Ah,não.—Oquefoi?—Eucomeceiafazerummontedeperguntasaeleporqueacheiqueeraum
doscarasquetinhaperseguidovocê.Achoquepossoterassustadoorapaz.
—EuconheciRenatrásdocemitério.Eleestavajogandofutebolnacolina.—Poxa,precisopedirdesculpas.Poracasovocêsabeosobrenomedele?—Ferrarioucoisaparecida?Afamíliamoranumacasaqueparecefeitade
doces.Eleriu.—Nãoprecisadizermaisnada.OsFerrara.Quesortevocêteresbarradocom
ogaroto.Eunãosabiaqueofilhodelestinhasuaidade,sesoubesseteriatentadoapresentá-losantes.Afestaécomseusoutroscolegasdeturma?
—Possíveiscolegasdeturma—corrigidepressa.—Nãoseisequeroir.Osorrisodelesóficouaindamaior,comosenãotivessemeouvido.—Renpediuparaavisarqueelesóvaiconseguirchegaraquiàsoitoemeia.
O jantar vai estar pronto antes para você não ter que comer correndo. Edeveríamos arrumar um celular para você... assim seus amigos não precisarãoligarparaocentrodevisitantes.
—Obrigada,masachoqueseriaumexagero.Eusóconheçoumapessoa.—Depoisdestanoite,vaiconhecermais.Eenquantoissopodepassarmeu
númeroparaaspessoasnãoprecisaremligarparaotelefonedocemitério.Ah,eumaboanotícia.Nossaconexãocomainternetfinalmentefoiconsertada,entãoo FaceTime deve estar funcionandomuito bem.— Ele colocou os papéis navaranda.— Preciso ir para o centro de visitantes, mas vejo você mais tarde.Aproveiteacorrida.—Eleseviroueentrouemcasa,assoviandobaixinho.
Euoolheicomdesconfiança.SeráqueHowarderaadecisãoerradadaminhamãe? E quanto à festa? Será que eu queria mesmo encontrar um monte dedesconhecidos?
***
—Oque acha desta?—Eume aproximei do laptop e dei uma voltinha paraAddieverminharoupa.
Elaseaproximou,eseurostopreencheua tela.Tinhaacabadodeacordareestavaparecendoumavampiralouracomaqueledelineadortodoborrado.
—Humm.Querqueeusejalegalousincera?—Asduascoisas,podeser?—Não.Parecequeessacamisapassoutrêsdiasamassadanofundodeuma
mala.—Epassoumesmo.—Exatamente.Euvotonasaiapretaebranca.Suaspernassãolindaseacho
queaquelasaiaéaúnicacoisaquevocêtemquenãoéhorrível.
—Ede quemé a culpa?Foi você queme convenceu a fazermaratona deAmerica’sNextTopModelemvezdelavarasroupas.
—Olha,tudoéumaquestãodeprioridade.Qualquerdiadessesvoucrescerdois metros e entro naquele programa. — Ela soltou um suspiro dramático,tentandotirarumpoucodamaquiagemdosolhos.—Nãoacreditoquevocêvaiaumafesta.NaItália.Eeuaqui.ApostoqueminhanoitevaiacabarnacasadoDylandenovo.
—Vocêgostadeirlá.—Nãogostonada.Agalerasóficasentadafalandodascoisasqueagente
poderiafazer,masninguémtomaumadecisão,eacabatodomundojogandototóanoiteinteira.
—Vejapeloladobom.Eletemaquelefreezernoporãocheiodeburritosechurros.Sãodeliciosos.
—Ah,temrazão.ComerchurrosindustrializadosémuitomelhordoqueiraumafestanaItália.
Pegueiolaptopemejogueinacama,apoiando-onabarriga.—Sóqueeunãogostodefestas,lembra?—Nãodizisso.Vocêgostava.—Eaíminhamãeficoudoenteeninguémmaissabiaoquedizerpramim.Addiecontraiuoslábios.—Euachosinceramentequepartedissoéimaginaçãosua.Aspessoassónão
queremdizernadaerrado,sabe?Evocêtemqueadmitirqueacabasefechando.—Comoassim?Eunãomefechopraninguém.—Humm,eJake?—QueJake?—JakeHarrison.Ojogadordelacrosseveteranoegato.Elepassoutipouns
doismesestentandoconvidarvocêprasair.—Elenãomeconvidouprasair.—Porquevocêevitavaogaroto.—Addie, eumal conseguia passarmeia hora sem pensar naminhamãe e
chorar.Achaqueeleiaseinteressarporalguémassim?Elafranziuatesta.— Desculpa. Eu sei que tem sido difícil, mas acho que agora você está
pronta.Naverdade,vouatéfazerumaprofecia:hojeànoitevocêvaiconhecerocaramaisgatodaItáliaeseapaixonarporele.Sónãocaideamoresapontodenãoquerervoltarpracasa,ok?Osúltimostrêsdiasjáforamosmaislongosdaminhavida.
—Daminhatambém.Então,voucomasaiapretaebranca?—Isso.Vocêvaimeagradecerdepois.Emeligaassimquechegaremcasa.
Quero conversar mais sobre o diário. Acho que vou contratar uma equipe defilmagem pra começar a seguir você. Sua vida daria um programa de TVsensacional.
***
—Lina!Ojantarestápronto.Eu me olhei no espelho. Tinha recusado o conselho da Addie e colocado
minhacalçajeanspreferida.Eestavanervosademaisparacomer.Existeumaprimeiravezparatudo.—Vocêmeouviu?!—gritouHoward.—Estouindo!Coloquei um pouco de gloss e ajeitei o cabelo uma última vez. Eu tinha
passadounsbonsquarentaecincominutosfazendochapinha,maspelomenostinhaficadocomumcabeloapresentável.Nãoqueissogarantissealgumacoisa.Sealguémoolhassecomumacaraestranha,ele retomaria sua loucuranaturalemmeio segundo.“VocêémeioparecidacomaMedusa”,disseraAddieumavez,oquefoimuitoútil.
Howardmeencontrouaopédaescadaemeentregouumatigelaenormedemacarrão.Dava para notar que ele estava se esforçando para deixar as coisasmenostensas,eatéaquelemomentoestavafuncionando.
—Vocêestábonita.—Obrigada.—Desculpepordemorartantoparaprepararojantar.Tivemosumproblema
comamanutenção.Acheiqueiapassaranoiteinteiratrabalhando.—Tudobem.—Eu coloquei a tigela namesa.—Eobrigada pelo jantar,
masestousemfome.Eleergueuumadassobrancelhas.—Semfome?Quantosquilômetrosvocêcorreuhoje?—Onze.—Vocêestábem?—Achoqueestoumeionervosa.— Eu entendo. Conhecer gente nova às vezes é estressante, mas eles vão
amarvocê.BIIP! Olhamos pela janela e vimos Ren vindo pela estrada numa scooter
vermelha brilhante.Meu estômago se contraiu.Por que eu tinha aceitado ir?Seráqueaindadavatempodedesistir?
—AqueleéofilhodosFerrara?
—É.—Estáchegandoantesdahora.Elenãovailevarvocêdescooter,vai?—Achoquesim.LanceiumolharesperançosoaHoward.Talvezeledissessequeeunãopodia
ir!Issoresolveriatudo.Masseráquecarasquehaviamacabadodesedescobrirpaispodiamdizeroqueosfilhostinhamounãopermissãodefazer?
Howardatravessouasalaapassoslargoseabriuaporta.—Lorenzo?Corriatrásdele.— Oi, Howard. Oi, Lina.— Ren vestia calça jeans e tênis que pareciam
caros. Ele estacionou a scooter e subiu a escada com a mão estendida paraHoward.—Éumprazerconhecervocê.
—Oprazeré todomeu.Sintomuitopelaconfusãono telefonehoje.Acheiquefosseoutrapessoa.
—Tudobem.Quebomquevocênãovaimaismeperseguircomumaserraelétrica.
Nossa,Howardestavamesmolevandoaquelenovopapelasério.—Estápronta,Lina?—perguntouRen.—Humm,achoquesim.Howard?—Olheiparaele,esperançosa.EleobservavaascooterdoRencomumaexpressãosevera.—Jáfaztempoquevocêpilota?—Desdeosquatorzeanos.Souummotoristamuitocauteloso.—Vocêtrouxeumcapaceteparaela?—Claro.Howardassentiudevagar.— Tudo bem. Dirija com cuidado. Principalmente na volta. — Ele me
indicoucomacabeça.—Ènervosa.Stallevicino.—Si,certo.—Humm,comlicença.Oquevocêsfalaram?—perguntei.—Papodehomem—respondeuRen.—Vamos.Estamosperdendoafesta.Howardmeentregouseucelulareumanotadevinteeuros.— Leve isto só por precaução. O número do cemitério está aí. Se eu não
atender,Soniaatende.Aquehorasvocêsvãovoltar?—Nãosei—respondi.—Possotrazê-lanahoraquevocêquiser—disseRen.—Entãoumahora.Eu olhei para Howard.Uma da manhã? Ele queria muito que eu fizesse
amigos.Elesesentounobalançodavaranda,eeufuicomRenatéascooter,ondeele
meentregouumcapacetequeestavaguardadonocompartimentosobobanco.—Pronta?—perguntouRen.—Pronta.Subinatraseirameiosemjeito,ederepenteeueRenestávamospercorrendo
aestradacomoar friobatendononosso rosto.Segurei a cinturadoRencomforça, sorrindo feito uma idiota. Era como andar numa poltrona motorizada,super-rápidaebastanteconfortável.OlheiparatráseviHowardnosobservandodavaranda.
—Porquevocêochamade“Howard”?—gritouRen,porcausadobarulhodascooter.
—Doquemaiseuochamaria?—“Pai”?—Dejeitonenhum.Eunãooconheçohátantotempoassim.—Não?—Éque...Éumalongahistória.—Emudei logodeassunto.—Ondeéa
festa?Elehesitoueligouasetanaestradaprincipal,depoisvirounadireçãooposta
aFlorença.—NacasadaminhaamigaElena.Semprevamosparaláporqueacasadelaé
amaiorde todas.AmãeédescendentedosMédici, e a família temumavillagigantesca.AgentesemprepercebequeElenaestábêbadaquandoelacomeçaadizerque,emoutrasépocas,todomundoteriasidosúditodela.
—QuemsãoosMédici?— Uma família florentina muito poderosa. Foram eles que basicamente
fundaramoRenascimento.Derepente,imagineiumaadolescentevestindoumatoga.—Euestoubem-vestidaparaaocasião?—Oquê?Repetiapergunta.Ele desacelerou por causa de um sinal vermelho, depois se virou parame
olhar.—Vocêestálinda.Estamosusandoamesmacoisa.—É,masvocêestá...—Oquê?—Maisestiloso.Eleinclinouacabeçaparatrás,enossoscapacetesbateram.—Obrigado.
Capítulo9
OPERCURSOATÉacasadeelenalevouumaeternidade.Umae-ter-ni-da-de.Quando Ren ligou a seta indicando que ia sair da estrada principal, minhaspernasestavamficandodormentes.
—Estamosquasechegando.—Atéqueenfim.AcheiqueiríamosatéaFrança.—AFrançanãoficanessadireção.Sesegura.Eleaceleroueentramosnumarua longaearborizada.Ondeestávamos?Eu
nãoviaumaúnicacasaouprédiohaviamaisdedezminutos.—Esperaumpouquinho.Três...dois...Fizemosumacurvaeeuexplodi.—Oquê?—Umaloucura,nãoé?—Issoéumacasa?Alguémmoraemalgumlugarnormalporaqui?—Comoassim?Vocênãoconheceninguémquemoranumacasadedoces
nosEstadosUnidos?AvilladaElenaeraumpalácio.Acasa tinhaváriosandareseeraenorme,
gigantescacomoummuseu,comtorresqueseerguiamdecadaumdosladosdeuma grande porta em arco. Comecei a contar todas as janelas,mas desisti. Olugareragrandedemais.
Ren desacelerou, contornando um grande chafariz circular que ficava nomeiodeumaentradaparacarrosdotamanhodeumaquadradetênis.Entãosaiudoasfaltoparaestacionaraoladodeváriasoutrasscooters.MinhabocaestavasecacomooSaara.ComerchurrosnoporãodacasadoDylantinhamuitomaisavercomigo.
—Vocêestábem?—perguntouRen,meencarando.Assentidojeitomenosconvincentedomundo,emseguidapassamosporuma
parede de cercas vivas esculpidas até chegar a uma porta. Fiquei olhando aconstrução e imaginando que a qualquer momento os habitantes furiosos dovilarejochegariamcomtochasearíetes.Euestavaprestesavomitar.
Elemecutucou.—Temcertezadequeestábem?—Ótima.—Respireifundo.—Então...quantaspessoasmoramaqui?— Três. Elena, a mãe dela e a irmã mais velha, quando volta do colégio
interno.Elenamecontouquenuncaentrouemalgunscômodos,eàsvezeselaeamãepassamdiassemsever.Háumsistemadeinterfonepranãoprecisarematravessaracasatodaprasefalar.
—Sério?—Sim,estou falando sério.Eununcanemvi amãedela.Algumas teorias
dizem que ela não existe.Além disso, este lugar émal-assombrado. Elena vêfantasmaspraticamenteumavezpordia.
Eleapertoucomforçaacampainhadebronze,queemitiuumsomalto.—Vocêacredita?Emfantasmas?Rendeudeombros.—Elenaacredita.TodanoiteelapassapelofantasmadatataravóAlessandra
naescada.Fantasmasnuncatinhamfeitosentidoparamim.Quandominhamãesefoi,
elasimplesmenteparoudeexistir.Eudariatudoparaquenãofosseassim.De repente, umabatida altame fez soltar umgrito.Eu tropecei para trás e
Renmesegurou.—Relaxa.Ésóaporta.Demoraumtempãopradestrancar.Depoisdoquepareceramdezminutos,aportaseabriudevagar,eeudeium
passoparatrás,meioqueesperandoserrecebidapelatataravóAlessandra,masuma adolescente com roupasmodernas apareceu. Ela era curvilínea, tinha umpiercingdebrilhantenonarizecabelocheioepreto.
— Ciao, Lorenzo! — Ela abraçou Ren e encostou a bochecha na dele,fazendoumsomdebeijo.—Doveseistato?Miseimancato.
—Ciao,Elena.Miseimancataanche tu.—Rendeuumpassopara tráseapontouparamim.—Adivinhaqueméesta?
ElamudoudoitalianoparaoinglêscomamesmavelocidadequeRen.—Quem?Falalogo.—Carolina.Agarotaficoudebocaaberta.—VocêéaCarolina?—Sou,maspodemechamardeLina.—Nonèpossibile!Venha!Ela pegouminhamão eme puxou para dentro, fechando a porta com um
chute.OsaguãopareciaumcenáriodoScooby-Doo.A iluminaçãoera fracaevinhadealgumasarandelas.Tapeçariasepinturas,quedavamumarantigoaolugar, cobriam cada centímetro da parede, e, espere aí... Aquilo era umaarmadura?Elenaestavaolhandoparamim.
—Suacasaémuito...—Sim,sim.Bizarra.Assombrada,assustadora.Eusei.Agoravemcá.—Ela
medeuobraçoemearrastoupelo saguão.—Elesvão ficarmuito surpresos.Esperasó.
No fim do corredor, ela abriu uma porta dupla eme fez entrar.A sala eramuitomaismoderna,comumsofádecouroemL,umaTVdetelaplanaenormee uma mesa de totó. Ah, tinha umas vinte pessoas. Mais ou menos. E todasolhavamparamimcomoseeufossealgumbichoquefugiudozoológico.
Engoliemseco.—Humm,oi,gente.Elenaergueuminhamão,triunfante.—Vipresento,Carolina.Ragazzi,elaexiste!Asalaexplodiuemaplausos,ederepentetodosmecercaram.— Você está aqui. Você está aqui de verdade! — Um garoto alto com
sotaquefrancêsdavatapinhasanimadosnomeubraço.—Olivier.Bem-vinda.—Ganheiaaposta!Disseramquevocênuncaiaaparecer.—Antestardedoquenunca.—Chebellasorpresa!—EusouValentina.—Livi.—Marcello.Metadedeles estendeuamãoparaumhigh-five.Seráqueachavamqueeu
eraumholograma?Eucambaleeiparatrás.—Éumprazer...conhecertodosvocês.—Gente,saidecimadela!—Renempurroualgumaspessoasparatrás.—
Vocêsestãoagindocomosenuncativessemvistoninguémnovo.—Nuncavimos—retrucouumgarotodeaparelho.Entãocomeçaramamefazerváriasperguntas.—Háquantotempovocêestáaqui?—VocêvaipraEAIF?—Porquenãoentrounaescolaanopassado?—Aquelealtãoéseupai?Deioutropassoparatrás.—Humm...Oqueeurespondoprimeiro?Todosriram.— Onde você mora? Em Florença? — perguntou uma garota ruiva que
estouravaumabolaenormedechicleteaomeulado.Pelosotaque,elapareciaserdeNovaJerseyoualgoassim.—MoromaisoumenospertodoRen.—Elamoranocemitérioamericano.
Olheiparaele.Assimvocêvaimefazerparecerumaesquisitona.Elemedeuumtapinhanobraço.—Relaxa.Todomundoaquimoraemlugaresestranhos.Todoscomeçaramafalar.—MinhafamíliaestáalugandoumcastelomedievalemChianti.—Nósmoramosnumafazenda.—OWilliammoranoconsuladoamericano.Lembramquandoa irmãdele
passouporcimadopédeumdignitárioestrangeirocomopatinete?Umgarotoitalianocomcabelonaalturadoombrodeuumpassoàfrente.—Ragazzi,elavaiacharagenteumbandodeesquisitos.Desculpaportodas
essasperguntas.—Tudobem—falei.— Não, nós somos esquisitos mesmo. Nunca conhecemos gente nova.
Estamos cheios da cara uns dos outros — disse uma garota que pareciahispânica.
Derepente,alguémmeabraçouemeergueu.—Ei!—Marco!Calma,cara!—gritouRen.—Senta!—disseagarotadechiclete.SeriaMarcoumrottweiler?Eumesolteiemevirei.Eraumcaramusculoso
decabelopretoecurto.—Ren,meapresenta.Agora—urrouele.—Lina,esteéoMarco.Agoraesquecequevocêoconheceu.Podeacreditar
emmim,vaisermelhorpravocê.Elesorriu.—Vocêestáaquimesmo!Eusabiaqueviria.Sempresoube.—Esperauminstante.Vocêéminhaduplanaauladebiologia?—Sou!Eledeuumsoquinhonoaredepoismeabraçoudenovo.—Nãoconsigorespirar—falei,ofegante.—Soltaela—mandouRen.Marcoafrouxouosbraços,balançandoacabeça,tímido.—Desculpa.Emgeraleunãosouassim.—É,sim—retrucouagarotadecabelopreto.—Não,éculpadessacerveja.—Elememostroua lata.—Nãoseiquem
comprou,masénojenta.Temumgostodemictório,sabe?—Naverdade,não.—Não temproblema, euofereceriaumgole,masacabeidedizerque tem
gosto de xixi.Aliás, você émuito bonita. Tipo,muitomais bonita do que eu
imaginava.—Hum...Obrigada?—Ei!Margo!Queméseupapa?—Elesevirouesaiucorrendo.—Nossa—falei.Renbalançouacabeça.— Desculpa. Eu queria poder dizer que isso aconteceu porque ele está
bêbado,masnaverdadequandoestásóbrioeleépior.—Muito,muitopior—disseumgarotobaixinhodeóculos.—Aíestávocê.—Umavozfriaatravessouobarulho,eeumevirei,ficando
caraacaracomumagarotaextraordinariamentelinda.Elaeraaltaemagra,comgrandesolhosazuiseumcabeloquasebrancode
tãolouro.Seuolharmeperfurou.—Oi,Mimi.Vocêvoltou,bem-vinda.—Derepente,avozdoRenbaixou
tipotrêsoitavas.—Euestavacommedodequevocênãoviessehoje—disseela,comum
sotaque...sueco?Norueguês?Algumlugarondetodomundotinhapele lindaecabelosedosoecontrolado?
—Todomundodissequevocênãotemaparecidomuito.—Estouaquiagora.—Quebom.Sentisaudadedevocê.—Elaergueuoqueixoparamim,ainda
comosolhosfixosnoRen.—Queméessa?—Carolina.Acaboudesemudarpracá.—Oi.OpessoalmechamadeLina.Eladesviouoolharparamimporumdécimodesegundo,depoisseinclinou
parapertodoRenesussurroualgumacoisa:—Si, certo.—Ele olhou paramim.—Mas...Mais tarde. Preciso de uns
minutos.Elaseafastou,efoicomoseogrupointeirovoltassearespirar.—Rainhadogelo—sussurroualguém.—Elaédeslumbrante—faleiparaRen.—Sério?Eunãotinhapercebido.Elesorriucomosealguémtivesse lheoferecidoumsuprimentovitalíciode
balas. Estava na cara que eu tinha interpretado mal o momento em que eleseguraraminhamãonacasadedoces.SeMimieraoparâmetrodebelezadele,jáeraparamim.
—Ei,vemaqui.Queromostrarumacoisa.—Ok.Então...Atédaquiapouco?—faleiparaosoutros.—Ciao,ciao—disseumdeles.Renjáestavanomeiodasala.
—Paraondeestamosindo?—Ésurpresa.Vem.—Elesegurouaportaparamim.—Primeiroasdamas.Entreipelocorredorescuro,eRenfechouaporta.Estávamosdiantedeuma
escadariaenorme.—Ai,não.ÉaquiqueatataravódaElenaaparece?—Não,énaoutraala.Vem.Queromostrarojardim.Elecomeçouasubiraescada,masfiqueiparatrás.—Humm,Ren?Aíemcimaéassustador.—Émesmo.Anda.Eu me virei para a porta. Escada assustadora ou adolescentes estrangeiros
exageradamente simpáticos?Acheimelhor apostar noRen. Corri atrás dele, emeuspassosecoaramnotetoalto.Notopodaescada,eleabriuumaportaaltaeestreita,eeupasseidepoisdelecomrelutância.
—Estelugaréincrível—murmurei.Asalaeralotadademóveis,comoseamobíliadedezcômodostivessesido
reunida num único lugar, e tudo estava coberto com lençóis grossos eempoeirados. Havia até uma lareira gigantesca vigiada pelo retrato de umhomemsériousandochapéudepenas.
—Ésérioisso?—Aponteiparaoretrato.—Comcerteza.—Issoécoisadecasamal-assombrada.Parecequevaisemexerseeuvirar
decostas.Rensorriu.—Eissovindodealguémquemoranumcemitério.—Achoquedoisdiasnãoconfigura“morar”.—Aqui.—Elefoiatéasportasdevidroesoltouo trinco,depoisasabriu
para a sacada.—Era pramostrar os jardins,mas na verdade o que eu queriamesmoeraquevocêselivrasseumpoucodamultidãoenlouquecida.
—É,elesficarammeioagitadosaomeconhecer.—Muitosdenósestudamjuntosdesdeoensinofundamental,entãoficamos
loucospraconhecergentenova.Achoquedeveríamosaprenderanosfazerdedifíceis.
—Ei,ascercasvivasformamumlabirinto.Eumeinclineisobreasacada.Ascercasvivasqueladeavamaportadafrente
na verdade faziam parte de um desenho entremeado com estátuas e bancosantigos.
—Legal,nãoé?Temumjardineiromuitovelhoquepassoumetadedavidapodandoessasplantas.
—Achoquedápraseperderládentro.
—Dá, sim.Uma vez,Marco saiu andando e levamos umas três horas praencontrá-lo.Tivemosquesubiraquicomumrefletor.Eleestavadormindoemcimadossapatos.
—Porquê?—Nãofaçoideia.Querouviralgorealmenteassustador?Balanceiacabeça.—Naverdade,não.— A irmã mais velha da Elena, Manuela, se recusa a morar aqui porque
desdepequenaelavêumdeseusantepassadospelacasa.ApartesinistraéqueofantasmaaparecesemprecomamesmaidadequeManuela.
—Não é de estranhar que ela esteja no colégio interno.—Eume inclineisobreoparapeito.—Estelugarestámefazendoadorarminhacasa-cemitério.
—Contandohistóriasdefantasmas?Leveiumsustoequasecaíláembaixo.—Lina!VocêpareceaIncrívelGarotaAssustada—disseRen.—Desculpa, gente.Nãoquis assustar vocês.—Umgaroto se sentounum
dossofáseesticouosbraçosparacima.—Oi,Thomas.Espionando?—Estoucomdordecabeça.Sóestavatentandofugirumpoucodobarulho.
Queméestacomvocê?Eleselevantoueseaproximoudenóspreguiçosamente.Ai,meu...Atéesquecioqueiadizer,porqueninguémétãolindoassim!Thomas era alto e magro, com cabelo castanho-escuro e sobrancelhas
grossas,etinhaaquelacoisadomaxilarpronunciadodaqualeujáouvirafalar,masnuncatinhavisto.Eaboca.Praticamenteacaboucomqualquerchancequeeutinhadedizeralgumacoisa.
—Lina.—Renestavacomumadassobrancelhaserguida.Droga.Seráquetinhammeperguntadoalgumacoisa?—Desculpa,oquevocêdisse?Ogarotosorriu.—SófaleiquemeunomeéThomas.Eimaginoquevocêsejaamisteriosa
Carolina.—Eletinhasotaquebritânico.Sotaque.Britânico.—Sou.Éumprazerconhecervocê.PodemechamardeLina.Aperteiamãodele, fazendoomáximodeesforçopara ficardepé.Aoque
tudoindicava“pernasbambas”eraumacondiçãoreal.—Americana?—Sim.Seattle.Evocê?—Detodocanto.Eumoroaquihádoisanos.
Aportaseabriu,eElenaeMimientraram.—Ragazzi,dai.Minhamãevaisurtarsedescobrirquevocêsestãoaquiem
cima.Eutomeiumsermãodequarentaecincominutosdepoisdaúltimafesta.Algum idiota deixou um pedaço de pizza num aparador de duzentos anos.Vamosdescer,perfavore!
—Desculpa,El—disseramThomaseRenemuníssono.—EusóestavamostrandoojardimpraLina—explicouRen.—EThomas
queriatirarumcochilo.—Quem dorme numa festa? Sua sorte é parecer um deus, porque você é
veramentestrano.Sério,Thomas.Parecer um deus. Eu dei outra olhada para Thomas. Sim. Eu poderia
tranquilamenteimaginá-lorelaxandonoMonteOlimpo.MimideuobraçoaRenetodomundosaiudasala,menoseueThomas.Será
queeraimaginaçãominhaoueletambémestavaolhandoparamim?Thomascruzouosbraços.—Algunsdenós fizeramumaapostaprasabersevocê iamesmoaparecer
umdia.Pelovistovouperdervinteeuros.—Eudeveriatermemudadopracáantes,masdeciditerminaroanoletivo
emSeattle.—Certo,masmesmoassimvocêmedevevinteeuros.—Nãodevonada.Napróxima, você deveria ter umpoucomais de fé em
mim.Elesorriu,erguendoumadassobrancelhas.—Voudeixarpassardestavez.Meusossostinhammaisoumenosaconsistênciadegeleiademorango.Eu
tinhacertezadequeeleestavamedandomole.—Ouvidizerquevocêmoranumcemitério.—MeupaiéadministradordocemitérioamericanodeFlorença.Vimpassar
overãocomele.—Overãointeiro?—É.Umsorrisolentoseabriunorostodele.Eutambémestavasorrindo.—Thomas!—gritouElena,àporta.—Desculpa.Enósdoissaímoscomela.
***
Entãosernormaléassim.Querdizer,maisoumenosnormal.—Oprimeiroshowaquevocêfoinavida.Amaioria das pessoas tinha ido para a piscina, e Thomas e eu estávamos
sentadoscomospésmergulhadosnapartefunda.Aáguaazulcintilava,eouasestrelastinhamdescidoaténósouhaviavagalumesportodolado.
—JimmyBuffett.—Sério?OcaradoMargaritaville?—Ficosurpresaporvocêsaberquemé.E,sim,foibasicamenteummarde
blusashavaianas.Minhamãemelevou.Nós nos abaixamos quando jogaram água na nossa direção. Metade dos
convidadosestavameioembriagadaemergulhandonumabrincadeiraagitada,eMarcoerasempre...Bem,Marco.Foimuitomaisengraçadodoquedeveria.
—Ok,filmepreferido.—Vocêvairirdemim.—Nãovou,não,prometo.—Tudobem.DirtyDancing.—DirtyDancing...—Ele deixou a cabeça tombar para trás.—Ah, sim.
AquelefilmehorríveldosanosoitentaemqueoPatrickSwayzeeraprofessordedança.
Tivequejogaráguanele.—Nãoéhorrível.Ecomovocêsabetantosobreofilme,afinal?—Duasirmãsmaisvelhas.Eleseaproximoudemimaténossoscorpossetocaremdoombroaoquadril.
Foicomolevarumchoque.—Entãovocêécorredora,nasceunumadascidadesmaislegaisdosEstados
Unidos, tem um gosto horrível pra cinema, já desmaiou esquiando e nuncaexperimentousushi.
—Nemescalada—acrescentei.—Nemescalada.Addie,vocêestavatotalmentecerta.Alegre,batiospésnaágua,dandooutra
olhadaparaThomas.Avisão iriameatormentarpara sempre.Quemdiriaquecaras tão bonitos existiam? E, por falar nisso, ele tinha acabado de colocar obraçoemcimadosmeusombros.Comosenãofossenadademais.
—Entãoporquesemudoupracá?—perguntou.—Euvimficarcommeupai.Eleé,humm...meionovonaminhavida.—Pegueivocê.Comumestrondorepentino,Rensaiucorrendodaescuridãoatrásdenós.—Lina,émeia-noiteemeia!—Já?
Tirei os pés da água, e Thomas baixou o braço. Eu me levantei comrelutância.
—Precisamosir.Elevaimematar!Elevaimematar.Renlevouasmãosaopeitoecaiunagrama.—Nãovainada—falei.—Quemvaimatarvocê?—perguntouThomas.—OpaidaLina.Naprimeiravezquenosfalamos,eledissequetinhauma
balacommeunomeriscadonela.—Nãodissenada.—Olheiparaele.—Esperaaí.Eledisseisso?— Praticamente. — Ren ficou de joelhos e se levantou. — Vamos.
Precisamosiragora.—Seucabeloestácheiodegrama—avisei.Elebalançou a cabeça comoumcachorro, fazendo agramavoarpara todo
lado.—Euestavarolandonacolina.—Umacolinasueca?—perguntouThomas.—Nãopergunteianacionalidadedela.Solteiumgemido.— É mesmo meia-noite e meia? Talvez possamos ficar mais uns vinte
minutos?Renergueuasmãos.—Lina.Vocênãoligaseeumorrer?—Claroqueligo.Sónãoqueriaterqueirembora.Thomastambémselevantou,depoismeabraçou,apoiandooqueixonomeu
ombro.—Mas,Lina,estámuitocedo.Euvouficarmuitoentediadosemvocê.Seu
painãodeixavocêficaratémaistarde?Renergueuumadassobrancelhas.—Estouvendoqueascoisasprogrediramnasúltimashoras.EunãoconseguiatirarosorrisodorostoevireiparaoladoparaRennãover.—Desculpa,Thomas.Precisomesmoir.Elesoltouumabufada.—Tudobem.Entãovamosterquesairdenovooutrodia.—Ciao,tutti—gritouRenparaogrupo.—PrecisolevarLinaemcasa.Ela
temhoraprachegar.Houveumcorode“Ciao,Lina”.—Ciao!—griteiemresposta.—Espera!—Marcosaiudapiscina.—Ea iniciação?Linaprecisapassar
porela.
—Queiniciação?—perguntei.—Elatemqueandarnaprancha.Rensoltouumgemido.—Marco,queidiotice.Paramosdefazerissotipo...nosétimoano.—Ei,vocêsmeobrigaramafazer,efoinoanopassado—protestouOlivier.
—Alémdisso,erainverno.Euquasecongelei.—Sim,elaprecisafazer—concordououtragarota.—Éatradição.—Elaestádecalçajeans—retrucouElena.—Ètroppocruel.—Nãoimporta!Regrassãoregras!Thomasseaproximou,ficandoaomeulado.—Sevocêpular,eutambémpulo.CortaparaaimagemmentaldoThomastodomolhado.EumevireiparaRen.—Quantovocêvaimeodiarsetiverquemelevarpracasatodamolhada?—Nãotantoquantovocêvaiodiarasimesma.Tireiassandáliasefuiatéotrampolim.—Agarotanovavaimesmo!—gritouMarco.Ogrupointeirocomeçouaaplaudiraltoquandosubinotrampolim,depoisfiz
uma reverência. Essa sou eu? Tarde demais para perguntar. Corri pelotrampolim,puleiemeencolhinaboladecanhãomaisperfeitadomundo.
Naquelebrevemomentoeumesentiviva,muitomaisdoquedurantetodooanoanterior.Talvezdurantetodaaminhavida.
Capítulo10
ENTÃO, TALVEZANDAR de scooter encharcada não tivesse sido amelhorideia. Eu estava tremendo quando paramos na frente de casa. Além disso, apiscina tinha reativado a loucura natural do meu cabelo e, quando tirei ocapacete,elesetransformounumanuvemfofaaoredordaminhacabeça.
—Vocêestátremendodefriooudemedo?—Defrio.Ren,falasério.Estamosumahoraatrasados.Oqueelevaifazer?AportaseabriuderepenteeHowardapareceu,umaenormesilhuetacontraa
luz.Rentambémcomeçouatremer.—Querqueeuentrecomvocê?—sussurrouRen.Fizquenão.—Obrigadapelacarona.Eumedivertimuito.—Eutambém.Vejovocêamanhã.Boasorte.Fuiatéaportacomacalçagrudadanaspernas.—Desculpaoatraso.Perdemosanoçãodotempo.Howardestreitouosolhosparamim.—Seucabeloestámolhado?—Elesmefizeramandarnaprancha.—Naprancha?—Éoritualdeiniciação.Eupuleinapiscina.Umlevesorrisocintilousobsuaexpressãoséria.—Entãoanoitefoiumsucesso.—Foi.—Ficofeliz.—Eleolhouporcimademim.—Boanoite,Ren.—Boanoite,senhor...paidaCarolina.Renvirouascooterefoiembora,espalhandocascalho.—Olá,olá—disseumamulherquandoentreiemcasacomHoward.Soniaemaisquatropessoasestavamsentadasnossofás,segurandotaçasde
vinho.Jazztocavaaofundoetodomundopareciameioalto.Pelovisto,Howardtambém estava dando uma festa.Ao estilo cemitério. Talvezmais tarde todostivessemquemergulharempiscininhasdiantedomemorial.
—Pessoal,estaéLina—disseSonia.—Lina,esseéopessoal.—Oi.
—Chebella.Vocêéumabeldade—ronronouumamulhermaisvelhacomóculosdegatinho.
Howardsorriu.—Elanãoélinda?— Somos velhos amigos do seu pai— disse um dos homens num inglês
vagaroso. — Nós o conhecemos desde seus dias loucos de garanhão. Ah,quantashistóriaspoderíamoscontar.
—É—concordouocaraaoladodele.—Howardnãoestavabrigandocomvocêpor terchegado tarde,nãoé?Porque talvezeudevesse lembraravezemqueviajamosdemochilãopelaHungriaeele...
—Chega—disseHoward,àspressas.—Linadeuumpulinhonapiscina,entãotenhocertezadequeelaquersubiretrocarderoupa.
—Quepena—falouÓculosdeGatinho.—Boanoite—falei.—Boanoite—responderamtodosemcoro.Subiaescada.Estavacongelando.—Elaéafilhadafotógrafa?—perguntouamoçadosóculosdegatinho.Euparei.—Sim.ElaéfilhadaHadley.—Silêncio.E...suatambém,nãoé?Espereiqueeleesclarecesse,masalguémmudoude
assunto.Comoassim?
***
LigueiparaAddienoFaceTimeassimquevestiumaroupaseca.—Estáprontapradizer“Euavisei”?— Estou sempre pronta pra falar “Eu avisei”. Ai, meu Deus! Como foi?
Incrível?—Elacomeçouapularnacama.Euabaixeiovolumedocomputador.—Sim.In-crí-vel.—Porfavor,dizqueconheceuoitalianomaisgatodetodosostempos.—Conheci,maselenãoéitaliano.Éinglês.Elasoltouumgritinho.—Melhorainda!Eletemredessociais?Precisoinvestigaravidadele.—Nãosei.Nãoperguntei.—Voupesquisar.Qualéonomedele?—ThomasHeath.
—Até o nome é atraente.—Addie ficou quieta por umminuto enquantodigitavaonomedele.—Thomas...Heath...Florença...—Elaficousemar.—MINHANOSSASENHORADATENTAÇÃO.Ele temocabelomaisbonitoqueeujávi.Ogarotopareceummodelo.Talvezummodelodecueca.
—Nãoé?—Jáviuessedeussemcamisa?Vocêprecisadarumaolhadanessasfotosdo
perfildele.Nãoconsigoparardever.Ah,queótimo.AgoravocênuncamaisvaivoltarpraSeattle.PorquevoltariaquandoThomasHeathestá...
—Addie,calma!Elepodeserumdeusgregoquenãovaifazerdiferença.Eunãovouficaraqui.
—Comoassimnãovaifazerdiferença?Vocêpodeterumcasinhodeverão,nãoé?E,uau!Querdizer,sério,uau!Ocaraélindo.Qualéonomedoseuoutroamigo?
—Ren,masonomecompletoéLorenzoFerrara.—É,vocêvaiterquesoletrarpramim.—AmãedeledissequeéigualaFerrari,sóquecoma.—Ferrari coma...—Elamordeu o lábio e digitou no teclado.—Cabelo
cacheado?Jogafutebol?—Éele.Elasorriuparamim.—Bem,Lina,vocêacertoudoisalvos.Renémuitofofo.Então,senãoder
certocomoModelodeCueca,vocêaindaestarábemservida.— Não, Ren está fora de questão. Eu conheci a namorada dele hoje. Ela
pareceaSadieDanes,sóquesueca.EcomalgunsajustesnoPhotoshop.—Ah,falasério.Vocêtentoufugir?—Comcerteza.Elanão ficounada felizquandoviuqueRen tinha levado
umagarotanova.Addiesuspirou,serecostandonotravesseiro.—VoupassarorestodoverãoacompanhandosuavidanaItália.Eeuseique
acoisadocemitérioéestranha,masagoraapoiocemporcentosuaestadiaaí.Vocêprecisaficarpelomenosmaisumpouco.Fazissopormim.Porfavor!
—Vamosver.ComoestáoMatt?—Aindanãoentendeuqueestouinteressada.Masquemseimportacomele?
Numa escala de um a dez, quão estranho seria se eu imprimisse o perfil doThomaseemoldurasse?
Euri.—Muitoestranho.Atépravocê.— E se eu fizer um calendário do Thomas? “Doze Meses de Beleza
Britânica”.Acha que consegue tirarmais fotos dele sem camisa?Talvez você
pudessederramarsuconelenapróximavezqueseencontrarem.—Nempensar.Elasuspiroudenovo.—Vocêestácerta.Seriamuitoestranho.Então,comoestáodiário?—Vou ler mais um pouco agora.— Hesitei.— Ontem à noite foi meio
difícil,mastambémfoibom.Elaadoravaestelugar.—Evocêtambémvaiadorar.Eeutambém.Indiretamente.Balanceiacabeça.—Veremos.— Ok, volta pro diário. Quero saber qual foi a decisão errada dela. Esse
suspenseestámematando.—Boanoite,Addie.—Bomdia,Lina.
2DEJULHOFlorençaéexatamentecomoacheiqueseria,ecompletamentediferente.Émágica: o chãodepedras, os prédios antigos, as pontes.Mas tambémésuja.Você pode estar andando pela ruamais encantadora que já viu navidaederepentesentirocheirodeesgotoacéuabertooupisaremalgonojento.A cidade encanta, depois trazvocêdevolta à realidade.Nuncaestive num lugar onde quisesse registrar tudo. Passo muito tempofotografando coisas que parecem existir somente aqui na Itália: roupaspenduradas em vielas, gerânios vermelhos em latas velhas demolho detomate, mas no geral tento capturar as pessoas. Os italianos são muitoexpressivos;neméprecisotentaradivinharoqueestãosentindo.
HojeviopôrdosolnaPonteVecchio.Achoquepossodizerqueenfimacheiomeu lugar.Simplesmentenãoconsigoacreditarque tivequeviratéooutroladodomundoparaencontrá-lo.
9DEJULHOFrancesca me introduziu oficialmente em seu grupo de amigos. TodostambémfizeramoúltimosemestrenaABAF,esãointeligentesehilários,emeperguntosecretamenteseestãosendoseguidosporcâmerasdeumreality show. Como é possível tanta gente interessante junta nomesmolugar?Eisoelenco:
Howard:Operfeitocavalheirosulista(Francescaochamadegigantesulista),bonito,gentileo tipodecaraque iriaparaaguerraporvocê.Ele faz parte de umgrupodepesquisa sobre a história deFlorença,equandonãoestádandoaulasestáassistindoàsaulas.
Finn:AspiranteaErnestHemingwaydeMartha’sVineyard.Elefingequeabarbadensaeogostoporgolasaltassãoobradoacaso,mastodos sabemos que ele passametade de seu tempo lendoO soltambémselevanta.
Adrienne:É francesae talvez sejaapessoamaisbonitaque jávinavidareal.Elaémuitoquietaeincrivelmentetalentosa.
SimoneeAlessio: JunteiosdoisporqueestãoSEMPREjuntos.Elescresceram juntos perto de Roma e estão sempre aos socos,normalmente porque nenhum dos dois jamais namorou umagarotapelaqualooutronãoseapaixonassenamesmahora.
E,enfim...
Eu:Entediante.AmericanaaspiranteafotógrafaqueestátontadesdeoinstanteemqueseuaviãoaterrissouemFlorença.
OapartamentoquedividocomFrancescase tornouopontodeencontrooficial. Todos nos aglomeramos na sacada minúscula e temos longasdiscussõessobrecoisascomovelocidadedoobturadoreexposição.Nãoéoparaíso?
20DEJULHOPelovisto,nãodáparaaprender italianoporosmose,pormaisquevocêdurmacomItalianoparaleigosabertosobreorosto.Francescadissequeaprender uma língua é a coisa mais fácil do mundo, mas falou issoenquanto fumava, estudava abertura do diafragma e fazia um pestocaseiro, então talvez não entenda muito bem o significado da palavra“fácil”.Eumeinscrevinocursodeitalianoparainiciantesdoinstituto.Asaulassãoànoitetrêsvezesporsemana.FinneHowardtambémestãonocurso.Osdoisestãobemmaisadiantadosqueeu,masficofelizporteracompanhiadeles.
23DEAGOSTOFazmais de ummês que não escrevo,mas por umbommotivo.TenhocertezadequenãoseránenhumasurpresaquandodisserquemeA-P-A-I-X-O-N-E-I.Queclichê!Mas,sério,mude-separaFlorença,comaalgumasgarfadasdemassa,depoispasseieaocrepúsculoesimplesmenteTENTEnãoseapaixonarpelocaraporquemvocêestábabandodesdeoprimeirodia!Provavelmentevocênãovaiconseguir.EuamoestarapaixonadanaItália,masverdadesejadita:eumeapaixonariaporXemqualquerlugar.Eleébonito,inteligente,charmosoetudooquesempresonhei.Tambémestamosmantendoascoisasemsegredo,oque,parasersincera,o tornaaindamais atraente. (Sim,X. Eu duvido que alguém vá lermeu diário,masvoumereferiraeleassimsóporprecaução.)
OQUÊ?Deixeiocadernocairnomeucolo.SótinhalevadotrêspáginasparaHoward ter passado de “cavalheiro sulista” certinho a amante secretoX. Pelovisto,eunãoestavadandocréditosuficienteaele.
PegueimeulaptopefizoutrachamadadeFaceTime.Addieatendeunahora.Seucabeloestavaenroladonumatoalhaeelaseguravaumwafflemordido.
—Eaí?—Elestiveramquemanterorelacionamentoemsegredo—falei,baixinho.Pelo que eu podia ouvir, os convidados do Howard ainda estavam se
cumprimentandoláfora,navaranda,comtapinhasnascostasefalando“Vamosrepetiristoembreve”.
—Howardesuamãe?—É.Elaescreveuqueeleseramdomesmogrupodeamigos,ederepente
começa a chamá-lo de X porque tem medo que alguém pegue seu diário edescubraqueelesestãonamorandoemsegredo.
—Queescândalo!—exclamouAddie, alegre.—Porqueeles tinhamquemantersegredo?Eleeradamáfiaoucoisadotipo?
—Aindanãosei.—Ligadenovoassimquedescobrir.Droga.Eunãovouestaraqui!OIanvai
melevaràconcessionária.Finalmentevoupegarmeucarrodevolta.—Queboanotícia.—Nemmefala.Ontemànoiteelemefezdobrartodaaroupalavadanojenta
deleantesdemelevarnacasadoDylan.Meligaamanhã?—Comcerteza.
9DESETEMBROAgoraquecomeceiaescreverminhastoriad’amore,possocontarcomofoi desde o começo. Na verdade, X foi uma das primeiras pessoas queconheciaochegaremFlorença.Eledeuumadaspalestrasdeaberturadosemestre, e depois eu simplesmente não consegui parar de pensar nele.Claro que ele é talentoso, e tem aquele tipo de beleza que faz vocêgaguejarmesmoaodizer“oi”e“tchau”,mashaviaalgoamais;eletinhaumacomplexidadequemefezquererentendê-lo.
Porsorteconseguíamospassarbastantetempojuntosdentroeforadasaladeaula.Sóquenuncaestávamos sozinhos.Nunca.OuFrancescaestavasentada no canto tagarelando ao celular, ou Simone e Alessio pediamopiniãoemalgumanovadiscussãoridícula,enossasconversaspareciamnuncairmuitolonge.Eutinhaumagrandedúvidanacabeça.ELEESTÁOUNÃOINTERESSADO?Emcertosdias,eutinhacertezadequesim,eemoutros,nemtanto.Talvezeusóestivesseimaginandocoisas.
Mesmoassim,sempreopegavameolhandoduranteaaula,etodavezqueconversávamoshaviaalgoentrenósqueeunãopodiaignorar.Issodurousemanas.Eentão,finalmente,quandoacheiqueestavaimaginandoacoisatoda, eu o vi na Space. Francesca chamava o lugar de boate oficial daABAF,maselenunca tinha idoconosco.Euhavia saídopara tomarumpoucodear,equandoentreidenovo,láestavaele,encostadonaparede.Sozinho.
Eu sabia que era minha chance, mas quando comecei a me aproximar,percebi que não sabia o que dizer. “Oi. Espero não parecer louca, masvocê notou que nós dois temos uma química estranha?” Por sorte, nemtive que abrir a boca.Assimquemeviu, ele estendeu amão e seguroumeupulso.“Hadley”,disse.Epelojeitoqueelefalou...eusoubequenãoestavaimaginandocoisas.
15DESETEMBROEncontreiXnos JardinsdeBoboli para ficarmosumpouco sozinhos.ÉumparquedoséculoXVIquepareceumoásisnomeiodacidade.Cheiodeobrasarquitetônicas,chafarizeseespaçosuficienteparafazerqualquer
umesquecerqueestánumacidade.Nósdois levamosnossascâmeras,edepoisdefotografarmostudooquequeríamos,nossentamosdebaixodeuma árvore e conversamos. Ele sabe muito sobre arte. E história. Eliteratura. (E sobre tudo.Mesmo.)Oparque fechou às sete emeia,masquandomelevanteiparaguardarascoisas,elemepuxouenosbeijamosatéoguardanosmandarirembora.
20DESETEMBROAúnicapartedifícildeestarapaixonadaporXénãocontaraninguém.Euseiqueaescolanãogostariaquenamorássemos,masédifícilmanteralgoassimemsegredo.Éumatorturapassarmetadedodiaatrêsmetrosumdooutrosempodertocarnele.
Eunãotenhonenhumtalentoparaguardarsegredos,etodomundoparecesaberqueestouapaixonada.Partedissoélogística.Namaioriadasnoites,nosencontramostarde,eeunãovoltoparacasaantesdastrêsouquatrodamanhã. Eu disse à Francesca que estou treinando minha fotografianoturna,maselaselimitouarevirarosolhosedizerquesabetudosobre“fotografia noturna”. Parte de mim se pergunta se todo mundo está sófingindonãosaberoqueestáacontecendo.Seráquesãoassimtãoburros?Nossorelacionamentoestáacontecendobemdebaixodonarizdeles!
9DEOUTUBROXeeuestamoscomeçandoaficarmuitocriativosnahoradeacharlugarespara os encontros. Sabíamos que todos os outros ficariam em casaestudandoestanoite,então fomosàSpace (aqueladeantes)edepoisdedançarmosatécansar,perambulamospelacidade.Xdissequetinhaumasurpresaparamimenosembrenhamospelasruasescurasatéeusentirocheirodealgomaravilhoso,umamisturadeaçúcar,manteigaealgomais.Êxtase?
Enfim, viramos uma esquina e vimos um grupo de pessoas reunidas aoredor de uma porta iluminada. Era uma padaria secreta, o que é raro.Basicamente, os padeiros trabalhavam durante a noite para prepararsobremesaspara restaurantes, e embora fosse ilegal, elesvendiamdocesrecém-saídosdofornoporalgunseuros.
Só algumas pessoas bem-informadas sabem disso, mas estas, bem...Digamosapenasquecorremoriscodesetornaremnotívagas.
Todomundonafilaestavamuitoquietoenervoso,equandochegounossavez, X comprou um cornetto recheado com chocolate, um tipo decroissant, edoiscannolis.Entãonos sentamosnomeio-fioedevoramostudo. Quando cheguei em casa, Francesca, Finn e Simone estavamesparramados nos pequenos sofás, e todos ficaram implicando comigo,perguntandoquefotosnoturnaseramessasqueeuhaviatirado.Euqueriapodercontaraeles.
Uau.Paracomeçodeconversa,queroiraessapadariasecreta.Eunemsabiaoque
era um cornetto ou um cannolis, e estava praticamente babando nas páginas.Mas,acimadetudo,paraquetantosegredo?
Folheeioutravezosregistrosanterioresnodiário.Seráqueasescolastinhammesmo uma política contra o relacionamento entre alunos e professores-assistentes?Euentenderiaquefosseumaregraparaprofessoresdeverdade,masassistentes de pesquisa? E minha mãe estava arrebatada. Como era possívelalguém tão apaixonada ir embora e manter a filha deles em segredo pordezesseisanos?
Marquei a página do diário e fui até a janela. A noite estavamaravilhosa.Nuvenspassavamsobrealuacomonavios-fantasma,eagoraqueosamigosdoHowardtinhamidoembora,tudoestavacalmoesilencioso.
Derepente,umvultochamouminhaatenção,eeugelei.Oqueeraaquilo?Eu me debrucei na janela, com o coração martelando no peito. Um borrãobranco semovia emdireção à casa.Parecia umapessoa,mas estava passandorápidodemais,comoum...Estreiteiosolhos.AqueleeraHoward?Deskate?
—Oquevocêestáfazendo?—sussurrei.Ele deu um impulso forte com o pé e passou rapidamente pela entrada de
carros,comoumafocadeslizandoparaomar.Comose fossealgoque fizessesempre.
Eutinhaqueconhecermelhoraquelecara.
Capítulo11
—LINA,ESTÁACORDADA?Telefoneparavocê.Howard bateu na porta aberta do quarto, e eu enfiei o diário embaixo da
cama.Euestavarelendoostrechosdanoiteanterior.Eenrolando.Porque,sim,queriasaberoquetinhaacontecido,mastambémqueriaprolongarapartefeliz.Mais oumenos como aquela vez emque pareiTitanic nametade e fizAddieassistiràprimeirapartedenovo.
—Quemé?— Ren. Tenho que comprar um celular para você. Fique com o meu por
enquanto.Vouusarofixo.—Obrigada.Eumelevanteiefuiatéele,queestavacompletamenteacordadoenãotinha
nadaavercomoXdodiário.Nenhumsinaldeseusombriopasseionoturno.Oudepráticassuspeitasdenamoro.
Elemeentregouocelular.— Você poderia dizer ao Ren que ele não precisa ter medo de mim, por
favor?Ogarotoquebrouorecordemundialdequantasvezessefalou“senhor”numaúnicaconversa.
—Posso,masachoquenãovaifazerdiferença.Vocêrealmentedeixoueleassustadonaquelaprimeiraligação.
— Eu tive um bom motivo.— Ele sorriu.— Vejo você um pouco maistarde?Devosairdotrabalholápelascinco.
—Ok.EncosteiocelularnoouvidoeHowardfoiparaocorredor.Ciao,misterioso
X.—Oi,Ren.—Ciao,Lina.Quebomquevocêestáviva.Eume inclineicasualmenteportaaforaeobserveiHowarddesceraescada.
Eleeminhamãehaviamseagarradonumparquepúblico?Nãoéotipodecoisaqueumafilhaquersabersobreospais.EoquetinhasidotãoespecialnojeitoqueeledisseraonomedelaquandoficaramjuntospelaprimeiraveznaSpace?Parecia uma cena brega de uma daquelas novelas que a mãe da Addie nãoadmitiaquevia.
—Vocêestáaí?—perguntouRen.
—Sim,desculpa.Estoumeiodistraída.Fecheiaportadoquartoemesenteinacama.—Então,elenãoficouzangado?— Não. Ele estava dando uma festa e acho que nem percebeu que nos
atrasamos.—Fortunato.Vocêjáfoicorrer?—Não.Iasairagora.Querirtambém?—Jáestouacaminho.Meencontranoportãodocemitério.Troquei de roupa e corri para encontrá-lo. Ren estava com uma camiseta
laranjachamativaecorriasemsairdolugarcomoumvelho.Comosempre,seucabelocaíanosolhoseeleestavavermelhoesuadodacorrida.
—Como essa roupa não tem cara de americana?— perguntei, puxando acamisadele.
—Nãotemcaradeamericanaquandoestánumitaliano.—Metadeitaliano—corrigi.—Metadeéosuficiente.Podeacreditaremmim.Começamosacorrerpelaestrada.—Então,suamãeganhouoPrêmioLensCulture...—comentouRen.Olheiparaele.—Comovocêsabe?—Existeumacoisachamadainternet.Émuitoútil.—Ah,sim.EulembrovagamentequeissoexistiaantesdemorarnaItália.Eu havia tentado fazer uma chamada pelo FaceTime comAddie umas dez
vezesnaquelamanhãparacontaraelaasnovidadessobrealeituradanoite,massóapareceraamensagemNOSERVIZIO.PelomenosagorapodiausarocelulardoHowardsemprequequisesse.
—Encontreiummontedematériassobreela.Vocênãomecontouquesuamãeeratãofamosa.
— O LensCulture deu uma alavancada na carreira dela. Foi quando elacomeçouatrabalharsócomfotografia.
—Eugosteida foto.Nunca tinhavistonadaparecido.Comoeramesmoonome?Apagado?
Elemeultrapassou,depoisabraçouoprópriocorpo,olhandoporcimadeumdosombros.Minhamãefotografaraumamulherquetinhaacabadoderemoverumnometatuadonoombro.
Euri.—Nadamau.Elevoltouacorreraomeulado.— Também vi autorretratos que ela fez quando estava doente. São bem
intensos.Vivocêemalgunsdeles.Mantiveosolhosgrudadosnaestrada.—Nãogostodeveresses.—Compreensível.Chegamos aum trechoemquehaviaumdeclive e imediatamente acelerei.
Renfezomesmo.—Então...pretendesaircomseusamigosdenovoembreve?—perguntei.—EstáfalandodoThomas?Euenrubesci.—E...dosoutros.Minha prioridade era descobrir o que havia acontecido entreminhamãe e
Howard,mas isso não significava que eu tinha que desperdiçarminha chancecomThomas,nãoé?
—ÉMarco,nãoé?Vocêestáloucapravereledenovo,certo?Eurioutravez.—Talvez.—Thomasnãopegouoseunúmero?—Eunemtenhocelular.Vocêsempreligaprocemitério,lembra?Alémdisso,elenão tinhapedido.Provavelmenteporquehaviase lembrado
doseurelógiocarodepoisdepularcomigonapiscina.—Tambémjáligueiprocelulardoseupai.Mesmoqueestivesseapavorado.—Comoconseguiuonúmero?—Soniamedeu,masleveitipoumahorapratomarcoragemdeligar.Suspirei.—Ren,vocêprecisaesqueceraquelaprimeiraconversaruimcomHoward.
Eleéumcaramuitolegal.Nãovaimachucarvocêporsersimpáticocomigo.— Um ogro já gritou com você por algo que não fez? Não é tão fácil
esquecer.—Ogro?—Euri.—Aspessoasnãosão tãoaltasaqui.Apostoqueeleatrai todososolhares
quandochegaemalgumlugar.—Ébemprovável.Omenorcaminhãodomundopassoupornós,buzinandováriasvezes.Ren
acenou.—Ei,quer iràcidadecomigohojeànoite?Podíamos tomarsorveteousó
passear,oualgoassim.Talvezlápelasoitoemeia?—AModeloSuecanãovaificarchateada?Euestavasóbrincando,maselemeolhoucomumacaraséria.—Achoquenão.
***
Quando Ren chegou para me buscar, Howard e eu estávamos terminando dejantar. Ele tinha preparado macarrão com tomate e muçarela frescos, e eupassara a refeição inteira olhando para ele como uma louca. X é bonito,inteligente, charmoso.Menos quando você engravida dele? Aí de repente elepassaasertãoterrívelquevocêfogeparaooutroladodomundoparaevitá-lopordezesseisanos?Eupegaraodiáriotrêsvezesnaquelatarde,etodasasvezesolargara.Eradifícildemais.
—Estátudobem?—perguntouHoward.—Sim.Équeeuestava...pensando.Desdeque tínhamoscombinadonão falardaminhamãe,ascoisasestavam
umpoucomelhores.Naverdade,eramuitofácilconvivercomele.Howarderaumamisturadehippieenerdquesabetudodehistória.
Enfieiogarfonamassaoutravez.—Estámuitobom.— Bem, o mérito não é do chef. É muito difícil fazer besteira tendo
ingredientes tãobons.Então,oqueachadesairmosamanhã?Posso tirarodiatododefolga,eteremosbastantetempoparaturistar.
—Tudobem.—ParaondevocêeRenvãohoje?—Elesódissequequeriairàcidade.—Lina?—AcabeçadoRenapareceunaportadacozinha.—Falandonele...—Desculpepeloatraso.—EleviuHowardeseassustou.—Eeudeveriater
batido,senhor.Howardsorriu.—Oi,Ren.Querjantar?Eufizpastaconpomodoriemozzarella.—Buonissimo.Masnão,obrigado.Eujácomi.Minhamãetentoureproduzir
um prato do KFC e fez uma panela enorme de purê que basicamente setransformouemcola.Aindaestoutentandodigerir.
—Ecaaa.Howardriu.— Já passei por isso. Às vezes a gente simplesmente precisa de KFC—
comentou,entãopegouopratoeentrounacozinha.Ren se sentou ao meu lado, pegou um fio de macarrão do meu prato e
perguntou:—Então,aondevamoshoje?
—Comovousaber?VocêqueédeFlorença.—É,mastenhoasensaçãodequevocênãopassoumuitotemponacidade.
Temalgumacoisaqueestejaloucapraver?—Nãotemtipoumatorreinclinadaoucoisaassim?—Linaaa.IssoficaemPisa.—Relaxa, estou brincando,mas, na verdade, tem uma coisa que eu quero
ver. Vamos lá em cima comigo um segundo. — Eu levei meu prato para acozinha,eRenmeseguiuatéoquarto.
—Esteémesmoseuquarto?—perguntouelequandoentramos.—É.Porquê?—Vocênãotirounadadamala?Istoaquiestámeiovazio.—Eleabriuuma
dasgavetasvaziasdacômoda,depoisafechoudevagar.—Todasasminhascoisasestãoaqui.—Euaponteiparaamala.Qualquerumqueolhasseachariaqueelahaviaexplodido,asroupasestavam
espalhadasemcimadela.—Vocênãovaificaraquiumtempo?—Sóoverão.—São,tipo,doismeses.—Esperoquesejamenos.—Lanceiumolharparaaportaaberta.Ai.Seráqueera imaginaçãoouminhavoz tinhareverberadopelocemitério
inteiro?—Achoquenãodápraeleouvir.—Esperoquenão.Eu atravessei o quarto, depoisme ajoelhei para pegar o diário embaixo da
camaecomeceiafolheá-lo.—Eulisobreumlugar...PonteVéchio?—PonteVecchio?—Elemeolhoucomumacaradedúvida.—Vocêestá
brincando,nãoé?—Euseiquefaleierrado.—Bem,falou,querdizer,vocêassassinouonome.Masvocênuncafoilá?
HáquantotempoestáemFlorença?—Desdeterçaànoite.—Issosignificaquedeveria tervistoaPonteVecchionaquartademanhã.
Vaisearrumar.Estamossaindo.Olheiminharoupa.—Eujáestoupronta.—Desculpa.Foimododedizer.Pegasuabolsaousejaláoquefor.Estamos
indo.Você precisa conhecer.Está naminha lista de dez lugares preferidos nomundo.
—Estáaberta?Sãoquasenovehoras.Elesoltouumgemido.—Sim,estáaberta.Vamos.Peguei o dinheiro que Howard tinha me dado na noite anterior e enfiei o
diárionabolsa.Renjáestavanomeiodaescadaquandofuiatrás,masaochegarláembaixoeleparouderepente,eeudeiumencontrãonele.
Howardestavasentadonosofá,comolaptopapoiadonosjoelhos.—Aondevocêsdoisestãoindocomtantapressa?—LinaaindanãofoiàPonteVecchio.Voulevar.—Renpigarreou.—Com
suapermissão,senhor.—Permissãoconcedida.Éumaótimaideia.Lina,vocêvaiadorar.—Obrigada.Esperoquesim.Fomosatéaporta.—Estoudeolhoemvocê,Ren—disseHowardnoinstanteemqueRensaiu
paraavaranda.Rennãosevirou,masseempertigoucomosetivessetomadoumchoquena
coluna.Howardmeolhouepiscou.Ótimo.AgoraRennuncamaisiarelaxar.A noite estava quente, e Florença parecia duas vezes mais cheia do que
quando eu fui com Howard. Ir de scooter era um pouco mais rápido porquepodíamospassarentreoscarrosnoengarrafamento,masmesmoassimlevamosum bom tempo. Não que eu me importasse. Andar de scooter era muitodivertido,eoarfrioquesopravapareciaserminharecompensaporsobreviveraumdia tão longoequente.QuandoRenestacionou,a lua já surgira redondaepesada como um tomate maduro, e eu me senti como se tivesse dado ummergulholongoerefrescante.
—Porqueestátãocheiohoje?—perguntei,entregandoocapaceteparaeleguardarembaixodobanco.
—Éverão.Aspessoasgostamdesair.Eosturistaschegamembando.Sãoverdadeirasmanadas!
—Ren,vocêémeioestranho.—Jámefalaramisso.—Oqueessapontetemexatamente?—“PonteVecchio”significa“PonteVelha”.ElaficasobreorioArno.Vem,
époraqui.Fizopossívelparaacompanhá-loenquantoeleabriacaminhoparaatravessar
a rua, e logo chegamos a uma calçada larga junto ao rio.OArno se estendiaescuro emisterioso, e asmargens eram iluminadas como uma passarela, comfiosdeluzescintilantesquedesapareciamemambasasdireções.
Eumepermitiumsegundoparaabsorvertudoaquilo.—Ren...élindo.Nãoacreditoqueaspessoaspossammoraraquideverdade.—Comovocêmora?Euoolheieeleestavasorrindo.Dã.—Bem,é,achoquesim.—Ésóesperar.Depoisdeverissovocêvaiquererficaraquiprasempre.Aspessoasquepassavamporaliempurravamumasàsoutras,entãoRenme
deuobraçoefomosatéorio,pulandoporcimadeumcaradecabelocompridosentadodecostasparaaágua.Eletocavaumviolãovelhoecantava“Imagine”comumfortesotaque.
—Meupaitemumlivroqueensinaletrasdemúsicaeminglêspraitalianos.Achoquevouemprestarparaaquelecaraali—brincouRen.
—Ah,maspelomenoseletransmiteosentimentocerto.Estácantandocommuitanostalgia.
O ponto em que meu braço tinha ficado colado ao do Ren estavaesquentando,masantesqueeupudessepensarnisso,eleseafastouecolocouasmãosnosmeusombros.
—Prontapraengolirseuchiclete?—Oquê?—ProntapraveraPonteVecchio?—Claro.Éporissoqueestamosaqui,nãoé?Eleseviroueapontou.—Porali.A calçada havia nos levado a uma pequena ponte para pedestres. Era
pavimentadacomasfalto,eváriosturistasseaglomeravamemvoltadepanosecobertoressobreosquaisbolsaseóculosescurosfalsosestavamàvenda.Nadainteressante.
— É aqui? — perguntei, tentando não demonstrar muito que estavadecepcionada.
Talvezfossemaislegalduranteopôrdosol.Rensoltouumagargalhada.—Não.Não é esta ponte. Pode acreditar emmim, você vai saber quando
colocarosolhosnela.Fomosatéo centrodaponte, eumhomemnegro se colocoudiantedo seu
cobertorcheiodemercadorias.—Meujovem,querbolsabonitaPradaparanamorada?Quinhentoseurosna
loja,masdezeurosparavocê.Fazelasentiramordeverdade.—Não,obrigado—disseRen.Euocutuquei.
— Não sei, não, Ren. Parece um ótimo negócio. Dez euros pelo amorverdadeiro?
Elesorriu,parandonomeiodaponte.—Vocênãoviu,nãoé?—Vioqu...ah.Corriparaoguarda-corpo.Estendidasobreorio,aunsquatrocentosmetros
denós,haviaumapontequepareciatersidoconstruídaporfadas.Trêsarcosdepedraerguiam-segraciosamentedaágua,etodaaextensãoeracobertaporumafileira flutuante de prédios coloridos debruçados sobre o rio. Havia três arcosmenores abertos no centro, e tudo emanava uma luz dourada na escuridão,iluminadopelopróprioreflexonaágua.
Chicleteoficialmenteengolido.Rensorriaparamim.—Uau!Nemseioquedizer.—Nãoé?Vem.—Eleolhouparaadireita,depoisparaaesquerda,epulouo
guarda-corpodapontecomonumsaltocomvara.—Ren!Eu me debrucei, com a certeza de que o veria nadando cachorrinho em
direçãoàPonteVecchio,masacabeicaraacaracomele.Renestavaagachadonumabordaprotuberantedo tamanhodeumamesaquependia sobrea águaepareciaridiculamentesatisfeitoconsigomesmo.
—Euestavaesperandoouvirvocêcaindonaágua.—Eusei.Agoravem.Sótomacuidadopraninguémver.Deiumaolhadaparatrás,mastodomundoestavaenvolvidodemaiscomas
Prada falsificadas para prestar atenção emmim. Subi no parapeito e pulei aoladodele.
—Issoépermitido?—Dejeitonenhum,masdaquisetemamelhorvista.—Éincrível.Poralgummotivo,obarulhodaspessoasládecimanãochegavaaténós,e
juroqueaPonteVecchioestavaaindamaisbrilhanteerégia.Tiveumasensaçãosoleneeperplexa.Comoadeiràigreja.Sóqueeuqueriaficaralipelorestodavida.
—Então,oqueacha?—Elame faz lembrar de uma vez em que eu eminhamãe fomos a uma
reservadepapoulasnaCalifórnia.Todasasfloresseabremaomesmotempo,eplanejamosnossavisitaparachegarnahoracerta.Foimágico.
—Comoissoaqui?—É.
Elechegouparatrás,parandoameulado,eencostamosacabeçanaparede,apenasadmirando.Enfimacheiomeulugar.Eracomoseminhamãeestivesseacenandoparamimdooutroladodorio.Seeuforçasseavista,quasepodiavê-la.Meusolhosficaramumpoucoembaçados, transformandoasluzesdaPonteVecchio em grandes halos dourados, e tive que passar uns trinta segundosfingindoqueumciscomisteriosodoArnotinhacaídonomeuolho.
Pela primeira vez, Ren ficou em completo silêncio, e quando o acesso dechoropassou,olheiparaele.
—Então,porquesechama“Pontevelha”?Nãoétudovelhoporaqui?—É a única ponte que sobreviveu à SegundaGuerraMundial, e émuito,
muito velha, até pros padrões italianos. Tipo, medieval. Aquelas coisas queparecemcasaseramaçougues.Elesabriamasjanelasejogavamtodoosangueeasentranhasnorio.
— Não acredito. — Olhei de novo para as janelas. A maioria tinhavenezianasverdesetodasjáestavamfechadas.—Sãolindasdemaispraisso.Oquesãoagora?
—Joalheriasluxuosíssimas.Eestávendoaquelasjanelasespaçadasnotopodaponte?
Euassenti.—Sim.—Aquiloéumapassarela.Chama-seCorredorVasarianoeerausadapelos
MédicicomoformadesedeslocarporFlorençasemprecisarandarpelacidade.—AfamíliadaElena.—Esattamente. Assim não precisavam semisturar conosco, a ralé. Quem
expulsoutodososaçougueirosfoiCosimoMédici.Elequeriadarmaisprestígioàponte.—Renolhouparamim.—Então,quelivroeraaquelequevocêestavalendo?Oqueestavadebaixodasuacama.Vocêconfianele.Aspalavrasabriramcaminhonaminhacabeçaantesqueeu
aomenos tivesse a chancedequestionar.Edaí que eu só conheciaRenhaviadoisdias?Eusentiaquepodiaconfiardeverdadenele.
Tireiodiáriodabolsa.— É o diário da minha mãe. Ela estava morando em Florença quando
engravidoudemim,eescreveunestediáriosobreessaépoca.Elaoenviouparaocemitérioantesdemorrer.
Eleolhouparaocaderno,depoisparamim.—Caramba.Issoémuitopesado.Pesado.Exatamente.Euabrinaprimeirapágina,olhandodenovoaspalavras
agourentas.—Comeceialerumdiadepoisquecheguei.Estoutentandoentenderoque
aconteceuentreHowardeela.—Comoassim?Eu hesitei. Seria possível resumir toda aquela história complicada em
algumasfrases?—ElaconheceuHowardquandoestavaestudandoaqui,edepoisqueficou
grávidafoiemboradaItáliaenuncacontouaelesobremim.—Sério?—Quandoelaficoudoente,começouamefalarmuitodele,edepoismefez
prometerqueviriamoraraquiporumtempo.Sóquenãomecontouoquetinhadadoerradoentreeles,eachoquemedeixouestediáriopraqueeudescobrisse.
EumevireieolheinosolhosdoRen.—Então,ontemànoite,quandovocêdissequenãoconheciaHowardmuito
bem,nãoestavaexagerando.—É.Euoficialmenteoconheçohá...—Conteinosdedos.—Quatrodias.— Não acredito! — Ele balançou a cabeça, incrédulo, e seus cachos
balançaram.—Entãomedeixeentenderbem.Vocêéumaamericanamorandoem Florença... Não, morando num cemitério... com um pai que acabou dedescobrirquetem?Vocêéaindamaisestranhaqueeu.
—Ei!Elebateucomoombronomeu.—Não, não falei nomau sentido. Só quis dizer que nós dois somosmeio
diferentes.—Porquevocêédiferente?—Eu soumetade americano,metade italiano. Quando estou na Itália, me
sintoamericanodemais, equandoestounosEstadosUnidos,me sinto italianodemais.Alémdisso,soumaisvelhoquetodomundodaminhaturma.
—Quantosanosvocêtem?—Dezessete.MinhafamíliamorounoTexasporalgunsanosquandoeuera
bempequeno,equandovoltamoseunãofalavaitalianomuitobem.Jáerameiovelhoemrelaçãoaosoutrosalunosdomeuanodaescola,eacharammelhoreuentrar na turma anterior pra alcançar os outros. Meus pais acabaram mematriculando na escola americana alguns anos depois, mas a direção nãopermitiuqueeupulasseumano.
—Quandovocêfazdezoito?—Emmarço.—Elemeolhou.—Mas então, você sóvai passar o verão
mesmo?—É.Howardeminhaavóqueremqueeufiquemaistempo,masobviamente
asituaçãoémuitoestranha.Eumaloconheço.—Mastalvezacabeconhecendomelhor.Tirandoaserraelétrica,euatéque
gostodele.Eudeideombros.— É que é muito bizarro. Se minha mãe não tivesse ficado doente, eu
provavelmente não saberia nada sobre ele. Ela sempre me disse que tinhaengravidadomuitojovemedecididoqueeramelhormecriarsozinha.
—Atéagora.—Atéagora—repeti.—OndevocêvaimorarquandosairdeFlorença?— Com minha amiga Addie, eu espero. Fiquei com a família dela até
terminarosegundoano,eelavaiperguntaraospaissetambémpossomorarlánoanoquevem.
Eleolhouparaodiário.—Então,oquevocêestálendoaí?— Bem, até agora sei que eles tinham que manter o relacionamento em
segredo.Eleeraprofessor-assistentenaescolaqueelafrequentava,eachoqueadireçãonãoteriagostado.Eelalevavaessesegredomuitoasério.Tipo,depoisquecomeçaramanamorar,elaparoudeescreveronomedeleporquetinhamedodequealguémlesseodiárioedescobrisse.Elasóochamade“X”.
Elebalançouacabeça.— Sério? Bem, a resposta pra sua pergunta deve ser essa. A maioria dos
romancessecretospareceterprazodevalidade.—Talvez,masquandochegueiaqui,Soniadissequeminhamãemorouum
tempocomHowardnocemitério,entãonãoeraexatamentesecreto.Edissequeumdiaminhamãesimplesmentefoiembora,semnemsequersedespedirdela.
—Nossa.Deveteracontecidoalgumacoisa.Algumacoisaséria.—Tipo...umagravidez?—Ah.Achoqueissoseriaimportante.—Elemordeuolábio,pensativo.—
Agoravocêmedeixoucurioso.Memantématualizado,estábem?—Claro.— Então ela adorava a Ponte Vecchio? Sobre quais outros lugares ela
escreveu?Pegueiodiáriodasmãosdeleecomeceiafolheá-lo.—Elafalaalgumasvezesdeumaboate,aSpace.—Space Electronic?—Ele riu.—Não acredito. Eu fui lá há umas duas
semanas.Elenaadoraaquelelugar.ElaconheceumdosDJs,entãoconseguimosentrardegraça.Oquemais?
— O Duomo, os Jardins de Boboli... Ele também a levou a uma padariasecreta.Vocêsabeondefica?
—Umapadariasecreta?
Entregueiodiárioaele.—Lêissoaqui.Elepassouosolhospelapáginaemqueminhamãecontasobreapadaria.—Nuncaouvifalardisso,masdeveserincrível.Penaqueelanãoanotouo
endereço,euadorariacomerumcornettofresco.O celular do Ren começou a tocar, ele o tirou do bolso e hesitou por um
instante,depoisapertouSILENCIAR.Namesmahora,voltouatocareeleapertouSILENCIARoutravez.
—Quemé?—Ninguém.Eleenfiouocelularnobolso,masconseguiveronomenatela.Mimi.—Ei,quertomarumgelato?Franziatesta.—Oqueéisso?Elesoltouumgemido.—Gelato.Sorveteitaliano.Amelhorcoisaquevaiacontecernasuavida.O
quevocêficoufazendodesdequechegou?—Indopraláepracácomvocê.—E estáme dizendo que só tenho um verão...—Ele balançou a cabeça,
depoisselevantou.—Vem,Lina.Temosmuitascoisasprafazer.
Capítulo12
ENTÃO... GELATO ITALIANO. Imagine a delícia que é um sorvete decasquinha comum, multiplique por um milhão, depois arremate com pó dechifres de unicórnio. Ren me fez parar depois de tomar a quarta bola. Euprovavelmenteteriacontinuadoparasempre.
Quandocheguei,HowardestavaassistindoaumfilmeantigodoJamesBondcomospésdescalçosapoiadosnamesinhadecentro.Haviaumbaldedepipocagigantescoaoladodele.
—Ofilmeacaboudecomeçar...querassistir?Olheiparaatela.OJamesBonddasantigasnadavaemdireçãoaumprédio
usando um disfarce que era basicamente um pato empalhado preso a umcapacete.Emgeral,euadoravafilmesantigoscafonas,masnaquelanoitetinhaoutrascoisasemmente.
—Não,obrigada.Voudescansar.—Eesperoconseguirrespostas.
9DENOVEMBROEstafoiamelhornoitedaminhavida,edevoissoaumaestátua.
Eu e X estávamos na Piazza della Signoria olhando a estátua deGiambolognachamadaOraptodassabinas.Fiqueimuitoconfusaporqueeminglêschamamde“TheRapeoftheSabineWomen“,enaimagemnãoficaclarooqueestáacontecendo.Sãotrêsfiguras:umhomemsegurandoumamulhernoareumsegundohomemagachadonochãoolhandoparaela.Éevidentequeacenaéangustiante,masostrêssãomuitograciosos,harmoniososaté.
Eudisse aXque achavaque amulher parecia estar sendo erguida, nãoviolentada,eclaroqueeleconheciaahistória.QuandoRomafoifundada,oshomensperceberamquehaviaalgomuito importantefaltandoemsuacivilização:mulheres.Masondeasencontrariam?Asúnicasmulheresqueviviam a uma distância relativamente pequena pertenciam a uma tribo
vizinha chamada sabinos, e quando os romanos foram pedir permissãopara se casarem com algumas das filhas daquelas famílias, ouviram umretumbantenão.Então,numaatitudetipicamenteromana,elesconvidaramos sabinosparauma festa e, nomeiodanoite, dominaramoshomens earrastaram asmulheres desesperadas para sua cidade.Enfim, os sabinosconseguiram invadir Roma, mas àquela altura, era tarde demais. Asmulheres não queriam ser resgatadas. Tinham se apaixonado por seuscaptores e, no fim das contas, chegaram à conclusão de que a vida emRomaeraótima.Apalavraemlatimraptioseparececomrape,quequerdizer estupro,mas na verdade significa “rapto”. Só então entendi que otítulodaobraeminglêsfoiumatraduçãoequivocada.
Jáestavatarde,efaleiparaXqueprecisavairparacasa,masderepenteele sevirouparamimedissequemeamava.Eledisse issodeum jeitocasual, como se não fosse a primeira vez, e eu levei um instante paraassimilaraspalavras.Entãoofizrepeti-las.ElemeAMA.Podemeraptar.Eumerendo.
10DENOVEMBROFui para a aula hoje de manhã depois de dormir umas duas horas. Xchegou tarde, e emboraeu soubessequedevia terdormidoaindamenosque eu, ele estava perfeito. Quebrou nossa regra de agir como simplesamigosnaescolaemeabriuumenormesorriso.Todosviram.Euqueriapoderpausaressemomentoeviverneleparasempre.
17DENOVEMBROÀsvezesparecequemeutempoédivididoemduascategorias:o tempocom X e o tempo esperando para estar com X. Desde aquela noite naPiazzadellaSignoria,ascoisasandaminstáveisentrenós.Emcertosdias,nosdamosmuitobem,eemoutros, eleagecomoseeu realmente fosseapenas uma amiga. Ultimamente ele tem tomado cuidado demais paramanter o segredo. Seria tão ruim assim se todomundo soubesse?Achoqueficariamfelizespornós.
21DENOVEMBROQuandovimparaaItália,emjunho,seismesespareciamumaeternidade.Agoraparecequeestãoescorregandoporentremeusdedos.Sótenhomais
ummês!Odiretordaescola,oSignorePetrucione,dissequeadorariaqueeu ficasse pormais um semestre, e eu faria de tudo para ter um poucomaisdetempoparaestudareficarcomX,maseodinheiro?Emeuspais?Será que ficariam arrasados? Toda vez que nos falamos, eles tocam noassuntoda faculdadede enfermagem, edáparaperceberoquanto estãodecepcionados.
Quandochegueidaaulahoje,haviaumacartadeles.Elestinhamincluídodoisavisosdauniversidadedizendoqueseeunãovoltarparaosemestreseguinte, vou perder minha vaga. Só passei os olhos pelascorrespondências, depois as enfiei no armário. Eu só queria que issoterminasse.
Ops.Primeirossinaisdeproblemas.Comoaquelesminitremoressentidosantesdeumterremoto.Comosechamam?Abalos?Semdúvidaeuossentianaquelaspáginas.Eledissequea amava,masnãoadeixavacontar aos amigos sobreorelacionamento? Por que ele teimava tanto emmanter o segredo?Minhamãenãoparecianemumpoucopreocupadacomisso.
Eu me recostei na cama e cobri os olhos com o braço. O jovem Howardpareciamuitoinconstante.Seráquetinhausadotodaaquelahistóriadesegredocomodesculpaparanãosecomprometerdeverdade?Seráqueelagostavamuitomais dele do que ele dela? Aquilo era deprimente demais. Coitada da minhamãe.MasentãocomoaquiloseencaixavanoqueSoniadisserasobreHowardserloucoporela?
Olheia fotonocriado-mudo.NãoconseguiaparardepensarnoquesentiranaPonteVecchio.Depoisqueminhamãemorreu,muitagentemedissequeelaestariasemprepertodemim,maseununcasentiisso.Atéaquelanoite.EumerevireinacamaepegueiocelulardoHowardnacômoda.
—Pronto?—Renestavacomumavozgrogue.—Desculpa,vocêestádormindo?—Nãomais.VionúmerodoHowardnomeucelulare tiveumataquede
pânico.Eusorri.—Howard deixou o celular dele comigo.Ele disse que posso usá-lo até a
segundaordem.Entãotenhoumaperguntapravocê.—Quersabersevoulevá-laàSpace?
Leveiumsusto.—Humm...é.Comosabiaqueeuiaperguntarisso?—Tive um pressentimento. E jáme adiantei.Mandei umamensagem pra
Elenaquandochegueiemcasa.ElaachaqueaqueleamigoDJvai trabalhar láessasemana,oquesignificaquevamosentrardegraça.Queriramanhã?Possoversemaisgentedaescolatambémquerir.Sim.—Ren,seriaperfeito.EobrigadadenovopormelevaràPonteVecchio.—Eporapresentarvocêaoamordasuavida?Achoquevocêbateuonovo
recordemundialdamaiorquantidadedegelatodevoradadeumasóvez.—Querotentarbateroutrorecordeamanhã.Qualfoiaqueleúltimosabor?O
quetinhapedaçosdechocolate?—Stracciatella.—Essevaiseronomedaminhafilha.—Sorteadela.
6DEDEZEMBRORecebi um e-mail da faculdade de enfermagem declarando que minhamatrícula foi oficialmente cancelada. Tentei solicitar uma prorrogaçãodepoisdereceberaquelascartasdosmeuspais,mas,parasersincera,nãome esforcei muito. Meus pais estão zangados, mas eu só sinto alívio.Agora não há nada me atrapalhando. Quando contei a notícia a X, elepareceusurpreso.Achoquenãosabiaqueeutinhatantavontadedeficar.
8DEDEZEMBROÓtima notícia! A escola se dispôs a me deixar ficar mais um semestrepagandoametadedamensalidade.Petrucionedissequeeusouumadasalunas mais promissoras que já passaram por aqui (!!) e que ele e orestantedocorpodocenteachamqueoutrosemestredeestudosvaiajudarmuito na minha futura carreira. FUTURA CARREIRA. Como se fosseuma certeza!Mal posso esperar para contar a X. Eu quase contei pelotelefone,masdecidiesperarefalarpessoalmente.Sóvamosconseguirnosencontraramanhãànoite.Esperoqueeuaguenteatélá.
9DEDEZEMBROContei paraX.Achoque a notícia o pegoude surpresa, porquepor um
segundoelesóficoumeolhando.Depoismelevantounocoloemegirou.Estoumuitofeliz.
27DEDEZEMBROXfoiparacasapassarasfestasdefimdeano,eFrancescamesalvoudoqueseriaoNatalmaislongoetristedahistóriaaomeconvidarparairaPariseficarnoapartamentovagodoamigodela.
Pariséosonhodequalquerfotógrafo.Quandonãoestávamosaoarlivretirando fotos, ficávamos na sacada do apartamento enroladas emcobertores e comendo caixas gigantescas de chocolate que dizíamos tercompradoparanossasfamílias.NavésperadeNatal,convenciFrancescaa ir ao rinque de patinação da Torre Eiffel, e, embora ela tenha ficadosentadana lateral reclamandodo frio, eu patinei pormais de umahora,tontacomamagiadaquilotudo.
O único lado ruim foi a saudade que senti de X. Francesca falou delealgumas vezes, e precisei de toda a minha força de vontade para nãocontar a ela o que está acontecendo entre nós. É como se estivéssemoslevando uma vida dupla: somos amigos em público e namorados emparticular. Detestei passar o Natal longe dele. E também estoupreocupada. Como nosso relacionamento vai progredir se não podemosnemcontaraninguémqueestamosjuntos?Seráqueconsigosobreviveramaisseismesesdesigilo?
20DEJANEIROAsaulasvoltaramcom tudo, e agoraquea empolgação inicialpor ficarmaisumsemestrepassou,estoupresaàrealidade,quesignificacalcularerecalcular. Toda noite pego meu caderno e experimento cenáriosdiferentes. Quanto tempo na Itália meu dinheiro vai durar se eu fizermenosaulas?Eseeusócomerespaguetecommolhodetomate?Eseeuconseguir um financiamento estudantil? (Dedos cruzados.) Todas asrespostassãobastanteincertas.Atépossoficar,masvaiserapertado.
4DEFEVEREIROOfinanciamentoenfimsaiuhoje.UFA.Fizumjantardecomemoração.Otempoestavaperfeito(frioesemchuva),eacomida,divina.AtéSimone
eAlessio se comportaram bem: só tiveram uma discussão (o que é umrecorde), e foi sobre quem comeria o último pedaço da caprese. Finnacabounãovoltandoparaosemestre.Eleestavaemdúvidae,noúltimoinstante,decidiuaceitarumavagadeprofessornaUniversidadedoMaine.FrancescacolocouumexemplardeOvelhoeomarnacadeiraondeelesempre se sentava, então pelomenos nosso amigo estava aqui de alma.SentiaquelavelhaestranhezadesempreporqueopessoalaindanãosabiasobreXeeu,masestoucomeçandoaaceitar.Elenãopareceseimportar,eascoisassãocomosão.Achoqueestãoforadomeucontrole.
15DEMARÇOAconteceuumacoisaestranhaestanoite.
Adrienne não tem andado muito conosco neste semestre. Ela passa amaior parte das noites em casa e ultimamente parece nos evitar até nasaulas, então hoje alguns de nós a emboscamos em seu apartamento e alevamos para jantar. Depois, todomundo foi lá para casa, mas quandochegamos ao prédio, ela ficou para trás. Finalmente fui procurá-la, equando saí do apartamento, a vi na escada, conversando ao celular esoluçandocomoseseucoraçãotivessesidopartidoaomeio.Tenteisairdefininho,masastábuasdopisorangeram,equandoelameviu,melançouum olhar que congelou até minhas entranhas. Ela foi embora sem sedespedir.
20DEMARÇOTivemuitoazar e acabei formandodupla comAdrienneparao trabalho“Andando por Florença”. E eu digo “muito azar” porque as coisas têmandandomuitodesconfortáveisdesdeaquelanoite.
Minha ideia para o projeto era ir até oArno fotografar pescadores,masAdrienne disse que já tinha o temaperfeito emmente.Ela falou de umjeitoquenãodavaamenoraberturaparadiscussão,então simplesmentepegueiacâmeraefuicomela.Tenteiperguntarseelaestavabem,maseladeixou claro que não queria falar sobre aquela noite. Nem sobre maisnada.Enfim,desistidetentarconversareaseguipelacidade.
Andamosrápidoemsilêncioporunsdezminutoseentãoelavirounuma
ruazinhaeentrounumapequenalojadesuvenires.Haviadoishomensdemeia-idade sentados num canto jogando cartas e, quando a viram,assentiramparaela,quefoidiretoparaosfundosdaloja.Atrásdacaixaregistradora,haviaumaportacomumacortinadecontas,edooutroladoficavaumquartinhocomumacozinhapequenaeumacamade solteiro.UmamulherdevestidofloridoestavasentadadiantedeumaTVempretoe branco e, quando nos viu, ergueu a mão e disse: “Aspetta. Cinqueminuti.” (Tradução: “Esperem. Cincominutos.” Viu? Estou aprendendoumpoucodeitaliano.)
Enquanto eu tentava descobrir o que estávamos fazendo ali, Adriennepegousuacâmeraecomeçouatirarfotosdocômodoedamulher,quenãoparecia notar. Enfim, Adrienne se voltou para mim e disse num inglêslento:“EstaéaAnna.Elaémédium.Osfilhosdelasãodonosdalojaalina frente, eduranteodiaela joga tarô.Ninguémmaisvai tirar fotosdeumamédiumdeFlorença.Éumtemasemigual.”
Tive que admitir que ela estava certa. Era sem igual. E o cenário nãopoderia ser mais interessante: um quartinho dos fundos decrépito, acortinade contas, a fumaçado cigarrodeAnna espiralandoparao teto.Então peguei a câmera e também comecei a tirar fotos. Por fim, oprograma terminou e a mulher se levantou para desligar a TV, indodevagaratéumamesaqueficavaencostadanaparedeegesticulandoparanossentarmos.Depoisdenosapertarmosaoredordamesa,elapegouumbaralho e começou a virar as cartas uma a uma, murmurando para simesma em italiano. Adrienne largou a câmera e fez absoluto silêncio.Depois de alguns minutos, Anna olhou para nós e disse com um fortesotaque:“Umadevocêsvaiencontraroamor.Asduasvãosofrer.”
Fiquei meio perplexa. Não sabia que ela ia jogar tarô para nós.MinhareaçãonãofoinadacomparadaàdaAdrienne.Elaficouarrasada.Depoisquerecuperouacompostura,começouadispararperguntasemitalianoatéAnnaseirritarecortá-la.Nofinal,Adriennepagouefomosembora.Elanãomedirigiuumaúnicapalavranavolta.
23DEMARÇOTodos nós fomos a uma palestra naGaleriaUffizi.Howard se ofereceu
paramelevaremcasa,eacabeicontandosobreAdrienneeamédium.Elepassou vários minutos sem dizer nada. Então começou a andar maisrápidoeperguntousepodiamemostrarumacoisa.FomosatéaPiazzadelDuomo, e quando chegamos lá, ele me levou para o lado esquerdo dacatedralefalouparaeuolharparacima.Osoltinhacomeçadoasepôreasombra doDuomo cobriametade dapiazza. Eu não sabia o que estavaprocurando; só conseguia ver as lindas paredes detalhadas, mas elecontinuou tentando me fazer ver alguma coisa. Finalmente, pegou meudedoeoguiou,deformaqueacabeiapontandoparaalgoqueseprojetavada parede da catedral. “Ali”, disse ele. E então eu vi: bem nomeio detodos aqueles lindos entalhes e estátuas de santos, havia a escultura deumacabeçadetouro.Suabocaestavaabertaeeleolhavaparabaixocomoseobservassealgumacoisa.
Elecontouqueháduashistóriassobreacabeçadotouro.AprimeiraéqueessesanimaisforamfundamentaisparaaconstruçãodoDuomo,eotourofoiacrescentadocomoformadehomenageá-los.Aoutrahistóriatemumarmaisitaliano.
DuranteaconstruçãodoDuomo,umpadeiromontouumabancapertodocanteiro de obras, e ele e sua mulher vendiam pão para os pedreiros eoperários. Amulher do padeiro e um dosmestres de obra acabaram seconhecendo e se apaixonando, e quando o padeiro descobriu o caso, oslevoupara o tribunal, onde foramhumilhados e sentenciados a passar avida longe umdo outro. Para se vingar, omestre de obras esculpiu umtouroeocolocounoDuomo,numpontoemqueaesculturaencarasseopadeiro em sua banca como um lembrete constante de que sua mulheramavaoutrohomem.
Euamo todoesseconhecimentoqueele temsobreFlorença, e isso semdúvida me distraiu do episódio com Adrienne, mas agora estou meperguntando sobre o momento em que ele resolveu me contar aquelahistória.Seráqueeleestavatentandomedizeralgumacoisa?
Howard.Seunomepraticamentebrilhavanopapel.PorquedaquelavezelanãosereferiuaelecomoX?Seráqueforaumdeslize,ouelesestavamapontode
tornar o relacionamento público?E havia alguma conexão entreAdrienne e omomentoemqueHowardcontaraahistória?
Eumelevanteiefuiatéajanela.Aindaestavaquenteláfora,quaseabafado,ealuabanhavaocemitériocomoumrefletor.Empurreiasvioletasparaoladoemeinclineiparaafrente,apoiandooscotovelosnoparapeito.Eraestranho,masemmenosdeumasemanaaslápidesjánãomeincomodavamtanto.Eramcomopessoaspelasquaispassamosnaruaemalnotamos.Comoumbarulhodefundo.
Doisfaróisapareceramacimadascopasdasárvoreseobserveiocarrodescera estrada sinuosa. Por que Adrienne tinha levado minha mãe a uma leituramediúnica da vida amorosa delas? Seria possível que ela também estivesseinteressada em Howard? Talvez fosse com ele que ela estivesse falando naescada.
Suspirei. Até então, o diário não estava esclarecendo nada. Só confundiaaindamaisascoisas.
Capítulo13
—EUQUEROLHEmostrartantoslugaresemFlorençaqueédifícilsaberporondecomeçar.
Olheiparaele.EueHowardestávamosoutravezacaminhodacidade,eeramuitodifícildecidiroqueeusentiaporele.Talvezporeleestarouvindo“SweetEmotion”,doAerosmith,novolumemáximocomtodasas janelasabertaseàsvezes improvisar uma bateria no volante fosse muito complicado pensar nelecomoomisteriosodestruidordecoraçõesX.Alémdisso,elecantavamuitomal.
Eumeapoieinaporta,deixandomeusolhossefecharemsóporumsegundo.TinhaficadoacordadaatémuitotardepensandoemHowardenaminhamãe,edepoisumgrupoincrivelmenteexuberante,umaespéciedeescoteirositalianos,atravessaraocemitériofazendoumaalgazarraaoraiardodia.Eutinhadormidounsquatrominutos.
—PodemoscomeçardenovopeloDuomo?Podíamos ir atéo topoevocêveriaacidadeinteiradeumasóvez.
—Claro.Abriosolhos.Esefalassedopadeiroedotouro?Seráqueeleselembraria?—AcheiquevocêiaconvidarRentambém.—Eunãosabiasepodia.—Eleésemprebem-vindo.—Maselemorredemedodevocê.O que era ridículo. Eu lhe lancei um rápido olhar. Apesar de seu passado
duvidoso,Howardpareciaestartentandoimitarumperfeitopaidosanos1950.Rostorecém-barbeado,camisetabrancalimpa,sorrisocativante.
Todosositensbatiam.Eleacelerouparaultrapassarumcaminhão.—Eunãodeveriaterimplicadocomeleontemànoite.Dáparaverqueéum
bommenino,eachoótimovocêsaircomalguémemquemconfio.— É. — Eu me ajeitei no banco, me lembrando de repente do nosso
telefonemadanoiteanterior.—Eletambémmeconvidouprairaumlugarhojeànoite.
—Onde?Hesitei.—Uma,humm,boate.Ummontedegentedafestavaiestarlá.
—Paraalguémqueestáaquihámenosdeumasemana,vocêtemumavidasocialbemagitada.Parecequetodososnossosprogramasterãoqueserdiurnos.—Elesorriu.—Ficomuitofelizporvocêestarconhecendoosalunosdaescola.Ligueiparaadiretorapoucosdiasantesdevocêchegareeladissequeseriaumprazer lhemostraro lugar.TalvezRenpossa ir também.Tenhocertezadequeelepoderesponderaqualquerperguntaquevocêtenha.
—Nãoprecisa—falei,depressa.—Bem,talvezemoutromomento.Nãoprecisaseragora.Fizemosumretorno,eeleparoudiantedeumafileiradelojas.—Ondeestamos?—Lojadecelulares.Vocêprecisadeumsóseu.—Preciso?Elesorriu.—Precisa.Estousentindofaltadefalarcomaspessoas.Vamos.Asvitrinesestavamcobertasdepoeirae,quandoentramos,umvelhinhoque
pareciaserumpersonagemdecontosdefadasergueuorostodolivroqueestavalendo.
—SignoreMercer?—perguntouele.—Si.O velhinho pulou com agilidade de seu banco e começou a vasculhar a
prateleiraqueficavaatrásdamesa.Finalmente,entregouumacaixaaHoward.—Prego.—Grazie.—Howard lhe entregouumcartãode crédito, depoismedeu a
caixa.—Eupediqueelesconfigurassemtudo,entãoestáprontoparaserusado.—Obrigada,Howard.Tirei o celular da caixa e o olhei comalegria.Agora eu tinhameupróprio
númeroparadaraThomas.Casoelepedisse.Porfavor,queeleestejanaSpacehoje. E, por favor, que ele peça meu número. Porque, sinceramente?Mesmocomtodoodramadosmeuspais,eunãoconseguiaparardepensarnele.
***
Howard estacionou namesma área emque paramos na noite emque fomos àpizzaria,equandochegamosaoDuomoelesoltouumgemido.
—Afilaestámaiorqueonormal.PareceatéqueestãodistribuindoFerrarisláemcima.
Olhei para a fila que ia até oDuomo. Tinha uns dezmil turistas suados emetade deles parecia estar à beira de um colapso nervoso. Ergui o rosto para
olhar o prédio, mas não havia nem sinal do touro. Provavelmente eu nãoconseguiriaachá-losozinha.Elesevirouparamim.
—Oqueachade tomarmosumgelatoantes,paraversea filadiminuiumpouco?
—Vocêconhecealgumlugarquetenhadestracciatella?— Qualquer gelateria que se preze tem stracciatella. Quando você
experimentou?—OntemànoitecomRen.— Achei mesmo que você estava diferente. É uma experiência que
transformaavidadequalquerum,nãoé?Bem,vamoscomprarumacasquinhaecomeçarodiadireito.Depoisenfrentaremosafila.
—Achoótimo.—Meulugarpreferidoémeiolonge.Vocêseimportadeandar?—Não.Levamosquinzeminutosparachegaràgelateria.Alojaeramaisoumenos
dotamanhodocarrodoHoward,eemboraaindaestivessenohoráriodocafédamanhã,o lugarestava lotadodegentedevorandoalegrementeoque,conformeaprendinodiaanterior,eraasubstânciamaisdeliciosadafacedaTerra.Todospareciamextasiados.
—Nossa,fazsucesso—faleiparaHoward.—Estagelateriaéamelhor.Sério.—Buongiorno.Umamulher com um corpo em forma de pera acenou para nós de trás do
balcão e eume aproximei.Aquela loja tinhamuitas opções.Haviamontanhasenormesdegelato colorido compedacinhosde frutas ou espirais de chocolateemrecipientesdemetal,etodaspareciamteracapacidadedemelhorarmeudiaemnovecentosporcento.Chocolate,frutas,nozes,pistache...Comoescolher?
Howardapareceuaomeulado.—Vocêseimportaseeuescolherparavocê?Prometoquecomprooutrose
nãogostar.Issoresolviaoproblema.—Claro,provavelmentenãoexistemsaboresruinsdegelato,nãoé?—Sim.Achoqueatéumgelatosaborterraficariabom.—Eca.Eleolhouparaamulher.—Unconoconbacio,perfavore.—Certo.Elapegouumacasquinhanobalcãoefezummontinhoaltocomumgelato
que parecia ser de chocolate, depois entregou a Howard, que por sua vez
entregouparamim.—Nãoésaborterra,é?—Não.Experimente.Deiumalambida.Densoecremoso.Pareciaseda,sóqueemformadegelato.—Hum.Chocolatecom...nozes?—Chocolatecomavelãs.Onomeébacio.Tambémconhecidocomoosabor
preferidodasuamãe.Achoqueviemosaquiumascemvezes.Antes que eu conseguisse detê-lo, meu coração despencou até os pés,
deixandoumimensoburaconomeupeito.Eraincrívelcomoàsvezeseuseguiaemfrente,mesentiabem,ederepente...Bam,sentiatantasaudadedelaqueatéminhasunhasdoíam.
Olheiparaminhacasquinhacomosolhosardendo.—Obrigada,Howard.—Denada.Elepediuoutra,depoisfomosparaarua,eeurespireifundo.OuvirHoward
falar da minha mãe tinha me desanimado, mas era verão em Florença, e euestavatomandoumgelatosaborbacio.Elanãoiaquererqueeuficassetriste.
Howardmeolhoucomatenção.—QueriamostrarumacoisanoMercatoNuovo.Jáouviufalardochafariz
porcellino?—Não,masporacasominhamãenadounele?Eleriu.—Não.Foiemoutro.Elacontoudoturistaalemão?—Sim.—Achoquenuncaritantonavida.Vamosláqualquerdiadesses,masnão
voudeixarvocêentrarnaágua.Maisàfrente,narua,oMercatoNuovoestavamaisparaumaglomeradode
lojasparaturistasaoarlivre:muitasbarraquinhasdesuvenires,comocamisetascomfrasesengraçadas:
SOUITALIANO,NÃOCONSIGOFICARCALMO.
NÃOESTOUGRITANDO,SOUITALIANO.
Eminhafavorita:
PODEAPOSTARSUASALMÔNDEGASQUESOUITALIANO.
Eu queria parar e ver se conseguia encontrar algo ridículo para enviar aAddie,masHowardpassoudiretopelomercadoemelevouatéondeumcírculodepessoassereuniaemvoltadaestátuadeumjavalidebronzecuspindoágua.Obichotinhapresaseumfocinholongo,douradoebrilhante,comoseestivessegasto.
—“Porcellino”significa“javali”?—Sim.EstaéaFontanadelPorcellino.Naverdade,ésóumareproduçãoda
original,mas existe desde o séculoXVII.Diz a lenda que se você esfregar onarizdele,teráagarantiadevoltaraFlorença.Quertentar?
—Claro.Esperei até que umamoça comum filho pequeno se afastasse e fui até lá,
usandoamãoquenãoseguravaogelatoparaesfregarbemonarizdojavali.Eentãofiqueialiparada.Ojavalimeencaravacomseusolhinhosredondoseosmolaresassustadores,enãopreciseiperguntarparasaberqueminhamãe tinhaestado bem ali,molhando as pernas com aquela água nojenta e torcendo comtodoocoraçãoparaficaremFlorençaparasempre.Evejaoqueaconteceu.Elanuncatinhavoltadonemparavisitar,enuncamaisvoltaria.
EumevireieolheiparaHoward.Elemeobservavacomumaexpressãotristeefelizaomesmotempo,comoseestivessepensandoamesmacoisaederepentetambémnãoconseguissemaissentirogostodoseugelato.Seráquedevoperguntaraele?Não.Euqueriasaberporela.
***
Nada melhorou lá no Duomo. Na verdade, a fila aumentara ainda mais, ecriançaspequenaschoravamportodolado.Alémdisso,comoFlorençadecidiraquetodospodíamosaguentarumpoucomaisdecalor,maquiagem,filtrosolaretodaaesperançadeserefrescarescorriampelorostodaspessoas.
—Agentedeviaterficadoemcasaaaaaa—chorouogarotinhoatrásdenós.—FaCALDO—disseamulheranossafrente.Caldo.Eureconheciaaquelapalavra.Howardmeencarou.Ambosestávamosmuitosilenciososdesdeoporcellino,
maseramaisumsilênciotristequeconstrangedor.—Prometoquevaivalerapena.Maisdezminutos,nomáximo.Assenti e voltei a tentar ignorar toda a tristeza que se revirava no meu
estômago.PorqueHowardeminhamãenãotiveramumfinalfeliz?Elamereciamuito.E,parasersincera,eletambém.
Enfim foi chegando a nossa vez de entrar. As pedras doDuomo tinham acapacidademilagrosa de gerar ar frio, e quando entramos foi difícil resistir àvontadedemedeitarnochãodepedraechorardealegria.Entãoviderelanceaescadadepedraparaaqualtodossedirigiamesentivontadedechorarporummotivobemdiferente.Minhamãedisseraquehaviamuitosdegraus,masomitiraopequenodetalhedequeerabemestreita.Estreitacomoumtúnelfeitoporumatoupeira.
Fiqueinervosa.—Vocêestábem?Não.Assenti.A fila entrava devagar pela escada,mas, quando cheguei à base,meus pés
pararamdesemover.Tipo,pararam.Simplesmenteserecusaramasubir.Howardseviroueolhouparamim.Eleprecisavasecurvarumpoucopara
entrarnaescada.—Vocênãotemclaustrofobia,tem?Fizquenão.Équeeununcatinhaenfrentadoapossibilidadedemeespremer
numtubodepedracomumbandodeturistassuados.Aspessoasatrásdemimcomeçavamaseaglomerar,eumhomemmurmurou
algumacoisa.Minhamãedisseraqueavistaeraincrível.Forceimeupéasubirodegrau.Umaescadatãoestreitaassimnãoseriaperigosaemcasodeincêndio?Esehouvesseumterremoto?Ei,moçaatrásdemimaspirandospraynasal,seráquevocêpoderiamedarumpoucomaisdeespaço?
—Lina,eunãoconteitodaahistóriadoporcellino.Olheiparaele.Howardtinhadescidoatéodegrauacimadomeuemeolhava
deumjeitoencorajador.Eleestavatentandomedistrair.Boajogada,Howard.Boajogada.—Entãoconta.Olheiaescadaoutravez,meconcentrandoemrespirarecomeçandoasubir.
Ouvigenteaplaudindoatrásdemim.—Muitotempoatráshaviaumcasalquenãopodiaterfilhos.Elespassaram
anos tentando,eomaridoculpavaaesposa.Certodia,depoisdeumabriga,amulher ficou na janela chorando e um grupo de javalis passou correndo. Osanimaishaviamacabadodeterfilhotes,eamulherfalouquegostariadepoderter um filho, assim como os javalis. Uma fada por acaso estava ouvindo edecidiu conceder a ela o desejo. Alguns dias depois, a mulher descobriu queestava grávida. Quando deu à luz, ela e omarido ficaram chocados porque obebênasceuparecendomaisumjavalidoqueumhumano.Sóqueocasalficoutãofelizporterumfilhoqueoamoumesmoassim.
—Essahistórianãopareceserverdade—disseamulheratrásdemim.
Euestremeci.Maisquatrocentosdegraus?
Capítulo14
ASUBIDAVALEUmuito a pena. A vista de Florença era tão deslumbrantequantominhamãedescrevera,ummardetelhadosvermelhossobumcéuazulimaculadoesuavescolinasverdesenvolvendotudocomonumabraçoapertadoefeliz. Ficamos lá em cima fritando pormeia hora enquantoHoward apontavatodos os prédios importantes da cidade, e eu criava coragem para descer aescada,oqueacabousendomaisfácil.DepoisparamosparaalmoçarnumcaféesaídeFlorençacomumasensaçãoestranha. Independentementedoqueestavalendonodiário,eumeioquegostavadoHoward.Seriaumatraição?
AscooterdoRenchegoupoucodepoisdasnove.—Renchegou!—avisouHowarddoandardebaixo.—Podedizeraelequeaindaestoumearrumando?Semassustá-lo.—Voufazeropossível.Eumeolheinoespelho.Assimquecheguei emcasadescobri comousar a
máquinadelavararcaicadoHoward,depoispendureiummontedecoisasparasecarnavaranda.Porsorte,aindaestavaumfornoláfora,entãominhasroupassecaram logo.Erao fimdas camisetas amarrotadas.SeThomas ia estar lá, euqueriaficarmaravilhosa.Nãoimportavaoquemeucabeloteimasseemfazer.Eutinha tentado usar a chapinha de novo,mas os cachos estavam especialmenterebeldesenãoseabalaramporela.Pelomenosestavamquaseverticais.Por favor,por favor,por favor,queeleesteja lá.Deiumavoltinha.Estava
comumvestidocurtodemalhaqueminhamãecompraranumbrechófaziamaisdeumano.Eralindoeeununcahaviatidooportunidadedeusá-lo.Atéaquelemomento.
—Vocêestáelegantehoje,Ren—disseHowarddeumjeitoassustador láembaixo.
Soltei um gemido. Ren respondeu, mas não consegui ouvir o restante daconversa,comexceçãodeuns“sim,senhor”.
Depoisdealgunsminutos,bateramàportadoquarto.—Lina.—Sóumminuto.Termineidepassarrímel,depoismeolheinoespelhoumaúltimavez.Havia
séculosqueeunãodemoravatantotempomearrumando.Émelhorvocêestarláhoje,ThomasHeath.Abriaporta.Renestavacomocabelomolhado,comose
tivesseacabadodetomarbanho,eusavaumacamisetaverde-olivaquerealçavaseusolhos.
—Oi,Lina.Você...—Elesecalou.—Uau!—Uauoquê?Minhasbochechasenrubesceram.—Vocêestátão...—Tãooquê?—Bellissima.Gosteidovestido.—Obrigada.—Vocêdeveriausarvestidomaisvezes.Suaspernassãomuito...Fiqueivermelhaquenemumpimentão.—Ok,émelhorvocêparardefalardasminhaspernas.Edeolharpramim!—Desculpa.Eleolhouumaúltimavez,depoissevirouparaocanto,comoseestivessede
castigo.—Gostomaisquandoseucabeloestácacheado.—Ahé?—É.Ontemànoiteacheivocêdiferente.—Ah.—Minhasbochechasqueimavam.Elepigarreou.—Então...comoestáodiário?Elesjáestragaramtudo?—Shh!—Howardacaboudesairpraverumacoisanocentrodevisitantes.Nãovai
ouvir.—Ah,bom.—Euopuxeiparadentrodoquartoefecheiaporta.—E,não.
O relacionamento ainda é secreto e parecemeio instável, mas ainda estou naparteboa.Ébemmeloso.
—Vocêseincomodaqueeuleia?—Odiário?—É.Talvezeupossaajudaraentenderoquedeuerrado.Epoderiadescobrir
maislugaresemFlorençaaondelevarvocê.Hesitei por três décimos de segundo. Aquela oferta era boa demais para
recusar.— Tudo bem, mas tem que prometer, prometer que não vai contar pro
Howard.Queroterminardelerantesdeconversarcomele.—Prometo.ASpacesóabreàsdez.Possocomeçaragora?—Boa ideia.—Peguei o diário no criado-mudo.—Tem textos emuitas
fotos,entãovaiserbemrápido.Eumarqueiapáginaemqueparei,entãovocêtambémdevepararquandochegarnela.—Eumevireieeleestavaolhandopara
minhaspernasdenovo.—Ren!—Desculpa.Fuiatéele,abrindoodiário.—Olhaoqueelaescreveunaprimeirapágina.Elesoltouumassobiobaixo.—“Eutomeiadecisãoerrada”?—É.—Quesinistro.—Achoqueelaescreveuissocomoumamensagempramim.Elefoipassandoaspáginas.— Devo levar mais ou menos meia hora pra terminar. Costumo ler bem
rápido.—Quebom.Então...poracasovocêsabequemvaiàSpacecomagente?—EstáperguntandoseThomasvaiestarlá?—E,humm,outraspessoastambém.—Não sei. Só sei que Elenamandoumensagem pra todomundo.— Ele
ergueuorostoparamim.—EachoqueMimivai.—Ótimo.Houveumsilêncio,enósdoisdesviamosoolharnomesmosegundo.—Então...vouesperarnavaranda.Pegueimeulaptopesaícorrendodoquarto.Eumeioquetambémnãoestava
conseguindoparardeolharparaele.Estranho.
***
Renmeencontrounavaranda.Euesperavaqueosdeuses italianosda internetsorrissemparamimeeuconseguisselermeuse-mailseverumvídeodegatinhooucoisadotiponoYouTube,masnãotiveessasorte.Entãoestavadeitadanobalanço,dandoimpulsonoguarda-corpodevezemquandoparamemanteremmovimento.
—Suamãemelembravocê.Eumesentei.—Comoassim?—Ela é engraçada. E corajosa. É legal ter assumido um risco tão grande,
largandoafaculdadedeenfermagemetudomais.Easfotosdelasãomuitoboas.Emborasóestivessecomeçando,dápraverqueelaseriainovadora.
—Vocêviuosretratosdasmulheresitalianas?—Vi.Sãolegais.Evocêémuitoparecidacomela.—Obrigada.Elesesentouaomeulado.—Sãonoveemeia.ProntapraSpace?—Pronta.—FaleiproHowardquebuzinariaquandoestivéssemosdesaída.Tivemos
umaboaconversamaiscedo.Achoquefizemosalgumprogresso.—Eufaleipraeleserlegalcomvocê.—Eraporissoqueelenãoparavadesorrirpramim?Aquilomedeixouum
poucoapavorado.
REGRASDALINAPARAANDARDESCOOTER:
1. Nuncaestejaencharcada.2. Nuncaandedesaiacurta.3. Tenteprestaratençãoaossinaisdetrânsito.Senão,todavezqueomotorista
acelerarvocêvaibaternele,evaiserconstrangedorterquesedesvencilharevocêaindavaificarcommedodeeleacharquefoidepropósito.
4. Seporacasonãoestiverobedecendoàregranúmerodois,tomeocuidadodenãofazercontatovisualcommotoristasdosexomasculino,ouentãovãobuzinarbastanteanimadinhosquandosuasaiaesvoaçar.
Rendobrounumaruademãoúnica,depoisestacionouaoladodeumprédiodedoisandarescomumalongafiladegentevirandoaesquina.
—Éaqui.Amúsicapulsavapelasjanelas.Meuestômagovirouduascambalhotas.—Étipoumaboatedeverdade?—É.—Euvouterquedançar?—Ren!—Elenatentavaatravessararuananossadireção,masseussaltos
não tornavam a tarefa nada fácil. Ela parecia um Frankenstein mancando.—Pietrocolocounossosnomesnalista.Ciao,Lina!Quebomvervocêdenovo.—Elapressionouabochechacontraaminhaefezumsomdebeijo.—Seuvestidoémuitolindo.
—Obrigada.Eagradeçotambémpornoscolocarpradentro.EuqueriamuitoconheceraSpace.
—Ah, sim.Ren falou que seus pais vinham aqui, não é?Eles não vieramhoje,vieram?
Euri.—Não.Comcerteza,não.—Quemvemhoje?—perguntouRen.— Todo mundo disse que vem, mas vamos ver quem aparece. Não se
preocupe,Lorenzo,tenhocertezadequeumacertapessoavaivir.Vieni,Lina.Elamedeuobraçoemepuxouparaooutro ladoda rua,atéocomeçoda
fila.Elenagostavademearrastar.—Dovevai?—gritouumhomemnafilaquandopassamosàfrentedele.Elajogouocabeloparaolado.—Ignora.Somosmuitomaisimportantes,entãonemsepreocupecomesse
pessoal.Ciao,Franco!Franco usava uma camiseta preta e seu torso era desproporcionalmente
musculoso,comosenuncamalhasseaspernas.Eletirouacordadeveludoquebloqueavaaportaenosdeixouentrar.
Entramos num corredor mal iluminado com grandes araras de roupa. Seráqueaquiloeraumachapelaria?
—Sigamemfrente—disseElena.—Afestaépralá.Continuei andando com os braços esticados para a frente, totalmente cega.
Estavamuitoescuro.Ebarulhento.Enfim,saímosnumambienteretangularcomumlongobalcãodebaremumdoslados.Duasmúsicasdiferentestocavamaomesmo tempo,umaem inglêseoutraem italiano,easpessoascantavamumaterceira música num karaokê no fundo. Todo mundo estava ou calado ougritandoparaserouvido.
—Lina,querbeberalgumacoisa?—perguntouElena,apontandoparaobar.Balanceiacabeça.—Vamosesperaropessoalaqui.Quandoentrarmosnaboatedeverdade,vai
serimpossívelnosencontrarmos.—Estanãoéaboate?—perguntei.Elariucomoseachassequeeuestavabrincando.—Não.Vocêvaiver.Olheiemvolta.SeráquetinhasidonaqueleambientequeHowarddisserao
nome da minha mãe pela primeira vez? Eu meio que esperava vê-lo rindoencostadonaparede,bemmaisaltoque todomundo.Sóqueaquele lugarnãotinhanadaavercomele.Achoquenemodeixariamentraralidechinelo.
Renmecutucou.—Quer cantar no karaokê comigo? Podemos escolher algo em italiano, e
possofingirquetambémsófaloinglês.Seriahilário.Quetal...EntãosecalouporqueMimieMarcoseaproximavamdenós.Elausavauma
saiaminúsculaeuma trança.Nãohaviaumúnico fiodecabelo forado lugar.
OlheiparaRen.Seráqueeletambémgostavadaspernasdela?Ok,sim,gostava.Alguémprecisavaensinaraeleaartedadiscrição.—Oi,gente—gritouMarco.Elesófalavaaosberros.—Lina!—Eveioaté
mimcomosbraçosestendidos,maseumeabaixei.—Rápidademaispramim.—Todasasvezesqueagenteseencontrarvocêvaitentarmelevantar?—Vou.—ElesevirouelevantouElena.—PerguntasópraElena.—Marco,basta!Mecolocano chãoouvou jogarvocêparaumbandode
cãesselvagensfamintos.—Essaénova.—Marcosorriuparamim.—Elaécriativanasameaças.Mimigritavaporcausadamúsica.—Ren, por que vocênão retornouminhas ligações?Eunão sabia se você
viriahoje.Não consegui ouvir a resposta,mas ela sorriu e começou abrincar comos
botões da camisa dele, o que não deveria me incomodar, mas meio queincomodou.Miminãoprecisava ficarnaquelaagarraçãoempúblicosóporquegostavadoRen.
—Lina.Eumevireidevagar.Porfavor,queseja...—Thomas!Eleusavaumacamisetaazul-marinhoquediziaBANIDODEAMSTERDÃ,enão
sei comoconseguia estar aindamaisbonitodoque eume lembrava.Se équeissoerapossível.EumeesquecicompletamentedabrincadeiradaMimicomosbotões.
—Elenadissequevocêviria.TenteiligarproRen...—Oi,stalker.Derepente,Rendeuumencontrãonele,fazendo-ocambalear.—Ren,támaluco?—retrucouele,serecompondo.—Tinhaumasdezchamadassuasperdidasnomeucelular.—Evocêsóprecisavaatenderuma.Rendeudeombros.—Desculpa,cara.Euandoocupado.MimiseaproximoudoRen,meolhandocomosenemimaginassequemeu
era.—Oi,Mimi—falei.—Ei.—Elaestreitouosolhos.—EusouLina.AgenteseconheceunaquelanoitenacasadaElena.—Eumelembro.Elena se jogou no meio do nosso pequeno círculo em que pairava uma
estranhatensão.
—Ragazzi,chegadeconversa!Euquerodançar.—Vocêdança?—perguntouThomas.—Não.—Nem eu. Podemos só ficar de bobeira, fazer um passeio pelo Arno ou
coisaassim.Euconheçoumlugarlegalque...—Nempensar!—Renpegouminhamão.—Thomas,vocênãopodeprivá-
ladessaexperiência.ElaestánaSpace.Pracolocaradançaemdia.—Eunãotenhomuitadançaprabotaremdia—protestei.—Claroquetem.—Elebaixouavoz.—Efoiaquiquetudocomeçou,não
é?Assenti,depoisolheiparaThomas.—Émelhoreuficar.Detestariaperderachancededarvexamenapistade
dança.—Napiordashipóteses,vocêfazacoreografiadeDirtyDancing.Ninguém
deixaBabydelado,nãoémesmo?—Jádisse...vocêsabedemaissobreessefilme.—Ragazzi!—gritouElena.—Ésério,vamos!PassamoscomelaporumaportaestreitaeThomasapoiouumadasmãosnas
minhas costas, causando todo tipo de sensação de êxtase. Logo todoscomeçamos a subir uma rampa e entramos num grande ambiente. Por umsegundo, não consegui ver nada sólido, tudo oscilava. Então as luzes de umrefletornosiluminarameUAU!
O lugar era gigantesco, tinhaumpé-direito comnomínimo seismetros dealtura, e estava lotado, como se fosse um formigueiro, todo mundo usandoroupas de grife. Havia várias plataformas pela pista, então algumas pessoasestavamummetro emeiomais altas que as outras.E todos dançavam.E nãoestou falando dos passinhos bobos que sempre dominavam os bailes deformatura da minha cidade. Eles dançavam de verdade. Todos se remexiamcomoseestivessemtransandonapista.Mãe,noquevocêmemeteu?—Bem-vindaàSpace!—gritouRennomeuouvido.—Eununcaavitão
cheia.Deveserporqueétemporadadefériaseacidadeestácheiadeturistas.—Gente,vemcomigo!—Marcoestendeuosbraçosparaafrentecomose
fossemergulharecomeçouaatravessaramultidão,seguidoportodosnós.—Ciao,bela—sussurrouumhomemnomeuouvido.Afasteiacabeçadepressa.Todomundoemqueeuesbarravaestavasuado.O
lugarerameionojento.Finalmente,encontramosumpequenoespaçovazionomeiodapistae todo
mundocomeçouadançar.Namesmahora.Seráqueninguémmaisprecisavade
umaquecimentoantesdeentrarnoclima?Minhasmãoscomeçarama transpirar.Erahorade terumpapoencorajador
comigomesma.Lina,vocêéumamulherautoconfianteevaiconseguir.Porquenão experimenta a versão sexy das dancinhas que aprendeu quando erapequena.Masnãofiqueaíparada.Vocêestáridícula.EntãocometioerrofataldeolharparaMimi,oquetornoutudoummilhãodevezespior.Elaestavacomos braços para cima, parecendo maravilhosa. Maravilhosa do tipo descolada-sexy-europeia.Euqueriameenfiarnumburaco.
—Vocêconsegue—gritouRen,erguendoopolegarparamim.Estremeci.Ok,começaasemexer.TalvezdêparaimitarElena.Oscilarpara
a frenteepara trás.Mexerosquadris.Fingirquenãosesenteumacompletaidiota.OlheiparaThomas.Ele faziaumpassinhosemjeitodeumladoparaooutroquemeioquemefezquerersumirporqueeleerafofodemais.Etambémnãosabiadançar.Talvezmais tardeeusaísseparadarumpasseiocomeleporFlorença.
Entãoaconteceuumacoisalouca.Amúsicaestavatãoaltaqueesmurravaechacoalhavameusossosedentese todomundoestavasedivertindo tantoque,derepente,comeceiadançar.Tipo,dançarmesmo.Eamedivertirdeverdade.Bem, talvez não tanto quanto Ren, que se esfregava comMimi, masmesmoassim. ODJ aproximou omicrofone da boca, gritou algo em italiano e todosaplaudiram,erguendoosdrinques.
—Eleémeuamigo!Émioamico!—gritouElena.—Lina,vocêestáarrasando!—gritouRen.Mimibalançavaosquadris loucamente,deum jeitoquepareciaexigiruma
concentraçãointensa,masquandoouviuRen,elaergueuorosto,melançandooolharmaisfrioquealguémjámelançou.
Euestavacomeçandoadesconfiarqueelanãogostavademim.Thomasmecutucoucomoombro.—Jáestevenumlugarcomoeste?—Não.—Éestranho,nosEstadosUnidossódápraentrarnumaboatedessasapartir
dosvinteeum.Estávamos tão perto que eu via asminúsculas gotas de suor no cabelo do
Thomas.Atéosuordeleerasexy.Eueramesmoumanojenta.RensedesvencilhoudaMimieapareceudomeuoutrolado.—Estásedivertindo?—Eleestavaofegante.—Estou.—Quebom.Jávolto.—Mimisegurouamãodele,eosdoisdesapareceram
nomeiodamultidão.
Thomasfezumacareta.—Eleémeiosuperprotetorcomvocê,nãoé?—Éporcausadomeupai,queestásempreimplicandocomele.EntãoRen
temmedodequeaconteçaalgumacoisacomigoeeletenhaquesevercommeupai.
—Nãovaiacontecernada...vocêestácomigo.Meiobrega,maseusorri.Feitoumaidiota.Thomastinhaacabadocomquase
todoomeucontrolesobreosmúsculosfaciais.Eleergueuoqueixo,olhandoporcimadamultidão.—Láestáele.ParecequeestáconversandocomMimi.Fiqueinapontadospés,aproveitandoaoportunidadeparaapoiaramãono
ombrodoThomas.ReneMimitinhamseencostadonumaparede,eelaestavade braços cruzados e parecia zangada, mas talvez aquela fosse sua expressãonormal.
—Então,osdoisestãoficando,nãoé?—É.ORengostadelaháunsdoisanos.Parecequequemacreditasempre
alcança,nãoé?Assenti.—É.— Ei, preciso ligar pro meu pai, depois vou pegar uma bebida. Quer
também?—perguntouThomas.—Quero,obrigada.Ele abriu umdaqueles sorrisos de derreter os ossos e desapareceu entre as
pessoas.—Lina,dançacomigo!—Elenasegurouminhasmãosemegirou.—Oque
estáacontecendoentrevocêeThomas?Éamore?Euri.—Nãosei.Éasegundavezqueovejo.— É, mas ele gosta de você. Dá pra notar. Ele nunca se interessa por
ninguém,enaquelanoite,depoisquevocêfoiembora,elemeperguntouseeutinhaseunúmero.
—Uhlala!—exclamouMarco.—AgarotanovaeThomas.Elenarevirouosolhos.—Vocêpareceumacriança.—Ah, é?Uma criança consegue fazer isto?—Ele dobrou os cotovelos e
começouaimitarumrobô.—Marco,basta!Vocêéhorrívelnisso.—Querqueeuimiteumaminhoca?—Não!
Amúsicaficoumaisrápida,e logonóstrêspulávamosdemãosdadasfeitoumbandodecriancinhas.Nãoeradeestranharqueminhamãegostassedali.Eramuitodivertido.Tirandoofatodequeatemperaturanãoparavadesubir.Seráquehaviaar-condicionadonaquelelugar?
—CadêoThomas?—perguntouElena.Suafranjasuadaestavagrudadanatesta.—Foipegarumabebida.— Já faz um tempão. — Ela se abanou. — Fa troppo caldo. Estou
derretendo.Derepente,ochãooscilousobmeuspéseeutropecei.Elenamepegoupelobraço.—Estátudobem?—Sófiqueitonta.Estáquentedemais.—Oquê?—Estáquente.Demais.—Eutambém!—gritouMarco.—Eusoudemais!—Precisomesentarumpouco.—Lina,alitemunssofás.—ElaapontouparaondeReneMimiestavam.—
Querqueeuvácomvocê?—Nãoprecisa.—VoudizeraThomasondevocêestá.—Obrigada.Fui para a lateral da boate. Os sofás pareciam o lugar perfeito para a
propagação de alguma doença contagiosa, mas eu estava desesperada. Derepente,acheiquefossedesmaiar.
Umcaraesqueléticotinhasedeitadoeocupavaquasetodooprimeirosofá.Eleusavacorrentesdeouroeóculosescurosenormeseestremeciadevezemquando, como se uma mosca tivesse pousado nele. Um homem mais velhofumavanaoutrapontae,quandomeviu,sorriuedissealgoemitaliano.
—Desculpa,nãoentendo.Passeiporele,abrindocaminho.Minhacabeçalatejavajuntocomamúsica.
Eu esperava que houvesse uma vaga em algum lugar. Senão, teria que fazeramizadecomoaspirantearapperdesmaiado.Ali tem um! Corri para o lugar vago,mas, no instante em que cheguei lá,
parei, porque senti duasmãos naminha bunda. E não foi sem querer. Eumevirei.Eraocaravelhodosofá.Seucabeloeracompridoeoleoso,eelecheirava,entreoutrascoisas,aratomortoconservadoemvodca.Ou,pelomenos,aqueleeraocheiroqueeuimaginavaqueumratomortoconservadoemvodcateria.
—Dovevai,bella?
—Medeixaempaz.Eleesticouobraço,passandoosdedospelomeuombro,eeumeafastei.—Nãoencostaemmim.—Perche?Nontipiaccio?Umdeseusdentesdafrenteeracinza.Eeleerabemmaisvelhodoqueeu
tinhapensadoaprincípio.Tipo,dezanosmaisvelhoquetodomundoqueestavaali.
Esqueceo sofá.Eumevireipara correr,maselepulouemcimademimeagarroumeubraço.Comforça.
— Para com isso! — Puxei o braço, mas ele o apertou mais. — Elena!Marco!—Eunemconseguiamaisenxergar.OndeestavaRen?
Tentei me soltar outra vez, mas o homem me segurou pela cintura e mepuxouatéminhapelveestargrudadanadele.
—Me.Solta.Darumacabeçada?Joelhadanavirilha?Oquesedevefazeraoseratacada?
Elesorriu,seesquivandodetodososmeusmovimentosdesesperados.Como eu ia sair daquela situação? Havia muita gente em volta, mas
absolutamenteninguémprestavaatenção.—Socorro!Derepente,alguémseguroumeusombros,mepuxandoparatrás,eohomem
me soltouumpoucopor tempo suficientepara eumedesprender.EraMimi epareciaumaguerreiralindaefuriosa.
—Vaivia,faischifo—gritouelaparaohomem.—Vai.Eleergueuasmãos,depoissorriueseafastou.—Lina,porquevocênãogritoupraeleirembora?—Eutentei.Elenãomesoltava.—Dapróximavez,tentamais.Bastachamá-losdestronzoeempurrá-los.Eu
tenhoquefazerissotodahora.—Stronzo?Meu corpo inteiro tremia. Parecia que eu tinha acabado de entrar numa
lixeira.Aquilotinhasidorepugnante.Elacruzouosbraços.—OqueestáacontecendoentrevocêeRen?Tenteimanteramentefocada.—Desculpa,oquê?—Esfregueiosbraços, tentandoapagarasensaçãodo
toquedoDenteCinzanaminhapele.—O que está acontecendo entre você e Lo-ren-zo?—Ela falou devagar,
exagerandoaspalavrascomoseachassequeeunãoconseguiaentendê-la.—Nãoseidoquevocêestáfalando.—Ondeeleestava?
Elaficoumeolhandoporuminstante.—VocêsabequeeueRenestamosjuntos,nãoé?Elesóestáandandocom
vocêporquesentepenaporsuamãetermorrido.TalvezfosseaadrenalinarestantedoconflitocomoVelhoBizarro,masdo
nadaeufaleiaprimeiracoisaquemeveioàmente.—Éporissoqueeleestavaignorandosuasligaçõesontemànoite?Elaarregalouosolhoseseaproximoudemimcomumaexpressãoassassina.—Eleestavaemcasacomairmãmaisnova.—Não, ele estava na Ponte Vecchio comigo.—Por favor, que eu tenha
pronunciadodireito.—Aíestávocê!—Thomasseenfiouentrenóscomumrefrigeranteemcada
mão.EledeuumaolhadaparaMimieperdeuaanimação.—Nossa.Oqueeuperdi?
—Calaaboca,Thomas.Mimiseviroueseafastouapassoslargos.—Oqueaconteceu?—perguntouele.—Nãofaçoideia.—Lina!—Renabriacaminhoatémim.—Aíestávocê.Quer irembora?
Estáfazendounsmilgrausaquidentro.Achoqueoar-condicionadodeveestarquebrado.
Senti uma onda de alívio,mas de repente precisei segurar as lágrimas quepareciamvirdeumlagofervente.
—Ondevocêestava?—Procurandovocê.—Renseaproximou.—Tudobem?—Queroirembora.Agora.—Tambémprecisoir—disseThomas.—Vousaircomvocês.Levamosoquepareceuumahoraparasairdelá,equandoenfimchegamosà
calçada,respiramosoarfrescocomosetivéssemosacabadodeemergirdofundodomar.
— Liberdade! — exclamou Thomas. — Parecia que estávamos sendosufocadoslentamenteládentro.
Eumeencosteiàparedeefecheiosolhos.Nuncamaisvoltarialá.Nunca.Rentocoumeubraço.—Lina,vocêestábem?Eufizmeioquesim,meioquenão.Bem?Euaindasentiaaquelecheiroderatoemconserva.— Então, o que achou da Space? O lugar perfeito para começar um
relacionamento?—Querelacionamento?—perguntouThomas.—OmeuedaLina?—Ele
melançouumolharcheiodesignificado,masmalnotei.— Ele está falando dos meus pais. — Respirei fundo. — Um velho me
atacou.Elemeagarrouenãosoltava.—Comoassim?NaSpace?—Renseviroucomosepudesseveratravésdas
paredes.—Quando?—Logoantesdevocêmeencontrar.Mimimesalvou.—Eraissoqueestavaacontecendo—disseThomas.—Vocêestábem?Que
tarado!—Vocêsemachucou?—perguntouRen.—Não.Sófoihorrível.Renestavafurioso.—Porquenãogritoumechamando?Euteriaacabadocomaraçadele.—Eunãosabiaondevocêestava.OcelulardoThomascomeçouatocareelesoltouumgemidoaoolharatela.—Meupainãoparadeligar.Nossafamíliaestánacidadeeeudissequenão
iademorarmuito.—Elemeolhou.—Masnãovouembora sempegaro seunúmero.
—Ah, claro.—Eu tinha treinado para aquilo,mas quando fui dizermeunúmeroaele,esquecietivequeolharnopapelemqueoanotara.
—Ótimo.Ligopravocêamanhã.—Elemedeuumabraçoapertado,depoisumtapinhanoombrodoRen.—Agentesevê.
—Atémais.Ren se virou para observar Thomas se afastando, e eu aproveitei a
oportunidade para enxugar os olhos.Meu rímel tinha se espalhado pelo rostointeiro.
—Quecamisaidiotaadele,nãoacha?—comentouele.—Oquê?—BanidodeAmsterdã.NinguémébanidodeAmsterdã.Atéparece.—Nãotenhocomosaber.—Sintomuitopeloqueaconteceuládentro.Eunãodeviaterdeixadovocê
sozinha.—Eleme olhou commais atenção.—Espera um pouco.Você estáchorando?
—Não.Umalágrimagigantescaroloupelomeurosto.Edepoisoutra.—Ah, não.— Ele colocou as mãos nos meus ombros e olhou nos meus
olhos.—Sintomuito.Muitomesmo.Nuncamaisvamosvoltarlá.—Desculpa.Estoumesentindoumaidiota.Aquelecaraeramuitonojento.
—Masnãoerasóporissoqueeuestavachorando.Respireifundo.—Ren,porquevocêcontoupraMimiqueminhamãemorreu?
Elearregalouosolhos.—Nãosei.Simplesmentesaiu.Elaestavaperguntandoporquevocêtinhase
mudadopracáeeucontei.Porquê?Eladissealgumacoisa?— Sabe, não precisa sentir pena de mim. Eu não preciso que você leia o
diárioemeleveaoslugares.Possomevirarsozinha.Entendoquevocêtemsuavida.
—Ei,oquê?Eunãotenhopenadevocê.Querdizer,étristevocêterperdidosuamãeetudo,maseusaiocomvocêporquegosto.Vocêé...diferente.
—Diferente?—Tipo,oqueagenteconversouontemànoite.Nóssomosparecidos,sabe?Enxugueiorostocomobraço.Porqueaquiloiaajudarmuitoanãoespalhar
aindamaisorímelborrado,sabe?—Jura?—Sim,juro.Deondevocêtirouisso?—Mimi...Eumecalei.Aquiloimportava?Elaerasóumagarotaciumenta.Etodavez
queRenavia,agiacomosetivesseganhadonaloteria.—Mimioquê?—Deixa pra lá. Podemos ir até aPiazza dellaSignoria?Quero ver aquela
estátua.
Capítulo15
FICAMOSQUIETOSDURANTEopercursodescooteratéapiazza.Jápassavadasonzehoraseacidadeestavadiferente.Meiovazia.Assimcomoeu,depoisdeabrirumberreirovergonhosonasaídadaboate.Renparounomeio-fioenósdescemos.
—Éaqui?—Éaqui.PiazzadellaSignoria.Eleme olhava como se eu fosse uma caixa de louça frágil, mas eu ainda
estavacobertademuco,entãotalvezfossejustificável.Entrei pela piazza. Um dos lados era tomado por um prédio grande que
pareciaumafortalezacomumatorrederelógio,ediantedelehaviaumchafarizcom a estátua de um homem cercado por figuras menores. Algumas pessoasandavamporali,masolugarestavaquasevazio.
—Queprédioéaquele?—perguntei.—OPalazzoVecchio.—Algumacoisavelha...Paláciovelho?—Esattamente.Vocêestáficandoboanisso.—Eusei.Reconheciapalavra“velho”.Agorasoupraticamentefluente.Sorrimosumparaooutro.Meusolhoseramcomobalõescheiosdeágua,mas
pelo menos eu não estava mais fungando. Tinha sorte por Ren não ter meabandonadonopontodetáximaispróximo.
—Eentão,oquefoimesmoqueaconteceuaqui?—perguntouRen.—FoiaprimeiravezqueHowarddissequeamavaminhamãe.Elesestavam
olhandoumaestátua.Achoquetemalgoavercomsabina.—Ah,sim.Oraptodassabinas.Achoqueficanumaáreacoberta.Atravessamos a piazza, vendo várias outras estátuas pelo caminho, depois
passamos sob uma entrada em arco e chegamos a um grande pátio repleto deesculturas.
Euareconhecinahora.—Aliestáela.A obra era feita demármore branco e ficava sobre um pedestal, com três
figuras entrelaçadas numa coluna alta. Eu a contornei devagar. Minha mãeestavacerta.Ninguémpareciafeliz,mastodosestavamligadosunsaosoutrosesecomplementavam.Tambémestavamnus, emúsculose tendões saltavamna
escultura.Giambolognanãobrincavaemserviço.Renapontou.— Repara só como a mulher está olhando para o outro homem. Ela não
queriair.Eaquelecaranochãoestáapavorado.—É.—Cruzeiosbraços,observandoaestátua.—Ésóimpressãominhaou
aquiéumlugarestranhoparaHowarddizerqueamavaminhamãe?—Talveztenhasidoespontâneo.Elesedeixoulevarpeloluaroualgoassim.—Mas ele estava estudando história da arte e acabara de contar a ela o
episódioretratadopelaescultura.Euficariasurpresasenãotivessealgumtipodesignificadopraele.
Renhesitou.—PorfalaremHoward...precisocontarumacoisa.—Oquê?Elerespiroufundo.—Eumeioquepergunteisobreapadariasecreta.Eumevireiderepente.—Ren!Vocêfaloudodiáriopraele?—Não,claroquenão.—Eletirouocabelodosolhos,evitandomeuolhar.
— Foi quando você estava se arrumando. Inventei que minha mãe tinhaencontradoumapadariasecretaquandosemudoupracá,edepoispergunteiseelesabiaondeficava.Dissequeeuialevarvocêládesurpresahoje,depoisdaSpace.
Ele entãome fitou comaqueles olhosgrandes e expressivos, e eu suspirei.Eracomotentarficarzangadacomumfilhotedefoca.
—Elefalouondeera?—Não.Essaéaparteestranha.Eledissequenuncafoiaumlugarassim.—Oquê?Evocêadescreveupraele?—perguntei,deolhosarregalados.—Sim.Tenteiservagopraelenãoperceberqueeuestavamereferindoao
encontrocomsuamãe,maseleagiucomosenãofizesseamenorideia.—Entãoelenãoselembradelevá-lalá?Elebalançouacabeça.— Não, foi mais que isso. Foi como se nunca tivesse ouvido falar das
padariassecretasdeFlorença.—Oquê?Nãoéotipodecoisaquealguémesquece.—Tambémacho.—Seráqueeleestavamentindo?— Talvez. Mas por que mentiria?— Ele balançou a cabeça de novo.—
Passeiasúltimashorastentandopensarporqueeleseesqueceriadapadaria,masatéagoranãochegueianenhumaconclusão.Semquererofender,masahistória
dosseuspaisémeiomisteriosa.Eumeencosteiemumadascolunas,efuiescorregandoparaochão,atémeu
corpofazerumbaque.—Euqueodiga.Porqueachaqueestoulendoodiário?Elesesentouaomeulado,depoisseaproximouaténossosbraçossetocarem.—Sintomuito.Suspirei.—Nãotemproblema.Evocêestácerto.Temalgumacoisaestranha.Sempre
acheiisso.—Talvezvocêdevesseperguntaraeleoutracoisadodiário.Tipoumteste.—Porexemplo,sobreOraptodassabinas?—Olhamosparaaescultura.—É.Reparaemcomoelevaiagirquandovocêperguntarsobreisso.— Boa ideia.— Eu olhei para o chão. E foi a minha vez de hesitar.—
Então...precisomedesculparporumacoisaquefiz.—Oquê?—NaSpace, eu eMimi tivemos uma... discussão, e falei que você estava
ignorandoasligaçõesdelaquandoestávamosnaPonteVecchio.Elearregalouosolhos.—Cavolo.Acho que foi por isso que elame chamou dedisgraziato e foi
embora.— É. Quer dizer, não tenho certeza do que significa disgraziato, mas
desculpa.Thomasmefalouquevocêgostadelahámuitotempo,eesperonãoterestragadotudo.
—Vouligarpraelaquandochegaremcasa.Vaificartudobem.Pareciaqueeleestavatentandoconvencerasimesmo.Respireifundo.—Ei,olha,senãopudermaissaircomigoporaí,vouentender.Pelovisto,
issoestácomplicandoascoisaspravocê.—Não.Éumacomplicaçãoboa.—Elepegouocelular.—Sãoquaseonzee
meia.Vamosvoltarprocemitério?—É.Émelhoreuvoltarprodiário.—Eprohomemmisterioso.
***
Quandochegueiemcasa,oHomemMisteriosoestava,porincrívelquepareça,tirandoumaformademuffinsdoforno.
—Vocêestácozinhando?—Estou.
—Jáéquasemeia-noite.—Souespecialistaemdesastresculináriosnamadrugada.Alémdisso,achei
quevocêpodiaquerercomeralgumacoisaquandochegasse,emeusmuffinsdeblueberrysãolendários.Epor“lendários”querodizer“comestíveis”.Sente-se.
Foiumaordem.Puxeiumacadeiraemesentei.—Então,aondevocêsforamhoje?—NaSpace.Éumaboate perto doArno—disparei, após hesitar por um
instante.Eleriu.—Esselugaraindaexiste?Ufa.PelomenosdaSpaceeleselembrava.—Sim.Jáfoilá?—Muitasvezes.Suamãetambémia.Eumeinclineiparaafrente.—Entãovocês,tipo...iamjuntos?—Muitas vezes. Normalmente a gente ia quando deveria estar estudando.
Não sei como está agora, mas era o lugar ideal para estudantes estrangeiros.Muitosamericanosfrequentavam.
Eleserviualgunsmuffinsnumpratoepuxouumacadeira.—ASpaceémeionojenta.Nãogosteimuitodelá.—Tambémnuncagosteimuito.Deboates.Nãosoudedançar.Entãoeudeviaagradeceraeleporminhafaltadetalentoparaadança.Partiummuffinaomeio.Ovaporsubiuparaomeurosto.Éagoraoununca.—Então,Howard, tenhoumapergunta.Você sabemuito sobre história da
arte,nãoé?—Sei.—Ele sorriu.—Estáaíumacoisa sobreaqual seibastante.Você
sabequeeudavaauladehistóriadaartequandoconhecisuamãe,nãosabe?—Sei.—Olheioutravezparameumuffine respirei fundo.—Bom,eue
RenfizemosumpasseiodepoisdaSpace,eparamosnumapiazza.PiazzadellaSignoria?Enfim,haviaumaestátuainteressantelá,masnãosabíamosahistória.
—Humm.—Eleselevantouepegouopotedemanteiganabancada,depoissesentououtravez.—Temmuitasestátuaslá.Vocêsabequemfoioescultor?
—Não.Ficavanumagaleria ao ar livre.Tipocomumpátio coberto, ondequalquerumpodesimplesmenteentrar.
—Ah,sim.LoggiadeiLanzi.Vejamos... láficamos leõesdosMédici,eoCellini...Comoeraaescultura?
— Se bem me lembro, eram dois homens e uma mulher. — Prendi arespiração.
—Umamulhersendocarregada?
Assenti.Elesorriu.— O rapto das sabinas. Essa é muito interessante, porque o artista,
Giambologna, nem pensava nela como uma verdadeira obra de arte. Só a fezcomo uma demonstração artística de que era possível incorporar três figurasnumaúnicaescultura.Elenemsedeuaotrabalhodenomeá-la,enofinalacabousetornandoseutrabalhomaisconhecido.
Ok. Interessante,masnadaaver comahistóriaqueele contouparaminhamãe.Tenteidenovo.
—Vocêsabeseminhamãechegouavê-la?Eleinclinouacabeça.—Nãosei.Nãomelembrode terconversadocomelasobreGiambologna.
Porquê?Elacomentousobreisso?Não me lembro. Seu rosto estava imaculado como um pote novinho de
Nutella. Ficou claro que Howard não estavamentindo, mas seria possível teresquecido? Será que ele sofreu algum traumatismo craniano ou tinha algumbloqueiomentalqueoimpediadelembrardetalhesdeseurelacionamentocomminhamãe?
De repente, fiquei com uma pulga atrás da orelha. E se ele não estivesseesquecendo?Ounegando?Ese...?Eumelevantei,esmagandoomuffincomamão.
—Precisosubir.Saícorrendodasalaantesqueeleconseguisseperguntarporquê.
***
Aspalavrasdaminhamãe rodopiavampelaminhamente enquantoeu subia aescada:Sim,X.Euduvidoquealguémválermeudiário,masvoumereferiraeleassimsóporprecaução.
Logo que entrei no quarto, tranquei a porta e procurei o diário. Acendi oabajurecomeceiafolhearaspáginas.
Howard: O perfeito cavalheiro sulista (Francesca o chama de gigantesulista),bonito,gentileotipodecaraqueiriaparaaguerraporvocê.
Eu amo estar apaixonada na Itália, mas verdade seja dita: eu me
apaixonariaporXemqualquerlugar.
Howard se ofereceu para me levar em casa, e acabei contando sobreAdrienneeamédium.
—Nãoacredito—murmurei.Existia um motivo para Howard não saber da padaria secreta ou da
importânciadaestátuadeGiambologna, eparaminhamãe ter sedistraídoeochamadopelonomeverdadeiro.
ElenãoeraX.
***
—Addie,atende,atende!—sussurrei.—Oi,aquiéAddie!Ésódeixarumamensagemqueeu...—Aiii!Jogueiocelularnacamaecomeceiaandardeumladoparaoutro.Ondeela
estava?Fuiatéajanelaefiqueialiparada.Minhamãetinhaseapaixonadoporalguémquenão eraHoward.Ela teveumcaso apaixonado e arrebatador,masacabougrávidadeoutrapessoa.DoHoward.Seráqueessatinhasidoadecisãoerrada?Ficar grávidadoHowardquandonaverdade amavaoutra pessoa?FoiporissoquefugiudaItália?
Eumejogueinacadeira,masmelevanteidenovo.Renatenderia!Puleinacama,pegandomeucelularentreascobertaseligandoparaele.
Eleatendeunosegundotoque.—Lina?—Oi.Olha,eufizoquevocêsugeriu.Pergunteidaestátuapraele.—Eoqueeledisse?—Elesabia tudosobreela,ahistóriae tal,masdepoisperguntei seminha
mãealgumavezchegouaveraestátua,eHowarddissequenãoselembravadejáterconversadosobreissocomela.
—Qualéadele?Outemapiormemóriadomundoou...—Oununcaestevelá—interrompi,impaciente.—Oquê?—Ren,pensabem.Talvezelenãoconheçaapadariasecretanemsaibada
confissãodeamornaestátuadassabinasporqueelenãoéoX.
—Ah.—Certo?—Ahhh.Bom...sim.Ok,contatudo.—Achoquefoimaisoumenosassim:minhamãesemudoupraItáliaefez
um monte de amigos, entre eles Howard. Aí, depois de uns meses, ela seapaixonou por esse tal de X. Alguma coisa aconteceu, talvez eles brigassemdemaisourolassemuitapressãoporqueaescoladeviaterregrassobrenamoros,e eles terminaram.Entãominhamãe foi se consolar comumgentil cavalheirosulista,queprovavelmente sempregostoudela.Ela tentou,masnãoconseguiutirar X da cabeça. Então, um dia descobriu que estava grávida e entrou empânico,porqueiaterumfilhocomalguémquenãoamava.
—Faztodoosentido!— Eu sei. E isso explicaria por que ficamos afastadas dele durante todos
esses anos.Digo, ele éumcara legal, e a julgarpor todas ashistóriasqueelacontou,semdúvidaeraumbomamigo,masnãodáprafingirqueamaalguém.Seriadolorosodemais.
—CoitadodoHoward,logoele,tãoameaçador—suspirouRen.—Efoiporissoqueelaescreveu“Eutomeiadecisãoerrada”.Talvezesse
tenha sido seumaior arrependimento.Ela teveuma filhacomalguémquenãoamava.
— Só que você é essa filha. Acha mesmo que ela teria escrito isso naprimeirapáginadodiário?
—Ah.Provavelmentenão.—Eumesentei.—Mas,Ren,é tristedemais!Querdizer,pelojeitoqueHowardfala,dápraverqueeleamavaminhamãe.Eelamecontouváriashistóriasdecomoosdoissedivertiamjuntos.Sóqueissonãoerasuficiente...Elaamavaoutro!
—Écomoaquelamúsicaantiga“LoveStinks”.—Nuncaouvifalar.—Não?Tocaemummontedefilmes.Faladequandovocêseapaixonapor
alguémeessapessoaestáapaixonadaporoutro.Eéumgrandeciclocomplicadoemqueninguémficacomquemquer.
—Nossa,quedeprimente.—Nemmefala.—Renhesitou.—VocêvaicontarproHowardquesabe?
SobreX?—Não.Quer dizer, tenho certeza de que em algummomento vamos falar
disso, mas só quando eu terminar de ler o diário. Preciso ter certeza de queminhateoriaestácerta.
5DEABRILOutra noite de drama. Simone arranjou entradas para uma boate novapertodaPiazzaSantaMariaNovellaeonossogrupo,maisalgunsoutrosalunos,seencontrouláporvoltadasonze.Fiqueiatétardetrabalhandonoestúdio, então apareci sozinha, e quando cheguei lá, as duas primeiraspessoas que vi foram Adrienne e Howard. Eles estavam na lateral doprédio.AdrienneestavaencostadanaparedeeHowardseinclinavasobreela, dizendo alguma coisa baixinho. A cena era tão íntima que por uminstante não entendi nada. Nunca tinha visto os dois nem sequerconversandosozinhos.Oqueestavaacontecendo?
Entreinaboatesemqueelesmevissemeencontreiorestantedogrupo,depois os dois entraram separados, como se nada tivesse acontecido.Então as coisas ficaram muito esquisitas. Em certo ponto da noite,AdriennechamouAlessiodementiroso,dizendoqueeletinhaquebradoapromessadeircomelaaumaexposição,eporalgummotivoissoirritouHoward. Ele disse que ela era a última pessoa do mundo que podiachamaralguémdementirosoe,quesetivessealgumadignidade,contariaa verdade. Adrienne revidou dizendo que aquilo não era da conta dele.DepoisSimonesemeteuefalouparaosdoisseacalmarem.
Achoquenãosousóeuquetenhosegredos.
19DEABRILXestáforadacidadeháumasemana,masvoltaamanhã.AMANHÃ.Eunãoconsigopensaremoutracoisa.Depoisdaaula,eudisseàFrancescaqueprecisoencontrarovestido.Aquelevestidoincrívelquefazqualquerumseapaixonarporvocê,sabe?(Ou,nomeucaso,medeixamaravilhosaparaomomentoemquevoucontarminhagrandenovidade.)
Francesca era a pessoa perfeita a quem eu poderia pedir para meacompanhar, porque quando o assunto é fazer compras, ela tem apaciência de uma santa. Levamos cinco horas, mas finalmente oencontramos. É um vestido leve, off-white, muito feminino, com umdecoteemformadecoraçãoquebateacimadojoelho.Francescaatémeconvenceuacortarocabelo.Quemdiriaquecortaralgunscentímetrosdecabeloinútilpoderiavalorizarasmaçãsdorosto?
E quer saber qual é a grande novidade? Esta semana, Petrucioneperguntouseeuestaria interessadaempassaromêsdeagostoaquiparaajudar no próximo semestre. Vou receber por isso e meu visto deestudante vai ser prorrogado, o que significa que ficarei até o final doverão!
20DEABRILAcordei cedo, animadíssima para ver X, mas havia uma mensagem nomeucelular.Eledecidiuficarmaistemponaconferênciaesóvaichegarna segunda. Foi quando tive a brilhante ideia: vou surpreendê-lo emRoma! Mesmo que ele passe o dia inteiro em seminários, pelo menosvamosestarnamesmacidade.Nãomeimportodeturistarodiainteiro.Ostrensexpressoslevamsóumahoraemeiaatélá,então,seeupegarodasquatro da tarde hoje, já estarei no hotel quando X chegar. Mal possoesperarparaveracaradele!
21DEABRILEstaéaterceiratentativademesentarparaescreveroqueaconteceuemRoma.Nãoacreditoqueestouescrevendoisso,masACABOU.
Não consegui encontrar a conferência de X na internet, então, quandocheguei, ligueiparaocelulardeleedissequeestavanaestaçãode tremcomumaótimanotícia.Nessemomento, começarama anunciar algumacoisa pelos alto-falantes da estação, e quando tudo ficou em silêncionovamente,percebiquehaviaalgoerrado.Elemedisseparaesperarali.
Meiahoradepois,eleentroucorrendonaestação,eficoubemclaroquetinhaalgumacoisaerrada.Pergunteiseelequeriasesentarnumdoscafésdaestação,epelosvinteminutosseguintesoouvifalar.Resumodaópera:ele acha que o trabalho dele ficou estagnado, que precisa de um novoespaço criativo e decidiu sair da escola e procurar outro emprego emRoma.Ah,eagenteterminou.
Tudoacabado.
Fiqueialisentadacomaspalavrasrodopiandoàminhavolta.Foicomoseminhamentenãoconseguisseprocessaroqueestavaacontecendo.Então
entenditudo.Eraofim.Eleestavaterminandocomigo.
Derepente,nãoconseguimaisouvirnenhumadesculpa,sóaverdadenuaecrua.Eutinhapassadonovemesesmentindoparameusamigos.Haviame afastado daminha família.Mudara completamenteminha vida paraficar perto dele, e o namoronão tinha tanta importância assimpara ele.Chegueiacogitarqueseriapossível fazê-lomudarde ideia...Penseiemdizer que eu tinha encontrado um jeito de ficar em Florença por maistempo,masmesmonaquelebreve instantedenegação, eu sabiaque erainútil.Quandoumapessoadesistedeumrelacionamento,nãohánadaquevocêpossafazerparasegurá-la.
Xaindaestavafalandoquandomelevantei.Eumedespedidelecomumavoznormal,comosenãotivesseacabadodeserestilhaçadaemummilhãodepedaços,depoisfuiatéobalcãoecompreiumapassagemdevoltanotremseguinte.NãofiqueiemRomanemumahora.Nemtiveachancedeusarmeuvestido.
22DEABRILHoje acordei achando que estava num pesadelo, mas assim como nosúltimosdias,arealidadeesperouqueeumesituassesóparamederrubardenovo.Choreiatépegarnosono.Meusolhosficaramtãoinchadosquepreciseideixarumpanomolhadosobreelesporumtempoparaficarmaisapresentávelparairàaula.EutinhapassadoofimdesemanainteiromeapegandoaumfiapodeesperançadequeXestarianaaulahoje,maséclaro que não estava. Será que acabou mesmo? Nunca senti tanta dor.Nunca.
25DEABRILNo fim das contas, Francesca sempre soube. Ontem à noite, depois dojantar,elameabraçouedissequeXnãovaliaapena,equenuncavalera.Fiqueimuitosurpresa.Todomundosabia?
2DEMAIOHojedemanhãPetrucioneanunciouqueX tinhadeixadoo cargo.Sentium alívio enorme, não por ele ter ido embora oficialmente,mas porquealguémdisseonomedele.Nãoconteianinguémsobreorelacionamento,
então agora não posso compartilhar meu sofrimento. Me sinto muitosozinha.ConversarcomFrancescanãoajuda.SetocononomedeX,elafalamaldeleeacabomesentindopior.Florençaéolugarperfeitoparaseapaixonar, o que significa que é o pior lugar do mundo para ficar decoração partido. Em certos dias, só quero ir para casa. Será que devopassaroverãoaqui?
—Mãe—sussurrei.A tristeza dela se espalhava pelo diário como uma tinta que até então não
havia secado.Destroçaram seu coração numa estação de trem emRoma e elanuncanemsequermencionou issoparamim.Comoerapossível?Euconheciaaquelamulher?
Deioutraolhadanosúltimosrelatosdodiário.Semdúvida,Xfoiumidiota.O quemaisme dava ódio era ele ter dito que precisava de um “novo espaçocriativo”.Quepapoéesse?Eerahorrívelelanão terpercebidoqueelequeriaterminar, ainda mais porque, para quem via de fora, era muito óbvio que orelacionamento não iria a lugar nenhum. Ler aquelas últimas frases foi comoassistiraumacidentedetrememcâmeralenta.
E tambémhaviaHoward.Passei o dedo sobre a parte que falavadele e deAdrienne.Claroqueeletambémfaziaalgoporbaixodospanos.SeráqueeleeAdrienne estavamnamorando e terminarampouco depois daminhamãe eX?Será que meus pais estavam interessados em outras pessoas e meio queacabaramficandojuntos?Por issoquenão tinhadurado?Eoquehaviade tãoespecialemX,afinal?
Eu queria continuar lendo, mas minhas pálpebras estavam se fechando.Enfim,desisti,colocandoodiárionocriado-mudoeapagandoaluz.
Capítulo16
—PRECISODASUAajuda.Eu havia acordado comuma ideia brilhante e, embora tivesse esperado até
uma hora socialmente aceitável, praticamente precisei arrancar Ren da cama.Acabamossentadosnavarandadacasadedoces,eelepareciasótrintaporcentoacordado.
—Nãopodiaesperar?Ele estava com uma calça preta de moletom e uma camiseta desbotada e,
comosempre,ficavatirandoocabelodorostotodahora.Deviasersóaluzdamanhã,maseleestavabonito.Tipo,maisninguémnomundoficariatãobonitocomaquelecabelodesgrenhadoeaquelacaradesono.
—Oquefoi?Elemepegounoflagra,eeudesvieioolhardepressa.—Nada.Sóprecisodasuaajudacomumaúltimacoisa.—Olha,vocêsabequeestoubastanteinteressadoemdesvendaressemistério
portrásdahistóriadoHowardedaHadley,maspossodormirantes?—Não!Ren,porquevocêestátãocansado?—FiqueinotelefonecomMimiatéumastrêsdamanhã.Derepente,osolpareceufortedemais.—Elaficoumesmocomraiva?Porcausadoqueeudisseontemànoite?—Sim.Ficou.—Elesuspirou.—Masnãovamosfalardisso.Vocêprecisa
deajudapraquê?—VocêpoderiamedarumacaronaatéaABAF?—Aescolaondesuamãeestudou?—É.Eu liguei pra lá hoje demanhã.Eles semudarampra outro lugar há
algunsanos,masqueroverseconsigoalgumainformaçãosobreFrancesca.—Francesca,afiscaldamoda?—AchoqueéminhamelhorchancedeencontraroX.Afinal,elasabiasobre
elesotempotodo.—Ei,calma.VamosprocuraroX?Porquê?—Porqueminhamãe teve todaumavidaqueeudesconhecia.Eporqueeu
querosaberoqueessecara tinhade tãoespecialapontodeelanãoconseguiresquecerequefezcomqueelamagoasseHoward.
—Mas,Lina,issoaindaésóumateoria,né?Esenãotiversidoporissoque
elafoiemboradaItália?Solteiumgemido.—Qualé,Ren...VocênãoquersaberqueméomisteriosoX?Eleterminou
comaminhamãedeumjeitohorrível.Aquiloacaboucomela.Sóquerosaberoqueeletinhademais.Achoquemeajudariaaentendertudoumpoucomelhor.
—Humm.—Elebocejoueencostouacabeçanomeuombro.—Eentão,vaimeajudar?—Claroquesim.Quandovocêquerir?—Omaisrápidopossível.ApeledoReneraquente,eeletinhaaquelecheirodemenininhoqueacabou
deacordar.—Nossa,vocêestátãocheirosa—disseele,repetindomeuspensamentos.—Nãoestou,não.Corrinovequilômetrosemeiohojedemanhãeaindanão
tomeibanho.—Estácheirosamesmoassim.Peloqueparecia, euaindasentiaaquele friozinhonabarriga.Eo friozinho
estavamaisgeladodoquenunca.Eumeafasteicorrendo.
***
Não.Pense.No.Ren.Corriomaisrápidoquepudeatéocemitério.Eutinhamuitoemquepensare
não precisava complicar as coisas com uma paixonite idiota por um dosmelhoresamigosquejátivera.Alémdisso,elenamoravaumatopmodelsuecacomcrisesdeagressividade.Enãopodemosesquecerqueeuhaviaacabadodedarmeunúmeroparaocaramaisbonitoquejáconheci.
Quandochegueiemcasa,meucoraçãoquasesaiupelaboca.Howardestavasentado no balanço da varanda com uma caneca de café e uma cara de bommoço.Era cosmicamente injusto que ele tivesse ficado sozinhonumcemitériocom seus muffins horríveis e sua música antiga. Aquilo me dava vontade decomprarbalõesoualgodotipoparaele.
—Bomdia,Lina.—Bomdia.Howardmeolhoudeumjeitoestranho.Talvezporqueeuestivesseolhando
paraelecomoseelefosseumpassarinhoferido.—EuestavanacasadoRen—falei.—Vocêstêmplanosprahoje?—É,elevemmebuscardaquiapouco.
—Paraquê?—Humm,achoquesóvamosalmoçar.Seráquedevoconvidá-lo?Esperaaí.Nósnãovamosalmoçar.—Legal.Bom,euestavapensandoque, sevocêsdoisquiserem,podíamos
verumfilmehojeànoite.Umadascidadesvizinhastemumcinemaaoarlivrequepassafilmesnalínguaoriginal,eestasemanaestãoexibindoumdosmeusfavoritos.
—Ótimaideia!Vibrei. Para virar líder de torcida, eu só precisava de pompons e um
megafone.Calminhaaí.Nãofoiontemquepartiramocoraçãodele.Elemelançouumolharquestionador.—Quebomquevocêgostoudaideia.VouconvidarSoniatambém.—Claro.Entreicorrendoe,quandoolheiparatrás,apenaquesentifoitantaquequase
transbordou pormeus olhos. Ele amavaminhamãe.Era pedir demais que elaretribuísseesseamor?
***
—Vocêdisse“PiazzaleMichelangelo”,nãofoi?—gritouRenpramim.—Isso.Disseramparaestacionarláedepoisseguirprosul.—Ok,élogoali.Tinhasidoumaviagemrápidadescooter,eeu tomara todoocuidadopara
me sentar alguns centímetros afastada, de modo que nossas pernas não setocassemnemnadadotipo.Pelomenosnãotodahora.
—AlguémvainosrecebernaABAF,nãovai?—perguntouele.—Vai. Eu não expliquei por que estávamos indo,mas disseram que uma
pessoadosetordematrículasestarianasecretaria.Eleentrouatrásdeumafiladeônibus,eumdeleseratãograndequedevia
fazerbicocomonaviodecruzeiro.APiazzaleMichelangeloeraumredemoinhodeturistas.Todospareciamestardecididosafazervaleroquetinhamgastado.
—Porquetemtantagenteaqui?—Daqui se tem amelhor vista da cidade. Assim que esse ônibus sair da
nossafrente,vocêvaiver.Oônibusdesacelerou,eRenoultrapassou.Derepenteestávamosdiantede
uma vista panorâmica de Florença, incluindo a Ponte Vecchio, o PalazzoVecchioeoDuomo.Tiveorgulhodemimmesma.Cincodiasdepoisdechegar,járeconheciametadedacidade.
Ren saiu da rua e parou numa vagamais oumenos do tamanho daminhamalaenosesprememosparasair.
—Praondevamos?Euentregueioendereçoaele.—Amulherdaescolafalouqueéfácilachar.Sóquenão.Passamosostrintaminutosseguintesperambulandodeumlado
para outro pelasmesmas ruas porque todomundo a quemperguntávamos nosdavainstruçõescompletamentediferentes.
—Primeiraregraaolidarcomitalianos—resmungouRen.—Elesadoramindicar o caminho. Ainda mais se não tiverem a menor ideia do que estãofalando.
ComeceiaperceberqueRensóagiacomoitalianoquandoestavaafim.—Egesticulammuito—acrescentei.—Acheiqueaqueleúltimocaraestava
orientandoopousodeumavião.Outalvezguiandoumaorquestra.—Vocêsabecomofazerumitalianoparardefalar,nãoé?—Como?—Ésóamarrarosbraçosdele.—Éaqui!Parei de andar, e Ren esbarrou em mim. Já tínhamos passado por aquele
prédio pelo menos cinco vezes, mas só naquele momento notei a minúsculaplacadouradaacimadaporta:ABAF.
—Elesachamqueaspessoasvãoleraplacadebinóculos?—Vocêestámal-humorado.—Desculpa.Aperteiobotãodointerfoneedepoisdeumacampainhaaltaouviavozde
umamulher.—Pronto?Renseaproximou.—Buongiorno.Abbiamounappuntamento.—Prego.Terzopiano.—Aportasedestrancou.Renolhouparamim.—Terceiroandar.Vamosverquemchegaprimeiro.Um empurrou o outro, depois saímos correndo escada acima, chegando a
uma grande recepção iluminada. Uma mulher com um vestido justo cor delavandadeuumpuloatrásdamesa,assustada.
—Buongiorno.—Buongiorno—respondi.Elaolhouparameustênisecomeçouafalaringlês.—Vocêligouparafalardeumareuniãocomonossosetordematrículas?
—Euganhei—sussurrouRen.—Nãoganhou,nada.—Recupereiofôlegoedeiumpassoàfrente.—Oi.
Sim,liguei,masnaverdadequeriafazeralgumasperguntassobreumaex-aluna.—Comoé?—Minhamãeestudouaquiháunsdezesseteanos,eestoutentandoencontrar
umadesuasantigascolegasdeturma.Elaergueuumadassobrancelhas.—Bem,nãopodemosdarnenhumainformaçãopessoal.—Eusóprecisavasaberosobrenomedela.—Comoeufalei,nãopossoajudá-la.Aff.—E quanto ao Signore Petrucione? Ele poderia nos ajudar?— perguntou
Ren.—SignorePetrucione?—Elacruzouosbraços.—Vocêsabequeméele?Assenti.—Eleeraodiretorquandominhamãeestudavaaqui.Elanosencarouporuminstante,depoissevirouesaiudefininhodasala.—Nossa.Aalegriadelaécontagiante—comentouRen.—Achaqueelavai
voltar?—Esperoquesim.Logo depois a mulher reapareceu, seguida por um senhor de aparência
enérgica e muito elegante de terno e gravata e com cabelo branco arrepiado.Quandomeviu,tevequeolhardenovo.
—Nonèpossibile!OlheiparaRen.—Humm,oi.SignorePetrucione?Eleestavaperplexo.—Sim.Evocêé...—Lina.Minhamãeestudouaquie...—VocêéafilhadaHadley.—...Sim.—Achei que estava vendo coisas.— Ele atravessou a sala, estendendo a
mão.—Quesurpresa.Violetta,sabequeméamãedestagarota?—Quem?—Amulherestavadeterminadaanãosedeixarimpressionar.—HadleyEmerson.Oqueixodelacaiu.—Ah.—Lina,venhacomigo.—EleolhouparaRen.—Etragaseuamigo.Eu eRen seguimos Petrucione por um corredor até um pequeno escritório
abarrotado de fotos. Ele se sentou e, com um gesto, nos convidou a fazer omesmo.Tivequetirarumacaixadenegativosdacadeira.
— Lina, sinto muito por sua mãe. Que tragédia. E não só por causa dacontribuição dela para o mundo da arte. Ela também era uma pessoamaravilhosa.
—Euagradeço.—Queméesse?—EleapontouparaRen.—ÉmeuamigoLorenzo.—Prazeremconhecê-lo,Lorenzo.—Igualmente.Petrucioneseinclinouparaafrente,apoiandooscotovelosnamesa.— Que ótimo você estar visitando Florença. E que prazer recebê-la na
ABAF.Violetta disse que você está pedindo informações sobre os colegas deturmadasuamãe.
Respireifundo.—Sim.Bem,tenhotentadodescobrirumpoucosobreaépocaqueelapassou
naescola,eesperavaentrarcomcontatocomumadesuasantigasamigas.—Claro.Quem?—OnomedelaéFrancesca.Elaestudavafotogr...—FrancescaBernardi.Essa foioutraque ficoubastante famosa.Saiuuma
matériasobreeladepáginaduplanaVogueItalianaprimaverapassada.—Eletamborilou dois dedos na própria cabeça. — Eu nunca esqueço um nome.Deixem-me pedir a Violetta que verifique nossos registros de ex-alunos. Jávolto.
Petrucionesaiudepressadoescritório,deixandoaportaentreaberta.—Quantosanosessecaratem?—sussurrouRen.—Suamãenãodisseque
eletinhaunsduzentosanos?Eissofoinaquelaépoca.—Sim,disse.Entãoachoqueagoraeletemduzentosedezessete.—Nomínimo.Eeleésuperativo.Achomelhorelemaneirarnaquantidade
deespressos.—SeráquedevoperguntarsobreoX?Elesmantiveramsegredonaescola,
mas eu podia tentar descobrir se alguém abandonou o emprego no meio dosegundosemestredaminhamãeaqui.
—Pergunta,sim.Olhei para a parede, e a foto de uma velha olhando direto para a câmera
chamouminhaatenção.Fuiatéela.—Foiminhamãequetirouessafoto.—Sério?Comovocêsabe?—Simplesmentesei.
Petrucionevoltousaltitandoparaasala.—Ah,estouvendoquevocêencontrouafotodasuamãe.—Emgeraleuconsigoreconhecerotrabalhodela.—Peladorquesintono
peito.—Bem,semdúvidaéumtrabalhosingular.Hadleytinhaumverdadeirodom
pararetratos.—Elemeentregouumpedaçodepapel,evoltamosanossentar.—AnoteionometododeFrancescaeotelefonedaempresadela.Tenhocertezadequeelaficarámuitofelizemconversarcomvocê.
—Obrigada.Issovaiajudarmuito.—Nãotemdequê.—Elesorriuparamim.Acheiqueíamosapenaspegarasinformaçõeseirembora,masderepenteeu
nãoqueriamaissairdali.—Comominhamãeera?Quandoestavaaqui?Petrucionesorriu.—Comoumpontodeexclamaçãohumano.Nunca tinhavistoninguémtão
empolgada para fazer alguma coisa. Esta escola émuito seletiva,masmesmoassimàsvezesdeixamospassarumperdido,sabe,alunosmeiodesinteressados,mas com um talento natural. Sua mãe não era uma dessas. Ela era muitotalentosa.Talentosíssima,naverdade,mas issoeraapenaspartedaequação.Épreciso ser talentoso emotivado.Acho que só pelamotivação ela poderia tersido bem-sucedida.— Ele sorriu.— Todos os alunos gostavam dela. Eumelembrodequeeramuitopopular.Certavezelamepregouumapeça.TirouumafotoabstratadaPonteVecchioparaumtrabalho.Àquelaaltura,eujátinhavistoumbocadodefotosdaPonteVecchioeavisaraàturmaquequalquerumqueseatrevesseausaraquelapaisagemcomoinspiraçãoseriareprovadonahora.Maselafoiláeusou,eclaroqueameiafoto,esódepoiselamedissequesetratavadaponte...—Elesoltouumarisadinha,balançandoacabeça.
Umasensaçãoquenteepegajosaborbulhoudentrodemim.Euamavaouvirgentequerealmenteconheciaminhamãefalardela.Eracomosegurarsuamãoporumbreveinstante.
“X”,Renfezcomoslábios,semousarfalaremvozalta.—Ah.—Respireifundo.—Sr.Petrucione?Tenhomaisumapergunta.—Prego.— Minha mãe mencionou que houve um... membro do corpo docente,
professoroualgoassim,quedeixouocargonomeiodosegundosemestre.Sabequempodeser?
Oclimaalegredoescritórioevaporoucomumpuf.Petrucionefezumacaraenojada,comosealguémtivesseacabadodelheoferecercocôdecachorroparacomer.
—Não.Nãosei.EueRennosentreolhamos.—Temcerteza?—Absoluta.Eumeajeiteinacadeira.—Ok.Bem,elepodenãoterficadoaquipormuitotempo.Achoqueacabou
aceitandoumempregoemRomae...Eleselevantou,erguendoumdosbraçosparameinterromper.—Desculpe,masmuitosdosmembrosdonossocorpodocentevêmevão.
Eunãomelembro.—Eleassentiuparanós.—Foiumgrandeprazerconhecê-los.Sevoltaràcidadeumdia,porfavorvenhanosdarumalô.—Avozdelecontinuavagentil,maseleclaramenteestavaencerrandooassunto.
Semdúvidanãoqueriafalarsobreaquilo.ElenãoiarevelarnadasobreX.—Obrigadapelaajuda—falei,enfim,melevantando.QuandoeueRenpassamospelamesadeVioletta,elaselevantouàspressas
enosabriuumsorrisotãograndequantooArno.— Foi uma grande honra conhecer você, e fico muito feliz por ter
conseguidoajudar.Tenhamumdiamaravilhoso.—...Obrigada.Assim que a porta de vidro se fechou atrás de nós, Ren ergueu uma das
sobrancelhas.—Oquefoiaquilo?
Capítulo17
—PETRUCIONE COMCERTEZA sabia de quem estávamos falando. Vocêviuacaraqueelefez?
Renassentiu.— Impossível não ter reparado nisso. E cinco segundos antes ele tinha
comentadoquenãoesqueceonomedeninguém.Sónãoquisnoscontarmesmo.—EsperoqueagentetenhamaissortecomFrancesca.—Digiteionúmero
delaeliguei.—Estáchamando.—Pronto?—Umhomematendeu.—Humm,FrancescaBernardi?Elerespondeunumitalianorápido.—Humm,Francesca?—repeti.Eleestaloualíngua.Depoisocelularvoltouachamareumamulheratendeu.—Pronto?—Suavozerabaixaerouca.—Alô,Francesca?—Si?—MeunomeéCarolina.Vocênãomeconhece,masconheceuminhamãe,
HadleyEmerson.Silêncio.FizumacaretaparaRen.—Oquefoi?—perguntouelenumsussurro.—Carolina—disseela lentamente.—Quesurpresa.Sim.Euconheci sua
mãe.Elaeraumagrandeamigaminha.Meucoraçãoacelerou.— Estou tentando descobrir um pouco mais sobre os... estudos dela em
Florença.Vocêsdividiramapartamento,nãoé?—Sim.Enuncaexistiumulhermaisdesorganizada!Acheiqueeuiaacabar
enterradavivanabagunçadela.— É... isso era mesmo um problema. Você se importaria de responder a
algumasperguntassobreaépocaqueelapassouemFlorença?—Claro,possoresponder,sim,masporquequermefazeressasperguntas?
Háanosquenãofalocomela.—Bem...—Hesitei.Eununcasabiacomodaressanotícia.Eracomoabrir
umarepresa.Impossívelpreverareaçãodaspessoas.—Elamorreu.Hápoucomaisdeseismeses.
Francescaarquejou.—Noncipossocredere.Como?—Câncernopâncreas.Foideumahoraparaoutra.—Ah, pobrezinha.Era troppo giovane, veramente. Eu adoraria conversar
sobresuamãe.DepoisdeterminarocursoelasumiudafacedaTerra.Nenhumdenósconseguiumaisentraremcontato.
— Você...? — Fiz uma careta. — Isso pode parecer estranho, mas vocêlembraseelaestavanamorandoalguém?
—Ah,avidaamorosadeHadleyEmerson...Pareciaumanovela.Suamãeestavaapaixonada,sim,eachoquemetadedeFlorençacaiudeamoresporela.Eusempresoubequemeraohomemcertoparaela,todosnóssabíamos,masaíapareceuaqueleMatteoarruinandotudo.
—Matteo?—repeti,comavozfalhando.Nempreciseiinsistir,Francescasoltouonomedeumavez.Renergueuorostoderepente.—Sim.Onossoprofessor—continuouFrancesca.—Professor—sussurreiparaRen.Bom,aquiloexplicavaporquemantiveramonamoroemsegredo.— ... Ele bagunçou a cabeça dela. Fiquei furiosa por ter magoado minha
amiga...—Elasecalou.—Parecequeestoucontandovelhossegredos.—QualeraosobrenomedoMatteo?Elahesitou.—Acho que eraRossi. Sim, é issomesmo,mas eu não deveria ter falado
dele.Aquelehomemfoiumaperdadetempoparatodomundo,sobretudoparasuamãe.—Elasuspirou.—Todosqueríamossalvá-ladele.Eleeracharmoso.Muito bonito, mas controlador. Achava que podia encontrar um talento e seapossardele.AdemissãodoMatteofoiumescândalo.
—Demissão?—“Espaçocriativo”umaova.—Sim,mas são águas passadas.—Avozdela se animou.—Sabe quem
seriaumaótimapessoaparaconversarsobreisso?HowardMercer.Eleeraoutroamigonossodafaculdade,ehojetrabalhanumcemitériopertinhodeFlorença.Eramuitopróximodasuamãe.Queronúmerodele?
—Não,nãoprecisa—falei,depressa.—Então,MatteoRossi.Algumaideiadeondeelepodeestarhojeemdia?
— Nenhuma. E prefiro assim. Mas quantos anos você tem, Carolina? Eutambémtenhoumafilha.
—Dezesseis.—Dezesseis?Hadleyeranovademaisparaterumafilhadasuaidade.Então,
vejamos, isso significa que você nasceu em... — Ela se calou. — Aspetta.
Dezesseisanos?—Humm,sim.Avozdelaficoumaisaguda.—Carolina,vocêestámeligandoporque...—Precisoir.Foibomfalarcomvocê.—Desligueicorrendo.Renestavaapoiadoemmim,comaorelhaapoucoscentímetrosdocelular.
Eledeuumpassoparatrás.—Oquefoiisso?—Elaestavatentandodescobrirquemémeupai.Achoquetalvezelesainda
sefalem,enãoqueroqueissochegueaoHoward.—ComoeladissequeXsechama?Abriumsorrisotriunfante.—ProfessorMatteoRossi.Tenhocertezadequevamosencontrá-lo.Reneeucorremosatéocybercafémaispróximo.Euesperavaencontrarum
montedecappuccinosdescoladosoupelomenosumavitrinecheiademuffinsgigantescos polvilhados com açúcar, mas o lugar só tinha uma fileira decomputadores antigos e umgrupo de pessoasmal-encaradas esperando na filaparaapagarspamdacaixadeentrada.Quedecepção.
— Tem certeza de que não quer usar o meu computador lá em casa?—sugeriuRen,meiosemjeito.
—Não.QueroencontrarMatteoagora.Meucelularapitounabolsa.
Quer iraumafestaamanhãànoite?Édeumagarotaquese formounoanopassado.Banda,bar,fogosdeartifício...
–Thomas
Eume preparei para sentir um friozinho aindamaior na barriga,mas nadaaconteceu.Naverdade,acheiatéqueesquentoualgunsgraus.OlheifurtivamenteparaRen.Lina,vocêprecisasecontrolar.Porquehojeeuoestavaachandotãobonito?Sóporqueeleeraaúnicapessoaqueeuconheciadispostaaembarcarcomigonumabuscainsensatapeloex-namoradodaminhamãe?
—Quemé?—perguntouRen.—Ninguém.— Então, Lina... — A boca dele se curvou para baixo numa expressão
preocupada e fofa.Não, nada fofa.—Está na cara quePetrucionenãoqueriafalar do Matteo, e Francesca pelo visto também não gosta muito dele. Achamesmoumaboaideiaprocuraressecara?Eseeleforumbabaca?
—Elecomcertezaeraumbabaca,mas,sim,queroconhecê-lo.Elefoimuitoimportante na vida da minha mãe, e ela devia querer que eu soubesse daexistênciadele,senãoporqueteriameenviadoodiário?Sintoqueencontrá-loéumgrandepassopraentendertudo.
Eleassentiu,aindaparecendoemdúvida.—Ok,mas“MatteoRossi” éumnomebemcomum.Écomoprocurarum
SteveSmithnosEstadosUnidos.—Vamosencontrá-lo—falei,numtomconfiante.—Pensabem,játivemos
muitasortehoje.Primeiro,encontramosaescola...—Aquilofoiummilagre.— ... E em segundo lugar, depois que chegamos lá, você se lembrou de
mencionar Petrucione. Se não tivesse falado no nome dele, acho queViolettaterianoscolocadoprafora.—Dooutroladodocafé,umamulherselevantoudocomputador.—Ei,olha!Achoqueumdelesvagou.
Corri em direção ao computador, seguida por Ren, e nos esprememos nacadeira.
—Querqueeuprocureemsitesitalianos?—perguntouele.—Sim.AúltimacoisaquesabemoséqueelesemudoupraRoma,entãoé
provávelqueaindaestejalá.—Oquedevoprocurar?Tireiodiáriodabolsaecomeceiafolheá-lo.— Matteo Rossi Academia de Belas-Artes de Florença? Matteo Rossi
fotógrafoRoma?Juntatudooquesabemossobreele.Rendigitoutudooquefalei,ecomeçouadeslizarocursorpelatela,parando
devezemquandoparaler.Tambémtenteiler,masnenhumadasminhascincofrasesemitalianoapareceu.
—Nada.Nada.Nada...Algumacoisa?Quetalisto?—Oquê?Eleclicounumdosresultadosdabusca.—Pareceumanúncio.Eminglês.
JUNTE SEU DESEJO DE VIAJAR COM A PAIXÃO PORFOTOGRAFIAAcompanheorenomadofotógrafoedonodegaleriaMatteoRossinumajornada por Roma que mudará sua forma de ver o mundo. Com asdiversas oficinas de fotografia oferecidas ao longo do ano, Rossitransformaráseuhobbyemalgomais.
—Ren,vocêoencontrou!Sópodeserele.—Vamosolharosite.Ele clicou no link na parte inferior do anúncio, e o site carregou numa
lentidãoaflitiva.—Aiii.Estádemorandodemais—reclamei.Eracomoobservaraeradogeloemcâmeralenta.—Pazienza—disseRen.Osite enfimcarregou.Eramonocromáticocomumgrandebannerdourado
napartedecimacomosdizeresITÁLIAATRAVÉSDASLENTES.TireiomousedamãodoRen,eroleiapáginaparaleraenormequantidade
de texto. Todos os parágrafos eram escritos em inglês e italiano, e erambasicamenteummontedeblá-blá-bládizendoquevocêseriainsuportavelmentefeliz se pagasse um dinheirão pela oportunidade de venerar Matteo. Nãoconseguiacreditarqueocaraeratãoirritante.
Renapontouparaumlinknapartedebaixo.—Páginadabiografia.Tentaessa.Eu cliquei. E esperei. Outra era do gelo começou e terminou. Finalmente,
umafotoempretoebrancodorostodoMatteocarregoueeumeaproximeiparadarumaolhada.
Efoientãoqueperdiofôlego.
Capítulo18
DEREPENTE,Ocybercafépareciaumdossuéteresdelãqueminhatia-avómemandavatodoNatal.Quente.Áspero.Asfixiante.
Minhasmãostremiam,masconseguiclicarnaimagemparaampliá-laaindamais. Pele morena. Olhos escuros. Cabelo cortado curtinho e depois quasemelecadode tantogel, porquedo contrário ele teria quepassarmetadedodiatentandocontrolá-lo.
Eusabiabemcomoeraisso.—Ai,meuDeus.Aimeudeusaimeudeusaimeudeus.Acho que vou vomitar.
—Tenteime levantar,mas tudo girou.Renme segurou eme puxou de voltaparaacadeira.
— Lina, fica calma. Está tudo bem.— Era como se ele estivesse falandodebaixod’água.—Devesersóumacoincidência.Querdizer,vocêtambémseparecemuitocomsuamãe.Todomundofalaisso.
—Ren,elanuncadissequeeleerameupai.—Oquê?Eumevirei.—MinhamãenuncafalouqueHowarderameupai.Otempotodofaloudele
comosefosseapenasomelhoramigodela.Elearregalouosolhos.—Davvero?Entãoporquevocêachouqueera?—Porcausadaminhaavó.EladissequeHowarderameupaiequeminha
mãenãotinhamecontadoporquequeriaqueeuchegasseládecoraçãoabertoedesseumachancepraele.—Coloqueiamãonopeito.Meucoraçãobatiaforte,quasequebrandominhascostelas.—ÉclaroqueeunãotenhonadaavercomHoward,eRen,olha.
Viramosparaatelaoutravez.—Precisodeumaexplicação.Talvez...—Elesecalou.Nãohaviaomenorespaçoparaum“talvez”.—Edesdequechegueiaqui,aspessoasdizemqueeutenhocaradeitaliana.
Vocêmesmo falou issoquandonosconhecemosnacolina.Ah,meuDeus.Eusouitaliana.Eusouitaliana!
—Metadeitaliana.E,Lina,calma.Seritalianatambémnãoéofimdo...—Ren,vocêachaqueelesabe?AchaqueHowardsabe?
Elehesitou,olhandooutravezparaafoto.—Nãosei.Devesaber,nãoé?—Então por que estáme apresentando pras pessoas como filha dele?Ah,
não.—Eumecurvei,segurandoaspernas.—Nanoiteemquefomosnacasada Elena, ele estava com convidados em casa e eu ouvi uma das pessoasperguntar se eu era filha “da fotógrafa”, e ele disse que sim,mas não que eutambémerafilhadele.
—Maselemedissequeéseupai.Naquelaprimeiravezquenosfalamos.ESoniadizomesmo,nãoé?
—Ou os dois estãomentindo ou acreditammesmo nisso.—Coloquei asmãos na cabeça.—Ren, e se sóminhamãe soubesse?E se esse tiver sido omotivopraelaterenviadoodiário?Praeusaberaverdademesmoqueninguémmaissoubesse?
Renfezumacareta.—Elafariaisso?Étão...Cruel?Insensível?Podeescolher.Balanceiacabeça.— Não sei mais. Desde que comecei a ler o diário, eu me pergunto se
realmenteaconhecia.—Olheioutravezparaatela.—Ontemànoiteeuestavapensando que ela e Howard tinham que ficar juntos logo porque nasci emjaneiro,mas acho que não estavam com pressa. Ela já devia estar grávida naépocaemquefoimorarcomele.
—Eagora?Respireifundo.—TemosqueligarproMatteo.Precisoconhecê-lo.—Nossa,Lina,nãoachoquesejaumaboaideia.Porquenãoconversamos
comHowardantes?Oupelomenosterminamosdelerodiário?—Ren,porfavor!Achoqueeraissoqueminhamãequeriaqueeufizesse.E
nãovouconseguirencararHowardassim.Nãoposso.EssenúmeronapartedebaixoédoMatteo?
Pegueimeucelularetenteiligar,masminhasmãostremiamdemais.—Euligo.—Elepegouoaparelho.—Ligodiretopronúmerodagaleria?—Sim.Vêseestáaberta.Eondefica.Comovamoschegarlá?Podemosir
atéRomadescooter?—Não,vamosdetrem.Temtrensindopraláodiainteiro.Ele se inclinou para a frente, com o celular encostado no ouvido. Estava
chamando.
***
Ren pilotou o mais rápido possível até a estação de trem, enquanto eu meseguravanelecomoummacacolunático.Tínhamosvistooshoráriosnainterneteachamosumtremexpressoquesairiaemvinteeseisminutos.Chegamosemvinteequatro.
—Conseguimos.Conseguimos—comemorei,ofegante.Renafundounumbancovazio.—Eu...nunca...corri...tanto.Pressioneiosdedoscontraascostelas.Sentiaumadorhorrívelnalateraldo
tórax.—Quem...diria...queumtrem...estariasaindoagora?Elelevouumsegundopararecuperarofôlego.—Elessaemodiainteiro,masesseaquiéexpresso.Eprecisamosfazertudo
rápidoporquemeuspaisvãomematarsedescobriremqueestoulevandovocêaRomapraencontrarumdesconhecido.EHowardvaimejogarnumcaldeirãodeóleofervente.
—Matteonãoéumcaraqualquer.EHoward...—Solteiumgemido.—Quehorror.Foirejeitadoporminhamãeeagoratambémvaidescobrirquenãotemfilhanenhuma.
Nesseinstante,começaramafalarnumvolumeensurdecedorpelosistemadecomunicação, e nós dois tapamos os ouvidos enquanto um homem fazia umlongo anúncio em italiano. Quando finalmente terminou, ouvimos um apitoagudoeo tremsaiu lentamentedaestação.Istoestáacontecendo.Estámesmoacontecendo.
—Vocêestálevandoodiário,nãoé?—perguntouRen.—Estou.—Euotireidabolsa.—Voulernocaminho.Quantotempoaté
lá?—Umahoraemeia.Lêrápido.Elefechouosolhoseapoiouospésnobancoàfrente.—Ren?Eleabriuosolhos.—Sim?—Juroquenormalmenteeusouumtédio.—Duvido.
9DEMAIOOsemestreestáterminando.SimoneeAlessioacabarammaiscedo.ElesconseguiramumempregojuntosnummuseuemNápoles,etodosficamosaliviadosporqueelesnãovãoseseparar.Comquembrigariam?Adriennetambémterminouantes,masfoiemborasemsedespedir.
Agorasórestaramtrêsdonossogrupo,Francesca,Howardeeu.Passamostantotempojuntosquebrincamosqueeledeveriaeconomizardinheiroevirmorar conosco.As aulas terminaram,mas tecnicamente faltam duassemanasatéentregarmosoprojetofinal,ejácomeceiaajudarPetrucione.
Pareceofimdeumaera.Noanopassado,vivialgunsdosmeusmelhoresmomentos,mas tambémalgunsdospiores.Não tivenenhumanotíciadeXdesdeaqueledianaestaçãodetrem,eagoraqueopiorjápassou,ficome perguntando como nosso relacionamento pode ter significado tantoparamimetãopoucoparaele.
12DEMAIONasúltimassemanas,eueHowardalugamosumcarroetemosarrastadoFrancesca para passeios pelas cidades nas colinas da Toscana. Nossospapéis sãobemdefinidos:Howarddirigee cuidadamúsica, eu leioumlivro de viagens em voz alta e Francesca fica sentada no banco de trásreclamando.Nósnosdivertimostanto,eeuficomuitofelizportê-losporpertoparamedistrair.ÀsvezesatémeesqueçodeXporumtempo.
13DEMAIOOfereceram a Francesca um emprego como assistente de um grandefotógrafo demoda emRoma. Se ela aceitar (e vai aceitar), começa emmenosdeummês.Howardtambémtemfeitoentrevistasdeemprego.EledissequevaifazeroqueforprecisoparaficarnaItália.AlguémprecisadeumzeladorcomPh.D.emhistóriadaarte?SemprepensamosparecidocomrelaçãoaFlorença.Enquantonossosamigosreclamavamdosturistase dos preços, nós apontávamos para os vitrais coloridos eexperimentávamos os sabores mais estranhos de gelato queencontrávamos.
Devoadmitirque,apesardeaindaamarFlorençacomtodoocoração,a
cidadeacabousetornandoumlugartristeparamim.Semprequesaiovejolugares aonde fui com X, e é como se eu ouvisse ecos das nossasconversas. Passei horas me perguntando por que nosso relacionamentoterminou tãode repente.Seráque a direçãoda escola tinhadescoberto?Elehaviaconhecidooutrapessoa?Masé inútilpensarnisso.Eupoderiapassaravidainteiramefazendoessasperguntas.
14DEMAIOSó falta uma semana para terminar o prazo de entrega domeu projeto.Petrucione recomendou algumas escolas de arte para fazer retratosfotográficosedisseque,seeuconseguiraumentarmeuportfólio,podereiescolher o curso que quiser. Estou tentando ficar tão animada quantodeveria.Sintoquepartedemimjáestáprontaparaapróximafase,masaoutradesejaficarnestacidadeparasempre.
15DEMAIOHowarddeveestarcansadodosbolosquedouenquantotrabalhonomeuportfólio,porqueelemesurpreendeuquandoeuestavasaindodoestúdioedisseque iame levarparaconheceroCemitérioeMemorialAmericanode Florença. Ele tem trabalhado lá como voluntário nos últimos meses(acrescenteaSegundaGuerraMundialasua longa listade interesses),ehá pouco tempo recomendaram que se candidatasse à vaga desuperintendentefixo.Osuperintendenteatualsofreuumderrameestemês,e eles estão com pressa para encontrar um substituto. Não consigoimaginaralguémmaisperfeitoparaocargonemumlugarmaisperfeitoparaHoward.Eledissequeéimprováveletentoudemonstrarindiferença,masdeuparaverquantoelequeresseemprego.
18DEMAIOOquetemdeerradocomigo?Temdiasemquesintoqueestouseguindoemfrente,eemoutrosficotãotristeeemotivaqueécomoseestivessedenovo na estação de trem em Roma. Trabalho até tarde na maioria dasnoites,masmesmoquenão trabalhe,nãoconsigodormir.Todavezquefecho os olhos, penso em X. Sei que a esta altura eu já deveria tersuperado, mas só queria ter uma última conversa. Num momento defraqueza,ligueiparaele,masonúmeronãoexistemais.Seiqueémelhorassim,masfiqueimuitodecepcionada.
20DEMAIOHowardconseguiuoemprego!EueFrancescao levamosà suapizzariapreferida para comemorar, e quando voltamos para casa, ela subiucorrendo, nos deixando parados lá fora. Eu já ia me despedir, mas elecomeçouapigarreareabalbuciar,edonadameconvidouparapassarorestantedoverãonocemitério.Ele fezparecermuito fácil: terminesuasinscriçõesnasfaculdades.Fiquenoquartovago.PasseumpoucomaisdetempoemFlorença.Queconvite!Aceiteiantesmesmoqueeleterminassedefalar.
22DEMAIOHojefoimeuúltimodiaoficialcomoestudantedaABAF.Planejotirarofimdesemanade folga.ComeçoaauxiliarPetrucionenasegunda-feira.EueFrancescapassamosatardeencaixotandoascoisasdoapartamento.Nunca achei que diria isso, mas vou sentir saudade do meu colchãofininhoeduroede todososclientesbarulhentosdapadaria.Vivi tantascoisasboasaqui!
Francesca foi embora há uma hora. O estágio dela começa em duassemanas,masanteselavaiviajarpelopaís.Euaajudeiadescertodasasnovemalas,depoissimplesmentenosabraçamos.Eladizquenuncachora,masquandonosafastamosseudelineadorestavaumpouquinhoborrado.EsperoqueelacumpraapromessadevisitaramimeaHowardembreve.
24DEMAIOBem, é oficial. Agora sou uma moradora do Cemitério e MemorialAmericanodeFlorença.Todooestressedeterminaroanoletivodeveterme afetado, porque ontem eu estava tão exausta que mal consegui melevantar da cama.O superintendente anterior deixou o lugarmobiliado,entãoHoward pôde começar a trabalhar logo.O quarto extra é perfeitoparamim,eHowarddissequenão se incomodaseeucobrir asparedescomfotos.
26DEMAIOO cemitério é deslumbrante, e embora eu devesse passar todo o meutempo livre me inscrevendo nas faculdades, sempre aproveito algunsmomentos para perambular por entre as lápides. O Muro dos
desaparecidos é especialmente interessante.Como essas pessoas podiamestar vivas e de repente desaparecer? Hoje de manhã eu estavafotografando o muro e a superintendente-assistente, Sonia, se juntou amim. Tivemos uma longa conversa. Ela é uma mulher maravilhosa,inteligente,comoHoward,emuitodedicadaaotrabalhoaqui.
30DEMAIOEstasemanafoiótima.Depoisdeterminarmosotrabalhododia,Howarde eu cozinhamos, assistimos a alguns filmes antigos e fizemos longascaminhadas,etemsidoperfeito.ÀsvezesSoniasejuntaanós,ejogamoscartas, vemos filmes ou só conversamos. Não sei explicar direito, masduranteanos sentiqueestavaprocurandoalgumacoisa, comoseeunãoestivesse no lugar certo, no entanto aqui, com Howard, essa sensaçãoevaporou.Nãoseiseéacidade,atranquilidadedocemitérioouotempolivre para tirar fotos,mas nuncame senti tão à vontade.Este lugar temmesmoalgumpoderdecurarosmales.
31DEMAIOHojedemanhãmostreiaPetrucionealgumasfotosquetireinocemitério.Háum lugar no ladonoroeste comumavista perfeita dapropriedade, etenhotiradofotosaliemdiferenteshorários.Éincrívelveramudançadaluzedacoraolongododia.
Pode parecer óbvio,masmorar num cemitériome faz pensar namorte.Aquiháumaordemquenãoexistenavidareal,eachoissoestranhamentereconfortante. Talvez essa seja a beleza da morte. Nada mais écomplicado.Tudoéfechadoedefinitivo.
Fechadoedefinitivo.—Aiii—faleiemvozalta.Minha mãe estava completamente errada. Como algo pode ser definitivo
quandovocêdeixapessoasparatrássemterreveladoseussegredos?—Oquefoi?—perguntouRen.—Algumanovidade?—ElafoimorarcomHowardnocemitério,masosdoiseramsóamigos.Ela
jádeviaestargrávidanaquelaépoca.—Balanceiacabeça.—SópodeserdoMatteo.
—Possoleratéessaparte?Entreguei o diário a ele eme recostei, observando a paisagem passar pela
janela. Estávamos atravessando uma região rural com muito verde e colinasdignasdeumcartão-postal,eeratãolindoepitorescoquetivevontadedegritar.
Porqueminhamãetinhamecontadodaquelejeito?
Capítulo19
QUANDOOTREMparou,haviatantaadrenalinacorrendopelasminhasveiasqueeupoderia fornecer energiaparaumapequena ilha.Nãoquequalquerumdosoutrospassageirosseimportassecomisso.Elesnãoestavamcomamínimapressa de guardar suas revistas e seus laptops, e fiquei presa no corredor,mebalançando,nervosa.
Renmecutucoucomoombro.—Temcertezadequequerfazeristo?—Eupreciso.Eleassentiu.— Quando sairmos do trem, vamos direto pra calçada. Se conseguirmos
ultrapassaramultidão,podemospegarumtáxiechegarláemdezminutos.Dezminutos.AfilaenfimcomeçouaandareeueRensaímoscorrendodotrem.Aestação
tinhaumpé-direitoaltoeeraaindamaischeiaqueadeFlorença.—Praquelado?—perguntei.Elegirouemtornodesimesmo.—Achoqueé...pralá.Isso.Topacorrerdenovo?—Vamosnessa.Ele me levou pela mão até a saída, desviamos das pessoas como se
estivéssemos num jogo de videogame.Dezminutos.Dezminutos.Minha vidaestavaprestesamudar.Denovo.Oquetinhaacontecidocomosdiasnormaiseentediantes?
Havia ummonte de táxis esperando na rua ao lado do ponto, e eu e Renentramos no primeiro. O motorista tinha um bigode enorme e estava com operfumevencido.
Renleuoendereçoparaele.—Dieciminuti—respondeuotaxista.—Dezminutos.—Rentraduziu.Respira.Respira.Respira.Eleaindaseguravaminhamão.
***
Quer umconselho?Anão ser quevocênão tenha escolha, por exemplo, casoestejasendoperseguidoporumbandodemacacosraivososoutenhafugidoparauma cidade estrangeira para encontrar seu paimisterioso, nunca, jamais entrenumtáxiemRoma.Jamais.
—Ren,achoqueessecaravainosmatar—sussurrei.— Por quê? Só porque quase acabamos de bater de frente de novo? Ou
porqueelenãoparadetentararrumarbrigacomosoutrosmotoristas?—Dovehaiimparatoaguidare?—gritouotaxistaparaocarroaolado.Eleseinclinouparaforadajanelaefezumgestoqueeununcatinhavisto,
masqueentendinahora.—Achoqueestouvendotodaaminhavidapassarcomoumfilmediantedos
meusolhos—falei.—Ecomoé?—Empolgante.—Aminhatambém,masdevoadmitirqueficoumuitomaisempolgantehá
cincodias,quandovocêesbarroucomigonacolina.—Eunãoesbarreicomvocê.Naverdade,estavatentandoevitarvocê.—Sério?Porquê?—Acheiqueiaserestranho.Efoi.Elesorriu.—Eolhasópragenteagora.Vivendojuntosnossosúltimosminutos.Omotoristapassouporcimadomeio-fioecolocouocarroempontomorto
antes de parar completamente. Ren e eu nos chocamos contra os bancos dafrente.
—Ai!—Esfregueiorosto.—Euaindatenhonariz?—Tem,maseleagoraéachatado—disseRen,agachadonocarrocomoum
pedaçodepapelamassado.—Siamoarrivati—anunciouo taxistanum tomagradável.Elenosolhou
peloretrovisor,depoisapontouparaotaxímetro.—Diciassetteeuro.Tirei o dinheiro da bolsa e o entreguei a ele, depois saímos do carro. No
segundo em que fechei a porta, o táxi voltou para o trânsito cantando pneus,fazendopelomenosquatrocarrosfrearemàspressasecontribuindoparaoquebasicamenteeraumagrandeorquestradebuzinas.
—Essecaranãodeveriatercarteirademotorista.— Isso é bem comum.Na verdade, ele é um dosmelhores taxistas que já
peguei.Olha,aliestáagaleria.Eumevirei.Estávamosdiantedeumprédiodepedrascinzentascomletras
douradasnaporta.
ROSSIGALLERIAESCUOLADIFOTOGRAFIA
Rossi.LinaRossi.Seráqueesseerameuverdadeironome?Droga.TinhaumRitaliano.Eunãoconseguirianempronunciá-locorretamente.
—Vamos.—Antesquemeunervosismolevasseamelhor,fuiatéaportaeaperteiobotãodointerfone.
—Prego—disseumavozmasculinapelofone.—Matteo?—Aportafoidestrancadacomumcliquealto.OlheiparaRen.—Estápronto?—Quemseimportacomigo?Vocêestápronta?—Não.Antes que eu pudesse pensar duas vezes, empurrei a porta e me vi num
grandesaguãocircular.Oambientetinhaladrilhosbrilhanteseumlustreimensocom cerca de dez luzes penduradas, como tentáculos de uma água-viva. Umhomem louro de camisa social e gravata estava sentado atrás de uma mesaprateadaecurva.Eleerajovemepareciaamericano.ClaramentenãoeraMatteo.
—Buongiorno.Inglês?—disseele,numtomentediado.—Sim.—Minhavozecoou.—Infelizmente,vocêsperderamaaula.Começouhámaisdemeiahora.Renparouaomeulado.—Nãoviemospraaula.Ligueiháduashoraspramarcarumareuniãocom
Matteo.MeunomeéLorenzo.—LorenzoFerrara?—Elenosavaliouporuminstante.—Nãopenseique
vocêsfossemtãonovos.Infelizmente,osr.Rossiestáláemcimadandoaula.Oshoráriosdelevariam,enãopossoprometerque terá tempodefalarcomvocêsdepois.
—Bem,vamosesperarmesmoassim—falei,rapidamente.Sr.Rossi.Atéondeeusabia,eleestavabemacimademim.—Equaléseunome?—perguntouohomem.—Lina...—Hesitei.SeráqueMatteoreconheceriameusobrenome?—Meu
nomeéLinaEmerson.Renolhouparamim,massimplesmentedeideombros.Oobjetivoeracontar
aoMatteoquemeuera,certo?— Tudo bem. Não posso prometer nada, mas vou avisar que vocês estão
aqui.Otelefonecomeçouatocaraltoeeleatendeu.—Buongiorno.RossiGalleriaeScuoladiFotografia.—Vamosdarumaolhadaporaqui—sugeriaRen.
Eu estava muito nervosa. Talvez um passeio pela galeria distraísse minhamentedoqueestavaparaacontecer.
—Claro.Passamosporumaportaemarcoeentramosnaprimeirasala,queeratodade
tijolinhose tinhaasquatroparedescobertaspor fotografiasemolduradas.Umafotograndechamouminhaatenção.Eraaimagemdeumprédioantigocobertodepichaçõesnumacidadegrande,comoNovaYorkoucoisadotipo,enumadasparedesestavaescrito:OTEMPONÃOEXISTE,RELÓGIOS,SIM.Nocantodireitohaviaumagrandeassinaturarebuscada:M.ROSSI.
—Ébemlegal—disseRen.—É,minhamãeteriaadoradooestilodele.Correção.Elaadoravaoestilodele.Minhasglândulassudoríparasentraram
emsuperprodução.Renseguiuemfrente,eeu,nadireçãooposta.Amaioriadasfotografiasera
doMatteo,todasmuitoboas.Tipo,boasdeverdade.—Lina?Podeviraquiumminuto?—AvozdoRenestavadeliberadamente
calma, comonas situações emque é preciso avisar que alguémestá comumaaranhaimensanascostassemcausarpânico.
—Oquefoi?—Fuiatéelenamesmahora.—Oqueé?—Olha.Leveiumsegundoparaentenderoqueestavavendo,edepoisquasetiveum
colapso.Eraumafotominha.Ou,pelomenos,dasminhascostas,eeuatémelembrava de quandominhamãe tirou.Eu tinha cinco anos e fiz umapilha delivros para subir e olhar pela janela o cachorro do vizinho. O bicho era dotamanho de um pônei e despertava em mim uma relação intensa de amor emedo. Eu estava commeu vestido preferido.Olhei a descrição.Carolina, porHadleyEmerson.
—Comoeleconseguiuisso?Derepente,sentitudogirar.—Elesabesobremim.Nãovaiserumasurpresa.—Temcertezadequenãoquerirembora?—Nãosei.Achaqueelesempreesperouqueeuaparecesse?— Com licença. — Era o homem do saguão. Ele nos olhava como se
desconfiasse que fôssemos enfiar uma das enormes fotos doMatteo naminhabolsa.—Vocêstêmalgumadúvida?Maisoumenosummilhãodedúvidas.—Humm, sim...—Meu olhar desesperado percorreu a sala.—Todas as
peçasestão...àvenda?—Nemtodas.Algumasfazempartedacoleçãoparticulardosr.Rossi.
—EletemmaisalgumacoisadeHadleyEmerson?—Aponteiparaafoto.—Humm.—Ele se aproximou e deu uma olhada naCarolina.— Posso
verificar, mas acho que esta é a única. Você conhece o trabalho de HadleyEmerson?
—Humm,conheço.Maisoumenos.—Vouolharnosistemaejáinformo.ElesaiudasalaeRenergueuassobrancelhas.—Elenãoémuitoobservador,né?—OquevoudizerparaMatteo?Devocomeçarcontandoquemeusou?—Talvezvocêdevesseesperarpraverseeleareconhece.Uma porta se abriu no andar de cima e ouvimos um estrondo de vozes e
passos.Aaulatinhaterminado.Minharespiraçãoacelerou.Aquiloeraumerro.Estavaacontecendo rápidodemais.E seelenãoquisesse fazerpartedaminhavida?Esequisesse?Eleseriatãohorrívelquantoocaradodiário?
SegureiobraçodoRen.—Mudei de ideia. Não quero conhecê-lo. Você estava certo. Precisamos
conversarcomHowardantes.Pelomenoseuseiqueminhamãeconfiavanele.—Temcerteza?—Tenho.Vamosdaroforadaqui.Saímosdasalacorrendo.Maisdedezpessoasatravessavamosaguão,masas
contornamosdepressaequandoeuestavaquaseencostandonamaçaneta,ouviralguémdizer:
—Vocêsdois.Esperemaí!Eu eRen congelamos.Ah, não. Parte demim queria ir embora,mas outra
parteaindamaiorqueriasevirar.Entãofoioquefiz.Lentamente.Umhomemdemeia-idadeestavanoaltodaescada.Usavaumacamisaque
pareciacaraecalçasocial,eeramaisbaixodoqueeutinhaimaginado,comumabarba e um bigode cuidadosamente aparados. Ele não tirava aqueles olhosescurosdemim.
—Vem,Lina,vamosembora—disseRen.—Carolina?Porfavor,venhaaomeuescritório.—Nãoprecisamosir—sussurrouRen.—Podemosirembora.Agora.Minha pulsação latejava nos ouvidos. Ele não só tinha me chamado de
“Carolina”,comotinhapronunciadocorretamente.SegureiamãodoRen.—Porfavor,venhacomigo.Eleassentiuelentamentefomosatéaescada.
Capítulo20
—PORFAVOR,SENTEM-SE.—Matteotinhaumtomdevozeducado,comumlevesotaque.
Ele foi para trás de umamesa em forma demeia-lua e apontou para duascadeirasidênticasaovoscozidos.Pensandobem,tudonoescritóriodelepareciaoutracoisa.Umgranderelógioemformaderodadentadatiquetaqueavaaltonocanto,eotapetelembravaummapadogenomahumanooucoisadotipo.Asalainteira tinha um aspecto moderno e coloridíssimo que não combinava com ohomemdiantedenós.
Inquieta,eumesenteinumdosovoscozidos.—Oquepossofazerporvocês?Ok.Contologo?Porondecomeço?—Eu...—CometioerrodeolharderelanceparaRen,ederepenteminha
gargantasefechoucomoseestivessesendoenforcada.Elemeolhoudeumjeitopreocupado.Matteoinclinouacabeça.—Vocês dois falam inglês, certo? Benjamin disse que queriam conversar
comigo. Imagino que estejam interessados em alguma informação sobre oscursos.
Renolhouparaminhaexpressãopetrificada,depoistomouapalavra.—Ah... sim. Informações sobre os cursos. Humm, você tem alguma aula
parainiciantes?—Claro.Douvárioscursosparaprincipiantesaolongodoano.Opróximo
começaemsetembro,masachoqueasvagasjáacabaram.Todasasinformaçõesestãodisponíveisnomeusite.—Elese recostou.—Gostariadeentrarparaalistadeespera?
—Sim,boaideia.—Tudobem.Benjamimvaiajudá-loscomisso.Matteo olhou paramim, e de repente fiquei consciente de todas asminhas
terminaçõesnervosas.Ele estava fingindoquenão sabia, ounãopercebia?Eumesentiadiantedeumespelho.Umespelhomaisvelho,dosexomasculino,masmesmoassimumespelho.Eleolhouparaomeucabeloporalgunsinstantes.
—Vocêtemumaboacâmerapararecomendarauminiciante?—perguntouRen.
—Sim.PrefiroasNikons.Romatemvárias lojasboasdefotografia.Possopassaroscontatosparavocêscomtodooprazer.
—Ótimo.Matteoassentiu,ehouveumlongomomentodesilêncio.Renpigarreou.—Então...elasdevemserbemcaras.—Existemcâmerasdeváriospreços.—Elecruzouosbraçoseolhouparao
relógioderodadentada.—Bem,sevocêsmedãolicença...—Vocêcolecionamuitasfotosdeoutrosfotógrafos?—soltei.MatteoeRenolharamparamim.—Nãomuitas,masviajobastante, então façoquestãodevisitar estúdiose
galerias em todosos lugaresquevou.Seencontroalgoespecialmente tocante,comproeexibonagaleriajuntocommeutrabalhoeodosalunos.
—EquantoàfotodeHadleyEmerson?Ondeacomprou?—Aquelafoiumpresente.—Dequem?—Daprópria.Elemeencarou.Comosemedesafiasse.Perdicompletamenteofôlego.Eleafastouacadeiradamesa.—Lorenzo, por que não vamos até a recepção e pedimos aBenjamin que
coloqueseunomenalistadeespera?Carolina,antesdevocêir,eugostariademostraraoutrafotodaHadleyquetenho.
Eumelevanteidacadeirasemjeito,eRenseguroumeubraço.—Porqueelenãoestáreconhecendovocê?—sussurrou.—Eleestá.Sabiameunomeverdadeiroeapronúnciacorreta.Todo mundo errava meu nome. A não ser que já o tivessem ouvido.
Descemos com ele, meu coração quase saindo pela boca, e Matteo parou narecepção.
— Benjamin, você poderia ajudar Lorenzo a colocar o nome na lista deesperadopróximocursoparainiciantes?
—Claro.—Carolina,afotoestánasalaaolado.Lorenzo,vamosesperarvocêlá.Nósnosentreolhamos.Ok?,murmurouele.Ok.Ok,ok,ok.—Poraqui.Matteofoiparaasalaaolado,eeuosegui,comamenteconfusacomouma
TV com sinal ruim. O que estava acontecendo? Ele queria conversar em
particular?Elefoiatéaparedemaisdistanteeapontouparaafotodeumajovemcomo
rostomeiosombreado.Semdúvidaminhamãe.—Estávendo?—Sim.—Respireifundo,mantendoosolhosnafotoparacriarcoragem.—Matteo,euestouaquiporquesou...—Euseiquemvocêé.Erguiorostodepressa.Elemeolhavacomoseeufosseumchicletegrudado
nasoladoseusapato.—VocêésuamãedecalçajeanseAllStar.Averdadeiraperguntaé:oque
estáfazendoaqui?—Oqueestou...fazendoaqui?—Deiumpassoparatrás,tentandopegaro
diárionabolsa.—Eulisobrevocênodiáriodaminhamãe.—Edaí?—Ela...estavaapaixonadaporvocê.Elesoltouumarisadaamarga.—Apaixonada.Elaeraumacriançaboba,quecaiudeamorespeloinstrutor.
Não conhecia a vida fora daquela cidadezinha de onde veio e quando chegouaquiachouquesuavidavirariaumcontodefadas.Mas,asfantasiasdaHadleynãoimportam,oqueimportaéqueeueraprofessordela,sóisso.Esejaláoqueestiverpassandoporsuacabeçaagora,émelhoresquecerlogo,Carolina.—Elecuspiumeunomecomosefosseumpedaçodefrutapodre.
Umaondadecalorseespalhoupelomeucorpo.—Não foisó isso.Vocêsnamoraram.Vocêescondeuo relacionamentode
todomundoedepoisterminoutudoquandoelaveiovisitá-loemRoma.Elebalançouacabeçadevagar.— Não. Isso é mentira. Ela criou uma fantasia de que tínhamos um
relacionamentoefoitãolongequechegouaacreditaremsimesma.—Oslábiosdele se curvaram num sorriso horrível. — Sua mãe era desequilibrada. Umamentirosa.
—Nãoera,não.—Minhavozecooupelasala.—Elanão fantasiouessascoisas.Nãoinventouorelacionamentodevocês.
—Ah,émesmo?—Matteoergueuavoz.—Pergunteaqualquerumqueestava lá. Alguém nos viu juntos? Você já falou com alguém que tenhaconfirmadoessahistória?
—FrancescaBernardi.Elerevirouosolhos.—Francesca.Eraamelhoramigadasuamãe.Claroqueacreditavanela,mas
algumavezelanosviujuntos?Francescatemalgomaisemquesebasearalém
docontodefadasridículodasuamãe?Será que tinha? Um carrossel de pensamentos começou a rodopiar pela
minhacabeça.Francescapareciatercerteza...— Imaginei. Mas como você se deu ao trabalho de vir aqui, vou contar
exatamenteoqueaconteceu.Suamãeestavatendodificuldadescomotrabalhodocursoeperguntouseeupoderiaajudá-la foradaescola.Aprincípio, fiqueicontenteemajudar,masdepoiselacomeçouameligaremhoráriosestranhos.Duranteaaula,ficavameencarandoedeixavacoisasnaminhamesaparamim.Àsvezeseramversos;outras,fotosdelamesma.—Elebalançouacabeça.—Aprincípio, achei que era só uma paixonite, inofensiva, mas aquilo foi ficandomais intenso.Certanoite,Hadleyfoiatémeuapartamentoedisseque tinhaseapaixonadopormim, que suavida não teria sentido se não ficássemos juntos.Tenteisergentil.Disseque,comoprofessor,eunãopoderiamerelacionarcomuma aluna. Disse que ela seria mais feliz com alguém da idade dela. ComoaqueleHowardMercer.Howard.Estremeci,masMatteonãonotou,eleestavacomoolhardistante,
comosevisseacenaacontecernumagrandeteladeTV.— E foi aí que ela surtou. Começou a gritar, dizendo que iria procurar o
diretordaescolapara contarqueeu tinhaabusadodela.Eu faleiqueninguémacreditaria.Eentãoelapegouumdiário,imaginoquesejaesseaímesmo,emedisse que estava tudo registrado. O que ela escreveu aí é uma fantasia, umavisão,doqueelaqueriaqueacontecesseentrenós.Eladissequeescreveriaumfinalinfelizemostrariaparatodomundocomoprova.Nodiaseguinte,tiveumaconversa com o diretor, e concordamos que, embora eu não tivesse cometidonenhum erro, era melhor me demitir. Mais tarde, fiquei sabendo que elacomeçouadormircomqualquerumqueaparecesse.Imaginoquevocêsejafrutodisso.—Eleolhounofundodosmeusolhos,eeusentiumcalafrio.—Eunãoquerianadacomsuamãeenãoqueronadacomvocê.
—Vocêéummentiroso.—Minhavozfalhava.—Ecovarde.Olhapramim.Eusouasuacara.
Elebalançouacabeçalentamente,comumsorrisotriste.—Não,Carolina.Vocêéacaradela.Edopobrehomemqueelaatraiupara
umadesuasfantasiaspatéticas.—Nummovimentorápido,eledeuumpassoàfrente,tirandoodiáriodasminhasmãos.
—Ei!—Tenteirecuperá-lo,maselesevirou,mebloqueandocomoombro.—Ah,sim.Ofamosodiário.—Começouafolheá-lo.—Parecequeelame
chamavadeX.Inteligente,não?“AúnicapartedifícildeestarapaixonadaporXénãocontaraninguém”...“Àsvezesparecequemeutempoédivididoemduascategorias:otempocomXeotempoesperandoparaestarcomX”...—Elese
virou,passandoaspáginas lentamente.—Carolina,você temcarade serumagarota inteligente. Pensa bem, isso parece real? Acha que sua mãe teve umrelacionamentoqueconseguiumantertotalmenteemsegredo?
—Elanãoinventounadadisso.Matteo olhou para a primeira página do diário e mostrou para mim. “Eu
tomeiadecisãoerrada.”—Estávendo?Mesmoemmeioàloucura,elasabiaqueforjarodiárioera
errado. Ela eramuito talentosa,mas folle. Detesto dizer isso, Carolina,mas aciência provou que as partes do cérebro responsáveis pela criatividade e pelaloucura sãoasmesmas.Pelomenosvocê temoconfortode saberquenão foiculpadela.Suamãeeraumgênio,masamentedelaerafraca.
De repente, tudo ficou vermelho, de tanta raiva em ebulição. Sem pensardireito,partiparacimadele,arrancandoodiáriodesuasmãosecorrendoparaosaguão.
—Lina?—Rendesviouoolhardamesa.Ele seguravaumaprancheta.—Vocêestábem?
Abri a porta e saí, seguida por Ren. Eume virei e corri pela rua, com aspernaspesadascomosacosdeareia.Amentedelaerafraca.
Finalmente,Renmealcançou,agarrandomeubraço.—Lina,oqueaconteceu?Oqueaconteceuládentro?Umaondadeenjoomedominouecorriparaabeiradacalçada,comânsiade
vômito.Enfim,asensaçãopassouemeabaixei,sentindoocalçamentodurosobosjoelhos.
Renseajoelhouaomeulado.—Lina,oqueaconteceu?Eumevirei,encosteiorostonopeitodeleederepentecomeceiachorar.Não
apenas chorar.Eu soluçava.Umchoro explosivo e descontrolado.Opeso dosúltimosdezmesescaírasobremimeeunãopodiafazernada.
Eu chorei, chorei e chorei.Lágrimas quentes e barulhentas escorriam, e eunãomeimportavaqueosoutrosvissem.Otipodecoisaqueeununcatinhafeitonafrentedeninguém.
—Lina,estátudobem—diziaRen,meabraçando.—Vaificartudobem.Mas, não, não ia.Nuncamais.Minhamãe estavamorta. E eu sentia tanta
saudadedelaqueàsvezesmeperguntavacomoconseguiarespirar.Howardnãoerameupai.EMatteo...Nãoseiporquantotempochorei,masfinalmentesentiterchegadoaofundodopoço,emeusúltimossoluçosmefizeramestremecer.
Abriosolhos.Nósdois aindaestávamosajoelhadosnochão.AbraceiRen,enfiandoorostonoseupescoço,apeledelequenteepegajosa.Eumeafastei.Suacamisatinhaumaenormemanchamolhada,eeleestavaaflito.
Rennãomereciaterquelidarcomisso.—Desculpa—faleicomavozrouca.—Oqueaconteceu?Enxugueiorosto,depoisopuxeieficamosdepé.—Matteodissequeminhamãeinventoutudoaquilo.Queeraobcecadapor
eleequeescreveuumdiáriofalsopraarruinaravidadelenaescola.—Chebastardo.Neméumahistóriatãoboaassim.—Eleolhouparamim
commaisatenção.—Espera.Vocênãoacreditounele,né?Hesitei por um instante, depois balancei a cabeça com vigor, fazendomeu
cabelogrudarnasbochechas.— Não. No começo fiquei assustada, mas ela não era assim. Nunca teria
magoadoalguémqueamava.Elesoltouumsuspiro.—Vocêmedeuumsusto.—Sónãoconsigoacreditarqueelaamavaalguémcomoele.Eleéhorrível.E
Howardétão...—Erguiorosto.O rosto do Ren estava a quinze centímetros do meu, e de repente nos
encaramosepareidepensaremMatteoeHoward.
Capítulo21
NÃOFOIUMbeijinhoqualquer.Nãofoiaqueleprimeirobeijosemjeitoouumselinhoroubadonocinemapeloseunamoradinhodaescola.Foiumbeijocomdireitoabraçosenroladosnopescoço,dedosentrelaçadosnocabeloemmeioalágrimas salgadas e uma pergunta pairando no ar: por que não fizemos issoantes?Renenvolveuminhacinturaeporcincosegundostudofoiperfeito,masdepois...
Elemeafastou.Ele.Me.Afastou.Desejeiqueumburacoseabrissenochãoemesugasseparadentro,naquele
segundo.Elenãoconseguiaolharparamim.Sério,porqueochãoaindanãotinhameengolido?—Ren...nãoseioqueaconteceu.—Eletinharetribuídoobeijo,nãotinha?
Nãotinha?Eleolhavaparabaixo.—Não,nãoéisso.Tudobem.Sóachoquenãoéomomentocerto,sabe?MOMENTO.Meurostoqueimava.Elenãosótinhameafastadocomoestava
sendolegalcomigo.Lina,dáumjeitonisso.Aspalavrascomeçaramadisparardaminhaboca.
— Você está certo. Totalmente certo. Eu me deixei levar depois do queaconteceulá...Fiqueimuitoemotiva,achoqueacabeiconfundindoascoisase...— Fechei os olhos com força. — Somos só amigos. Eu sei disso. E nunca,jamais,jamaismesmo,penseiemvocêcomoalgoalémdisso.
Será que conta comomentira se você estiver negando algo que só admitiupara simesma há umminuto?Alémdisso, exagerei nos “jamais”,mas queriaqueeleacreditasseemmim.
Ren ergueu o rosto, me encarando com a expressão mais indecifrável doplaneta.Entãosedistraiudenovo.
—Tudobem.Nãoesquentacomisso.
***
Porque,porque,porqueeufizaquilo?Eumeencosteinumadasportasdotáxi,Rensesentounaoutra,olhandopelajanelacomoseestivessetentandodecorarasruasoualgodotipo.Tiveaimpressãodequeeleseriacapazdesejogarpelajanelaaqualquermomentosóparameevitar.
Eunãomereciaumasegundachance?Voltarvinteminutosnotempo,paraomomentoemqueaindanãohaviaperdidoacabeçaebeijadomeumelhoramigoquetinhanamoradaeclaramentenãomequeria?Atéoinstanteemqueeuaindanãohavianotadoquantoamavaseucabelodesgrenhadoeseusensodehumorouofatodeque,emboraoconhecessehaviamenosdeumasemana,eumesentiaàvontadeobastanteparadividiraquelahistóriamalucacomele?
Ai,meuDeus.Euestavatãoapaixonadaquechegavaadoer.Pressionei os dedos no peito.Você conhece Ren há cinco dias. Não pode
estarapaixonadaporele.Muitoracional.Enemumpoucoverdade.Claroqueeuestavaapaixonada.Reneraautênticoeeumesentiaconfortável
para ser eu mesma quando estava com ele. Tudo isso seria perfeito se elesentisse o mesmo, mas não era o caso. Olhei para Ren e uma onda de dorpercorreumeucorpo.Seráqueelenuncamaisiafalarcomigo?
Otaxistanosolhavapeloretrovisor.—Tuttobene?—Si—respondeuRen.Enfim,o carrodeuumaguinadapara a estaçãode tremeRenentregouao
motoristaalgumasnotas,depoispraticamentesejogouparaforadotáxi.Infeliz,fuiatrásdele.
Ainda tínhamos que voltar para Florença. Uma viagem de trem inteira, edepois,opercursodescooter,e...Ah,não.Depoiseuestarianocemitério.ComHoward.Eunãopodiamepermitirpensartãoàfrente,oucomeçariaasurtar.
Rendiminuiuopassoporuminstanteparaqueeupudessealcançá-lo.—Nossotremsaiemquarentaecincominutos.Quarentaecincominutos.Ouseja,umaeternidade.—Quersesentar?Elebalançouacabeça.—Voucompraralgopracomer.—Sozinho.Elenãofalouisso,masnemprecisava.Assenti,apática,depoisfuiatéascadeirasmaispróximasemeafundeinuma
delas.Qualeraomeuproblema?Primeiro,nãodáparachoraremcimadeuma
pessoaeemseguidabeijá-la.Emsegundolugar,nãosebeijaumcaraquetemnamorada.Umanamoradadeslumbrante.Mesmoquedesconfiequeeletambémestejaafimdevocê.
Será que eu entendi tudo tão errado assim? Ele estava sendo atencioso sóporque eu era uma boa amiga? E todas aquelas vezes em que tinha seguradominha mão ou dito que gostava de mim porque eu era diferente? Nãosignificaramnada?
E quanto a Matteo? Meu pai era, sem exagero, a pior pessoa que eu jáconhecera. Eu tinha certeza de que minha mãe me mantivera longe dele depropósito,masporqueelaenviaratodasaspistasparaqueeuoencontrasse?
Eu precisava me distrair. Tirei o diário da bolsa, mas, quando o abri, aspalavrassemoveramligeiraspelapáginafeitoinsetos.Eunãoiaconseguirmeconcentrarenquantoestivessemesentindodaquelejeito.
Dezexcruciantesminutosdepois,Renapareceucomumagrandegarrafadeáguaeumsacoplásticoparamim.
—Sanduíche.Deprosciutto.—Oqueéisso?—Presuntofatiadobemfininho.Vocêvaiadorar.Enquantoele se sentavaaomeu lado, abrio sanduícheedeiumamordida.
Claroqueamei,masnãoeranadacomparadoaoqueeusentiaporRen.E, sim. Eu tinha acabado de comparar o único cara por quem já me
apaixonaraaumsanduíchedepresunto.Rense recostounacadeira,esticandoaspernasparaa frenteecruzandoos
braços.Tenteiencará-lo,maseleestavaconcentradonosprópriospés.Finalmente,suspirei.—Ren,nãoseioquedizer.Desculpaportercolocadovocênessasituação.
Nãofoijusto.—Nãosepreocupacomisso.—Euseiquevocêtemnamoradae...—Lina,sério.Relaxa.Estátudobem.Nãopareciaestarnadabem,eeusentiaumciclonebemnomeiodopeito.
Também me recostei à cadeira e fechei os olhos, mandando mensagenstelepáticasparaele.DesculpaporterarrastadovocêatéRoma.Desculpaportertebeijado.Desculpaporterestragadotudo.
***
Trintaecincominutossemconversar.
Não, trinta e um, considerando aquela conversa horrível, e depois fui aobanheiroe fiqueiunsdoisminutosdiantedoespelhomeodiando.Meusolhosestavam inchados. Eu estava acabada. Perdera Ren e estava prestes a perderHoward também.Não havia escolha. Eu precisava ter certeza de queHowardsabiaquenãoerameupai,pormaisqueeuquisessequeelefosse.
—Otremchegou—avisouRen,selevantando.Elefoiatéaplataformaeeuosegui.Maisumahoraemeia.Euaguentaria,
nãoé?O trem estava cheio, e levamos um bom tempo para encontrar lugar.
Finalmente achamos dois assentos vagos diante de uma senhora gordinha quecolocaraummontedesacolasplásticasnoespaçoquenosseparava.Umhomemocupouolugaraoladodela,eRenassentiuparaeles,ocupandooassentojuntoàjanelaefechandoosolhosdenovo.
Tirei o diário da bolsa e o limpei na calça jeans, tentando me livrar dequalquergermedoMatteoqueaindaestivesseali.Estavanahorademergulharoutraveznahistória.EuprecisavaparardepensaremRen.
3DEJUNHOEstanoite,Howardmefalou,comseujeitodelicado,quesempresoubedeX. Aquilo fez eu me sentir ridícula. Eu achava que éramos muitosorrateiros,masnofinaldascontastodomundosabia.Eumevicontandoaele sobreo relacionamento, até aspartes ruins.Enãoerampoucas.Oproblemaeraque,quandoascoisasiambemcomX,iamTÃObemqueeumeesqueciadetodooresto.Foiumgrandealíviofalardisso,edepoiseueHowardfomosparaavarandaeconversamossobreoutrascoisasatéasestrelasaparecerem.Eunãomesentiatãotranquilaassimhaviamuitotempo.
5DEJUNHOHoje faço vinte e dois anos. Acordei sem nenhuma expectativa, masHowardestavameesperandocomumpresente:umaneldeourofininhoqueelecomprounumalojadeantiguidadesemFlorençaháquaseumano.Eledissequenãosabiaporquefizeraisso;simplesmentetinhaadoradooanel.
Oqueeumaisamonoaneléqueeletemumahistória.Ohomemqueo
vendeu contou que pertencera a uma tia dele que se apaixonara poralguém,mas fora forçadapela famíliaa irparaumconvento.Ohomemqueelaamava lhederaoaneleelaousouemsegredopor todaavida.Howarddissequeovendedorinventouumahistóriaparaacrescentarmaisvaloràpeça,masélindoe,porincrívelquepareça,cabeperfeitamentenomeudedo.Euestavaexausta,entãoemvezdesairparajantarhoje,comotínhamos planejado, ficamos em casa para ver filmes antigos. Malconseguiterminaroprimeiro.
6DEJUNHOHojeànoite,eueHowardestávamossentadosnobalançodavaranda,eeuestavacomospésnocolodele.Entãoeleme fezumapergunta:“Sevocê pudesse fotografar qualquer coisa no mundo, o que escolheria?”Antesqueeusequerconseguissepensarnoassunto,disparei“esperança”.Eu sei, é brega, não é?Mas estou falando da esperança no sentido detranquilidade, daqueles momentos em que você simplesmente sabe quevaidartudocerto.Éadescriçãoperfeitadestetempoqueestoupassandoaqui.Parecequeaperteiobotão“soneca”eestoufazendoumapausaantesdeterqueencararsejaláoquevenhaaseguir.Seiquemeuperíodoaquiestáchegandoaofimlentamente,masnãoqueroqueacabe.
7DEJUNHOQueroregistrarcadaminutodoqueaconteceuhoje.Howard me acordou antes das cinco da manhã dizendo que queria memostrarumacoisa.Meiodormindoedepijama,caminhamospelapartedetrás do cemitério. Ainda estava cinza lá fora e pareceu que tínhamosandado por horas. Então vi aonde estávamos indo. À frente, ao longe,haviaumapequenatorreredonda.Pareciaantigaeficavacompletamenteisolada,comoalgoesperandoparaserdescoberto.
Quandochegamoslá,Howardmelevouatéaentrada.Haviaumapequenaportademadeiraquedevia tersidopostaalipara impedir invasões,mastinhasequebradocomotempoeasintempéries.Eleatiroudocaminho,enósdoisnosabaixamosparapassaresubimospelaescadaemespiralatéotopodatorre.Subimostantoquefoipossívelvertudoanossavolta—acopadasárvoresdocemitérioeaestradaquelevaaFlorença.Pergunteioque estávamos fazendo ali, e ele me disse para esperar. E foi o quefizemos.Ficamosaliemsilêncioenquantoosolnascianostonsderosae
douradomais maravilhosos. Todos os campos foram inundados de cor.Senti umador repentina.Eu estivera cercada pelo frio e pela escuridão,masderepente,bemdevagar,nãoestavamais.
Depois que já tinha amanhecido completamente, eu me virei. Howardestavameobservando,efoicomosederepenteeuovissepelaprimeiravez. Eume aproximei dele e nos beijamos como se já tivéssemos feitoisso ummilhãode vezes.Como se fosse a coisamais óbvia domundo.Quando nos afastamos, não dissemos nada. Eu só peguei amão dele evoltamosparacasa.
8DEJUNHOContinuopensandoemcomoeraestarcomX.Quandoeutinhaaatençãodele era como se um refletor brilhasse sobre mim e tudo no mundoestivessecerto.Noinstanteemqueeledesviavaoolhar,noentanto,eumesentia sozinha e com frio. Tentei encontrar o equivalente para“inconstante” em italiano, e o mais perto que cheguei foi “volubile”.Significa “desviar, rodopiar, retorcer”. Eu me sentia atraída por aquelasensação de redemoinho que X provocava em mim, mas aquilo medeixavasemchão.Euachavaquequeriafantasiaepaixão,masnofimdascontasoquerealmentequeroéalguémquemeacordecedoparaeunãoperder o nascer do sol. O que realmente quero é Howard. E agora eutenho.
10DEJUNHOFrancesca veio nos fazer uma visita ontem. Talvez eu não esteja maisacostumada com ela, mas nas últimas três semanas ela conseguiu setransformar numa versão exagerada de si mesma. Seus saltos agulhaestavam um poucomais altos, suas roupas, ainda mais elegantes, e elafumavaumaquantidaderecordedecigarros.
Depois do jantar, ficamos conversando. Achei que eu e Howardestávamos escondendomuito bemessa coisa nova entre nós,mas assimque ele foi dormir, Francesca disse: “Então rolou.” Tentei me fazer dedesentendida, mas ela disse: “Por favor, Hadley. Não me trate comocriança. Não sei por que você acha que precisa manter todos os seusrelacionamentosemsegredo.Nosegundoemqueentreiaquipercebique
tinha acontecido alguma coisa entre vocês.Agorame conte os detalhes.Subito!”
Contei sobre as últimas semanas, sobre como tinham sido tranquilas eregeneradoras.Edepoisfaleisobreamanhãnatorreedecomotudoforaperfeito nos últimos dias. Quando terminei, ela soltou um suspirodramático. “É como uma favola, Hadley. Um conto de fadas. Você seapaixonoudeverdade.Maseagora?Oquevaifazer?NãovaivoltarparaosEstadosUnidos?”Claroqueeunãotinharespostas.Haviadeixadomeuportfólio em várias faculdades e deveria receber um retorno damaioriadelasnofimdoverão.Ontem,porimpulso,pergunteiaPetrucioneseeleconsideraria me contratar como professora-assistente, mas ele mesilenciou comumolhar e disse que eu era talentosa demais para perdermaistempo.
Foi quandoFrancescame contou.Aprincípio, ela só disse: “Ele entrouemcontatocomigo.”Eupergunteiquem,maspelojeitoquemeucoraçãobatia, sabia de quem ela estava falando. “Eleme encontrou trabalhandonumsetemRoma.Deuparabénspelomeuestágiocomopretexto,maseusabia o verdadeiromotivo.Ele queria encontrar você.”Por um instante,não consegui pensar em nada para dizer. (Ele estava tentando meencontrar?) “Ele disse que vocêmudou de número e que seu e-mail doinstituto está inativo, agora que você saiu de lá.” Eu não imaginei queestivesse inacessível. Mais ou menos um milhão de pensamentosrodopiavam pela minha cabeça e Francesca me observava atentamente.“Eunãodeiseucontato,maspegueiodele.Hadley,euachoqueseriaumerro,masnãoquerobrincardeDeus.Sevocêquiser,eutenhoonúmeronovodele...Eledissequemudoudeideia.Quequerlhedizerumacoisa.”Entãoelameentregouumcartãodevisitas.Onomedeleestavagravadoemletrasgrandeseseunovotelefoneee-mailestavamescritoscomoumatrilhademigalhas.
Naquelanoite,eumalconseguidormir,enãoporestaremconflito,masportermuitacerteza.Xpodiaaparecernumcavalobrancocomumadúziade rosaseumadesculpaperfeita, emesmoassimeunãooaceitaria.EuqueroHoward.
—Comoestáodiário?Erguiorosto.AexpressãodoRenestavamaisrelaxadadoquenaestação,e
domeucoraçãobrotarampequenasasas.Estouperdoada?Tenteiencará-lo,maseledesviouoolhardenovo.
—Estábom,eeuestavacompletamenteerradasobreumacoisa.—Oquê?—Howardnãofoisóumconsolo.Elaseapaixonouporele.—Vireiodiário
paramostrarapáginaaele.—Oqueissosignifica?Depois do trecho contando sobre a visita de Francesca, havia uma página
inteirarabiscadacomaspalavras“sonoincinta”.—Sonoincinta.Significa:“Estougrávida.”—Foioqueimaginei.Olheiapáginacomtristeza.Seiquepensarissoseriaaniquilaramimmesma,
mas quase desejei que ela não estivesse grávida. Seu conto de fadas tinhaacabadodedesmoronar.
Capítulo22
11DEJUNHOSonoincinta.Sonoincinta.Sonoincinta.Seráqueeumesentiriadiferenteseaspalavrasestivessemnaminha língua?ESTOUGRÁVIDA.Pronto.Malconsigopensar.Hojevomiteiocafédamanhã,comoaconteceuemtodos os outros dias da última semana, e enquanto dava descarga, umpensamento horrível me ocorreu. Tentei tirá-lo da cabeça, mas... euprecisavasaber.Minhamenstruaçãosemprefoimeioirregular,masestavamais irregular do que o normal? Fui até a farmácia, mas esqueci meudicionário inglês-italiano e tive que fazer uma pantomima horrível paraexplicar o que queria, e então corri para casa para fazer o teste e... deupositivo.Volteiparacomprarmaisdoistestes.Positivo.Epositivo.
Todosderampositivo.
13DEJUNHOMal saídoquartonosúltimosdoisdias.Francesca foi emboraontem, eagora toda vez que Howard bate à porta finjo estar dormindo. Sei quepreciso sair daqui.Howardme ama.E euo amo.Mas issonão importamais, porque estougrávidadeoutrapessoa.Seiquepreciso contar aX,mas tenho vontade demorrer quando penso nisso.O que ele vai dizer?SegundoFrancesca, ele está procurando pormim,mas tenho certeza dequenãoestáprocurandoporisso.Eomomentonãopoderiaserpior.Éumsinal de queMatteo e eu temos que ficar juntos?Mas e quanto a estetempocomHoward?Hátrêsdiasescreviqueeleeraohomemcertoparamim.Eagoraisso.
QueromuitocontaraHoward,masoquedizer?Ligueiparaminhamãeedesligueiduasvezes.EucomeçoadiscarotelefonedeMatteo,masparologonosprimeirosnúmeros.Estoumedandoumprazoatéamanhãànoiteparadecidiroquefazer.Nãoconsigonempensar.
14DEJUNHO
Liguei paraMatteo. Ele está trabalhando emVeneza e vou encontrá-lo.Nãopossocontarportelefone.
15DEJUNHOEstou no trem. Howard fez questão de me dar uma carona até aqui, eembora eu não tenha contado por que estou indo, acho que ele sabe.Lágrimasdesciamsempararpelomeurostoeaúltimacoisaqueeledissefoi:“Estátudobem.Porfavor,sejafeliz.”
Assimqueotremsaiu,comeceiachorartantoquetodomundoemvoltaolhou.EujárepasseiissováriasvezesnaminhacabeçaetudoapontaparaMatteo. Eu vou ter um filho dele. Preciso tirar Howard da cabeça. EuescolhiMatteo.OdestinoescolheuMatteo.NossobebêescolheuMatteo.Temqueserele.
15DEJUNHO–MAISTARDETalvez Veneza seja o pior lugar do mundo para uma mulher grávida.Claroqueé linda.Centoedezessete ilhas interligadasporbarcose táxisaquáticos e aqueles gondoleiros de camiseta listrada conduzindo turistaspor preços absurdos.ACidade Flutuante.O cheiro é horrível, e a águabatendo em tudo me dá a impressão de que posso cair a qualquermomento. Assim que o trem chegou, sequei as lágrimas e me forcei acomer um pedaço de foccacia. Faltava uma hora para eu eMatteo nosencontrarmos.Umahoraatéelesaber.EuliqueVenezaestáafundando,unsquatrocentímetrosacadaséculo.Eseeuafundarjuntocomela?
16DEJUNHOMarcamosumencontronaPiazzaSanMarco.Assimquemelocalizei,saídaestaçãodetremefuidiretoparalá.Estavacedo,entãofiqueiandandoeobservandoaBasílicadeSãoMarcos.AconstruçãoémuitodiferentedoDuomo de Florença. Tem estilo bizantino, com muitos arcos e ummosaico chamativona fachada.Parte dapiazza estava inundada e haviaturistasdobrandoacalçaecaminhandopelaágua.
Às cinco horas da tarde, percebi que não tínhamos combinado o pontoexatoondenosencontraríamos,entãoandeiatéocentrodapiazza.Haviapombos por todos os lados e eu não parava de ver crianças. Um
menininhocomcabeloeolhosescurospassoucorrendopormim,gritandoalguma coisa, e meu primeiro pensamento foi: que inteligente, ele falamuito bem italiano. Será que meu filho vai falar uma língua que malentendo?
Então vi Matteo. (Por que continuar a chamá-lo de X?) Ele vinha naminhadireção.Vestiaumternoeseguravaopaletónumadasmãoseumbuquê de rosas amarelas na outra. Eu só o observei por um instante,sentindotudooqueaquelemomentosignificava.Então,antesquepudessedizeralgumacoisa,elemeabraçoueafundouorostonomeucabelo.Elesódizia, semparar “que saudade, que saudade” e, ao sentir seus braçosquentesesólidos,fecheiosolhosesolteioarpelaprimeiravezdesdequedescobriqueestavagrávida.Elenãoéperfeito,masémeu.
17DEJUNHOAindanãoconteiaele.Estouesperandotudovoltarasernaturalentrenós.Ele tem sidomuito gentil comigo, e passamos a maior parte do tempoandandopelasruasdeVeneza.Elealugouumpequenoapartamentocomvista para um canal, emais oumenos a cadameia hora um gondoleiropassa láembaixo,emgeralcantandoparaospassageiros.MatteocontouqueviuquetinhacometidoumerronosegundoemquemeutremsaiudaestaçãoemRoma.Dissequemeviaemtodolugar,equecertavezseguiuumamulher parecida comigo pormeio quarteirão até perceber que nãopodiasereu.Dissequenãoconseguiaseconcentrarecomeçouapassarhoras estudando as fotos que tinha tirado quando estava comigo. Falouqueeuinspiraraalgunsdeseusmelhorestrabalhos.
Elemeconvidouparaficarnoapartamentocomele,masfizumareservanumhotelbarato.Éadministradoporumasenhora,esótemtrêsquartos,que compartilham o mesmo banheiro. Há paninhos de renda cobrindotudoemesintonacasadeumaparenteidosa.Fazmaisdetrêsdiasquenãotironenhumafoto,oquedeveserumrecordeparamim.Minhamenteestácheiademais.Amanhãvoucontarsobreobebê.Amanhã.
18DEJUNHOPrecisoescrever isto.Éhorrívelebrutal,mas foioqueaconteceuenãopossoomitir.
Levei Matteo para jantar num restaurantezinho lindo perto do hotel.Ambiente à luz de velas e silencioso. Absolutamente tudo naquelemomentoestavaperfeito, sóque,quandochegouahoradecontaraele,nãoconseguifazercomqueaspalavrassaíssem.Quandochegouaconta,pergunteiseelequeriairparaohotelcomigo.
Meuquartoestavabagunçado,comroupaseequipamentosde fotografiapor todosos lados,maspelomenosera tranquilo e reservado, equandoentramos,eudisseaeleparasesentar.Elesesentounacamaemepuxouparaqueeumesentasseaseulado.Dissequeestavapensandonumacoisahavia muito tempo e achava que estava na hora de darmos o próximopasso.
Meucoraçãoacelerou.Ele iamepedir emcasamento?Entãoolheiparaminhamãoeentrei empânico.EuaindaestavacomoaneldeHoward.Seráqueteriaquetirar?Épossíveldizersimparaalguémmesmousandoo anel que ganhou de outra pessoa? Porém, em vez dememostrar umdiamante, Matteo me explicou o que era basicamente um plano denegócios.Dissequeestavacansadodenãoganharquasenadatrabalhandopara escolas e que queria começar algo só seu, fazendo retiros parafotógrafosdelínguainglesaquequisessempassarumtemponaItália.Elejá temdois toursmarcadoseachaqueeu seriaocomplementoperfeito.Eupoderiaajudaraorganizarasviagenseacomodações,equandotivesseum pouco mais de experiência, também ensinar fotografia. Então meabraçouedisseque tinhasido idiotademeperderdevista.Erahoradefazermosascoisasjuntos.
Atéaquelemomento,eunãodeixaraqueelemebeijasse,eassimquesuaboca encostou na minha, só consegui pensar em Howard. Foi quandopercebi que nunca daria certo com Matteo. Grávida ou não, eu amoHoward.Éimpossívelterumrelacionamentoamandooutrapessoa.Entãomeafasteideleefaleiasduaspalavrasquetinhaidodizer.
Aspalavraspenderampesadasnoar.Eaíeleselevantoucomoseacamativessequeimadosuapele.“Comoassimgrávida?Comoissoaconteceu?Nósterminamoshádoismeses.”Expliqueiquedeviateracontecidopoucoantesdeeleiremboraequeeusódescobriranocomeçodasemana.
Foiquandoelesurtou.Começouagritar,mechamardementirosaedizerqueera impossívelaquelebebêserdele.Dissequeeutinhaengravidadodeoutro,provavelmentedeHoward,equeagoraestavatentandopassararesponsabilidadeparaele.Começouapegartodasasminhascoisasejogarpeloquarto,minhacâmera,fotos,roupas,tudo.Tenteiacalmá-lo,maselejogou uma garrafa de vidro na parede e, quando se virou e olhou paramim,sentimuitomedo.
Entãomenti.Dissequeeleestavacerto,queobebênãoeradele,queeradeHoward,equeeununcamaisqueriavê-lo.Faleioqueacheiqueelequisesse ouvir, mas aquilo o deixou ainda mais furioso. Ele disse queacabaria com nós dois e que Howard iria se arrepender de ter seaproximado demim. Finalmente, eleme empurrou para passar, abriu aportacomumchuteefoiembora.
Oanel.Anegação.Amentira.Eufinalmenteestavatendoumavisãoclaradavidadaminhamãe,comose
atéaquelemomentotivesseolhadoporumajanelaembaçadaenãopercebesse.Eunãotinhanoçãodequeelapassaraportantosofrimento.Paraserfranca,elaeramuitoalegre.Tipoavezemquenossovizinhodecimadeixouabanheiraaberta e, quando nosso apartamento inundou, estragando várias coisas, minhamãeselimitouapegarumesfregãoecomeçouafalardecomoeramaravilhosoestarmosnoslivrandodealgumascoisasparacomeçardenovo.
Será que aquela postura otimista e grata com a qual eu crescera tinha sidoapenasumacampanhaderelaçõespúblicasbemelaborada?Seráqueminhamãetinhamedodequeeudescobrissequeagravidezaforçaraadesistir?
Fecheiodiário.Tinhaquasecertezadeque,secontinuasselendo,teriaoutrocolapso,edessavezachavaquenemRenconseguiriameacalmar.E,alémdomais, era inútil continuar.Não importavaoqueminhamãe tinha feitodepois:voltadoaFlorençadebalão,escritoHADLEYAMAHOWARDemletrasenormesnaPiazzadelDuomo,mandadoumpunhadodecartasdoamorpor todosaquelespombosdeVeneza—nadadissodariacerto.Pontofinal.Elapassariaorestantedavida aquasedezmil quilômetrosdedistância apenas comum fino anel deouroparaselembrardoquetinhaperdido.
Ah, com o anel e comigo. Também conhecida como o suvenir maisinconvenientedomundo.
Eumerecosteie fecheiosolhos,sentindoos levesmovimentosqueo tremfazia de um lado para outro ao seguir pelos trilhos. Eu estava a uns cento ecinquentaquilômetrosdeumhomemcujavidaseriaviradadecabeçaparabaixoeaquinzecentímetrosdeoutroquenãoquerianadacomigo.
Eurealmentequeriaestaremqualqueroutrolugar.
***
EramquatrodatardequandonossotremchegouaFlorença.Rentinhacochiladodenovoeseucelularnãoparavadevibrarnobancoaoseulado,comosefosseuminsetogigantesco.Atéqueeume inclineiedeiumaolhada.MensagemdaMimi.Ai. Seráque ele ia contar que euobeijara?Se contasse, eramelhor eucapricharnosgolpesdeluta.Iaprecisar.
Renabriuosolhos.—Chegamos?—Chegamos.Seucelularestavatocando.—Obrigado.Ele leu as mensagens com o cabelo caindo nos olhos. Enquanto todos os
outros recolhiam suas coisas, agarrei o diário. Aquele tinha sido um dos diasmais longosdaminhavida,eeumesentianumgrandecasulode tristeza.NãoacreditavaqueaindatinhaquevoltarparaocemitérioecontaraHowardoquesabia.
***
Aviagemdevoltaaocemitériofoisilenciosa.Brutalmentesilenciosa.Todosqueultrapassávamos pareciam estar no meio de uma conversa animada, o quetornava ainda mais doloroso o vazio entre nós dois. Eu estava arrasada, mastambém furiosa. Sim, eu tinha feito besteira, mas isso significava que nãopodíamosmais ser amigos?E por que eu tinha que conhecerMatteo e perderRennomesmodia?Amaioriadaspessoastinhaoluxodepassarpelosdramasdavidaaolongodosanos,entãoporquecomigoestavasendotudodeumavez?
Quando finalmente paramos no cemitério, um grande grupo saía de umônibus no estacionamento, e todos nos encararam como se fôssemos parte daatração.Howardsaiudocentrodevisitanteseacenouparanós.
Aovê-lo,mesenticongelarpordentroedepoisquebrarempedacinhos,masconseguiacenartambém.Eatésorrir.Oqueeleiadizer?
—Pracasa?—perguntouRen.—Sim.Segundosdepoisparamosnaentradadacasaeeledesligouascooter.Descidagarupaelheentregueimeucapacete.—Obrigadaporme ajudar,Ren.Não foi ótimo,maspelomenos agora eu
tenhoalgumasrespostas.—Foiumprazer.—Emsilêncio,trocamosumbreveolharelogodepoisele
baixouosolhos,religandoascooter.—EsperoquedêtudocertocomHoward.Vaificartudobem.Elegostamuitodevocê.
Seutomdevozeradedespedida,esentiumnónagarganta.—Quercorreramanhã?Elenãorespondeu,efezumcírculocomascooter,ficandodefrenteparaa
entradaeassentindodeleveparamim.—Ciao,Lina.Efoiembora.
Capítulo23
—ENTÃO,EXPLICADEnovo.Howardnãoéseupai,masachaqueé?—Sim,oupelomenoseuachoqueeleachaqueémeupai.—Vocêachaqueeleachaqueéseupai?— Sim. Isso, ou ele está mentindo. Mas eu apostaria na primeira opção,
porque em geral as pessoas não ficam animadas pra acolher adolescentes quemalconhecem,mesmoquetenhamamadomuitoamãedeles.
—MasHowardnãoéseupai?EntãoéessetaldeMatteo?— Sim.—Eume joguei na cama. Já estávamos tendo amesma conversa
haviavinteminutos.—Addie,nãoseimaiscomoexplicarissoavocê.—Medáumsegundo.Essahistórianãoéahistóriamaissimplesdomundo.—Eusei.Desculpa.—Cobriosolhos.—Eaindanãoconteiapiorparte.—Piordoqueconhecerseupaibabaca?—É.—Respireifundo.—EubeijeiRen.—VocêbeijouRen?Seuamigo?—É.—Ok...Bem,oquetemderuimnisso?—Elenãoretribuiuobeijo.—Nãoacredito.Porquê?— Ele é comprometido, a gente tinha acabado de conhecer Matteo e eu
estava no meio de um colapso nervoso, então foi tipo o momento maisinconvenientepraperceberoquerealmentesintoporele.Eumeioquepuleiemcimadogarotoeele...—Estremeci.—...meafastou.
—Eleafastouvocê?—É. E ainda estávamos em Roma, então tivemos que voltar de trem pra
Florençaeelenãoabriuabocadurantetodootrajeto.Então,resumindo,estoucompletamentesozinhanaItália,precisocontarproHowardqueelenãoémeupaieagoranãotenhonemumamigo.
—Ai,Lina.Epensarquehádezminutoseutinhainvejadevocê.—Addiesuspirou.—EquantoaotalFulano?Omodelodecuecas?
— Thomas?—Droga. A mensagem dele. — Ele enviou uma mensagemmais cedo me chamando pra sair. Parece que vai ter uma superfesta de umagarotaqueseformounaescola.
—Vocêvai?
—Provavelmente,não.Querdizer,nãoseioquevaiacontecerdepoisqueeucontarpraHoward.Elepodemuitobemmemandarembora.
—Elenãovaimandarvocêembora.Issoéridículo.—Eu sei.— Suspirei.—Mas duvido que vá ficar contente.Digo, isso é
muitoestranho.Prasersincera,euqueriaqueelefossemeupai.Palavrasquenuncaimagineiquediria.Addieficouquietaporuminstante.—Quandovocêvaicontar?—Nãosei.Eleaindaestátrabalhando,masqueriraocinemahojeànoite.Se
eucriarcoragem,voucontarassimqueelechegaremcasa.Elasuspirou.—Ok,oplanoéoseguinte.Voulápracimaagoraperguntaraosmeuspais
se você pode voltar amorar aqui. Não, vou dizer que você precisa virmoraraqui.Enãosepreocupa.Elesvãoaceitar.
***
Passeiahoraseguinteandandodeumladoparaoutronoquarto.Pegueiodiárioalgumasvezesparaexaminaraspáginasqueaindanãotinhalido,mastodavezquetentavaabri-loacabavalargando-ocomosefosseumabatataquente.Tudoterminaria quando eu lesse o último texto queminhamãe escreveu.Eu nuncamaisouvirianadanovodela.Esaberiaexatamenteoquantotinhasofrido.
TodahoraeuiaatéajanelaparaverseHowardestavachegando,maseleeogrupo de turistas atravessavam o terreno como lesmas. Será que precisavamparar em todas as estátuas? E por que aquele canto do cemitério era maisinteressante do que esse? Quando terminassem de aprender sobre a SegundaGuerraMundial,aTerceirajáteriaacabado.Finalmente,quandoacheiquenãoaguentariaesperarporHowardnemmaisumsegundo,eleconduziuogrupodevolta ao estacionamento do centro de visitantes e esperou que todosembarcassemnoônibus.
—Estápronta?—sussurreiparamimmesma.Claroquenãoestava.Howard entrou no centro de visitantes, e depois ele e Sonia saíram e
começaramaandaremdireçãoàcasa.Ah, não. Eu não podia conversar com ele na frente da Sonia. Teria que
guardaraquelainformaçãoanoitetoda?Quandoeleschegaramàentrada,descidoisdegrausdecadavezeosencontreinavaranda.
—Aíestávocê—disseHoward.—Comofoiseudia?
Horrível.—Foi...ok.Ele usava uma camisa social azul-clara com as mangas arregaçadas e seu
nariz estava queimado de sol. Algo que nunca tinha me acontecido. Porque,afinaldecontas,eueraitaliana.
— Tentei ligar para seu celular mais cedo, mas você não atendeu. Sequisermoschegaratempoparaofilme,precisamosiragora.
—Agora?—Sim.Renvai?—Não.Ele...nãopodeir.—Comoeuiasairdaquela?Soniasorriu.— Vão exibir um filme muito antigo hoje, um clássico com a Audrey
Hepburn.JáouviufalardeAprincesaeoplebeu?ElesepassaemRoma.— Não, nunca.— E será que daria para todo mundo parar de falar de
Roma?
***
Emcircunstânciasnormais,achoqueeuteriagostadodeAprincesaeoplebeu.É um filme em preto e branco sobre uma princesa europeia que viaja pelomundo.Sóquesuaagendaesuaequipeeramrígidasdemais,entãocertanoite,em Roma, ela sai escondida pela janela do quarto para se divertir. O únicoproblemaéque,portertomadoumsedativomaiscedonaquelanoite,aprincesaacabaapagandonobancodeumparqueeumrepórteramericanoaresgata.Elesexploramacidadeeseapaixonam,masnãoacabamjuntos,porqueavidadelaécercadademuitasexigências.
Eusei.Deprimente.NãopresteimuitaatençãoporquenãoconseguiaparardeolharparaHoward.
Suarisadaeraaltaetodahoraeleseaproximavaparadizerosnomesdoslugaresque Audrey e seu paquera estavam visitando. Até me comprou um sacogigantescodedoces,e,emboraeutenhacomidotudo,malsentiogosto.Achoqueforamasduashorasmaislongasdaminhavida.
Navolta,Soniainsistiuparaqueeumesentassenafrente.—Então,oqueachoudofilme?—Bonito,mastriste.HowardolhouparaSonia.—VocêaindavaiseencontrarcomAlbertohoje?—Ai,vou.
—Porqueai?—Você sabe por quê. Faz anos que jurei nuncamais ir a um encontro às
cegas.—Nãopensenissocomoumencontroàscegas.Pensequevaisairparabeber
comalguémqueeuadmiromuito.—Senãofosseseuamigo,eu teria recusado.—Elasoltouumsuspiro.—
Mas, enfim, qual é a pior coisa que pode acontecer?Eu sempre disse que umencontrohorrívelemFlorençaémelhordoqueumencontrobomemqualqueroutrolugar.
Derepente,percebiquenãosabiaabsolutamentenadasobreela.—Sonia,comovocêveiopararemFlorença?—Vimpassarfériasdeverãodepoisdafaculdadeemeapaixoneiporuma
pessoa.Nãodurou,maseuacabeimeestabelecendoaqui.Solteiumgemidointerno.Talvezessafosseapenaspartedaexperiênciadeir
à Itália. Venha para a Itália. Apaixone-se. Veja tudo desmoronar. Os sites deviagemdeveriamdivulgaressasinformações.
Soniameencaroupeloespelho.—Sabe,aspessoasvêmparaaItáliaporváriosmotivos,mas,quandoficam
aqui,ésópordois.—Quais?—Amoregelato.—Amém—disseHoward.Olhei pela janela e concentrei toda a minha atenção em impedir que as
lágrimasescorressemdosmeusolhos.Sógelatonãobastaria.Eutambémqueriaoamor.
Quandochegamosaocemitério,HowarddeixouSoniaemcasa,depoisdeuavoltaacaminhodanossa.Osfaróislançavamumbrilhosinistrosobreaslápides,e a combinação de açúcar ingerido e nervosismo estava me deixando muitoenjoada.
Enfim estávamos a sós. Era a hora de contar para ele. Respirei fundo.Começariaafalaremtrês...dois...dois...dois...
Howardquebrouosilêncio.—Euqueriadizeroutravezquantoéimportanteparamimtervocêaqui.Sei
quenãotemsidofácil,masagradeçomuitoporvocêestartentando,mesmoquesejasópeloverão.Euachovocêincrível.Deverdade.Estouorgulhosodevocêpor embarcar nessa aventura e explorar Florença. Você é uma aventureira,igualzinhaàsuamãe.
Entãoelesorriuparamim,comoseeufosseafilhaqueelesempreesperarater,eoquerestavadaminhacoragemderreteucomoumcubodegelonocalor.
Eunãopodiacontaraele.Nãonaquelanoite.Talveznunca.Quandoentramos,deiumadesculpaesfarrapada,dizendoqueestavacomdor
decabeçadenovo,fuiparaomeuquartoemejogueinacama.Nosúltimosdiaseuandavamejogandomuitonacama.Masoquefazer?EunãopodiacontaraHoward,mastambémnãopodianãocontar.
Seriaassimtãoruimseeusóficasseatéofimdoverãoedepoisvoltasseparacasa sem contar?Mas e quando o Dia dos Pais chegasse e ele esperasse umcartão meu? Ou quando eu fosse me casar e ele achasse que deveria entrarcomigonaigreja?Eaí?
Meucelular começou a tocar, saltei da camae atravessei o quarto emdoispulos.Porfavor,quesejaRen.Porfavor,quesejaRen,porfavorqueseja...
Thomas.—Alô?—Oi,Lina.Soueu,Thomas.—Oi.Eume vi de relance no espelho. Parecia um baiacu depois de um colapso
nervoso.—Recebeuminhamensagem?—Sim.Desculpanãoterrespondido.Hojefoiuma...loucura.—Nãotemproblema.Oqueachadafesta?Querircomigo?Avozdelesoavatãodescomplicadaebritânica.Eeleestavafalandodeuma
festa.Quemseimportacomfestasnummomentocomoesse?Passeiamãopelocabelo.
—Oqueéexatamente?—Aniversáriodedezoitoanosdeumadasgarotasqueacaboudeseformar.
Ela mora numa casa muito legal, quase tão grande quanto a da Elena. Todomundovaiestarlá.“Todomundo”tipoReneMimi?Fecheiosolhos.—Obrigadapeloconvite,masachoquenãovoupoder.—Ah, como assim?Vocêprecisa comemorar comigo. Passei na prova de
direçãoontem,emeupaifalouqueeupodiapegaraBMWdele.Olha,seriaumapenasevocêperdesseessafesta.Ospaisdelacontrataramumabandaindiequeeujáouçohámaisdeumano.
Apoiei o celular entre o ouvido e oombro e esfreguei os olhos.Depois detudo o que acontecera naquele dia, uma festa parecia ridiculamente normal.Alémdisso,eraestranhosaircomalguémestandoapaixonadaporoutrapessoa.Mas o que fazer quando a pessoa em questão não quer nada com você? PelomenosThomasaindafalavacomigo.
—Voupensar.Thomassuspirou.—Tudo bem. Pode pensar. Eu passaria aí às nove. E é uma ocasiãomais
formal,entãovocêprecisasearrumar.Prometoquevocêvaisedivertir.—Formal.Entendi.Ligopravocêamanhã.Desligamosejogueiocelularnacama,depoisfuiatéajanelaeolheilápara
fora.Eraumanoiteclaraealuapiscavaparamimcomoumolhogigante.Comosetivessevistoodesenrolardetodaaquelahistóriacomplicadaeagoraestivesserindoporúltimo.
Lua idiota. Coloquei as duas mãos na janela e tentei fechar, quase mependurando,maselanemsemoveu.
Tudobem.
Capítulo24
NA MANHÃ SEGUINTE, acordei um pouco antes do amanhecer. Eu tinhaapagadona cama semnem trocarde roupa, e haviaumpratode espaguetenacômoda,comomolhodetomateaglomeradoempartículasoleosas.PareciaqueHowardtinhalevadoojantarparamim.
Umaluzcinzentaenebulosaatravessavaajanela,eumelevanteiefuiatéamalasemfazerbarulho,procurandoporroupasdecorridalimpas.Depoispegueiodiárioeandeiemsilênciopelacasa,saindopelosfundos.
Fuiatéoportão.Àquelahoranemospassarinhostinhamdespertadoainda,eoorvalhocobriatudocomoumagrandeeleveteiadearanha.Minhamãeestavacerta. O cemitério ficava diferente dependendo da hora do dia. Antes doamanhecereleeradesbotado,comoseocinza tivessesemisturadoaorestantedascores.
Saídoquintalecomeceiacorrer,passandopelolugaremqueconheceraRen.Esquece.O.Ren. Erameu novomantra.Talvez o imprimisse numadesivo depara-choque.
Tirei aquilo da cabeça e respirei fundo, dando passadas moderadas. O arestavafrioetinhaumcheiropuro,comoodesabãoempócomfragrânciade“ardemontanha”, e correr trazia umgrande alívio. Pelomenos não era sóminhamentequeestavaacelerada.
Umquilômetro.Depoisdois.Euseguiaumatrilhaestreitafeitanagramaporalguémquetornaraaquelarotaumhábito,masnãofaziaideiaseodestinoeraomesmoqueomeu.Atéondeeusabia,estavaindonadireçãoerrada.Talvezelanãoexistissemaiseentão...BAM.Atorre.Elasurgiusobreacolinacomoumcogumeloselvagem.Pareidecorrerefiqueiolhandoparaaconstruçãoporumminuto.Eracomoencontraralgomágico,comoumpotedeouroouumacasadebiscoitonomeiodaToscana.Nempensaremcasasdebiscoito.Comecei a correr de novo, sentindo meu coração acelerar ainda mais
conformemeaproximavadasilhuetaescura.Eraumcilindroperfeito,cinzentoeantigo, commenos de dezmetros. Parecia o tipo de lugar onde as pessoas seapaixonavamhaviaanos.
Corridiretoatéabase,depoiscoloqueiamãonaparede,deslizando-apelapedraenquanto rodeavaa torreatéaentrada.AportademadeiraqueHoward
tiraradocaminhoparaminhamãenãoexistiamais,deixandoumvãoarqueadoaberto, tão baixo que precisei me curvar para passar. O interior estava vazio,com exceção de algumas teias de aranha frouxas e uma pilha de folhas quedeviamterduradomaisqueaárvoredaqualvieram.Umaescadaemespiralemmauestadosubiapelocentrodatorre,deixandoumfracocírculodeluzentrarnoambiente.
Respirei fundo e fui até ela, esperando que todas as minhas respostasestivessemláemcima.
Tivequesubircomcuidado;metadedosdegrauspareciaestarsóesperandoumadesculpaparadesmoronar,etambémprecisardarumpuloacrobáticosobreoespaçoondeumdiaforaoúltimodegrau,atéquefinalmentecheguei.Otopoda torre era uma plataforma aberta, com a circunferência protegida por umamuretadeummetro.Fuiatéabeira.Aindaestavabastanteescuroecinzentoali,mas a vista era deslumbrante. Como num cartão-postal. À minha esquerda,fileiras de vinhas estendiam-se em finas cordas prateadas. Ao redor delas, ocampofértildaToscana,comumaououtracasaisoladacomonaviosemmeioaummardecolinas.
Suspirei.NãoeradesurpreenderqueaqueletivessesidoolugarondeminhamãefinalmentenotaraHoward.Mesmoqueaindanãotivesseseapaixonadoporseusensodehumoreseumaravilhosogostoporgelato,elateriaolhadoavistaeseapaixonadoperdidamente.Eraotipodelugarquefariaumestourodeboiadaparecerromântico.
Coloqueiodiárionochãoecontorneiaplataforma lentamente,observandocadacentímetro.Queriamuitoencontraralgumsinaldaminhamãe,umapedranaqualtivessemarranhadoH+Houalgumaspáginasperdidasdodiárioqueelativesseenterradoemalgumlugaroucoisaassim,massóencontreiduasaranhasquemelançaramumolharsérioeimpassíveldeguardasreaisbritânicos.
Desisti da minha pequena caça ao tesouro e voltei para o centro daplataforma, envolvendo meu corpo com os braços. Eu precisava que umaperguntafosserespondida,etinhaasensaçãodequeaqueleeraomelhorlugarparafazê-la.
—Mãe,porquevocêmemandouparaaItália?—Minhavozinterrompeuatranquilidadedetudoaoredor,masfecheiosolhoscomforçaparaouvir.
Nada.Tenteidenovo.—PorquememandouficarcomHoward?Nadaainda.Entãooventosoproumaisforteebateunagramaenasárvores,
ederepentetodaasolidãoeovazioqueeucarregavacomigocresceramtantoquemeengoliram.Pressioneiapalmadasmãoscontraosolhos,sentindoador
percorrer todo o meu corpo. E se minha mãe, minha avó e a psicólogaestivessemerradas?Eseeufossecontinuarsofrendoassimpelorestodavida?Ese a cada segundo de cada dia eu sentisse menos o que tinha e mais o queperdera?
Eudesabeinochão,sentindoondasgrandeseirregularesdedor.Minhamãemedisseraváriasvezesqueminhavidaseriamaravilhosa.Quetinhaorgulhodemim.Quequeriaestarpresente,nãosóparaosgrandesmomentos,masparaosmaissimples.Eaídissequeencontrariaumjeitodeficarpertodemim.Maselacontinuavamorta.Ecadavezmaisdistante.Todaaquelaperdaseestendiadiantede mim como um horizonte interminável, assustador e vazio. Eu estavapercorrendo a Itália na tentativa de solucionar o mistério do diário, tentandoentendertudooqueelafizera,masnaverdadesóestavaprocurandoporela.Enãoiaencontrá-la.Nuncamais.
—Eunãovouconseguir—faleiemvozalta,cobrindoorostocomasmãos.—Nãopossoficaraquisemvocê.
Foiquandoleveiumtapa.Bem,talveznãotenhasidobemumtapa,foimaisum empurrãozinho, mas de repente me levantei porque uma palavra abriacaminhopelaminhamente.Olha.Protegi os olhos com a mão. O sol nascia sobre as colinas, aquecendo as
nuvens e incendiando-as em tons incríveis de cor-de-rosa e dourado. Tudo aomeuredorestavailuminado,lindoe,repentinamente,muitoclaro.
Eunãoiadeixardesentirsaudadesdela.Nunca.Daliemdianteavidaseriaassim,epormaispesadoqueissofosse,seriaalgodoqualeujamaismelivraria,mas não significava que eu não conseguiria me reerguer. Nem que não seriafeliz.Euaindanãoconseguiaimaginarmuitobem,mastalvezchegasseumdiaemqueoburacodentrodemimnãodoessetantoeeupudessepensarnela,melembrar dela, e ainda assim ficar tudo bem. Esse dia parecia a anos-luz dedistância,masnaquelemomentoeuestavanumatorrenomeiodaToscana,eonascerdosoldoíadetãolindo.
Eissoeraimportante.Pegueiodiário.Estavanahoradeterminar.
19DEJUNHOEverynewbeginningcomesfromsomeotherbeginning’send.Eutinhaaletradessamúsicaescritanumpedaçodepapel sobreminhamesahaviaquaseumano,esóhojefezsentidoparamim.Todonovocomeçovemde
um fim. Passei a tarde inteira perambulando pelas ruas, pensando, ealgumascoisasficaramclaras.
Primeiro,precisoiremboradaItália.Emsetembropassado,conheciumaamericanaqueestavapresanumcasamentohorrívelporquea lei italianadiz que os filhos devem ficar com o pai.Duvido queMatteo vá quereralgocomobebê,masnãopossocorreresserisco.
E, segundo, não posso contar a Howard o que sinto. Ele acha que jáescolhioutrapessoaeprecisacontinuarpensandoisso.Senão,vaideixarparatrásavidaqueplanejouporumachancedecomeçaralgocomigo.Euqueromuitoisso,masnãoobastanteparadeixarqueeleabramãodeseusonhodeviveretrabalharemmeioatantabeleza.Éoqueelemerece.
Então é isso. Por amarHoward, preciso deixá-lo. E, para protegermeubebê,tenhoqueafastá-laomáximopossíveldeseupai.(Sim,euachoqueéumamenina.)
Seeupudessevoltarparaumúnicomomento,apenasum,euretornariaàtorre,comummundointeirodepossibilidadesdiantedemim.Eemborameucoraçãodoamaisdoquejamaisimagineiquefossepossível,eunãotrocaria aquele nascer do sol nem este bebê por nada. Este é um novocapítulo.Minhavida.Evou recebê-lodebraçosabertos.Qualqueroutracoisaseriaumdesperdício.
Fim.Orestododiárioestavaembranco.Volteidevagarparaaprimeirapáginaelimaisumavezaprimeirafrase.
Eutomeiadecisãoerrada.
Soniaseenganou.Minhamãenão tinhaenviadoodiárioaocemitérioparamim, e sim para Howard. Ela queria que ele soubesse o que realmenteaconteceu,queelesoubessequeelaoamouesse tempotodo.Eentão,emboraelanãopudessevoltaratrásemudarahistóriadeles,fizeraomelhorquepôde.
Tinhametrazidoatéaqui.
Capítulo25
EUPRATICAMENTEVOEIdevoltaparaocemitério.Estavamuitonervosa,mastambémmesentiamaisleve.NãoimportavaqualseriaareaçãodoHoward,ia ficar tudo bem. E ele merecia ler a história da minha mãe. Naquele exatoinstante.
A luz do dia tinha transformado por completo o cemitério, dando brilho àatmosferadesbotada,esaícorrendo,cortandocaminhopelaslápideseignorandoa dor nas costelas. Eu precisava encontrarHoward antes que ele começasse atrabalhar.
Eleestavasentadonavarandacomumacanecadecafée,quandomeviu,selevantou,assustado.
—Vocênãoestásendoperseguidadenovo,nãoé?Balanceiacabeçaeparei,tentandorecuperarofôlego.—Ah, que bom.—Ele voltou a se sentar.—Você sempre corre assim?
Acheiquegostavamaisdecorridadelongadistância.Balanceiacabeçaoutravezerespireifundo.—Howard,precisoperguntarumacoisa.—Oquê?—Vocêsabequenãoémeupai?Poralgunslongossegundos,minhaspalavraspairaramnoarentrenóscomo
bolhasdesabãocintilantes.Entãoelesorriu.—Defina“pai”.Minhaspernascederamefuicambaleandoemdireçãoàvaranda.—Ei,ei.Vocêestábem?—Eleestendeuamãoparameequilibrar.—Sóprecisomesentar.—Eudesabeinodegraudavarandaaoladodele.—
Evocêsabeoquequerodizercom“pai”.EstoufalandodohomemqueforneceumetadedomeuDNA.
Eleesticouaspernas.—Bem, nesse caso, não.Eunão sou seu pai,mas se usar outra definição,
como“umhomemquequerestarnasuavidaeajudaracriarvocê”,então,sim.Sou.
Solteiumgemido.—Howard, issoémuitobonitoe tal,masexplicamelhor.Porquepasseias
últimasvinte e quatrohorasmuito confusa e commedodemagoar você,mas
vocêsempresoube?—Desculpe.Nãoimagineiquevocêsabia.—Elemeolhouporuminstante,
depoissoltouumsuspiro.—Tudobem.Querouvirumahistória?—Quero.Ele se acomodou, como se estivesse prestes a contar uma história pela
milésimavez.—Quandoeutinhavinteecincoanos,conheciumamulherquemudoutudo
paramim.Elaerainteligenteealegreesemprequeeuestavacomelasentiaquepodiafazerqualquercoisa.
—Vocêestáfalandodaminhamãe,nãoé?— Me deixe terminar. Então, conheci essa mulher e me apaixonei
perdidamenteporela.Eununcatinhasentidoaquiloporninguém,eracomoseeusempretivesseprocuradoporelasemsaber.Eusabiaquetinhaquefazertudooquepudesseparaqueelasentisseomesmo,entãocomeceisendoseuamigo.Fizumaauladeitalianoquenãoprecisavasóparapassarmaistempocomela...
—Ocursoparainiciantes?—Shh.Lina,escute.Fizemositalianojuntos,euassistiaàsoutrasaulasdela,
eatéconseguientraremseucírculodeamigos,mastodavezquetentavacriarcoragemparadizeroquesentia,euviravaumagelatina.
—Gelatina?—falei,incrédula.—Sim.Gelatina...—Euseioqueégelatina!Pelovistoserum“caralegal”nãosignificavasertambémum“bomcontador
dehistórias”.—Oquequerodizeréqueeugostava tantodelaque tremiadenervoso.E
entãodescobriqueeratardedemais.Enquantoeuficavagaguejando,carregandooslivrosdelaefingindoquegostavadedançar,outrohomementrouemcenaealevouembora.
—MatteoRossi.Elehesitou.—Comosabeonomedele?—Depoiseuconto.Elepareceuconfuso.—Enfim.Eudisse amimmesmoque, se esse outro cara fosse gente boa,
gostasse mesmo dela e a fizesse feliz, eu deixaria pra lá.Mas eu conhecia oMatteo. Infelizmente, sua mãe ficou cega por ele por um bom tempo. Atéchegamos a ter um breve relacionamento, mas ela o escolheu. Você foiconcebida assim, enquanto eles estavam juntos,mas quando ficou doente, suamãepediuqueeuaparecesse.Entãofoioquefiz.Porqueeuaamava.—Eleme
cutucou.—Eatéqueestoucomeçandoagostardevocê.Solteioutrogemido.—Ok,belahistória,masvocêentendeuumaparteerrado.Eporquevocêe
minhaavódisseramqueeuerasuafilha?—Agoraperceboquefoiumerro,epeçodesculpas.Eunãoplanejavadizer
issoaprincípio.SuaavóeeucomeçamosanoscomunicardepoisdamortedaHadley,eapósalgumassemanas,percebiqueelapresumiaqueeueraseupai.Eu sabia averdade,mas tivemedodeque, se contasse, elanãodeixassemaisvocêvir,esuamãetinhamefeitoprometerqueatraria.Alémdisso,acheiqueseriamelhorparavocê.Acheique,seacreditassequeeueraseupai,seriamaisprovávelquemedesseumachance.
—Sóqueeumecomporteideumjeitohorrível.—Não.Pelasuasituação,vocêfoiótima.—Mentiroso.Elesorriu.—Achoqueeusimplesmentenãosabiamaisoquefazer.Seuavôjáestava
passando por um momento difícil, e eu não sabia qual era a situação com afamília da Addie. Tive medo de que você não tivesse para onde ir. Então,quandosuaavóperguntousepodiacontarqueeueraseupai,eudissequesim.—Elebalançouacabeça.—Euplanejavadizeraverdademaiscedooumaistarde, mas depois daquela noite na pizzaria achei melhor esperar você seacomodarantes.Sóquevocênãoparecedotipoqueseacomoda.Eudeveriaterimaginadoquevocêiaperceber.
—Vocêétipoduasvezesmaisaltoqueeu.Eélouro.Enãotemosnadaaverumcomooutro.
—Verdade.—Elehesitou.—Entãoagoraéminhavez.Háquanto tempovocêsabe?
—Háumdia,maisoumenos.—Comodescobriu?Eupegueiodiárionaescadaeentregueiaele.—Aqui.—Seudiário?—Não,édaminhamãe.Éodiárioqueelaescreveuquandoestavamorando
aqui.—Esseéodiáriodela?Eunoteiqueeramparecidos,masacheiquefossesó
coincidência.—Eleovirou.—ElaescreveusobretodasascoisasqueaconteceramentreelaeMatteo.Só
queduranteamaiorparteelaochamoudeX.Então,aprincípioacheiqueestavalendosobrevocê,masaívocênãosabiasobreapadariasecreta.
— Espere um instante. A padaria secreta? O lugar sobre o qual Renperguntou?
—É.Elequeriamesurpreenderetentoudescobrirondeera.—EntãoRentambémsabedetudo?— Sabe. Na verdade, ele me ajudou a encontrarMatteo.— Eu desviei o
olhar.—Nós,hum,oconhecemos.Parecequeeleseergueuunsquinzecentímetrosnoar.—Vocêoconheceu?Mantiveosolhosfixosnochão.—Aham.—Onde?—EmRoma.Eleestavameolhandocomoseeutivesseacabadodedizerqueerametade
humanaemetadeavestruz.—QuandovocêfoiaRoma?—Ontem.—Ontem?—É,pegamosotremexpresso.PrimeiroRenveiomebuscar.Depoisfomos
àABAFeeuligueiparaFrancesca...—FrancescaBernardi?Comovocêsabiadaexistênciadela?—O diário. Ela me disse o sobrenome doMatteo, nós o encontramos na
internetefomosàgaleriadeleefoi...Bem,foiumdesastre.Howardestavaboquiaberto.—Porfavor,digaquevocêestábrincando.Balanceiacabeça.—Desculpa.Masnãoestou.Eleesfregouoqueixo.—Ok.EntãovocêsencontraramMatteo.Edepois?Elesabiaquemvocêera?— Ele inventou uma história, dizendo que minha mãe era louca e tinha
forjadoo diário. Foi ridículo.Quer dizer, nós somos idênticos, e ele ficoumedizendoquenuncatevenadacomela.Acabamosindoembora.
Howardbufou.—Suamãememataria.EuaquipensandoquevocêeRensótinhamsaído
para tomar gelato e dançar, mas você estava procurando seu pai em outracidade?
—Sim,masnãovoumaisfazerisso—falei,àspressas.—Foiaprimeiraeúltimavez.Anãoserquevocêestejaescondendomaisalgumacoisademim.
—Nada.Todasasminhascartasestãonamesa.—Ok,quebom.
—Mas onde conseguiu o diário? Você o encontrou depois que sua mãefaleceu?
—Não.Soniameentregou.—Sonia?MinhaSonia?—É.Minhamãeoenvioupelocorreioemsetembroe,quandofoientregue,
Sonia ficou commedo de que você ficasse triste, então o guardou por algunsdias.Sóqueaívocêcontouqueeuviriamoraraquieelapresumiuqueminhamãetinhaenviadoodiáriopramim,masnão.Eraparavocê.
Howardseguravaocadernocomcuidado,comosefosseumpassarinhoquenãoqueriadeixarvoar.
—Vocêdeverialer.—Seimportaseeucomeçaragora?—Porfavor.Elevirouacapalentamente,parandoaoveraprimeirafrase.—Ah.—É.Voudeixarvocêsozinho.
Capítulo26
DUAS HORAS DEPOIS, Howard apareceu na porta do quarto segurando odiário.
—Terminei.—Foirápido.—Quersesentarnavarandadenovo?—Claro.Desciaescadacomeleenossentamosnobalançodavaranda.Osolhosdo
Howardestavamvermelhos.—Foidifícillertudoaquilo.Querdizer,elamecontoualgumaspartes,mas
eunãosabiaahistóriainteira.Foramtantosmal-entendidos.Relaçõesperdidas.—Eleolhouparaocemitério.—Suamãeentendeualgumascoisasdeumjeitoerrado.Paracomeçar,eunãosaíacomAdrienne.
—Não?—Não.Matteoéquesaía.Lanceiumolharvazioparaele.—SuamãenãoeraaúnicaalunacomquemMatteoseenvolveu.—Aaaahh.—Outra peça do quebra-cabeça se encaixou.—Então foi por
issoquevocêcontouahistóriado touroedopadeiropraela?Estava tentandofazercomqueelaprestassemaisatenção,porqueestavalevandoumbelochifredoMatteo?
Elefezumacareta.—Foi,masclaroquenãodeumuitocerto.Elanão faziaamenor ideiado
queeuestavatentandodizer.—É,foimuitomisterioso.Vocêinventouaquelahistória?—Não,ahistóriaexistemesmo.Achomuito improvávelquesejaverdade,
mas é uma das lendas contadas na cidade. Adoro esse tipo de coisa.— Elebalançou a cabeça. — Enfim, eu sabia que sua mãe estava envolvida comMatteo. Ela guardava segredo porque temia que lhe causasse problemas naescola,maseleguardavasegredoporqueeraumcretino.Eusabiaqueeletiveracasoscomalgumasalunaseque,peloquepudenotar,nãovalianada.Eutinhaminhas suspeitas, e um dia o peguei com Adrienne na boate. Naquela noite,quandosuamãemeviucomeladoladodefora,euestavatirandoahistóriaalimpo.QueriaqueAdriennecontassetudoasuamãe.
—Porquevocênãocontou?Elebalançouacabeça.—SóHadleynãopercebiaqueeuestavaapaixonadoporela,eiaparecerque
era intrigaminha.Alémde tudoeraquasecertoqueMatteo ianegarequeeuperderia a confiança da sua mãe. Depois que eles terminaram, não vi maismotivosparacontar.Alémdisso,fuimeiocovarde.Foiculpaminhaelesteremterminado.
—Porquê?—Suamãe estava se isolando e começou a fazer críticasmuito duras a si
mesmaeaopróprio trabalho.Então,numasemana,quandoMatteoviajouparaumaconferência,ligueiparaeleedissequesenãoficasselongedela,eucontariaàdireçãodaescolasobreoenvolvimentodeles.
—Efoientãoqueeleterminoucomela?— Sim, mas contei à escola mesmo assim, e ele acabou sendo demitido.
Hadley ficou tão arrasada que foi como se tivesse perdido toda a cor. Passeisemanasmeperguntandosetinhafeitoacoisacerta.—Eleempurrouobalanço.—Masaíelapareceumelhorar.Euaconvenciapassaroverãoaquicomigo,eficamosjuntosporumtempo.Eentãoaperdidenovo.
—Porminhacausa.Elebalançouacabeça,apontandoparaocemitério.—Ela deveria terme contado.Eu teria desistido disto aqui numpiscar de
olhos.—Foiexatamenteporissoqueelanãocontou.—Eusei.—Elesuspirou.—Eusóqueriaqueelativessemedeixadotomar
essadecisão.UmdiacomHadleyvaliamaisqueumavidainteiranaItália.—Eusei.Euo analisei por um instante.Ele a amava.Amavade verdade.E sentia a
faltadelahaviamaistempoqueeu.Issomefaziaquererabraçá-lo.Desviei oolhar, piscandopara conter as lágrimas.Eu esperavaqueminhas
lágrimas secassemumdia.Eupoderia ser agarotapropagandadaKleenexoucoisaparecida.
—Vocêtentoupedirpraelavoltar?—Não.Naminha cabeça, ela tinha escolhidoMatteo. Se eu soubesse por
que, teria sido outra história. Só anos depois descobri que eles não estavamjuntosehápoucotempodescobrisobrevocê.Eumepreocupavamuitocomela,mastodavezquepensavaementraremcontato,eracomosealgomeimpedisse.Talvezorgulho.
—Outalvezvocêsónãoquisessesemagoardenovo.Elapartiuseucoração.Elesoltouumarisadinha.
—Partiumesmo.E,claro,depoisdeumtempoeuconseguiseguiremfrente.Mastervocêaqui...Bem,temsidocomoreviveraquelaépoca.
Ficamosquietosporuminstante.Osol jáestavaalto, luminosoequente,emeucabeloestavapraticamentefritando.
Elebalançouacabeça.—Nuncaimagineiqueessaconversaseriaassim,masestoufelizpelorumo
queascoisastomaram.EagoranãoprecisamosnospreocuparcomMatteo.Suamãe teve o cuidado de mantê-la afastada dele, sobretudo depois que ficoufamosa. Ela sempre quis trazer você para a Itália,mas tinhamedo.Acho queagora que está com quase dezoito anos ela deve ter ficadomais tranquila emrelaçãoaoMatteo.
—Provavelmenteelanãoimaginouqueeuoprocuraria.—Nunca.Achoqueelasubestimouvocê.—Eleriu.—Eeutambém.Não
acreditoquevocêfoiaRoma.—Foiumaidiotice.—Bem,issoestánacara,mastambémfoimuitocorajoso.— Ren foi comigo. Ele me ajudou muito. — Senti minha expressão
entristecer.Ren.—Oquefoi?—Rennãoestámais...falandocomigo.Ficouchateadocomigo.Howardfranziuatesta.—Vocêsbrigaram?—Maisoumenos.—Nãoimportaoqueseja,tenhocertezadequevocêsvãoresolver.Elegosta
muitodevocê.Dáparanotar.—Talvez.Ficamos ali sentados por um tempo, balançando para a frente e para trás,
quandoderepenteumpensamentomeocorreu.— Howard, você estava tentando me dizer alguma coisa quando contou
aquelahistóriaesquisitasobreamulherquedeuàluzumjavali?Eleriu.—Oporcellino.Émelhor euparar de fazer isso.Parecequenão funciona
muitobem.—Não.—Tudobem.Sim,euestavatentandodizerumacoisa.Quandofomosvera
estátua, percebi que era o símbolo perfeito. Embora a nossa situação sejaestranha,esejamosmeiodiferentes,queromuitofazerpartedasuavida.Talveznãosejamosumafamíliacomum,mas,sevocêquiser,sereisuafamíliamesmoassim.
Olheiparaeleemilsentimentostomaramcontademimatéeuficartãocheiaquanto um balão.Minhamãe estava certa.Ninguém jamais chegaria perto desubstituí-la,masseeutivessequeescolherumapessoanomundo,seriaHoward.Elasóestavaumpoucoàminhafrente.
—Oquevocêmediz,Carolina?Hesitei. Não queria tomar nenhuma decisão por impulso, mas sabia que,
naqueledia,eraoquepareciacerto.Eteriaqueserobastante.—Ok.—Assenti.—Eutoposevocêtopar.Eleabriuumdeseussorrisostortosparamim,depoisserecostounobalanço.—Quebom.Bem,agoraqueesclarecemosisso,oqueaconteceucomRen?
Capítulo27
HOWARDINSISTIUDIZENDOqueeunãopodiadesistir.Sequisesseiratéofim, precisava ter certeza de que não houvera nenhum problema sério decomunicaçãoentremimeRen.
Foiassimmesmoqueelefalou.Problemasériodecomunicação.Enfieimeusúltimosfarraposdedignidadenofundodoarmárioeligueipara
ele.Duasvezes.Minhasduaschamadascaíramdiretonacaixapostaleeuuseitodasasminhasforçasparanãodeixarumamensagem.
Depois,HowardmeajudouadescobrironúmerodacasadosFerrara,entãoeutenteidenovo.
—Ciao,Lina!—cantarolouOdette.Ficouclaroqueelanãotinhanoçãodecomoestavamascoisasentreagente.—Oi,Odette.Renestáemcasa?—Sim,sóuminstante.—Elabaixouotelefone.Depoishouvealgunssons
abafados.Avozdelafinalmentevoltou.—Lina?—Sim?—Rennãopodefalaragora.Fizumacareta.—Seráquevocêpoderiaperguntarumacoisaaelepormim?—Oquê?—Eupossoiratéaí?Precisofalarcomele.Houveummomentodesilêncio.—Ren?Porquevocêestábalançan...—Entãoeladevetercolocadoamão
sobreofone,porquenãoconseguientendermaisnada.Foihumilhantedemais.Oquerestaradaminhadignidadeardeuatéqueimar.Quandoelavoltouafalarcomigo,pareciaconfusa.—Desculpe,Lina.Ele disse que está ocupado.Está se arrumando pra ir à
festadaValentina.Eumeanimei.—Temcertezadequeelevai?Édagarotaqueseformounoanopassado,
nãoé?—Sim.Achoqueépracomemoraroaniversáriodedezoitoanosdela.Pelomenoseuoveriacaraacara.Respireifundo.Eramelhordoquenada.
—Obrigada,Odette.—Pornada.DesligueieenvieiumamensagemrápidaaThomas.Depoisfuiatéocentro
devisitantes.Euprecisavadeumfavor.
***
Quando entrei correndo no centro de visitantes, Howard e Sonia ergueram orosto, assustados.Ambos estavam examinando uma pilha de papéis eHowardusavaunsóculosde leituraminúsculosquenemumvelhinhoqueodeixavamcomcaradelenhadormíope.Solteiumarisadinha.
Elelevouamãoaopeito.—Lina!Umdiadessesvocêacabamefazendosofrerumataquedocoração.—Seusóculossãotão...—Tãooquê?Eleselevantouecomeceiarirdenovo.—É só... esquece.Olha, preciso de ajuda.Vou a uma festa hoje à noite e
precisoestar linda.AchoqueéminhamelhorchancederecuperarRen.Tenhoqueencontrarovestido.
Eletirouosóculos.—Aquelevestidoincrívelquefazqualquerumseapaixonarporvocê?—Sim!Exatamente.Comooqueminhamãe teve.Sóque esperousá-lo e
querealmentefuncione.—Ovestido?—perguntouSonia,olhandodeumparaoutro.—Desculpem,
nãoestouentendendo.Howardsevirouparaela.—Sonia, teremosque fechar o cemitériomais cedo.Encontrar umvestido
novodeveser fácil,masovestido?Vai levaralgumtempo.—Howardpiscouparamim.—E,porfalarnisso,eumelembrodetervistoovestidodasuamãe.Achoquedeidecaracomumaparede.
Soniabalançouacabeça.—Aindaestoumeioconfusasobreoquevocêsestãofalando,masvocêsabe
quenãopodemosfecharocemitério.Écontraasregras.— Tudo bem, não fechamos. Vamos abandoná-lo por algumas horas
enquantonóstrêsfazemosumaviagememergencialdecomprasaFlorença.Comeceiapular.—Obrigada!Seriamaravilhoso!Soniaaindanãotinhaseconvencido.
—Howard,euvouficaraquiparaocasodealgumvisitanteaparecer.Elebalançouacabeça.—Não,você temquevircomagente.Soucompletamente inútilquandoo
assunto são compras. Meu armário é como uma tumba. Precisamos de umaopiniãofeminina.
Elaestremeceu.—Seugostoémesmohorroroso.Lembraquandofizvocêjogarforaaquela
calçadeveludocotelê?Estavacrescendopelonela.Junteiasmãosepisqueiosolhos,implorando.— Por favor, Sonia. Eu nem sei onde ficam as lojas de vestidos, e vou
precisarde todaaajudapossível.Preciso ficarmaravilhosahojeànoite.Vocêmeajuda?
ElaolhoudemimparaHoward,depoisbalançouacabeça.—Achoquevocêsestãoloucos,mastudobem.Vocêsmepegamláemcasa?—Sim!EueHowarddemosumhighfive,entãoespereidoladodeforaenquantoele
fechavaocentrodevisitantesedepoiscorremosatéacasa.A caminho de Florença,Howard e eu contamos a Sonia o nosso status de
somos-parentes-mas-não-somos-parentes.Elaficouchocada.—Estãomedizendoquevocêsnãosãopaiefilha?—Tecnicamente,não—falei.—E,Howard,vocêsempresoube?—Sim.Elabalançouacabeça,depoiscomeçouaseabanarcomacarteira.—SónaItália.Howardolhouparaela.— E, Sonia, no futuro, por favor, não entregue nenhuma das minhas
correspondênciasaoutrapessoa.Emboranessecasoachoquetenhafuncionadobem.
—Juroportudoqueémaissagrado.Nuncamaisvoufazernadaparecido.—Elasevirouparamim.—AquehorasRenvempegarvocê?
—Àsnove,maseunãovoucomRen.VoucomThomas.—Ah.MasacheiquevocêeRen...—Elasecalou.—AchouqueeueRenoquê?HowardolhouparaSonia,depoismeencaroupeloretrovisor.—Sabequandodizemosqueumapessoa“estádecoraçãoaberto”?Bem,em
italianosediz“avereilcuoreinmano”.Vocêofereceseucoraçãonapalmadamão.TodavezqueRenolhaparavocê,eupensonessaexpressão.Eleé louco
porvocê.—Nãoé,não.Soniaentrounaconversa.—Claroqueé.Evocênãopodeculpá-lo.Olhesópravocê.Ocoitadonão
conseguesecontrolar.—Eletemnamorada.—Tem?—perguntouHoward.Assenti.—Bem,oquevocêsenteporele?Ambosolharamparamim,eeuconseguificarquietaportrêssegundosantes
deexplodircomoumvulcão.— Tudo bem. Eu estou apaixonada por Ren. Estou completamente
apaixonadaporele.AlémdaAddie,eleéaúnicapessoaquefazcomqueeumesintanormal,eésuperengraçado,estranhoetemumespaçoentreosdentesdafrente que eu amo. Só que nada disso importa, porque ele tem namorada, eontem eu devo ter sofrido um lapsomomentâneo de sanidade, porque dei umbeijoneleeelesurtou.Alémdisso,anamoradadeleparecequesaiudacapadeuma revista demoda e sempre queRenme vê, eu estou suando ou chorando.Entãoagoravoumearrumarparaafestanaesperançadechamaraatençãodeleosuficientepraeleaomenosfalarcomigo.Quemsabeassimeutenhoaomenosuma oportunidade de dizer o que sinto e tentar salvar no mínimo a nossaamizade.Entãopronto.ÉissooqueeusintoporRen.
TantoHowardquantoSoniapareciamperplexos.Eumerecosteinobanco.—Éporissoqueprecisodovestidoperfeito.Ficamosemsilêncioporumsegundo,entãoSoniasevirouparaHoward.—Temoslimitedeorçamento?—Não.—Entãovireàesquerda.Seiaondeprecisamosir.
***
Howardnoslevoudiretoparaumalojadevestidospertodocentrodacidade,edepois de deixarmos o carro, nós três corremos três quarteirões doestacionamentoatéaloja.Quandoentramosderepente,amulheratrásdobalcãoergueuorosto,assustada.
—Cos’èsuccesso?—Stiamocercandoilvestitopiùbellonelmondo.—Elesevirouparamim.
—Elaquerovestido.Amulhernosavaliouporuminstante,depoisbateupalmas.—Adalina!Sara!Venitequi.Duasmoças vieram dos fundos da loja, e depois de ter amesma conversa
comHoward,pegaramsuasfitasmétricasecomeçaramamedirminhacintura,minhabunda,meubustoe...sim.Foibemconstrangedor.
Finalmente, elas começaram a pegar vestidos por toda a loja, depois meempurraramparaumprovadoremeenfiaramládentrocomosvestidos.Tireiaroupadecorridaevestioprimeiro.Eraumrosaalgodão-doceemelembravadavezqueeuvomitaranumaroda-gigante.OsegundoeraumamarelocobertodepenasetinhaumasemelhançasuspeitacomafantasiadopersonagemGaribaldo,deVilaSésamo.Oterceironãoerahorrível,masasalçaseramtãograndesquesobravamquase trêscentímetrosnosmeusombros,eafestaeranaquelanoite,entãonãodavatempodeajustar.Eumeolheinoespelho,muitoséria.Nãoentraempânico.Masmeucabeloentroumesmoassim.Outalvezfosseonormaldele.
—Comoestáaí?—perguntouSonia,ládefora.—Nadaainda.—Experimenteeste.Ela jogou outro por cima da porta. Branco e armado. Fiquei igual a um
marshmallowacaminhodeumcasamento.—Ah,não—resmunguei.—Essesaquinãoservem.Eseeunãoconseguir
encontrarnenhum?—Eutrouxevocêaquiporumbommotivo.Vouverseafilhamaisvelhada
vendedoraestáaqui.Elaéumafadamadrinhaparaescolhervestidos.Jávolto.Eumeaproximeidoespelhoemeolheidenovo.Euestavaimperdoável,pior
ainda, ridícula. Ren jamais voltaria para mim se eu estivesse parecendo umaguloseimaquetinhasidoassadanafogueiradeumacampamentodeescoteiras.
—Lina?Soniabateunaporta,queentãoseabriueelaeoutramulherentraram.A mulher tinha uns quarenta anos e um coque preso com um lápis. Ela
parecia levar a profissãomuito a sério. Com um gesto,mandou que eu desseumavoltinha.
—Não.Tuttosbagliato.—D’accordo—disseSonia.—Eladissequeesseestáerrado.—Podepediraelaparaacharumcerto?—Nãosepreocupe.Elatemtalentoparaisso.Deixacomela.Amulher deu um passo à frente e seguroumeu queixo. Em seguida virou
meurostodeumladoparaooutro,analisandomeustraços,depoisdeuumpassoparatrásememandoudaroutravolta.Enfim,assentiueergueuumadasmãos.
—Hoilvestitoperfetto.Espere.Quandoelavoltou,seguravaumvestidonude-rosadocomrendabordadaem
todootorsoeumasaiacurtaesolta.Eusegureiaquelapeçadiantedemim.—Este?—perguntei.—Sim.Este—disseela,decidida.Esaiudoprovador,fechandoaporta.Tireiovestidodemarshmallowevestionovo.Otecidoeramacioesedosoe
deslizoucomfacilidadesobreopeitoeosquadris,parandonopontoexato.Nemtivequemeolharnoespelhoparasaberqueeraocerto.
***
QuandoThomas chegou no carro do pai, umaBMWprateada conversível, eutinha conseguidome transformar por completo. Soniame ajudara a arrumar ocabelo, deixandoos cachos suaves e commenos caradeMedusa, tambémmeemprestou sapatos altos e brinquinhos de diamante. Eu tinha passadomaquiagem e perfume e ensaiado meu discurso para Ren várias vezes. Ren,precisodizerumacoisa.Quandomeolheinoespelho,quasenãoacreditei.Eupareciamuitoitaliana.
—Elechegou!—gritouHowardládebaixo.—Estouindo!Respirei fundoparameacalmar,depoiscambaleeiescadaabaixo.Ossaltos
da Sonia eram deslumbrantes, mas muito altos. Por um milagre, cheguei aoprimeiro andar sem executar nenhum movimento involuntário de ginásticaartística, e quando ergui o rosto, Howard me observava com os olhos cheiosd’água.
—Vocêestálinda.NãoquerosabercomoéanamoradadoRen.Elanãotemamenorchance.
—Issoseriabom,masseelevoltarafalarcomigojáficareifeliz.—Apostoqueelevaiescolhervocê.BateramàportaeHowardatravessouasalaparaabrir.—Olá.Thomas?—Sim.Prazeremconhecê-lo.Fuiatéaportabatendoossaltos.—Uau!Lina,vocêestá...—OqueixodoThomascaiu,masaíelepercebeu
queHowardoolhavacomoseelefosseumcervoduranteatemporadadecaça,epigarreouàspressas.—Desculpa.Quevestidolindo.Vocêestámuitobonita.
—Vocêtambém.
Ternocinzabemajustado.Cabelodesgrenhadodepropósito.EupraticamenteconseguiouvirAddieentrandoemcombustãoespontânea.
—Prontaprair?—perguntouele.—Pronta.—Eume aproximei doHoward e o abracei.—Até que horas
possoficarnafesta?—Atéahoraquequiser.Bem,dentrodolimiterazoável.—Elepiscoupara
mim.—Vaidarcerto.—Obrigada.FuicomThomasparaocarroeeleabriuaportaparamim.—Vocêestádeslumbrante.—Obrigada.—Oqueseupaiquisdizercom“vaidarcerto”?—Humm,nãosei.Olhei parameucelularpelamilionésimavez.Tinhapassado a tarde inteira
esperandoqueRenligasse.Eduranteatardeinteiraelenãoligou.Thomassesentounobancodomotoristaeenfiouachavenaignição.—Éumcarrobonito,nãoé?—Muitobonito.—Meupai também temumaLamborghini.Ele disse que se eu passar um
anosemrecebernenhumamulta,vaimedeixarusá-la.—Penaquenãoéhoje.—Concordo.—Elesaiucomcuidadodaentradaparacarroseseguiupelo
caminho.—SabiaquenaItáliasódápratirarcarteiradepoisdosdezoitoanos?Achoquesouoúnicodaescolaquepodedirigir.
—Renvaitiraradeleanoquevem.—Maseleaindaestánopenúltimoano.—Elefazdezoitoemmarço.—Ah.Elepegouaestradaeacelerou,deixandoamúsicaaltademaisparaconversar.Tenho certeza de que percorrer a região rural italiana num carro de luxo
conversívelcomumjovembritânicoquepareciaumagentesecretodeveserumaexperiênciamágica,masnãoparamim.Euestavaocupadademais repassandomentalmenteoquedizeraoRen.Etentandoafastaramãodoagentesecreto.
—OpaidaValentinatrabalhacomomeu,sóqueocargodeleéaindamaisalto.Jáfuiaváriasfestasnacasadelesesãosempreumaloucura.Teveumanoem que deram um grande jantar japonês e havia mulheres deitadas sobre asmesasdecomida.Vocêtinhaquecomerosushidiretodocorpodelas.
—Eca.Sério?—É,foiincrível.
Elecolocouamãonomeujoelho,denovo,efizquestãodemudardeposiçãoparaobrigá-loatirá-ladelá.Denovo.Olheiparaeleesuspirei.Qualqueroutragarota trocaria todoogelato deFlorençapor uma chancede estar sentada ali.Maselasnãoerameu.EnãoconheciamRen.
Quando finalmente chegamos à festa, fiquei chocada. Não porque a casaparecesse o castelo do Drácula — claro que parecia! —, mas por causa daquantidadedegente.Carrosetáxisdisputavamespaçoparaentrarenquantoumamultidãodeconvidadosextasiadosziguezagueavaatéaportadafrente.Levamosdez minutos e precisei descruzar e cruzar as pernas mais três vezes só paraalcançarmosomanobrista.
Quandochegouanossavez,Thomasjogouaschavesparaocaraemeajudouasairdocarrocomoseelefossealguémimportante.Umtapetevermelhocobriaosgrandesdegrausdepedraquelevavamàportaeummontedegenteentrava.Eu tinha ficado com um pouco demedo de estar arrumada demais,mas todomundopareciaestarindoaumapremièredefestivaldecinema.Semdúvidaeraumaocasiãoparaovestido.
—Estelugarémuitomaiordoqueeutinhaimaginado—falei,segurandoobraçodoThomasantesqueperdesseoequilíbrionaescada.
—Euavisei.Vaiserincrível.—Todososseusamigosmoramemcasascomoesta?—Sóosquedãofestas.Aentrada tinhaumalongaescadariacurvadaeumlustreextravagantefeito
devidrocolorido.Umhomemcomumagrandepilhadepapéisnosparou.—Nome,porfavor.—Seusotaqueeratãofortequantoseusbíceps.— Thomas Heath. — Ele se virou e sorriu para mim. — E minha
acompanhante.Ohomemfolheouospapéis,marcandoonomedoThomas.—Benvenuti.—Tudobemseeuchecarsualistarapidinho?—perguntei.—Queriasaber
semeuamigoestáaqui.—Não.—Ele franziua testaparamim,cobrindoa listacomamão.—É
privato.EunãoestavanumafestanoPentágononemnadadotipo.—Eusóprecisodarumaolhadi...—Vamos.Thomassegurouminhamãoemepuxouparalongedalistaeparadentroda
casa.Todomundoseespremianumasalaenormeerebuscadademais,compé-direito alto e mais uns cinco lustres. Tivemos que abrir caminho para entrar,tropeçandoemtodososvestidoschiqueseesbarrandonoshomensquesuavam
depaletó.Toda a mobília havia sido afastada para os cantos da sala, e um palco
improvisadoforamontadonumdoscantos.Jáhaviaummontedeinstrumentosemcimadele,masnascaixasde som tocavamúsicanumvolumequepoderiamatarpassarinhos.Estavatãolotado!ComoencontraroRen?
—Lina!Thomas!—Elenasaiudamultidãoeagarroumeubraço.Elaestavacomumvestidocinzacurtoeumrabodecavaloalto.—Uau,Lina,vocêestábella.Essacorficouótimaemvocê.
—Obrigada,Elena.VocêviuRen?—Ren?Não.Nemseiseelevem.AchoqueMimiomataria.—Porquê?Thomascomeçouarir.—Gente,olhem.LáestáSelma.Eleapontouparaumamulheraltademeia-idadequetinhasubidonopalcoe
mexianosfios.Elausavaumatiaraeumminivestidorosa-shocking,quedavaasensaçãodequeaqualquermomentoseuspeitospulariamparafora.
—Uiii—disseElena,balançandoacabeça.—ÉamãedaValentina.Elafoimodelonos anos1990e exibe fotos sexydelamesmapela casa.Achoqueeuprefeririamorreraverminhamãecomumdecotedessestodososdias.
— Sua mãe com um decote biônico desses— acrescentou Thomas.— Émelhortentarmosarrumarumbomlugarpertodabanda.Valentinadissequevãocomeçaratocaràsdez.
Elenabalançouacabeça.—EstouesperandoMarco.—Marco,hein?Elenafranziuatestaparaele.—Dai.Équeeudissequeesperaria.Nãosignificanada.—Aham.—Elena, sevocêvirRen, podedizer queprecisomuito falar comele?—
pedi.—Claro,semproblemas.—ElaolhouparaThomasedepoisseaproximou.
—Uau!Thomasestá incredibile.—Elapronuncioudo jeito italiano.—Belaescolha. Ele é troppo sexy. Tenho certeza de que todas as garotas que jáesbarraramcomele tentaramconquistá-lo.Você foi a felizarda.QuepenaqueRenterminoucomMimiporsuacausa,masentendoperfeitamenteporquevocêestáaquicomThomas.
Oitocentospontosdeexclamaçãosurgiramnaminhacabeça.—RenterminoucomMimi?Quando?Hoje?Elafranziuassobrancelhas.
—Não sei. Talvez tenha sido ontem,masMimi disse que está feliz. Semquererofender,masRenémuitoestranhoàsvezes.Elesemprediz tudooquevemàcabeça.
—É,maséissoqueélegalnele.EladeuumaolhadaparaThomas.—É,talvez.Vejovocêsmaistarde.Vouláprafrente.—Tchau.DigaaRenondeestousevocêovir,ok?—Vocêestábem?—perguntouThomasdepoisqueElenafoiembora.—Estou,claro.Talvezmelhordoquebem.RentinhaterminadocomMimiporminhacausa?
EntãooqueforatudoaquiloemRoma?MinhamissãodeencontrarRentinhasetornadoaindamaisurgente.
—Vamospegarumabebidaeirparapertodopalco—sugeriuThomas.—Claro.As duas horas seguintes se passaram inacreditavelmente devagar. A banda
era espanhola, e a cada duas músicas o baterista se empolgava e jogava asbaquetas para a plateia, de onde tinham que ser resgatadas antes da músicaseguinte.
Thomas sumia toda hora para buscar mais bebidas e Ren ainda não tinhaaparecido. Onde ele estava? E se ele não estivesse na festa? Será que todaaquelacoisadeencontrarovestidonaverdadeeraumamaldição?Sefosse,eupreferiateridoderoupadecorrida.
Finalmente,pedilicença.—Thomas,vouaobanheiro.Jávolto.Elefezumsinaldeokdistraídoeeuabricaminhopelamultidão,dandouma
olhadanafesta.Peloquepudever,Rennãoestavanosalãoprincipal.Nemnaescada da frente nem na entrada. Onde ele tinha se enfiado? Então decidi irmesmo ao banheiro,mas havia uma fila enorme, e eu nãoparava de esticar opescoçoparaprocurar.
Quando chegouminha vez, tranquei a porta ao entrar, depoisme olhei noespelhoesuspirei.Meuvestidoaindaeralindo,maseuestavasuadaesabiaquemeucabelo tramavaummotim.Fizum rabode cavalo, depoisverifiqueimeucelulardenovo.Nada.Ondeeleestava?
Thomasestavameesperandonaportadobanheiro.—Aí está você. Precisamos correr. Todomundo temque ir lá pra fora. É
umagrandesurpresa.Desisti dos sapatos, tirando-os e carregando-os enquanto seguíamos a
multidãoemdireçãoàsportasdos fundos.Quando saímos, tomeiumsusto.Ojardim era do tamanho de um campo de futebol americano, e havia vários
cobertoresbrancoscomasbordas iluminadasporpequenasvelas.Todaaquelacena era enjoativamente romântica.Metade das pessoas ali se deixaria levar ecomeçariaadeclararseuamoreternoumaspelasoutras.
—Thomas,vocênãoviuRenenquantoeuestavanobanheiro,viu?—Não,não,não.—Eleparounopédaescada,colocandoasmãosnosmeus
ombros.—Vamosfazerumpacto.ChegadefalardoRen.Eusóquerofalardevocê.—Elesorriu.—Edemim.Vamos.
Elemepuxou,eeutropeceiumpoucoenquantoatravessávamosogramado.—Aondeestamosindo?—Jáfalei,ésurpresa.Andamos até um cobertor vazio no limite do jardim e Thomas se sentou,
afrouxando a gravata e tirando o paletó. Sua camisa e seu cabelo estavamamarrotadosedesejeipelamilésimavezqueAddieestivessealiparaaproveitartodaaquelabeleza.Oqueeuestavafazendoeraumdesperdício.
—Agora,deitaaqui—disseele.—Oquê?—Deita.—Eledeuumtapinhanocobertor.—Thomas...—Relaxa.Nãovoufazernada.Deitaaquisóumsegundo.Prometoquevou
ficarbemaqui.Euolheiparaeleporummomento,depoismedeiteinocobertor,ajeitandoo
vestidoàminhavolta.—Eagora?—Fechaosolhos.Voudizerquandodeveabri-los.Olheiparaeleesolteioar,semfecharcompletamenteosolhos.Eleprecisava
sertãogato?Aquiloestavacomplicandomuitoaminhavida.Elecomeçouacontardevagar.— Vinte... dezenove... dezoito... — Quando chegou ao “um”, eu estava
deitadaalihaviameioséculo,eabriosolhossobosomdeumaplausocoletivonogramado.
Anossa volta, erguiam-se lanternas brancas de papel iluminadas por velas.Haviacentenasdelas.
Thomassorriuaoverminhaexpressãoperplexa.—Valentinamefalouqueelesiamfazerisso.Legal,nãoé?—Muitolegal.Observamosemsilêncioporumtempo,aslanternasrodopiavamemdireção
àsestrelascomograciosaságuas-vivas.Anoiteestavalindaemágicaeaiii...Euestavatãotristequepoderiaatéchorar.Aliestavaeu,naItália, testemunhandoumacenasaídadeumcontodefadas,esóconseguiapensaremRen.Seráque
eu ia ficar igual aHoward?Comocoraçãopartidopara sempre?Eu teriaquecomprarumskateecomeçarafazermuffinsdeblueberrynomeiodanoite?
—Eudissequevocêiagostar.Tambémvãosoltarfogosmaistarde.Thomas se apoiou em um dos cotovelos, aproximando o rosto do meu.
Lanternas se refletiam em seus olhos, e por um segundo esqueci por que nãoestavaafimdele.Entãomelembrei.
—Thomas,precisodizerumacoisa.—Shh.Vocêpodedizerdepois.Antes que eu pudesse reagir, ele rolou para cima de mim, pressionando a
bocacontra aminhaeme imprensandonochão.Porumsegundo, foi comooNatal, meu aniversário e as férias de verão ao mesmo tempo, aquilo estavaerrado.Eumecontorciparamelivrardeleemesentei.
—Thomas,nãopossofazerisso.—Porquê?Eletambémsesentou,comumaexpressãoconfusa.Deviaseraprimeiravez
quealguémorejeitava.Coitadinho.Balanceiacabeça.—Vocêéincrível.Elindo.Massimplesmentenãoposso.—PorcausadoRen?—É.—Porqueveiocomigosegostadele?—Desculpa.Foihorríveldaminhaparte.Eeudeveriaterfaladoantes.Eleselevantouepegouopaletó,limpandoagramaquegrudaranacalça.—Porsorte,seunamoradinhoestábemali.—Oquê?Eumevirei.Renestavaapoucosmetrosdedistância,decostaspramim.Eu
melevanteiàspressas.—Agentesevê—disseThomas.— Thomas, desculpamesmo!— gritei, mas ele já estava voltando para a
casa.Eurespireifundo,pegueiossapatosemeioquecorriatéRen.Elevestiaum
terno azul-marinho e parecia que alguém precisara segurá-lo para cortar seucabelo.
Toqueisuascostas.—Ren?Elesevirouesentioscacosdomeucoraçãopartidovirarempó.Eleestava
tãolindo!Mastãolindo!—Oi.—Nemmesmoumlevetomdesurpresa.—Euestavatorcendomuitopraencontrarvocêaqui.Podemosconversar?
De repente, Mimi surgiu do meio de um grupo de garotas perto dali. Elausavaumvestidopretojustocomfendasnascostelasedelineadorpreto.Pareciaumtigre.Eununcaviranadatãoaterrorizante.
EladeuobraçoaoRen.—Oi,Lina.ComoestáThomas?—Eleestábem—falei,emvozbaixa.—Ren,vamosvoltarlápradentro.Achoqueabandavairecomeçar.—Ren,possofalarcomvocêumminuto?—pedi.Eleestavacomoolhardistante.—Estoumeioocupado.—Porfavor!Vailevarsóumminuto.Sóprecisofalarumacoisacomvocê.— Ele está ocupado— disseMimi, apertando o braço do Ren commais
força.Eleolhouparaamãodela,depoisparamim.—Ok.Umminuto.—Sério,Ren?—reclamouMimi.—Sóvailevarumsegundo.Jávolto.Elasevirouesaiurebolando.Agarotasabiarebolar.—Oquefoi?—perguntouRencalmamente.—Podemosandarumpouco?Quandochegamosaumcantodo jardim,as lanternas jáhaviamse tornado
pequenospontos no céu, e eu tinha cempor cento de certeza de queRennãohaviaesquecidooqueaconteceraemRoma.Ele iasearrastandoatrásdemimcomoumrobôbem-vestidoeeumesentiacadavezpior.Seráqueiadarcerto?
O jardim tinha vários níveis, e descemos alguns degraus, passando por umcasal que dava uns amassos encostado numa árvore e um grupo de garotoscavalgandobastõesdecríquetecomosefossemjóqueis.Comcertezadaríamosboasgargalhadasaoveraquelascenas.Querdizer,seestivéssemosnumaboa.
Chegamos a um banco de pedra branca, eRen se sentou. Eume sentei aoladodele.
—Quefestaincrível—falei.Eleapenasdeudeombros.Bem,elenãoiafacilitarascoisasparamim.—Acho que vou falar logo.—Minha voz estava falhando.— Eu nunca
conhecininguémcomovocê,Ren.Vocêéinteligente,engraçadoemuitofácildeconviver, e é a única pessoa que conheci depois damorte daminhamãe comquemsintoquenãoprecisoagirdeum jeitoartificial.Eeusintomuito,muitomesmo, peloqueaconteceuemRoma.Aquelebeijonão foi justoporquevocêtem namorada... ou tinha namorada... — Eu olhei para ele, esperando um
esclarecimento,maselenãodissenada.—Enfim.Atéaquelemomento,eunãosabia o que sentia,mas deveria ter falado, em vez de ter pulado em cima devocê.Bom,oqueestoutentandodizeréquegostomuitodevocê.Muito,massenão sentir omesmo pormim, tudo bem, porque você émuito importante pramim,eesperoqueagenteaindapossaseramigo.
Derepente,umasegundarodadadeaplausoscomeçounogramadoehouveumchiadoseguidopeloestourodefogosdeartifíciovermelhosexplodindonocéu.
TeriasidoomomentoperfeitoparaRenmetomarnosbraçosedeclararseuamoreterno.
Sóqueelenãofezisso.Eumeajeitei,desconfortável.Soltarammaisfogosdeartifício,masRennem
olhouparacima.—Seriamuitobomsevocêdissessealgumacoisa.Elebalançouacabeça.—Eunãoseioquevocêquerqueeudiga.Porquenãomecontouantes?E
emRoma,porquedissequenunca tinhapensadoemmimcomomaisqueumamigo?Droga.Eunãodeveriaterfaladoaquilo.—Achoquefoipororgulho.Estavanacaraquevocênãoqueriamebeijar,e
eufiqueimorrendodevergonha.Sóestavatentandoconsertarascoisas.Eleergueuorosto.—Bem,vocêestáerrada.Euqueriamuitobeijarvocê,maspareiporquetive
medo de que você não quisesse fazer aquilo de verdade.ConhecerMatteo foiumaloucura,eeunãoqueriaqueacontecessenadaporquevocêestavapassandoporaltosebaixosnasuavidaemocional.Edepoisvocêdissequenãoqueriatermebeijado.
—Maseuqueria.Éissooqueeuestou...Elemeinterrompeu.—EugosteidaMimipormuitotempo.Porunsdoisanos.Eupensavanelao
tempotodo,equandoascoisasfinalmentecomeçaramaacontecerentrenós,meachei o cara mais sortudo do mundo. Só que aí conheci você e de repentecomeceiaevitarasligaçõesdelaetentarpensaremjeitosdeteconvencerasaircomigo.Então, nanoite emque fomosàSpace, eu ligueipra ela e termineionamoro.Eunão sabia se ia dar certo entre a gente,mas queriamuito ter umachance.
Elebalançouacabeça.—AífomosaRoma.Etudoaquiloaconteceu.Ehoje...—Eleselevantou.
—Por que você acha que pode ficar dando em cima doThomas e depois vir
dizerquegostademim?Um tipo completamente diferente de fogos de artifício explodiu na minha
mente.—PorquevocêachaquepodeficardandoemcimadaMimiedepoisdizer
queestáafimdemim?Eravocêquemtinhanamoradaessetempotodo.—Vocêestácerta.Tinhanamorada.Masterminei.Enãoeraeuqueestava
rolandonochãocomoutrapessoa.Oqueeusoupravocê?SeuplanoB?Eumelevanteiderepente.— Se você estava mesmo prestando atenção, deve ter notado que eu tirei
Thomas de cima demim e disse que gostava de você,mas esquece. Nãomeimportomais.
— Nem eu. Vou voltar pra festa. E é melhor você voltar pro seuacompanhante.
Elesevirouefoiembora.—Stronzo!—gritei.Umfogodeartifícioemformadecoraçãoexplodiuacimadacabeçadele.
Capítulo28
HOWARD LEVOU QUASE uma hora para encontrar a casa de Valentina.Primeiro porque eu não sabia quem ela era, e depois porque eu não encontreininguém que soubesse o endereço. Selma e seu decote biônico tinhamdesaparecido,enãoconseguiacharElena,Marcoouqualqueroutrapessoaqueeuconhecesse.Enfim,conseguifazerocaradaportamedizerondeeuestava,maselenãofalavainglêsmuitobemecontinuavaprotegendoapranchetacomoseeuestivessetentandoenrolá-loparaentrardepenetra.Nofim,entregueimeucelularaele,quedeuoendereçoaHoward.
Quandoocarrodeleparounaentrada, todaa raiva seesvaírademimeeuestava animada como um macarrão mole. Eu me sentia amarrotada. Não,esfarrapada.EquandoentreinocarroHowardnemmeperguntoucomo tinhasido.Eleviunaminhacara.
Jáemcasa,jogueiovestidonochão,coloqueiumacamisetaeumacalçadepijamaedesci.Euestavaprestesacairnochoro,masnãosuportavaaideiadechorarsozinhanoquarto.Denovo.Eutinhacruzadoolimitedopatético.
—Temgelato e chá—disseHowardquandoentrei na cozinha.—Oquevocêprefere?
—Gelato.—Excelenteescolha.Porquenãovaisesentarnasala?Eulevoumatigela
paravocê.—Obrigada.Eumesenteidepernascruzadasnosofá,apoiandoacabeçanaparede.Tinha
passadoanoiteinteiraprocurandoRen,eelemeviujustonomomentoemqueThomasmebeijara.Queazar.Seráqueodestinoestavacontranós?Eeuotinhamesmochamadodestronzo?Eunemsabiaoqueaquilosignificava.
Howardchegoucomduastigelas.—Pegueidoissaboresparavocê:morangoecoco.Desculpepornãotermos
stracciatella.Dá pra ver que esse seria o sabor perfeito para uma noite comoessa.
—Tudobem.Pegueiatigela,equilibrando-anojoelho.—Noitedifícil?— Acho que não vai dar certo com Ren.—Meus olhos se encheram de
lágrimas.—Nemmesmoaamizade.—Aconversadevocêsnãofoiboa?—Não.Naverdade,começamosagritarumcomooutro,eeuoxingueiem
italiano.Oupelomenosachoqueeraumxingamento.—Qualfoi?—Stronzo.Elesesentounapoltronadiantedemim,assentindogravemente.—Podemos nos recuperar de um stronzo. E, lembre-se, ainda não acabou.
Durante anos achei que as coisas estavamcompletamente terminadas com suamãe,masvoltamosanosfalarantesdeelareceberodiagnóstico.
—Émesmo?—Sim.Elamemandouume-mailenoscorrespondemosporquaseumano.
Foi como se tivéssemos retomado bem do ponto onde tínhamos parado. Nãoconversávamossobrenadapesado,eramsóprovocaçõesdivertidas.
—Vocêsseencontraram?—Não.Eladeviasaberque,seeuavissedenovo,iasequestrá-la.Semnem
perguntarnada.—Comoassabinas.—Tenteitomarumacolheradadegelato,massóosenti
deslizarpelalínguaelargueiacolhernatigela.—Vocêsdoisbasicamentetêmahistóriamaistristequeeujáconheci.
—Eunãodiriaisso.Houvemuitacoisaboa.Suspirei.—Então,comoeuesqueçoRen?—Souapiorpessoa aquemvocêdeveperguntar isso.Eumeapaixonei e
nuncamaisfuicapazdeesqueceressapaixão.Mas,sequersaber,valeapena.“Umavidasemamorécomoumanosemverão.”
—Profundo,masestouprontaparaoverãoterminar.Elesorriu.—Dêtempoaotempo.Vaificartudobem.
***
EueHowardficamosacordadosatémuito tarde.Quandoolheiocelular, tinhauma mensagem de duas palavras da Addie (ELES TOPARAM!!!), e eu eHowardpassamosmaisdeumahoradiscutindoospróseoscontrasdeficaremFlorença.Eleatépegouumcadernopautadoefezduascolunas:MOTIVOSPARAFICAR eMOTIVOS PARA IR EMBORA. Eu não acrescentei Ren à lista porque nãoconseguiadecidir emqualcolunaele seencaixava.Vê-lo todososdiascomo
coraçãopartido?Ou ficar comocoraçãopartidoenuncamaisvê-lo?Asduasopçõeserambemtristes.
Finalmente, fuiparaa cama,ondepassei anoiteme revirando.No fimdascontas,existeumarazãoparaaexpressão“cairdeamores”.Porquequandoissoacontece,quandoacontecedeverdade,émesmoumaqueda.Nãoháoquefazer,você simplesmente se joga de cabeça e torce para ter alguém para segurá-lo.Senão,vaiacabarsemachucandofeio.Podeacreditaremmim,eusei.
Devo ter pegado no sono em algum momento, porque lá pelas quatro damanhãacordeiempânico.Algumacoisatinhameacertado?Eumelevanteicomocoraçãodisparado.Ajanelatinhaficadoescancaradacomosempre,eumcéusalpicadodeestrelascintilavasobreacopadasárvoresdocemitério.Apaisagemestavacalmaeimóvelcomoumlago.Nemumaúnicaondulação.
—Foisóumsonho—falei,comavozsupercalmaecontrolada.Avozeraaúnicapartedemimquenãoestavasurtandopelapossibilidadede
algofrioterencostadonaminhaperna.Nãoquefizesseomenorsentido.Balancei a cabeça, puxando as cobertas para voltar a dormir como uma
pessoaracional,masgriteiepuleiunsquinzecentímetros,porquehaviamoedasemtodocanto.Tipo,todocantomesmo.
Estavam espalhadas pelaminha cama e pelo tapete, e algumas até haviamcaídosobreovestido,quecontinuavaamarrotadonochão,largadonomontinhode roupamais tristedomundo.Corri para acendero abajur emeabaixeiparaolhar,tomandoocuidadodenãotocaremnenhumadelas.Quasetodaseramdeumoudoiscentavos,cordecobre,masalgumaseramdevinteoudecinquentacentavos.Haviaatéumamoedadedoiseuros.
Estavachovendodinheironomeuquarto.—Oqueestáacontecendo?—falei,emvozalta.Nessemomento,outramoedavooupelajanelaaberta,meatingindoemcheio
norosto,oquemefezficarnaposiçãodeproteçãoqueeutinhaaprendidonassimulações para terremoto da escola.Mas quandome joguei no chão, eu nãoestavamaisassustada.Sabiaexatamenteoqueestavaacontecendo.
Alguémestavajogandomoedaspelaminhajanela.Eissosópodiasignificarduas coisas: ou que um funcionário do governo italiano estava tentando meavisarqueeutinhaganhadonaloteriaouqueRenestavatentandomeacordar.Deumjeitooudeoutro,minhanoiteacabaradeficarmuitomelhor.
Eumelevanteiecorriparaajanela.Renestavaadoismetrosdaminhacasa,comobraçoprontoparaarremessar
outramoeda.—Cuidado!
Eumejogueinochãooutravez.—Desculpa.Levanteidevagar.OpaletóeagravatadoRenestavamlargadosnagrama,e
eleseguravaumsacodepapelbranconaoutramão.Fiquei tão felizporvê-loquetivevontadedesocá-lo.
Eusei.Sentimentosconflitantes.—Oi—disseele.—Oi.Ficamos nos encarando. Parte de mim queria arremessar o vestido nele e
outrapartequeriasoltarmeucabelodeMedusaparaqueRensubisseporeleatéoquarto.Achoquetudoiadependerdomotivoqueolevaraatéali.
Rentambémpareciaenfrentarumconflitointerno.Eleficouláembaixoporuminstante,inquieto.
—Vocêseincomodadedescer?Espereiexatamentenovedécimosdesegundo,depoispasseiumadaspernas
sobreoparapeitoebaixeiocorpodevagar.Algunsdostijoloseramirregulares,eeuosuseicomoapoioparadescerpelaparededacasa.
—Cuidado—sussurrouRen,estendendoosbraçosparamepegar.Tivequepularno finaldadescidaebatinele,queacaboucaindode forma
constrangedora,enosembolamosnochão.Nósdoisnoslevantamosdepressa,eRen deu um passo para trás, me olhando com uma expressão que eu nãoconseguiaentender.
—Vocêpodiaterusadoaescada—disseele.—Escadassãoparastronzos.Eleabriuumsorriso.—Vocêfoiemboradafesta.—Fui.Derepente,umaluzseacendeunoquartodoHoward.—Howard!—sussurrouRenparamim.Ren parecia um pé-grande que tinha sido surpreendido na floresta. Nunca
superariaaquelaprimeiraconversaentreeleeHoward.—Vem.Peguei a mão dele e corremos para a cerca dos fundos, tentando, sem
sucesso, não tropeçar em cada obstáculo que encontrávamos.Eu esperava quenunca precisássemos levar uma vida de crimes, porque tinha certeza de queseríamosospioresfugitivosdomundo.
—Comcertezaeleouviuagente—ofegouRenquandochegamosaomuro.—Achoquevoltouadormir.Olha.Aluzdoquartoestáapagadadenovo.Mentirinha.OmaisprováveleraqueHowardtivesseentendidooqueestava
acontecendo, semse incomodarcomminha fugaemplenamadrugada.Eleeramesmoomáximo.EumevireiparaolharRen,masestavatãonervosaquenãoconseguiaencará-lo.Omesmopareciaestaracontecendocomele.
—Então,oquevocêqueriafalarcomigo?Elechutouagrama.—Eu, humm, não faleimais cedo,mas você estavamaravilhosa hoje.Era
suaversãodovestido,nãoera?—Era.—Eutambémbaixeiorosto.—Masachoquenãofuncionou.—Não,funcionousim.Podeacreditar.Sabe,lá...nafesta.—Elesoltouum
suspiro.—FiqueimorrendoderaivaquandovivocêcomThomas.Assenti,fazendoomáximoparaignorarafaíscadeesperançanomeupeito.
E...—Eurealmenteprecisomedesculpar.FiqueimuitotristeemRomaquando
você disse que nunca, jamais, jamais, jamaismesmo, tinha pensado em mimcomonadaalémdeumamigo...
—Eusófalei“jamais”duasvezes—protestei.—Tudobem.Nunca,jamais,jamaismesmo.Foicomolevarumtapanacara.
EquandoThomasestáenvolvido,mecomportoquenemumidiota.Eleé tipoumpopstarbritânico.Comocompetir?
Solteiumgemido.—Popstarbritânico?— É. Mas o sotaque é falso. Na verdade, ele cresceu perto de Boston, e
quando ficamuitobêbado, esquece todaapompa inglesae ficaparecendoumdaquelescarasquevemosgritandonosjogosdosRedSoxcomletraspintadasnabarrigacheiadecerveja.
— Isso é horrível. — Respirei fundo. — Sinto muito por ter falado quenunca,jamais,jamaismesmo...
—Jamais—acrescentouRen.—...jamaistinhapensadoemvocêcomonadaalémdeumamigo.Nãoera
verdade.—Pigarreei.—Jamais.Alémdisso,vocênãoéumstronzo.Renabriuumsorrisinhoesperançosoquenamesmahoramecontagioueme
fezsorrirtambém.—Ondevocêaprendeuessapalavra,afinal?—ComMimi.Elebalançouacabeça.—Entãovocêfalousériolá?QuandodissequenãoestavacomThomas?Assenti.—EvocênãoestámaiscomMimi?—Não.Estoucemporcentosolteiro.
—Humm—falei,emeusorrisoseabriuaindamais.Ficamosnosencarandoporumbomtempo,etenhocertezadequetodasas
quatro mil lápides se inclinaram para ouvir o que ia acontecer em seguida.Então... íamossó ficaraliparadosnosolhando?Equantoàquela loucapaixãoitalianaqueestavarolandoentreagente?
Eledeuumpassinhoparaafrente.—Vocêterminoudelerodiário?—Terminei.—Eaí?Solteiumsuspiro.— Acho que eles eram perfeitos um pro outro, mas outras coisas
atrapalharam.EHowardsempresoubequenãoerameupai.Elesóqueriamuitofazerpartedaminhavida.
—Howardéinteligenteeameaçador.Elemeofereceuo sacodepapelbrancoqueestavacarregando todoaquele
tempo.—Oqueéisso?—Umpedidooficialdedesculpas.Depoisquesaídafesta,fuiaFlorençae
comecei a dirigir sem rumo e perguntar às pessoas onde podia encontrar umapadaria secreta.Atéqueumasmulheres que estavam saindodeumaboatemeexplicaramaondeir.FicanaViadelCantoRivolto.Eéincrível.
Abriosacoeummaravilhosocheiroquenteeamanteigadosubiu.Umdoceemformadesemicírculoestavaenroladonumpapelbranco.
—Oqueéisso?—CornettoconNutella.Compreidois,mascomiumnocaminho.Edepois
useiotrocopraacordarvocê.Fiz uma reverência e enfiei amão dentro do saco, depois dei uma grande
mordida no cornetto. Era quente, cremoso e tinha o sabor de tudo de maisperfeito que podia acontecer com uma pessoa. Verões na Itália. Primeirosamores.Chocolate.Deioutramordidaconsiderável.
—Ren?—Sim?—Dapróximavez,porfavor,nãocomaooutrocornetto.Eleriu.— Eu nem sabia se você ia querer falar comigo, mas apostava que se
trouxessealgopracomereuteriaumachance.Dapróximavezquedeixarvocêsozinhanoescurocomoumcompletoidiota,voucomprarumadúzia.
— Uma dúzia no mínimo. — Respirei fundo. Agora que tinha Nutellacorrendonasminhasveias,eumesentiainvencível.—Esóprasuainformação,
euestavafalandosérionacasadaValentina.Édevocêqueeugosto.Talvezsejaatéamor.
—Talvezsejaatéamor,hein?Bem,issoéumaboanotícia,porquetalvezeutambémamevocê.
Sorrimosumparaooutroeumasensaçãoquenteemaliciosaatravessoumeucorpo.ViqueRenestavasentindoamesmacoisa,porquederepenteestávamostão próximos que eu conseguia contar os cílios dele.Me beija, me beija, mebeija.
Eleestreitouosolhos.—AchoquevocêestácomorostosujodeNutella.Solteiumgemido.—Ren,seráquevocêpodemebeijardeuma...Masnãochegueiaterminarafrase,porqueeleseaproximouenosbeijamos.
Tipo,nosbeijamosmesmo.E,nofimdascontas,achoquepasseiavidainteiraesperando para ser beijada por Lorenzo Ferrara num cemitério americano nomeiodaItália.Essaéamaispuraverdade.
Eventualmente nos afastamos. Sabe-se lá como, acabamos deitados debarriga para cima na grama e ficamos ali olhando as estrelas com aquelessorrisos enormes, típicos das manhãs de Natal, sorrisos que deveriam sercafonas,masquenaverdadeeramsóincríveis.
—Porfavor,podemoscontarestecomoonossoprimeirobeijooficial?—O primeiro demuitos— disse ele.—Mas, se não tiver problema pra
você, eu não vou esquecer aquele de Roma também.Até eu ter interrompidotudo de forma tão brusca, aquele beijo foi basicamente amelhor coisa que játinhameacontecido.
—Pramimtambém—falei.Eleficoudelado,seapoiandonumdoscotovelos.—Então...Euandoquerendoperguntarumacoisa.—Oquê?Eletirouocabelodosolhos.—JápensoucomoseriaficaraquinaItália?Devez?Agoraquevocêtemum
namoradoetal?Namorado.Asestrelaspiscaramemêxtase.Eutambémmeapoieinumdoscotovelos.— Eu estava meio que pensando nisso mais cedo. Addie mandou uma
mensagem dizendo que posso morar com ela e a família no próximo ano, eHowardeeupassamosumtempãoconversandosobreisso.
—E?Respireifundo.
—Euvouficar,Lorenzo.Eleofegou.—VocêenrolouoR?JuroquevocêacaboudeenrolaroR.Faladenovo.Sorri.—Lo-ren-zo.Eusoumetadeitaliana,nãoé?PrecisoconseguirenrolaroR.
E,qualé?EudigoquevouficaremFlorençaevocêseanimasóporqueconsigopronunciarseunomedireito?
—Nuncamesentitãoanimadonavida.Sorrimosumpara o outro.Entãome aproximei e o beijei de novo.Porque
agoraissoeraumacoisanossa.—Entãoestámedizendoquenãosógostademim,talvezatémeame,como
tambémquevaificaraquidevez?—Foiexatamenteoqueeudisse.—Estaéoficialmentelanottepiùbelladellamiavita.— Tenho certeza de que eu concordaria com você se entendesse o que
significa.—Logologovocêvaiestarfalandoitaliano.—Eleentrelaçouosdedosnos
meus.—Entãoagoraquenãovamosficarperseguindoosex-namoradosdasuamãe,oquevamosfazer?
Eudeideombros.—Nosapaixonar?— Se for isso eu já queimei a largada. — Ele estendeu o indicador,
encostando-o ao meu e formando um pequeno telhadinho. — Ei, acabei depensarnumacoisa.
—Noquê?—Quandoestamosjuntos,formamosumitalianointeiro.Sorri,olhandoparanossosdedosesentindomeucoraçãoseencherdeamor
tãodepressaquetivequefecharosolhosparaconteraslágrimas.Eleseaproximoudemim.—Ei,oquefoi?Vocêestáchorando?Balanceiacabeça,abrindoosolhosdevagaresorrindoparaele.—Não,nãoénada.Maseraalgumacoisa.EunãoqueriaestragaromomentoexplicandoaRen,
mas de repente eu via aquele momento de fora e não queria que ele nunca,jamais(jamais)terminasse.EusujarameurostodeNutella,emeuprimeiroamorverdadeiro estava deitado ao meu lado, e a qualquer minuto as estrelasdesapareceriam para dar lugar a um novo dia, e pela primeira vez em muitotempo,eumalpodiaesperarparaveroqueessediatraria.
Eaquiloeraimportante.
Agradecimentos
AntesdeAmor&gelato, eu tinhaapenasumavaganoçãodequantaspessoassãonecessáriasparafazerumlivro.Nofimdascontas,émuitagente.Montes.Pilhas. Bandos. Então aqui está minha melhor tentativa de representar essenúmero.
Meuprimeiroagradecimento temque irparameuspais,eemespecialparaminha mãe, Keri DiSera Evans, por me dar a Itália. Aqueles dois anosampliarammeumundoenormementee forampuramagia.Obrigadapornuncaseconformarcomostatusquo.Vocêéminhaheroína.
Obrigadaameupaiinspirador,RichardPaulEvans,quenãoapenasmelevouaoabismodacarreiraliterária,comotambémmeempurrouládecima.Sópossosonharemescrevertantoslivrosoutocartantasvidasquantovocê.Obrigadapornãome deixar desistir. (Obrigada, obrigada, obrigada.) Estou fazendo de tudopararecompensá-locomnetossuperengraçados.
Umobrigadaespecialavocê,meufilho,SamuelLawrenceWelch.RecebianotíciadequeAmor&gelatoseriaumlivrodeverdadepoucosminutosdepoisde você soprar a velinha do seu primeiro bolo de aniversário, e ainda nãoconsigoacreditarquetenhoaoportunidadedevivermeusdoissonhosaomesmotempo.Obrigadaporfazercomqueeuarranjassetempoparabrincardecarrinhoe ler livros bobos.E você está certo: lápis deveriam ser usados para desenhartrenzinhos, não para escrever finais. Eles podem esperar. (Agora, para o Samadulto: você precisava de um sinal de que pode realizar seu maior e maisassustadorsonho?Esteéseusinal.Váemfrente,SammyBean.)
Obrigada aminha eterna amiga/parente/fadamadrinhaLaurie Liss. Eu tivemuita sortede tervocênaminhavida eme sinto aindamais sortudapor tê-lacomo agente. Eu simplesmente não poderia amá-la mais do que já amo.Obrigadaporacreditaremmim.
Obrigada, obrigada a todomundodaSimonPulse, e em especial aminhasbrilhantes editoras Fiona Simpson e Nicole Ellul. Esta história não teriaacontecido sem vocês. Obrigada por se animarem com Lina e Ren e memostraremoqueestavaeoquenãoestavadandocerto(dojeitomaisdelicadopossível) e porme ajudarem a encontrarminha voz. Sinceramente, não tenhocomo agradecer porme ajudarem a escrever um livro que amo. Então apenasobrigada.
ObrigadaaosmeusamigosdaEscolaAmericana InternacionaldeFlorença,
em particular a Ioiana Luncheon, a garota de carne e osso que foi criada nocemitérioamericanodeFlorença.Obviamentepenseimuitoemvocêenassuascorridaspelocemitérioaolongodosanos.Obrigadapelaajudacomastraduçõeseaverificaçãodos fatos.Você foimaravilhosa. (E tambémpeçodesculpasaoatual administradordocemitérioamericanodeFlorença.Fiqueiumpouquinhoempolgadademaiscomminhavisitaenãotiveaintençãodecausarproblemasnematrapalharojantardasuafamília.Todavezquepensonisso,sintovontadedemorrer.)
Umagradecimento de coração ao garoto de quatorze anos queme chamoupara sair enquanto eu estava trabalhando no livro na Millcreek Library. Euestavacomdificuldadeparaescrevernaquelediaevocêmudoutudo.Alémdomais, perdoo você por gritar “Ela é VEEELHA!” para seus amigos. Tenhocertezadequevocênãofezpormal.
Deixei omelhor para o final, obrigada a você,DavidThomasWelch,meumarido. Você é extremamente talentoso, gentil e forte e me apoiou muito.Obrigada por acreditar que eu ia conseguirmesmo quando eu não acreditava.Obrigada por todo o peso extra que carregou para me permitir realizar meusonho.ObrigadaporescutartodasasdireçõesmalucasqueahistóriapoderiatertomadoeporpermitirqueLinaeRenmorassemnanossacasacomosefossempessoas de verdade. (E eles são, não é?) Mas, sobretudo, obrigada por meescolher.Emdezembro faz trezeanosque senteino seucarroe criei coragemparadizer:“Humm,oi.Vocêquer ficarmaisumpouco?”Ficomuito felizporvocêteraceitado.
Sobreaautora
©MaggieHerbst/EchoPhotography
JennaEvansWelchpassoupartedaadolescênciaemFlorença,ondepasseavadescooter,dançavaemchafarizesetomavamaisgelatodoquedeveria.HojemoraemSaltLakeCity,nosEstadosUnidos,comomaridoeofilho.
Leiatambém
GeekerelaAshleyPoston
ApenasumagarotaMeredithRusso
FantasmaJasonReynolds
Os27crushesdeMollyBeckyAlbertalli