dados de copyright · 2. o valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. a teoria do valor...

438

Upload: others

Post on 03-Aug-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da
Page 2: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.orgouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

Page 3: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

SobreOslimitesdocapitalLedaPaulani

Aprimeira ediçãodeOs limitesdocapital apareceu em inglês em1982.Ali, premonitoriamente,David Harvey tratou de temas que, uma década depois, migrariam para o centro da arena, ondepermanecem até hoje. Por mais que a crise dos anos 1970 estivesse então presente em todas asespeculaçõessobreofuturodosistemacapitalista,nãoerademodoalgumevidentequeoprocessodeacumulaçãotomariaorumodopredomínioinexoráveldafinança,tampoucoqueocaráterrentistadesseprocessoserevelariacadavezmaisforte.

Assim, por exemplo, muito antes que a palavra globalização entrasse de vez para o léxico dasteorizaçõessobreofuturodaeconomiamundial,Harveysepreocupavacomastransformaçõesespaciaise territoriais engendradas pela força da acumulação capitalista, bem como antevia a importância daintervençãoneoliberaldoEstadonessesprocessos.Muitoantesqueafinanceirizaçãodequasetudosetornasseanorma,HarveydedicavapraticamenteumacentenadepáginasaoresgatedaseçãoVdoLivroIIId’Ocapital,istoé,osdezesseiscapítulosdedicadosaocapitalportadordejuroseconsideradosporEngels a parte mais complexa da obra magna de Marx. Muito antes que se tornasse claro que osmovimentosderentseekingganhariamcadavezmaisimportânciafrenteàdinâmicausualdeapropriaçãodoexcedente,Harveyindicavaoprocessoimperativoqueviriaatransformaraterraemumcampoabertoàcirculaçãodocapitalfinanceiro.

Suaformaçãodegeógrafofezcomquevoltassesuaatençãonãoapenasparaasquestõesdotempo,cruciaisquandoseentendequeocapitaléummovimento (omovimentodevalorização),mas tambémparaasquestõesdoespaço,àsquaisoseconomistassão,emgeral,cegos.Emsíntese,Harveyiniciou,ainda no começo dos anos 1980, a investigação sobre como se articulam e como funcionamconjuntamente os diferentes modos de apropriação e de exploração, o sistema financeiro, ocomportamentorentistaeosdesenvolvimentosespaciaisdesiguaisnumadinâmicaque,hoje,éocoraçãodo processo de acumulação. O resultado, assentado em sua enorme capacidade de interpretar edesenvolver o legado deMarx, é uma obra extremamente atual, apesar de seus mais de trinta anos.Constitui,assim,leituraobrigatórianãosóparaaquelesquebuscamumacompreensãomenossuperficialdaetapaavançadadocapitalismo,hojeemcurso,comotambémparaosquecontinuamaacreditarqueaHistórianãochegouaseufim.

Page 4: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

SobreOslimitesdocapitalFredricJameson

Devo registrar minha dívida comOs limites do capital, de David Harvey, não apenas uma dastentativasmais lúcidasebem-sucedidasdedelinearopensamentoeconômicomarxiano,mastambémaúnicaaenfrentaroproblemaespinhosodarendafundiáriaemMarx,cujaprópriaanálisefoiinterrompidapor sua morte. Segundo a revisão e reteorização magistrais de Harvey (que nos oferece uma versãoplausível do esquemamais complicado queMarx poderia ter elaborado, tivesse ele vivido), a rendafundiária e o valor da terra são essenciais para a dinâmica do capitalismo,mas também a origemdealgumasdesuascontradições.

Page 5: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Sobreoautor

DavidHarveyégeógrafobritânico,professordeantropologianapós-graduaçãodaUniversidadedaCidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) e ex-professor de geografia nasuniversidades JohnsHopkins eOxford. Seu curso sobreO capital deMarx já tevemais de 300milacessosdesdequefoidisponibilizadonositedaCuny,em2008.Autordediversoslivros,lançoupelaBoitempoO enigma do capital, em 2011,Para entender O capital (Livro I), em 2013, e em brevepublicaráParaentenderOcapital(LivroII).

Page 6: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da
Page 7: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Sumário

Introduçãoàediçãoinglesade2006

Introdução

1.Mercadorias,valoreserelaçõesdeclassei.Valoresdeuso,valoresdetrocaevalores1.Valoresdeuso2.Ovalordetroca,odinheiroeosistemadepreços3.Ateoriadovalor4.Ateoriadomais-valorII.Relaçõesdeclasseeoprincípiocapitalistadaacumulação1.Opapeldeclassedocapitalistaeoimperativoparaacumular2.Asimplicaçõesparaotrabalhadordaacumulaçãoporpartedocapitalista3.Aclasse,ovaloreacontradiçãodaleicapitalistadaacumulaçãoApêndice:Ateoriadovalor

2.ProduçãoedistribuiçãoI.Aparceladecapitalvariávelnoprodutosocialtotal,ovalordaforçadetrabalhoeadeterminaçãodataxasalarial1.Osaláriodesubsistência2.Ofertaedemandaparaaforçadetrabalho3.Lutadeclassescomrelaçãoàtaxasalarial4.OprocessodeacumulaçãoeovalordaforçadetrabalhoII.AreduçãodotrabalhoespecializadoaotrabalhosimplesIII.Adistribuiçãodomais-valoreatransformaçãodosvaloresempreçosdeproduçãoIV.Juro,rendaelucrosobreocapitalmercantil1.Ocapital-mercadoria2.Ocapitalmonetárioeosjuros3.Rendasobreaterra4.Relaçõesdedistribuiçãoerelaçõesdeclassenaperspectivahistórica

3.Produçãoeconsumo,demandaeofertaerealizaçãodomais-valorI.Produçãoeconsumo,demandaeofertaeacríticaàLeideSay

Page 8: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

II.Aproduçãoearealizaçãodomais-valor1.Aestruturadetempoeoscustosdarealização2.OsproblemasestruturaisdarealizaçãoIII.Oproblemadademandaefetivaeacontradiçãoentreasrelaçõesdedistribuiçãoeascondiçõesderealizaçãodomais-valor

4.Mudançatecnológica,processodetrabalhoecomposiçãodevalordocapitalI.AprodutividadedotrabalhonocapitalismoII.OprocessodetrabalhoIII.AsfontesdamudançatecnológicanocapitalismoIV.Ascomposiçõestécnicas,orgânicasedevalordocapitalV.Mudançatecnológicaeacumulação

5.Aorganizaçãomutantedaproduçãocapitalista

6.AdinâmicadaacumulaçãoI.Aproduçãodomais-valorealeigeraldaacumulaçãocapitalistaII.AacumulaçãomedianteareproduçãoexpandidaIII.Ataxadecrescentedelucroesuasinfluênciasmitigadoras

7.Superacumulação,desvalorizaçãoeo“primeirorecorte”nateoriadacriseI.AsuperacumulaçãoeadesvalorizaçãodocapitalII.A“desvalorizaçãoconstante”docapitalqueresultadaprodutividadecrescentedamãodeobraIII.Adesvalorizaçãoduranteascrises

8.CapitalfixoI.AcirculaçãodocapitalfixoII.AsrelaçõesentreocapitalfixoeocapitalcirculanteIII.Algumasformasespeciaisdacirculaçãodocapitalfixo1.Ocapitalfixodelargaescalaegrandedurabilidade2.Ocapitalfixodotipo“autônomo”IV.OsbensdeconsumoV.Oambienteconstruídoparaaprodução,atrocaeoconsumoVI.Ocapitalfixo,osbensdeconsumoeaacumulaçãodecapital

9.Dinheiro,créditoefinançasI.DinheiroemercadoriasII.AtransformaçãododinheiroemcapitalIII.JurosIV.Acirculaçãodocapitalquerendejuroseasfunçõesdosistemadecrédito1.Amobilizaçãododinheirocomocapital2.Reduçõesnocustoenotempodecirculação3.Acirculaçãodocapitalfixoeacriaçãodosbensdeconsumo4.Capitalfictício5.Aequalizaçãodataxadelucro6.AcentralizaçãodocapitalV.Osistemadecrédito:instrumentalidadeseinstituições

Page 9: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

1.Osprincípiosgeraisdamediaçãofinanceira:acirculaçãodocapitaleacirculaçãodasreceitas2.Associedadesanônimaseosmercadosparaocapitalfictício3.Osistemabancário4.Instituiçõesestatais

10.OcapitalfinanceiroesuascontradiçõesI.OsistemadecréditosegundoMarxII.OcapitalfinanceirosegundoLenineHilferdingIII.AcontradiçãoentreosistemafinanceiroesuabasemonetáriaIV.AtaxadejuroseaacumulaçãoV.Ociclodaacumulação1.Estagnação2.Recuperação3.Expansãobaseadanocrédito4.Febreespeculativa5.OcrashVI.ApolíticadaadministraçãododinheiroVII.AinflaçãocomoumaformadedesvalorizaçãoVIII.Ocapitalfinanceiroesuascontradições1.Ocapitalfinanceirocomouma“classe”definancistasecapitalistasmonetários2.Ocapitalfinanceirocomoaunidadedocapitalbancárioeindustrial3.OcapitalfinanceiroeoEstadoIX.O“segundorecorte”nateoriadacrise:arelaçãoentreaprodução,odinheiroeasfinanças

11.AteoriadarendaI.Ovalordeusodaterra1.Aterracomoabaseparaareproduçãoeaextração2.Espaço,lugarelocalização3.Localização,fertilidadeepreçosdaproduçãoII.PropriedadedaterraIII.Asformasderenda1.Rendamonopolista2.Rendaabsoluta3.RendadiferencialIV.Opapelcontraditóriodarendafundiáriaedapropriedadedaterranomododeproduçãocapitalista1.Aseparaçãodotrabalhadorbraçaldaterracomomeiodeprodução2.Apossedeterraeoprincípiodapropriedadeprivada3.ApropriedadedaterraeofluxodecapitalV.RelaçõesdedistribuiçãoelutadeclassesentreoproprietáriodaterraeocapitalistaVI.Omercadofundiárioeocapitalfictício

12.Aproduçãodasconfiguraçõesespaciais:asmobilidadesdocapitaledotrabalhoI.AsrelaçõesdetransporteeamobilidadedocapitalcomomercadoriaII.AmobilidadedocapitalvariáveledaforçadetrabalhoIII.AmobilidadedocapitalmonetárioIV.Alocalizaçãodosprocessosdeprodução1.Atecnologiaversusalocalizaçãocomofontesdemais-valorrelativo2.Otempoderotaçãodocapitalnaprodução:ainérciageográficaetemporaleoproblemadadesvalorizaçãoV.AconfiguraçãoespacialdosambientesconstruídosVI.Aterritorialidadedasinfraestruturassociais

Page 10: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

VII.Asmobilidadesdocapitaledotrabalhoconsideradascomoumtodo1.Complementaridade2.Contradiçõeseconflito

13.Crisenaeconomiaespacialdocapitalismo:adialéticadoimperialismoI.DesenvolvimentogeográficodesigualII.ConcentraçãoedispersãogeográficasIII.AregionalizaçãodalutadeclasseseentrefacçõesIV.ArranjoshierárquicoseainternacionalizaçãodocapitalV.O“terceirorecorte”nateoriadacrise:aspectosgeográficos1.Desvalorizaçãoparticular,individualeespecíficadolocal2.Aformaçãodacrisedentrodasregiões3.Crisescíclicas4.CriaçãodenovosarranjosparacoordenaraintegraçãoespacialeodesenvolvimentogeográficodesigualVI.Aconstruçãodascrisesglobais1.Mercadosexternosesubconsumo2.Aexportaçãodecapitalparaaprodução3.Aexpansãodoproletariadoeaacumulaçãoprimitiva4.AexportaçãodadesvalorizaçãoVII.ImperialismoVIII.Rivalidadesinterimperialistas:aguerraglobalcomoumaformadedesvalorização

Epílogo

Referênciasbibliográficas

Índiceonomástico

Índiceremissivo

E-booksdaBoitempoEditorial

Page 11: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Introduçãoàediçãoinglesade2006

Oslimitesdocapitalfoiescritoemumatentativadetornaropensamentopolítico-econômicodeMarxmaisacessívelemais relevanteparaosproblemasespecíficosdaépoca.Omomentoeraadécadade1970, quando palavras como “globalização”, “derivativos financeiros” e “fundos hedge” não faziampartedonossovocabulário,quandooeuroeorganizaçõescomoaOrganizaçãoMundialdoComércio(OMC)eoTratadoNorte-AmericanodeLivreComércio(Nafta)erammerosdevaneios,equandoamãode obra organizada e os partidos políticos substantivamente (em oposição a nominalmente) aindainfluenciavam a política dentro da estrutura aparentemente sólida de determinados Estados-nação.OslimitesdocapitalfoiescritoantesdeThatchereReaganassumiremopoder,antesdeaChinacomeçarsua impressionante onda de desenvolvimento capitalista, antes que a finalização de tudo parecessenormal,antesqueaterceirizaçãoeamobilidadedocapitalglobalcomeçassemadesafiarseriamenteospoderessoberanosdosEstados-naçãopararegulamentaralgunsaspectosdeseusprópriosnegócios.Foiescritoquandooassaltodaclassecapitalistacontraopoderdaclassetrabalhadora,oEstadodebem-estar social e todas as formas de regulação do Estado eram incipientes e fragmentados, em vez deconsumados e amplamente difundidos. Foi também escrito bem antes do fim da Guerra Fria, da“mercadização”dasantigaseconomiascomunistas,dodescréditogeraldocomunismoedadisseminadarejeição das teorias keynesianas do intervencionismo do Estado social-democrático. Foi, em suma,escritoantesqueacontrarrevoluçãoneoliberalhouvesseseconsolidado.

No entanto,Os limites do capital se revelou um texto presciente. Em alguns aspectos, é atémaisrelevanteagoraporquedescreveumamaneirateóricadeseenfrentarascontradiçõesinerentesàmaneiracomo funciona o capitalismo neoliberal. Sua relevância contemporânea surge por várias razões. Emprimeiro lugar, asprincipais obrasdeMarxna economiapolítica assumema formadeumacríticadateorialiberalclássica(AdamSmitheRicardoemparticular).Ométodocríticoseaplicaigualmenteaumneoliberalismode livremercadoquederiva sobretudodo liberalismodoséculoXVIII,modificadodeacordocomospreceitosdaeconomianeoclássica(queabandonouateoriadovalor-trabalhoemfavordeprincípiosmarginalistas,pavimentandoocaminhopara infinitaselaboraçõesda teoriasobreamaneiracomoosmercadosatuam).OaparatocríticodeMarxémuitomaisaplicávelaoneoliberalismodoquefoiao“liberalismoincorporado”eaokeynesianismoquedominaramomundocapitalistaavançadoatémeadosdadécadade1970.

Page 12: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Umasegundarazãosurgiudemaneiramaisfortuita.Paraentenderosprocessosurbanosqueeramnaépoca o enfoque imediato do meu interesse, eu precisava expandir algumas das categorias nãoplenamente desenvolvidas deMarx.O capital fixo (particularmente aquele incorporadonos ambientesconstruídos),asfinanças,ocrédito,arenda,asrelaçõesdeespaçoeosgastosestatais,tudoissotinhadeser reunido de maneira a se compreender melhor os processos urbanos, o setor imobiliário e osdesenvolvimentos geográficos desiguais.O aparato teórico que emergiu disso era bem adequado paraconfrontar as mudanças gerais e dramáticas que ocorreram subsequentemente. Como se constatou, euhaviaconstruídoumabaseteóricarobustaparaaexploraçãocríticadoquepoderiaconsistirumprocessodeglobalizaçãolideradopelasfinanças.Oslimitesdocapitalera–econtinuasendo–oúnicotextoqueeuconheçoqueprocuraintegrarosaspectosfinanceiro(temporal)egeográfico(globaleespacial)comaacumulaçãodentrodaestruturageraldoargumentodeMarxdeumamaneiramaisholísticaedialéticadoquesegmentadaeanalítica.Eleproporcionaumvínculosistemáticoentreateoriadebase(paraaqualhámuitasexposiçõesexcelenteseconcorrentes)eaexpressãodessasforçasnolocal.

Uma terceira razão é diretamente política. A década de 1970 foi tumultuada. A crise global deacumulaçãodocapitalqueentãoseaclaravaeraapiordesdeosanos1930.O forte intervencionismoestatalquehaviaprevalecidonamaioriadospaísescapitalistasavançadosapós1945equegeroualtosíndicesdecrescimentoenfrentavadificuldades.OembargodopetróleosubsequenteàguerraentreIsraele os países árabes em 1973 mascarou o início da recessão e levantou o problema de como ospetrodólaresquefluíamparaosEstadosdoGolfoseriamrecicladosparaaeconomiaglobalmedianteosistemafinanceiro.Ovalordapropriedadedespencavanomundotodo,eocolapsosimultâneodeváriasinstituiçõesfinanceirasnoiníciode1973,associadoaoemaranhadodosarranjosfinanceirosdosistemainternacionalBrettonWoods, criouproblemascomplicados.Adesregulação financeira e a austeridadeorçamentáriajáestavamsendoespeculadascomosoluções(particularmentenosEstadosUnidos,comumeventourbano–adisciplinafiscaldacidadedeNovaYorkem1975–liderandoocaminho).OReinoUnidofoidisciplinadopeloFundoMonetárioInternacionalem1975-1976,eoChilesetornouneoliberalnaesteiradogolpedePinochetcontraAllende,em1973.Ainquietaçãodaclassetrabalhadoracresciaem todaparte emovimentospolíticosde esquerdaganhavam terreno tantonaEuropacomoemmuitasáreas domundo em desenvolvimento. Atémesmo nos EstadosUnidos a combinação dosmovimentosantiguerra,dosdireitoscivisedeestudantesdesafiavaosistemapolítico,ameaçandoaselitespolítico-econômicas e a legitimidade corporativa e estatal. Havia, em resumo, uma crise generalizada deacumulaçãodocapital,associadaaumsériodesafioaopoderdaclassecapitalista.

As soluções que emergiram vitoriosas (emboramuito desigualmente) das confusões da década de1970estavamamplamenteassociadasàs linhasneoliberais,ouaochamado“livremercado”,emqueocapital financeiro(empartedevidoaoproblemadopetrodólar)preponderava.Essavitórianãoeradeforma alguma inevitável e, como agora se torna cada vezmais claro, não ocorreu sem suas própriascontradições e instabilidades internas, tanto políticas quanto econômicas. Mas uma consequência daneoliberalização temsidoaltamenteprevisível.NoLivro Id’Ocapital,Marxmostraquequantomaisuma sociedade se adapta a uma economia desregulada, de livremercado,mais a assimetria de poderentre aqueles que controlam e aqueles excluídos do controle dos meios de produção produzirá uma“acumulaçãoderiquezanumpolo”euma“acumulaçãodemiséria,osuplíciodotrabalho,aescravidão,aignorância, a brutalização e a degradaçãomoral nopolooposto”[1]. Três décadas de neoliberalizaçãoproduziram precisamente esse resultado desigual. Um argumento plausível pode ser construído, comoprocureimostraremOneoliberalismo:históriaeimplicações,dequeasprincipais facçõesdaclasse

Page 13: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capitalistafizeramissodesdeoiníciodaagendaneoliberalizadora.Aelitedaclassecapitalistaemergiudotumultodadécadade1970,restaurando,consolidandoe,emalgunscasos,reconstituindooseupodernomundotodo.

Essa guinada política – a restauração e reconstituição do poder de classe – é tão importante quemerece alguns comentáriosmaisdetalhados.Opoderde classe é, emsi, evasivopor seruma relaçãosocial que se esquiva da avaliação direta.Mas uma condição visível e necessária (embora demodoalgumsuficiente)paraoseuexercícioéaacumulaçãoderendaeriquezaempoucasmãos.Aexistênciadessasacumulaçõeseconcentrações jáse fazianotarnosrelatóriosdasNaçõesUnidasemmeadosdadécadade1990.Comprovou-seentãoqueopatrimôniolíquidodas358pessoasmaisricasdomundoera“igualàrendacombinadade45%daspessoasmaispobresdomundo–2,3bilhõesdepessoas”.As200pessoasmaisricasdomundo“maisqueduplicaramseupatrimôniolíquidonosquatroanosaté1998paramaisde1 trilhãodedólares”,demodoque“osbensdos trêsmaioresbilionáriosdomundosomavammais que o Produto Nacional Bruto (PNB) de todos os países menos desenvolvidos e de seus 600milhões de pessoas”. Tais tendências se aceleraram, embora de modo desigual. A parcela da rendanacionalapropriadapor1%daelitedealtarendadosEstadosUnidosmaisqueduplicouentre1980e2000,enquantomaisquetriplicouaparcelado0,1%daelite.“Arendadopercentil99aumentou87%”entre1972e2001,enquantoado“percentil99,9aumentou497%”.Em1985,ariquezacombinadadas400 pessoas mais ricas dos Estados Unidos, apresentada na revistaForbes, “era de 238 bilhões dedólares”, com “umpatrimônio líquidomédio de 600milhões de dólares”, ajustado pela inflação.Em2005, seupatrimônio líquidomédioerade2,8bilhõesdedólarese seusbenscoletivosatingiam1,13trilhãodedólares–“maisqueoProdutoInternoBrutodoCanadá”.Grandepartedessaguinadasedeuapartirdastaxasrapidamentecrescentesdaremuneraçãodosexecutivos.“Em1980,umdiretor-executivoganhavaemmédia1,6milhãoporano,emdólaresdehoje”,mas,em2004,esseganhoseelevoupara7,6milhões. As políticas fiscais do governo Bush aumentaram escandalosamente essas disparidades. Amaiorpartedosbenefíciosdas reduçõesdos impostosvaiparao1%daspessoasdemaior rendaealegislaçãotributáriamaisrecenteconcedeumabatimentofiscaldeaproximadamente“20dólaresàquelesqueestãonocentrodadistribuiçãodarenda”,aopassoque“o0,1%daspessoascommaiorrenda,cujarendamédiaéde5,3milhõesdedólares,economizariaemmédia82.415dólares”[2].

EssastendênciasnãoserestringemaosEstadosUnidos.Semprequepossível,aspolíticasneoliberaisconsolidaram–comdispersãogeográficamuitodesigual–disparidadesmaciçasnarendaenariquezaque delas resultam. Na onda de privatizações e reestruturação econômica noMéxico após 1988, 24bilionáriosmexicanosapareceramnalistadaspessoasmaisricasdomundo,naForbes,em1994,comCarlos Slim classificado em 24o lugar. Em 2005, oMéxico, com toda a sua pobreza, declaroumaisbilionários do que a Arábia Saudita. Poucos anos depois da “terapia de choque” das reformas demercado na Rússia, sete oligarcas controlavam quase metade da economia. Explosões similares nadesigualdade foram registradas no Leste Europeu e na Europa central, na esteira das reformas demercado. Embora seja extremamente difícil obter dados firmes e conclusivos, há na China sinaisabundantesdaacumulaçãodeimensasfortunasprivadasdesde1980(sobretudonodesenvolvimentodosetorimobiliário).AsreformasneoliberaisdeMargaretThatchernaGrã-Bretanhacontribuíramparaqueo1%daspessoascommaisaltarendaduplicassesuaparceladarendanacionalem2000.Oschamados“Estadosemdesenvolvimento”dolesteesudestedaÁsia,queinicialmenteconseguiam(comoaCoreiadoSul)combinarumfortecrescimentocomumarazoávelequidadededistribuição,experimentaramumaumentode45%nadesigualdadedesde1990,principalmentedepoisdoferozataquefinanceiroàssuas

Page 14: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

economiasem1997-1998.Asvastas fortunasdealgunsnegociantes influentesna Indonésia escaparamincólumesdotraumaquedeixoucercade15milhõesdeindonésiosdesempregados.

Nesseínterim,aforçadetrabalhoglobalficousobintensapressão.Relatosprovenientesdomundotodo em meados da década de 1990 descreviam as condições desesperadas dos trabalhadores, porexemplo,dasfábricasdaNikenoVietnã,daGapemElSalvadoredoramodevestuárioemDacca.Umaimportante personalidade da televisão norte-americana,KathyLeeGifford, amante das crianças, ficouescandalizadaaosaberquealinhaderoupasqueelaestavavendendopeloWalmarteraconfeccionadapor crianças de treze anos em Honduras, mediante uma remuneração irrisória, ou por mulheresexploradas em Nova York que não eram pagas havia meses (para seu crédito, ela então se uniu àcampanha contra o trabalho forçado em condições sub-humanas). Escândalos denunciando o trabalhoinfantilnoPaquistãonafabricaçãodetapetesebolasdefuteboltornaram-selugar-comumnamídia,eacomissão de 30milhões de dólares paga aMichael Jordan pela Nike foi contraposta aos relatos daimprensasobreascondiçõespavorosasdostrabalhadoresdaNikenaIndonésiaenoVietnã.Emépocasmaisrecentes,emergiramrelatosprofundamenteperturbadoressobreascondiçõesepráticasdetrabalhona China, quando os trabalhadores deixaram o trabalho nas áreas rurais e se transferiram para asflorescentes cidades industrializadas[3]. Importantes meios de comunicação têm documentadoabundantemente as condições e práticas de trabalho que poderiam ser inseridas no capítulo deMarxsobre“Ajornadadetrabalho”emOcapitalsemqueninguémpercebesse.Constaquecercadeumbilhãodepessoasestálutandoparasobrevivercommenosdeumdólarpordia,edoisbilhõescomdoisdólarespor dia, enquanto os ricos estão acumulando fortunas em todo o globo com uma velocidadeimpressionante.

Porque,então,omundonãoirrompeuemumarevoltarevolucionáriacontraarestauraçãocapitalista,suascrescentesdesigualdadesesuaausênciadepreocupaçãocomajustiçadistributiva?Empaísescomoa China e a Índia, a agitação extremamente fragmentada e às vezes supostamente revolucionária éperceptívelemtodaparte.NaAméricaLatina,arevoltacontraoneoliberalismoassumiuumafeiçãomaispopulista do que mais diretamente socialista, e, até agora, líderes como Chávez impediram golpesmilitares,apoiadospelosEstadosUnidos,dotipodaquelequematouAllendenoChile.Protestosderuana França fizeram o governo anular a legislação que iria neoliberalizar mais ainda os mercados detrabalho.Ummovimentodejustiçasocial temvindoà tona,maisespetacularmentenasruasdeSeattle,Gênova, Quebec, Bangkok e Melbourne, e está agora mais coerentemente representado pelo FórumSocialMundialesuasinúmerasramificaçõesregionais.Hojeemdiamuitosacreditamque“outromundoépossível”.Mashámuitopoucoacordoemrelaçãoacomopoderiaseressemundo,eos tradicionaisideais socialistas são minoria, enquanto os movimentos sociais articulados pelas instituições dasociedadecivil(comasONGsnaliderança)semovemparaumaposiçãodevanguarda,insistindoqueasredes,enãoashierarquias,devemseraprincipalformaorganizacional.Tambémnãoháumacordogeralsobreosprincipaisproblemasqueprecisamsertratados.

Asdificuldadessãoemparteideológicas.Aaceitaçãodisseminadadosbenefíciosaserematingidospeloindividualismoeasliberdadesqueumlivremercadosupostamenteconfere,assimcomoaaceitaçãoda responsabilidade pessoal pelo próprio bem-estar, constituem, em conjunto, uma séria barreiraideológicaparaacriaçãodesolidariedadesnaslutas.Elasapontamparamodosdeoposiçãobaseadosnosdireitoshumanoseemassociaçõesvoluntárias (comoasONGs),emdetrimentodesolidariedadessociais,partidospolíticoseatomadadopoderestatal.Porisso,háumapercepçãodequetodostemosdeser neoliberais. Mas as formas mais tradicionais de luta são difíceis de articular, dada a incrível

Page 15: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

volatilidadedocapitalismocontemporâneo,aevidentediminuiçãodasoberaniadosEstadosindividuaissobresuasquestõeseconômicasearedefiniçãodaaçãodoEstadoemtornodanecessidadedecultivarum bom clima de negócios para atrair o investimento. Por isso, é cada vezmais difícil identificar oinimigoeondeeleestá.Eventoslongínquos,porexemplo,naChinaouemBangalore(sevocêvivenosEstados Unidos ou na Grã-Bretanha) ou emWashington (se você vive em Xangai, Buenos Aires ouJoanesburgo)comfrequênciatêmramificaçõeslocaisdegrandealcance.Eofatodeosucesso,medidoapartir da forte acumulação do capital e até mesmo da redução da pobreza, ser atingido em algummomentoemalgumlugar(comoTaiwan,BaváriaouBangalore)ouemalgumsetor(comoainformática)mascaraofatodequeoneoliberalismonãoestáconseguindoestimularaacumulaçãoagregada,quedirámelhorarobem-estarsocialagregado.

Masaneoliberalizaçãoéumenormesucessodopontodevistadasclassesmaisaltas.Eladevolveuopoder de classe às elites governantes (comonosEstadosUnidos e naGrã-Bretanha), criou condiçõespara a consolidação da classe capitalista (como no México, na Índia e na África do Sul) ou abriucaminhoparaaformaçãodaclassecapitalista(comonaChinaenaRússia).Comamídiadominadapelosinteressesdaclassealta, foipossívelpropagaromitodequeosestados fracassarameconomicamenteporquenão foramcompetitivos, ou seja, não foramsuficientementeneoliberais.Adesigualdade socialaumentadadentrodeum território foi construídacomonecessáriaparaencorajaro riscoea inovaçãoempresariais, que conferiam poder competitivo e estimularam o crescimento. Ao que consta, se ascondições entre as classes inferiores se deterioraram foi porque elas falharam, em geral por razõespessoais ou culturais, emmelhorar seupróprio capital humano (pormeiodadedicação à educação, àéticadetrabalhoprotestante,àsubmissãoàdisciplinadotrabalho).Seguindooraciocínio,osproblemasquesurgiramnaIndonésia,naArgentinaouemqualqueroutrolugarforamespecíficos,devidosàfaltadeforçacompetitivaouafalhaspessoais,culturaisoupolíticas.Nummundoneoliberaldarwinianosóosmaisaptospoderãoeirãosobreviver.

Noentanto,amaciçacrisefinanceiraedadívidaqueprimeiroesmagouolesteeosudestedaÁsiaem1997-1998edepoissedisseminouportodolugar, incluindoaRússia(1998)eaArgentina(2001),levou alguns a argumentar que os capitalistas também eram vulneráveis (os poderosos chaebols daCoreiadoSulforamàfalência),eque,dopontodevistadostrabalhadores,empregosdegradanteserammelhoresdoquenenhumemprego.Aexplosãoda“bolhaespeculativa”domercadodeaçõesnofimdadécadade1990,ocomeçodarecessãoem2001,o11deSetembroeoiníciodeumaguerraimperialistacontra o Iraquemascararam com sucesso o fato de que as concentrações de riqueza e renda estavamprogredindoemvelocidaderápida.Estava-seganhandodinheiroeopoderdeclasseseconsolidava,nãosóapesarde,mastambémporcausadascrisesfinanceirasedeumaguerraimperialista.

Mas o neoliberalismo se mantém profundamente fragmentado em virtude de suas contradiçõesinternas. Há, portanto, uma necessidade gritante de uma análise dessas contradições, o que requer aaplicação de instrumentos teóricos robustos, como aqueles preconizados por Marx. A tarefa não éregurgitarostextosdeMarx,masestendê-los,revisá-loseadaptá-losdemaneiraquepossamlidarcomas complexidades da nossa época.O próprioMarx entendia claramente que haviamuito a fazer.NosGrundrisse,porexemplo,eledelineouosdiferentes“momentos”queprecisavamserintegradosnateoriageraldocapital:

1)asdeterminaçõesuniversaisabstratas,que,poressarazão,correspondemmaisoumenosatodasasformasdesociedade[…].2)Ascategorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais. Capital,trabalhoassalariado,propriedadefundiária.Assuasrelaçõesrecíprocas.Cidadeecampo.Astrêsgrandesclassessociais.Atrocaentre

Page 16: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

elas. Circulação. Sistema de crédito (privado). 3) Síntese da sociedade burguesa na forma do Estado. Considerada em relação a simesma. As classes “improdutivas”. Impostos. Dívida pública. Crédito público. A população. As colônias. Emigração. 4) Relaçãointernacional da produção. Divisão internacional do trabalho. Troca internacional. Exportação e importação. Curso do câmbio. 5) Omercadomundialeascrises.[4]

EmOslimitesdocapitalescaveiapenaspartedessericoterrenodetópicosinseridonostextosdeMarx. Entretanto, ao reunir os fragmentos do pensamento deMarx sobre alguns desses tópicos fiqueiatento ao fato de que aquilo queMarx chamava de “interaçãomútua” que ocorre “entre os diferentesmomentos”em“qualquertodoorgânico”sópoderiasertransformadoemalgosemelhanteaumaunidademedianteaaplicaçãoadequadadométododialético.Comrelaçãoaesseponto,seguiapráticadeMarx,emvezdeformulaçõesabstratas,emgrandepartederivadasdeumaanálisedolegadodeHegelemMarx.“Todaformadesenvolvida”,escreveMarxemOcapital,devesercaptada“nofluxodomovimento”,eéissoqueadialética temde fazer[5].ApráticadeMarxéumadialética sutil,baseadanoprocessoquecaptaperfeitamenteos fluxosdo capital no espaçoeno tempo.Cadavezmais encaroMarx comoumexpoentemagistraldeumafilosofiabaseadanoprocesso,enãocomoummeropraticante(apesarde“terospésbemfirmessobreaterra”)daLógicadeHegel.

Oslimitesdocapital,emborasejaumlivropresciente,lograapenasumêxitoparcialemestendereadaptarosentendimentosdeMarxaonossoprópriotempo.Emboraas inovaçõesqueaobraapresentatenham na verdade se movido para o centro do palco, muito precisa ser feito para articular como odesenvolvimentogeográficodesigual,ossistemasfinanceiros,ocomportamentodorentista,osdiferentesmodosdeapropriaçãoeexploração,assimcomoosdiferentesmodosdeformaçãoedissoluçãodeclasseestão realmente funcionando. O mundo social e chamado natural em que vivemos está sendoselvagementereestruturadoeprecisamossabercomo,porqueeoquepodeserfeitoarespeitodele.

Adesvantagemde trabalhar dentro da estrutura do pensamento deMarx é que isso às vezes inibereformulações.Aindaacho,éclaro,queosargumentosesboçadosporMarxcomrelaçãoàformaçãodo“capitalfictício”,finançasecirculaçãodocrédito(queabordonoscapítulos9e10)sãobrilhantementeperspicazes emais relevantes do que nunca.Na época em que escrevi, haviamuito poucos trabalhosmarxianos adicionais aos quais recorrer.Aspáginas de revistas comoSocialistRegister eHistoricalMaterialismestãoagorarepletasdediscussõesteóricaseinvestigaçõesdematerialistashistóricossobreanatureza,asfunçõeseascontradiçõesdodinheiroedasfinanças,eestasclamamporumasíntesemaisprofunda.Asinovaçõesfinanceirasdosúltimostrintaanosnãopodemserignoradas,eaprobabilidadedecrisesmonetáriasefinanceirasobviamentedeve,àluzdahistóriarecente,estarnalinhadefrentedasnossaspreocupaçõesteóricas.Masháumatendênciadeplorável,emboracompreensível,deseenxergarosproblemasfinanceirosemonetáriosisoladamentedatotalidadedateoriamarxiana.Aconexãoentreosistema de crédito e osmomentos de circulação diferencial dos diferentes capitais (particularmente acirculaçãodocapitalfixonasáreasconstruídas)é,porexemplo,defundamentalimportância.Naesteirado declínio do mercado de ações no final da década de 1990, os investimentos em bens imóveiscompensaram grande parte da deficiência da absorção do capital excedente, não apenas nos EstadosUnidos,mas,demaneiradesigual,emgrandepartedomundocapitalista(deLondreseMadriatéXangai,Hong Kong e Sidney). Os fundos de investimento imobiliário [real-estate investment trusts, Reits]tornaram-semaisumavezospreferidosdomercadodeações.EmOslimitesdocapital,esseaspectodateoriainfelizmenterecebeumuitopoucaatençãoemumaépocaemquepodíamosverperfeitamenteumarepetiçãodocrashglobaldomercadoimobiliáriode1973(quandomuitosdosambiciososReitsforamàfalência).

Page 17: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Longe da “eutanásia do rentista”, vislumbrada porKeynes, o poder de classe está cada vezmaisarticulado mediante os pagamentos pelo arrendamento. Embora o capítulo sobre a renda permaneçaadequadoemalguns aspectos, épreciso reavaliá-lo.PaísesprodutoresdepetróleocomoaVenezuela,conformeapontaCoronilemTheMagicalState[OEstadomágico],organizaram-seemtornodaextraçãoderendapormeiodaexploraçãodorecursonatural.Issonãosóproblematizaamaneiracomoanaturezaévalorizadanocapitalismo(demaneirassóreferidasbrevementenocapítulo11),mastambémcolocaoproblemadoentendimentodecomocirculaessedinheiroderenda(mesmosobocomandodeChávez).AOrganização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e outras preferem recorrer às rendas domonopólio em vez de às rendas absolutas ou diferenciais que foram o principal enfoque deMarx.Aemergência de ummercado imobiliário global e da urbanização como um canal em expansão para aacumulação do capital permitiu que alguns centros dinâmicos do capitalismo, como Hong Kong,sobrevivessemtantocombasenodesenvolvimentoimobiliárioenasextraçõesderenda(monopolistasediferenciais)quantocombaseemqualqueroutracoisa.Aincrívelexplosãodointeresseematividadesculturais(incluindoavendadecidadescomomercadoriasúnicaseautênticasparaoturismo),aênfaseno conhecimento e nas indústrias de informação e a organização de eventos espetaculares como asOlimpíadas (sem falar no papel da arquitetura assinada do Museu Guggenheim de Bilbao) caem noescopodasformascontemporâneasdebuscaderendamonopolista(vermeuensaio“Aartedarenda”).Mais assustadora ainda é a ênfase contemporânea nos direitos de propriedade intelectual, como aspatentes de materiais genéticos e formas de vida. A aplicação de licenças, patentes e acordos deroyaltiestornou-seumaquestãocentralnasnegociaçõesdaOrganizaçãoMundialdoComércio(OMC),transformando oAcordo sobreAspectos dosDireitos de Propriedade IntelectualRelacionados comoComércio,quegaranteessesdireitossobreapropriedadeintelectual,emumimportanteveículoparaasustentação do poder da classe corporativa e capitalista nomundo todo.As rendas das patentes e domonopólioandamjuntas.

Há, também, a grave questão de como analisar o que acontece quando o capitalismo se tornacanibalístico(umaquestãolevantada,porexemplo,nap.550).Essatendênciaémaisdisseminadaemaiscomplicadadoqueentãosupus.Aondadeprivatizaçãoqueassolouomundoapós1980,emalgunscasosimpostapelopoderdasinstituiçõesinternacionais(comoFundoMonetárioInternacionalnaliderança),masemoutroscasosporefeitodasaliançasdeclasseslocais,obrigouumnovociclodefechamentodasáreas públicas. Rosa Luxemburgo, em sua obra seminalA acumulação do capital, apontou para umamarcantediferençaentreaexploraçãodamãodeobraativanaprodução (naquala relaçãodeclasseentreocapitaleotrabalhoéfundamental)eaacumulaçãopormeiodaforça,dafraude,dapredaçãoedapilhagemdosbens,tipicamenteassociadaàanálisequeMarxfazdaacumulaçãoprimitiva.Marxtendeuarelegarestaúltimaformadeacumulaçãoàpré-históriadocapitalismo,mas,paraLuxemburgo,essesdoisaspectosdaacumulaçãoestão“organicamentevinculados”esãocontínuos,detalformaque“acarreirahistóricadocapitalismosópodeserapreciadaconsiderando-osemconjunto”.Emsuaopinião,o ladopredatório estava associado ao saque imperialista das formações sociais não capitalistas.EmO novoimperialismo, no entanto, meu argumento é de que essa atividade predatória foi internalizada nocapitalismo(porexemplo,pormeiodaprivatização,dadesindustrializaçãooudaerosãodosdireitosdepensãoeprevidenciáriosorquestrados emgrandepartepelo sistemade crédito epelodesdobramentodos poderes do Estado). Como este é um processo internalizado contínuo, prefiro chamá-lo de“acumulação por despossessão”, em vez de acumulação primitiva. Essa categoria é crucial para ainterpretaçãodocapitalismoneoliberaledasformascontemporâneasdocapitalismo.Masocorrequea

Page 18: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

resistênciaaocapitalismoeao imperialismoexibenecessariamenteumcaráterdual.As lutascontraadespossessão(dosdireitosdeterra,daprevidênciasocial,dosdireitosàpensãoeàatençãoàsaúde,dasqualidades ambientais, da própria vida) têm um caráter diferente das lutas em torno do processo detrabalho que há muito dominaram a política marxista. Uma tarefa política básica não tem apenas deestabelecerovínculoorgânicoentreasduasformasdeacumulaçãonocapitalismocontemporâneo,mastambém entender o vínculo orgânico entre as duas formas de lutas de classes que produzem.As lutascontraadespossessãodominamgrandepartedomovimentoalternativoàglobalizaçãoquesereúnenoFórumSocialMundial,porexemplo.

O papel do Estado na acumulação por despossessão também representa um desafio analítico.Oslimites do capital, como aponto no Epílogo, não propõe uma teoria específica do Estado capitalista,ainda que os envolvimentos do Estado estejam onipresentes no texto. Deixo este como um “negócioinacabado”,empartedevidoaumarelutânciaemmeengajarnodebateintenso,intimidadoreabrangentesobreanaturezadoEstadocapitalistaquesealastrounoscírculosmarxianosduranteadécadade1970.Grandepartedessedebatepareceagoraultrapassado,emboratenhalevantadoquestõesquecontinuamaser de fundamental importância. Foi substituído por um debate ainda mais abrangente (no qual osmarxistas,comexceçãodeJessop,desempenhamumpapelmaisbrando)sobreamaneiradeentenderoEstado contemporâneo e seus poderes. O único consenso parece ser de que o significado do Estadomudoudramaticamentenosúltimostrintaanosequeoprincipalagentedepressãonessamudançafoialgochamado “globalização” (o que quer que isso possa significar). Alguns, tanto da esquerda quanto dadireita, agora proclamam o Estado como irrelevante, e alguns movimentos sociais de oposição sãoabertamentecéticoscomrelaçãoaovalorpolíticodese tomaropoderdoEstado.Talveznãomesejapossível lidar, aqui, com as complexidades desses argumentos. Mas fico do lado daqueles queconsideramoEstadocomoum“momento”vitalnadialéticaenadinâmicacontraditóriasdaacumulaçãodo capital, aomesmo tempo que admito prontamente que os poderes do Estado se transformaram emestruturastotalmentediferentesdaquelasquedominavamnadécadade1970.Arranjosinstitucionais“detipoestatal”emdiferentesescalassociais (de locaisatéglobais)desempenhamagorapapéis-chavedecoordenação. Formas de Estado muito diferentes (corporativista, desenvolvimentista, neoliberal,neoconservadora etc.) coexistem com dificuldade dentro do sistema de Estado contemporâneo. Mas,tambémsobreesseponto,Oslimitesdocapitaltemalgointeressante,emboraincompleto,adizer,nãosóporque indica como a acumulação do capital necessariamente produz e transforma espacialidades eestruturasterritoriais(mostrandoque,sealgocomoEstadosnãoexistisse,oscapitalistasteriamdecriá-los),masporquetambémressaltapontosprováveisdeintervençãodoEstadodentrodeumcapitalismoneoliberalizador. Por isso, não é difícil extrair deOs limites do capital (como está dito noEpílogo)algumanoçãodecomodeveserumEstadodistintivamenteneoliberal[6].

Ainsistêncianaespacialidadeinerentedaacumulaçãodocapital,naterceirapartedeOslimitesdocapital,foiumadesuascontribuiçõesmaisinovadoras,mas,aomesmotempo,umadasmaisincompletaspara uma extensão adicional da teoria marxiana. Percebi, então, que alguma maneira tinha de serencontradapara desenvolver teorias do imperialismo a partir dosmodelosmarxianos da formaçãodecriseespecificadasemtermosmeramentetemporaisenãoespaciais.Fizissoemgrandepartemedianteumateoriasimplificadado“ajusteespacial”(entendidocomoexpansõesereestruturaçõesgeográficas)comoumasoluçãotemporáriaparaascrisesentendidas(verocapítulo7)emtermosdasuperacumulaçãodocapital.Osexcedentesdocapitalque,docontrário,ficariamdesvalorizados,poderiamserabsorvidospormeiodas expansõesgeográficas ededeslocamentos espaço-temporais.Tambémprocurei articular

Page 19: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

comooespaçoeodesenvolvimentogeográficodesigualforamproduzidosatravésdeinvestimentosdecapitalde longoprazoe, emgeral, comfinanciamentodadívida, incorporadosna terra (porexemplo,redes de transporte e comunicações e áreas construídas). A imobilidade desses investimentos fixosestavaemcontradiçãocomoscapitaisfluidosegeograficamentemóveisquebuscamsoluçõesespaciaisparaasuperacumulação.Apaisagemgeográficacriadapelocapitalismoestavalimitada,porisso,aserolocal de instabilidade e contradição e o lugar das lutas de classes. Tudo isso também envolveria aproduçãodeconfiguraçõesespaciaise“regiões”deatividade(mediante,porexemplo,bensdecapitalsendoincorporadosnasáreasconstruídasdascidades,mediantedivisõesterritoriaisdetrabalhoetc.)eessas alianças de classes regionais, e formas de organização e governança territorial emergiriam emtornodessas estruturas espaciais– tudo issoentãopareciabastanteóbvio, assimcomooaumentodosconflitos geopolíticos sobre a acumulação e a desvalorização que poderiam e seriam articuladosprincipalmente, embora não exclusivamente, pelo sistema estatal. É contra esse pano de fundo queemergeumateoriadeumaformadeimperialismodistintamentecapitalista.

Mais tarde reformulei essa teoria em O novo imperialismo como “uma fusão contraditória” dapolíticadoEstadoedoimpério,edosprocessosmolecularesdaacumulaçãodocapitalnoespaçoenotempo.As lógicasdepoder territoriaisecapitalistasdiferemumadaoutraenãosãoredutíveisumaàoutra. Essa teoria do imperialismo requer uma cuidadosa reconstrução de como as duas lógicas seentrelaçam, particularmente em relação à dinâmica da acumulação pela despossessão e por meio dareprodução expandida. EmO neoliberalismo: história e implicações procurei integrar amudança depapel do Estado e do sistema estatal desde 1980 para a reconstituição do poder de classemediantedesenvolvimentos geográficos desiguais, competição entre países, acumulação por despossessão e oaumentodeformascapitalistasfinanceiras,baseadasnocréditoeemrentistas.Entendoque,emalgunsaspectos,asperspectivasdeformaçãodecriseedesvalorizaçãoseaprofundaram.Seascrisessempreseoriginam como desvalorizações específicas do lugar ou da região, sua generalização depende deprocessos espaciais de arrastamento ou contágio.As progressivas crises financeiras e de crédito queabalaramomundocapitalistanosúltimos trintaanospedemumaanálisemaisprofunda,assimcomoopapeldasinstituiçõesinternacionaisqueprocuramcontê-las.

Tenho, aqui, de enfatizar novamente uma advertência muito importante apresentada na introduçãooriginal.AlinearidadedanarrativaemOslimitesdocapitalfazparecerqueocapitaltemumaexistênciaespectralprópriaantesdechegartangivelmenteàTerra,emespaçoetempo.Parecequeastendênciasdecrisedocapitalismopodemsercolocadassequencialmente,movendo-sedogeral(porexemplo,aquedadataxadelucro)paraotemporal(financeira)eparaoespacial(desenvolvimentogeográficodesigualegeopolítico).Entretanto,éequivocadoenxergaros três recortesna teoriadacriseapresentadosemOslimitesdocapitalcomosequenciais.Devemserentendidoscomoaspectossimultâneosparaaformaçãoeresoluçãodacrisedentrodaunidadeorgânicadocapitalismo.

Apresento dois argumentos para corroborar essa posição. Para começar, qualquer tipo dematerialismoexigequeotriunviratoformadoporespaço-tempo-processosejaconsideradoumaunidadenonívelontológico.Whiteheadcertavezobservouquetodasasquestõessobreanatureza(incluindoaatividade humana) podemno fim ser reduzidas a questões sobre o espaço e o tempo. Infelizmente, hámuitopoucareflexãodentrodatradiçãomarxistasobreanaturezadoespaçoedotempo.Estaéumafalhaséria, pois omaterialismohistórico – ou, comoprefiro chamá-lo,materialismohistórico-geográfico –nãopodeexistirsemumasólidaapreciaçãodadialéticadeespaço-temporalidade.Ocorrequeháumaestruturaespaço-temporal subjacenteà teorizaçãodeMarxeela sebaseiaemumafusãodialéticadas

Page 20: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

trêsmaneiras fundamentais de se entender o espaço-tempo. Segundo a teoria absoluta, principalmenteassociadaaosnomesdeNewton,DescarteseKant,oespaçoéumaredefixaeimutável,bemseparadado tempo, em cujo interior as coisas materiais, os eventos e os processos podem ser claramenteindividualizados e descritos. A ordenação espacial é o domínio do conhecimento geográfico; odesdobramentotemporaléodomíniodahistória.Esteé,emprimeirainstância,odomínioprimáriodosvaloresdeusonateoriamarxiana.Éoespaçoquedefineosdireitosdapropriedadeprimárianaterra,asfronteiras do Estado, a distribuição física da fábrica, a forma material da mercadoria e o corpoindividualizadodotrabalhador.Segundoateoriarelativa,principalmenteassociadaaonomedeEinstein,um mundo de movimento define as estruturas espaço-tempo, que não são fixas nem euclidianas. Asrelaçõesdetransportegeramdiferentesmétricasbaseadasnadistânciafísica,nocustoenotempo,eosespaçostopológicospassíveisdealteração(aeroportoscomerciaiseredesdecomunicação)definemacirculaçãodasmercadorias,docapital,dodinheiro,daspessoas,dasinformaçõesetc.AdistânciaentreNovaYorkeLondresérelativa,nãofixa.Oespaço-temporelativoéodomínioprivilegiadodovalordetroca, dasmercadorias e do dinheiro emmovimento.A visão relacional, associada principalmente aonome de Leibniz, declara que o espaço-tempo não tem existência independente, que ele é inerente àmatériaeaoprocesso,sendoporelescriado.Ouniverso,porexemplo,nãoseoriginoudoespaçoedotempo.Obigbang criouo espaço-tempoapartir damatéria emmovimento.Ocapital criao espaço-tempo.Oespaço-temporelacionaléoprincipaldomínioda teoriadovalordeMarx.Marxacreditava(um tantosurpreendentemente)queovaloré imaterial,porémobjetivo.“Naobjetividadedeseuvalor[dasmercadorias]nãoestácontidoumúnicoátomodematérianatural.”Como“natestadovalornãoestáescritooqueeleé”,eleescondeasuarelacionalidadedentrodofetichismodasmercadorias.Ovaloréumarelaçãosocialnoespaço-temporelacional.Aúnicamaneiradepodermostangivelmentecaptá-loépor meio de seus efeitos objetivos, mas isso nos lança naquele mundo peculiar em que as relaçõesmateriais são estabelecidas entre as pessoas (relacionamo-nos uns com os outros por meio do queproduzimosecomercializamos)easrelaçõessociaissãoconstruídasentrecoisas(preçosmonetáriossãoestabelecidos para o que produzimos e comercializamos). Se o valor é uma relação social e esta ésempreimaterial,masobjetiva(experimentemedirqualquerrelaçãosocialdepoderdiretamenteevocêsempre vai falhar), então isso torna controvertidas, se não deslocadas, todas aquelas tentativas deapresentaralgumamedidadiretaeessencialistadele.Masquetipoderelaçãosocialépressupostoaqui?O valor é uma relação interna dentro da mercadoria. Ele internaliza toda a geografia histórica dosprocessosde trabalho,daproduçãoedaconcretizaçãodamercadoria, edaacumulaçãodocapitalnoespaço-tempodomercadomundial.

Astrêsestruturasespaço-temporais–absoluta,relativaerelacional–devemsermantidasemtensãodialéticaumacomaoutraexatamentedamesmamaneiraqueovalordeuso,ovalordetrocaeovalordialeticamente interligado no interior da teoria marxiana. Por exemplo, poderia não haver valor noespaço-temporelacionalsemtrabalhosconcretosconstruídoseminúmeroslugares(fábricas)emespaçosetemposabsolutos.Etambémovalornãoemergiriacomoumpoderimaterial,porémobjetivo,semosinúmeros atosde troca, os contínuosprocessosde circulação,queunemomercadoglobalno espaço-tempo relativo.A roca incorporavalor (isto é, o trabalho abstrato comoumadeterminação relacionaldesprovida de medida material) ao tecido, realizando um trabalho concreto em um espaço e tempoabsolutos.Paraovalorserconcretizado,amercadoriaprecisasemoverparaoespaço-temporelativodas relaçõesde troca.Opoder objetivoda relaçãodevalor é registradoquando a roca é obrigada adesistirdeconfeccionaro tecidoea fábrica ficasilenciosa,porqueascondiçõesnomercadomundial

Page 21: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

sãotaisquetornamsemvaloressaatividadenesseespaçoetempoabsolutoseespecíficos.Emboratudoisso possa parecer óbvio, o fracasso em reconhecer a interação entre as diferentes estruturas espaço-temporais na teoria marxiana produz, com frequência, uma confusão conceitual. Por exemplo, grandeparte da discussão das chamadas “relações globais-locais” converteu-se em uma confusão conceitualdevida à incapacidade de se entender as diferentes espaço-temporalidades envolvidas. Não podemosdizer que a relação de valor faz com que a fábrica feche as portas como se houvesse alguma forçaabstrata externa. As condições concretas cambiantes do trabalho na China, quando mediadas pelosprocessos de troca no espaço-tempo relativo, transformamo valor em uma relação social abstrata nomercado mundial de tal maneira que provocam o fechamento concreto do processo de trabalho noMéxico.Umtermopopularcomo“globalização”funcionarelacionalmentedemaneirasimilar,embora,éclaro, mascare convenientemente as relações de classe. Se procurarmos a globalização no espaço etempoabsolutos,nãoiremosencontrá-la.

Lampejosdessetipomaistardemepermitiramformularideiasda“compressãodotempo-espaço”emCondição pós-moderna, e da “produção social do espaço e do tempo” em Justice, Nature and theGeographyofDifference[Justiça,naturezaegeografiadadiferença].Maisrecentemente,emSpacesofGlobalCapitalism:TowardsaTheoryofUnevenGeographicalDevelopment [Osespaçosglobaisdocapitalismo: rumo a uma teoria do desenvolvimento geográfico desigual], estendi ainda mais oargumento, estabelecendo uma relação cruzada dos conceitos de absoluto, relativo e relacional doespaço-tempocomasdistinçõesdeLefebvreentreaspráticassociaismateriais(espaçoexperienciado),asrepresentaçõesdoespaço(oespaçotalcomoéconcebido)eosespaçosderepresentação(oespaçotalcomoévivido).Sustentoanecessidadeurgentedeumrelatomaisadequadodaespaço-temporalidadedateoriamarxiana,nãosóporsetratardeumanecessidadeontológica,mastambémporquemuitosdosfracassosdosprojetossocialistasecomunistasderivamdeumfracassoemapreciarascomplexidadesdasrelaçõesespaço-temporaisnasquestõeshumanas.

Emboratudoissopossasoarmuitoabstrato,interpretarMarxatravésdeumalenteespaço-temporaltorna-semuitoreveladorcomrespeitoàespacialidadedopoderedocomandosobreoespaçocomoumaforçaprodutivaeumrecursopolíticonalutadeclasses.OManifestoComunistadeixaissoclaro–porexemplo, que a burguesia chegou ao poder, em parte, devido a uma estratégia geográfica de usar ocomércio e a mobilidade (operando no espaço-tempo relativo) para minar os espaços absolutos dospoderesfeudaisbaseadosna terra.Emboraocapitaldocomercianteeocapitalquerendejurossejamatualmente formasderivativas, eles surgiramantesda formaprimáriamodernadocapitaldeproduçãoprecisamentedevidoaseucomandosuperiorsobreoespaço[7].Aascensãodaformadodinheirosemprefoi fundamentalmente dependente dos movimentos históricos e geográficos e de suas conexões. Odinheiroestáeternamenteinternalizandoosefeitosdomundoespaço-temporalqueasuacirculaçãocriaeemquesuasvalorizaçõesestãoocorrendo.Odinheiro–aprincipalmedidacontábildocapital–nãoénadasemcrédito,confiançaevínculoscomerciaisdentrodeumaeconomiadeespaçoemfluxocontínuo.Os escritos contemporâneos sugerem que o crédito e as relações sociais de confiança podem terprecedidoàascensãodaforma-dinheiroedovalorqueelarepresenta.Alémdisso,opoderburguêsestásempre relacionado ao posicionamento geopolítico no mercado mundial, e, aqui, não surpreendedescobrirqueasformasimperialistasdedominaçãodesempenharamumpapelformativonaascensãodocapitalismo, mesmo quando o capitalismo reconfigurou radicalmente o que se entende por práticasimperialistas (comoWood declarou recentemente[8]). Imediatamente após descrever como o dinheironecessariamenteexplodetodasasbarreiras temporaiseespaciais,Marxrefere-seàspossibilidadesde

Page 22: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

crises em que as “antíteses dametamorfose damercadoria [adquirem] suas formas desenvolvidas demovimento”[9].A implicaçãodisso équeas crisesnão têmexistência foradas espaço-temporalidadesqueocapitalismocria.Ocapital financeirocontemporâneo,comaajudada tecnologiada informação,reconfigurou radicalmente a espaço-temporalidade nos últimos quarenta anos de maneira a tumultuaroutras formas de circulação do capital e também a vida cotidiana. Quebrar a rigidez de uma formaespaço-temporal existente através da aceleração e do investimento estrangeiro direto (para citar duasforças óbvias em ação nos últimos tempos) tornou-se um aspecto fundamental do que se entende porcrise.AsdificuldadesnoLesteenoSudesteAsiáticoem1997-1998tinhammuitoaver,porexemplo,com as mudanças nas espaço-temporalidades. Enfatizo que os três “recortes” no entendimento daformação da crise em Os limites do capital devem ser lidos como momentos distinguíveis, masconcomitantementepresentesnascontradiçõesinternasdocapitalismo.

AoescreverOslimitesdocapital,eunãopoderia,éclaro,deixardeconfrontaraquestãodecomointerpretaracrisedadécadade1970.OqueuniutãodramaticamenteourbanoeogeralfoiachamadacrisefiscaldeNovaYorkem1975-1977,que,comobenefíciodavisãoretrospectiva,agorainterpretocomoumpontapéinicialnacontrarrevoluçãoneoliberalenarestauraçãodopoderdeclasse.Contudo,aquestãodecomoentenderaformaçãodacrisepermanece,delonge,amaiscontrovertidadaeconomiapolíticamarxiana.Nãosóháváriasescolasdepensamentosobreaquestão,masinterpretaçõesdistintastêmhámuitofortalecidoasdiferentesestratégiaspolíticas.

Marx insistia que deveríamos entender as crises realizando um exame da dinâmica interna docapitalismo.Issoolevou,demaneiraequivocadaaosolhosdemuitaspessoas,asubestimaraideiadequeas restriçõesambientaisoupopulacionais eram fundamentais.NaépocadeMarx, essas restriçõeseram em grande parte expressadas em termos dos lucros diminuídos ricardianos na agricultura ou nadinâmicapopulacionalmalthusiana.Marxeraumcríticoferinodeambos(elediziaqueRicardo,quandosevêdiantedeumacrise,“fugindodaeconomia,eleserefugianaquímicaorgânica”).Nosúltimostrintaanos, aproximadamente, surgiu uma literatura substancial, no interior da comunidade marxiana,declarandoqueaposiçãodeMarxaesserespeitonãopodenemdeveserapoiada.Muitosdaesquerdaafirmamatualmentequeéacriseambientalquedefineacrisedanossaépocaequenossapolíticadeveevoluirdeacordocomela(ver,porexemplo,JohnBellamyFostereJamesO’Connor).Discordodessaposição,particularmentequandoelaéformuladaemumalinguagemapócrifa,relacionando-aao“fimdanatureza” ou a algum tipo de “colapso ambiental”. No entanto, considero muito seriamente questõesambientaiscomoosburacosnacamadadeozônioeoaquecimentoglobal,adestruiçãodohabitateaperda da biodiversidade, a exaustão dos recursos, a destruição das florestas e a desertificação, apossibilidadedepandemiasedecatástrofesecológicas.Opapelda rendaeavalorizaçãodanaturezaprecisam ser trazidos de volta ao centro da análise. Também entendomuito bem que as questões dejustiça ambiental são profundamente relevantes para a política contemporânea. Tampouco ignoro asquestões da dinâmica populacional. Levo todas essas questões tão a sério quanto as condições erivalidadesgeopolíticas,geoeconômicaseculturaisquetêmproduzidoecontinuamasustentarasguerrascomerciais,oimperialismo,oneocolonialismoeosconflitosmilitares.

Mas algo fundamental é perdido quando nos recusamos a confrontar as contradições internas docapitalismocomoocernedosnossosproblemas.Acredito,maisaindadoqueacreditavahá25anos,queuma política que se esquiva das principais contradições só consegue tratar dos sintomas. Rejeitointeiramente a política daqueles que têm procurado tirar do nosso alcance um entendimento dascontradiçõespolítico-econômicas(oumesmooconceitodecapitalismo).Seasprincipaiscontradições

Page 23: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

forem reveladas, como sustentavaMarx, no curso das crises, então é à teoria da crise que devemosrecorrer para obtermos uma percepção política sobre as estratégias de longo prazo que devem serbuscadas.

No capítulo 6, examino três amplas escolas de pensamento sobre a teoria da crise de Marx. Aprimeira, com frequência caracterizada como uma teoria de “esmagamento do lucro”, encara que aorganizaçãodaforçadetrabalhoeaescassezdemãodeobrareduzemataxadeacumulaçãoatéopontodecrisedaclassecapitalistae,porextensão,dosistemacapitalistacomoumtodo(certamenteissonãoéum problema na atual conjuntura, embora houvesse evidência disso na década de 1970). A segundaenxerga umadeficiência da demanda efetiva ou “subconsumo” comoo problema fundamental, pois oscapitalistas estão reinvestindoeos trabalhadores estãopordefiniçãoconsumindomenosvalordoqueproduzem.Malthusconsideravaocomércioexterioreoconsumoporpartedas“classesnãoprodutivas”como a resposta para o problema da demanda efetiva, enquanto Rosa Luxemburgo declarava que apilhagem imperialista organizada das sociedades não capitalistas era a única opção. As teorias desubconsumotêmsuacontrapartidaburguesanateoriakeynesiana.Váriasescolasdateorizaçãomarxista-keynesianaconsideramquearespostaéomanejofiscalemonetáriodoEstado.Emboraosubconsumoparecesseserumproblemasérionadécadade1930,nãohaviamuitaevidênciadissonadécadade1970.Ateoriadaquedadataxadelucrosebaseianaideiadequeabuscacompetitivaporinovaçõesparaaeconomiademãodeobradeslocaamãodeobraativa(afontedetodoovaloredomais-valornateoriamarxiana)daprodução.Outrascoisas(comoograudeexploraçãodaforçadetrabalho)permanecendoiguais,issoproduzumatendênciasecularparaumaquedadataxadolucro.OpróprioMarxanexoutantasadvertências,condicionalidadesecircunstânciasmitigadorasaessateoria(verocapítulo6)queédifícilsustentá-la como uma teoria geral da crise, mesmo que se concentre na questão crucial dos efeitospotencialmentedesestabilizadoresdasmudançastecnológicassobreadinâmicacapitalista.Concluíquecada teoria revela algo importante sobre a dinâmica contraditória do capitalismo,mas que todas sãomanifestaçõessuperficiaisdealgumaoutracoisa.

Nocapítulo7,declaroqueoproblemamaisprofundoé a tendência à superacumulação.Ascrisessurgemquandoasquantidadessemprecrescentesdemais-valorqueoscapitalistasproduzemnãopodemser lucrativamente absorvidas.Apalavra importante aqui é “lucrativamente” (edevodeixar claroqueesta não guarda nenhuma relação direta com a suposta lei da queda da taxa de lucro). Consideroesmagadoraaevidênciadessalinhadeargumentaçãode“excedentedecapital”.OcapitalismosurgiudeexcedentesacumuladosporgruposlocalizadosdenegociantesecomerciantesquepilhavamàvontadeorestodomundodesdeoséculoXVI.AformaindustrialdecapitalismosurgidanofinaldoséculoXVIIInaGrã-Bretanhaabsorveucomsucessoessesexcedentes,aomesmotempoqueosexpandiu.Tendoporbaseamãodeobraassalariadaeaproduçãofabril,acapacidadedeabsorçãoeproduçãodemais-valorfoiinternalizada,sistematizadaeaumentada,emparte,pelaestruturaçãodomundocapitalista,maisclarae expansivamente em torno das relações sociais capital-trabalho. Isso envolveu a internalização bem-sucedidadasforçasdamudançatecnológicaedaprodutividadecrescenteparagerarexcedentessempremaiores.Ondeessesexcedentespoderiamserlucrativamentedistribuídos?“Crise”éonomequesedáàsfases de desvalorização e destruição dos excedentes de capital que não podem ser lucrativamenteabsorvidos.

O capital excedente pode assumir muitas formas. Pode haver uma abundância de mercadorias nomercado(daíosurgimentodosubconsumo).Issopodeàsvezesaparecercomoumexcedentededinheirooucomoumexcessodecrédito(daíosurgimentodascrisesfinanceirasemonetáriasedainflação).Ou

Page 24: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

podeaparecercomoumexcessodecapacidadeprodutiva(fábricasemaquinárioociososcaracterísticosdas fases deflacionárias de desvalorização). Pode aparecer comoumexcesso de capital investido emáreasconstruídas(crashesnomercadoimobiliário),emoutrosbens(ondasdeespeculaçãoecrashesemaçõese títulos, futurosdemercadoriasoufuturosdemoedasetc.)oucomoumacrise fiscaldoEstado(gastosexcessivoseminfraestruturassociaisefunçõesdaprevidênciasocial–talvezexigidospelaforçadetrabalhosindicalizada).Aformaqueoexcedentedecapitalassumenãoépreviamentedeterminante,mascadaumaconfereumcaráterespecíficoàcrise.Entretanto,mudardeumaformaparaoutraàsvezesalivia as pressões (um excesso de crédito pode ser transferido aos consumidores, o que alivia osproblemas de subconsumo e provoca o retorno à operação de fábricas pressionadas). Além disso, éclaro,háofatodeque,paratodasessasteorias,oondeeoquandoserealizamosexcedentesdecapitalestãoespecificadosdemaneiratemporal,porémnãoespacial.AsduasgrandesinovaçõesdeOslimitesdocapitalforamintroduziraideiadosdeslocamentostemporaisdosexcedentes(orquestradosmedianteosistemadecréditoeosgastoscomfinanciamentodadívidapública)paraosinvestimentosdecapitaldelongoprazo(como,digamos,otúnelsoboCanaldaMancha)eaideiadosdeslocamentosespaciaisrealizadosatravésdeexpansõesgeográficas–acriaçãodomercadomundial,oinvestimentodiretoeoinvestimentoemcarteira,asexportaçõesdecapitalemercadoriase,maisbrutalmente,oaprofundamentoeaampliaçãodocolonialismo,doimperialismoedoneocolonialismo.Aassociaçãodosdeslocamentostemporais e espaciais (por exemplo, investimento estrangeiro direto para financiamento do crédito)oferece mecanismos para respostas de base amplos e extremamente importantes, embora muitotemporários a longo prazo, para o problema da absorção do excedente de capital. Segue-se então aintegração do desenvolvimento geográfico desigual no nosso entendimento da geografia histórica docapitalismo.Oefeitodissoéabrirapossibilidadedecriseslocalizadas,dedesvalorizaçõesdecapitalaltamente localizadasebaseadasna localidade (aquiumadesindustrialização, láumacrise financeira)comoumamaneiradeneutralizaroproblemaglobaldaabsorção/desvalorizaçãodoexcedente.Ocorretambémquegrandepartedoquevemosnamaneiradaproduçãodeestressesedegradaçõesambientaiséumamanifestaçãodabuscadesoluçõesparaoproblemadeabsorçãodoexcedentedecapital.

Aabsorçãodoexcedenteé,portanto,oprincipalproblema.Ascrisesdedesvalorizaçãoacontecemquando a capacidade para essa absorção entra em colapso. Em O neoliberalismo: história eimplicações,apresentoahistóriadecomoessesmecanismostêmoperadonaeconomiaglobalapartirdadécadade1970.Deixe-mereformularoargumentoemtermosdeexcedentedecapital.Adécadade1970foiumafasedeexcedentecrônicodecapital,grandepartedeletransferidoparaosEstadosprodutoresdepetróleoapós1973edepoisrecicladocomocapitalmonetáriopormeiodosbancosdeinvestimentodeNovaYork.Usos lucrativosparaoexcedenteeramdifíceisdeencontrarporqueas saídasexistentes–especulaçãonosmercadosimobiliários,ondasdegastosestataiscomaguerra,gastoscrescentescomaprevidênciasocial–estavamsaturadasouorganizadasdemodoadificultarolucro.Instalou-se,então,umacrisecrônicadeestagflação.

A virada subsequente para a neoliberalização incluiu derrubar toda possível barreira aodesdobramentolucrativodoexcedente.Seaclassetrabalhadoraeraforteobastanteparaconstituirumabarreira à lucratividade, então ela tinha de ser disciplinada, seus salários e benefícios reduzidos,eliminando-se inteiramente sua capacidade para exercer um esmagamento do lucro. Esse objetivo foialcançadopormeiodaviolêncianoChile,pelasfalênciasemNovaYork,e,politicamente,porReaganeThatcheremnomedocombateàinflação.Comosetudoissonãofossesuficiente,ascorporaçõespodiamresolverascoisasporcontaprópriaese transferir fisicamenteparaoestrangeiro,paraqualquer lugar

Page 25: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

onde amão de obra fossemais barata emais dócil.Mas, para isso acontecer, todas as barreiras aocomércio exterior precisariam ser derrubadas.As tarifas tinhamde ser reduzidas, acordos comerciaisantiprotecionistascriadoseumaordeminternacionalabertaquepermitisseofluxorelativamentelivredocapital nomundo todo. Se isso não pudesse ser realizado demaneira pacífica, seriam empregadas acoerçãofinanceira(orquestradapeloFMI)ouoperaçõessecretas(organizadaspelaCIA).Abuscapormúltiplos ajustes espaciais teve início e explodiu o desenvolvimento geográfico desigual. O fim daGuerra Fria acrescentou ainda mais oportunidades para empreendimentos e expansões estrangeiroslucrativos.Maso capital tinha de encontrar um regime facilitador e tambémoportunidades adequadasparaaplicarseusexcedentesnospaísesemquepenetrava.OndasdeprivatizaçãoabriramnovossetoresparaaaplicaçãolucrativadecapitaldaGrã-BretanhaparaMéxico,Rússia,ÍndiaeChina.Regimesdebaixas taxas corporativas (estabelecidos para atrair o investimento estrangeiro), infraestruturasfinanciadaspeloEstado,fácilacessoaosrecursosnaturais,umambienteregulatóriofacilitador,umbomclimaparaosnegócios, todosesseselementos tinhamde ser fornecidosparaosexcedentesdecapitalseremlucrativamenteabsorvidos.Setudoissosignificassequeaspessoastinhamdeserdespojadasdeseusbensedeseupatrimônio,queassimfosse.Efoioqueaneoliberalizaçãorealizou.Portrásdisso,arranjosinstitucionaistiveramdeserfeitosparafacilitarastransaçõesfinanceirasglobaiseparagarantirsua segurança. Isso requereu a aplicação de poderes estatais hegemônicos apoiados pelos militares,pelos políticos e pela força coerciva econômica para garantir o regime financeiro internacional. OimperialismodosEstadosUnidosapoiou–emconluiocomaEuropaeoJapão–ospoderesdoFMI,daOMC, do Banco Mundial, do Banco de Compensações Internacionais e de uma série de outrasinstituiçõesqueiriamregulamentarosistemaglobalparagarantirumterrenoemconstanteexpansãoparaaabsorçãolucrativadasquantidadessemprecrescentesdecapitalexcedenteproduzido.

Masnemtudovaibemcomessesistema.Aincrívelexpansãonaabsorçãocapitalistadomais-valor,associadaaoutrociclodesestabilizadordeinovaçõestecnológicas,simplesmenteconduziuàproduçãodeexcedentesaindamaismaciços.Desdeoiníciodadécadade1990,grandepartedesseexcedentevemsendo especulativamente absorvido, fluindo para todos os tipos de bens – o mercado de ações dosEstadosUnidosnadécadade1990,osmercadosimobiliáriosapós2000eagoraosmercadosdeinsumosprimáriosemonetáriosouosmercadosdeações“emergentes”dealtorisconaÁsiaenaAméricaLatina.Aquantiaqueosfundoshedgeadministram“disparoude40bilhõesdedólareshá15anospara1trilhãodedólareshoje”,paraque,“nofimde2004,houvesse3.307fundosdeinvestimento,umaumentode74%desde 1999”[10]. Os ganhos especulativos são hoje fundamentais para a sobrevivência das classessuperiores, mas isso evidentemente implica a ameaça de importantes desvalorizações quando váriasbolhasdeativosexplodirem.Acategoriaescorregadiado“capitalfictício”é,comoMarxobservouhámuito tempo, algo sem o qual o capitalismo não consegue viver, mas que pode facilmente fugir docontrole. Ficções, como as protagonizadas pelo Barings Bank e pela Enron, foram solucionadas,deixandonoseurastromuitaruínafinanceira.Masosistemadecréditosebaseia,comoMarxtambémobserva,naféenasexpectativas.Ocapitalismovivecadavezmaisbaseadoapenasnafé.Oestímulodaconfiança,particularmentedosconsumidores,torna-sefundamentalparaumcapitalismosustentável.

Nos últimos trinta anos, a neoliberalização promoveu, de modo surpreendente, a derrubada deinúmerasbarreirasnomundotodoparaaabsorçãodosexcedentesdecapital.Tambéminventoutodasasmaneiras de novas formas de especulação em valores patrimoniais que similarmente absorvemquantidades maciças de excedentes de capital, embora a um risco considerável. O que é igualmentesurpreendenteéasuacapacidadeparaorganizareorquestrargigantescasdesvalorizaçõesdocapitalno

Page 26: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mundotodosemexplodir–pelomenosatéagora–todoosistema.Quandoosexcedentesnãopuderemmais ser absorvidos, eles terão de ser desvalorizados ou destruídos. As desvalorizações têm sidodesenfreadasdesdemeadosdadécadade1970.Ascrisesfiscais,rarasantesde1970,disseminaram-seportodoomundo,comefeitosfrequentementedevastadores(oMéxico,em1982e1995;aIndonésia,aRússiaeaCoreiadoSul,em1998;aArgentina,em2001).NemosEstadosUnidosescaparamdesériosepisódiosdedesvalorização.ACrisedasInstituiçõesdePoupançaeEmpréstimo,em1987,custoucercade200bilhõesdedólaresparaserretificadaeasimensasfalênciasdoLongTermCapitalManagementedeOrangeCounty, emmeadosdadécadade1990, seguidasdeumaquebranomercadode açõesqueeliminou 7 trilhões de dólares do mercado de capitais dos Estados Unidos em 2000, foram eventossérios.Emboraalgunscapitalistastenhamsidoatingidos,otalentodaestruturaatualdasinstituiçõesnãoestá apenas em disseminar os riscos, mas também em disseminá-los assimetricamente, de maneira agarantirqueoscustosdadesvalorização recaiamemsuamaiorparte sobreaquelesmenoscapazesdearcar com eles. Quando o México foi à falência em 1982, o Tesouro dos Estados Unidos e o FMIgarantiramqueosbanqueirosdeinvestimentodeNovaYorksofreriammuitopouco,enquantoaspessoascomuns do México foram obrigadas a arcar sozinhas com uma grande perda. Na verdade, as crisesfinanceirastornaram-seomeiopreferidoparaaceleraraconcentraçãodopodereconômicoepolíticonasmãosdaelite.

Osdesequilíbriosglobaisatualmenteexistentessãodeproporçõesimpressionantes.Osexcedentesdecapitalestãoemtodaparte,masagoraparticularmenteconcentradosnolesteenosudestedaÁsia.Poroutro lado, os Estados Unidos estão administrando uma economia devedora em escala inédita. Acapacidadeparacontornaressa situação, comodeclaroemOneoliberalismo:história e implicações,está sobre o fio da navalha. A retificação dos desequilíbrios globais atualmente relacionadosprovavelmenteserádolorosa,senãocatastrófica.Mas,alémdetudoisso,temosdereconhecerquequasetodasasnossasafliçõesambientais,políticas,sociaiseculturaissãoprodutodeumsistemaquebuscaomais-valorparaproduzirmaismais-valor,oquerequer,portanto,umaabsorçãolucrativa.Asdesastrosasconsequênciassociais,políticaseambientaisdainfinita“acumulaçãopelaacumulaçãoeproduçãopelaprodução” estão aí, diante de nossos olhos. No meio do que Marx, nos Grundrisse, chama de“contradiçõesagudas,crises,convulsões”[11],talvezdevêssemosprestaratençãoàsuaconclusãodeque“a destruição violenta de capital, não por circunstâncias externas a ele, mas como condição de suaautoconservação,éaformamaiscontundenteemqueocapitaléaconselhadoaseretirarecederespaçoaumestadosuperiordeproduçãosocial”.

LEITURASADICIONAISArrighi,G.TheLongTwentiethCentury:Money,PowerandtheOriginofOurTimes.Londres,Verso,1994.[Ed.bras.:OlongoséculoXX:

dinheiro,podereasorigensdonossotempo,trad.VeraRibeiro,RiodeJaneiro/SãoPaulo,EditoraUnesp/Contraponto,1996.]Arrighi,G.;Silver,B.ChaosandGovernanceintheWorldSystem.Minneapolis,UniversityofMinnesotaPress,1999.[Ed.bras.:Caose

governabilidadenomodernosistemamundial,trad.VeraRibeiro,RiodeJaneiro,Contraponto/EditoraUFRJ,2001.]Brenner,R.TheBoomand theBubble:TheUSin theWorldEconomy.Londres,Verso,2002. [Ed.bras.:Oboomeabolha, trad.Zaida

Maldonado,RiodeJaneiro,Record,2003.]Duménil,G.;Lévy,D.CapitalResurgent:RootsoftheNeoliberalRevolution.Cambridge,HarvardUniversityPress,2004.Coronil,F.TheMagicalState:Nature,MoneyandModernityinVenezuela.Chicago,UniversityofChicagoPress,1997.Fine,B.;Saad-Filho,A.Marx’sCapital.4.ed.,Londres/NovaYork,PlutoPress,2003.Gowan,P.TheGlobalGamble:Washington’sFaustianBidforGlobalDominance.Londres,Verso,1999.

Page 27: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Foster,J.B.EcologyAgainstCapitalism.NovaYork,MonthlyReviewPress,2002.Harvey,D.TheConditionofPostmodernity.Oxford,Blackwell,1989.[Ed.bras.:Condiçãopós-moderna,SãoPaulo,Loyola,1994.]_____.Justice,NatureandtheGeographyofDifference.Cambridge,Blackwell,1996._____.TheArtofRent:Globalization,MonopolyandtheCommodificationofCulture. In:Leys,C.;Panitch,L.(orgs.).Socialist Register.

Londres, v. 38, 2002. Disponível em <http://socialistregister.com/index.php/srv/article/view/5778#.UhjRsxusim4>. Acesso em: 24 ago.2013.[Ed.bras.:“Aartedarenda:aglobalizaçãoetransformaçãodaculturaemcommodities”,emAproduçãocapitalistadoespaço,trad.CarlosSzlak,SãoPaulo,Annablume,2005,cap.8.]

_____.TheNewImperialism.Oxford,OxfordUniversityPress,2003.[Ed.bras.:Onovoimperialismo,SãoPaulo,Loyola,2004.]_____.ABriefHistoryofNeoliberalism.Oxford,OxfordUniversityPress,2005.[Ed.bras.:Oneoliberalismo:históriaeimplicações,São

Paulo,Loyola,2008.]_____.SpacesofGlobalCapitalism:TowardsaTheoryofUnevenGeographicalDevelopment.Londres,Verso,2006.Jessop,B.Liberalism,Neoliberalism,andUrbanGovernance:aStateTheoreticalPerspective.In:Brenner,N.;Theodore,N.(orgs.).Spaces

ofNeoliberalism:UrbanRestructuringinNorthAmericaandWesternEurope.Oxford,Blackwell,2002.Luxemburgo,R.TheAccumulationofCapital.Londres,1968.[Ed.bras.:Acumulaçãodocapital,SãoPaulo,NovaCultural,1988.]Mertes,T.(org.).AMovementofMovements.Londres,Verso,2004.Ngai,P.MadeinChina:WomenFactoryWorkersinaGlobalWorkplace.Durham/HongKong,DukeUniversityPress/HongKongUniversity

Press,2005.O’Connor,J.NaturalCauses:EssaysinEcologicalMarxism.NovaYork,GuilfordPress,1997.Ollman,B.DialecticalInvestigations.NovaYork,Routledge,1993.Panitch, L.; Gindin, S. Finance and the American Empire. In: _____. (orgs.). Socialist Register , v. 41, 2005. Disponível em

<http://socialistregister.com/index.php/srv/issue/view/442#.UhjXUhusim5>.Acessoem:24ago.2013.Saad-Filho,A.;Johnston,D.Neoliberalism:ACriticalReader.Londres,PlutoPress,2005.Wood,E.M.EmpireofCapital.Londres,Verso, 2003. [Ed. bras.: Impériodocapital, trad. PauloCastanheira, SãoPaulo,Boitempo, no

prelo.]

[1]KarlMarx,Ocapital,LivroI(trad.RubensEnderle,SãoPaulo,Boitempo,2013),p.721.

[2] Ver Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Relatório do desenvolvimento humano 1996 e Relatório dodesenvolvimentohumano1999(NovaYork,Pnud);EricDash,“OfftotheRacesAgain,LeavingManyBehind”,NewYorkTimes,9abr.2006,p.1,5;PaulKrugman,“GraduatesversusOligarchs”,NewYorkTimes,27fev.2006,p.A19;NinaMunk,“Don’tBlink.You’llMissthe258thRichestAmerican”,NewYorkTimes,25set.2005,p.3.

[3]Cf.otrabalhodePunNgainabibliografiaabaixo.

[4]KarlMarx,Grundrisse(trad.MarioDuayeretal.,SãoPaulo/RiodeJaneiro,Boitempo/EditoraUFRJ,2011),p.61.

[5]Para relatosmais completos dessa visão da dialética deMarx, verBertellOllman,DialecticalInvestigations (NovaYork, Routledge,1993),eDavidHarvey,Justice,Nature,andtheGeographyofDifference(Cambridge,Blackwell,1996),cap.2.

[6]VerDavidHarvey,Oneoliberalismo:históriaeimplicações(SãoPaulo,Loyola,2008),cap.3.

[7]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.

[8]EllenMeiksinsWood,Impériodocapital(SãoPaulo,Boitempo,noprelo).

[9]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.187.

[10]JennyAnderson,“FundManagersRaisingtheAnteinPhilanthropy”,NewYorkTimes,3ago.2005,seçãoBusiness,p.1,3.

[11]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.627.

Page 28: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Introdução

TodosqueestudamMarx,diz-se,sesentemimpelidosaescreverumlivrosobreaexperiência.Ofereçoestetrabalhocomoumaprovaparcialdeumaproposiçãodessetipo.Mastenhoumadesculpaadicional.Depois de concluir Justiça social e a cidade (há quase uma década), determinei-me a melhorar atentativa–oquenoteimais tarde ter sidoumerro–eas formulaçõesaesse respeitoeescreverumadeclaração definitiva sobre o processo urbano no capitalismo a partir de uma perspectiva marxista.Quantomaisprofundamente iameenvolvendonoprojeto,mais tomava consciênciadeque algunsdosaspectosmaisbásicosdateoriamarxianaàqualeubuscavaapelarpermaneciambastanteinexploradose,emalgunscasos,quasedesprovidosdeconsideração.Então,comeceiaescreverateoriadaurbanização,para integrá-la com estudos históricos detalhados do processo urbano extraídos da Grã-Bretanha, daFrança e dos EstadosUnidos e, enquanto isso, casualmente encher algumas “caixas vazias” na teoriamarxiana.Oprojeto logose tornou totalmentepesado.Neste livro, longocomoeleé, tratoapenasdas“caixasvazias”nateoria.Deixe-meexplicarcomoissoaconteceu.

EmMarx,éaomesmotempoumavirtudeeumadificuldadequetudoserelacioneatodooresto.Éimpossível trabalharemuma“caixavazia”semsimultaneamentetrabalharemtodososoutrosaspectosda teoria.Osfragmentose trechosqueeuprecisavaentender–comoacirculaçãodocapitalemáreasconstruídas, o papel do crédito e dos mecanismos (como a renda) que medeia a produção dasconfigurações espaciais – não podiam ser entendidos sem uma atenção cuidadosa aos seusrelacionamentoscomo restoda teoria.Vi,porexemplo,queerrosanteriores sobrea interpretaçãodarenda surgiram precisamente de uma falha em integrar esse aspecto isolado da distribuição na teoriageral da produção e distribuição queMarx propunha.No entanto, a dificuldade é que existemmuitasinterpretações diferentes dessa teoria geral. Além disso, como era de se esperar, a investigação dostópicosqueeramparamimdeparticularinteressesugeriamnovasmaneirasdepensarnateoriadovalor,nateoriadacriseetc.Nãotiveoutraopçãosenãoescreverumtratadosobreateoriamarxianaemgeral,prestandoatençãoparticularnacirculaçãodocapitalnasáreasconstruídas,nosistemadecréditoenaproduçãodasconfiguraçõesespaciais.

Tudoissomelevoumuitomais longedomeuinteresseoriginalnaurbanizaçãonocapitalismo;nosdetalhesdaadministraçãodeHaussmannemParisenassubsequentesglóriasehorroresdaComunadeParis;nosprocessosdetransformaçãourbanaenalutadeclassesemminhacidadedeadoção,Baltimore.

Page 29: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Entretanto,osvínculosestavamali.Achoqueépossíveljuntartudoisso,transcenderosaparenteslimitesentreateoria,abstratamenteformulada,eahistória,concretamenteregistrada;entreaclarezaconceitualdateoriaeasconfusõesaparentementeinfinitasdapráticapolítica.Masotempoeoespaçomeobrigamaescreverateoriacomoumaconcepçãoabstrata,semreferênciaàhistória.Nessesentido, temoqueapresenteobrasejaapenasumapálidajustificativaparaumaconcepçãomaravilhosa.E,alémdisso,umaviolaçãodosideaisdomaterialismohistórico.

Comoautodefesa,devodizerqueninguémmaispareceterencontradoumamaneiradeintegrarteoriae história, de preservar a integridade de ambas, mesmo que transcendendo sua separação. Marx seesforçoumuitoparamantera relaçãohistória-teoria intactanoprimeiro livrod’Ocapital,mas cobriuprovavelmentecercadeumvigésimodoquepretendiacomoresultado(elenuncaterminouOcapitaleprojetoulivrossobrecomércioexterior,mercadomundialecrises,oEstadoetc.,queficaramtotalmenteintocados). E a história desaparece quase inteiramente dos estudos preparatórios que compõem osegundolivro.Deminhaparte,oquepretendiaeraimergirnosmateriaisqueMarxreuniunostrêslivrosd’Ocapital,nas trêspartesdasTeoriasdomais-valorenosGrundrisse, parameocupardos tópicosparticulares que me interessavam. Não havia como fazer isso, exceto despindo a teoria de qualquerconteúdohistóricodireto.

Porém,esperoqueateoriageralaquiapresentadasejaútilparaoestudodahistóriaedaformulaçãodaspráticaspolíticas.Euacheiqueseria.Issomeajudouaentenderporqueocapitalismoseengajaemostentaçõesperiódicasdeinsanaespeculaçãodaterra;porqueHaussmannfoiderrubadoem1868pelosmesmostiposdedificuldadesfinanceirasqueincomodaramNovaYorknadécadade1970;porquefasesda crise são sempre manifestas como uma reorganização conjunta tanto das tecnologias quanto dasconfiguraçõesregionaisparaaprodução;eassimpordiante.Sópossoesperarqueoutrosconsideremateoriatãoútil.E,casonãoconsiderem,entãosuponhoquecabeamimdemonstrarautilidadedateorianasobrasfuturasquetenhamumconteúdohistórico,geográficoepolíticomaisexplícito.Entretanto,issonão deve ser considerado a ponto de significar que encaro a teoria como correta e sacrossanta. Elacertamente merece todos os tipos de modificação à luz da revisão crítica, uma melhor e mais geralconstruçãodateoria,eumatestagemcompletaemcontraposiçãoaoregistrohistórico,assimcomoaosentusiasmosda lutapolítica.Publicoessesachados teóricoscomoumacontribuiçãoaumprocessodedescoberta coletivo. Faço isso agora porque não posso levar o temamuito adiante semumamudançaradicalnadireção,oquelevarámuitosanosmaisparaproduzirfrutos.

Eu poderia inflar esta introdução com comentários eruditos sobre questões como epistemologia eontologia, sobre a teoria e a prática do materialismo histórico, sobre a “verdadeira” natureza dadialética.Prefirodeixarosmétodostantodainvestigaçãoquantodaapresentaçãofalaremporsipormeiodotextoedeixaroobjetodainvestigaçãoemergirnodecorrerdoestudo,emvezdedefini-loapriori,comoalgumcartazrecortadoemumpalcoiluminadoportrás.Masalgunscomentáriosgeraissobreoqueeutenteifazer,ecomo,podemserúteisaoleitor.

O objetivo geral foi combinar um modo de pensar que eu entendo como dialético com tantasimplicidadedeexposiçãoquantoumtematãonotoriamentecomplicadopossapermitir.Essesobjetivosnãosãofacilmenteconciliados.Emalgunspontos,oesforçoparaasimplicidademelevaperigosamentepróximodosperigosdo reducionismo,aopassoqueemoutrosa lutaparamemanter fiel à intrincadaintegridadedo temameconduzàbeiradoobscurantismo.Nãoevitei nenhumdesses errosparaminhaprópriasatisfação,eestoubastanteconscientedequeoqueaparentaserreducionistaparaoespecialistahá muito embebido na teoria marxiana pode parecer desnecessariamente obscuro para o novato no

Page 30: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

assunto.Minhatáticadiantedissofoimeesforçaremproldasimplicidadenoscapítulosdeaberturaparaproporcionar aos novatos, dispostos a lutar com conceitos reconhecidamente difíceis, a maioroportunidadepossíveldelidarcomascontribuiçõesmaissubstantivasdoscapítulosposteriores.Tenteimemanteromaisfielpossívelàcomplexidadedotemanoscapítulossobreocapitalfixo,asfinançaseodinheiro,arendaeaproduçãodeconfiguraçõesespaciais.

Entretanto,nãoqueroqueaargumentaçãosejaconstruídalinearmente,apesardaaparentelinearidadeno fluxo. Os primeiros capítulos não são alicerces firmes e fixos sobre os quais todos os capítulossubsequentesestãoerigidos.Nemosúltimoscapítulosderivadosoudeduzidosdeumconjuntooriginaldeproposiçõesadiantadasnoinício.Emvezdisso,começocomasabstraçõesmaissimplesqueMarxpropôs e depois busco expandir seu significado considerando-as em diferentes contextos.A visão dotodo deve se desenvolver namedida em quemais emais fenômenos são integrados no vasto quadrocompostodoquepareceserocapitalismo,comoummododeprodução.Adificuldadeaquiécriarummododeapresentação–umaformadeargumentação,sevocêassimpreferir–quenãosejaumaviolaçãoaoconteúdodospensamentosexpressados.Cadacapítuloseconcentraemumaspectoparticulardotodo.A dificuldade é preservar o enfoque e aomesmo tempomanter a relação com todo o resto que estáamplamente à vista. A constante invocação de “todo o resto” seria uma confusão desnecessária noscapítulos posteriores e tornaria os capítulos iniciais incompreensíveis, porque os temas ainda nãoanalisadosteriamdeserinvocadossemexplicação.MarxtentoulidarcomoproblemanoscapítulosdeaberturadeOcapitalcriandoumalinguagemdetaldensidadeetotalabstraçãoqueamaioriadosmortaisé deixada totalmente perplexa, pelomenos na primeira leitura.Busquei um campo intermediário.Usonoções de oposição, antagonismo e contradição como fios de conexão para unir osmateriais.Assim,emprego um recurso lógico que Marx usa com grande efeito. Os detalhes serão exploradosposteriormente,masvaleapenaelucidarporantecipaçãoa táticageral,pelomenosparadarao leitoralgumaideiadecomoserádesenvolvidaaargumentaçãosubsequente.

A cada passo na formulação da teoria encontramos antagonismos que estão incorporados emconfigurações intrigantes de contradição interna e externa. A resolução de cada uma simplesmenteprovocaaformaçãodenovascontradiçõesousuatranslaçãoparaalgumterrenonovo.Dessamaneiraaargumentaçãopodesedeslocarparadentroeparaforaparaabrangercadaaspectodomododeproduçãocapitalista.Porexemplo,MarxabreOcapital coma ideiadeque amercadoriamaterial é aomesmotempoumvalordeusoeumvalordetroca,equeasduasformasdevalorsãonecessariamenteopostasumaàoutra.Essaoposição(queéinternaaoproduto)adquiresuaexpressãoexternanaseparaçãoentreasmercadoriasemgeral(valoresdeuso)eodinheiro(amerarepresentaçãodovalordetroca).Masodinheiro então internaliza funções que só podem ser resolvidas em sequência se ele circular de certamaneiracomocapital.Eassimaargumentaçãoprossegueparaabrangeroantagonismodeclasseentreocapitaleotrabalho,adinâmicacontraditóriadamudançatecnológicae,finalmente,sedesenvolveparauma reflexão elaborada e prolongada sobre essas contradições aparentemente inconciliáveis queconduzem o capitalismo para os cataclismos de crises. Os sete primeiros capítulos resumem einterpretamaargumentaçãodeMarx,deacordocomessalógica,atéopontoquechamode“oprimeirorecorte”nateoriadacrise,comoéexemplificadopelateoriadataxadelucrodecrescente.

Nos capítulos remanescentes, uso omesmo recurso lógico para estender a argumentação deMarxpara um terreno menos familiar. No capítulo 8, a análise do capital fixo e da formação de bens deconsumo mostra que os excedentes de capital e trabalho produzidos sob as condições descritas no“primeirorecorte”nateoriadacrisepodemserabsorvidospelacriaçãodenovasformasdecirculação

Page 31: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

voltadas para usos futuros, em vez de para usos presentes. Mas então descobrimos que essas novasformas, em longoprazo, estão emdesacordo comumadinâmica contínuadamudança tecnológica, elaprópriaumacondiçãonecessáriaparaaperpetuaçãodaacumulação.Comoresultado,o“valor”colocadonocapitalfixotorna-seumamagnitudeinstável.Acirculaçãocontinuadadocapitaléameaçadaporumagrandedilaceração.

Osistemadecréditosurgeentãopararesgatá-la.Noscapítulos9e10descobrimosqueosistemadecrédito, como uma espécie de “sistema nervoso central” para a regulação do fluxo de capital, tem opotencialpararesolvertodososdesequilíbriosaosquaisocapitalismoestápropenso,pararesolverascontradiçõesanteriormenteidentificadas,massópodefazê-loàcustadainternalizaçãodascontradições.Aconcentraçãomaciçadopoderfinanceiro,acompanhadapelasmaquinaçõesdocapitalfinanceiro,podetãofacilmentedesestabilizarquantoestabilizarocapitalismo.E,emqualquerdoscasos,umaoposiçãofundamentalsurgeentreosistemafinanceiro–acriaçãododinheirocomodinheirodecrédito–esuabasemonetária(ousododinheirocomoumamedidadevalor).Issodeterminaopalcoparaexaminarosaspectosfinanceirosemonetáriosdaformaçãodacrise, incluindopânicosfinanceirose inflação.Esseconstituio“segundorecorte”nateoriadacrise.

Ocapítulosobrearendacompletanominalmentea teoriadadistribuição,mas tambémnospermiteconsiderarasdinâmicasespacialetemporalapartirdeumaperspectivateórica.Umaanáliseposteriordasmobilidadesgeográficasdocapitaledotrabalhomostracomoascontradiçõesdocapitalismosão,pelo menos em princípio, suscetíveis a um “ajuste espacial” – a expansão geográfica e odesenvolvimentogeográficodesigualresistemàpossibilidadedeumcapitalismopropensoàcontradiçãopor direito próprio. Isso conduz diretamente ao “terceiro recorte” na teoria da crise, que lida com aformação da crise em seus aspectos espaciais. Sob esse título podemos abordar os problemas doimperialismoedasguerrasinterimperialistasapartirdeumaperspectivanova.Vemosmaisumavezqueabuscadeum“ajusteespacial”paraascontradiçõesinternasdocapitalismosimplesmenteterminaporprojetá-las,emboraemnovasformas,nocenáriomundial.Afirmoqueissonospermiteaconstruçãodeumaestruturaparateorizarsobreageografiahistóricadomododeproduçãocapitalista.

Não digo que esse seja o fim das questões – como poderia ser, considerando-se o modo deteorização?Indicoalgumasáreasdeassuntosinacabadosnoepílogo.Tambémnãoafirmoquetudooquetenhoadizersejaoriginalouincontestável.Oquemeconduzaoutraquestãoquemereceserabordadanestaintrodução.

A tradição intelectualmarxistapassouporumnotável ressurgimentonadécadapassada,oqual foimarcadopordiscussõesanimadasepolêmicasvigorosas,reforçadaspornãopoucosarcasmo.Tenhomeesforçado, nem sempre com sucesso, para me manter em dia com a literatura, que tem aumentadoenormemente,mesmoduranteoespaçodosmaisoumenoscincoanosqueleveiparaescreverestelivro.Reconheceroestímuloacadapensamentoexpressadonotextorequereriaumnúmeroincontáveldenotasde rodapé. Por isso, quero simplesmente reconhecer meu profundo débito aos esforços coletivos demuitos escritores, pensadores e profissionais abalizados. A coragem daqueles como Paul Sweezy,Maurice Dobb, Paul Baran, Edward Thompson, Eric Hobsbawm, Roman Rosdolsky e outros, quemantiveramvivaachamadopensamentomarxistaduranteanos incrivelmentedifíceis, foi sempreumainspiração.Semoestímulodoressurgimentodopensamentomarxista,queescritorestãodiversoscomoAlthusser,Poulantzas,Wallerstein,Amin,Mandeleoutrosarticularam,euprovavelmenteteriadesistidodeste projeto hámuito tempo. Entre esses pensadores, conto comManuel Castells eVicenteNavarrocomoamigospessoais,querepetidasvezesmeproporcionaramajudaeencorajamento.

Page 32: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Tambémme esforcei para selecionar o melhor que pude os debates (embora deva confessar quedesisti de alguns deles com profunda frustração).Mas confrontar as várias posições assumidas sobrecadapontodecontrovérsiaestenderia infinitamenteo texto,apesardealgumasobras,comoadeKozoUno,teremaparecidotardedemaisnocenárioparaqueeulhesprestasseadevidaatençãoquemerecem.Então,decidimeocupardiretamenteapenasdosdebatesmaisfundamentais,poisestessechocavamcompontos-chave da minha própria argumentação. E, mesmo assim, tendo a renunciar à polêmica esimplesmentemencionodepassagemaquelesqueforamosparticipantesmaisativosnodebate.Esperoqueauniformidadedofluxocompenseaausênciadepirotecniasverbais.

Finalmente, há aquelas pessoas e instituições com as quais estou diretamente em débito de umamaneira ou de outra. Tenho a satisfação de agradecer o recebimento de uma bolsa do MemorialGuggenheimemParis, quemepermitiu ter tempopara estudar a experiência da urbanização francesa,mas, talvez mais importante, me permitiu enfrentar as complexidades ativas da tradição marxistafrancesa.M.G.Wolman,chefedoDepartamentodeGeografiaeEngenhariaAmbientalnaUniversidadeJohnsHopkins,demonstrouumprofundocomprometimentocomoprincípiodaliberdadedepesquisae,dessemodo,ajudouacriarcondiçõesdetrabalhoqueforamextremamentefavoráveis.

Tive tambémaboasortedemereunircomumgrupodepessoasno iníciodadécadade1970queparticiparamdeumaexploraçãonotavelmenteestimulantedopensamentomarxista.DickWalkereLeeJordan,GeneMumy,JörneAltrudBarnbrock,FlorTorreseChuckSchnell,RicPfeffer,LataChatterjeeeBarbara Koeppel compartilharam suas perspectivas e, mediante seus esforços coletivos, ajudaram aremoverascamadasdemistificaçãoquenoscercavam.E,oqueémelhor,fizeramissocomumespíritode diversão e alegria que é realmente raro no companheirismo humano. E, nos últimos anos, BeatrizNofal e Neil Smith continuaram essa tradição. Eles também acompanharam, página por página, omanuscrito.Tenhoumadívidaenormeparacomeles.Barbara,Claudia,JohneRosiemeproporcionaramumapoiomuito especial.Finalmente, JohnDavey,daBasilBlackwell, esperoudemaneirapaciente eencorajadoraoprodutofinalebondosamentemepermitiurequisitarumcantoàsvezesensolaradodasuacozinhaparaescreverestasemuitasoutraslinhas.

Page 33: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

1.Mercadorias,valoreserelaçõesdeclasse

Ométododeanálisequeempreguei,equeaindanãohaviasidoaplicadoaosassuntoseconômicos,tornabastanteárduaaleituradosprimeiroscapítulos[…].Eisumadesvantagemcontraaqualnadapossofazer,anãoserprevenirepremunirosleitoresávidospelaverdade.Nãoexisteumaestradarealparaaciência,esomenteaquelesquenão tememafadigadegalgarsuas trilhasescarpadastêmchancedeatingirseuscumesluminosos.[1]

Marx inicia a sua análise n’Ocapital examinando a natureza dasmercadorias.À primeira vista, essaescolhapareceumtantoarbitrária.Noentanto,se revirmososescritospreparatóriosparaOcapital –que se estenderam por quase três décadas –, perceberemos que a escolha não foi de modo algumarbitrária.Elafoioresultadodeumaextensainvestigação,umalongaviagemdedescobertaquelevouMarx a uma conclusão fundamental: deslindar os intrincados segredos do próprio capitalismo.Começamoscomoqueé,naverdade,umaconclusão.

Marxconsideraamercadoriacomoumaincorporaçãomaterialdovalordeuso,dovalordetrocaedovalor.Maisumavez,essesconceitosnossãoapresentadosdeumamaneiraaparentementeabstrata,deforma a parecer que nos encontramos “diante de uma construção a priori”[2]. Estes são os conceitosabsolutamentefundamentaisparatudooquesesegue.Sãooeixoemtornodoqualgiratodaaanálisedocapitalismo.Temosdeentendê-losparaconseguirentenderoqueMarxtemadizer[3].

Nissohácertadificuldade.Entendertotalmenteosconceitosrequerqueentendamosalógicainternadoprópriocapitalismo.Comoprovavelmentenãoconseguimos ter esseentendimentono início, somosobrigados a usar os conceitos sem saber exatamente o que eles significam. Além disso, a maneirarelacionaldeprocederdeMarxsignificaqueelenãoconseguetratarnenhumconceitocomoumblocodeconstrução fixo, conhecido oumesmopassível de ser conhecido, baseado no qual se interpreta a ricacomplexidade do capitalismo. Ele parece dizer que não podemos interpretar valores sem entender osvaloresdeusoeosvaloresdetroca,enãopodemosinterpretarestasúltimascategoriassemumplenoentendimento das primeiras. Marx nunca trata nenhum conceito isoladamente, como se pudesse serentendidoemsimesmo.Elesempreseconcentraemumououtrodatríadedepossíveisrelaçõesentreeles–entreovalordeusoeovalordetroca,entreovalordeusoeovalor,entreovalordetrocaeovalor.Oquerealmenteimportasãoasrelaçõesentreosconceitos.

Page 34: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Nodecorrerd’Ocapital, podemosobservarMarx sedeslocandodeumpar relacionalparaoutro,usandoinsightsacumuladosapartirdeumpontodevistaparaestabelecerinterpretaçõesparaoutro.Écomose,paraemprestarumaimagemdeOllman,Marxvissecadarelaçãocomouma“janela”separadadaqualpodemosolharaestruturainternadocapitalismo.Avisãodequalquerjanelaisoladaéplanaedesprovidadequalquerperspectiva.Quandonosmovemosparaoutra janelapodemosenxergarcoisasque anteriormente estavam escondidas. Munidos desse conhecimento, podemos reinterpretar ereconstituir nosso entendimento do que vimos através da primeira janela, proporcionando-lhe maiorprofundidadeeperspectiva.Movendo-nosde janelaem janelae registrandoatentamenteoquevemos,podemos nos aproximar cada vez mais do entendimento da sociedade capitalista e de todas as suascontradiçõesinerentes.

Essamaneiradialéticadeprocederimpõemuitacoisaaoleitor.Somosobrigadosatatearnoescuro,providosdeconceitos altamenteabstratos e aparentemente sobreosquais entendemospoucoa priori,trabalhando a partir de perspectivas que ainda não estamos em posição de avaliar. Por isso, muitosleitoresencontramgrandedificuldadenaleituradosprimeiroscapítulosd’Ocapital.Mas,apósandaràscegasporumperíododolorosoefrequentementefrustrante,começamosaperceberondeestamoseoqueestamos buscando. Entendimentos sombrios emergem quando Marx nos esclarece pouco a poucodiferentesaspectosdacomplexidadeintrincadadocapitalismo.Osignificadodosconceitosdevalordeuso,valordetrocaevalortorna-semaisclaronodecorrerdaanálise.Quantomaisentendemoscomoocapitalismofunciona,maisentendemosaqueessesconceitossereferem[4].

Tudo isso contrasta vivamente com a abordagem de “blocos de construção” do conhecimento, tãotípicadaciênciasocialburguesaeprofundamenteenraizadanosmodosdepensarburguesesamplamenteaceitos. Segundo essa linha de pensamento, é ao mesmo tempo possível e desejável construir basessólidasparaoconhecimento,isolandooscomponentesbásicosqueestãonointeriordosistemasocialesubmetendo-osaumadetalhadainvestigação.Umavezentendidoocomponente,podemosconstruirsobreele como se houvesse uma base fixa e imutável para uma investigação subsequente. De tempos emtempos,éclaro,aspedrasfundamentaisdoconhecimentopareceminsatisfatórias,equandoasrachadurasnelas existentes se tornam óbvias para todos, testemunhamos uma daquelas dramáticas revoluções nopensamento –mudanças de paradigma, como são às vezes chamadas –, tão características da ciênciaburguesa.

A maioria de nós criados nas tradições de pensamento ocidentais se sente à vontade com essaestratégia de investigação. E – se é que a entendemos – encaramos o afastamento de Marx dessastradições como desconcertante, se não totalmente perverso. E sempre está ali a tentação de procurarreduzir o não familiar ao familiar reafirmando os argumentos de Marx em termos mais prontamentecompreensíveis.Essa tendênciaestána raizdemuitas interpretaçõesequivocadasdeMarx tantopelosmarxistasquantopelosnãomarxistas.Issoproduzoquechamareideumainterpretação“linear”dateoriaapresentadan’Ocapital[5].

Essainterpretação“linear”continuaaolongodotextoquesesegue.Diz-sequeMarxestabeleceutrêsblocosdeconstruçãopotenciaisparainterpretaraproduçãoeatrocademercadorias,apresentando-nososconceitosdevalordeuso,valordetrocaevalor.Elesupostamenteseabstraidasquestõesdovalordeusonaprimeirapáginad’Ocapitaledepoisencaraoestudodelascomoirrelevanteparaoseupropósito,emboracontinuesendodeinteressehistórico.Umainvestigaçãodosvaloresdetrocaserveapenasparamostrarqueossegredosdocapitalismonãopodemserreveladosporumestudoapenasdeles.EassimMarxconstróiateoriadovalor-trabalhocomoabasesólida,oblocodeconstruçãofixoque,quandose

Page 35: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

constrói sobre ele, vai nos dizer tudo o que precisamos saber sobre o capitalismo.A justificação dateoria do valor-trabalho, segundo essa visão, está na descoberta de Marx de que “toda história é ahistóriadalutadeclasses”,equeateoriadovalor-trabalhodevesermantidaporqueéaexpressãodasrelaçõesdeclassedocapitalismo.

Essa versão “linear” da teoria de Marx se depara com várias dificuldades, das quais vamosconsiderarbrevementeuma.Noterceirolivrod’Ocapital,Marxexaminaa“transformaçãodosvaloresem preços”. A precisão do seu procedimento de transformação é vital para a interpretação “linear”porqueMarxpareceestarderivandoosvaloresdetrocadoblocodeconstruçãofixodateoriadovalor.Comotodosadmitemqueocapitalismooperacomvaloresdetrocaenãocomvalores,aanálisedeMarxdas “leis domovimento” do capitalismo se sustenta ou cai, de acordo com essa interpretação, com acoerêncialógicadatransformação.

Infelizmente,atransformaçãodeMarxéincorreta.Parecenãohaverumarelaçãonecessáriaentreosvaloresincorporadosnasmercadoriaseasproporçõesemqueasúltimassãotrocadas.Osdetratores(ealgunssimpatizantes)burgueses ficaramencantados.Eles retratamoprimeiroeo terceiro livroscomocontradizendoinconciliavelmenteumaooutro.DizemqueMarxfinalmenterecuperouojuízonoterceirolivroeentendeuqueateoriadovalordoprimeirofoiumadistraçãoirrelevante,namedidaemquedizrespeito ao entendimento dos processos reais de produção e troca de mercadoria. Tudo o que erarequeridopararealizarestaúltimaeraumateoriadepreçosrelativossemnenhumareferênciaavalores.Eesseargumento,dadaainterpretaçãolinear,ésuficientementepoderosoparaconduzirosmarxistasacertainsegurançaquantoàrelevânciadateoriadovalormarxianaouàssuaslinhasdedefesa,quesoammeramenteassertivasemoposiçãoacoerenteseconvincentes.

MasumexamedaobradeMarxmostraqueosvaloresdetroca,longedeseremderivadosdateoriadovaloremalgumaetapatardiadojogo,sãodesdeoiníciofundamentaisparaainvestigação.Semalgumentendimentodelesnãopodemosdizernadasignificativosobreovalor.Ovalordetrocaeovalorsãocategoriasrelacionais,enenhumadelaspodesertratadacomoumblocodeconstruçãofixoeimutável.Oestudo deMarx do problema da transformação é apenas um passo em uma investigação contínua dasintrincadasrelaçõesentreeles.E,maisdefinitivamente,elenãoestábuscandoderivarvaloresdetrocados valores, como parece ser o caso na interpretação linear. Isso explica por queMarx, que estavaplenamente consciente dos defeitos lógicos do seu argumento (embora talvez não de todas asimplicações), pôde rejeitá-los como não importantes em relação ao tópico atual no qual ele estavainteressado.Entretanto,estaéumaquestãoàqualretornaremosnocapítulo2.

Porissodevemosevitarqualquercoisaquecheireaumainterpretação“linear”dateoriamarxiana.Mas se seguirmos o método de Marx, isso significa que estamos propensos a encontrar os tipos dedificuldadesenfrentadasporqualquerleitord’Ocapital.Temosdecomeçartateandonoescuro,munidosdascategoriasmarxianasquesão,namelhordashipóteses,parcialmenteentendidas.Infelizmente,nãohácomoevitarmosessadificuldade–“nãoexisteumaestradarealparaaciência”.

NestecapítulotentareireconstruiroargumentodeMarxsobreasrelaçõesentreosvaloresdeuso,ovalordetrocaeosvaloresemcondiçõesdeproduçãoetrocademercadoria.Aomesmotempo,buscareiexplicaroqueMarxestáfazendoeporquê.Dessamaneira,espero tornarumpoucomenosfatiganteaíngremesubidaparaoscumesluminososdateoriamarxiana.

I.VALORESDEUSO,VALORESDETROCAEVALORES

Page 36: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

1.Valoresdeuso

NabasedaconcepçãodomundodeMarxestáanoçãodeumaapropriaçãodanaturezapelossereshumanos para satisfazer suas vontades e necessidades. Essa apropriação é um processo materialincorporado nos atos de produção e consumo. Sob condições de produção demercadoria, os atos deprodução e consumo são separados pela troca. Mas a apropriação da natureza sempre permanecefundamental.DaínuncapodermosignoraroqueMarxchamade“aformanatural”dasmercadorias.Fazerissoseriaremoverasatisfaçãodosdesejosenecessidadeshumanosdequalquerrelaçãocomanatureza.

Esse lado material das mercadorias é capturado em sua relação com os desejos e necessidadeshumanospeloconceitodoseuvalordeuso.Ovalordeusopodeserencarado“sobumduplopontodevista:odaqualidadeeodaquantidade”.Comoum“conjuntodemuitaspropriedades”quepodemserúteis“sobdiversosaspectos”,amercadoriapossuialgumasqualidadesquese relacionamadiferentestipos de desejos e necessidades humanos. O alimento satisfaz a nossa fome, as roupas a nossanecessidadedeaquecimento,eahabitaçãoanossanecessidadedeabrigo.E,emboraMarxinsistaque“cadaumadessascoisaséumconjuntodemuitaspropriedadesepode,por isso,serútil sobdiversosaspectos”, ele também insiste que “na consideração do valor de uso será sempre pressuposta suadeterminidade quantitativa, como uma dúzia de relógios, uma braça de linho, uma tonelada de ferroetc.”[6].

Emrelaçãoaovalorde troca,queéencaradoprincipalmentecomoumarelaçãoquantitativa,Marxenfatiza os aspectos qualitativos dos valores de uso.Mas em um sistema sofisticado e intrincado deproduçãodemercadoria,osaspectosquantitativosdosvaloresdeusosetornamdegrandeimportância.Os produtores usam uma determinada quantidade de dados – força de trabalho, matérias-primas einstrumentosdeprodução–paracriarumaquantidadedeprodutosfísicosqueéusadaparasatisfazerosdesejoseasnecessidadesdeumdeterminadonúmerodepessoas.Aproporçãodosinsumosfísicosemrelaçãoaosprodutosnoprocessodeproduçãoproporcionaumamedidafísicadeeficiência.Adescriçãodeinsumoseprodutosagregadosnosproporcionaumquadrogeraldecomoaapropriaçãodanaturezaserelacionaaosdesejosenecessidadessociais.

Em uma sociedade caracterizada pela divisão do trabalho e pela especialização da produção,podemos definir as exigências de reprodução social em termos da quantidade de produto em umaindústria específica (como ferro e aço) necessária para satisfazer as demandas de todas as outrasindústrias (como a automobilística, de construção, de maquinários etc.). Um estado de reprodução éaqueleemqueosinsumoseosprodutosestãoequilibrados.Podemosidentificarumexcedentedentrodeumsistemadessetipocomoumprodutoexcedente:ouseja,umaquantidadedevaloresdeusomateriaisalémdaquelesnecessáriosparareproduzirosistemaemumdadoEstado.Oprodutoexcedentepodeserusadodeváriasmaneiras,comonaconstruçãodemonumentosounacriaçãodenovosmeiosdeproduçãoparaajudaraproduziraindamaisprodutoexcedente.Oprodutoexcedentedediferentesindústriaspodeserrecombinadodeformaqueaquantidade totaldeprodutoseexpandanocorrerdo tempo,sejapelaexpansãosimplesdasindústriasexistentesoupelaformaçãodeindústriasinteiramentenovas.

As características quantitativas de tal sistema de produção física são de considerável interesse,embora haja, é claro, alguns problemas de especificação. Precisamos saber quais valores de uso sãorequeridosparareproduzirouexpandiraforçadetrabalho(nuncaumaquestãofácil),comoidentificarasindústrias, como registrarcontabilmenteocapital fixo,osprodutosemcomumetc.Masanecessidadeóbviadeequilibrarasquantidadesdeinsumoseprodutostornaoestudodiretodosaspectosfísicostanto

Page 37: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

possível quanto potencialmente esclarecedor – por isso, eles têm sido o foco desde que QuesnayproduziuseuQuadroeconômico.Marxabordouatécnicanosegundolivrod’Ocapitale,emanosmaisrecentes, Leontieff criou um método elaborado para estudar a estrutura dos fluxos físicos dentro daeconomia. Há atualmente estudos de insumo e produto de economias urbanas nacionais, regionais eselecionadas. A questão é, portanto, que ideias podemos derivar da lógica interna do capitalismoestudandoisoladamenteascaracterísticasfísicasdessesistemadeprodução?

Marx reconhece, é evidente, que, para sobreviverem, todas as sociedades devem se reproduzirfisicamente.Dopontodevistadaprodução,oaspecto físicoda reproduçãosocial écaptadoporumadescrição do processo de trabalho. Podemos esboçar essa descrição em termos universais: “[1] aatividadeorientadaaumfim,ouotrabalhopropriamentedito;[2]seuobjetoe[3]seusmeios”[7].

OsestudosdeeconomiapolíticadeMarxofazemdesconfiarprofundamentedecategoriasuniversaisdesse tipo. Ele encarava as próprias categorias como um produto de uma determinada sociedade ebuscou conceitos que pudessem servir para distinguir o capitalismo de outrosmodos de produção e,assim, servir de base para dissecar a lógica interna do capitalismo.Marx procura, assim, tornar essematerialismogenuinamentehistórico.

Naprimeirapáginad’Ocapital,Marxpareceseabstrairdousodevalores,argumentandoqueumentendimentodanaturezaexatadosdesejosenecessidades“nãofarádiferença”nemcontribuiráemnadaparaumestudodeeconomiapolítica.Nãopodemosdiscriminarentreassociedadestendoporbaseseusvaloresdeuso.Porisso,“descobrir[…]asmúltiplasformasdeusodascoisaséumatohistórico”,nãoumatarefadaeconomiapolítica.

IssotemsidointerpretadoporalgunsparaindicarqueMarxachavaqueascaracterísticasestruturaisdocapitalismopodiamserinvestigadasindependentementedequalquerconsideraçãodosvaloresdeuso.Nadapoderiaestarmaisdistantedaverdade.Aliás,seMarxtivesserealmenteseguidotalcaminho,eleteria destruído a base materialista da sua investigação. Tendo rejeitado o valor de uso como umacategoria universal na primeira página d’O capital, ele o introduz como uma categoria relacional nasegunda.Amercadoriaéconcebidacomouma incorporação tantodovalordeusoquantodovalordetroca.Issodeterminaocenárioparaconsiderarovalordeusoemrelaçãotantoaovalordetrocaquantoaovalor[8].

Em sua forma relacional, a categoria “valor de uso” é extremamente importante para a análisesubsequente.Marxafirmaque“somenteumvirobscurusquenãoentendeunadadeOcapital”[9]podeconcluirqueovalordeusonãodesempenhanenhumpapelno trabalho.Marxesclareceexplicitamentesua estratégia nosGrundrisse. Um valor de uso é “objeto da satisfação de um sistema qualquer denecessidadeshumanas.Esseéoseuaspectomaterial,quepodesercomumàsépocasdeproduçãomaisdísparesecujoexame,emconsequência,situa-seforadoâmbitodaeconomiapolítica”.Masentãoeleacrescenta:“Ovalordeusoentranaesferadaeconomiapolíticatãologoémodificadopelasrelaçõesdeproduçãomodernasou,porsuavez,intervém,modificando-as”[10].

Essaéumaafirmaçãoextremamente importante.ElaexplicacomoeporqueMarxvaiorganizaroestudodovalordeusodentrodasuaargumentação.Osvaloresdeusosãomoldadosdeacordocomasmodernasrelaçõesdeproduçãoe,porsuavez,intervêmparamodificaressasrelações.Asanálisesdoprocesso de trabalho, da organização social e técnica da produção, das características materiais docapitalfixoedecoisassemelhantes–todasconsideradasdopontodevistadosvaloresdeuso–estãointerligadasdamaneiramais intrincadacomoestudodosvaloresde trocaedosvalores.Nocasodocapital fixo, por exemplo, encontramos Marx afirmando repetidamente que o valor de uso aqui

Page 38: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

“desempenhaumpapelcomocategoriaeconômica”[11].Umamáquinaéumvalordeusoproduzidoemrelaçõesdeproduçãocapitalistas.Elaincorporaovalordetrocaeovalor.Etemumpapelextremamenteimportante a desempenhar na modificação do processo de trabalho, das estruturas da produção, dasrelaçõesentreosinsumoseosprodutosetc.Aproduçãoeousodasmáquinasrecaememgrandemedidanoreinodaeconomiapolítica.

Evidentemente,nãoestamosaindaemumaposiçãodeentendercomooconceitodevalordeusoémodificadopor–aomesmotempoquemodifica–relaçõesdeproduçãocapitalistas,porquetemosaindadeentenderasinterpretaçõesmarxianasdovalordetrocaedovalor.Porém,poderiaserútilconsiderarcomo o entendimento marxiano do valor de uso se desenvolve no decorrer da análise, examinandoextensivamenteumimportanteexemplo.

Considere a concepçãodosdesejos enecessidadeshumanosqueMarxparece relegar aumameraquestãodahistórianaprimeirapáginad’Ocapital.Nofimdaprimeiraseção,apósumbreveexamedosvaloresdetrocaedosvalores,Marxmodificasuaargumentaçãoeinsistequeoprodutordemercadorias“temdeproduzirnãoapenasvalordeuso,masvalordeusoparaoutrem,valordeusosocial”.Amenosque a mercadoria satisfaça um desejo ou necessidade social, ela não pode ter valor de troca nemvalor[12].Acategoriadevalordeuso,emboraatualmenteentendidacomovalordeusosocialemrelaçãoaovalordetrocaeaovalor,inegavelmentejáestádesempenhandoumafunçãoeconômica.

Isso nos convida a considerar como os desejos e necessidades sociais são modificados pelocapitalismo. Durante grande parte do primeiro livro,Marx assume que esses desejos e necessidadessociaissãoconhecidos.Porexemplo,noquedizrespeitoaos trabalhadores,elessãovistoscomo“umprodutohistórico”dependente“dograudeculturadeumpaís,mastambémdepende,entreoutrosfatores,desobquaiscondiçõese,porconseguinte,comquaiscostumeseexigênciasdevidaseformouaclassedostrabalhadoreslivresnumdeterminadolocal”[13].MasMarxpassaaconsiderarcomoaacumulaçãodocapitalafetaascondiçõesdevidadotrabalhador.O“padrãodevida”doproletariadoéagoravistocomoalgoquevariasegundoadinâmicadaacumulaçãocapitalista.

Próximoaofimdosegundolivrod’Ocapital,Marxdáumpassoàfrente.Todoosistemafísicodareprodução é desagregado em três setores que produzem meios de produção, bens salariais(necessidades) e luxos.Os fluxos entre os setores têmde ser equilibrados (em termos de quantidade,valoredinheiro)paraocorrerasimplesreproduçãoouparahaverumaexpansãoordeiradaprodução.Aconcepção dos desejos e necessidades dos trabalhadores sofre agora mais uma modificação. Ostrabalhadores dependem da produção damercadoria capitalista para satisfazer suas necessidades, aomesmotempoqueosprodutoresdemercadoriadependemdostrabalhadoresparagastaroseudinheirocom as mercadorias que os capitalistas podem produzir. O sistema de produção (sob o controlecapitalista)tantorespondequantocriaosdesejosenecessidadesporpartedotrabalhador.

Issopreparaocaminhoparaseconsideraraproduçãodonovoconsumocomoumaspectonecessáriopara a acumulação do capital. E essa produção de consumo pode ser realizada de várias maneiras:“Primeiro, ampliação quantitativa do consumo existente; segundo, criação de novas necessidades pelapropagação das existentes em um círculo mais amplo; terceiro, produção de novas necessidades edescobertaecriaçãodenovosvaloresdeuso”[14].Porisso,aconcepçãodovalordeusosedeslocadealgo incorporado em “qualquer sistema independentemente das necessidades humanas” para umentendimentomaisespecíficodecomoosdesejoseasnecessidadeshumanassãomoldadosnomododeproduçãocapitalista[15].

Page 39: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

2.Ovalordetroca,odinheiroeosistemadepreços

Nadaémaisbásicoparaofuncionamentodasociedadecapitalistadoqueatransaçãoelementaremqueadquirimoscertaquantidadedevalordeusoemtrocadecertaquantidadededinheiro.Ainformaçãogeradaporessastransações–dequeumalqueiredetrigoévendidoportanto,umpardesapatoscustatanto, uma toneladade aço é comercializadapor tanto etc. –proporciona sinais queorientam tanto asdecisõesdeproduçãoquantoasdeconsumo.Osprodutoresdecidemquantoproduzirdeumamercadoriadeacordocomopreçomédiodevendaeadquiremdeterminadasquantidadesdemercadoriasaumpreçode compra para garantir sua produção. As famílias decidem quanto comprar de uma mercadoria deacordo com o seu preço em relação aos seus desejos, necessidades e à sua renda disponível. Essastransações–tãofundamentaisparaavidadiárianocapitalismo–constituemo“mundodeaparência”oua“formafenomenal”daatividadeeconômica.Oproblemadaeconomiapolíticatemsidosempreexplicarporqueasmercadoriassãotrocadasaospreçosemqueosão.

Osvaloresdetrocaexpressospormeiodosistemadepreçoseriamrelativamentefáceisdeentendersepudéssemosaceitarinquestionavelmenteduassuposiçõesiniciais.Emprimeirolugar,umamercadoriafuncionacomoumnumerárionãotendencioso–comoodinheiro–,paraqueosvaloresrelativosdetodasasoutrasmercadoriaspossamserinequivocamenteexpressadoscomoumpreço.Emsegundolugar,nósvivemos em um mundo de produção de mercadoria – todos os bens são produzidos para troca nomercado.Emumasociedadecapitalista,essasduassuposiçõesparecemquase“naturais”–parecemnãolevantardificuldadessérias,nemquesejapelofatoderefletiremcondiçõescomasquaisestamosmuitofamiliarizados.Munidosdelas,podemospassaraanalisardiretamenteosistemadepreços.Vemosqueasmercadorias são trocadas de acordo com preços relativos e que os preços mudam em resposta àscondições de oferta e demanda. O sistema de preços evidentemente proporciona um mecanismodescentralizadoextremamentesofisticadoparacoordenarasváriasatividadesdos inúmerosediversosagenteseconômicos.Eparecequeasleisdeofertaedemandaserãosuficientesparaexplicarospreçosrelativos.

Marxaceitaaimportânciadaofertaedemandanoequilíbriodomercado,masnegaveementementequeaofertaeademandapossamnosdizerqualquercoisasobrequaisserãoospreçosdeequilíbriodasmercadorias.

Seaofertaeademandaequilibramumaàoutra,elasdeixamdeexplicarqualquercoisa,nãoafetamosvaloresdemercadoe,porisso,nosdeixammuitomaisnoescurosobreasrazõesdeovalordemercadoserexpressonessasomadedinheiroenãoemoutra.Éevidentequeasverdadeirasleisinternasdaproduçãocapitalistanãopodemserexplicadaspelainteraçãodaofertaedademanda.[16]

Esta é uma afirmação muito forte, e temos de ver a justificativa de Marx para ela. Finalmentedefiniremosissonocapítulo3.Masumdoseixosdoseuargumentoestáemsuaanálisedodinheiro.

Marx abre sua argumentação n’O capital tratando do valor de troca como se fosse uma questãosimples,aserabordadaemsuaapresentaçãoinicialdateoriadovalor.Entãoretornaimediatamenteàsquestõesdatrocaparamostrarqueestaérealmenteproblemáticaequeumestudodela,emrelaçãoaovalor, é muito esclarecedor. A direção geral que ele segue é mostrar que o valor de troca de umamercadorianãopodeserentendidosemseanalisaranaturezado“dinheiro”quepermitequeovalordetroca seja inequivocamente expressado como um preço. Ele desafia, particularmente, a ideia de quequalquermercadoriapossa serumnumerárionão tendencioso e procuramostrar que, ao contrário, odinheiroincorporaumacontradiçãofundamental.

Page 40: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Adificuldade,dizele,“nãoestáemcompreenderquedinheiroémercadoria,masemdescobrircomo,porqueeporquaismeiosamercadoriaédinheiro”[17].Aformadodinheiroéumacriaçãosocial.“Anatureza”, argumentaMarx, “não produz nenhum dinheiro, damesmamaneira que não produz taxa decâmbiooubanqueiros”[18].Eodinheironãoéestabelecidoarbitrariamenteoupormeraconvenção.Amercadoriadinheiroéproduzidanocursodahistóriaporumprocessosocialespecífico–aparticipaçãonosatosdetroca–quetemdeserentendidosequisermosnosaprofundarnalógicainternadosistemadepreços[19].

Marx trata a simples formadamercadoria comoo“germe”da formadodinheiro.Umaanálisedoescambodiretomostraqueasmercadoriaspodemassumiroqueelechamadeformas“equivalentes”e“relativas”dovalor.Quandoumacomunidademensuraovalordosbensqueestãosendoadquiridosemcontraposiçãoaovalorisoladodeumbemqueestásendodescartado,entãoesteúltimofuncionacomosua forma de equivalente. Em um estado inicial, cada comunidade ou agente de barganha possuirámercadoriasqueoperamcomoaformadeequivalente.Comaproliferaçãodatroca,umamercadoria(ouum conjunto de mercadorias) provavelmente vai emergir como o “equivalente universal” – umamercadoria-dinheirobásica, comooouro.Osvalores relativosde todasasoutrasmercadoriaspodementão ser expressos em termos da mercadoria-dinheiro. O “valor”, consequentemente, adquire umamedida claramente reconhecível, única e socialmente aceita.Odeslocamentodemuitas determinaçõesdiferentes (subjetivas e, com frequência, acidentais) do valor de troca para uma medida padrão dedinheiroéproduzidoporumaproliferaçãoderelaçõesdetrocaatéopontoemqueaproduçãodebensparatrocase torna“umatosocialnormal”.Mas,poroutrolado, tambémpodemosverqueumsistemageralde trocademercadoria seria impossível semodinheiropara facilitá-lo.Por isso,o aumentodatrocaeaemergênciadeumamercadoria-dinheironecessariamenteandamjuntos.

Amercadoriaqueveste“acapadodinheiro”torna-sedistintadetodasasoutras.Eaanálisedesuascaracterísticasespeciaismostra-seesclarecedora,umavezque“oenigmadofetichedodinheironãoémaisdoqueoenigmadofetichedamercadoria,queagorasetornavisíveleofuscaavisão”[20].

Amercadoria-dinheiro,comoqualqueroutramercadoria,temumvalor,umvalordetrocaeumvalorde uso. Seu valor é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário em sua produção erefleteascondiçõessociaisefísicasespecíficasdoprocessodetrabalhosoboqualeleéproduzido.Osvaloresdetrocadetodasasoutrasmercadoriassãomensuradosemrelaçãoaoparâmetroformadoporessas condições de produção específicas da mercadoria-dinheiro. Desse ponto de vista, o dinheirofuncionacomoumamedidadevalor,eoseuvalordetrocadevepresumivelmenterefletiressefato.Ovalordeusododinheiroéofatodeelefacilitaracirculaçãodetodasasoutrasmercadorias.Assim,eleatua como ummeio de circulação. Porém, no curso de sua atuação comomeio de troca, o dinheiroadquireumvalordetrocaderivadoda“açãosocialdetodasasoutrasmercadorias”,queexcluem“umamercadoriadeterminada,naqualtodaselasexpressamuniversalmenteseuvalor”[21].Odinheirosetornaovalor do que ele vai comprar.Resultado: amercadoria-dinheiro adquire umvalor de troca duplo –ditado por suas próprias condições de produção (seu valor de troca “inerente”) e pelo que ele vaicomprar(seuvalor“reflexo”).

Marxexplicaquetaldualidadesurgeporqueovalorde troca,queinicialmenteconcebíamoscomoumatributointernalizadodetodasasmercadorias,éagorarepresentadoporumpadrãodemedidaqueéexternoetotalmenteseparadodasprópriasmercadorias[22].Oproblemadecomorepresentaremedirosvaloresficadessemodoresolvido.Masasoluçãosóéalcançadaàcustadainternalizaçãodadualidadedo valor de uso e do valor interno ao valor de troca do próprio dinheiro.O dinheiro, em suma, “só

Page 41: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

resolve as contradições tanto da troca direta como do valor de troca na medida em que as põeuniversais”[23].Etudoissotemalgumasramificaçõesmuitoimportantes.

Podemosver,porexemplo,queaquantidadetotaldedinheiroquecirculanasociedadeemumadadavelocidade tem de ser suficiente para facilitar uma dada quantidade de troca demercadoria a preçosapropriados.PodemosdesignarademandapordinheirocomoP·Q(emquePéumvetordospreçoseQasrespectivasquantidadesdemercadoriasemcirculação)eaofertadedinheirocomoD·V(emqueDéaquantidadededinheirodisponíveleVéasuavelocidadedecirculação).Emequilíbrio,DV=PQ[24].Se a quantidade de mercadorias em circulação de repente aumenta, enquanto D e V permanecemconstantes,entãoovalorreflexodamercadoria-dinheiroaumentaráaumnívelquepodeestarbemacimado seu valor inerente. Um aumento na oferta de dinheiro ou em sua velocidade de circulação poderetificar isso.Mas o volumeda troca demercadoria está eternamente flutuando, dia a dia, embora aspróprias condições que regem determinada mercadoria a ser escolhida como a mercadoria-dinheiro(escassezetc.)contribuamparaoajustamento instantâneoemsuaoferta.Umasaídapossívelparaessadificuldadeécriarumfundodereserva,um“tesouro”,quepodeserusadodemaneiraflexíveldiantedasflutuaçõespotencialmenteamplasnovolumeda trocademercadoria.Outrapossibilidadeéusaralgumtipodesistemadecréditoedepoisusaramercadoria-dinheiroparapagarosaldodascontasnofimdeumdeterminadoperíodo(umdia,ummêsouumano).Dessamaneira,ademandadedinheiropodesermuito reduzida, assim como neutralizados os efeitos das flutuações cotidianas no volume da troca demercadorias.

Isso imediatamente atrai nossa atenção para algumas funções adicionais do dinheiro – como umareservadevalorecomoummeiodepagamento.Ambosdependemdacapacidadedodinheirodeoperarcomo uma forma independente de poder social que, por sua vez, deriva do fato de o dinheiro ser aexpressãosocialdoprópriovalor.Marxsugerequeoindivíduotrazconsigonobolso”seupodersocial,assimcomoseunexocomasociedade”[25].Essapotênciasocialéuma“figuraabsolutamentealienável”e,porisso,pode-setornara“potênciaprivadadapessoaprivada”[26].Aambiçãoporessepodersocialconduz à apropriação, ao furto, ao açambarcamento, à acumulação – tudo se torna possível. Marxprossegueextensivamentenesseraciocínio,particularmentenoGrundrisse[27],paradescreverosefeitosdestruidoresdamonetização,medianteasrelaçõesdepodersocial,nassociedadestradicionais.

Masn’Ocapitaleleestápreocupadoemenfatizaroutroponto.Seousododinheirocomoreservadevaloroucomomeiodepagamentoproporcionaaúnicamaneirademanteralinhadasasduasformasdevalordetrocaqueodinheirointernaliza,entãoissorequerqueopodersocialdodinheirosejausadodecerta maneira. Se a reserva é necessária para equilibrar o processo de troca[28], isso implica que odinheiro reservado seja usado segundo alguns princípios racionais – o dinheiro deve ser retirado decirculaçãoquandoaproduçãodemercadoriasestiverembaixa,elançadodevoltanacirculaçãoquandoaproduçãodemercadorias se restabelecer.Quandoo dinheiro é usado comoummeiode pagamento,todososagentesdoprocessodetrocatornam-seaomesmotempodevedoresecredores,oquemaisumavez implica alguns princípios articulados para contrair e saldar dívidas. Em ambos os casos, nossaatenção se concentra em uma forma particular de circulação. Entendemos por que a circulação dedinheiro,comoumfimemsi, surgecomouma“necessidadesocialquederivadopróprioprocessodecirculação”[29].

Marx define a forma de circulação das mercadorias (mercadoria-dinheiro-mercadoria, ou,resumidamente,M-D-M)comoumatrocadevaloresdeuso(ousodesapatosemrelaçãoaodepão,por

Page 42: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

exemplo) que depende essencialmente dasqualidades dos bens que estão sendo trocados.O dinheirofuncionaaquicomoumintermediárioconveniente.Agoraencontramosumaformadecirculação,D-M-D,quecomeçaeterminaexatamentecomamesmamercadoria.Aúnicamotivaçãopossívelparacolocarodinheiroemcirculaçãoemumabaserepetidaéobtermaisdelenofimdoquefoipossuídonocomeço.Uma relação quantitativa substitui a relação de troca das qualidades. O dinheiro é lançado emcirculaçãopara fazermaisdinheiro–umlucro.Eodinheiroquecirculade talmaneiraéchamadodecapital.

Chegamosaopontoemquepodemosverqueascondiçõesdatrocageraldemercadoriascompõemaformacapitalistadecirculaçãosocialmentenecessária.Suasimplicaçõessociaissãoinúmeras.Écriadoumespaçosocialnoqualasoperaçõesdoscapitalistassetornamnecessáriasparaestabilizarasrelaçõesdetroca.Mas

ésomenteenquantoaapropriaçãocrescentedariquezaabstrataéoúnicomotivodesuasoperaçõesqueelefuncionacomocapitalistaoucapitalpersonificado,dotadodevontadeeconsciência.Assim,ovalordeuso jamaispodeserconsideradocomofinalidade imediatadocapitalista.Tampoucopodesê-loolucroisolado,masapenasoincessantemovimentodolucro.Esseimpulsoabsolutodeenriquecimento,essa caça apaixonada ao valor é comum ao capitalista e ao entesourador, mas, enquanto o entesourador é apenas o capitalistaensandecido, o capitalista é o entesourador racional. O aumento incessante do valor, objetivo que o entesourador procura atingirconservando seu dinheiro fora da circulação, é atingido pelo capitalista, que, mais inteligente, lança sempre o dinheiro de novo emcirculação.[30]

Eassimchegamosàquestãomaisfundamentalquepossivelmentepodemosformularaumasociedadecapitalista:deondevemolucro?Somenteateoriadovalorpodenosequiparcomosrecursossuficientesparaabordaressaquestão.

3.Ateoriadovalor

Atualmente consideramos a teoria do valor implícita nos processos de produção e troca demercadorias.Diferentementedosvaloresdeusoedospreços,nãoháumpontodepartidaóbvioparaaanálise.Ou começamos com suposições sobre a natureza do valor, ou buscamos uma teoria do valorobjetiva por meio de uma investigação material de como a sociedade funciona.Marx usa a segundaabordagem.Comoomundodasaparênciasédominanteemnossasociedade,ospreçosdasquantidadesdosvaloresdeusoproporcionamosdadosparaoestabelecimentodeumaversão inicialda teoriadovalor.Umavezqueesta estejavigorando,o relacionamentodialéticoentreosvalores,ospreçoseosvaloresdeusopodeserexaminadocomoummeioparadissecaralógicainternadocapitalismo.

O argumento inicial d’O capital é extremamente simples. Marx define a mercadoria como umaincorporação dos valores de uso e de troca, abstrai-se imediatamente dos primeiros e prosseguediretamente para a análise dos valores de troca. Atribuir dois valores de uso (que são em siqualitativamentediferentes) iguaisna troca implicaqueosdoisvaloresdeuso têmalgoemcomum.Oúnicoatributoquetodasasmercadoriastêmemcomuméofatodeseremprodutosdotrabalhohumano.Asmercadorias,“comocristaisdessasubstânciasocialquelhesécomum,elassãovalores–valoresdemercadorias”[31].

OargumentoéquaseidênticoàqueleapresentadoemPrincípiosdeeconomiapolíticaetributaçãodeRicardo.Nesseestágio,MarxpareceseguirRicardo,tratandoaquestãodovalorcomoumabuscaporumamedidadevalorapropriada[32].Aúnicadiferençaéaintroduçãodadistinçãoentre“otrabalhoútilconcreto”,queproduzvaloresdeuso,e“otrabalhohumanoabstrato”,que“criavalor”[33].Entretanto,o

Page 43: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

argumento de Marx parece, agora, meramente tautológico – a medida de valor é aquele aspecto dotrabalhohumanoquecriavalor!

Marxescapadatautologiamedianteumaanálisedadiferençaentreotrabalhoabstratoeotrabalhoconcreto.Todotrabalhoéconcretonosentidodequeenvolveatransformaçãomaterialdanatureza.Maso intercâmbiodemercado tendeaobliterarasdiferenças individuais tantonascondiçõesdeproduçãoquanto por parte daqueles que realizam o trabalho. Se pago de acordo com o tempo de trabalho realincorporado,entãoquantomaispreguiçosoforotrabalhador,maiseudevopagar.Mas,emgeral,pagoopreço vigente no mercado. O que acontece na verdade é que a comensurabilidade das mercadoriasatingida por meio da troca torna o trabalhador nelas incorporado igualmente comensurável. Se eledemoraemmédiaumdiaparafabricarumpardesapatos,entãootrabalhoabstratoincorporadoemumpardesapatoséumdia,nãoimportaseelerequeiradotrabalhadorindividualduasoucinquentahoraspara fabricá-lo. O trabalho abstrato é definido então como um “tempo de trabalho socialmentenecessário”[34].

Issoinsereaqualificação“socialmentenecessário”nateoriadotempodetrabalhodeRicardocomomedidadevalor.IssodificilmentetornaaversãodeMarxsuficientementevigorosaparasuportaropesode toda análise subsequente, nem parece profunda o bastante para justificá-la comoa base sólida dateoriamarxiana,e,portanto,comoumaproposiçãoaserdefendidaatodocusto.Atéperguntarmosoque,exatamente,querdizer“socialmentenecessário”.

A invocação da necessidade social deve nos alertar. Ela contém as sementes para a crítica daeconomiapolíticadeMarx,assimcomoparaadissecaçãodocapitalismo.OqueMarxfinalmentevainosmostrar,emumdiscursoimpregnadodeprofundapreocupaçãoemmarcaroslimitesentreliberdadeenecessidadenocapitalismo,équeotrabalhohumanoabstratoéumadestilação,finalmenterealizadaemrelações de produção muito específicas, de uma variedade aparentemente infinita de atividades detrabalhoconcretas.Vamosdescobrirqueotrabalhoabstratosópodesetornarmedidadovaloraopassoqueumtipoespecíficodetrabalhohumano–otrabalhoassalariado–setornageral.

IssoimediatamentediferenciaateoriadovalordeMarxdasteoriasdovalor-trabalhoconvencionais(adeRicardo,particularmente).Marxtransformaumadeclaraçãouniversala-históricaemumateoriadovalorqueoperaapenasnas relaçõesdeproduçãocapitalistas.Aomesmotempo,a teoriadovalorvaialémdoproblemadesimplesmentedefinirumamedidadevalorparadeterminarospreçosrelativosdasmercadorias.Ateoriadovalorpassaarefletireincorporarasrelaçõessociaisessenciaisqueestãonocernedomododeproduçãocapitalista.Emsuma,ovaloréconcebidocomoumarelaçãosocial.Porém,Marxnãonoslançaessaconcepçãoarbitrariamente,comoumconstrutoapriori.Emvezdisso,procuranosmostrar,passoapasso,queestaéaúnicaconcepçãodevalorquetemsentido;quealeidovalor,comoeleaconcebe,naverdadeoperacomoumaforçacondutoradentrodahistóriacapitalista.Eaprovadissodeveestarnecessariamentenofimdasuaanálise,nãonoinício[35].

Marx inicia quase imediatamente a explicaçãodo “socialmente necessário”.Somos informados dequeeleéotrabalho“requeridoparaproduzirumvalordeusoqualquersobascondiçõesnormaisparaumadadasociedadeecomograusocialmédiodedestrezaeintensidadedotrabalho”.Issonãopodeserentendidosemsevoltaraumaanálisedosvaloresdeuso.Emprimeirolugar,aprodutividadedotrabalhoé considerada em termos meramente físicos: é estabelecida “pelo grau médio de destreza dostrabalhadores,ograudedesenvolvimentodaciênciaedesuaaplicabilidadetecnológica,aorganizaçãosocial do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condiçõesnaturais”[36].Emsegundolugar,otrabalhonãopodecriarvalor,amenosquecrievaloresdeusosocial–

Page 44: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

valoresdeusoparaoutrem.Nesseestágio,Marxnãoelaboraoqueelequerdizercomum“valordeusosocial”. Simplesmente afirma que, para continuar sendo valor, ele tem de ser criado na produção econcretizado pormeio da troca e do consumo. Esse breve retorno à esfera dos valores de uso é umantegozodomuitoqueestáporvir.

Nesse ponto Marx opta por se concentrar mais no valor em relação ao valor de troca. Suainvestigaçãodasformasmateriaisdovaloratingidaspormeiodatrocarevelaqueasubstânciadovalor–otrabalhohumanoabstrato–sópodeinfluenciaraproduçãoeatrocademercadoriassehouveralgumamaneira desse valor ser representado materialmente. Segue-se rapidamente a conclusão: “o dinheiro,como medida de valor, é a forma necessária de manifestação da medida imanente de valor dasmercadorias:otempodetrabalho”[37].

Observe, uma vezmais, a invocação de necessidade. Quando voltamos a relacioná-la à ideia do“tempo de trabalho socialmente necessário” chegamos a uma importante proposição. A existência dedinheiroéumacondiçãonecessáriaparasepararedestilarotrabalhoabstratodotrabalhoconcreto.

Podemoscompreenderissoexaminandoasconsequênciasdeumcrescimentonasrelaçõesdetroca.Essecrescimento,jávimos,dependedaforma-dinheiro,aomesmotempoquedáorigemaela.Masissotambémtemconsequênciasparaadistinçãoentreotrabalhoconcretoeotrabalhoabstrato:

Somente no interior de sua troca os produtos do trabalho adquirem uma objetividade de valor socialmente igual, separada de suaobjetividadedeuso,sensivelmentedistinta.Essacisãodoprodutodotrabalhoemcoisaútilecoisadevalorsóserealizanapráticaquandoatrocajáconquistouumalcanceeumaimportânciasuficientesparaqueseproduzamcoisasúteisdestinadasàtroca[…].Apartirdessemomento, os trabalhos privados dos produtores assumem, de fato, um duplo caráter social. Por um lado, como trabalhos úteisdeterminados,eles têmdesatisfazerumadeterminadanecessidadesociale,dessemodo,conservarasimesmoscomoelosdo trabalhototal, do sistemanatural-espontâneodadivisão socialdo trabalho.Poroutro lado, eles só satisfazemasmúltiplasnecessidadesde seusprópriosprodutoresnamedidaemquecadatrabalhoprivadoeútilparticularépermutávelporqualqueroutrotipoútildetrabalhoprivado,portanto,namedidaemquelheéequivalente.Aigualdadetotocoelo[plena]dosdiferentestrabalhossópodeconsistirnumaabstraçãodesuadesigualdadereal,nareduçãodesses trabalhosaoseucarátercomumcomodispêndiodeforçahumanade trabalho,comotrabalhohumanoabstrato.[38]

OrápidomovimentodeMarxdeuma“janela”paraoutranoprimeirocapítulod’Ocapitalnoslevouaopontodepodermosenxergarclaramenteasinterconexõesentreocrescimentodatroca,aascensãodaforma do dinheiro e a emergência do trabalho abstrato como uma medida de valor. Mas tambémadquirimos uma perspectiva suficiente nessas inter-relações para ver que a maneira como as coisasaparecemparanósnavidadiáriapodetantoocultarquantorevelarseusignificadosocial.EssaideiaécaptadaporMarxnoconceitodo“caráterfetichistadamercadoria”.

A extensão da troca coloca os produtores em relações de dependência recíproca, porém eles serelacionampormeiodosprodutosquetrocam,enãodiretamentecomoseressociais.Poroutrolado,asprópriascoisasmudamdeacordocomseuvalor,oqueémedidoemtermosdo trabalhoabstrato.Eotrabalho abstrato se torna a medida do valor diante de um processo social específico. O “caráterfetichistadamercadoria”descreveumestadonoqual“asrelaçõessociaisentreseustrabalhosprivadosaparecemcomoaquiloqueelassão,istoé,nãocomorelaçõesdiretamentesociaisentrepessoasemseusprópriostrabalhos,mascomorelaçõesreificadasentrepessoaserelaçõessociaisentrecoisas”[39].

Não é por acaso que Marx expõe o princípio geral do “caráter fetichista da mercadoria”imediatamentedepoisdeconsideraraemergênciadaformamonetáriadovalor[40].Nesseponto,eleestápreocupadocomaanálisedousodoprincípiogeraldo“fetichismo”paraexplicarocaráterproblemáticodarelaçãoentreovaloresuaexpressãomonetária:

Page 45: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

somenteaanálisedospreçosdasmercadoriasconduziuàdeterminaçãodagrandezadovalor,esomenteaexpressãomonetáriacomumdasmercadoriasconduziuàfixaçãodeseucaráterdevalor.Porém,éjustamenteessaformaacabada–aforma-dinheiro–domundodasmercadoriasquevelamaterialmente,emvezderevelar,ocarátersocialdostrabalhosprivadose,comisso,asrelaçõessociaisentreostrabalhadoresprivados.[41]

Atrocademercadoriaspordinheiroébastantereal,emboraoculteasnossasrelaçõessociaiscomosoutrosportrásdeumameracoisa–aformamonetáriaemsi.Porexemplo,oatodatrocanãonosdiznadasobreascondiçõesdotrabalhodosprodutoresenosmantémemumestadodeignorânciadiantedasnossasrelaçõessociaisaopassoqueestassãomediadaspelosistemadomercado.Apenasreagimosaospreçosdasquantidadesdosvaloresdeuso.Mas isso tambémsugerequenomomentoque“equiparamentre si seus produtos […] na troca, como valores”, os homens “não sabem disso, mas o fazem”. Aexistênciadodinheiro–a formadevalor–ocultaosignificadosocialdoprópriovalor.“Na testadovalornãoestáescritooqueeleé”[42].

Considereagoraarelaçãoentreosvaloresepreçosqueissoimplica.Seosistemadepreçopermiteaformaçãodevaloresaomesmotempoqueocultadavistaabasesocialdestes,entãoamagnitudedospreços relativos não tem necessariamente de corresponder à magnitude dos valores relativos. Marxconsidera que os desvios entre as duasmagnitudes não constituem “nenhum defeito” da forma-preço,porquesão“aquiloquefazdelaaformaadequadaaummododeproduçãoemquearegrasósepodeimporcomoaleimédiadodesregramentoqueseaplicacegamente”[43].Ofluxoerefluxodaproduçãodemercadorias para a troca, que se originam das decisões espontâneas de uma miríade de produtores,podemseracomodadospelosistemadepreçoprecisamenteporqueospreçossãolivresparaflutuardemaneiras que umamedida rígida de valores não poderia. Os valores, afinal, expressam um ponto deequilíbrio nas taxas de câmbio depois de a oferta e a demanda terem se equilibrado nomercado. Aflexibilidade dos preços permite que o processo de equilíbrio ocorra e, por isso, é essencial para adefiniçãodosvalores.

Mais perturbador, no entanto, é o fato de que a forma-preço “pode abrigar uma contradiçãoqualitativa,demodoqueopreçodeixeabsolutamentedeserexpressãodevalor”.Osobjetosquenãosãoprodutosde trabalhohumano–a terra, a consciência, ahonraetc.– “podemser comprad[o]sde seuspossuidorescomdinheiroe,medianteseupreço,assumiraforma-mercadoria”[44].Então,asmercadoriasquesãoprodutosdotrabalhohumanodevemserdistinguidasdas“formas-mercadorias”quetêmpreço,masnãovalor.Esse tópiconãoé seriamenteabordadodenovoatéo terceiro livrod’Ocapital. Neledescobriremosofetichismoqueestáanexadoàscategoriasderenda(quecolocaumpreçonaterraefazparecerqueodinheirosaiudosolo)ejuros(quecolocamumpreçonoprópriodinheiro).Nestemomentonóstambémdeixaremosdeladoessasquestõesespinhosas.

AcaracterizaçãodeMarxdofetichismodasmercadoriasnosencorajaaconsiderarprofundamenteosignificadosocialdovalor.Emumadesuasprimeirasdeclaraçõessobreoassunto,Marxencaraovalorcomo“aexistênciacivildapropriedade”[45].N’Ocapital,Marxnãoé,empartealguma,tãocontundente,masnãoobstanteessadimensãodeseuargumentoédegrandeimportância.

A troca de mercadorias pressupõe o direito dos proprietários privados de dispor livremente dosprodutosdoseutrabalho.Essarelaçãojurídicaé“volitiva[e]refletearelaçãoeconômica”datroca[46].Para serem estabelecidas relações de troca que reflitam com precisão as exigências sociais, osprodutores precisam “apenas se confrontar tacitamente como proprietários privados daquelas coisasalienáveise,precisamentepormeiodelas, comopessoas independentesumasdasoutras”.Ouseja, as

Page 46: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

“pessoas jurídicas” (indivíduos, corporações etc.) devem ser capazes de abordar uma à outra em umpatamar igual na troca, como únicos e exclusivos proprietários das mercadorias com a liberdade decomprarevenderaquemlhesaprouver.Paratalcondiçãoexistirénecessárianãoapenasumabaselegalsólidaparaatroca,mastambémopoderparamanterosdireitosdepropriedadeprivadaefazercumpriros contratos. Esse poder, é claro, reside no “Estado”. O Estado, de uma forma ou de outra, é umaprecondiçãonecessáriaparaoestabelecimentodevalores.

Namedidaemqueosdireitosdepropriedadeprivadaeocumprimentodoscontratossãogarantidos,a produção pode cada vez mais ser realizada como um conjunto de “trabalhos úteis, executadosseparadamenteunsdosoutros comonegóciosprivadosdeprodutores independentes”queexpressamasuarelaçãocomasociedadepormeiodatrocadosseusprodutos[47].Osistemadepreço,quetambémrequerregulamentaçãodoEstado,aindaqueapenasparagarantiraqualidadedodinheiroemcirculação(vercapítulo10),facilitaacoordenaçãodasatividadesespontâneasdeinúmerosindivíduosparaqueaprodução atinja a “medida socialmente proporcional”[48]. Podemos, sob tais condições, estudar o“comportamento[…]doshomensemseuprocessosocialdeprodução”comoseelefosse“meramenteatomístico”,paraque suas relaçõesumcomooutronaproduçãoassumam“a figura reificadade suasrelaçõesdeprodução,independentesdeseucontroleedesuaaçãoindividualconsciente”[49].

Essemodelodetrabalhodeumasociedadedemercadoetodasassuasarmadilhaspolíticaselegaisforam, é claro, muito prevalentes na economia política da época e remontam, como tão habilmentemostrouoprofessorMacPherson,pelomenosaHobbeseLocke[50].Marxclaramenteadotouaposiçãodequeaoperaçãodaleidovalordependiadaexistênciadecondiçõessocietáriasbásicas.Alémdisso,ele considera que as noções de “individualidade”, “igualdade”, “propriedade privada” e “liberdade”assumemsignificadosmuito específicosno intercâmbionomercado– significadosquenãodevem serconfundidos com ideologias gerais de liberdade, individualidade, igualdade etc. Ao passo que essessignificados altamente específicos são universalizados nas noções burguesas de constitucionalidade,criamosconfusõestantonopensamentoquantonaprática.

Considere,porexemplo,anoçãodeigualdade,quedesempenhaumpapelfundamentalnoargumentodeMarx.Aristótelesmuito tempo antes declarouque “a trocanãopodeocorrer sem igualdade”–umprincípio que Marx cita de forma aprovável. Isso não significa que todos sejam ou devam serconsideradosiguaisemtodososaspectos.Simplesmentesignificaquenãotrocaríamosumvalordeusoporoutroemcondiçõesdeintercâmbiolivreamenosquevalorizássemososdoispelomenosigualmentebem.Ou,colocandoemtermosdedinheiro,umdólaréigualaoutrodólartendoemvistaseupoderdecompra,nãoimportandonobolsodequemesteja.Todajustificativaparaaoperaçãodosistemadepreçose baseia no princípio de que “o processo de circulação de mercadorias exige a troca deequivalentes”[51]. Por isso, a definição de valores se baseia nessa ideia restrita e bem específica deigualdade,nosentidodequeosdiferentesvaloresdeusoproduzidossobdiferentescondiçõesconcretasdotrabalhohumanosãotodosreduzidosnodecorrerdointercâmbionomercadoparaomesmopadrão.Eles podem ser induzidos a uma relação de equivalência. Entretanto, uma vez que temos tal ideia deigualdadefirmementeestabelecida,podemosusá-laparaimpulsionartodaadiscussãodalógicainternadocapitalismoparaumplanodediscursonovoemaisfrutífero.VamosvercomoMarxfazisso.

4.Ateoriadomais-valor

Chegamosagoraaopontoemquepodemosapresentarumaconcepçãodocapitalqueintegraonosso

Page 47: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

entendimento do relacionamento entre os valores de uso, os valores de troca e os valores.O capital,insisteMarx,deveserdefinidomaiscomoumprocessodoquecomoumacoisa.Amanifestaçãomaterialdesseprocessoexistecomoumatransformaçãododinheiroemmercadoriasedevoltaaodinheiromaisolucro: D-M-(D+ΔD). Já que definimos o dinheiro como a representação material do valor, podemostambémdizerqueocapitaléumprocessodeexpansãodovalor.Marxchamaissodeproduçãodemais-valor.

No decorrer da sua circulação, o capital deve assumir as formas de dinheiro (valor de troca) emercadorias(valoresdeuso)emdiferentesmomentos:

Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma,aparecendo ora como dinheiro, ora comomercadoria, altera sua própria grandeza e, comomais-valor, repele a simesmo como valororigináriovalorizaasimesmo.

Entretanto,nãodevemosdivorciaronossoentendimentodesseprocessode“autoexpansãodovalor”dasuaexpressãomaterial.Poressarazão,

Comosujeitousurpadordetalprocesso,noqualeleassumeoraaformadodinheiro,oraaformadamercadoria,porémconservando-seeexpandindo-senessamudança,ovalorrequer,sobretudo,umaformaindependentepormeiodaqualsuaidentidadepossaserconstatada.Etalformaelepossuiapenasnodinheiro.Esteconstitui,porisso,opontodepartidaedechegadadetodoprocessodevalorização.[…]Ovalorsetorna,assim,valoremprocesso,dinheiroemprocessoe,comotal,capital.[52]

Essadefiniçãodocapital temalgunsefeitosabrangentes.Emprimeiro lugar, implicaqueocapitalatuante na sociedade não é igual ao estoque de dinheiro nem ao estoque total de valores de uso (quepodemosdefinir comoa riquezasocial total).O dinheiro que está nomeu bolso comoummeio paracomprarasmercadoriasqueeuprecisoparavivernãoestásendousadocomocapital.Nemosvaloresdeusodacasaemquemoroouapáqueusoparacavarojardim.Há,portanto,umagrandepartedecoisasque ocorremna sociedade que não estão diretamente relacionadas à circulação do capital, e por issodevemosresistiràtentaçãodereduzirtudoaessassimplescategoriasmarxianas.Ocapitalmonetárioé,então,partedoestoquetotaldedinheiro,eocapitalprodutivoeocapitaldasmercadoriassãoporçõesdariquezasocialtotal,captadasemumprocessodecirculaçãomuitoespecífico.Emconsequênciadisso,o capital pode ser formado pela conversão do dinheiro e pelos valores de uso, colocando-os emcirculaçãoparafazeremdinheiro,paraproduziremmais-valor.

Em segundo lugar, a definição de “processo” do capital significa que podemos determinar um“capitalista” como um agente econômico que coloca dinheiro e valores de uso em circulação paraproduzirmaisdinheiro.Osindivíduospodemounãoapreciaroseupapel,personificá-loeinternalizarseuargumentoparaasuaprópriapsicologia.Oscapitalistaspodemserpessoasboasoumás.Masnãoprecisamos nos preocupar com isso: podemos simplesmente tratar “as máscaras econômicas daspessoas” como “personificações das relações econômicas, como suporte das quais elas se defrontamumascomasoutras”[53].Paraospropósitosimediatos,podemosnosconcentrarmaisnospapéisdoquenasprópriaspessoas.Issonospermiteabstrairdadiversidadedasmotivaçõeshumanaseoperarnoníveldanecessidadesocialenquantoelaforcaptadaemumestudodospapéisdosagenteseconômicos.

Por fim, mas não menos importante, a definição de Marx do capital demonstra uma relaçãonecessária,maisquefortuita,entreaformacapitalistadecirculaçãoeadeterminaçãodosvalorescomoo tempo de trabalho socialmente necessário. Como esta é uma proposta muito importante, devemosrecapitularasuabase.

Page 48: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Já vimos que a extensão da troca e da ascensão do dinheiro são essenciais umao outro.Tambémvimosqueacontradiçãointernalizadadentrodaformadodinheiro(entreoseuvalordeusoeovalor)sópoderia ser resolvida se houvesse um fundo de reserva de dinheiro que pudesse ser lançado emcirculação, ou dela retirado, como condições da troca de mercadorias requerida. O dinheiro devecomeçaracirculardedeterminadamaneira.ComoD-M-Dnãoproduzmudançaqualitativananaturezadamercadoriamantida no início e no fim do processo, a únicamotivação sistêmica para essa forma decirculaçãoéatravésdeumamudançaquantitativa,oquesignificaumprocessodecirculaçãodafórmula

D–M–(D+ΔD)

Marxnosmostraque,mesmonaausênciadasdiferentesmotivaçõeshumanas(apaixãopeloouro,aambiçãopelopodersocialeodesejodedominar),aformacapitalistadecirculaçãoteriadeapareceremrespostaàspressõescontraditóriasexercidassobreodinheiropormeiodaexpansãoeextensãodatroca.Mas a troca também estabelece valores como aqueles reguladores das relações de troca. E assimpodemos derivar a conexão: a ascensão da forma de circulação capitalista e dos valores como osreguladoresdatrocaandamladoaladoporqueambassãooprodutodaextensãoedaexpansãodatroca.

Porém,nolivrodeMarx,ascontradiçõesraramentesãoresolvidasequasesempredeslocadas.Éoqueacontecenessecaso.A formadecirculaçãocapitalista sebaseiaemumadesigualdade porqueoscapitalistas possuemmais dinheiro (valores) no fim do processo do que possuíam no início.Mas osvaloressãoestabelecidosporumprocessodetrocaquesebaseianoprincípiodaequivalência.Issocriaumadificuldade.Comooscapitalistasentendemumadesigualdade,ΔD,medianteumprocessodetrocaquepressupõeequivalência?Emresumo,ondeolucrosurgeemcondiçõesdetrocajusta?

SegundoMarx,pormaisquepossamostentar,nãoconseguiremosencontrarumarespostaparaessaperguntanoreinodatroca.Violandooprincípiodaequivalência(pormeiodetrapaça,trocasforçadas,rouboecoisasparecidas)sópodemosconseguirqueumindivíduolucreàcustadaperdadeoutro.Issopode resultar na concentração de dinheiro e de meios de produção em poucas mãos, mas não podeconstituirumabaseestávelparaumasociedadeemqueinúmerosprodutoresdeverãobuscareproduzirumlucro“justo”semcanibalizarumaooutronoprocesso.

Por isso, temos de buscar a resposta pormeio de um cuidadoso escrutínio do reino da produção.Temosdemudaranossa“janela”paraomundodaquelaformadapelarelaçãoentreovalordetrocaeovalor,econsiderararelaçãoentreovaloreovalordeuso.Apartirdosextocapítulodoprimeirolivrod’Ocapital,atébemadiantadonoterceirolivro,Marx,comalgumasexceçõessignificantes,vaiassumirquetodasasmercadoriassãonegociadasemseusvalores,quenãohádistinçãoentrepreçosevalores.Oproblema do lucro torna-se então idêntico àquele da expansão dos valores. E a solução para esseproblematemdeserbuscadasemapelarparaaideiadedesviosentrepreçosevalores.Apartirdessanova“janela”paraalógicainternadocapitalista,Marxenxergaoseucaminhoclaramenteandandorumoàconstruçãodateoriadomais-valor.Vamosvercomofluioargumento.

Aproduçãoocorrenocontextoderelaçõessociaisdefinidas.Arelaçãosocialquedominanomododeproduçãocapitalistaéaquelaentreo trabalhoassalariadoeocapital.Oscapitalistascontrolamosmeiosdeprodução,oprocessodeproduçãoeadisposiçãodoprodutofinal.Ostrabalhadoresvendemasua força de trabalho como umamercadoria em troca de salários. Em suma, nós pressupomos que aproduçãoocorrenocontextodeumarelaçãodeclassedefinidaentreocapitaleotrabalho.

Aforçadetrabalhocomomercadoriatemcaráterdual:elatemumvalordeusoeumvalordetroca.

Page 49: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Ovalordeusoéestabelecidodeacordocomasregrasdatrocademercadorias,pelotempodetrabalhosocialmentenecessário requeridopara reproduzir aquela forçade trabalho emcerto padrãodevida ecomcertacapacidadedeseenvolvernoprocessodetrabalho.Otrabalhadorabremãodovalordeusodaforçadetrabalhoemtrocadoseuvalordetroca.

Uma vez que os capitalistas adquirem força de trabalho, eles podem colocá-la para trabalhar demaneirasbenéficasparaelespróprios.Comooscapitalistascompramcertaextensãodetempoduranteaqualmantêmosdireitosdeusodaforçadetrabalho,elespodemorganizaroprocessodeprodução(suaintensidade, tecnologia etc.) para garantir que os trabalhadores, durante aquele período, produzamumvalormaiordoquerecebem.Paraocapitalista,ovalordeusodaforçadetrabalhonãoésimplesmenteofatodeelepodersercolocadonotrabalhoparaproduzirmercadorias,masofatodeeleteracapacidadeespecialparaproduzirumvalormaiordoqueeleprópriotem–elepode,emsuma,produzirmais-valor.

A análise deMarx é baseada na ideia de que “o valor da força de trabalho e sua valorização noprocesso de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas”[54]. O excesso do valor que ostrabalhadores incorporamnasmercadoriascomrelaçãoaovalorqueelesrequeremparaasuaprópriareproduçãomedeaexploraçãodotrabalhonaprodução.Observe,contudo,quearegradeequivalêncianatrocanãoédemaneiraalgumatransgredida,mesmoquesejaproduzidomais-valor.Portanto,nãoháexploraçãonaesferadatroca.

Essasoluçãoparaaorigemdolucroétãosimplesquantoelegante.ComodizEngels,elaatacaolar“comoumraiosaídodeumcéuclaro”[55].

Aeconomiapolíticaclássicanãopoderiaenxergarasoluçãoporqueelaconfundiaotrabalhocomoumamedidadevalorea forçade trabalhocomoumamercadorianegociadanomercado.Por isso,nateoriadeMarx,háumavitaldistinçãoentreotrabalhoeaforçadotrabalho.“Otrabalho”,afirmaMarx,“é a substância e a medida imanente dos valores, mas ele mesmo não tem valor nenhum”. Supor ocontrário seria inferir que poderíamos medir o valor do próprio valor. Além disso, “se existisserealmente algo como o valor do trabalho, e se ele [o capitalista] pagasse realmente esse valor, nãoexistirianenhumcapitaleseudinheironãosetransformariaemcapital”[56].Oqueotrabalhadorvendeaocapitalistanãoéotrabalho(asubstânciadovalor),masaforçadetrabalho–acapacidadederealizarnaforma-mercadoriacertaquantidadedetempodetrabalhosocialmentenecessário.

AdistinçãoentretrabalhoeforçadetrabalhoconduzMarxaumaconclusãoabsolutamenteessencial–conclusãoestaquelhepermiteretificaretransformarateoriadovalor-trabalhodeRicardo.Emumasociedade em que o trabalho e a força do trabalho fossem indistinguíveis (como o são na teoria deRicardo),aleidovalorsópoderiaoperaremumgraumuitorestrito.Aleidovalor“sósedesenvolvelivremente com base na produção capitalista”[57]. Isso pressupõe relações sociais de trabalhoassalariado. Em outras palavras, a contradição entre capital e trabalho assalariado é “o últimodesenvolvimentodarelaçãodevaloredaproduçãobaseadanovalor”[58].

Issosignifica,muitosimplesmente,queovaloreaproduçãodemais-valorsãoparteeparcelaumdooutro.Oplenodesenvolvimentodeumsebaseianoflorescimentodooutro.Comoaproduçãodemais-valor só pode ocorrer em algumas relações de produção específicas, temos de entender como estascomeçaramaocorrer.Precisamosentenderaorigemdotrabalhoassalariado.

Eaúnicacoisadaqualpodemostercertezaéque:

anaturezanãoproduzpossuidoresdedinheiroedemercadorias,deumlado,esimplespossuidoresdesuasprópriasforçasdetrabalho,deoutro. Essa não é uma relação histórico-natural [naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os períodos

Page 50: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

históricos, mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, dadestruiçãodetodaumasériedeformasanterioresdeproduçãosocial.[59]

Marxagorajuntoutodososfioslógicosdeumargumentocomplexo.Elecomeçou,comonós,comaconcepção simples da mercadoria como uma incorporação do valor de uso e do valor de troca. Daproliferaçãodatrocaelederivouanecessidadededinheirocomoumaexpressãodovaloremostrouumarelaçãonecessáriaentreaformacapitalistadacirculaçãoeadeterminaçãodasrelaçõesdetrocasegundootempodetrabalhosocialmentenecessário.Eleagoranosmostrouqueacontradiçãoqueissogeraentrea equivalência pressuposta pela troca e a desigualdade implicada pelo lucro só pode ser resolvidaidentificando-seumamercadoriaquetenhaacaracterísticaespecialdesercapazdeproduzirumvalormaiordoqueelarealmentetem.Aforçadetrabalhoéumamercadoriadessetipo.Quandocolocadaparatrabalhar e produzirmais-valor, ela pode resolver as contradições.Mas isso acarreta a existência detrabalho assalariado. Tudo o que resta é explicar a origem do próprio trabalho assalariado. É a essatarefaquevamosnosdedicaragora.

II.RELAÇÕESDECLASSEEOPRINCÍPIOCAPITALISTADAACUMULAÇÃOAsinvestigaçõesdeMarxdasrelaçõesentreosvaloresdeuso,ospreçoseosvaloresnocontextodaproduçãoetrocademercadoriasgeramumaconclusãofundamental.Arelaçãosocialqueestánaraizdateoria do valormarxiana é a relação de classe entre o capital e o trabalho.A teoria do valor é umaexpressãodessarelaçãodeclasse.TalconclusãoafastaMarxdeRicardoeconstituiaessênciadasuacríticadaeconomiapolíticaburguesa.Masoquê,exatamente,significaumarelaçãodeclasse?

Oconceitodeclasseestáinseridonaanálised’Ocapitalcomamaiorcautela.Nãoháprofissõesdefé diretas do tipo que “toda história é a história da luta de classes”, nem encontramos a “classe”introduzidacomoalgumdeusexmachinaqueexplicatudo,masnãotemdeserexplicada.Aconcepçãodeclassesedesenvolvenodecorrerdainvestigaçãodosprocessosdeproduçãoetrocademercadorias.Quando é apresentada uma definição inicial, Marx pode ampliar imensamente o escopo da suainvestigação, incorporar ideias específicas sobre as relações de classe e transitar livremente entrevaloresdeuso,preços,valoreserelaçõesdeclassenadissecaçãodalógicainternadocapitalismo.Éissoquelhepermiteromperacamisadeforçadaeconomiapolíticatradicional.

A análise da produção e da troca de mercadorias revela a existência de dois papéis distintos eopostosnasociedadecapitalista.Aquelesquebuscamolucroassumemopapeldocapitalista,eaquelesqueabremmãodotrabalhoextraparanutriresselucroassumemopapeldotrabalhador.Nolivrotodo,Marx trata o capitalista como a “personificação” do capital e o trabalhador simplesmente como oportadordeumamercadoria,aforçadetrabalho[60].Elessãotratados,emsuma,como“personificaçõesdasrelaçõeseconômicas,comosuportedasquaiselassedefrontamumascomasoutras”.Marxabordaasimplicações sociais, morais, psicológicas e políticas desses papéis distintos e parte de umarepresentação de duas classes da estrutura social capitalista, apenas na extensão em que essaselaboraçõesepontosdepartidasãoconsideradosnecessáriosparaaanálise.

Noentanto,essetratamentoformalemuitoseverodoconceitodeclasseestájustaposton’Ocapitalcom significados mais ricos, mais confusos, que derivam do estudo da história. Os analistascontemporâneosdetradiçãomarxistasão,consequentemente,admiradoresdadistinçãoentreosconceitos

Page 51: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

declassenamedidaemqueelesserelacionamcomomododeproduçãocapitalista,eaquelesqueserelacionamcomas formaçõessociaiscapitalistas[61].Adistinçãoéútil.Aanálise formaldomododeprodução capitalista procura desvendar a lógica absoluta do capitalismo despojado de todas ascaracterísticascomplicadoras.Osconceitosusadosnãopressupõemmaisqueoestritamentenecessárioparaessatarefa.Masumaformaçãosocial–umasociedadecomoelaéconstituídaemumdeterminadomomentohistórico–émuitomaiscomplexa.QuandoMarxescrevesobreoseventoshistóricosreais,eleusa categorias de classemais amplas,mais numerosas emais flexíveis.Nas passagens históricas n’Ocapital, por exemplo, encontramos a classe capitalista tratada como um elemento dentro das classesdominantes na sociedade, enquanto a burguesia significa mais uma vez algo diferente. EmO 18 deBrumáriodeLuísBonaparte,queéfrequentementecitadocomoummodelodaanálisehistóriadeMarxem ação, encontramos os eventos na França de 1848 a 1851 analisados em termos dolumpemproletariado, do proletariado industrial, de uma pequena burguesia, de uma classe capitalistafracionadaemindustriaisefinancistas,deumaaristocraciafundiáriaedeumaclassecamponesa.Tudoissoestámuitodistantedasimplesanálisededuasclassesapresentadaemgrandeparted’Ocapital[62].

Ainteraçãoentredoissistemasconceituaisaparentementedisparatados–ohistóricoeoteórico–écrucialparaaexplicaçãodoconceitodeclasseemtodaasuacompletude.E,porextensão,ainteraçãoécrucialparaoentendimentodanaturezadoprópriovalor.Masosvínculossãodifíceisdeforjar,eMarxmuitocertamentenãoconcluiuatarefa.Emgrandeparted’Ocapital,porexemplo,Marxse“ocupa”daquestão do trabalho assalariado “teoricamente”, exatamente da mesma maneira que o capitalistacontemporâneodelaseocupa“praticamente”[63].Masportrásdessefatoteóricoseocultaumaquestãohistóricaimportante:comoeporquejamaisaconteceudeodonododinheiroencontrarumtrabalhadorvendendo livremente a força de trabalho da mercadoria no mercado? A relação entre o capital e otrabalhonãotemumabase“natural”–elasurgecomooresultadodeumprocessohistóricoespecífico.Eassim,nofimdoprimeirolivrod’Ocapital,Marxdescreveosprocessospelosquaisocapitalismoveioasubstituirofeudalismo.

AhistóriaqueMarxcontaécontroversaemseusdetalhes,massimplesemsuaconcepçãobásica[64].Aascensãodaclassecapitalistaseguejuntodaformaçãodeumproletariado.Esteúltimoé“oresultadodeumalutade400anosentrecapitalistaetrabalhador”[65]namedidaemqueaquelesengajadosnomodocapitalistadecirculaçãolutaramparaencontrarummododeproduçãoapropriadoquefossecomoumabasesistemáticaparagerar lucro.Asduasclassessãocapturadasemumaoposiçãosimbiótica,poréminexorável. Nenhuma delas pode existir sem a outra, embora a antítese entre elas seja profunda. Seudesenvolvimentomútuoassumeváriasformasintermediáriaseseguedeformadesigualporsetoreporregião.Mas,finalmente,arelaçãoentreocapitaleotrabalhosetornahegemônicaedominantedentrodeuma formação social, no sentido de que toda a estrutura e direção do desenvolvimento dançaprincipalmente conforme a suamúsica. E nesse ponto se justifica chamarmos essa sociedade de umasociedadecapitalista.Masoponto essencial temde ser entendido.O trabalho assalariadonão éumacategoriauniversal.Arelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalho,eateoriadovalorqueelaexpressa,éumacriaçãohistórica.

1.Opapeldeclassedocapitalistaeoimperativoparaacumular

Lembre-se de que a esfera da troca é caracterizada por individualidade, igualdade e liberdade.É“inadmissívelquenelas[nascomprasevendas]busquemosrelaçõesentreclassessociaisinteiras”,uma

Page 52: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

vezquenoreinodatroca(queincluiacompraevendadaforçadetrabalho)“ascompraseasvendassãoefetuadasapenasentre indivíduossingulares”[66].Então,sobquaiscondiçõespodemosbuscar relaçõesentre todas as classes sociais, e quais são as implicações do fato de a individualidade parecer terprecedênciasobreaclassenoreinodatroca?

Marx demonstra que, sob a superfície das relações de troca, “sucedem processos inteiramentediferentes,nosquaisdesapareceessaaparenteigualdadeeliberdadedosindivíduos”porque“ovalordetroca […] já encerra em si a coação sobre o indivíduo”[67]. A coação surge da necessidade deproporcionar um valor de uso para outros a um preço que é regulado pelas condições médias deproduçãodeumamercadoria.Eomecanismoqueestáportrásdessacoaçãoéacompetição.

É importante entender a maneira com a qualMarx apela para o princípio da competição[68]. Eleargumenta que a competição pode explicar o motivo de as coisas serem vendidas no seu valor oupróximo ao seu valor, mas não consegue revelar a natureza do próprio valor; nem isso pode lançarqualquerluzsobreaorigemdolucro.Aequalizaçãodataxadelucrodeveserexplicadaemtermosdacompetição,masdeondevemo lucrorequerumaestruturadeanálise inteiramentediferente.Por isso,Marxnãoachanecessárioanalisaracompetiçãoemdetalhesnosdoisprimeiroslivrosd’Ocapital,comumaexceçãomuitoimportante.

O comportamento do capitalista individual não depende de sua “boa ou má vontade”, porque a“concorrênciaimpõeacadacapitalistaindividual,comoleiscoercitivasexternas,asleisimanentesdomododeproduçãocapitalista”[69].Namedidaemqueosindivíduosadotamopapeldocapitalista,elessãoobrigadosainternalizaromotivodabuscadolucrocomopartedoseusersubjetivo.Avareza,cobiçaeaspredileçõesdamisériaencontramescopoparaexpressãoemtalcontexto,masocapitalismonãoébaseadonessestraçosdecaráter–queiraounão,acompetiçãolhesimpõeparticipantesdesafortunados.

Háoutrasconsequênciasparaoscapitalistas.Considere,porexemplo,oqueelespodemfazercomoexcedentedoqualseapropriam.Eles têmumaescolhadeconsumi-looureinvesti-lo.Surgeentão“umconflito fáustico entre os impulsos da acumulação e do desfrute”[70]. Em um mundo de inovação emudançatecnológicas,ocapitalistaquereinvestepodeobteravantagemcompetitivadocapitalistaquedesfruta do excedente como receitas. A paixão pela acumulação expulsa o desejo de desfrute. Ocapitalistanãoseabstémdodesfruteporinclinação:

O capitalista só é respeitável como personificação do capital. Como tal, ele partilha com o entesourador o impulso absoluto deenriquecimento.Masoquenesteaparececomomaniaindividual,nocapitalistaéefeitodomecanismosocial,noqualelenãoémaisqueuma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte em necessidade o aumento progressivo do capitalinvestidonumaempresaindustrial,eaconcorrênciaimpõeacadacapitalistaindividual,comoleiscoercitivasexternas,asleisimanentesdomododeproduçãocapitalista.Obriga-oaampliarcontinuamenteseucapitalafimdeconservá-lo,eelenãopodeampliá-losenãopormeiodaacumulaçãoprogressiva.[71]

Aregraqueregeocomportamentodetodososcapitalistasé,então,“aacumulaçãopelaacumulação,a produção pela produção”[72]. E essa regra, imposta pela competição, opera independentemente davontadeindividualdocapitalista.Éamarcaregistradadocomportamentoindividual,eassimseimprimecomoacaracterísticadistintivadetodososmembrosnaclassedoscapitalistas.Issotambémunetodososcapitalistas, pois eles todos têm uma necessidade comum: promover as condições para a acumulaçãoprogressiva.

2.Asimplicaçõesparaotrabalhadordaacumulaçãoporpartedocapitalista

Page 53: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Acompetiçãoentreoscapitalistasempurracadaumdelesparaousodeumprocessodetrabalhoqueé pelomenos tão eficiente quanto amédia social.Mas os que acumulammais rapidamente tendem aexpulsar do negócio aqueles que acumulam em uma velocidademais lenta. Isso implica um incentivoeternoparaoscapitalistasindividuaisaumentaremavelocidadedeacumulaçãopormeiodaexploraçãocrescente no processo de trabalho relativo à velocidade socialmédia da exploração.As implicaçõesdissoparaotrabalhadorsãoinúmeras.

Olimitemáximodajornadadetrabalho,porexemplo,éestabelecidoporrestriçõesfísicasesociaisquesão,noentanto,“denaturezamuitoelásticaepermitemasmaisamplasvariações”[73].Mediante acompetiçãooua tendência,oscapitalistaspodemprocurarganharomais-valorabsoluto estendendo ajornadade trabalho.Os trabalhadores,poroutro lado,demandamumajornadade trabalho“normal”e,obviamente, vão sofrer se a necessária paixão dos capitalistas pela acumulação tiver permissão parapassarnãocontrolada.Abatalhaestáiniciada:

Ocapitalistafazvalerseusdireitoscomocompradorquandotentaprolongaromáximopossívelajornadadetrabalho[…]Poroutrolado,[…]o trabalhador faz valer seu direito comovendedor quandoquer limitar a jornada de trabalho a umaduração normal determinada.Tem-seaqui,portanto,umaantinomia,umdireitocontraoutrodireito,ambos igualmenteapoiadosna leida trocademercadorias.Entredireitosiguais,quemdecideéaforça.Eassimaregulamentaçãodajornadadetrabalhoseapresenta,nahistóriadaproduçãocapitalista,como uma luta em torno dos limites da jornada de trabalho – uma luta entre o conjunto dos capitalistas, i.e., a classe capitalista, e oconjuntodostrabalhadores,i.e.,aclassetrabalhadora.[74]

Finalmente chegamos ao ponto em que é não apenas admissível, mas necessário buscar osrelacionamentosentretodasasclassessociais.Eagorapodemosvermaisclaramenteporqueummundodeigualdade,liberdadeeindividualidadenaarenadatrocaocultaummundodelutadeclasses,queafetatantoocapitalquantootrabalho,noreinodaprodução.

Os trabalhadores individuais são livres para vender o seu trabalho sob quaisquer condições decontrato (por qualquer duração da jornada de trabalho) que lhes agradem – em princípio. Mas elestambém têm de competir uns com os outros no mercado de trabalho. E tudo isso significa que “otrabalhador isolado,o trabalhadorcomo ‘livre’vendedorde sua forçade trabalho, […]sucumbe […]sem poder de resistência” diante da tendência dos capitalistas para acumular. O único remédio é ostrabalhadores“seunirem[…]comoclasse”pararesistiràsdepredaçõesdocapital[75].Equantomaisostrabalhadores oferecem formas de resistência coletivas, mais os capitalistas serão obrigados a seconstituírem como uma classe para garantir coletivamente que as condições para a acumulaçãoprogressivasejampreservadas.

O estudo da luta de classes sobre a duração da jornada de trabalho revela mais um ponto. Naausênciadeorganizaçãodeclasseporpartedotrabalho,acompetiçãodesenfreadaentreoscapitalistastemopotencialparadestruiraforçadetrabalho,averdadeirafontedoprópriomais-valor.Detemposemtempos,oscapitalistasdevem,emseuprópriointeresse,seconstituircomoumaclasseepôrlimitesàextensãodasuaprópriacompetição.Marxinterpretaqueasprimeirasfábricasinglesasatuamcomoumatentativa feita “por um Estado dominado pelo capitalista e pelo landlord ” visando “uma limitaçãocompulsóriadajornadadetrabalho”que,“numcaso,exauriuosolo,nooutromatounaraizaforçavitaldanação”[76].Há,portanto,umadistinção–comfrequênciamuitodifusa–entrearegulaçãodessetipoearegulaçãoobtidaatravésdevitóriasdaclassetrabalhadoraedeseusaliadosnalutaparaconseguirumajornadadetrabalhorazoável.

Os capitalistas também podem acumular capturando o mais-valor relativo. Marx identifica duas

Page 54: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

formas.Umaquedanovalordaforçadetrabalhoocorrequandoaprodutividadedotrabalhonossetoresprodutoresde“benssalariais”–asmercadoriasqueotrabalhadornecessita–aumenta.Opadrãodevidaabsoluto, medido em termos das quantidades de bens materiais e serviços que o trabalhador podeproduzir,permaneceinalterado:sóasrelaçõesdetroca(ospreços)eosvaloresmudam.Obarateamentosistemático dos bens salariais está, no entanto, além da capacidade dos capitalistas individuais.Umaestratégiade classede algum tipo (subsídiospara asmercadoriasbásicas, alimentobarato epolíticashabitacionais etc.) é requerida para essa forma de mais-valor relativo ser traduzida em um meiosistemático,emoposiçãoaummeioesporádicoedescontrolado,paraaceleraraacumulação.

A segunda forma de mais-valor relativo está dentro do alcance dos capitalistas individuais. Osindivíduospodemalavancaralacunaentreotempodetrabalhosocialmentenecessárioeseuspróprioscustosdeproduçãoprivados.Oscapitalistasqueempregamtécnicasdeproduçãosuperioresecomumaprodutividade de trabalhomais alta que amédia podem ganhar um lucro excedente negociando a umpreçoestabelecidopelamédiasocialquandoseuscustosdeproduçãoporunidadeestãobemabaixodamédia social.Essa formademais-valor relativo tendea serefêmera,poisacompetiçãoobrigaoutrosprodutoresaseatualizaremousaíremdonegócio.Masestandoàfrentedocamponaprodutividade,oscapitalistas individuais podem acelerar sua própria acumulação relativa à média social. Isso entãoexplica por que o capitalista “cuja única preocupação é a produção de valor de troca, esforça-secontinuamente para diminuir o valor de troca das mercadorias”, aumentando a produtividade dotrabalho[77].

Aquiestáamolamestraparaamudançaorganizacionaletecnológicanocapitalismo.Voltaremosaesse pontomais tarde (ver capítulo 4).Nomomento estamos simplesmente interessados em falar dasconsequências para o trabalhador quando os capitalistas individuais buscam mais-valor relativo pormeiodaextensãodacooperação,dadivisãodotrabalhoedoempregodemáquinas.

Acooperaçãoeadivisãodo trabalhodentrodoprocessode trabalho implicamaconcentraçãodaatividadedotrabalhoedostrabalhadoresemumlocaleoestabelecimentodosmeiosparacoordenaçãoecontrolesobaautoridadedespóticadocapitalista.Acompetiçãoobrigaaconcentraçãoprogressivadaatividade (até que, supostamente, todas as economias de escala estejam esgotadas) e o enrijecimentoprogressivodasestruturasdeautoridadeedosmecanismosdecontroledentrodolocaldetrabalho.Comissosegueumaorganizaçãohierárquicaeformasdeespecializaçãoqueestratificamaclassetrabalhadoraecriamumacamadasocialdeadministradorese supervisoresquedirigem–emnomedocapital–asoperaçõescotidianasnolocaldetrabalho.

Oempregodemáquinaseoadventodosistemafabril têmresultadosaindamaisprofundosparaotrabalhador.Ocorreumareduçãonashabilidadesindividuaisrequeridas(umprocessoagoradescrito,deformamaisdeselegante,como“degradaçãodecompetências”ou“desqualificação”)–oartesãotorna-seum operário fabril. A separação do trabalho “mental” do trabalho “manual” é enfatizada, enquanto oprimeirotendeaserconvertidoemumpoder“docapitalsobreotrabalho”.Asmulhereseascriançastambémpodemsermaisfacilmenteconduzidasàforçadetrabalho,eaforçadetrabalhodetodaafamíliavemsubstituiro trabalhodo indivíduo.A intensidadedoprocessode trabalhoaumentaesão impostosritmoscadavezmaisestritose rígidos.Eemtudo issoocapitalista temàmãoumdispositivonovoemuitopoderosopararegularaatividadeeaprodutividadedotrabalhador–amáquina.Otrabalhadortemde se adaptar aos ditames da máquina, e a máquina está sob o controle do capitalista ou do seurepresentante.

O resultadogeral éo seguinte.Acompetiçãopelaacumulação requerqueocapitalista inflijauma

Page 55: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

violênciadiáriasobreaclassetrabalhadoranolocaldetrabalho.Aintensidadedessaviolêncianãoestásob o controle dos capitalistas individuais, particularmente se a competição for desregulada.A buscaincessante pelo mais-valor relativo aumenta a produtividade do trabalho ao mesmo tempo quedesvaloriza e deprecia a forçade trabalho, sem falar naperdadadignidade, da sensaçãode controlesobreoprocessodo trabalho,doassédioconstanteporpartedossupervisoresedanecessidadedeseadaptar aosditamesdamáquina.Como indivíduos,os trabalhadoresmal estãoemposiçãode resistir,maisparticularmenteporqueumaprodutividadecrescentetemohábitode“liberar”certonúmerodelesparaasfileirasdosdesempregados.Ostrabalhadoressóconseguemdesenvolveropoderderesistirpormeio de algum tipo de ação de classe – sejam atos espontâneos de violência (quebra dasmáquinas,incêndioseafúriadamassadeépocasanteriores,quedemodoalgumdesapareceram)ouacriaçãodeorganizações (como os sindicatos) capazes de travar uma luta de classes coletiva. A compulsão doscapitalistasparacaptarummais-valoraindamaisrelativonãopassaincontestada.Abatalhaocorremaisumavezeasprincipaislinhasdalutadeclassesseformamemtornodequestõescomoaaplicaçãodasmáquinas, a velocidade e intensidade do processo de trabalho, o emprego demulheres e crianças, ascondiçõesdetrabalhoeosdireitosdotrabalhadornolocaldetrabalho.Ofatodeaslutassobreessasquestõesseremumapartedavidadiárianasociedadecapitalistaatestaparaofatodequeabuscapelomais-valor relativo é onipresente e que a necessária violência implicada nessa busca pode provocaralgumtipodereaçãodeclasseporpartedostrabalhadores.

3.Aclasse,ovaloreacontradiçãodaleicapitalistadaacumulação

Nessa altura, a explicação do conceito de classe não está em parte alguma próxima de suacompletude. Não dissemos nada sobre a maneira em que uma “classe” se constitui social, cultural epoliticamente em uma dada situação histórica; nem nos aventuramos a dizer qualquer coisa sobre osproblemas complexosde consciênciade classe, ideologia e as identificaçõesdo self que as ações declasse inevitavelmente pressupõem.Mas a versão limitada do conceito de classe que apresentamos ésuficienteparapermitiralgumasreflexõeseconclusões.

Considere, primeiro, o significado que devemos agora anexar a “tempo de trabalho socialmentenecessário”comoamedidadevalor.Aclassecapitalistadevesereproduziresópodefazê-lomedianteaacumulaçãoprogressiva.Aclassetrabalhadoradevetambémsereproduziremumacondiçãoapropriadaparaaproduçãodemais-valor.E,acimadetudo,arelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalhodeveserreproduzida. Como todos esses aspectos são socialmente necessários para a reprodução domodo deproduçãocapitalista,elesentramnoconceitodevalor.Assim,ovalorperdesuaconotaçãotecnológicaefísicasimplesepassaaservistocomoumarelaçãosocial.Nóspenetramosnosfetichismosdatrocademercadorias e identificamos o seu significado social. Dessa maneira, o conceito de classe estáincorporadonaconcepçãodoprópriovalor.

Entretanto,estamosagoraemumaposiçãodesermosmuitomaisexplícitossobreanaturezadaleidovalor. Considere como a questão se sustenta historicamente. O trabalho assalariado é um produtohistórico,assimcomoa relaçãodeclasseentreocapitaleo trabalho.A leidovalorcapitalistaéumprodutohistóricoespecíficodassociedadesemquedominaomododeproduçãocapitalista.Adescriçãodapassagemde sociedadepré-capitalistapara capitalistapretendenos revelar comoessa transmissãopodeterocorrido.Emprimeirolugar,aemergênciadaformadodinheiroeoaumentodatrocadissolvemconsistentementeosvínculosdedependênciapessoaleossubstituipordependências impessoaisviaosistema de mercado. O crescimento do sistema de mercado dá origem a um modo de circulação

Page 56: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

distintamentecapitalista,baseadonabuscadolucro.Essemododecirculaçãocontémumacontradição;porumlado,elepressupõeliberdade,igualdadeeindividualidade;poroutro,oprópriolucropressupõeumadesigualdade.Essacontradiçãofundamentaldáorigemaváriasformasinstáveisdecapitalismonasquaisoslucrossãobuscadossemocomandodoprocessodeprodução.Osbanqueirospõemodinheiropara trabalhar a fimde operaremmais dinheiro, os comerciantes buscamo lucro através da troca, osespeculadoresimobiliáriosnegociamemaluguéisepropriedades,eassimpordiante.Atrocaforçada,apilhagem, o roubo e todas as outras práticas coercivas podem sustentar esses sistemas durante algumtempo. Mas no fim torna-se necessário dominar a própria produção para resolver a contradiçãofundamental entre a igualdade pressuposta pela troca e a desigualdade requerida para se obter lucro.Inicialmente frágeis, várias fases da industrialização, como experimentos como sistemade plantação,pavimentamo caminhopara a institucionalização da forma industrial do capitalismoque se baseia notrabalhoassalariadoenaproduçãodemais-valor.Oadventodomododeproduçãocapitalistaresolveascontradiçõesda troca,masnãoo fazasdeslocando.Surgemnovascontradiçõesdeum tipo totalmentediferente.

Aanálisedeclassed’Ocapitaldestina-searevelaraestruturadessasnovascontradiçõesnamedidaemqueelasprevalecemnocernedomododeproduçãocapitalista.Porextensão,passamosaverateoriadovalorincorporandoeinternalizandopoderosascontradiçõesqueconstituemamolamestradamudançasocial.

Lembre-se,antesdetudo,damaneiraqueaigualdade,aindividualidadeealiberdadedatrocasãotransformadas pela competição em ummundo de compulsão e coerção, demodo que cada capitalistaindividualsejaobrigado,queiraounão,àacumulaçãopelaacumulação.Entretanto,oreinodaigualdade,daindividualidadeedaliberdadenuncaéinteiramenteabolido.Naverdade,nãopodeser,porqueatrocacontinua adesempenharumpapel fundamental e as leis da trocapermanecem intactas.Aproduçãodemais-valorresolveacontradiçãodentrodomododeproduçãocapitalistadeacordocomasleisdatroca.Sónaproduçãoocaráterdeclassedasrelaçõessociaissetornaclaro.Dentrodaclassecapitalistaissoproduzumacontradiçãoentreaindividualidadepressupostapelatrocaeaaçãodeclassenecessáriaparaorganizaraprodução.Issocriaproblemas,porqueaproduçãoeatrocanãosãoseparadasumadaoutra,masestãoorganicamenteligadasdentrodatotalidadedomododeproduçãocapitalista.

VimosessacontradiçãoemaçãonaanálisedeMarxdaslutassobreaduraçãodajornadadetrabalho.Alidescobrimososcapitalistas individuais,cadaumagindoemseupróprio interesseeencerradosemuma luta competitiva um como outro, podendo produzir um resultado agregador que vai contra o seuinteressedeclassevistocomoumtodo.Porsuaaçãoindividualelespodempôremriscoabaseparaaacumulação.E,comoaacumulaçãoéomeiopeloqualaclassecapitalistasereproduz,elespodempôremriscoabaseparaasuaprópriareprodução.Sãoentãoobrigadosaseconstituircomoumaclasse–emgeralatravésdaaçãodoEstado–ecolocarlimitesàsuaprópriacompetição.Mas,assimfazendo,sãoobrigadosaintervirnoprocessodetroca–nessecasonomercadodetrabalho–eassimviolarasregrasdaindividualidadeedaliberdadenatroca.

Acontradiçãodentroda classe capitalista entre a ação individual e as exigênciasde classenuncapodeserresolvidadentrodasleispressupostaspelomododeproduçãocapitalista.E,comoveremosembreve, essa contradição está na mesma raiz de muitas das contradições internas dentro da forma deacumulação capitalista. Também serve para explicar muitos dos dilemas sociais e políticos que têmincomodadoaclassecapitalistaemtodaahistóriadocapitalismo.Háumalinhaflutuantecontínuaentreanecessidadedepreservaraliberdade,aigualdadeeaindividualidade,eanecessidadedeaplicaruma

Page 57: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

ação de classe com frequência repressiva e coerciva. A produção de mais-valor só resolve ascontradiçõesdentrodomododecirculaçãocapitalistacolocandoumanovaformadecontradiçãodentroda classe capitalista – aquela entre o capitalista individual e o interesse da classe capitalista emreproduzirasprecondiçõesgeraisparaaacumulação.

Em segundo lugar, considere a relação entre o capital e o trabalho que a produção demais-valorpressupõe.Comoqualquer outramercadoria, a força de trabalhomudanomercadode acordo comasregras de troca normais.Mas já vimos que nem o capitalista nem o trabalhador podem realmente sepermitirdeixaromercadoparaaforçadetrabalhooperarlivremente,equeosdoisladossãoobrigadosemcertosmomentosatomarumaaçãodeclasse.Aclassetrabalhadoradevelutarparasepreservaresereproduzir não só fisicamente, mas também social, moral e culturalmente. A classe capitalista devenecessariamente infligir uma violência sobre a classe trabalhadora para sustentar a acumulação, aomesmotempoquedevetambémconterseusprópriosexcessoseresistiràquelasdemandasporpartedaclasse trabalhadoraqueameaçamaacumulação.A relaçãoentrecapital e trabalhoéaomesmo temposimbiótica e contraditória.A contradição é a fonte da luta de classes. Isso tambémgera contradiçõesinternas dentro da forma de acumulação capitalista, ao passo que ajuda a explicar grande parte dodesdobramentodahistóriacapitalista.

Somentenoscapítulos finaisdoprimeiro livrod’Ocapital finalmenteapreciamosa transformaçãoque Marx elaborou na teoria do valor-trabalho de Ricardo. Agora encaramos o tempo de trabalhosocialmente necessário como o padrão de valor apenas na medida em que um modo de circulaçãocapitalistaeummododeproduçãocapitalistacomsuasrelaçõessociaisdistintaspassaramaexistir.Eesteéoresultadodeumprocessoespecíficodetransformaçãohistóricaquecriouotrabalhoassalariadocomoumacategoriavitalnavidasocial.Acaminhodessaconclusãofundamental,Marxreuniuumcorpode valiosos insights sobre a estrutura do capitalismo. Já vimos a importância de algumas relaçõesjurídicasexpressadaspormeiodosdireitosdepropriedadeedaaplicaçãodessesdireitospeloEstado.Notamosaimportânciadealgunstiposdeliberdade,individualidadeeigualdade.

Porisso,ateoriadovalorinternalizaeincorporaascontradiçõesfundamentaisdomododeproduçãocapitalistacomoestassãoexpressaspormeiodasrelaçõesdeclasse.Anecessidadesocialrequerquetanto o capital quanto o trabalho sejam reproduzidos, assim como a relação de classe entre eles. Arelação capital-trabalho é em si uma contradição que constitui a fonte da luta de classes, enquanto areproduçãodocapitaledotrabalhoincorporaumacontradiçãoentreaindividualidadeeaaçãodeclassecoletiva.Oconceitodevalornãopodeserentendidoindependentementedalutadeclasses.

OconceitodetempodetrabalhosocialmentenecessárioagoraseestendebemalémdoqueRicardojamais sonhou quando enunciou sua teoria do valor-trabalho.Devemos estar preparados para segui-laondequerqueelanosleve,pois,naverdade,criamosumveículopoderosocomoqualanalisaralógicainternadocapitalismo.

APÊNDICE:ATEORIADOVALORA própria interpretação da teoria do valor de Marx é objeto de muita controvérsia. Escolas depensamentorivaissedistanciaramtantonosúltimosanosquesuasraízescomunsestãoatualmentequaseindiscerníveis. A seriedade da fissura é ilustrada pelo crescente clamor por parte de alguns paraabandonar totalmente o conceito de valor, pois ele é um “grilhão importante” para uma investigaçãomaterialista histórica do capitalismo[78]. A demanda pode ser justificada quando aplicada àquela

Page 58: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

interpretaçãodovalorcomoumconceitomeramentecontábil,comoumcritériofixoeimutávelvinculadoaos insumos do trabalho, o que se supunha então que explicasse não somente os preços relativos dasmercadorias, mas também as partes distributivas, a exploração etc. Tal concepção estreita é logoconsiderada insatisfatóriaquandocolocadaemcontraposiçãoa fins tãograndiosos.Édifícilde formainequívocaa relaçãoentrevaloresepreços relativos,eocapital fixoeosprodutosemcomumcriamproblemas aparentemente insuperáveis (ver capítulo 8).As críticas da teoria dovalor culminaramemumamuitobem-sucedidacampanhacontraasinterpretaçõestradicionais,comoaquelasapresentadasemDobb,SweezyeMeek[79].

Areaçãodemuitostemsidoreafirmaroquediziamserdesdeocomeçooverdadeirosignificadodaposiçãotradicional,queovaloréumaexpressãounificadadosaspectosquantitativosequalitativosdocapitalismoequenenhumdelestemsentidosemooutro[80].Comisso,ovaloréinvestidocom“maisqueumasignificânciaestritamenteeconômica”–eleexpressa“nãomeramenteabasematerialdaexploraçãocapitalista, mas também, e inseparavelmente, sua forma social”[81]. Embora alguns, como Desai[82],evidentemente sintam que não há problema em explorar os aspectos quantitativos e qualitativos emconjunto,oefeitodeinterpretaçõesmais“radicais”dovalortemsidonegarosrigoresdamatematizaçãoquantitativa empregadapelos “construtoresdemodelo” (principalmente economistas comoMorishima,Roemer[83]eoutros)eempurrarateoriamarxianaparaumacríticamaisvigorosadaeconomiapolítica(queàsvezes inclui tratar comdesdémos construtoresdemodelo) eumaexposiçãomaisvibrantedomaterialismohistórico.Operigoaquiéqueo“valor”degenereemumaconcepçãopuramentemetafísica.Oqueseráganhoemultrajemoralseráperdidoemconvicçãocientífica.Ouaindaqueateoriadovalor,abrangendo“todaagrandeextensãodeinterpretaçõesmaterialistasdahistória”,vásetornarvítimadaobjeçãodeJoanRobinson[84]deque“algoquesignificatudonãosignificanada”.Essasacusaçõesnãoseajustam bem com aquelas que se identificam com a alegação de Marx de que ele erigiu uma baserealmentecientíficaparaoentendimentodomododeproduçãocapitalista.

TudoissoestabeleceuocenárioparaumareconstruçãomaiscuidadosadoqueopróprioMarxdisse(na tradição de estudiosos como Rubin, Rosdolsky[85] e outros). Embora a ideia de valor como umaferramenta contábil ou como uma magnitude empiricamente observável tivesse claramente de serabandonada,elaaindapoderiasertratadacomoum“fenômenorealcomefeitosconcretos”[86].Poderiaserconstruídacomoa“essência”queestáportrásda“aparência”,a“realidadesocial”queestáportrásdofetichismodavidacotidiana.Avalidadedoconceitopoderiaserentãoavaliadaemtermosdosefeitosconcretosquenosajudamainterpretareentender.Oconceitodevaloréfundamental,poisnosajudaaentender,deumamaneiraquenenhumaoutrateoriadovalorconsegue,aintrincadadinâmicadasrelaçõesdeclasse(tantonaproduçãoquantonatroca),damudançatecnológica,daacumulaçãoedetodasassuascaracterísticas associadas de crises periódicas, desemprego etc. Mas, para realizar isso, asinterpretaçõestradicionaisdovalorcomoqualquercoisaquesejaalcançadapelotrabalhonaproduçãotemdedarlugaraumentendimentomaiscomplexodotrabalhosocialexpressadoecoordenadodentrodeumaunidadedeproduçãoetroca,mediadopelasrelaçõesdedistribuição[87].

Masmesmoessaconcepção,emboraobviamentemuitomaispróximadaintençãodeMarx,nãocaptatotalmente a significância da verdadeira revolução queMarx elaborou em seumétodo de abordagem.Elson[88] recentemente reuniu um conjunto de ensaios interessantes (e acrescentou uma peçaextraordinariamentesagazdesuaautoria)queexploramosaspectosrevolucionáriosdateoriadovalorde Marx em termos da unidade de ciência rigorosa e política. Tenho grande simpatia por essas

Page 59: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

discussõeseencaroomeuprópriotrabalhocomoumensaioexploratórioaolongodaslinhasqueElsoneoutroscomeçaramadefinir.

Baseio aminhaprópria interpretação emuma leitura de textos deMarx emque algumas ideias sedestacamcomodominantes.Ovalor é, emprimeiro lugar, “ummodode existência social definida daatividade humana” atingido nas relações capitalistas de produção e troca[89]. Por isso,Marx não estáfundamentalmentepreocupadoemmoldarumateoriadepreçosrelativosoumesmoestabelecerregrasdedistribuiçãofixasdoprodutosocial.Eleestámaisdiretamenteinteressadonaquestãodecomoeporqueo trabalho no capitalismo assume a forma que assume[90]. A disciplina imposta pela troca demercadorias,asrelaçõesdedinheiro,adivisãosocialdotrabalho,asrelaçõesdeclassedaprodução,aalienação do trabalho do conteúdo e do produto do trabalho e a imperativa “acumulação pelaacumulação”nosajudamaentendertantoasrealizaçõesreaisquantoaslimitaçõesdotrabalhohumanonocapitalismo.Essadisciplinacontrastacomaatividadedotrabalhohumanocomo“ofogovivoedoadorde forma”[a], como a “transitoriedade das coisas, a sua temporalidade”, e como expressão livre dacriatividadehumana.Oparadoxoaserentendidoécomoaliberdadeetransitoriedadedotrabalhoativocomoumprocessoéobjetificadoemumafixideztantodascoisasquantodasrelaçõesdetrocaentreascoisas.Ateoriadovalortratadaconcatenaçãodasforçaserestriçõesqueadisciplinacultivacomosefossemumanecessidadeexternamenteimposta.Maselafazomesmonoreconhecimentoclarodeque,naanálise final,o trabalhoproduze reproduzascondiçõesdasuaprópriadominação.Oprojetopolíticovisaliberarotrabalhocomo“ofogovivoedoadordeforma”dadisciplinaférreadocapitalismo.

Porissootrabalhonãoénemnuncapoderáserumamedidadevalorfixaeinvariável.Marxzombadaqueles economistas burgueses que buscavam estabelecê-lo como tal[91]. Por meio da análise dofetichismodasmercadorias,Marx nosmostra por que “o valor não pode andar por aí comum rótulodescrevendooqueeleé”eporqueaeconomiapolíticaburguesanãopodelidarcomaquestãoreal:porque“o trabalho se representanovalor e amedidado trabalho,pormeiode suaduração temporal,nagrandezadevalordoprodutodo trabalho?”[92]. “Aprovaeademonstraçãoda relaçãodevalor real”,escreveuMarxparaKugelmannemumaltoestadodeindignaçãodiantedascríticasaoCapital,estána“análise das relações reais”, de forma que “toda aquela tagarelice sobre a necessidade de provar oconceito de valor vem da completa ignorância tanto do tema tratado quanto dométodo científico”.Ovalor não pode ser definido no início da investigação,mas temde ser descoberto no seu decorrer.Oobjetivoédescobrirexatamentecomoovaloréatribuídoàscoisas,aosprocessoseatémesmoaossereshumanos, nas condições sociais que prevalecem dentro de um modo de produção dominantementecapitalista. Proceder de outro modo significaria “apresentar a ciência antes da ciência”. A ciênciaconsiste,concluiMarx,“emdemonstrarcomoaleidovalorseafirma”[93].

Umrelatocompletodesse“como”requerumateorizaçãorigorosa.Marxemparteatingeesteúltimomedianteumaaplicaçãocrueldosmodosderaciocíniodialéticos–cujosprincípiossãomuitodiferentes,mastãoduroserigorososquantoqualquerformalismomatemático.Atarefadomaterialismohistóricoétambém“seapropriardamatériaemseusdetalhes,analisarsuasdiferentesformasdedesenvolvimentoerastrear seu nexo interno” com toda a integridade e o respeito inflexível pelas “relações reais” quecaracterizam as formasmaterialistas da ciência. “Somente depois de consumado tal trabalho é que sepode expor adequadamente o movimento real”, de modo que a vida da matéria é agora refletidaidealmente[94].

Ométododeexposiçãon’Ocapital–ométodoquetenhotentadoreproduzirnestelivro–éresolver

Page 60: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

as restrições à aplicação livre do trabalho humano no capitalismo, passo a passo, para ver ascontradiçõesdestaoudaquelaformacomocontendoassementesdeoutrascontradiçõesquerequeirammais exploração. A reflexão, como o tema que ela descreve, está eternamente em transformação. Adescriçãorigorosado“como”nãoéumalvaráparaodogmatismo,masumaaberturaparaumaciênciarealmenterevolucionáriaecriativadahistóriahumana.Equeaciênciaéapenasumapartedeumalutamuitomais ampla para disciplinar a própria disciplina, “para expropriar os expropriadores” e, dessemodo,atingirareconstruçãoconscientedaformadevaloratravésdaaçãocoletiva.

[1]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.93.

[2]Ibidem,p.90.

[3]ÉamarcaregistradadométodomaterialistadeMarxiniciaradiscussãoexaminandoascaracterísticasdosobjetosmateriaiscomosquaistodosestãofamiliarizados.“Eunãocomeçonuncados‘conceitos’,nem,porissomesmo,do‘conceitodevalor’[...].Eupartodaformasocialmaissimplesemquesecorporificaoprodutodotrabalhonasociedadeatual,queéa‘mercadoria’”,idem,“GlosasmarginaisaoTratadodeeconomiapolíticadeAdolphWagner”,ServiçoSocialemRevista(trad.EvaristoColmán,Londrina,EditoradaUniversidadedeLondrina,2011),v.13,p.175-9.

[4] Bertell Ollman, “Marxism and Political Science: Prolegomenon to a Debate onMarx’sMethod”,Politics and Society, 1973. Engelstambémnosadverteespecificamentecontra“afalsasuposiçãodequeMarxdesejadefinirondeeleapenasinvestiga,equeemgeralpodemosesperar definições fixas, específicas e conclusivamente aplicáveis nas obras deMarx. É autoevidente que quando as coisas e suas inter-relações sãoconcebidas,nãocomo fixas,mascomomutáveis, suas imagensmentais, as ideias, sãodomesmomodosujeitas àmudançaetransformação;eelasnãosãoencapsuladasemdefiniçõesrígidas,masdesenvolvidasemseuprocessodeformaçãohistóricaoulógica”(KarlMarx,Capital,LivroIII,NovaYork,InternationalPublishers,1967,p.13-4).

[5]Essainterpretação“linear”deMarxcaracterizaasapresentaçõestantodeJoanRobinson(AnEssayonMarxianEconomics,Londres,Macmillan,1967)quantodePaulSamuelson(“UnderstandingtheMarxianNotionofExploitation:aSummaryoftheSo-CalledTransformationProblemBetweenMarxianValuesandCompetitivePrices”,JournalofEconomicLiterature,1971)sobreoassunto(estepareceserumdospoucos pontos em que estão de acordo). Versões “estruturalistas” mais preocupantes podem ser encontradas emMartin Bronfenbrenner(“‘DasKapital’ for theModernMan”, emD.Horowitz (org.),Marx andModern Economics, NovaYork,ModernReader Paperbacks,1968) e emJonElster (“TheLaborTheoryofValue: aReinterpretationofMarxistEconomics”,MarxistPerspectives, 1978), embora atémesmo Paul Sweezy (The Theory of Capitalist Development, Nova York, Monthly Review Press, 1968 [ed. bras.: Teoria dodesenvolvimentocapitalista, Rio de Janeiro, Zahar, 1967]) – em uma obra que de restomerece amaior admiração – pareça cair nessaarmadilha.Emminhaopinião,eleenfrentoudificuldadespornãocompreendertotalmenteorelacionamentoqueMarxcriaentreosconceitosdevalordeusoevalor.

[6]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.113-4.

[7] Ibidem,p.256. IanSteedman(MarxafterSraffa,AtlanticHighlands,HumanitiesPress, 1977), desenvolvendoa ideiadePieroSraffa(The Production of Commodities by Means of Commodities, Londres, Cambridge University Press, 1960 [ed. bras.: A produção demercadoriaspormeiodemercadorias,RiodeJaneiro,Zahar,1977]),reinterpretaMarxàluzdascaracterísticasdossistemasdeproduçãofísicos.BenFineeLaurenceHarris(Re-ReadingCapital,Londres,Macmillan,1979)resumemascríticasdessaabordagem.

[8]RomanRosdolsky(TheMakingofMarx’sCapital,Londres,PlutoPress,1977,p.73-98)apresentaumaexcelentediscussãosobreousodeMarxdoconceito“valordeuso”edamaneiraqueoconceitoéempregado,principalmentenosGrundrisseen’Ocapital.Ele tambémchamaatençãoparaaseguinteafirmaçãomaissurpreendenteemPaulSweezy(TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.,p.26),deque“Marxexcluiuovalordeuso[oucomoeleseriaatualmentechamado,“utilidade”]docampodeinvestigaçãodaeconomiapolíticabaseadonofatodequeelenãoincorporadiretamenteumarelaçãosocial”.PaulSweezy,comoindicaRosdolsky,estárepetindoaquiumamáinterpretaçãodeMarxqueremontapelomenosaosescritosdeRudolfHilferdingnoiníciodadécadade1990.

[9]KarlMarx,“GlosasmarginaisaoTratadodeeconomiapolíticadeAdolphWagner”,cit.

[10]Idem,Grundrisse,cit.,p.756.

[11]Ibidem,p.541.

[12]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.119.

[13]Ibidem,p.246.

[14]Idem,Grundrisse,cit.,p.332-3.

Page 61: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[15]VerMichaelLebowitz,“CapitalandtheProductionofNeeds”,ScienceandSociety,1977-1978.

[16]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.189.DevemosnotarqueMarxacompanhouRicardonesseaspecto.Ricardoconsideravaaofertaeademandaimportantescomoummecanismodeequilíbrio,mas,comoMarx,elenãoconsideravaessaconcepçãodomundosuficientementepoderosaparaconstituirabasedateoriadovalor.“Vocêdizqueaofertaeademandaregulamovalor”,escreveueleaMalthus,mas“isso,achoeu,nãodiznada”(citadoemRonaldMeek,Smith,MarxandAfter,Londres/NovaYork,Chapman&Hall/Wiley,1977,p.158).Aofertaeademandaestãonocernedateoriadovalorneoclássicaemarginalista,masacríticadePieroSraffa(TheProductionofCommoditiesbyMeansofCommodities,cit.)destaúltimaempurroupelomenosumsegmentoda teoriaeconômicacontemporâneadevoltaàbasecomumapresentada,pelomenosnesseaspecto,tantoporMarxquantoporRicardo.RonaldMeek(Smith,MarxandAfter,cit.,cap.10)apresentaumaboadiscussãosobreisso.

[17]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.167.

[18]Idem,Grundrisse,cit.,p.183.

[19]EstudossobreateoriadodinheirodeMarxsãopoucoseeventuais.RomanRosdolsky(TheMakingofMarx’sCapital,cit.)apresentaumaexcelentediscussãodecomoMarxchegouàsuaconcepçãofinaldodinheiro.MarxonMoney (NovaYork,UrizenBooks,1976 [ed.bras.:AmoedaemMarx,SãoPaulo,PazeTerra,1978]),deSuzanneDeBrunhoff,éútil,mas,comoindicasuaautocríticanofinal,eladeixadeabordarmuitospontosqueprocura incluiremsuasobrasposteriores(1976e1978),quesãoemgeralexcelentes.LaurenceHarris(“OnInterest,CreditandCapital”,emEconomyandSociety,1976;e“TheRoleofMoneyintheEconomy”,emF.GreeneP.Nore[orgs.],IssuesinPoliticalEconomy: aCritical Approach, Londres,Macmillan, 1979) eChristianBarrère (Crise du système de crédit et capitalismemonopolisted’État,Paris,Economica,1977)tambémreúnemalgunsmateriaisinteressantes.Oqueédesesperador,noentanto,éamaneirapelaqualasobrassobreMarxfrequentementedesviamoproblemadodinheiroparaumladocomosefosseumtópicoespecial,emvezdetratá-locomofundamentalpara todaaanálise.AúnicaexceçãoéErnestMandel(MarxistEconomicTheory,Londres,Merlin,1968),queacertadamente integraodinheiroeocréditoemseu texto.Damesmamaneira,háumrisco inerentenoaumentodaquantidadedeestudosespeciaisda teoriadodinheirodeMarxcomoalgoquepossaser tratadoisoladamentedeoutrosaspectosdasuateoria.Esperoevitaressaciladanoscapítulos9e10.

[20]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.167.

[21]Ibidem,p.161.

[22]Idem,Grundrisse,cit.,p.95.

[23]Ibidem,p.147.

[24]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.195.

[25]Idem,Grundrisse,cit.,p.105.

[26]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.189,206.

[27]Verparticularmentep.67-181.

[28]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.207.

[29]Ibidem,p.209.

[30]Ibidem,p.229.

[31]Ibidem,p.116.

[32]MakotoItoh(“AStudyofMarx’sTheoryofValue”,ScienceandSociety,1976)apresentaumexcelenteestudosobreamaneiraqueMarxsevaledosargumentosdeRicardoparamoldarsuaprópriaconcepçãon’Ocapital;eoartigodeGeoffPilling(“TheLawofValueinRicardoandMarx”,EconomyandSociety,1972)tambémédeconsiderávelinteresse.VeraindaDianeElson,Value:theRepresentationofLabourinCapitalism(Londres/AtlanticHighlands,CSEBooks/HumanitiesPress,1979).

[33]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.128.

[34]Ibidem,p.117.

[35]OcontrasteentreessaeoutrasinterpretaçõesdateoriadovalorseráconsideradonoApêndicedestecapítulo.

[36]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.118.

[37]Ibidem,p.169.

[38]Ibidem,p.148-9.

[39]Idem.

[40]IsaakRubin(EssaysonMarx,TheoryofValue,Detroit,Black&Red,1972[ed.bras:Ateoriamarxistadovalor,SãoPaulo,Polis,1987])fazalgunscomentáriosfascinantessobreotemadofetichismon’OcapitaldeMarx.

[41]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.150.

Page 62: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[42]Ibidem,p.149.

[43]Ibidem,p.177.

[44]Idem.

[45]Idem,“DebattenüberdasHolzdiebstahlsgesetz”,RheinischeZeitung,n.298,25out.1842.Assinado“einenRheinländer”.

[46]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.159.

[47]Ibidem,p.120.

[48]Ibidem,p.150.

[49]Ibidem,p.167.

[50]PorissonãopretendoindicarqueconcordointeiramentecomCrawfordMacPherson,cujaPoliticalTheoryofPossessiveIndividualism(Oxford,ClarendonPress, 1962) ignora, entreoutras coisas, a organizaçãopatriarcal das famílias, aomesmo tempoque ignoramuitasdasreais complexidades – ver Keith Tribe, Land, Labour and Economic Discourse (Londres/Boston, Routledge & K. Paul, 1978) e AlanMacfarlane,TheOriginsofEnglishIndividualism:TheFamily,PropertyandSocialTransition(Oxford,BlackwellBasil,1978[ed.bras.:Família,propriedadeetransiçãosocial,RiodeJaneiro,Zahar,1980]).OpróprioMarxabordaessestemascomalgumdetalhamentonosGrundrisse,cit.,p.67-181.

[51]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.235.

[52]Ibidem,p.230-1.

[53]Ibidem,p.160.

[54]Ibidem,p.270.

[55]Ibidem,LivroII,p.14.

[56]Ibidem,LivroI,p.612.

[57]Ibidem,p.606.

[58]Idem,Grundrisse,cit.,p.587.

[59]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.244.

[60]Ibidem,p.160.

[61]Otermo“mododeprodução”estáabundantementeespalhadoemtodaaobradeMarx,masoconceitode“formaçãosocial”nãotanto.Adistinçãoentreosdoisconceitostornou-seumacaloradotópicodedebateemtodaaobradeLouisAlthusser(ForMarx,Londres,AllenLane, 1969), Louis Althusser e Étienne Balibar (Reading Capital, Londres, NLB, 1970), Nicos Poulantzas (Classes in ContemporaryCapitalism,Londres,NLB,1975[ed.bras.:Asclassessociaisnocapitalismodehoje,RiodeJaneiro,Zahar,1978])eoutrosquetrabalhamnoque se tornou conhecido como a tradição “althusseriana” domarxismo estruturalista.O debate subsequente foi do desnecessariamenteobscuro e difícil (Louis Althusser e Étienne Balibar) para o ridículo (Barry Hindess e Paul Hirst,Pre-Capitalist Modes of Production,Londres/ Boston, Routledge&Kegan Paul, 1975 [ed. bras.:Modos de produção pré-capitalistas, Rio de Janeiro, Zahar, 1976]), tendoatingido seu ponto mais baixo de autodestruição na obra de Barry Hindess e Paul Hirst (Mode of Production and Social Formation,Londres,Macmillan,1977[ed.bras.:Modosdeproduçãoeformaçãosocial,RiodeJaneiro,Zahar,1978])eAntonyCutler,BarryHindess,PaulHirst eAtharHussain (Marx’s Capital andCapitalism Today, Londres /Boston, Routledge andKegan Paul, 1978); ver também arevisãodestaúltimarealizadaporLaurenceHarris(“TheScienceoftheEconomy”,EconomyandSociety,1978).Umamedidadesanidade,com alguns importantes insights, foi injetada no debate por escritores comoBertell Ollman (Alienation:Marx’s Conception ofMan inCapitalistSociety,Londres,CambridgeUniversityPress,1971),MauriceGodelier (Rationalityand Irrationality inEconomics, Londres,NLB,1972[ed.bras.:Racionalidadeeirracionalidadenaeconomia,RiodeJaneiro,TempoBrasileiro,1970]),GöranTherborn(Science,Class and Society, Londres, NLB, 1976), Ernesto Laclau (Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism,Londres,NLB,1977[edbras.:Políticaeideologianateoriamarxista,SãoPaulo,PazeTerra,1978])e,maisrecentemente,G.A.Cohen(KarlMarx’sTheoryofHistory:aDefence,Princeton,PrincetonUniversityPress,1978).EdwardThompson(ThePovertyofTheoryandOtherEssays,Londres,LondonMerlinPress,1978),justificadamenteenraivecidopelocarátera-históricoenãoiluminadodegrandepartedodebate,rejeitatudocomosendoumabobagemteóricacompletaearrogante,masnoprocessoécorretamentecensuradoporPerryAnderson(ArgumentswithinEnglishMarxism,Londres,NLB,1980)porrejeitaraspepitasdeouroinseridasnoqueeleadmiteserumaboaquantidadedelixotúrgido.Marx usa o termo “modo de produção” de trêsmaneiras bem diferentes. Ele escreve o “modo de produção do algodão”, por exemplo, esignificaosmétodosetécnicasreaisusadosnaproduçãodeumtipoespecíficodevalordeuso.Pormododeproduçãocapitalista,elecomfrequência está se referindo à forma característica do processo de trabalho nas relações de classe do capitalismo (incluindo, é claro, aproduçãodemais-valor),presumindoaproduçãodemercadoriasparatroca.EstaéaprincipalmaneiraemqueMarxusaoconceitoportodooCapital.Oconceitoéumarepresentaçãoabstratadeumconjuntoderelacionamentosrazoáveleestreitamentedefinidos(verocapítulo4paraumadiscussãosobreamaneiraqueasforçasprodutivas[acapacidadedetransformaranatureza]easrelaçõessociais[declasse]secombinamdentrodoprocessodotrabalhoparadefiniromododeproduçãocaracterístico).

Page 63: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

MasMarx às vezes, particularmente em seus escritos preparatórios comoosGrundrisse, usa o conceito holisticamente e com propósitoscomparativos. O conceito então se refere a toda gama de produção, troca, distribuição e relações de consumo, assim como aos arranjosinstitucionais,jurídicoseadministrativos,organizaçãopolíticaeaparatoestatal,ideologiaeformascaracterísticasdeproduçãosocial(classe).Nessaveiapodemoscompararosmodosdeprodução“capitalista”,“feudal”,“asiático”etc.Esseconceitoabrangente,porémextremamenteabstrato,édealgumasmaneirasomaisinteressante,mastambémcriaasmaioresdificuldades.Ésobreesseusodotermoquetodoodebateinflamou.Voutratardesseterceirosentidodo“mododeprodução”comoumconceitopreliminar,cujoconteúdoaindaestáporserdescobertomediantecuidadosos estudos teóricos, históricos e comparativos.A ambiguidadeque alguns têmcorretamente detectadonopróprio usodeMarxdoconceitoatestaanaturezaexperimentaldesuasprópriasformulações,efaríamosbememsegui-lonesseaspecto.OproblemadaabordagemdeAlthusseréqueelepresumequeumateorizaçãocompletapodeseralcançadamediantealgumtipode“práticateórica”rigorosa.Emboraele gere algumas ideias importantes, o significado completo da ideia só vai se tornar aparente após um processo de investigação longo earrastadoquedevecertamenteincluirestudoshistóricosecomparativos.Mastemosdecomeçarainvestigaçãoporalgumlugar,armadoscomconceitosqueaindatêmdeseresclarecidos.Paraessefim,vouprimeiramenteapelarparaasegundaemaislimitadaconcepçãodomododeproduçãoparacaminhar,passoapasso,nadireçãodeumentendimentomaisabrangentedomododeproduçãocapitalistacomoumtodo.Euenfatizariaqueéapenasumadasmaneirascomaqualpodemosabordartodoosignificadodoconceito.A ideia de uma “formação social” serve principalmente para nos lembrar que a diversidade das práticas humanas dentro de qualquersociedade não pode ser reduzida simplesmente às práticas econômicas ditadas por seumodo de produção dominante.Althusser eBalibarsugeremduasmaneirasemquepodemospensaremumaformaçãosocial.Emprimeirolugar,devemosreconhecera“relativaautonomia”daspráticaseconômicas,políticas,ideológicaseteóricasnasociedade.Oqueéumamaneiradedizerqueháumaoportunidadeabundante,dentrode limites, para uma boa quantidade de variação cultural, instituição, política, moral e ideológica no capitalismo. Em segundo lugar, nassituações históricas reais vamos certamente encontrar váriosmodos de produção interligados ou “articulados” uns com os outros, emboranenhummodo possa ser claramente dominante. Elementos residuais demodos passados, as sementes dosmodos futuros e dos elementosimportadosdealgummodocontemporaneamenteexistentepodemsertodosencontradosdentrodeumaformaçãosocialespecífica.Devemosnotarque todasessascaracterísticassãoexplicáveisenãoacidentaisoumeramente idiossincráticas,masparaentendê-las temosdeadotarumaestruturadeanálisemuitomaiscomplexaqueaqueladitadapelaanálisedequalquermododeproduçãoespecífico(concebidonosentidoestrito).Poressarazão,aassociaçãodostermos“mododeprodução”e“formaçãosocial”émuitoútil.

[62] No terceiro livro d’O capital, Marx começa a desagregar a classe capitalista em “facções” ou “classes” separadas de capitalistamercantil, capitalistamonetário, financista e proprietário de terra, tendo por base o papel distinto que cada um desempenha em relação àcirculação do capital. Ele também considera, brevemente, as implicações da separação entre a posse e o controle, e os “salários desuperintendência”pagosaogerenciamento.Aoqueparece,eleachavaquea teoriadaestruturadeclassenomododeproduçãocapitalistaseriaumdosprodutosfinaisaserextraído,nofinaldaanálise,desuasinvestigaçõesdetalhadasdecomooperavaaleidovalor.

[63]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.244.

[64] A versão de Marx da “acumulação primitiva” na Grã-Bretanha tem sido revisada repetidamente por historiadores e não pode serconsiderada forade toda adiscussão sobre a transiçãodo feudalismoparao capitalismo.OestudodeMauriceDobb,TheStudies in theDevelopment of Capitalism (Nova York, International Publishers, 1963), sobre o desenvolvimento econômico do capitalismo muito arecomenda,easlinhasgeraisdodebatedentrodocampomarxistaestãodetalhadasemRodneyHilton(1976).OdebatequegirouemtornodoestudoclássicodeEdwardThompson,TheMakingof theEnglishWorkingClass (Harmondsworth,Penguin,1968), tambémmereceumestudocuidadoso.

[65]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.343.

[66]Ibidem,p.662.

[67]Idem,Grundrisse,cit.,p.190.

[68]A suposição da competição perfeita desempenha umpapelmuito diferente na teoria deMarx do que aquele que ela desempenha naeconomiaconvencional.Marxautilizaparamostrarcomo,mesmoquandoocapitalismoestáoperandodeumamaneiraconsideradaperfeitapeloseconomistaspolíticosburgueses,eleaindaenvolveaexploraçãodaforçadetrabalhocomofontedelucro.

[69]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.342,677.

[70]Ibidem,p.669.

[71]Ibidem,p.667.

[72]Ibidem,p.670.

[73]Ibidem,p.306.

[74]Ibidem,p.309.Aideiasegundoaqual,emumasociedadedelimitadaporclasses,comoocapitalismo,aforçaéaúnicamaneiradedecidirentredoisdireitoslevaMarxafazerdurascríticasàqueles,comoProudhon,quebuscarammoldarumasociedadesocialmentejustaapelandopara algumas concepções burguesas de justiça. Robert Tucker, The Marxian Revolutionary Idea (Nova York, Norton, 1970), tem umexcelentecapítuloarespeitodessetópico.

[75]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.370-3.

Page 64: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[76]Ibidem,p.313.

[77]Ibidem,p.394.

[78] IanSteedman,MarxafterSraffa, cit.;GeoffHodgson, “ATheoryofExploitationwithout theLaborTheoryofValue”,Science andSociety, 1980; David Levine,Economic Theory (Londres/Boston, Routledge and K. Paul, 1978); MichioMorishima,Marx’s Economics(Londres,CambridgeUniversityPress,1973);JonElster,“TheLaborTheoryofValue:aReinterpretationofMarxistEconomics”,cit.

[79]MauriceDobb,PoliticalEconomyandCapitalism(Londres,Routledge,1940[ed.bras.:Economiapolíticaecapitalismo,SãoPaulo,Graal,1978]);PaulSweezy,TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.;RonaldMeek,StudiesintheLabourTheoryofValue(Londres,LawrenceandWishart,1973).

[80]PaulSweezy,“MarxianValueTheory”,MonthlyReview,1979.

[81]SimonClarke,“TheValueofValue”,CapitalandClass,1980,p.4.

[82]MeghnadDesai,MarxianEconomics(Oxford,BasilBlackwell,1979[ed.bras.:Economiamarxista,RiodeJaneiro,Zahar,1984]).

[83]MichioMorishima,Marx’sEconomics, cit.; JohnRoemer, “AGeneral EquilibriumApproach toMarxian Economics”,Econometrica,1980.

[84]JoanRobinson,“TheLaborTheoryofValue”,MonthlyReview,1977.

[85]IsaakRubin,EssaysonMarx,TheoryofValue,cit.;RomanRosdolsky,TheMakingofMarx’sCapital,cit.

[86]GeoffPilling,“TheLawofValueinRicardoandMarx”,cit.;BenFineeLaurenceHarris,Re-ReadingCapital,cit.,cap.2.

[87]Idem.

[88]DianeElson,Value:theRepresentationofLabourinCapitalism,cit.

[89]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue(Londres,LawrenceandWishart,1969),parte1,p.46.

[90]Cf.DianeElson,Value:theRepresentationofLabourinCapitalism,cit.,p.123.

[a]Traduçãolivredaexpressão“thelivingform-givingfire”(Grundrisse),queserefereaotrabalhoeàsuanatureza–a transitoriedadedascoisas,suatemporalidadeesuaformaçãoatravésdavivênciadotempo.(N.T.)

[91]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte1,p.150,eparte3,p.134.

[92]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.155.

[93]KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence(Moscou,ProgressPublishers,1955),p.208-9.

[94]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.90.

Page 65: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

2.Produçãoedistribuição

O relacionamento entre a criação de valor por meio da produção e da distribuição dos valores nasformasdesalários,lucros,juros,rendaetc.,nuncafoifácildereconhecer.Marxcomeçouaresolverascontradiçõesecorrigiroserrosnaeconomiapolíticaclássica.Nissoeleachavaquehavia sidomuitobem-sucedido.Ajulgarpelosomepelafúriadascontrovérsiasqueenvolvemsuasinterpretações,eleoufoimuitobem-sucedidoouseiludiudiantedosucessodoseuempreendimento.

Emboraasnuancesfossemconsideráveis,Marxseviudiantededuaslinhasdeargumentaçãobásicas,ambascomsuasorigensnaapresentaçãoum tantoconfusada teoriadovalordeAdamSmith.Porumlado,Smithpareceacreditarqueovalordasmercadoriaséestabelecidopelotrabalhoequeesteregulaossalários,olucroearenda.Há,então,maisqueumasugestãodeumateoriadomais-valoremSmith,porque o lucro e a renda podem, sob essa interpretação, ser encarados como deduções do valorproduzido pelo trabalho. Por outro lado, Smith também declarou que, na “sociedade civilizada”, ossalários, o lucro e a renda eram “as três fontes originais de receita, assim como de todo valorintercambiável”.Ovalor,nessecaso,parecesurgirdareuniãodosvaloresseparadosderenda,salárioselucroquandoestesestãoincorporadosemumamercadoria.

Ricardolocalizouacontradiçãoerejeitoufirmementeasegundainterpretaçãoemfavordeumateoriado valor-trabalho.Mas então surgiu uma estranha lacuna entre a teoria do valor (estabelecida apenaspelotempodetrabalho)eateoriadadistribuição(estabelecidapelarelativaescassezdeterra,mãodeobra e capital). Isso tudo eramuito desesperador, poisRicardo achava que o “principal problemadaeconomiapolítica”eradeterminarasleisqueregulamadistribuiçãodoprodutoentreastrêsclassesnasociedade–osproprietáriosdeterra,osdonosdosestoqueseostrabalhadores.Eleatéconfessou,“emummomentodedesencorajamento”(segundoSraffa),acharque“asgrandesquestõesderenda,salárioselucros” eram totalmente separadas da doutrina de valor e que elas tinham de ser explicadas “pelaproporção em que todo o produto é dividido entre os proprietários de terra, os capitalistas e ostrabalhadores”[1]. A implicação da distribuição era o resultado de um processo social independentedaquelaproduçãodominantequefoiexplicitadaporJ.S.Mill,quetraçouumasólidadistinçãoentre“asleisdeproduçãoderiquezaquesãoasleisreaisdanatureza[…]eosmodosdesuadistribuição,que,sujeitasaalgumascondições,dependemdavontadehumana”.Consequentemente,osocialismodeMillseconcentrava em questões de distribuição e tratava os relacionamentos sociais da produção como

Page 66: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

separadoseimutáveis[2].Háváriosecosdessaseparaçãoentreaproduçãoeadistribuiçãonasrepresentaçõesneorricardianas

na atualidade. Sraffa demonstra que os valores e os preços relativos prevalecentes emum sistemadeproduçãodemercadorianãopodemserdeterminadossemsefixarataxasalarial.Comootrabalhonãoéumamercadoria reprodutível no sentido normal, a taxa salarial torna-se uma variável que tem de serdeterminadaforadas relações técnicasprevalecentesdentrodosistemadeproduçãodemercadoria.EcomoataxasalarialnosistemadeSraffasemovenosentidoinversoàtaxadelucro,éumpassocurtopara se enxergar a luta de classes como fundamental. Embora o apelo à luta de classes como odeterminantefundamentaldasparcelasdelucroesaláriosrelativassoemuitomarxiano,aconcepçãoqueSraffadesenvolveébemdiferentedaquelaapresentadaporMarx,eumdebateumtantoacrimoniososeseguiuposteriormenteentreneorricardianosemarxistas[3].

AsegundalinhadeargumentaçãoaserconsideradaadotaaconcepçãodeSmithderenda,salárioselucro como fontes simultaneamente de valor e de receita. Isso finalmente conduz à noção de que asparcelasdistributivasdarenda,dossaláriosedolucroerammerosreflexosdacontribuiçãodaterra,dotrabalhoedocapitalparaoprocessodeprodução–“éasuaformadeexistênciacomoelaaparecenasuperfície,divorciadadasconexõesocultasedevínculosdeconexãointermediários”.RaramenteMarxeramais pungente do que quando estava se opondo aos fetichismos do que ele estava acostumado achamarde“economiapolíticavulgar”.Anoçãodequeasrendaspodiamdealgummodosairdosoloeraapenasuma“ficçãosemfantasia,umareligiãodovulgar”,queapresentavaarealidadecomo“ummundoencantado pervertido e confuso, no qual o Senhor Capital e a Senhora Terra faziam sua caminhadafantasmagóricacomopersonagenssociaiseaomesmotempodiretamentecomomerascoisas”[4].

A “vulgaridade” dessa visão derivou não tanto dos errosperse como do queMarx considerou ocultivo deliberado de conceitos para propósito apologético (umamotivação que amaioria certamentejamais atribuiu a Adam Smith). Separar terra, trabalho e capital como fatores independentes esupostamente autônomos da produção tinha dupla vantagem para as classes dominantes, pois lhespermitia proclamar “anecessidade física e a eterna justificaçãode suas fontesde receita”, aomesmotempoquedissimulavaqualquernoçãode exploração,poiso atodaproduçãopodia emprincípio serretratadocomoareuniãoharmoniosadefatoresdeproduçãoseparadoseindependentes.

Nesseaspecto,aestruturaneoclássicaéquaseidênticaàeconomiapolíticavulgar,daqualMarxsequeixavatãoamargamente.Aessênciadaargumentaçãoneoclássicaéqueaconcorrênciapelosfatoresprodutivos–terra,trabalhoecapital–obrigaosempresáriosapagarumaquantidadeigualaovalorqueaunidademarginal(aúltimaempregada)decadafatorcria.Dadoumestadotecnológicoparticulareaofertarelativadefatoresdeprodução(escassez),aconcorrênciaasseguraquecadafator“obtenhaoquecria”,que“aexploraçãodeumfatornãopossaocorrer”.Esteéentãoumpassocurtoparainferirqueaspartesdistributivasderenda,salários,jurosetc.,sãoquinhõessocialmentejustos.Aimplicaçãopolíticaé que não há propósito ou apelo para a luta de classes, e que a intervenção do governo deve estarconfinada em grande parte a garantir que prevaleça a concorrência perfeita. Nos léxicos de muitosescritoresmarxistas,issosequalificacomo“economiapolíticavulgar”comumavingança[5].

Marx apresenta sua concepção geral do relacionamento entre a produção e a distribuição na“Introdução” aos Grundrisse, assim como no terceiro livro d’O capital (cap. 51). Ele criticouvigorosamente aqueles que exigiamuma concepção econômica emque “a distribuiçãohabita perto daprodução, comoumaesfera autônoma”e caracteriza como“absurdos” aqueles (como J.S.Mill) “quedesenvolvem a produção como uma verdade eterna, enquanto banem a história para o reino da

Page 67: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

distribuição”.Eleé igualmentecríticodaquelesqueestãocontentesemtratar tudo“duasvezes”,comoumagentedeproduçãoecomoumafontederenda.AconclusãogeralaqueMarxchega“nãoéqueaprodução,adistribuição,atrocaeoconsumosejamidênticos,masquetodoselessãomembrosdeumatotalidade, diferenças dentro de uma unidade”, e que os “efeitos recíprocos” entre esses diferentes“momentos” têm de ser entendidos no contexto da sociedade capitalista considerada como um “todoorgânico”.Issotudoémuitoabstrato,edevemosconsiderarmaisexplicitamenteoqueelequerdizercomisso.

Marx enfatiza que as formas de distribuição são reflexos das relações sociais da produção. Elesugere que “a maneira determinada do compartilhamento na produção determina as formas dedistribuição”, e que as relações de distribuição são “meramente a expressão de específicas relaçõeshistóricasdeprodução”[6].Dessepontodevista,adistribuiçãoaparececomosefossedeterminadaporconsideraçõesdaprodução.

MasMarxentãotiraproveitodossignificadosalternativosdadistribuição.Seupropósitoémostrarcomoasrelaçõesdeproduçãoedistribuiçãoseinterpenetrameseinterligam.Eleindicaqueambassãoprodutodomesmoprocessohistóricoquedependiadaseparaçãoentreotrabalhadoreosinstrumentosdeprodução,assimcomodaexpropriaçãodaterradosprodutoresdiretos.Elecontinua,argumentandoqueadistribuiçãonãodeve ser considerada simplesmente comoadistribuiçãodeprodutoouvalor entre asclassessociais,mastambémcomoadistribuiçãodosinstrumentosdeprodução,daterraedadistribuiçãodos indivíduos (em geral pelo nascimento) entre as várias posições de classe. Essas formas dedistribuição“imbuemasprópriascondiçõesdeprodução[…]comumaqualidadesocialespecífica”,epor issoaproduçãonãopodeserconsideradaseparadada“distribuiçãonelacontida”,poisfazer issosignificariaproduziruma“abstraçãovazia”[7].Énessesentidoqueaproduçãoeadistribuiçãodevemserpensadas como “diferenciações dentro de uma totalidade” que não podem ser entendidas sem que seconsidereorelacionamentoquecadaumtemcomooutro.

Mais uma vez,Marx rompe a camisa de força da economia política convencional para encarar aprodução e a distribuição no contexto das relações de classe. E toda a estrutura para se pensar nadistribuição fica reformulada no processo. “No estudo das relações de distribuição”, observa ele, “opontodepartidainicialéosupostofatodequeoprodutoanualérepartidoentreossalários,olucroearenda.Entretanto,seforassimexpressado,éumadeclaraçãoinexata”[8].Seconstruirmoscuidadosamentesobreosresultadosjáobtidospormeiodainvestigaçãodosvaloresdeuso,dospreços,dosvaloresedasrelaçõesdeclasse,veremosporqueesse“supostofato”énaverdadeuma“declaraçãoinexata”doproblema.

Antesde tudo, lembre-sedequeMarxdefineocapitalcomoumprocesso[9].Aexpansãodovalorocorre mediante a produção de mais-valor pelos capitalistas que empregam um tipo específico detrabalho–o trabalhoassalariado.Este,por suavez,pressupõeaexistênciadeuma relaçãodeclasseentre o capital e o trabalho. Quando submetemos essa relação a um cuidadoso escrutínio vemosimediatamentequeosalárionãopodedemodoalgumserconcebidocomouma“receita”oucomouma“parceladistributiva”nosentidocomum.Otrabalhadornãoreivindicaumapartedoprodutoemvirtudeda sua contribuição para o valor do produto. A essência da transação é algo totalmente diferente. Otrabalhador desiste dos direitos de controle sobre o processo de produção, o produto e o valorincorporadonoproduto,emtrocadovalordaforçadetrabalho.Eestaúltimanãotemdiretamentenadaavercomacontribuiçãodotrabalhoparaovalordoproduto.

Otrabalhadorrecebe,então,ovalordaforçadetrabalho,epronto.Tudoomaiséapropriadocomo

Page 68: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mais-valorpelaclassecapitalistacomoumtodo.Amaneiranaqualomais-valoréentãodivididanasdiferentesformasdelucronocapitalindustrial,narendasobreaterra,nojurosobreocapitalmonetário,no lucro sobre o capital de negociação etc., é apresentada por meio de considerações totalmentediferentes.A relação de classe entre o capital e o trabalho é de um tipo completamente diferente emcomparação com as relações sociais mantidas entre diferentes segmentos da classe capitalista(industriais,negociantes, rentistasecapitalistasmonetários,proprietáriosde terrasetc.).QuandoMarxinsistequenosconcentremosnaproduçãoparadescobrirossegredosdadistribuição,eleofazporqueéláquearelaçãofundamentalentreocapitaleotrabalhosetornamuitoclara.

Marxfrequentementesecongratulavasobresuacapacidadedeexplicaraorigemdolucropormeiodeumateoriadomais-valorquenãofaziareferênciaàscategoriasdistributivasdarendaedojuro.Masuma coisa émostrar aorigem do lucro nomais-valor – e por extensão na relação de classe entre ocapitaleotrabalho–eoutra,totalmentediferente,édeterminaragrandezadesselucroeaparecercomregrasque fixemadivisãodoprodutosocial totalemsalários, lucrosobreocapital industrial, renda,jurosetc.

Deve serditodesdeo inícioqueMarxestavamenospreocupadocomasgrandezasdoquecomoentendimento dos relacionamentos sociais. Mas ele lutou corajosamente com alguns aspectosquantitativosdadistribuição,comoadequadamenteatestam inúmerosexemplosnuméricosn’O capital.Infelizmente, comoobservou seu editorEngels, “emborapossuísseumbomdomínioda álgebra,Marxapresentava deficiências ao calcular comnúmeros”[10]. Seus vários errosmatemáticos permitiram quemuitos de seus críticos – particularmente aqueles positivistas, que são da opinião de que nadasignificativopode ser dito de uma relação social amenosquepossa ser acuradamente quantificado–encontrassemváriaslacunasnamaneiracomqueMarxlidavacomaspectospráticosequantitativosdadistribuição que, quando consideradas em conjunto, podem ser usadas para desacreditar a versão deMarxdaorigemdoprópriolucro.

Consequentemente,seguiu-seumalongaecomplexacontrovérsiaemtornodateoriadadistribuiçãodeMarx.Nãohádúvidadequeacontrovérsiaabarcaquestõesdeconsiderávelpesoe importância.Adificuldade,noentanto,émanterapreocupaçãodeMarxcomosignificadosocialeasorigenshistóricasna linha de frente de uma controvérsia que, em seus detalhes, está inevitavelmente dominada porpreocupaçõesquantitativasematemáticas.Essatarefasetornaaindamaisdifícildevidoàsofisticaçãodatécnicamatemáticarequeridaparaavaliarasvárias“provas”matemáticasapresentadasparamostrarquea teoria do valormarxiana é, ou não é, totalmente inconsistente em seu tratamento da produção e dadistribuição.

Nesse aspecto, a obradeMorishimaeCatephores[11] é interessante.Os autores salientamque, atémuitorecentemente,ateoriadovalor-trabalhofoiexclusivamenteformuladacombasesemumsistemadeequaçõessimultâneas.Usandotalabordagem,Morishimahaviaanteriormentemostradoquea teoriadovalormarxianaapresentavaumdesempenhoinsatisfatórioquandoconfrontadacomváriosproblemase,porisso,concluiuqueeladeveriaserabandonada–sugestãoestaquefoiprevisivelmenterecebidacomdesagradopormuitosmarxistas.Emsuaobramaisrecente,MorishimaeCatephoresmostramque,seateoriadovalorforformuladaemtermosdedesigualdadeslineares,amaioriadosproblemasdesaparece.Issooslevaaretirarsuapropostaanterior“deremoveroconceitodovalordaeconomiamarxiana”[12].

Aintençãoémostrarque,apesardetodooseurigor–umrigorqueopróprioMarxevidentementeadmiravaeaspirava–,amatematizaçãodateoriamarxianaéemsiumaquestãocontenciosa.Porisso,devemos tratar as provasmatemáticas pelo que elas são: rigorosas deduções tendo por base algumas

Page 69: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

suposições quepodemounãocaptar a complexidadedos relacionamentos sociais comosquaisMarxlida.

Há,noentanto,duasáreasdecontrovérsiaque,segundooscríticosdeMarx,ameaçamasprópriasfundações da teoria marxiana em geral. É interessante notar que nenhuma está preocupada com oprocessogeraldadistribuiçãodovalorsocialtotalentreasváriascategoriasdesalários,renda,juroselucro.Aprimeira tratada reduçãodo trabalhoheterogêneoparao trabalho simples–o “problemadaredução”,comoégeralmentereferido–eestápreocupadacomoimpactonateoriadovalordamaneiracom que o capital variável (oumassa salarial total) é dividido entre os vários indivíduos dentro daclassetrabalhadora.AsegundatratadamaneiraqueMarxtransformaosvaloresempreçosdeprodução–emresumo,o“problemadatransformação”.Issoestárelacionadoàmaneiracomqueomais-valorédistribuído entre os produtores capitalistas. Essas duas questões têm sido o centro das atenções deamargosdebatesque,longedeseremsuavizadosnocorrerdotempo,setornaramaindamaisacirrados.Emconsequênciadisso,portanto,tentareilidarcomessasimportantescontrovérsiasenquantoelaboroosargumentos deMarx com referência às relações entre a produção e a distribuição.De acordo comaspreocupações de Marx, vou tentar me concentrar nos significados sociais e históricos, sem negar aimportânciadeumrigorosoargumentomatemáticosemprequeforapropriado.Creioqueficaráevidentequeodesafiomarxianodasteoriaspassadasepresentesdaproduçãoedadistribuição–todasaquelasque enfrentam seus próprios problemas internos e crônicos – é poderoso. Na verdade, as tentativaselaboradas para desacreditá-lo parecem sugerir queMarx estava se aproximando de algo de grandeimportância.Oquenãoquerdizer,éclaro,queateoriamarxianaestejaisentadesériadificuldade:nesseaspecto,obombardeiodecríticasporpartedoseconomistaspolíticosburgueses,tantopassadosquantopresentes,temsidoútilparadefiniroquedeveserfeitoparatornarateoriamarxianadaproduçãoedadistribuiçãoumempreendimentomaiscoerente.

I.APARCELADECAPITALVARIÁVELNOPRODUTOSOCIALTOTAL,OVALORDAFORÇADETRABALHOEADETERMINAÇÃODATAXASALARIALOvalordoprodutosocialtotalemumdeterminadoanopodeserexpressocomoc+v+m,emquecéovalordocapitalconstante (máquinas,matérias-primas, insumosdeenergiaetc.),véovalorpagopelaforçadetrabalhoeméomais-valorproduzido.Emumabaseanual,podemostratarocapitalconstantecomo a força de trabalho despendida para substituir o valor equivalente dos meios de produçãoesgotados.Porisso,elenãoentracomoumacategoriaimportantenateoriadadistribuição.Estaúltimaestáinteressada,portanto,emexplicaramaneiraeaproporçãoemqueovalorrecém-criadoédivididoentreostrabalhadores(v)eoscapitalistas(m).Devemostambémconsiderarquevédivididoentreostrabalhadores individuaisem entreoscapitalistas individuaisouentreasvárias facçõesdaburguesia(comorenda,juro,lucrodaempresa,impostosetc.).

ParaentendertotalmenteateoriadadistribuiçãodeMarxtemosdeexplorarosrelacionamentosentrevalor, valor deuso e valor de troca, pois definemovalor da forçade trabalho, o padrãodevidadotrabalhadoreataxasalarial.IssovainosajudaraenfatizartantoacríticadeMarxdaeconomiapolíticaconvencionalquantodoprópriocapitalismo.Começamoscomorelacionamentoentreataxasalarial(umconceitodovalordetroca)eovalordaforçadetrabalho.

Page 70: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

A massa salarial total em uma economia pode ser encarada como o produto do número detrabalhadores empregados (n) eda taxa salarialmédia (s).O capital variável total tambémpode serrepresentadocomov ·n, ondev é umamagnitude chamadavalor da forçade trabalho. Podemos verimediatamentequetantoamassasalarialtotalquantoaparceladevnoprodutosocialtotalvãovariar,tudo o mais permanecendo constante, segundo os números totais empregados. Embora este seja umprincípioimportante,estamosaquimaisinteressadosnorelacionamentoentreataxasalarialeovalordaforçadetrabalho.Porqueentãodistinguirentreeles?

Oprincipal propósito deMarx aqui é expor o significado social do pagamento do salário[13]. Eledeclaraqueosistemasalarialmascaraadiferençaentreotrabalhohumanoabstratocomoasubstânciadevaloreovalordaforçadetrabalho,que,comoqualqueroutramercadoria,éfixadoporseuscustosdeprodução.Aqueles, comoSmitheRicardo,que falharamemfazeressadistinção tipicamentecaemem“confusãoecontradiçãocomplexas”,enquantoseusirmãosmais“vulgares”poderiamencontraraquiuma“base segura” para ocultar a verdadeira origem do lucro na exploração do trabalhador. “A forma-salário”,declaraMarx,extingue“todovestígiodadivisãodajornadadetrabalhoemtrabalhonecessárioemais-trabalho”,porquanto“todotrabalhoaparececomotrabalhopago”.Esobreisso“repousamtodasas noções jurídicas, tanto do trabalhador como do capitalista, todas as mistificações do modo deprodução capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas da economiavulgar”[14].Declaramosqueovaloréumconceitoquesedestinaarefletirorelacionamentodeclasseentreocapitaleotrabalho.Oconceitodovalordaforçadetrabalhoserveprincipalmenteparamanteraideiadaexploraçãonalinhadefrentedaanálise.

MasoqueexatamenteMarxquerdizercomovalordaforçadetrabalho?Eledeclaraqueessevaloré determinado pelo valor das mercadorias necessárias para manter e reproduzir os indivíduos quetrabalhamemseu“estadonormal”.Opacotedemercadoriasespecíficasrequeridasparafazerissovaivariar segundo a ocupação (odispêndiode energia aumentado requermais alimentos, por exemplo) esegundo“ascondiçõesclimáticaseoutrascondiçõesfísicas”.Incluitambémoscustosdecriarosfilhose, considerando que as habilidades especiais requerem tempo e esforço para adquirir emanter, estastambémafetamocustodareproduçãodaforçadetrabalho.Mas,em“contrapartidaparaocasodeoutrasmercadorias”, ali entra na determinação do valor da força de trabalho “um produto histórico”, quedepende“emgrandemedidadograudeculturadeumpaís,mastambémdepende,entreoutrosfatores,desobquaiscondiçõese,porconseguinte,comquaiscostumeseexigênciasdevidaseformouaclassedostrabalhadoreslivresnumdeterminadolocal”[15].

Essa declaração requer alguma elaboração, particularmente porque a última sentença foi tema dealgumas discussões contenciosas. Lembre-se, antes de tudo, de que os trabalhadores ganham comdificuldade suas existências separadas por meio de uma forma de circulação do tipo M-D-M. Elesnegociam o valor de uso da únicamercadoria que possuem em troca de um saláriomonetário. Entãoconvertemessedinheiroemmercadoriassuficientesparareproduzirsuaprópriaexistência.Oconceito“valordaforçadetrabalho”estárelacionadoàtotalidadedesseprocessodecirculaçãoemqueaclassedostrabalhadoreséreproduzida.

Podemos,noentanto,consideraroqueestáenvolvidoemcadaelonessefluxogeraldareproduçãosocial.Anegociaçãosobreosaláriomonetárionominaleascondiçõesdocontrato(aduraçãodajornadade trabalho, a taxa de remuneração do trabalho, a velocidade e a intensidade do trabalho etc.) seconcentranoprimeiroelo.OprincipalinteressedeMarx,éclaro,équeasdiscussõessobreocontratodetrabalhoqueocorremnomercadonãoviolemaregradequetodasasmercadoriasdevemsertrocadas

Page 71: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

dentrodoseuvalor,porqueovalordeusodaforçadetrabalhoparaocapitalistaéprecisamenteasuacapacidadeparaproduzirmais-valor.Alémdisso,ainfinitavariedadedeformasqueabarganhasalarialpode assumir (salários horários, trabalho por empreitada, taxas diárias etc.) efetivamente oculta arelaçãodeexploraçãodeclassenaprodução,colocandotodaaênfasenosváriosmodosdeintercâmbiono mercado. Além disso, a taxa salarial individual pode ocultar muito sobre os custos sociais dareprodução.Se,comofrequentementeacontece,aforçadetrabalhodetodaumafamíliaésubstituídaporaquela do trabalhador individual, então a quantidade de força de trabalho suprida pode aumentardramaticamente,ataxasalarialindividualpodecair,enquantooscustosdareprodução(medidascomoopacote demercadorias necessárias para garantir a reproduçãoda família) podemainda ser totalmentesatisfeitos[16].

Evidentemente, as discussões sobre o contrato de trabalho em um mercado supostamente “livre”podem produzir uma infinita variedade de resultados com respeito às taxas salariais individuais, àsestruturassalariaiseàscondiçõesdocontrato.MasMarxsegueoseconomistaspolíticosclássicosaoobservarqueossaláriostendemapairaremtornodealgumtipodemédiasocialqueeleschamavamde“preço natural”.O problema é então explicar como chegar a esse preço natural.A economia políticaclássicasurgiucomváriasrespostasparatalquestão.Marxseconcentranossaláriosreais,emoposiçãoaossaláriosnominais.Issodirigeanossaatençãoparaopróximopassonoprocesso,aconversãodossaláriosemmercadorias.

Como proprietários do dinheiro, os trabalhadores são livres para comprar como lhes aprouver, edevemser tratadoscomoconsumidorescomgostosepreferênciasautônomos.Nãodevemosminimizarisso[17].Frequentementesurgemsituaçõesemqueostrabalhadorespodemescolhereexercemescolha,ecomoo fazem tem importantes implicações.Mesmo se, como emgeral acontece, forem restringidos acomprar apenas aquelas mercadorias que os capitalistas estão preparados para vender, aos preçosditadospeloscapitalistas,ailusãodeliberdadedeescolhanomercadodesempenhaumpapelideológicomuito importante.Tudo issoproporcionasolofértilparaas teoriasdesoberaniadoconsumidor,assimcomopara aquela interpretaçãoparticular dapobrezaque responsabilizadireta e cabalmente a vítimapelo fracasso de fazer um orçamento para sobreviver adequadamente. Há, além disso, abundantesoportunidades aqui para várias formas secundárias de exploração (proprietários de terra, negociantesvarejistas, instituições de poupança), que podem mais uma vez desviar a atenção daquilo que Marxconsideravacomoaprincipalformadeexploraçãonaprodução.

Noentanto,devemosiralémdessasaparênciassuperficiaisetentardescobrirosignificadoessencialdovalordaforçadetrabalhocomoumprocessodereproduçãosocialdotrabalhador.Evidentemente,ostrabalhadoresnecessitamdevaloresdeusoparasobreviver.Namedidaemqueessesvaloresdeusosãoproporcionadosnaformademercadoria,ostrabalhadoresprecisamdeumsaláriosuficienteparapagaropreçodemercado.Ovalordaforçadetrabalhopodenessepontoserinterpretadoemrelaçãoaosalárioreal – a interseção daquele pacote particular de valores de uso necessário para a sobrevivência dotrabalhadoredovalordetrocadasmercadoriasinseridasnessepacote.

Considereaquestão,emprimeirolugar,dopontodevistadosvaloresdeuso.Nemtodososvaloresdeusosãoproporcionadoscomomercadorias.Muitossãomoldadosdentroda família.Namedidaemqueostrabalhadoressatisfazemsuasprópriasnecessidades,elesganhamcertaautonomiadocapital(vercapítulo6).Vamossupor,porenquanto,queostrabalhadorestenhamdeadquirirtodososvaloresdeusobásicosquenecessitamcomomercadorias.Temosentãodedefiniressepacoteparticulardevaloresdeuso que satisfazem as necessidades dos trabalhadores. Não podemos fazer isso sem a devida

Page 72: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

consideraçãodos“elementoshistóricosemorais”queentramnopadrãodevidadotrabalho.Marxnãoémuitoútilaqui.Elesimplesmenteseabstraide todaaquestãoafirmandoque“aquantidademédiadosmeios de subsistência necessários ao trabalhador numdeterminado país e numdeterminado período éalgodado”[18].Parapropósitosdeanálisepodemosconsideraropadrãodevidadotrabalhador,definidoemtermosdovalordeuso,constante.EssedispositivopermiteaMarxgerarum insight teóricomuitoimportante.Seovalorde trocadaquelepacote fixodevaloresdeusodiminui (comocertamentedeveocorrer,dadaaprodutividadeaumentadado trabalho), entãoovalorda forçade trabalhopodebaixarsemnenhumefeitoprejudicialsobreopadrãodevidadotrabalhador.Eisso,éclaro,éumaimportantefontedemais-valorrelativoparaocapitalista;maumentaporquevdiminui.

Munidosdesseachado,podemosevocartodosostiposdecombinaçõespossíveis.Aparceladevnoprodutosocialtotalpodecair(implicandoumaelevaçãonataxatotaldeexploração),aomesmotempoque o padrão de vida do trabalhador melhora, ou uma taxa declinante de exploração pode estaracompanhadaporumaquedanopadrãodevida.

MasMarx definitivamente não pretendia sugerir que o padrão de vida do trabalho permanecesseconstante.Esteevidentementevariavamuitosegundoascircunstânciashistóricas,geográficase“morais”,eeleenfatizoubastante“opapelimportantequeatradiçãohistóricaeohábitosocialdesempenhamnesseaspecto”[19].Eletambémencaravaasnecessidadesmaiscomorelativasdoquecomoabsolutas:

Ocrescimentorápidodocapitalprodutivotrazàtonacomamesmarapidezumaumentodariqueza,doluxo,dasnecessidadessociaisedosprazeressociais.Porisso,emboraosprazeresdotrabalhadortenhamaumentado,agratificaçãosocialqueelessepermitemcaiuemcomparaçãocomosprazeresaumentadosdocapitalista […].Nossosdesejoseprazeres têmsuaorigemnasociedade;por issonósosavaliamosemrelaçãoàsociedade;nãoosavaliamosemrelaçãoaosobjetosqueservemparasuagratificação.Pelofatodeelesseremdeumanaturezasocial,sãodeumanaturezarelativa.[20]

SegundoMarx,asnecessidadessãoproduzidasporumprocessohistóricoespecífico[21].Namedidaemqueaevoluçãodocapitalismoébaseadanaproduçãodeum“sistemadenecessidadesconstantementeampliadoemais rico”[22],devemospreveroseternosdeslocamentosnodado formadopelopadrãodevida“normal”dotrabalho.ComoamaioriadosprincipaisconceitosdeMarx,aqueledovalordaforçadotrabalhosórevelaseussegredosnofimdaanálise,nãonoinício.Estamosagoraemumaposiçãodenomínimo apreciar a direção pela qual ela foi conduzida.O valor da força de trabalho só pode serentendido em relação às modalidades concretas da reprodução da classe trabalhadora nas condiçõeshistóricasespecíficasimpostaspelocapitalismo.

Masessaformulaçãograndiosaseaproximadesequalificarcomoalgoquepodesignificartudoe,portanto,nada:ouseja,atéatrazermosdevoltaàterra,considerandoosprocessoshistóricosemqueopadrãodevida,ovalordaforçadetrabalhoeaparceladecapitalvariávelnoprodutosocialtotalsãorealmente regulados.Os economistas políticos clássicos ofereceram várias hipóteses sobre o assunto,queMarxourejeitaoureformulacomopartedesuaprópriaedistintateoriadadistribuição.Vamosemseguidaconsiderarasquatroprincipaishipóteses.

1.Osaláriodesubsistência

Marxé àsvezesdescrito comoum teóricodo saláriode subsistência[23].Nadapoderia estarmaislongedaverdade.Eleseopôsvigorosamenteàdoutrinadasuposta“leideferro”dossaláriosdeLasallee,comojávimos,negouqueossaláriosestivesseminexoravelmentevinculadosàsexigênciasdemera

Page 73: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

reproduçãofisiológicadotrabalhador.Ocapital,comoumprocesso,émuitomaisflexíveleadaptáveldoqueisso.

Aconcepção equivocadapode ser emparte baseadanavisãodeMarxdequeovalormínimo daforçade trabalhoédeterminadopelasmercadorias“fisicamente indispensáveis”paraa renovaçãodasenergiasvitaisdotrabalhador[24].Eelecertamenteenxergava,dentrodocapitalismo,tendênciasemaçãoque baixariam os salários a esse mínimo fisiológico, inclusive abaixo dele, ameaçando assim até areprodução física da força de trabalho. Entretanto, havia também tendências mitigadoras queempurrariam a taxa salarial para a outra direção. A concepção equivocada poderia também ter suasraízes no hábito de Marx, em grande parte do influente primeiro livro d’O capital, de supor que otrabalhoemgeralnegociaemseuvalorequeopadrãodevidaé,naverdade,constanteemtermosdosvalores de uso requeridos para a reprodução social. Pormeio dessas suposições ele pôde derivar ateoriadomais-valorrelativo.Noprocessoelecomfrequênciausaalinguagemde“subsistência”,“custosmínimos de reprodução”, “necessidades básicas” etc., sem relacionar firmemente essas concepções àideiados“elementoshistóricosemorais”envolvidosnadeterminaçãodovalordaforçadetrabalho.

HáemtudoissooriscodeconsiderávelconfusãoemrelaçãoàverdadeiranaturezadoargumentodeMarx.Pois,alémdomínimofisiológico(queeternamenteespreitaaofundo),parecehaverconcepçõesum pouco variadas do que fixa o valor da força de trabalho e do que constitui “subsistência”.ComoexplicacorretamenteRowthorn,

Marxdefineovalordaforçadetrabalhodetrêsmaneirasdiferentes,baseando-sesucessivamenteem:(1)ocustodaproduçãodaforçade trabalho sob determinadas condições históricas, (2) o padrão de vida tradicional a que os trabalhadores estão acostumados e (3) opadrãodevidaqueprevalecenosmodosouformasdeproduçãonãocapitalistas.[25]

(Aúltimaéimportanteporquefixao“saláriomínimorequeridoparainduziraspessoasabuscaremtrabalhooupermaneceremtrabalhandonosetorcapitalista”.)Essasdefiniçõesnãosãoconceitualmenteequivalentes,masRowthornprosseguedefendendooquemepareceseropontovital.Eledizqueháum“fiocomum”percorrendotodasasváriasdefinições:seomínimo(aindaquedefinido)nãoforsatisfeito,então

háconsequênciasmuitosérias:ouosuprimentodeforçadetrabalhodeboaqualidadediminui,poisos trabalhadoresnãoconseguemsemanterousereproduziradequadamente,ouabandonatotalmenteosetorcapitalista;ou,ainda,háumconflitoeumrompimentoquandoostrabalhadoreslutampeloqueconsideramsuajustarecompensa.[26]

Ofiounificadorpassaaserofiocolocadoparaaacumulaçãoadicionaldecapital.Vamosabordaressaideianaseção“Oprocessodeacumulaçãoeovalordaforçadetrabalho”(I.4).

2.Ofertaedemandaparaaforçadetrabalho

Aideiadequea taxasalarialvariaemrespostaàscondiçõesdeofertaedemandanãoédemodoalgumdifícildeaceitar.MasMarxrejeitafirmementeoargumentodequeaofertaeademandaditamopreçonaturaldaforçade trabalho,quediráoseuvalorouopadrãodevidado trabalho.Aofertaeademanda são fundamentais para o equilíbrio domercado,mas em equilíbrio elas “cessam tambémdeexplicar qualquer coisa” – até mesmo o preço natural da força de trabalho deve ser determinado“independentementedarelaçãoentreprocuraeoferta”[27].

Devemos ser cuidadosospara interpretar corretamente a ideia deMarx.Ele nuncadeclarouqueo

Page 74: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

processodetrocaerairrelevanteparaadeterminaçãodevalores.Naverdade,eleédafirmeopiniãodequeosvaloresemgeraleovalordaforçadetrabalhoemparticularsósurgemquandoesseintercâmbioflorescenomercado.Asforçasquedeterminamovalordaforçadetrabalhodevem,nofim,serexpressaspormeiodesseprocessodomercado.OqueMarxobjetaéaidentificaçãoequivocadadosmecanismosde demanda e oferta, pois estes são claramente visíveis no mercado com as forças subjacentes queoperammediante o mercado. Marx aqui acompanha Ricardo, perguntando, em primeiro lugar, o quedetermina a oferta e a demandanosmercados de trabalho.Equandonos aprofundamosnessa questãodescobrimosqueaacumulaçãodecapitaltemcertopoderemrelaçãoaambas.Vejamoscomoissopodeacontecer.

As variáveis demográficas desempenham um papel muito importante no lado da oferta. Ricardoaceitoua leidapopulaçãodeMalthuscomoomeiopeloqualaofertade trabalhadores seajustariaàacumulação por intermédio do aumento das taxas salariais. Marx não nega a existência dessemecanismo[28]. Mas, supostamente por repulsa a qualquer coisa que mesmo remotamente evocasse omalthusianismo, ele menospreza a ideia (ver capítulo 6). Ele se concentra, então, nos processos deacumulaçãoprimitiva(proletarizaçãoforçada),namobilizaçãodesetoreslatentesdoexércitoindustrialdereserva(mulheresecrianças),namigração(daárearuralparaaurbanaoudeformaçõessociaispré-capitalistas como a Irlanda) e na produção de populações excedentes relativas por mecanismosespecíficosdocapitalismo.Aaçãodiretaporpartedocapitalouaação realizadaemproldocapitalatravésdaaçãodoEstado(cercamentosetc.) torna-seoprincipalobjetodasuaanálisedasforçasqueregulamaofertadeforçadetrabalho.Eemboraelefaçaisso,podemosfacilmenteverqueaspolíticasdepopulação e imigração implementadas pelo Estado capitalista se adequariam a essa perspectiva domanejogeraldaofertadeforçadetrabalhoporpartedocapital.

Doladodademanda,ocapitalécapazdeajustarsuasexigências–certamente,nãosemestresseedificuldade – pormeio da reorganização, da reestruturação e damudança tecnológica.Além disso, amobilidadedocapitalmonetárionocenáriomundialproporcionaaocapitalacapacidadedeseadaptaradiferentessituaçõesdemográficas,assimcomoàsváriascircunstâncias“históricasemorais”que,pelomenosdeinício,podemafetardiferencialmenteovalordaforçadetrabalhoderegiãopararegiãoedepaísparapaís.Namedidaemqueaacumulaçãodocapitalenvolveodeslocamentoeternodocapitaldeumalinhadeproduçãoparaoutra,deumlocalparaoutro,semfalardatendênciaeternaparareestruturaraorganizaçãosocialetécnicadaprodução,tambémademandaporforçadetrabalhoéexpressivadasexigênciasdaacumulação.

Mais uma vez, voltamos à ideia de que as exigências gerais da acumulação do capital têm acapacidadedeexerceruma influênciacontroladorahegemônicacomrelação tantoàdemandaquantoàofertadeforçadetrabalho.“Ocapitalagesobreosdoisladosaomesmotempo”[29].Éaí,acreditoeu,queMarx quer se posicionar com respeito às forças subjacentes que determinam o valor da força detrabalho.Noentanto,nãoquerdizerquetodasasforçasqueoperamnomercadotenhamestaqualidade.Aescassez pode surgir por razões que estão totalmente fora da influência do capital.Mas encontramosMarx afirmando nessas circunstâncias que os salários podem estar “acima do valor” e podem assimpermanecer por extensos períodos de tempo[30]. Dessa maneira, Marx indica, na verdade, que querdistinguirentreforçascontingentes,quepodemempurraras taxassalariaisparacáepara lá,e forçassocialmente necessárias, que atacam a acumulação do capital em geral e ditam o valor da força detrabalho.Nessepontoeleéinteiramenteconsistentecomsuaestratégiageral:enxergarovalorcomoumaexpressão de necessidade social nas relações de classe do capitalismo e afirmar que os valores

Page 75: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

(incluindoaqueledaforçadetrabalho)setornamosreguladoresdavidaeconômicaapenasnamedidaemqueomododeproduçãocapitalistasetornahegemônicodentrodeumaformaçãosocial.

3.Lutadeclassescomrelaçãoàtaxasalarial

Aideiadequeaspartesrelativasdevemnoprodutosocial total(eporimplicaçãov,ovalordaforçadetrabalho)sãofixadaspelalutadeclasses,pelarelaçãodepoderentreocapitaleamãodeobraorganizada,parecemuitomarxiana.Elatemsidocolocadaemusonosúltimostemposnaformadeumahipótese de “redução damargem de lucro” da crise capitalista.A discussão seguemais oumenos daseguintemaneira.Uma lutabem-sucedidaporpartedo trabalho (porqueo trabalhoouestá escassoouestámaisbemorganizado)elevaastaxassalariaisediminuioslucros.Aresultante“reduçãodamargemdelucro”retardaaacumulaçãoefinalmenteconduzàestagnação.Areaçãodocapitalécriar(querporprojetoconscienteouporquenãoháescolha)umaseverarecessão(comoaquelade1973-1974),quetemo efeito de disciplinar o trabalho, reduzindo os salários reais e restabelecendo as condições para arestauração dos lucros e, portanto, da acumulação.Muitosmarxistas têm atacado vigorosamente esseesquema,comfrequênciaoapelidandodepuroneorricardianismo[31].

Asquestõesaqui levantadas sãodegrande importância.Temosdeconsideraremparticularograuqueacambianterelaçãodepoderentreocapitaleotrabalhopodealterarsubstancialmenteasparcelasrelativasdasduaspartesnoprodutototaleograuemqueaslutasdiáriassobreossaláriosnominaisereais,assimcomosobreopadrãodevidado trabalho(concebidoemtermosdovalordeuso),podemafetarsubstancialmenteovalordaforçadetrabalho.

Marxadmiteprontamentequeasmagnitudescambiantesdossaláriosedolucrolimitamumaàoutra,equeoequilíbrioentreelas

sóédeterminadopelalutacontínuaentreocapitaleotrabalho,ocapitalistaconstantementetendendoareduzirossaláriosaoseumínimofísicoeaestendera jornadade trabalhoaoseumáximo físico,enquantoo trabalhadorconstantementepressionanadireçãooposta.Oassuntoseresolveemumaquestãodosrespectivospoderesdoscombatentes.[32]

MasMarxtambémdeclaraqueumaascensãonosaláriorealsósignificaumaquedanataxadelucronasuposiçãodenãoocorreremmudançasnasforçasprodutivasdotrabalho,expansãonasquantidadesdecapitaledeforçadetrabalhoempregadas,eexpansãodaprodução.Docontrário,dependendodataxaedas condições de acumulação, as taxas reais de salários e lucro podem subir ou descer juntas ou semoverinversamente[33].Osaláriorealpodesubir,declaraMarx,contantoqueasubidanãoperturbe“oprogressodaacumulação”[34].Aquestãoé,portanto:seráqueopoderorganizadodaclassetrabalhadorapodeimpedirqueosaláriorealaumente,mesmoqueissoameaceaacumulação?

Falhandoa transiçãoparao socialismo,Marxnega talpossibilidadecomoumapropostade longoprazo.Suarazãonãoédifícildecomprovar.Afinal,aslutassobreadistribuiçãotêmlugarnomercado.ParaMarx,aprincipal relaçãoestánaprodução–éaíqueomais-valor temsuaorigem.Interpretarapartedo trabalhonoprodutosocial totalcomoo resultadodeumamera relaçãodepodernomercadoentreocapitaleotrabalhoéumaabstraçãoinadmissível.EassimMarxreduzalutadeclassessobreaspartesdistribucionaisaostatusdeumdispositivodeequilíbrio,maisparecidocomaofertaeademanda.Nodecorrerdocicloindustrial,porexemplo,opoderaumentadodotrabalhoduranteaexpansãodeveempurrarossaláriosacimadovalor,aindaqueapenasparacompensaraquedadossaláriosabaixodovalor durante a depressão subsequente. As relações de poder cambiantes podem gerar flutuações

Page 76: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

salariais em torno do preço natural que reflete o valor subjacente da força de trabalho. E se, comoresultadodaforteorganizaçãotrabalhista,ossaláriospermanecemacimadovalorporqualquerperíodoestendido, issoocorreporquenão interferecomaacumulação.Assim,Marxadverteexplicitamenteostrabalhadores“paraelesprópriosnãoexageraremnaoperaçãofundamentaldessaslutasdiárias”e“nãoficaremexclusivamenteabsorvidosnessasinevitáveislutasdeguerrilhaqueincessantementesurgemdasinvasões intermináveis do capital ou demudanças nomercado”. Em vez do “lema conservador, ‘Umsaláriodiário justoparaumtrabalhodiário justo! ’,elesdeveminscrevernasuabandeiraosloganrevolucionário,‘Pelaaboliçãodosistemasalarial!’”[35].

Alutadeclassesdesempenhaaquiumpapelambivalente.Porumlado,ajudaapreservaralgumsensodedignidadeea repeliras formasmaisgrosseirasdeviolênciaqueoscapitalistasestãohabituadosaaplicarnaquelesqueelesempregam.Issotambémformaabaseparaaslutassobreadefiniçãodopacotede valores de uso que compõem a vida padrão do trabalhador (atenção à saúde versus consumoobrigatório de proteção militar, por exemplo). Concentrando-se no reino dos valores de uso e dasnecessidadeshumanas,essaslutaspodemconstituirabasedeummovimentorealmenterevolucionário,que tem como objetivo a abolição de um sistema fundamentado na irracionalidade fundamental daacumulaçãopelaacumulação.Mas,naopiniãodeMarx,alutadentrodosconfinsdocapitalismosobreosaláriorealserveapenasparagarantirqueaforçadetrabalhonegociedentrodoseuvaloroupróximoaele.Essevalorpodeseratingidomedianteumprocessodelutadeclasses,masissodemaneiraalgumasignificaqueelesimplesmenterefleteospoderesrelativosdocapitaledotrabalhonomercado.

É interessantenotarqueahipóteseda“reduçãodamargemde lucro”,adequadamente interpretada,maisquecontradizessaconclusão.Oequilíbriodepodercambianteentreocapitaleotrabalhopodenaverdadealterardetalmaneiraosaláriorealqueconseguerestringirouaumentara taxadelucro.Essetipodecoisaéexatamenteoqueesperaríamosqueacontecessedentrodoreinodatroca.É,contudo,umadescrição de ummovimento superficial, e deixa o próprio valor da força de trabalho intocado.Se ossalários reais saírem da linha com a acumulação, então as forças compensadoras serão postas emmovimento,oqueaspressionaráparabaixoe, senecessário,diminuirãoopoder relativodo trabalhoorganizado no mercado (seja mediante o aumento do desemprego ou mediante restrições políticas eoutras ao poder da força de trabalho organizada)[36]. Como uma descrição desses movimentossuperficiais, a hipótese de “redução da margem de lucro” é inteiramente plausível, até mesmoincensurável.Mas,comosustentamseuscríticos,estaéumaconcepçãointeiramenteinadequadadasleisgeraisdomovimentodocapitalismo,ecertamenteumarendiçãoinadmissíveldateoriadaformaçãodecrise deMarx. A luta de classes desse tipo tem pouco ou nada a ver com a determinação do valorsubjacentedaforçadetrabalho,emboratenhaumpapelvitaladesempenhar,comoademandaeaoferta,noequilíbriodomercado.

4.Oprocessodeacumulaçãoeovalordaforçadetrabalho

Marxrejeitaabertamentetodasasformulaçõesqueimutavelmentefixamovalordaforçadetrabalho(comoosaláriodesubsistência fisiológica)ouaparceladocapitalvariávelnoproduto total (comoachamadateoriado“fundodedesemprego”)baseadonofatodeque“ocapitalnãoéumagrandezafixa,mas uma parte elástica da riqueza social, parte esta que flutua constantemente”, e de que a força detrabalhoconstituiumadas“potênciaselásticasdocapital”,quedomesmomododeveserconstruídoparaestar em constante fluxo[37]. Ele também declara que tanto a luta de classes sobre as partes

Page 77: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

distribucionais quanto a demanda e a oferta desempenham papéis vitais no equilíbrio do mercado epodemobrigarossaláriosreaisasesepararemdosvalores,àsvezesporperíodosestendidos.Mas,naanálise final, elesoperamcomomediadoresdomercadoapenasparaas forçasmais fundamentaisquedeterminamovalordaforçadetrabalho.Então,quaissãoessas“forçasmaisfundamentais”?

ArespostageraldeMarxparaessaquestãonãoédifícildelocalizar.Umadistribuiçãoinicialdosmeios de produção “determinada pela produção” separa o capital do trabalho,mas daí em diante asrelaçõesdedistribuiçãotêmdeserencaradascomo“meramenteaexpressãodasrelaçõesdeproduçãohistóricasespecíficas”.Alémdisso,aproduçãoeadistribuição“constituemmembrosdeumatotalidade,diferençasdentrodeumaunidade,quetambémincluematrocaeoconsumo”(veranteriormenteasp.91-2).Ovalor da força de trabalho não pode ser fixadona abstração das relações internas dentro dessatotalidade–umatotalidadeque,alémdisso,édominadapelaimperativaacumulaçãopelaacumulação.Observamos anteriormente (p. 44) que Marx desenvolve seus conceitos relacionalmente. Agoraencontramosumexemploespecíficodessaestratégiaemação.Comosempre,oproblemaé tornaressaconcepçãoextremamenteabstratamaisacessívelàinterpretaçãoconcreta.

Aindanãoestamosemumaposiçãodedeslindartodooargumento.Masaconcepçãogeralémaisoumenosessa.Háumadistribuiçãodeequilíbrioentreocapitalvariáveleomais-valordeterminadoemrelaçãoàtaxadeacumulaçãoeàestruturageraldaproduçãoedoconsumo[38].Hátambémumcaminhoparaodesenvolvimentodoequilíbrioparaoempregototalque,quandodivididoemv,produzumvalorde equilíbrio das forças de trabalho individuais. Se há uma elevação geral no padrão de vida dotrabalhador (medida nos valores de uso controlados), e se estes se tornam uma parte do “produtohistórico”abrangidonovalordaforçadetrabalho,éporqueaacumulaçãodocapitalrequeraproduçãode novas necessidades, ou porque as leis da acumulação são indiferentes com respeito às formasespecíficasdovalordeusoproduzido.Ovalordaforçadetrabalhotemdeserconstruídocomoumpontode referência regulado pelo processo de acumulação. Ele pode ser definido, em suma, como aremuneraçãosocialmentenecessáriadaforçadetrabalho;socialmentenecessária,ouseja,dopontodevista da acumulação continuada do capital. A invocação da necessidade social é importante. Ela nospermite distinguir entre o conceito de equilíbrio do valor da força de trabalho e as inúmerascircunstâncias acidentais e contingentes que podempressionar para cima ou para baixo esse valor deequilíbrio.

Deveserenfatizadoqueessaconclusãoseaplicasomenteàquelaconcepçãomuitoestreitadopadrãode vida que se baseia na quantidade de valores de uso materiais que o trabalhador pode controlarmediante a troca de mercadorias. Isso não dita que pacote específico de valores de uso seráproporcionado(gastoscomsaúdeouemdanceterias),nemlidacomaquelesaspectosdavidaedaculturadentrodaclassetrabalhadoraqueestãoforadaesferadatrocademercadorias.Nessesdoisaspectos,aclassetrabalhadorapodeexercercertaeconomiae,pormeiodesuasprópriaslutasedesuasprópriasescolhas,podeproduzirgrandepartedasuaprópriaculturaegrandepartedasuaprópriahistória.Ofatode ela estar em uma posição de fazê-lo deve ser atribuído precisamente ao fato de quemolda a suaexistênciaemumatrocadequalidadesatravésdeumaformadecirculaçãodefinidaporM-D-M[39].

Éclaroqueaimportânciadessatrocaparaocapitaléinteiramentediferente.Comela,ocapitalistaprocuraganharmais-valor.Àprimeiravistapareceque,quantomenosparao trabalhador,maisparaocapital.Masquandoobservamosoprocessodeacumulaçãocomoumtodovemos,emprimeirolugar,que“amanutençãoereproduçãoconstantesdaclassetrabalhadoracontinuamaserumacondiçãoconstantepara a reprodução do capital”[40]. O próprio capital deve limitar sua própria “sede ilimitada de

Page 78: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

riquezas”, namedida em que esta destrói a capacidade de reproduzir força de trabalho de uma dadaqualidade.Mas também observamos que os capitalistas pagam salários, que recebem de volta comopagamentopelasmercadoriasqueproduzem.Adistribuiçãoaquifuncionacomoumeloquemedeiaentreaproduçãoeoconsumoou,comoprefereMarx,entreacriaçãodevalornaproduçãoearealizaçãodevalornatroca.Ocapitalistadeve,afinal,produzirvaloresdeusosociais–mercadoriasquealguémpodesepermitir terequealguémqueiraounecessite.Oscapitalistas individuaisnãopodemrazoavelmenteesperardiminuirossaláriosdeseusprópriosempregadoseaomesmotempopreservarummercadoemexpansãoparaasmercadoriasqueproduzem.

Tudoissonosconduzalémdoslimitesestreitosdadistribuiçãoperse,maséexatamenteaondeMarxquernoslevar.Elequerquevejamosqueovalordaforçadetrabalhoeaparceladetrabalhonovalorrecém-criadonãopodemserentendidosforadoprocessogeraldaproduçãoedoentendimentodomais-valor.Vamosabordaroestudodesseprocessonocapítulo3.

II.AREDUÇÃODOTRABALHOESPECIALIZADOAOTRABALHOSIMPLESOcapitalvariáveltotalnãoédivididoigualmenteentreostrabalhadoresindividuais.Amaneiraqueeleédivididodependedeumaamplavariedadedefatores–graudehabilidade,extensãodaforçasindical,estruturas costumeiras de remuneração, idade e tempo de serviço, produtividade individual, escassezrelativa nos mercados de trabalho específicos (setoriais ou geográficos) etc. Em suma, somosconfrontadoscomforçasdetrabalhoheterogêneasquesãodiferencialmenterecompensadas.

Issoconstituiumduploproblemaparaateoriamarxiana.Emprimeirolugar,osprópriosdiferenciaissalariais requeremexplicação.Emsegundo lugar, e esta é aquestãonaqualnos concentraremosmaisaqui, a heterogeneidade da força de trabalho tem sido encarada por alguns críticos burgueses comoocalcanhardeaquilesdateoriadovalordeMarx.Vamosverporquê.

Marxexplicouosvaloresdetrocadasmercadoriascomreferênciaaotempodetrabalhosocialmentenecessário nelas incorporados (na próxima seção veremos como essa concepção deve ser tambémmodificada). Para isso ele tinha de construir um padrão de valor que consiste em trabalho abstratosimples e que presumia haver algumamaneira satisfatória de reduzir a heterogeneidademanifesta dotrabalhohumanoconcreto,comtodaasuadiversidadeemrelaçãoàhabilidadeecoisassemelhantes,aunidades de trabalho abstrato simples. O próprio tratamento de Marx do problema é ambivalente eenigmático. Ele simplesmente declara que “a experiência mostra” que “essa redução ocorreconstantemente”porum“processosocialqueocorrepelascostasdosprodutores”[41].Emumanotaderodapéeleesclareceque“nãose trataaquidaremuneraçãooudovalorqueo trabalhadorrecebepor,digamos,umajornadadetrabalho,massimdovalordasmercadoriasnasquaissuajornadaseobjetiva”.Tudoissoétotalmenteconsistentecomadistinçãoentreovalordaforçadetrabalhoeotrabalhosocialcomo a essência de valor. O processo em que as habilidades heterogêneas são reduzidas a simplestrabalhodeveserindependentedosprocessosdedeterminaçãodataxasalarialnomercado.

Marxnãosedáaotrabalhodeexplicaroqueelequerdizercomum“processosocialqueocorreportrásdosprodutores”.Oapeloà“experiência”sugerequeeleaachavaabsolutamenteóbvia.Paraele,elapode tersido,mascertamentenãoofoiparaseuscríticos.Se,comoinsisteBöhm-Bawerk[42],oúnicoprocesso social que consegue realizar o trabalho é a trocadosprodutos daquela forçade trabalhono

Page 79: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mercado,então“temosacircunstânciamuitocomprometedoradequeopadrãodareduçãoédeterminadopelas relações de troca reais” quando as relações de troca supostamente devem ser explicadas nostermos do trabalho social que incorporam. Há, ao que parece, uma “circularidade fundamental einevitável” na teoria do valor de Marx. Diz-se então que os valores não podem ser determinadosindependentementedospreçosdomercado,equeestesúltimos,nãoosprimeiros,sãofundamentaisparaseentendercomoocapitalismo funciona.OsmaisviolentosoponentesdeMarx,deBöhm-BawerkatéSamuelson[43], têm consequentemente ridicularizado a teoria do valormarxiana como uma “abstraçãorelevante”, e declaramque amoderna teoria do preço que defendemé bem superior à formulação deMarx. Até mesmo um crítico relativamente simpático, como Morishima[44], conclui que a reduçãoenvolvediferentestaxasdeexploração(queperturbamseriamenteateoriadomais-valor)ouaconversãodediferenteshabilidadesaumamedidacomummediantetaxassalariais(quedestroemtotalmenteateoriadovalor).Emfacedessafortecrítica,umasoluçãoparaoproblemadareduçãosetornaimperativa.

Umalinhaderespostatemsidoreduzirotrabalhoespecializadoaotrabalhosimples,supondoqueaforçade trabalho transmitevaloremproporçãoaoseucustodeprodução. Isso falhaemestabelecerareduçãoindependentementedoprocessodetroca,enãopodeporsievitaracircularidadedequeBöhm-Bawerksequeixa.Porisso,tantoRowthorn[45]quantoRoncaglia[46]procuramidentificarumprocessodeproduçãoquerealizeareduçãosemreferênciaàtroca.Rowthorndeclara:

O trabalho especializado é equivalente a grande parte do trabalho realizado no período vigente, somado à grande parte do trabalhoincorporadonashabilidadesdotrabalhadorinteressado.Partedotrabalhoincorporadonashabilidadeséemsiespecializadoepodeporsuavezserdecompostoemtrabalhonãoespecializadosomadoaotrabalhoincorporadonashabilidadesproduzidasemcadaperíodoanterior.Estendendoindefinidamenteparatrásessadecomposição,pode-seeliminarinteiramenteotrabalhoespecializado,substituindo-oporumasérie de trabalhos não especializados realizados em diferentes pontos no tempo. […] A redução […] pode ser realizada de maneirabastanteindependentedoníveldesalárioseaanáliseevitaacargadecircularidadedeBawerk.[47]

Essaabordagempassaporváriasdificuldades.Otrabalhosimplessetornaaunidadecontábil,esepresumequeocustodeproduçãodessetrabalhosimplesnãotemefeitosobreosistema.Alémdisso,ashabilidadesqueos trabalhadores adquiremaparecemcomouma formadecapital constante controladoporeles.Areduçãoérealizada,segundoTortajada[48],àcustadaintroduçãodeumaversãodateoriadocapitalhumano.Issoobliteraasquestõesdeexploraçãodeclasseeenterraosprocessossociaisreaisemumamitologiadeprogressopessoalquemuitocertamentevaicontraoimpulsogeraldateoriamarxiana.Tortajadacontinuadizendoquetaisdificuldadesseoriginam“daprópriamaneiraemqueoproblemadareduçãofoicolocado,tantopeloscríticosdateoriamarxistaquantoporaquelesquetentamcontestá-la”.Emresumo,osmarxistasprocuraramresponderaoproblemaemumterrenodefinidomaispeloscríticosburguesesdoquepelostermosemqueMarxodefine.Lembre-sedequeotrabalhoabstratoteminíciomedianteumprocessoqueexpressaaunidadesubjacentetantodaproduçãoquantodatroca,emummododeproduçãodistintamentecapitalista.

Então,vamosvoltaraoargumentodeMarx.Segundoele,otrabalhoabstrato

édesenvolvidotantomaispuraeadequadamentequantomaisotrabalhoperdetodocaráterdearte;asuaperíciaparticulardevémcadavezmaisalgoabstrato,indiferente,edevémmaisemaisatividadepuramenteabstrata,puramentemecânica,porconseguinte,indiferenteàsuaformaparticular.[49]

A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos efetivos de trabalho,nenhumdosquaispredominasobreosdemais.Portanto,asabstraçõesmaisgeraissurgemunicamentecomodesenvolvimentoconcreto

Page 80: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

maisrico,aliondeumaspectoaparececomocomumamuitos,comumatodos.[…]Aindiferençaemrelaçãoaotrabalhodeterminadocorrespondeaumaformadesociedadeemqueosindivíduospassamcomfacilidadedeumtrabalhoaoutro,eemqueotipodeterminadodo trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. […] Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau dedesenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade burguesa – os Estados Unidos. […] Esse exemplo do trabalhomostracomclarezacomoasprópriascategoriasmaisabstratas,apesardesuavalidadeparatodasasépocas–justamenteporcausadesuaabstração–,nadeterminabilidadedessaprópriaabstração,sãoigualmenteprodutoderelaçõeshistóricasetêmsuaplenavalidadesóparaessasrelaçõesenointeriordelas.[50]

O trabalhoabstrato torna-se amedidadevalor aopassoquea forçade trabalhoexiste comoumamercadoria que os capitalistas podem livremente controlar no mercado. O processo de acumulaçãorequer fluidez na aplicação da força de trabalho a diferentes tarefas no contexto de uma divisão detrabalhorapidamenteproliferante.Ocapitalistapodecriaressafluidezorganizandoadivisãodotrabalhodentro da empresa e transformando o processo de trabalho demodo a reduzir as barreiras técnicas esociais ao movimento do trabalho de um tipo de atividade para outra. As habilidades que sãomonopolizáveissãoanátemasaocapital.Namedidaemquesetornamumabarreiraàacumulação,elasdevem ser subjugadas ou eliminadas pela transformação do processo de trabalho. As habilidadesmonopolizáveistornam-seirrelevantesporqueocapitalismoastornaassim[51].

A redução de trabalho especializado para trabalho simples émais que um construtomental; é umprocessorealeobservável,queoperacomefeitosdevastadoresparaos trabalhadores.Por isso,Marxprestaconsiderávelatençãoàdestruiçãodashabilidadesdoartesãoeàsuasubstituiçãopelo“trabalhosimples” – um processo que, como Braverman documenta em grandes detalhes, continuouincessantemente durante toda a história do capitalismo (considere, por exemplo, a transformação daindústriadeautomóveisdeproduçãomanualespecializadaparaa tecnologiade linhademontagememmassa,eareduçãodotrabalhoespecializadoparaotrabalhosimplesquefoigerado)[52].

Issonãoquerdizerqueo capital temsidoem todapartebem-sucedidoem forçar tais reduções, eMarx foi o primeiro a admitir que o legado histórico das habilidades manuais e do artesão foi comfrequência extremamente resistente aosataquesorganizadospelocapital.Ahistóriadesseprocessodereduçãotambémnãoestáisentadecontradições.Arotinizaçãodastarefasacertonívelemgeralrequeracriação de habilidades mais sofisticadas em outro nível. A estrutura do emprego torna-se maishierárquicaeaquelesqueestãonotopodessahierarquia–osengenheiros,oscientistasdacomputação,osplanejadoresedesenhistasetc.–começamaacumularalgumashabilidadesmonopolizáveis.Issocriaproblemaspara a análisede classe eparaumentendimentodoprocessode trabalhonocapitalismo–problemasaosquaisretornaremosnocapítulo4.

Concluímos,então,queo“processosocial”aqueMarxsereferenãoéoutrosenãoaascensãodeummododeproduçãodistintamentecapitalistasobocontrolehegemônicodocapitalistaemumasociedadedominadapelasimplestrocademercadorias[53].Areduçãopara trabalhoabstratosimplespoderianãoocorrer em qualquer outro tipo de sociedade – pequenos produtores de mercadorias, artesãos,camponeses,escravosetc.Osvaloressóseconstituemosreguladoresdaatividadesocialnamedidaemque certo tipo de sociedade, caracterizado por relações de produção e troca específicas da classe,começaaexistir.

À luz dessa conclusão, é instrutivo voltar ao tipo de exemplo a que os críticos deMarx apelamquandoprocuramdesacreditarseuargumento.Böhm-Bawerkutilizaoexemplodatrocaentreumescultoreumoperáriobritadorparamostrarqueotrabalhocomovaloréindistinguíveldovalordasdiferentesforçasdetrabalhodeterminadaspormeiodatrocadeseusprodutos.Seuexemplonãoéerrado.Maséo

Page 81: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

tipodeformadetrabalhoespecíficoeindividualizadoque,naopiniãodeMarx,deixainclusivedeser“pensável” em uma totalidade de trocas bem desenvolvidas. Além disso, ambos os trabalhadores doexemplodeBöhm-Bawerksãoautônomos,emboraum–oescultor–possuahabilidadesdemonopólioespeciais. A condição na qual Marx está interessado é aquela na qual ambos os trabalhadores sãoempregadosporcapitalistasparaproduzirmercadorias–monumentoseestradas–,emboranenhumdosdois tenha qualquer habilidade monopolizável, ainda que o trabalho partilhado possa ser deprodutividadediferente.Böhm-Bawerk seabstrai inteiramentedas relaçõesdeproduçãocapitalistas–dificilmente umabase adequada paramoldar uma crítica válida deMarx.O raciocínio circular a queBöhm-Bawerk achou ter chegado é um produto da extirpação das raízes do problema da redução emprocessos históricos reais, que transformam o processo de trabalho e generalizam a troca demercadorias.Colocadonessecontextomaisamplo,oproblemadareduçãosetornainsignificante.Somosentãodeixadoscomduasquestõesdistintas.Emprimeiro lugar,precisamosexplicarosdiferenciaisdesalárioqueexistemcomoplenoentendimentodequeestesnãotêmnecessariamenteavercomamaneiranaqualotrabalhosocialsetornaovaloressencial.Emsegundolugar,temosdeconsiderarograuemquea reorganização do processo de trabalho no capitalismo realmente eliminou as habilidadesmonopolizáveise,dessemodo,realizouareduçãoqueéabaseparaa teoriadovalor.Vamosretomaressasegundaquestãonocapítulo4,poiselaimpõesériosdesafiosteóricosaosistemamarxiano.

III.ADISTRIBUIÇÃODOMAIS-VALOREATRANSFORMAÇÃODOSVALORESEMPREÇOSDEPRODUÇÃOMarx achava que um dos “melhores pontos” em seu trabalho era o “tratamento do mais-valorindependentemente de suas formas particulares como lucro, juro, renda fundiária etc.”[54].A teoria domais-valor explica a origem do lucro na exploração do trabalho dentro dos limites do processo deprodução sob a relação social do trabalho assalariado. A teoria da distribuição tem de lidar com aconversãodomais-valoremlucro.Marxdeugrandeimportânciaaessepasso.Escreveuele:

Atéomomentoaeconomiapolítica[…]ouporimposiçãoseabstraiudasdistinçõesentreomais-valoreolucro,edesuasrelações,parapodermanteradeterminaçãodovalorcomoumabase,ouabandonouessadeterminaçãodovalore,comela,todososvestígiosdeumaabordagemcientífica.

Noterceirolivrod’Ocapital(p.168),Marxdeclaraque“aconexãointrínseca”entremais-valorelucro é “aqui revelada pela primeira vez”. Essa é uma declaração forte, que imporia algum exame,mesmoquenãotivessesidoocentrodeatençãodeumaimensaeloquazcontrovérsia.

OargumentodeMarx com respeito à relação entremais-valor e lucro é, em linhasgerais, este: omais-valortemsuaorigemnoprocessodeproduçãoemvirtudedarelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalho,masédistribuídoentrecadacapitalistasegundoregrasdaconcorrência.

Aoconsiderarcomoomais-valorédistribuídoentreosprodutorescapitalistasemdiferentessetores,Marxmostraqueasmercadoriasnãopodemmaistrocarosseusvalores–umacondiçãoqueeleassumiuapoiarnosdoisprimeiroslivrosd’Ocapital.Elesdevemrealizartrocasdeacordocomseus“preçosdaprodução”.Faríamosbememeliminar,desdeoinício,umapotencialfontedeconfusão.Essespreçosdaproduçãoaindasãomedidosemvaloresenãodevemserconfundidoscompreçosmonetáriosutilizados

Page 82: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

nomercado.Marxaindadefendeotempodetrabalhosocialmentenecessáriocomoumcritério.Oqueeleagora mostra é que as mercadorias não mudam mais conforme o tempo de trabalho socialmentenecessárionelasincorporado.

Para acompanhar o argumento de Marx, devemos primeiro apresentar algumas definições ecomentários básicos. O tempo despendido para produzir umamercadoria é chamado de “período deprodução”.Otempodespendidopararealizarovalorincorporadonamercadoriamedianteoprocessodetrocaéchamadode“tempodecurso”.O“tempoderotação”docapitaléotempolevadoparaovalordeum dado capital ser realizado por meio da produção e da troca – é, então, a soma do período deprodução e do tempo de curso. O “capital consumido” é o valor total das matérias-primas e dosinstrumentosdeproduçãousadosnodecorrerdeumperíododeprodução.Comoocapitalfixopodesertotalmente empregado durante o período de produção,mas não totalmente usado, o capital consumidodurante um período de produção será igual ou menor que o “capital empregado”. Podemos tratar o“capital constante”, c, como o capital consumido ou como o capital empregado, dependendo do queestamosprocurandomostrar.O“capitalvariável”,v, éovalorda forçade trabalhoconsumidaemumperíododeprodução.A“taxadomais-valor”(ou“taxadeexploração”)édadapelaproporçãodemais-valoremrelaçãoaocapitalvariável,m/v.A“composiçãodevalordocapital”édefinidacomoc/v.A“taxadelucro”,l,ém/(c+v),que,quandoreformulada,torna-se:

Observequetodasessasmedidasestãoexpressasemvalores.Agora assumimos um processo competitivo que equaliza a taxa de lucro em todas as indústrias e

setores.Oqueentãosetornaclaroéqueastaxasdetrocasãoafetadaspelasdiferençasnacomposiçãode valor do capital. Considere o seguinte exemplo. Uma economia tem duas indústrias. A primeiraemprega80unidadesdecapitalconstantee20unidadesdecapitalvariávelecria20unidadesdemais-valor, enquanto as medidas para a segunda são 20c, 80v e 80m. O capital adiantado total nas duasindústrias é exatamente o mesmo. Definimos estes como os “custos da produção”, c + v. A taxa deexploração,m/v,éamesmanasduasindústrias.Tambémassumimosumperíododeproduçãoidêntico.Masagorapercebemosqueataxadelucronaprimeiraindústria(comumacomposiçãodealtovalor)é20%,enquantoataxadelucronasegundaindústria(comumacomposiçãodebaixovalor)é80%.Ataxadelucronãoéequalizada.

Vamosagorasuporqueasduasindústriastêmpesosiguaisequeataxadelucromédio,l,é50%.Oefeitodeequalizarataxadelucroémudarasrelaçõesdetrocadasduasmercadorias.Cadamercadoriaagoratrocadeacordocomasrelaçõesindicadasporc+v+l,emvezdec+v+m.Aprimeiradessasmedidaséchamadade“preçodeprodução”.Enfatizamosumavezmaisqueestaémedidaemvalores,não em preços monetários. Na concorrência, podemos esperar que as mercadorias mudem mais deacordocomseuspreçosdeproduçãodoquecomseusvalores.

Podemos construir um argumento idêntico com respeito aos capitais que têm tempos de rotaçãodiferentes.Marxnãofezissodiretamente,masdevemostambémreconheceraimportânciadotempoderotação na formação de relações de troca. Como o capitalista está interessado no lucro durante umperíododetempomédio(umataxaanualderetornosobreocapital,porexemplo),ocapitalqueefetuamuitasrotaçõesemumanovaiobterumataxaderetornomuitomaiselevadadoqueocapitalqueefetua

Page 83: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

apenas uma rotação (supondo-se composições de valor similares e taxas de exploração idênticas).Ocapitaleotrabalhovãotenderaserrealocadosdesetorescomtemposderotaçãoinferioresàquelescomtemposde rotação superiores, atéqueas taxasde retornoanuais sejam igualadas.Ospreços relativosserãoafetados,etemosumarazãoadicionalparaasmercadoriasnãomaisseremtrocadasdeacordocomseusvalores.

OqueMarxestáfazendoaquiéimplementarsuaregrageralsegundoaqualaproduçãodeterminaadistribuição, sendo que a primeira não pode ser considerada independentemente da distribuição nelaincluída.Oprocedimento de transformação deMarx na verdade tira proveito de umduplo sentido de“distribuição”.Éadistribuiçãodocapitalentreasdiferentesindústrias,deacordocomataxadelucrogeral que conduz à formulação dos preços da produção, que tem o efeito de distribuir o mais-valordiferencialmente,deacordocomascomposiçõesdevaloreostemposderotaçãodosdiferentescapitais.

O efeito distributivo geral pode ser apresentado de umamaneira muito simples. Cada capitalistacontribuiparaomais-valoragregadototalnasociedade,deacordocomaforçadetrabalhoquecadaumemprega, e se baseia no mais-valor agregado segundo o capital total que cada um adianta. De umamaneira um tanto engraçada, Marx chamou essa situação de “comunismo capitalista” – “de cadacapitalista segundosua forçade trabalho totaleparacadacapitalistadeacordocomseu investimentototal”[55]. Mais especificamente, isso significa que as indústrias com baixa composição de valor(indústriascom“mãodeobraintensiva”)ouumtempoderotaçãorápidoproduzemmaismais-valordoqueobtêmdevoltanaformadelucro,emboraaconteçaoopostonocasodasindústriascomcomposiçãodealtovalor(chamadossetoresde“capitalintensivo”)oubaixotempoderotação.Esteéumresultadoimportante.Eleproporcionaabaseparaalgumasinterpretaçõesmarxistasequivocadasdoimperialismo–paísesdominadosporindústriascombaixacomposiçãodevalorrenunciarãoaomais-valoremproldepaísesdominadosporaltacomposiçãodevalor[56].

Então,porquetodaacontrovérsia?AsprópriasdeclaraçõesdeMarx,somadasaalgunscomentáriosprovocativos de Engels em seus prefácios ao segundo e terceiro livros d’O capital, serviram paraconcentraraatençãonoqueénaverdadeumacaracterísticafundamentalnateoriamarxiana:arelaçãoentre mais-valor e lucro. Infelizmente, a solução que Marx propõe é equivocada ou incompleta. Oscríticosburguesestêmatacadooqueenxergamcomoumerrofundamentaleoutilizadoparadesacreditartodaateoriadaproduçãoedistribuiçãomarxiana,insistindo,otempotodo,queadistribuiçãodeveserrestaurada ao seu lugar de direito de onde Marx procurou desalojá-la. Consideremos a natureza dosuposto“erro”[57].

Marxmontaumquadroparacincoindústriasdecomposiçãodevalorvariávelparailustrarcomoospreçosdaproduçãoserãoformadosquandoataxadelucroforigualadapormeiodaconcorrência[58].Eleassume,parapropósitosdeexposição,queoscapitalistasadquiremmercadoriasaosseusvaloreseosvendemsegundoseuspreçosdeprodução.Eletambémassumequeataxadelucromédiaéconhecidaequeestapodesercalculadaporantecipaçãoatribuindoumpesoigualacadaumdoscincosetoreseàproduçãomédiademais-valoremrelaçãoaocapitaltotalantecipado.

Podemos localizar imediatamentedoisproblemas.Se todasasmercadoriasmudamdeacordocomseus preços de produção, então isso se aplica tanto aos insumos quanto aos produtos.Os capitalistascompramapreçosdeproduçãoenão,comoapresentaMarxemseusesquemas,segundoosvalores.Marxestáperfeitamenteconscientedisso,masachouque“anossapresenteanálisenãonecessitadeumexamemaisprofundodesseponto”[59].Emsegundolugar,comoocapitaléredistribuídoapartirdesetorescombaixa a alta composição de valor, o produto total domais-valor muda e isso altera a taxa de lucro.

Page 84: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Evidentemente,oprocedimentodetransformaçãoqueMarxcriaestáincompleto.Eleé,nomáximo,umaaproximação.Marxnãoenfatizaqueissofosseassim,eEngelsprossegueconfundindomuitoasquestões,proclamando triunfantemente emseuprefácioqueMarxestabeleceua soluçãoparaoproblema,oqueconfundiriaesilenciariaeternamenteseuscríticos.

Böhm-Bawerk[60]apontouimediatamenteosdefeitosnoprocedimentodeMarx,tratou-oscomoerrosfundamentaiseridicularizoucomalvoroçotodooesquemamarxiano.Emvezdesilenciaroscríticos,asoluçãodeMarxparaoproblemada transformaçãoproporcionou-lhes abundantemuniçãoparausá-lacontraele.

OproblemadatransformaçãoassumiusuaaparênciaatualcomtentativasmatemáticasparacorrigiroerrodeMarx.VonBortkiewiczfoioprimeiroaapresentarumasoluçãomatemáticaem1907.Eleusouumaabordagemdeequaçãosimultâneaemostrouserpossívelresolveroproblemadatransformaçãoemdeterminadas condições rigorosamente definidas. O problema então se transformou num problema deidentificarejustificarascondiçõesparaasolução.

Oproblemamatemáticoformalsurgeporque,parase identificarumasolução,énecessário,dadaaabordagem da equação simultânea, controlar algo constante entre a estrutura do valor e o preço daestruturadaprodução.ComoopróprioMarxdeclarouqueasomadospreçosdaproduçãodeveigualarasomadosvalores,equeomais-valortotaldeveigualarolucroagregadototal,essesdoistêmdesermaiscomumente escolhidos como constantes. O problema é que essas duas condições não podem sersimultaneamente controladas, dada essa representação matemática particular. Em consequência disso,toda uma série de soluções matemáticas foi proposta, cada uma usando uma condição constantediferente[61].

IssopermiteaSamuelson[62]declararque,comonãohárazãológicaparaseescolherumaconstanteemvezdeoutra,atransformaçãodeMarxdosvaloresempreçosdeproduçãonãoéumatransformaçãomatemáticaemnenhumsentidoreal,massimplesmenteumprocessodeapagarumconjuntodenúmerosesubstituí-loporoutro.Opreçodaanálisedaproduçãonoterceirolivrod’Ocapitalnãotemumarelaçãológicanecessáriacomateoriadovalorpropostanoprimeiro.Esteúltimo,então,podeserencaradooucomoumensaiodemetafísicaoucomoum“desvioirrelevante”acaminhodamaisfundamentalteoriadopreçoapresentadanoterceirolivro.Comoateoriadopreçofoi“revolucionada”desdeaépocadeMarx(principalmente por meio da “revolução” marginalista, que está na base da teoria neoclássicacontemporânea),Marxpôde,noquedizrespeitoàsuacontribuiçãoparaateoriadopreço,serrelegadoaoslivrosdehistóriacomoum“pós-ricardianomenor”.AssimSamuelsoncombateofantasmamarxiano.

UmalinhaderespostaaSamuelsontemsidoaceitarsuacontribuiçãomatemáticaedepoisargumentarque,emboraelepossaser“umeconomistamatemáticoexcelente”,éum“economistapolíticoterrível”.Assim,Laibman[63] escolhe a taxa de exploração como a constante, baseado no fato de que a luta declasses e a tensão social entre o capital e o trabalho é o marco qualitativo do modo de produçãocapitalista.Pormaisverdadeiroqueesteúltimopossaser,issoimplicaqueoequilíbrioentreossaláriose os lucros em uma economia capitalista é estabelecido pela luta de classes e por nadamais – umaproposição que negamos anteriormente. Esse é um preço alto demais para superar as objeções deSamuelson.

Asegundalinhadedefesarequer trataroproblemadatransformaçãocomoumproblemahistórico.Nessainterpretação,asmercadoriasrealmentemudavamseusvaloresemcondiçõesdesimplestrocademercadoriasentreprodutoresindependentesnãosujeitosàregradocapital.Comaascensãodasrelaçõesde produção capitalistas, as relações de valor tornam-se obscurecidas e finalmente enterradas sob os

Page 85: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

preçosdaprodução.EssainterpretaçãoencontraalgumajustificativanocomentáriodeMarxdeque“atrocademercadoriasemseusvalores[…]requerumestágiomuitoinferioràsuatrocaemseuspreçosdeprodução, o que requer um nível definido de desenvolvimento capitalista”. Por isso, “é bastanteapropriado encarar os valores das mercadorias não apenas teoricamente, mas também historicamenteantesdospreçosdaprodução”[64].Engelsopinouque“seMarxtivesseaoportunidadederevermaisumavez o terceiro livro, ele sem dúvida teria estendido consideravelmente essa passagem”[65]. E assimEngels começou a elaborar a ideia e, em seu “acréscimo” ao terceiro livro, escreveu uma versãohistóricamais longa do problemada transformação.Várias outras versões comedidas desse problemaforamapresentadas,desdeentão,porescritorescomoR.L.Meek[66].

Hádoisproblemasnessaabordagemhistórica,aindaquesoemuitomarxianoapelarparaahistóriapararesolverumdilemalógico.Observamos,antesdetudo,queesserelatosegueinteiramentecontrárioao argumento que apresentamos anteriormente, ou seja, que os valores não podem ser totalmenteestabelecidosna ausênciade relaçõesdeproduçãocapitalistas. Isso contradiz a ideiadeuma relaçãointegralentreateoriadovaloreacapacidadeparaproduzirmais-valor.Alémdisso,comodocumentamdetalhadamente Morishima e Catephores, a abordagem geral de Marx indica que o que ele estava“buscandonateoriadovalor-trabalhonãoeraadescriçãoabstratadeumperíodopré-capitalistadoqualele poderia derivar geneticamente o capitalismo,mas sim as ferramentas teóricas que lhe permitiriamchegaraofundodasrelaçõeseconômicascapitalistas”.Aversãohistóricadoproblemadatransformação–mesmoemsuastraduçõesmaismoderadasesofisticadas–deve,porisso,serrejeitada[67].

Comonãopodemosapelarparaalutadeclassesouparaahistóriapararesolveroproblema,temosdevoltar atráspara tratar a transformaçãocomoum“dispositivoestático, atemporal e analítico”paradissecar as relações sociais do capitalismo. Somos obrigados a encontrar uma técnica matemáticarazoávelparatratardoproblema.Maistarde,ShaikhpropôsseguiratécnicaqueMarxusoueplanejousoluçõesiterativasque,acadaetapadaiteração,ajustamoscustosdoinsumoeataxadelucroatéseremidentificados os preços equilibrados da produção. Segundo essa visão,Marx simplesmente realizou oprimeirocálculonessasequênciaenãosedeuaotrabalhodetratardorestoporquenãolhepareciatãoimportantechegaràsoluçãomatemáticacorretaparachegarà importanteconclusãosocial.Morishima,comsuacostumeiraingenuidadematemática,mostraque,seoprocedimentodatransformaçãofortratadocomo um processo de Markov, muitas dificuldades que surgem quando ele é tratado em termos deequações simultâneas desaparecem– a igualdade entre a somados preços de produção e a somadosvalorespodecoexistircomsatisfaçãocomaigualdadedomais-valoredolucrototal,comoMarxinsistiuque ocorreria.O que realmente surpreende, na opinião deMorishima, é comoMarx se aproximou daresolução do problema apesar de sua inerente dificuldade e de sua técnicamatemática extremamentelimitada[68].

Várias ideias interessantes no problema da transformação surgiram, na verdade, do campo nãomarxista.TantoBaumolquantoMorishima[69]tiverammuitascoisaspositivaserelevantesadizersobreoproblema. Baumol, por exemplo, declara corretamente que a preocupação fundamental de Marx foiestabelecerumateoriadadistribuiçãoequeatransformaçãorealdosvaloresempreçosdeproduçãoéumaquestão lateral[70].Morishima tambémdefendeavisãodequeMarxestavaseesforçandomaisnadireçãodosinsightssociaisdoquenaexatidãomatemática,eque,dessepontodevista,oqueMarxsedispôsafazer,fê-lomuitobem.

Então, qual é o significado social do queMarx estava buscando? Ele apresenta suas conclusões

Page 86: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

convincentemente, comparando o efeito da transformação com aquele produzido pela apropriaçãocapitalistadomais-valorrelativo:

Com o desenvolvimento do mais-valor relativo […] os poderes produtivos […] do trabalho no processo de trabalho direto parecemtransferidosdotrabalhoparaocapital.Assim,ocapitalsetornaumsermuitomístico,poistodasasforçassociaisdotrabalhoparecemsedevermaisaocapitaldoqueaotrabalhocomotal,eparecemprovirdoúterodoprópriocapital[…].Tudo isso obscurece cada vezmais a verdadeira natureza domais-valor e, portanto, omecanismo real do capital. Isso é aindamaisatingidomedianteatransformaçãode[…]valoresempreçosdeprodução.[…]Umprocessosocialcomplicadointervémaqui:oprocessodeequalizaçãodoscapitais,quedivorciaospreçosrelativosmédios[daprodução]dasmercadoriasdeseusvalores,assimcomooslucrosmédiosnasváriasesferasdaprodução[…]darealexploraçãodotrabalhopeloscapitaisparticulares.Nãosóissopareceserassim,maséverdadequeospreçosmédios [daprodução]demercadoriasdiferemdo seuvalor e,portanto,do trabalhonelas realizado, eo lucromédiodeumcapitalparticulardiferedomais-valorqueessecapitalextraiudostrabalhadoresempregadosporele.[…]Ospróprioslucrosmédiosnormaisparecemimanentesnocapitaleindependentesdaexploração.[71]

Ofatodeolucrotersuaorigemnaexploraçãodaforçadetrabalhonãoémaisóbvio,massetornanebuloso tanto para o capitalista quanto para o trabalhador. “Disfarçada como lucro, o mais-valorrealmentenegaasuaorigem,perdeoseucaráteresetornairreconhecível”.Isso,porsuavez,conduzà“totalincapacidadedocapitalistaprático,cegopelaconcorrênciacomoeleé,eincapazdecompreenderseusfenômenos,reconheceraessênciainterioreaestruturainteriordesseprocessoqueestáportrásdaaparência externa”[72]. E, namedida em que os teóricos do capital refletiram essa confusão, tambémfalharamempenetrarnossegredosqueestavamocultospelos fenômenosdaconcorrência.EsãoessessegredosqueMarxdeclaraterreveladototaleefetivamentepela“primeiravez”.

OfetichismoquesurgedatransformaçãodosvaloresempreçosdeproduçãodesempenhaumpapelfundamentalnoargumentodeMarx.Ele realizaumafunção ideológicaeapologética,aomesmotempoquemistificaaorigemdolucrocomomais-valor.Essamistificaçãoéperigosaparaocapitalporqueareprodução da classe capitalista depende inteiramente da criação e recriação contínua domais-valor.Masmesmoqueoscapitalistasconseguissempenetrarabaixodofetichismodasuaprópriaconcepção,elesaindaseriamimpotentespararetificarumestadodecoisaspotencialmentesério.Aconcorrênciaosobriga, querendo ou não, a alocar o trabalho social e dispor seus processos de produção demodo aequalizarataxadelucro.OqueMarxagoranosmostraéqueissonãotemnecessariamentenadaavercom a maximização do produto agregado do mais-valor na sociedade. Encontramos nisso uma basematerialparaessasistemáticadistribuição indevidado trabalhosocialeparaesseviéssistemáticonaorganização do trabalho, que conduzem o capitalismo a crises periódicas. A concorrêncianecessariamente conduz cada capitalista a se comportar demaneira a ameaçar a base da sua própriareproduçãosocial.Elessecomportamassimporquealógicadasforçasdemercadoosobrigaareagiraospreçosdeproduçãoemvezdeàsexigênciasdiretasparaaproduçãodemais-valor.Esteéoinsightcrucialquesurgedeumestudodoproblemadatransformação.Éumresultadoquedevemosbuscaratésuaconclusãológicamaisamarganoscapítulossubsequentes.

IV.JURO,RENDAELUCROSOBREOCAPITALMERCANTILDados o som e a fúria do debate sobre os problemas da redução e da transformação, é um poucosurpreendenteacharqueosoutroscomponentesdateoriadadistribuiçãodeMarxtenhamdesencadeadotãopouca controvérsia. Issopode ser emparte explicadopelo estado espantosamente confuso emque

Page 87: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Marx deixou suas teorias da renda e do juro, e do fracasso dosmarxistas empropor esclarecimentosconvincenteseconsensuaisdaconfusãoqueMarxdeixouparatrás.

Comocadaumdessesaspectosdadistribuiçãoserálongamenteexaminadonoscapítulosposteriores,aquivoumelimitaraalgunscomentáriosgeraissobreadireçãoàqualMarxpareciaencaminhadoeasrazõesqueeleapresentaparalásedirigir.

Lembre-sedequeateoriadomais-valorsesustentasozinha,independentementedequalquerteoriada distribuição, à parte daquelemais fundamental de todos os arranjos distribucionais, que separa otrabalhodocapital.Omais-valoréconvertidoemlucromedianteoprocessosocialdaconcorrência.Olucro,porsuavez,édivididonoscomponentesdolucrosobreocapitalmercantil,dojurosobreocapitalmonetário,darendaderivadadaterraedolucrodaempresa.Atarefadequalquerteoriadadistribuiçãoé explicar a necessidade social para essa distribuição do mais-valor, e os processos sociais que arealizam.

Amaneirasequencialdaapresentação–movendo-sedaproduçãoparaadistribuiçãodomais-valor–não deve nos levar a pensar que as relações de distribuição não têm importância para se entender aprodução. Uma vez que Marx declara que a produção pode ser considerada separadamente da“distribuição nela incluída”, temos de considerar a possibilidademuito real de que a renda e o jurodesempenhampapéisimportantescomocondiçõesdaprodução.

Na verdade,mais tarde vou procurarmostrar que a formação do capital fixo – e em particular acriaçãodas infraestruturas físicasnoambienteconstruído–nãopodeserentendida independentementedosprocessossociaisqueregulamadistribuição.Porisso,osrelacionamentosdadistribuiçãoafetamascondiçõesdaprodução.Marxevidentementenãonega isso,mas insisteque,pormais importantesquepossamseressesimpactos,elesnuncapoderiamexplicaraorigemdomais-valor.

Marx abriu uma perspectiva sobre a lógica subjacente que dita as relações de distribuiçãoexaminandooprocessogeraldacirculaçãodocapital.Eledescreveoprocessodeexpansãodovalorpassandoporumasequênciademetamorfoses–mudançasdeestado.Amaneiramaissimplesdeolharpara isso é vê-lo como um processo em que o dinheiro é lançado em circulação para se obtermaisdinheiro.Odinheiroéapresentadoparaadquiriraforçadetrabalho[T]eosmeiosdeprodução[Mp],queestãojuntosmoldadosmedianteaprodução[P]emmercadoriasaseremvendidasnomercado:

Odinheironofimdoprocessoémaiorquenoinício,eovalordamercadoriaproduzidaémaiorqueovalordasmercadoriasusadascomoinsumos.AsduasfasesD-MeM’-D’sãotransformaçõesproduzidaspormeiodecompraevenda,enquantoP,oprocessodeprodução,envolveumatransformaçãomaterialnoprodutoenaincorporaçãodotrabalhosocialmentenecessário.

Oprocessodecirculaçãoquecomeçacomdinheiroe terminacomdinheiro(mais lucro)éaformaparadigmática da circulação do capital. Mas quando olhamos para a circulação como um processointerminável,descobrimosquepodemosdissecá-lodeváriasmaneirasdiferentes.Podemosolharparaissocomoinícioefim,comoatodaproduçãooucomocapitalemumestadodemercadoria.Podemoscriartrêsjanelasseparadasparaavistarascaracterísticasgeraisdacirculaçãodocapital(verFig.2.1).Decadajanelavemosalgodiferente.Marxdescreveoquepodemosverdecadaumadelasnoscapítulos

Page 88: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

iniciaisdosegundolivrod’Ocapital.Vemosqueascondiçõesepreocupaçõesqueregulamacirculaçãodocapitalmonetário sãomuito

diferentes daquelas que controlam o capital amarrado como capital produtivo a um processo deprodução específico, e que ambos sãomais umavezdiferentes daqueles que regulama circulaçãodocapital-mercadoria.Nofim,éclaroqueestamos interessadosnacirculaçãodocapitalcomoumtodo,mas,navisãodeMarx,nãopodemosentenderissosemprimeiroexaminarsuasdiferenciações.

Essasdiferenciações, comproblemas ligados à transformaçãodo capital deumestadoparaoutro,podemdarorigemaespecializaçõesdefunção.Porexemplo,oscapitalistasnegociantesassumemumaresponsabilidade específicapelo capital na formademercadoria e se especializamem transformar asmercadoriasemdinheiro.Domesmomodo,acirculaçãododinheirorequerashabilidadesespeciaisdobanqueiroedofinancistaque,aoassumiremocomandodousogeraldodinheirocomocapital,tornam-secapitalistasmonetários que recebem juro. Isso conduz o capitalista produtivo ao comando apenas daproduçãodoprópriomais-valor.

Page 89: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Figura2.1–Acirculaçãodocapital(extraídadeMeghnadDesai,MarxianEconomics,cit.,p.33)

A desagregação dos diferentes circuitos do capital nos permite estabelecer algumas condiçõesnecessáriaspararegularasrelaçõesentreaproduçãodemais-valoresuadistribuição.Entretanto,issonãonoscriaascondiçõessuficientesquedeterminamosarranjosdistribucionaisquedevemprevalecerno capitalismo.Nomomento, devemos continuar contentes comuma simples descrição das categoriasdistribucionaisqueMarxidentifica.

1.Ocapital-mercadoria

Quandoocapitalémantidonaformademercadoriaeleexistecomocapital-mercadoria.Mascomoo capital só permanece capital se for valor em movimento, esse capital-mercadoria deve sercontinuamenteconvertidoemcapitalmonetárioparamanteroseucarátercomocapital.Avelocidadeeaeficiênciadessatransformaçãosãodegrandeimportânciaparaocapitalista.Otempodecurso(períodoemqueocapitalassumeaformademercadoria)afetaotempoderotaçãoe,assim,ataxadelucro.Atransformação incorre em alguns custos que são deduções necessárias do mais-valor produzido –negociarumamercadoriaauferevalor,masnãoocria.Reduzirotempodecirculaçãoeeconomizarnoscustosdecirculaçãonecessárioséimportanteparaoscapitalistasenvolvidosnaprodução,porque,porambososmeios,aumentaomais-valorquepermaneceemsuasmãos.Issoproporcionaumaoportunidadeparaocapitalmercantil.Ocomercianteassumetodososcustosearesponsabilidadepelomarketingemtrocadeuma fatiadomais-valorproduzido.Coma equalizaçãoda taxade lucro, o comerciantedevereceberexatamenteamesmataxadelucroqueoprodutorsobreocapitaladiantado.Avantagemdetudoissoparaosprodutorescapitalistasé,evidentemente,umareduçãodotempoderotaçãoeeconomiasnoscustosdecirculação(pormeiodeeconomiasdeescala,especializaçãodafunçãoetc.).

Colocado em termos de valor, isso significa que os produtores vendem abaixo do valor para oscomerciantes,queentãovendemamercadoriapeloseuvalor.Adiferençaéumaapropriaçãodomais-valorquecobreasnecessáriasdespesasincorridaseolucrosobreocapitalqueocomercianteadianta.Issocolocaocapitaldoscomerciantesemumarelaçãoestranhacomaproduçãodemais-valor.Porumlado, a relação é parasitária no sentido de que o comerciante não cria valor, mas simplesmente seapropria dele. Por outro lado, o capital dos comerciantes pode expandir o mais-valor obtido peloprodutormedianteaaceleraçãodarotaçãodocapitaledareduçãodoscustosnecessáriosdacirculação.

2.Ocapitalmonetárioeosjuros

Quando o capital assume a forma-dinheiro e se torna capital monetário, ele se manifesta comocapitalemsuaformamaispura–comovalordetrocadivorciadodequalquervalordeusoespecífico.Oparadoxo,éclaro,équeelenãopodemanterseucarátercomocapitalsemsercolocadoemcirculaçãoembuscadelucro.Oprocessonormaldecirculaçãonomodocapitalistadeproduçãoenvolveousodocapitalmonetárioparacriarmais-valormedianteaproduçãodemercadorias.Issoimplicaqueovalordeusodocapitalmonetáriosejacapazderegularaforçadetrabalhoeosmeiosdeprodução,quepodementãoserusadosparaproduzirvalormaiordoqueodinheirooriginalmenterepresentado.Acapacidadeparaproduzirmais-valorpareceserentãoumaforçadoprópriocapitalmonetário.Ocapitalmonetário,em consequência, torna-se umamercadoria como qualquer outra. Ele processa um valor de uso e umvalordetroca.Essevalordetrocaéataxadejuros.

Page 90: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

O “capital que rende juros”, observa Marx, “é o fetiche automático consumado […], dinheirofazendo dinheiro, e dessa forma ele não mais carrega nenhum traço da sua origem”[73]. “[Para o]economistacomum,quedeseja representarocapitalcomoumafontedevalor independente,umafontequecriavalor,essaformaé,evidentemente,umpresentedosdeuses,umaformaemqueafontedolucronãoémaisreconhecível.”

Oresultadoéqueojurosobreocapitalmonetáriotorna-seseparadodoqueMarxchamade“lucrodaempresa”–orendimentoobtidodoenvolvimentonaproduçãorealdemercadorias.Aseparaçãosurgeporque, quando os capitalistas individuais seguram o dinheiro, eles têm a escolha de colocá-lo emcirculação como capitalmonetário gerando juro, ou colocá-lo diretamente em circulação pormeio daproduçãodemercadorias.Essa escolhade algummododependedaorganizaçãodaprópriaprodução,porqueaaquisiçãodegrandesitens–fábricaemaquinário,porexemplo–envolveoaçambarcamentoouumsistemadocapitalistaeconomizandoefazendoempréstimosparaamenizaroquedocontrárioseriaumprocessodeinvestimentoextremamenteirregular.

Trataremosdosdetalhesdosistemadecréditoedojurosobreocapitalmonetárionoscapítulos9e10.Nossointeresse,aqui,émostrarqueadiferençaentreocapitalemformadedinheiroouemformaprodutiva finalmenteconduzà separaçãoentreo juro sobreocapitalmonetárioeo lucrodaempresa.Essa distinção atinge uma divisão do excedente em duas formas diferentes, que podem finalmente secristalizaremumadivisãoentreoscapitalistasmonetárioseosempresáriosprodutores.Emboraambostenhamuminteressecomumnaexpansãodomais-valor,elesnãonecessariamenteseentendemquandosetratadadivisãodomais-valorproduzido.

3.Rendasobreaterra

Como teremos muito a dizer sobre a natureza da renda em um capítulo posterior, precisamosconsiderá-laaquiapenasdamaneiramaisperemptória.Àprimeiravista,nãoparecehaverumaposiçãológicaparaarendanacirculaçãodocapitalcomooretratamos.Opoderdemonopólioqueseacumulaparaosproprietáriosdeterramedianteapropriedadeprivadadaterraéabasedarendacomoumaformademais-valor.Noentanto,opoderqueesseprivilégioconferenãoserianadanãofosseofatodeaterraser uma condição de produção em geral necessária. Na agricultura, a terra se torna até ummeio deproduçãonosentidodequeelaélimpa,melhoradaetrabalhadademaneiraatornar-separtedoprocessodeprodução.

Acirculaçãodocapitalencontraumabarreiranaformadapropriedadefundiária.Oproprietáriodaterrapodeexigirumtributo–apropriar-sedeumapartedomais-valor–emtrocadousodaterracomoumacondiçãooumeiodeprodução.Ograuemqueessabarreiraémanifestacomoumpoderdeclassedosproprietáriosdeterradependedascircunstânciashistóricas.Mascomootempotodoexisteopoderparaapropriarumapartedoexcedentenaformaderenda,issodevenecessariamenterefletirumpadrãode relacionamentos sociais que, quer se queira ou não, penetra no cerne do processo de produção econdicionasuaorganizaçãoesuaforma.

4.Relaçõesdedistribuiçãoerelaçõesdeclassenaperspectivahistórica

Com exceção da renda, que se baseia no poder demonopólio da propriedade privada na terra, adivisão do mais-valor em juro sobre o capital monetário, lucro sobre o capital produtivo (lucro daempresa)elucrosobreocapitaldoscomerciantesestáimplícitanostrêscircuitosdocapitalenastrês

Page 91: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

formas fundamentais que o capital pode assumir no processo de circulação. Mas aqui não estamoslidandosimplesmentecomorelacionamentológicoentreacirculaçãodocapitaleadistribuiçãoqueelaenvolve.

Marx,porexemplo,enfatizaquetodasessasformasdecapital–capitalmercantil,capitalmonetárioerenda sobre a terra – tinhamuma existência histórica que remonta a bem antes do advento do capitalindustrialnosentidomoderno.Porisso,temosdeconsiderarumprocessohistóricodeconfirmaçãoemqueessasformasseparadaseindependentementepoderosasdocapitaltornam-seintegradasemummodode produção puramente capitalista. Essas diferentes formas de capital tinham de ser tornadassubservientesaumprocessodecirculaçãodominadopelaproduçãodemais-valorporpartedamãodeobraassalariada.Porisso,aformaeamaneiradesseprocessohistóricodevemserumobjetodeatenção.

Essasformasdeapropriaçãodomais-valor,todasasquaisocultamaorigemdomais-valor,tambémtêmdeserconsideradasemtermosdasrelaçõessociaisqueaomesmotempopressupõemesustentam.Oresultadoéquetemosagorademodificaranoçãodasrelaçõesdeclassequeprevalecemdentrodomodode produção capitalista. Embora haja certa comunidade de interesse tanto entre os apropriadorescapitalistasquantoentreosprodutorescapitalistasdemais-valor–umacomunidadedeinteressequedásuporteatodaaconcepçãodaburguesianasociedadecapitalista–,hátambémdiferenciaçõesnoseiodaburguesia que têm de ser interpretadas como “frações” ou como classes autônomas.Uma “classe” derentistas que vive inteiramente do juro sobre seu capital monetário não deve ser confundida com oscapitalistas industriais que organizam a produção de mais-valor, os capitalistas comerciantes quecirculammercadoriasouaclassedoproprietáriodeterrasquevivedarendadaterra.Nessaconjuntura,não importamuito seusamosounãoa linguagemdaclasseoudas fraçõesoucamadas.Oessencial éreconheceros relacionamentossociaisquedevemseranexadosàsdiferentes formasdedistribuição,ereconhecer tanto a unidade quanto a diversidade que, como resultado, devem prevalecer dentro daburguesia.Porquedamesmamaneiraqueadistinçãoentresalárioselucroscomoumacategoriagenéricanãopodeserconsideradaexcetocomoumarelaçãodeclasseentrecapitalistasetrabalhadores,tambémasrelaçõesdedistribuiçãosãodenaturezasocial,nãoimportaoquantoosvulgarizadorespossambuscarocultá-lasemtermosdanoçãofetichistadequeodinheiroeaterramagicamenteproduzemjuroerenda.Maisumaveztemosdereconhecerque,emboraessasrelaçõesdedistribuiçãoentremnaproduçãoeacondicionem de importantes maneiras, é o estudo do próprio processo da produção que revela ossegredosdadistribuição.Fingirocontrárioécairvítimadomundodasaparências,queé turvadoporfetichismos,efalharempenetrarna“essênciainternaenaestruturainterna[…]queestãoportrásdasuaaparênciaexterna”.

[1]VeraintroduçãodePieroSraffaparaRicardoemTheWorksandCorrespondenceofDavidRicardo(Londres,CambridgeUniversityPress,1970).

[2] Maurice Dobb, Theories of Value and Distribution since Adam Smith: Ideology and Economic Theory (Londres, CambridgeUniversityPress,1973),p.125.Emgeral,MauriceDobbapresentaumavisãogeralexcelente.

[3] Piero Sraffa, The Production of Commodities by Means of Commodities, cit.; Ian Steedman (Marx after Sraffa, cit.) é um dosprincipaisexpoentesdaposição“neorricardiana”,eRobertRowthorn(Capitalism,ConflictandInflation,Londres,LawrenceandWishart,1980) um de seus principais oponentes. Ben Fine e Laurence Harris (Re-ReadingCapital, cit.) apresentam um bom resumo do debate(embora se caracterizando contra o neorricardianismo) eMauriceDobb (“ANote on theRicardo-Marx-SraffaDiscussion”,Science andSociety,1975-1976),poucoantesdesuamorte,lançouumvibranteapeloparaummelhorentendimentodosdoislados.

Page 92: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[4]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.453-540;Capital,LivroIII,cit.,cap.48.

[5] Carl Gerdes (“The Fundamental Contradiction in the Neoclassical Theory of Income Distribution”, Review of Radical PoliticalEconomics, 1977), Carlo Benetti (Valeur et répartition, Grenoble, Presses universitaires de Grenoble, 1976) e Carlo Benetti, ClaudeBerthomieueJeanCartelier(Economieclassique,économievulgaire,Grenoble,PressesUniversitairesdeGrenoble,1975)assumemfortesposiçõesantimarginalistas,enquantoRonaldMeek(Smith,MarxandAfter,cit.,cap.9)assumeumavisãoumpoucomenosantagonista.

[6]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.882.

[7]Idem,Grundrisse,cit.,p.51.

[8]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.878.

[9]Cf.nestevolumep.66-7.

[10]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.284.

[11]MichioMorishimaeGeorgeCatephores,Value,ExploitationandGrowth(Maidenhead,McGraw-Hill,1978).

[12]VerMichioMorishima,Marx’s Economics (Londres, Cambridge University Press, 1973) eMichioMorishima e George Catephores,Value,ExploitationandGrowth,cit.,p.19.

[13] Pouco tem sido escrito sobre as teorias de determinação salarial deMarx. Tanto ErnestMandel (The Formation of the EconomicThought of Karl Marx, Nova York, Monthly Review Press, 1971) quanto Roman Rosdolsky (The Making of Marx’s Capital, cit.)apresentamrelatosproveitosos,masde longeacontribuição recentemais interessanteéadeRobertRowthorn (Capitalism,ConflictandInflation,cit.,cap.7),quetratadasquestõessubstantivasaomesmotempoqueapresentaaevoluçãohistóricadopensamentodeMarxemrelaçãoàbaseproporcionadaporRicardo.

[14]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.610.

[15]Ibidem,p.246.Cf.idem,Wages,PriceandProfit(Pequim,ForeignLanguagesPress,1965[ed.bras.:Trabalhoassalariadoecapital&Salário,preçoelucro,SãoPaulo,ExpressãoPopular,2010]),p.72.

[16] Idem,O capital, Livro I, cit., cap. 5. Esse fenômeno tem sido frequentemente observado nos estágios iniciais do desenvolvimentocapitalista em muitos países, mas pode também ser identificado nos países capitalistas avançados – testemunha do forte movimento dasmulherescasadasnaforçadetrabalhonosEstadosUnidosapartirde1950.

[17]Idem,Grundrisse,cit.,cap.3.

[18]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.246.

[19]Idem,Wages,PriceandProfit,cit.,p.72-3.

[20] Idem,Wage Labour andCapital (Pequim, Foreign Languages Press, 1978 [ed. bras.:Trabalho assalariado e capital&Salário,preçoelucro,SãoPaulo,ExpressãoPopular,2010]),p.33.

[21]MichaelLebowitz(“CapitalandtheProductionofNeeds”,cit.)resumeospontosdevistadeMarx.

[22]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.333.

[23]AcondenaçãodeMarxdasproposiçõesdeLaSallepodeserencontradanaCríticadoprogramadeGotha(trad.RubensEnderle,SãoPaulo,Boitempo,2012).RomanRosdolsky(TheMakingofMarx’sCapital,cit.,p.295-7)comentasobreaversãomarxistadas teoriasdosaláriodesubsistência,enquantoWilliamBaumol(“TheTransformationofValues:WhatMarx‘Really’Meant[anInterpretation]”,JournalofEconomicLiterature,1974)ascritica,comoGérardMaarek(AnIntroductiontoKarlMarx’sDasKapital:aStudyinFormalisation,NovaYork, Oxford University Press, 1979), que encontra um vestígio de uma “lei de ferro dos salários” na obra de Marx quando lá não hánenhuma.WilliamBaumol,noentanto,assumeaposiçãomuitocuriosadeque“éumaquestãodesemânticasepreferimospensarnovalordossaláriospartindodovalordaforçadetrabalho,quedefinimoscomoumasubsistênciafisiológicaou,antes,interpretaríamosovalordaforçadetrabalhocomoumaquantidadeextremamenteflexível”.Longedeseruma“questãodesemântica”,achoqueumconceitodevalorflexíveléfundamentalparatodooargumentomarxiano.

[24]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.247.

[25]RobertRowthorn,Capitalism,ConflictandInflation,cit.,p.210.

[26]Idem.

[27]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.608.

[28] Ibidem, cap. 15. Michio Morishima e George Catephores (Value, Exploitation and Growth, cit., cap. 5) tentam introduzir algumargumentoexplícitocomrelaçãoaocrescimentopopulacionalnateoriadeMarx.

[29]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.715.

[30]Ibidem,seçãoVI.

[31]AndreGlyneRobertSutcliffe(BritishCapitalism,WorkersandtheProfitSqueeze,Harmondsworth,Penguin,1972)eRafordBoddye

Page 93: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

JamesCrotty(“ClassConflictandMacro-Policy:thePoliticalBusinessCycle”,ReviewofRadicalPoliticalEconomics,1975)apresentamosdois relatos mais simples e diretos sobre a “redução da margem de lucro” como um fenômeno empírico, enquanto Makoto Itoh (“TheFormationofMarx’sTheoryofCrisis”,ScienceandSociety,1978)apresentaumargumentomaisteórico.Asmelhoresdeváriascríticasdatese são as deDavidYaffe (“TheMarxian Theory of Crisis, Capital and the State”,Economy and Society, 1973) e JohnWeeks (“TheProcessofAccumulationandthe‘Profit-Squeeze’Hypothesis”,ScienceandSociety,1979),sendoqueesteúltimoapresentaumaavaliaçãodura,eemminhaopiniãobastantecorreta,datesecomoumaproposiçãoteórica.

[32]KarlMarx,Wages,PriceandProfit,cit.,p.74.

[33]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.408.

[34]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.696.

[35]Idem,Wages,PriceandProfit,cit.,p.78.

[36] Evidentemente, a questão é que se o equilíbrio do poder entre o capital e o trabalho chegar ao ponto de ameaçar seriamente aacumulação, então deverão ser tomadasmedidas para retificar esse equilíbrio de poder.A intenção doWagnerAct de 1933 nos EstadosUnidosfoi,portanto,melhoraropoderdebarganhadossindicatosnomercadoparaajudararesolveroqueerageralmenteinterpretadocomouma crise de subconsumo. Em contraste, podemos notar a presente tentativa emmuitos países capitalistas avançados de conter o podersindicalemumaépocaqueasdemandassalariais (eopoderpara fazê-laspersistir) sãovistascomoaprincipalcausade inflaçãocrônica.Essesdeslocamentosnoequilíbriodopodernãoocorremautomaticamentenemsemconstanteslutasterríveis.Masoequilíbriomudacomotempo,ehátodasasrazõesparaseacreditarqueosprópriosdeslocamentossãoemparteumarespostaaosproblemasdaacumulação.

[37]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.684.

[38]AquelesquetransformariamMarxemumteóricodoequilíbriogeral,repletodetodasasferramentasneoclássicas,têmmuitadificuldadenesse ponto da análise. Eles invariavelmente acham que não podem determinar a taxa salarial equilibrada e, por isso, são obrigados aconsiderar o padrão de vida ou o salário de equilíbrio como um fator permanente estrutural e exogenamente determinado – ver GérardMaarek,AnIntroduction toKarlMarx’sDasKapital:aStudy inFormalisation, cit., JohnRoemer, “AGeneralEquilibriumApproach toMarxianEconomics”,cit.,eMichioMorishimaeGeorgeCatephores,Value,ExploitationandGrowth,cit.,cap.4.

[39]Esse ponto foi levantado e elaborado emuma forte crítica às teorias de luta de classesmarxistas porMichaelBurawoy (“Toward aMarxist Theory of the Labor Process: Braverman and Beyond”,Politics and Society, 1978). Ele aponta que, se os trabalhadores estãointeressadosapenasnosvaloresdeusoquepodemcontrolar,entãopodemteracessoouatécooperaremsuaprópriaexploraçãonolocaldetrabalho,contantoqueissoresulteemseubenefícionaformadebensmateriais.Ofatodeoscapitalistasestareminteressadosemvaloreseostrabalhadoresemvaloresdeusoproporcionaumabaseparaacooperação,emvezdeumaconfrontaçãonoprocessode trabalho.MichaelBurawoytemumpropósito,masemgeralvaimuitoalémdele.

[40]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.647.

[41]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.122.

[42]EugenvonBöhm-Bawerk,KarlMarxandtheCloseofhisSystem(NovaYork,AugustusM.Kelley,1949).

[43]PaulSamuelson,“WagesandPrices:aModernDissectionofMarxianEconomicModels”,AmericanEconomicReview,1957.

[44]MichioMorishima,Marx’sEconomics,cit.

[45]RobertRowthorn,Capitalism,ConflictandInflation,cit.

[46]AlessandroRoncaglia, “TheReduction ofComplexLabour toSimpleLabour”,Bulletin of theConference of Socialist Economists,1974.

[47]RobertRowthorn,Capitalism,ConflictandInflation,cit.,cap.8.

[48]Tortajada,“ANoteontheReductionofComplexLabourtoSimpleLabour”,CapitalandClass,1977.

[49]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.231.

[50]Ibidem,p.56-7.Cf.tambémResultsoftheImmediateProcessofProduction(Harmondsworth,Penguin,1976),p.1.033.

[51]Idem,Wages,PriceandProfit,cit.,p.76.

[52] Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital (Nova York, Monthly Review Press, 1974 [ed. bras.: Trabalho e o capitalmonopolista,RiodeJaneiro,Zahar,1974]).TemhavidoinúmerascríticasaoargumentodeBraverman,quevamosexaminarnocapítulo4.

[53]MeghnadDesai (Marxian Economics, cit., p. 20) escreve: “A relação valor-trabalho é, assim, aomesmo tempo uma fórmula e umprocesso histórico. Por isso a categoria de trabalho abstrato, não diferenciado, não é uma abstração, mas uma tendência histórica”. Vertambémo estudodeChristopherArthur, “TheConcept of ‘AbstractLabor’”,Bulletin of theConferenceof SocialistEconomists, 1976,sobreoconceitodetrabalhoabstrato.

[54]KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence,cit.,p.192.

[55]Ibidem,p.206.

Page 94: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[56]ArghiriEmmanuel,UnequalExchange:aStudyoftheImperialismofTrade(NovaYork,MonthlyReviewPress,1972);oerrosurgeporquequandosãoderivadas soluçõesadequadasaoproblemada transformação,elasnãomostramnecessariamenteuma transferênciadovalordesetorescombaixacomposiçãodevalorparasetorescomaltacomposição.

[57]Há uma imensa literatura sobre o problema da transformação.WilliamBaumol (“TheTransformation ofValues:WhatMarx ‘Really’Meant (an Interpretation)”, cit.), Meghnad Desai (Marxian Economics, cit.), Laibman (“Values and Prices of Production: the PoliticalEconomy of the Transformation Problem”, Science and Society, 1973-1974), Ira Gerstein (“Production, Circulation and Value: theSignificanceofthe‘TransformationProblem’inMarx’sCritiqueofPoliticalEconomy”,EconomyandSociety,1976),MichaelHowardeJohnKing (The Political Economy of Marx, Londres, Longman, 1975), Michio Morishima (Marx’s Economics, cit.), Paul Samuelson(“Understanding theMarxian Notion of Exploitation: a Summary of the So-Called Transformation Problem BetweenMarxian Values andCompetitivePrices”,cit.)eAnwarShaikh(“AnIntroductiontotheHistoryofCrisisTheories”,emUnionofRadicalPoliticalEconomics,U.S.CapitalisminCrisis,NovaYork,UnionofRadicalPoliticalEconomics,1978)apresentambonsrelatospartindodeváriasperspectivas.Ahistória inicialdodebateestácobertaemumexcelente trabalhodeautoriadeGuillesDostaler (Valeuretprix:histoired’undébat, Paris,Maspero,1978).

[58]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,cap.9.

[59]Ibidem,p.164-5.

[60]EugenvonBöhm-Bawerk,KarlMarxandtheCloseofhisSystem,cit.

[61] Paul Sweezy (The Theory of Capitalist Development, cit.) apresenta um relato da solução de Bortkiewicz e as várias soluçõesmatemáticassãorevistasporDavidLaibman,“ValuesandPricesofProduction:thePoliticalEconomyoftheTransformationProblem”,cit.

[62] Paul Samuelson, “Understanding theMarxian Notion of Exploitation: a Summary of the So-Called Transformation ProblemBetweenMarxianValuesandCompetitivePrices”,cit.

[63]DavidLaibman,“ValuesandPricesofProduction:thePoliticalEconomyoftheTransformationProblem”,cit.

[64]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.177.

[65]Ibidem,p.896.

[66]RonaldMeek,Smith,MarxandAfter,cit.,cap.7.

[67]MichioMorishimaeGeorgeCatephores(Value,ExploitationandGrowth,cit.)apresentamargumentosdetalhadose,emminhaopinião,bastantecorretos,deporqueelesachamqueMarxteriarejeitadotalabordagemhistórica.

[68]MichioMorishima(Marx’sEconomics,cit.),AnwarShaikh(“AnIntroductiontotheHistoryofCrisisTheories”,cit.)eMeghnadDesai(MarxianEconomics,cit.)sãotodosúteisaqui.

[69] William Baumol, “The Transformation of Values: What Marx ‘Really’ Meant (an Interpretation)”, cit.; Michio Morishima,Marx’sEconomics,cit.

[70]WilliamBaumol(“TheTransformationofValues:WhatMarx‘Really’Meant[anInterpretation]”,cit.)parecetercaptadomelhoroqueMarxestavatentandofazercomatransformação,esualeituracuidadosaécompensatória.GuillesDostaler(Marx:lavaleuretl’économiepolitique,Paris,Anthropos,1978)apresentaumrelatosimilaretentareconciliarasquestõesdentrodaestruturadotipodateoriadovalorqueestamosaquiadotando.

[71]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.827-9.

[72]Ibidem,p.167-8.

[73]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.455.

Page 95: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

3.Produçãoeconsumo,demandaeofertaerealizaçãodomais-valor

Anoçãodequedevehaveralgumtipodeequilíbrioentreaproduçãoeoconsumo,entreademandaeaoferta, parece bastante inócua. O principal papel do mercado em um sistema geral de troca demercadorias parece ser equilibrar a demanda e a oferta e, dessemodo, alcançar a relação necessáriaentreaproduçãoeoconsumo.Porém,todaarelaçãoentreademandaeaoferta,entreaproduçãoeoconsumo, temsidoocentrodaatençãodeumabatalha imensaeocasionalmente terrívelnahistóriadaeconomia política.A intensidade do debate é compreensível, pois as apostas são altas.Aqui, não sóconfrontamos frontalmente a interpretação dos ciclos dos negócios e a estabilidade em curto e longoprazodocapitalismo,masentramosnocernedacontrovérsiasobreaviabilidadefundamentaldoprópriomododeproduçãocapitalista.

Na época de Marx, o principal ponto de controvérsia era sobre a proposição de que a ofertanecessariamentecriavaasuaprópriademanda.HaviaváriasversõesmatizadasdaLeideSay,comoelaé emgeral chamada[1].Amais simples delas declara que os rendimentos pagos aos fornecedores dosfatoresdeprodução(terra,mãodeobraecapital)naformadesalários,lucroserendasdevemigualaropreço total dos produtos produzidos a esses fatores. Isso significa que “a renda gerada durante aproduçãodeumdeterminadoprodutoéigualaovalordesseproduto”,equequalqueraumentona“ofertadeprodutosignificaumaumentonarendanecessáriaparacriarumademandaparaesseproduto”,comaconsequênciageraldeque“aofertacriaasuaprópriademanda”.Umcorolárioda leiéquepodenãohaversuperproduçãogeralou“saturaçãogeral”,equeascrisessãooresultadode“choquesexógenos”(guerras, revoluções, disseminados fracassos nas colheitas etc.) ou de desproporcionalidadestemporárias na produção. Poderia haver superprodução dentro de uma indústria ou região geográfica,masissosignificariasubproduçãoemalgumoutrolocal.Astransferênciasdecapitaletrabalhopoderiamequilibrarosistema.OqueaLeideSayimpossibilitavaeraumasaturaçãogeral.

A economia política clássica era dividida com relação à validade daLei de Say.Ricardo, JamesMill,JohnStuartMilleamaioriadosrespeitadoseconomistasdaépocaaceitavamalgumaversãodela.Os “teóricos gerais da saturação”, comoMalthus e Sismondi, poderiam oferecer explicações para ascrises periódicas do capitalismo, mas poderiam não corresponder às reputações intelectuais de seus

Page 96: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

oponentes. Na opinião de Malthus, a principal causa de uma saturação geral era o desejo de umademandaefetivaparaaprodução.Aintensidadedodesejodeconsumo(enissoMalthustinhaaprimeiraversãodateoriadautilidadedoconsumidor)constituíaamolamestraquedirecionavaaacumulação.ÀvisãodeRicardode que esses desejos humanos são ilimitados e essa frugalidade e poupança eramamolamestradaacumulação,Malthusopôsasdevidasbarreirasauminsuficientedesejodeconsumoeaoproblemadeque“apoupança,levadaalémdecertolimite,destruiráoslucros”.

Marx caracterizou a Lei de Say como “verborreia lamentável” e “tagarelice infantil”, e criticouprofundamente Ricardo – a quem ele costumava admirar – por sua “infeliz falácia” em aceitar umaversãodaLeideSay.Ricardo,apontouMarx,“apelouparaabanalsuposiçãodeSaydequeocapitalistaproduzvalordeusodiretamenteparaoconsumo[e]negligenciaofatodequeamercadoriatemdeserconvertidaemdinheiro”[2].Osricardianosseapegamao“conceitodeunidade”entredemandaeofertaeentre produção e consumo “diante da contradição”. Por isso, quando se tratava de crises desuperproduçãogeral,elesselimitavamainsistir“queseaproduçãofosserealizadasegundoosmanuais,jamaisocorreriamcrises”[3].

MarxfoiigualmentevociferanteemsuacondenaçãodeMalthus,cujaanáliseera“infantilmentefraca,trivial e sem significado”, e cuja principal obra sobre economia política era um “esforço cômico deimpotência”[4].OsraiosverbaisqueMarxdisparoucontraMalthustinhammaisavercomaapologiadoúltimo “pelos presentes eventos que estavam ocorrendo na Inglaterra, pelo latifúndio, o ‘Estado e aIgreja’,ospensionistas,oscoletoresdeimpostos,osagiotas,osburocrataseoscriadosdomésticos”doquecomaposiçãodeMalthus sobre a controvérsiada “saturaçãogeral”.Com respeito a estaúltima,MarxdácréditoaMalthuspornãoprocuraresconder“ascontradiçõesdaproduçãoburguesa”,aindaqueeleastivesseexpostopara“provarqueapobrezadaclassetrabalhadoraénecessária”eparademonstrar“aos capitalistas a necessidade de hierarquia bem alimentada na Igreja e no Estado para criar umademandaadequadaparaasmercadoriasqueproduzem”[5].MarxtinhamuitomaissimpatiaporSismondique,segundoele,havia“captadomaisgrosseiramente,masnãoobstantecorretamente”,as“contradiçõesfundamentais”nointeriordeumsistemacapitalista“impelidoporsuasprópriasleisimanentes[…]paradesenvolver as forças produtivas, como se a produção não ocorresse em uma base social restrita”.Consequentemente, Sismondi conseguia enxergar que “as crises não são acidentais […], masessencialmenteexplosões–queocorrememgrandeescalaeemperíodosdefinidos–dascontradiçõesimanentes”,quecriam“asmaisprofundasemaisocultascausasdascrises”[6].Infelizmente,Marxnãodizmuitomais sobreSismondi emTeorias domais-valor, justificando que “uma crítica de suas posiçõespertenceaumapartedaminhaobraquelidacomomovimentorealdocapital (competiçãoecrédito),quesópossotratardepoisdeterterminadoestelivro”[7].

ComoMarxnãoconcluiuseuprojeto,nãoconseguimosencontrarnenhumateoriadacrisecompletaecoerenteemseusescritos;nemsabemosexatamentequaisaspectosdateoriada“saturaçãogeral”estavadispostoaaceitar.SeuscomentárioscríticossobreaLeideSayesuasobservaçõesdispersassobreasrelações entre a produção e o consumo levaram alguns marxistas a interpretar Marx como um“subconsumista”queencaravaodesequilíbrioentreaofertaeaefetivademandaexercidapelamassadoproletariadocomoaprincipalbarreiraàacumulaçãoecomoafontedecrisesperiódicaserecorrentes.EstaéaopiniãodePaulSweezy,porexemplo[8].EopróprioMarxnãodisseque“arazãofundamentalpara todas as crises reais sempre permanece sendo a pobreza e o consumo restrito das massas emoposiçãoà tendênciadaproduçãocapitalistaparadesenvolveras forçasprodutivas, comoseopoder

Page 97: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

absolutodeconsumodasociedadeconstituísseoseulimite”[9]?RosaLuxemburgo[10],poroutro lado, temumaqueixa inteiramentediferente.AanálisedeMarxda

reprodução social no segundo livro d’O capital parecia mostrar que a acumulação do capital podiacontinuarindefinidamenteesemlimites.EissopareciacolocarMarxdeacordocomaversãodeRicardodaLeideSay–quenãoháquantidadedecapitalquenãopossaserempregadaemumpaís,poisoúnicolimiteàdemandaagregadoraéaqueleimpostopelaprópriaprodução.

Marx foi diferentemente representado, tanto por marxistas quanto por não marxistas, como, entreoutrascoisas,umsubconsumista,umteóricododesenvolvimentodoequilíbrioeumteóricodatendênciapara a estagnação secular em longoprazo[11]. Sua evidente simpatia pela visãodeSismondi dequeonível de produto agregado não foi arbitrariamente escolhido, e que há um ponto de equilíbrio para adistribuição da renda agregada e o produto que facilitaria a reprodução e expansão tanto do produtoquanto do rendimento durante períodos de tempo sucessivos, levou alguns economistas burgueses aenxergar Marx como o precursor de Keynes. Keynes, embora apelando para Malthus e ignorandoSismondi,certamentecolocouMarxnaquele“submundofurtivo”deteóricosquemantinhavivaaquestãodademandaefetivadeficiente.OataquedeKeynesàLeideSay–quefoitransmitidoporRicardoeJohnStuartMillaoseconomistasneoclássicos–nãofoimenosvigorosoqueaquelequeMarxlançoumuitosanos antes. Também cobria grande parte do mesmo terreno. E é interessante notar que o economistapolonêsKalecki,queindependentementechegouamuitosdosmesmosresultadosqueKeynesapresentouemsuaTeoriageraldoemprego,dojuroedamoeda,partiufirmementeenraizadonateoriamarxiana.

Entretanto,osrelacionamentosentreateoriamarxianaeakeynesiananãosãofáceisdereconhecer.Apartediferençasóbviasnametodologia,nafilosofiaenapersuasãopolítica,opróprioKeynesestavamuitopreocupadocomosfenômenosdecurtoprazoeaspolíticasdeestabilizaçãoqueogovernopodiaadotar, enquantoMarx estava bemmais preocupado com a dinâmica de longo prazo e com a lógicainternadocapitalismocomoomotordamudançahistórica.Masquandoateoriakeynesianaéprojetadaparalongoprazo,começaaexibirparaleloscomalgunsaspectosdateoriamarxiana,enquantoateoriamarxianadojuro,daformaçãodocapitalfixoedosciclosdenegócios–pormaisfracamentearticuladaque esta seja – pode ser proveitosamente comparada com a teoria keynesiana. Além disso, estamoslidandocomduas teoriasqueestãoevoluindorapidamente,enasquaisháumaboapartede influênciamútua. É tão fácil enxergar Marx através das lentes coloridas keynesianas quanto enxergar a teoriakeynesianacomoum“casoespecial”dateoriamarxiana[12].

Marx também foi tratado como o precursor da teoria do desenvolvimento moderno. Aqui éinteressante seguir a linhagem de descendência. Feldman, economista soviético da década de 1920,tentou elaborar sobre os modelos de reprodução social contidos no segundo livro d’O capital(exatamente aqueles que tanto incomodavam Luxemburgo). Ele surgiu com um “modelo” dedesenvolvimento econômico que antecipou em alguns aspectos as conclusões alcançadas muitos anosdepois por Harrod e Domar. O modelo de desenvolvimento de Harrod-Domar buscava um caminhointermediário entre a ênfase ricardiana na produção e a ênfase keynesiana na demanda.Domar – quereconheceu voluntariamente seu débito a Feldman – enfatizava que o seu propósito era resolver osdilemasdeixadosemabertoporMarxeKeynes,investigando“osefeitosdaacumulaçãodocapitalnosatuaisinvestimentos,taxasdelucroeníveisderendimentoedeemprego”.Eletambémbuscoumostrarque

ali existe uma taxa de crescimento do rendimento, embora vagamente definida, que, se alcançada, não conduzirá a taxas de renda

Page 98: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

reduzidas,escassezdasoportunidadesdeinvestimento,desempregocrônicoecalamidadessimilares[…]eatéondepodemosagorajulgar,essataxadecrescimentonãovaialémdasnossaspossibilidadesfísicas.

Essa possibilidade de crescimento equilibrado – um equilíbrio dinâmico – não significa a suarealizaçãoautomáticanapráticae,assim,tantoHarrodcomoDomarusaramanoçãodeequilíbrio–demaneiramuitoparecidacomofezMarx–comoabaseparaoentendimentodainstabilidadecrônicadocapitalismo[13].

Esboço tudo isso para mostrar que a análise de Marx do relacionamento entre a produção e oconsumo é suscetível a diferentes interpretações e, por isso, ele pode ser visto como o precursor demuitasteoriasburguesascontemporâneasdiferentese,comfrequência,absolutamenteincompatíveis.AsformulaçõesdeMarxgeraramtambéminterpretaçõesdiversasdentrodatradiçãomarxianacomasobrasde Luxemburgo, Bauer, Bukharin, Grossman e Sweezy, representando o que parecem ser cursos bemdiferentes,dependendodequeaspectodosprópriosescritosdeMarxsobreasrelaçõesdeproduçãoeconsumorecebeumaposiçãoprioritária[14].

Então o que precisamenteMarx diz sobre essas questões? Se houvesse uma resposta simples nãohaveria campopara controvérsia.Quanto à razãodeMarxnão terdeixadoclara a suaposição– issopodemosestabelecercomrazoávelcerteza.Ascrisesnomercadomundialemque“todasascontradiçõesdaproduçãoburguesa irrompemcoletivamente” só seriamplenamenteentendidasdepoisdeumestudocompletodacompetição,dosistemadecrédito,doEstadoetc.Porexemplo,MarxadiouaconsideraçãodasposiçõesdeSismondiporquequeriaprimeiroprepararocampoparaateoria–nãoqueriapostularumateoriasobreumabaseconceitualinadequada.Porisso,eleaproximaasrelaçõesentreaproduçãoeo consumo, entre a demanda e a oferta, com a maior circunspecção. E quando essas questões sãoabordadas é em geral em um contextomuito específico e sob suposições bastante restritas.Marx nosdeixoucomvárias análisesparciais,mas semumquadroda totalidade. Isso explicaporque suaobragerou tão grande variedade de teorias com frequência conflitantes. A síntese que ele buscava seriapresumivelmenteapresentadaemseutrabalhosobreomercadomundialeascrises–umaobraqueelenuncachegouapreparar.Evidentemente,nãopodemosdeterminarcomprecisãoalgumacomopoderiatersido essa obra. Mas podemos prosseguir sobre parte do terreno que Marx preparou com suacaracterísticaeficáciaebuscaralgunsindíciosdeparaondeelesedirigia.

I.PRODUÇÃOECONSUMO,DEMANDAEOFERTAEACRÍTICAÀLEIDESAYMarx apresentou, de maneira extremamente abstrata, seus pensamentos sobre as relações entre aprodução e o consumo na célebre “Introdução” aos Grundrisse. Ali ele declara que “produção,distribuição, troca e consumo […] são membros de uma totalidade, diferenças dentro de umaunidade”[15],equeasinteraçõesmútuasentreessesdiferentesmomentossãoextremamentecomplexasemsuaestrutura.Eleécríticodoquechamade“anoçãoóbvia,banal”deque

Aproduçãocriaosobjetoscorrespondentesàsnecessidades;adistribuiçãoosrepartesegundoleissociais;atrocareparteoutravezojárepartido, segundo a necessidade singular; finalmente, no consumo, o produto sai dessemovimento social, devémdiretamente objeto eserviçaldanecessidadesingulareasatisfaznodesfrute.[16]

Page 99: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Tal concepção é, para Marx, extremamente inadequada. Então, o que constitui uma representaçãoadequada?

Emtermosdarelaçãoentreaproduçãoeoconsumo,Marxvêtrêsformasfundamentaisqueestapodeassumir.Emprimeirolugar,oconsumoeaproduçãopodemconstituirumaidentidadeimediata,porqueoatodaproduçãoenvolveoconsumodematérias-primas,instrumentosdetrabalhoeforçadetrabalho.Aproduçãoeoconsumosãoaquiomesmoato,epodemoschamá-lode“consumoprodutivo”.Oconsumotambémemgeralrequerumprocessodeproduçãosimultâneo(issoéparticularmenteverdadeemrelaçãoaos serviçospessoais), e essa “produçãoparao consumo” (comoapreparaçãodo alimento emcasa)também se baseia em uma identidade imediata entre a produção e o consumo. A distinção entre oconsumo produtivo e a produção para o consumo torna-se importante nas relações de produçãocapitalistas,porqueoprimeirosebaseiainteiramentenaesferadaproduçãodemais-valor,enquantoasegunda–namedidaemqueenvolveserviçospessoaisparaaburguesiaouparaaatividadeprodutivadentrodafamíliadostrabalhadores(cozinhar,lavaretc.)–podepermanecerforadaesferadaproduçãodiretademais-valor.

Emsegundolugar,Marxvêaproduçãoeoconsumoemumarelaçãodemediação.Aproduçãocriaomaterial para o consumo e dita também a maneira ou o modo de consumo, ao mesmo tempo queproporcionaomotivoparaoconsumopormeiodacriaçãodenovosdesejosenecessidades.Poroutrolado,oconsumooriginaproduçãonosentidoduplodequeaproduçãosetornatotalmenteredundantesemo consumo, ao passo que o consumo também proporciona o motivo para a produção por meio darepresentaçãodedesejoshumanosidealizadoscomodesejosenecessidadeshumanosespecíficos.

Emterceirolugar,eamaisdifícildecaptardetodas,éamaneiracomoaproduçãoeoconsumoserelacionamafimde“cadaumdelescriarooutroaosecompletarecriarasimesmocomoooutro”.Essaé a percepçãomarxiana da dialética, dos significados relacionais, em ação com uma vingança.Marxpretendeaquicomunicarapercepçãodeumprocessodeproduçãoquefluipara–“completa-seem”–umprocesso de consumo, e vice-versa. A unidade dos dois processos constitui um processo social dereprodução.“Acoisaimportanteaserenfatizadaaquiéapenasque[aproduçãoeoconsumo]aparecemcomomomentosdeumprocessoemqueaproduçãoéoverdadeiropontodepartidae,porconseguinte,também o momento dominante.” Mas para que este não seja mal-entendido como significando que aproduçãodeterminaoconsumo,Marxrapidamenteacrescentaqueoconsumo“comonecessidade”éemsi um momento intrínseco da produção quando colocado dentro do contexto de um processo dereprodução social – “o indivíduoproduzumobjeto e, consumindo-o […] ele é reproduzido comoumindivíduo produtivo”. Em uma sociedade caracterizada pela divisão do trabalho e pela troca e pelorelacionamento social entre o trabalho e o capital, os processos de reprodução devem abraçar areproduçãodaforçadetrabalhoetambémareproduçãodarelaçãosocialentreocapitaleotrabalho.Vamosdesenvolverbrevementeasimplicaçõesdisso.

Essavisão“dialética”darelaçãoentreaproduçãoeoconsumoconstitui,paraMarx,aúnicamaneiraadequadadeconceituaroproblema.Elaenfatizaqueovalordeveserentendidoemtermosdaunidadedeproduçãoeconsumofundamental,emborarompidapelaseparaçãoentreeles.ApartirdessepontodevistapodemosdesvendarossegredosdaofertaedademandaelançarasbasesparaumacríticadaLeideSay.VamosacompanharMarxnessecaminho.

“Nadapodesermaistolo”,trovejaMarxn’Ocapital,

doqueodogmadequeacirculaçãodemercadoriasprovocaumequilíbrionecessáriodevendasecompras,umavezquecadavendaéumacompra,evice-versa.Seissosignificaqueonúmerodasvendasefetivamenterealizadaséomesmodascompras,trata-sedepura

Page 100: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

tautologia.Maselepretendeprovarqueovendedorlevaseuprópriocompradoraomercado.[17]

OprimeiropassodeMarxécolocaraquestãodarelaçãoentreasaquisiçõeseasvendasnocontextodeumsistemadetrocademercadoriasgeneralizada,emoposiçãoasituaçõesdesimplespermuta.Nãoeraadmissível,emsuaopinião,estabelecer“oequilíbriometafísico”da“ofertaedemanda”reduzindooprocessodecirculaçãoàpermutadireta[18].

Acirculaçãodemercadoriasenvolvetransformaçõescontínuasdovalordeusomaterialparaaformadevalorde troca.MascadasequênciaM-D-Mdeveservistaapenascomoumeloem“muitasdessassequências”, constituindo uma “rede infinitamente intrincada dessa série de movimentos queconstantementeterminameconstantementesereiniciamemnúmeroinfinitodediferentespontos”.Assim,cada venda ou compra individual “se situa como uma transação isolada independente, cuja transaçãocomplementar[…]nãonecessitaserimediatamenteacompanhada,maspodeserdelaseparadatemporaleespacialmente”[19].Essaseparaçãodasvendaseaquisiçõesnoespaçoenotempocriaapossibilidade–eapenasapossibilidade–decrises[20].Eéodinheiroquepossibilitaessaseparação,poisumapessoaque acabou de vender não tem a obrigação imediata de comprar, podendo, em vez disso, guardar odinheiro.Marx sugere, emuma concepção de crisemuito simples durante a criação de uma refutaçãodiretaàLeideSay,que

[A compra e a venda] se separam e podem se tornar independentes uma da outra. Em um dado momento, a oferta de todas asmercadoriaspodesermaiorqueademandaportodasasmercadorias,poisademandapelamercadoriageral,odinheiro[…]émaiorqueademandaportodasasmercadoriasespecíficas[…].Searelaçãoentreademandaeaofertaéconsideradaemumsentidomaisamploemaisconcreto,entãoelacompreendetambémarelaçãodeproduçãoeconsumo.Aqui,maisumavez,aunidadedessasduasfases,queexisteeobrigatoriamenteseaplicaduranteacrise,deveseropostaàseparaçãoeaoantagonismodessasduasfases.[21]

Isso anuncia um importante tema na análise deMarx. “A crise”, declara ele, “nadamais é que aaplicaçãoobrigatóriadaunidadedasfasesdoprocessodeproduçãoquesetornaramindependentesumada outra” ou, como ele prefere colocar n’O capital: “De tempos em tempos, o conflito de açõesantagonistas encontra uma saída nas crises.As crises são sempre soluçõesmomentâneas e poderosasparaascontradiçõesexistentes.Sãoerupçõesviolentasquedurantealgumtemporestauramoequilíbrioperturbado”[22].

Marx frequentemente faz uso do conceito de equilíbrio em sua obra. Devemos especificar ainterpretaçãoaserdadaaela;docontrárioestamoscorrendooriscodeinterpretarmalasuaanálise.Aoconsideraraofertaeademanda,porexemplo,Marxcomentaque“quandoduasforçasoperamigualmenteemdireçõesopostas,elasequilibramumaàoutra,nãoexerceminfluênciaexterna,enenhumfenômenoque ocorra nessas circunstâncias deve ser explicado por outras causas além do efeito dessas duasforças”.Por isso, “se aoferta e ademandaequilibramumaàoutra, elasdeixamdeexplicarqualquercoisa”, e, em consequência, “as verdadeiras leis internas da produção capitalista não podem serexplicadas pela interação da oferta e da demanda”[23]. O equilíbrio entre a oferta e a demanda éalcançadoapenasmedianteumareaçãocontraaconstanteperturbaçãodoequilíbrio.

Como prova dessa última proposição, Marx cita os eternos ajustes alcançados por meio dacompetição,oque inquestionavelmentemostra“queháalgoaajustare,por isso,aharmoniaésempreapenasumresultadodomovimentoqueneutralizaadesarmoniaexistente”.Alémdisso,“osnecessáriosequilíbrioeinterdependênciadasváriasesferasdaprodução”nãopodemseralcançadosexceto“atravésdaconstanteneutralizaçãodeumadesarmoniaconstante”[24].

Page 101: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Tudoissosoaeébastanteconvencional.OquediferenciaMarxdaeconomiapolíticaburguesa(tantoantesquantoapartirdela)éaênfasequeelecolocananecessidadedesaídasdoequilíbrioeopapelfundamentaldascrisesnarestauraçãodesseequilíbrio.Osantagonismos incorporadosdentrodomododeproduçãocapitalistasãotaisqueosistemaestásendoconstantementeobrigadoasedistanciardeumestado de equilíbrio. No curso normal dos acontecimentos, insiste Marx, um equilíbrio só pode seralcançadoporacidente[25].Assim,eleinverteaproposiçãoricardianadequeodesequilíbrioéacidentale procura identificar as forças internas ao capitalismo que geramdesequilíbrio.Mas, para fazer isso,Marxtemdegerarconceitosdeequilíbrioadequadosparataltarefa.Eéexatamenteporessarazãoqueele achou necessário ir além da aparência superficial da demanda e da oferta e até mesmo dascaracterizações da produção e do consumo para articular uma teoria do valor apropriada ao seupropósito.Sódepoisqueateoriadovalorfizeroseutrabalhopodemosvoltaràsquestõesdaofertaedademandaedaproduçãoedoconsumoparaexplorá-lasemdetalhes.Enquantoisso,ocentrodaatençãose desloca para aquele da produção e da realização do mais-valor como capital – pois, afinal, érealmentenissoqueseresumeomododeproduçãocapitalista.

II.APRODUÇÃOEAREALIZAÇÃODOMAIS-VALORArelaçãoentreaproduçãoeoconsumofoiatéagoraconsideradaemtermosdosvaloresdeusoedospreços.Vamos agora examiná-la do ponto de vista dos valores e incorporar um entendimento dela nocontextodaproduçãodemais-valor.

Lembre-se,antesdetudo,queocapitalédefinidocomoumprocesso–comoumvalor“emprocesso”quepassaporumaexpansãocontínuamedianteaproduçãodemais-valor.Considere,agora,aestruturadoprocessodecirculaçãocomofoimostradonaFigura2.1.Emsuaformamaissimples,econsideradoapartir do ponto de vista do capitalista individual, o capital circula através de três fases básicas. Naprimeira,ocapitalistaatuacomoumcompradornosmercadosdemercadorias(incluindoomercadoparaaforçadetrabalho).Nasegunda,ocapitalistaatuacomoumorganizadordaprodução;enaterceira,eleaparecenomercadocomoumvendedor.Ovalorassumeumaaparênciamaterialdiferenteemcadafase:naprimeira,aparececomodinheiro,nasegundacomoumprocessodetrabalhoe,naterceira,comoumamercadoriamaterial.Acirculaçãodocapitalpressupõequeastranslaçõescontínuaspossamocorrerdeuma faseparaoutra semqualquerperdadevalor.As translaçõesnão são automáticas, e asdiferentesfasessãoseparadastantonotempocomonoespaço.Emconsequência,“surgemrelaçõesdecirculaçãoetambém de produção que são muitas minas para explodir” o funcionamento tranquilo da sociedadeburguesa:

O ciclo do capital só se desenrola normalmente enquanto suas distintas fases se sucedem sem interrupção. Se o capital estaciona nasegundafaseD-M,ocapitalmonetárioseenrijececomotesouro;senafasedaprodução,tem-se,deumlado,queosmeiosdeproduçãorestamdesprovidosdequalquerfunção,e,deoutro,queaforçadetrabalhopermaneceociosa;senaúltimafaseM’-D’,asmercadoriasnãovendidaseacumuladasbloqueiamofluxodacirculação.[26]

Noentanto,asconfusõessurgemporqueMarxconfereumsignificadoduploàpalavra“circulação”.Como“circulaçãodocapital”pensamosnocapitalsemovendoportodasassuasfases,umadasquaiséaesfera da circulação – o tempo em que umamercadoria acabada está nomercado a caminho de sertrocada.A circulação do capital pode ser concebida da seguintemaneira: omais-valor se origina na

Page 102: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produçãoeérealizadoatravésdacirculação.Emboraomomentofundamentalnoprocessopossaseraprodução,ocapital“quenãopassanotestedacirculação”nãoémaiscapital.

Marxdefinea“realizaçãodocapital”emtermosdomovimentobem-sucedidodocapitalatravésdecada uma de suas fases[27]. O capital monetário deve ser realizado por meio da produção; o capitalprodutivo deve ser realizado na forma de mercadoria; e as mercadorias devem ser realizadas comodinheiro.Essarealizaçãonãoéconseguidaautomaticamenteporqueasfasesdecirculaçãodocapitalsãoseparadasnotempoenoespaço.

O capital não realizado é diferentemente denominado de “desvalorizado”, “subestimado”,“depreciado” ou até mesmo “destruído”. Marx – ou seus tradutores – parece usar esses termos demaneiraintercambiáveleinconsistente.Vourestringirmeusprópriosusosdelesdaseguintemaneira.A“destruição do capital” refere-se à perda física dos valores de uso. Vou restringir o uso da ideia de“depreciaçãodocapital”,emgrandepartedeacordocomousomoderno,para lidarcomacambiantevalorização monetária dos bens (de onde se conclui que a apreciação é tão importante quanto adepreciação). E vou reservar o termo “desvalorização” para situações em que o tempo de trabalhosocialmente necessário incorporado na forma material é perdido sem, necessariamente, qualquerdestruiçãodaprópriaformamaterial.

Essestodossãoconceitosmuitoimportantesevãodesempenharumpapelfundamentalnaanálisequese segue. O próprio Marx adota algumas expressões confusas – como “depreciação dos valores” e“depreciação moral”, e até estende essas expressões para falar sobre a “depreciação da força detrabalho” e tambémda “depreciação do trabalhador” comopessoa.O jogo de palavras é interessanteporqueconcentraaatençãonosrelacionamentos.Maspodetambémserconfusoseosentidodaquiloqueestásendodescritonãoformantidoclaramenteàvista.

Restringindoomeuprópriousodessestermosparaqueadestruiçãoserelacioneaousodosvalores,à depreciação aos valores de troca e à desvalorização aos valores, espero esclarecer alguns dossignificadosdeMarx.Entretanto,esseesclarecimentoseráadquiridoaumaltocustosenãoconseguirmosreconhecer que os valores de uso, os valores de troca e os valores são expressivos de uma unidadefundamentalquerequerqueadestruição,adepreciaçãoeadesvalorizaçãodocapitalsejamvistascomoparteeparcelaumadaoutra.

Todas as crises são crises de realização e resultam na desvalorização do capital. Um exame dacirculaçãodocapital ede suaspossíveisdesagregações sugerequeessadesvalorizaçãopodeassumirdiferentes formas tangíveis: (1) capitalmonetário ocioso; (2) capacidade produtiva não utilizada; (3)força de trabalho desempregada ou subempregada; e (4) um excedente de mercadorias (estoquesexcessivos).

NosGrundrisse[28],Marxapresentagrandepartedessaideiageral.Maisumavez,paraevitarmal-entendidos, devemos tomarmedidas para esclarecer seu argumento. Um erro comum, por exemplo, éencarar uma crise de “realização” como aquela forma particular de crise que surge do fracasso emencontrar um comprador para as mercadorias. A realização e a venda de mercadorias seriam entãotratadas como a mesma coisa. MasMarx declara que as barreiras à realização existem tanto dentroquantoentrecadaumadasfasesdacirculação.Vamosconsiderarasdiferentesformasqueessasbarreirasàcirculaçãodocapitalassumem.

1.Aestruturadetempoeoscustosdarealização

NosGrundrisse,Marx apresentaumargumentoque àprimeiravista pareceum tantopeculiar.Ele

Page 103: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

sugereque,quandoocapitalassumeumadeterminadaforma–comoumprocessodeprodução,comoumproduto esperando para ser vendido, como uma mercadoria circulando nas mãos dos capitalistascomerciantes, como dinheiro esperando para ser transferido ou usado – então esse capital está“potencialmentedesvalorizado”[29].Ocapitalque fica“emrepouso”emqualquerumdessesestadoséchamadoalternadamentede“negado”,“inaproveitado”,“dormente”ou“fixo”.Porexemplo,“Enquantopermanece fixado em sua figuradeproduto acabado, o capital nãopode atuar comocapital, é capitalnegado”[30].Essa“desvalorizaçãopotencial”ésuperadaou“suspensa”assimqueocapitalreassumeseumovimento[31].Avantagemdeenxergaradesvalorizaçãocomoumnecessáriomomentodo“processoderealização”[32] é que isso nos permite enxergar imediatamente a possibilidade de uma desvalorizaçãogeraldocapital–umacrise–enosafastadasidentidadesassumidassobaLeideSay.Qualquerfracassoemmantercertavelocidadedecirculaçãodocapitalatravésdasváriasfasesdeproduçãoerealizaçãovaigerarumacrise.Assim,aestruturadetempodaproduçãoedarealizaçãotorna-seumaconsideraçãofundamental.Vãoresultarcrisesseosestoquesaumentarem,seodinheiroficarociosopormaistempodoque é estritamente necessário, semais estoques foremmantidos por umperíodomais longo durante aprodução etc. Por exemplo, “uma crise não ocorre apenas porque amercadoria não é vendável,masporquenãoévendáveldentrodeumdeterminadoperíododetempo”[33].

Algomaisestá tambémenvolvido.Emcertosentido,o tempoabsorvidoemcadafaseéumaperdaparaocapital,senãoporoutromotivo,porque“transcorreumtempoinaproveitado”[34]:

Enquanto[ocapital]persistenoprocessodeprodução,nãoécapazdecircular;e[é]potencialmentedesvalorizado.Enquantopersistenacirculação, não é capaz de produzir […]. Enquanto não pode ser lançado no mercado, é fixado como produto; enquanto tem depermanecernomercado,éfixadocomomercadoria.Enquantonãopodesertrocadopelascondiçõesdeprodução,éfixadocomodinheiro.[35]

Porisso,háumaconsiderávelpressãoparaaceleraravelocidadedacirculaçãodocapital,poisfazê-lo significaaumentar tantoa somadosvaloresproduzidosquantoa taxade lucro.Asbarreirasparaarealização sãominimizadasquando “apassagemdo capital deuma faseparaoutra”ocorre “àmesmavelocidade com a qual gira o conceito”[36]. O tempo de circulação do capital é, em si, umamedidafundamentalquetambémindicaalgumasbarreirasàacumulação.Comoumataxaaceleradadacirculaçãodocapitalreduzotempoduranteoqualasoportunidadespassaminaproveitadas,umareduçãonotempodecirculaçãoliberarecursosparamaisacumulação.

Algunscustossãotambémanexadosàcirculaçãodocapital.Asmercadoriastêmdesermovidasdoseu ponto de produção para o seu destino final para o consumo.Marx trata essesmovimentos físicoscomoparte doprocessode produçãomaterial (ver capítulo 12) e, portanto, comocriadores de valor.Masoutrosaspectosdacirculaçãosãotratadoscomoimprodutivosdevalor,poisserãoencaradoscomocustos de transação que são pagos como deduções domais-valor, não importa se esses custos foramgeradospeloprodutorouporalgumagenteespecializado(umcomerciante,umvarejista,umbanqueiroetc.).Os custos de contabilidade, armazenagem, comercialização, informação, coleta, propaganda etc.,sãotodosencaradoscomocustosdecirculaçãonecessários.Omesmoseaplicaaoscustosanexadosàcirculaçãodedinheiro–instituiçõesbancárias,mecanismodepagamentoetc.Marxoschamade“fauxfrais” (custosmortos) de circulação, visto que são inevitáveis e devem ser incorridos para o capitalcircularnaformadedinheiroemercadorias.DevemosincluiraquialgumasfunçõesbásicasdoEstado,namedida em que estas são necessárias para preservar emelhorar osmecanismos de circulação.Oscustosmortosreduzemaacumulaçãoporquedevemserpagospelomais-valorproduzido.Aseconomias

Page 104: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

nessescustos(incluindoaquelasquederivamdaexploraçãodaforçadetrabalho)têmoefeitodeliberarocapitalparaacumulaçãoesão,porisso,meiosimportantesparaaumentaraacumulação.

As perdas imputadas estabelecidas pelo tempo absorvido, assim como os custos reais que estãoligados à circulação, compreendem todo o conjunto de barreiras à realização do capital. Emconsequênciadisso,a tendênciaparaacumular tambémdevesermanifestadacomoumatendênciaparareduzir esses custos de circulação – do transporte, dos custos da transação, dos custos dacomercializaçãoetc.Aremoçãooureduçãodessasbarreiraséumaparteimportantedamissãohistóricada burguesia, como é a acumulação pela acumulação. E por isso teremos frequentes ocasiões parareviveressaideia,tantoemumcontextoteóricocomoemseucontextohistórico.

2.Osproblemasestruturaisdarealização

Emcadamomentoou fasenacirculaçãodocapital encontramos tiposespecíficosdeproblemas, evale a pena examinar cada umdestes sequencialmente enquanto consideramos a transição do dinheiropara meios de produção e força de trabalho, e a translação desses “fatores de produção” para umaatividade de trabalho que produza uma mercadoria que deverá então encontrar um comprador nomercado.

(a)Seoscapitalistasnãoconseguiremencontrarnomercadoasquantidadesequalidadescertasdematérias-primas,meiosdeproduçãoouforçadetrabalhoaumpreçoapropriadoàssuasexigênciasdeprodução individual, então seu dinheiro não é realizável como capital. O dinheiro cria umaçambarcamento.Essabarreirapareceumpoucomenosassustadoraporqueodinheiroéaformageraldevalorepodeserconvertidoemtodasasoutrasmercadoriassemqualquerdificuldade.Ocapitalistatemamplavariedadedeopções.Essasopçõessãoestreitadasseocapitalistaempregagrandesquantidadesdecapitalfixoquetêmumavidarelativamentelonga.Pararealizarovalordocapitalfixo,ocapitalistaéobrigado amanter um tipo específicodeprocessode trabalho comexigências específicas de insumosduranteváriosanos.Entretanto,quandovemosissoagregado,nãoconseguimossertãoconfiantesdequetodososcapitalistasterãosuasnecessidadestotaissatisfeitasparaosinsumosdematéria-primaeparaaforça de trabalho.Além disso, com uma parte do excedente sendo reinvestido, esses capitalistas queproduzemmeiosdeproduçãoparaoutrasindústriasdevemexpandirsuaproduçãoprevendoexigênciasfuturas que podem ou não sematerializar.Uma expansão agregada na demanda por força de trabalhotambémcria uma série de problemas.Alguns dos problemas estruturais que surgemno caso agregadoserão examinados posteriormente.O importante aqui é reconhecer que as dificuldades e as incertezassurgematémesmonessaprimeirafase,emqueodinheirotemdeserconvertidoeminsumosdematéria-primaeforçadetrabalho.

(b)Dentrodosconfinsdoprocessodeprodução,oscapitalistasdevemdesfrutardessarelaçãocomaforçadetrabalhoedevempossuiratecnologiaquepermitequeovalordasmercadoriasadquiridassejapreservadoeomais-valoradicionado.Marxobserva,umtantoironicamente,quearealizaçãodocapitalna produção depende da “desvalorização” do trabalhador[37]. A afirmação é bastante pertinente. Oscapitalistasdevemmoldaroprocessodetrabalhoparaseadaptarpelomenosàmédiasocialeimporumritmoeintensidadedetrabalhoaotrabalhadoradequadosàextraçãodomais-valor.Elesdevemreagiràincessanteguerradeguerrilhaqueacompanhaalutadeclassesnolocaldetrabalhoeimpor,sepuderem,umcontroledespóticosobreoprocessode trabalho.Senãoconseguirem, issosignificaráqueomais-valornãoseráproduzidoequeocapitalmonetárioqueestavainicialmentenobolsodocapitalistanãofoirealizadocomocapital.Eacompetiçãoimpõeoutraobrigaçãoaocapitalista:acompanharoprocesso

Page 105: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

geraldamudançatecnológica.Areorganizaçãodoprocessodetrabalhoconduza“revoluçõesnovalor”:otempodetrabalhosocialmentenecessárioéreduzidoeovalordoprodutodaunidadecai.Ocapitalistaque não consegue acompanhar o processo experimenta uma desvalorização do capital – o capital éperdido porque as condições de trabalho específicas concretas e individuais não correspondem àscondições para incorporar a mão de obra abstrata. Há, evidentemente, muitas barreiras a seremsuperadasparaocapitalmonetárioserrealizadonaprodução.

(c) Como vendedores, os capitalistas se veem na posse de mercadorias materiais que devemencontrarusuáriosdispostosaabrirmãodeumvalordetrocaequivalenteaovalorincorporadoemcadamercadoria.A conversão de valores de usomateriais específicos na forma geral de valor de troca –dinheiro–parecemaisdifícilemprincípiodoqueaconversãodedinheiroemmercadorias.Poressarazão,Marxcolocaumaênfaseparticularnisso.Encontramosaquiabarreiradoconsumo.Essabarreiratemumaspectodual.Antesdetudo,amercadoriadevepreencherumanecessidadesocial;serumvalordeusosocial.Hálimitesclarosparatiposespecíficosdevaloresdeuso–quandocadaumnasociedadecapitalistaforumorgulhosopossuidordeumabicicleta,porexemplo,omercadoparabicicletasestaráestritamente limitado às exigências de reposição. Diante de uma saturação de mercado desse tipo, ocapitaléobrigadoaestimularnovosdesejosenecessidadessociaispormeiodeváriosestratagemas.Aevoluçãocontínuadosdesejosenecessidadessociaisé,porisso,vistacomoumaspectoimportantedahistória capitalista – um aspecto que expressa uma contradição básica. NoManuscritos econômico-filosóficos,Marxdeclaraqueocapitalismo“produz,porumlado,orefinamentodascarênciasedosseusmeios;poroutro,adegradaçãobrutal,acompletasimplicidaderudeabstratadacarência”[38].EhámuitacoisanosGrundrisseen’Ocapitalparavalidaressadisputa.

Mas do ponto de vista dos capitalistas que procuram converter suas mercadorias em dinheiro, oproblemanãoésimplesmentesatisfazerosdesejosenecessidadessociais,masencontrarclientescomdinheiro suficiente para comprar asmercadorias que eles querem.A demanda efetiva do produto – anecessidade apoiada pela capacidade de pagar – é a única medida relevante[39]. Se não existir umademandaefetivapormercadorias,amãodeobraincorporadanamercadoriaéumamãodeobrainútileocapitalinvestidoemsuaproduçãoéperdido,desvalorizado.

Por isso, énessepontoda circulaçãodocapital queos capitalistas estãomaisvulneráveis.Comodetentoresdodinheiroousenhoresdoprocessodeprodução,oscapitalistasexercemumcontroledireto.Masquando amercadoria temde ser trocada, o destino dos capitalistas dependedas ações de outraspessoas– trabalhadores,outroscapitalistas,consumidoresnãoprodutivosetc.–, todaspossuidorasdedinheiroequedevemgastá-lodedeterminadasmaneirasparaqueovalorincorporadonasmercadoriassejarealizado.

Entretanto, quando encaramos os processos agregados da circulação do capital ficamosimediatamente impressionados diante da visão de um importante problema. Se o modo de produçãocapitalistaécaracterizadopelaexpansãoperpétuadovalormedianteaproduçãodemais-valor,deondevemademandaefetivaagregadapararealizaressevaloremexpansãopormeiodatroca?

III.OPROBLEMADADEMANDAEFETIVAEACONTRADIÇÃOENTREASRELAÇÕESDEDISTRIBUIÇÃOEASCONDIÇÕESDEREALIZAÇÃODOMAIS-VALOR

Page 106: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

A“demandasocial”, istoé,ofatorqueregulaoprincípiodademanda,éessencialmentesujeitoaorelacionamentomútuodasdiferentesclasseseàsuarespectivaposiçãoeconômicae,portanto,emespecial,emprimeirolugaràproporçãodemais-valortotalemrelaçãoaossaláriose,emsegundolugar,àrelaçãodasváriaspartesemqueomais-valorédividido(lucro,juro,rendadaterra,taxasetc.).Assim,issomais uma vez demonstra que nada pode ser explicado pela relação da oferta à demanda antes de determinar a base sobre a qual seassentaessarelação.[40]

UmainvestigaçãodademandasocialefetivaconduziráMarxàseguinteconclusão:

As condições de exploração direta, e aquelas de realizá-la, não são idênticas. Elas divergem não só em tempo e local, mas tambémlogicamente.Asprimeirassãoapenaslimitadaspelopoderprodutivodasociedade,asúltimaspelarelaçãoproporcionaldosváriosramosda produção e do poder de consumo da sociedade.Mas esta últimamencionada é […] determinada […] pelo poder do consumidorbaseadonascondiçõesantagônicasdadistribuição.[41]

Há,então,umacontradiçãobásicaentreosarranjosdistributivoscaracterísticosdocapitalismoeacriação de uma demanda efetiva suficiente para realizar o valor dasmercadorias pormeio da troca.VamosacompanharMarxrumoaessaconclusão.

Considere, primeiro, a demanda exercida pela classe trabalhadora. Esta nunca pode ser uma“demanda adequada” em relação à acumulação do capital sustentado, porque os “trabalhadores nuncapodem comprar mais que uma parte do valor do produto social igual [ao] valor do capital variáveladiantado”[42].Mas issonãosignificaqueademandade trabalhadoresparaosbens salariaisnãosejaimportanteouquenãojustifiquealgumescrutíniocuidadoso.

Consideradodopontodevistadarelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalho,oconsumoindividualdo trabalhador se transforma em “mero incidente do processo da produção”, pois ele serve parareproduzir a força de trabalho requerida para a produção de mais-valor[43]. Ao mesmo tempo, ostrabalhadores se encontram em uma relação de “loja própria” com a produção de mercadoriascapitalistas.

O capital paga salário mensalmente, p. ex.; o trabalhador leva esse salário para o merceeiro etc.; este último o deposita direta ouindiretamentecomobanqueiro; e,na semana seguinte,o fabricanteo tomaoutravezdobanqueiropara reparti-lonovamenteentreosmesmostrabalhadoresetc.,eassimpordiante.[44]

Areproduçãodaclasse trabalhadora eopoderdoconsumidorquea acompanha ficamcapturadosdentro da circulação do capital. Os capitalistas precisam coletivamente produzir bens salariaissuficientes e apresentar capital variável suficiente na forma de salários para garantir que a classetrabalhadora possua a demanda efetiva requerida para sua própria reprodução. Mas os capitalistasindividuaisestãosobpressãocompetitivacontínuaparacortarossaláriosereduzirovalordaforçadetrabalho, enquanto aqueles que produzem bens salariais encaram os trabalhadores como uma fonte dedemandaefetiva.Assim,Marxcomenta:

Contradiçãonomododeproduçãocapitalista:ostrabalhadores,comocompradoresdemercadorias,sãoimportantesparaomercado.Mascomovendedoresdesuamercadoria–aforçadetrabalho–,asociedadecapitalistatematendênciadereduzi-losaomínimodopreço.Contradiçãoadicional:[…]aspotênciasprodutivasjamaispodemserempregadasaopontodeque,comisso,umvalormaiorpossanãosóserproduzido,comorealizado;masavendadasmercadorias,arealizaçãododinheiro-mercadoriae,assim,tambémadomais-valor,estálimitadanãopelasnecessidadesdeconsumodasociedadeemgeral,maspelasnecessidadesdeconsumodeumasociedadecujagrandemaioriaésemprepobreetemdepermanecerpobre.[45]

Essacontradiçãonãopodesersuperadaporaumentosoualteraçõessalariaisnovalorda forçade

Page 107: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

trabalho.Mudançasdessetipotambémresultamnaconversãodeluxosemnecessidades–queilustramcomo “os desejos sociais sãomuito elásticos e cambiantes” –; quando “restaura-se o equilíbrio, e aconclusão de todo o processo é que o capital social e, por conseguinte, também o capitalmonetárioreparte-se numa proporçãomodificada entre a produção demeios necessários de subsistência e a deartigosdeluxo”[46].

Emboraocapitalvariável,queconstituiademandaefetivados trabalhadores, tenhasuaorigemnocapital, os capitalistas que produzem bens salariais são potencialmente vulneráveis aos hábitos doconsumidor da classe trabalhadora. Por isso, “o capitalista, assim como a sua imprensa, fica comfrequência insatisfeitocomamaneiraemque[o trabalhador]gasta [oseu]dinheiro”,e todoesforçoéentão despendido (sob o disfarce de filantropia e cultura burguesas) para “aumentar a condição dotrabalhador através de umamelhoria dos seus poderesmentais emorais e para transformá-lo em umconsumidorracional”[47].“Racional”édefinido,éclaro,emrelaçãoàacumulaçãodocapitalenãotemnecessariamente nada a ver com os desejos e necessidades humanos fundamentais. Então, mesmo ostrabalhadores, particularmente nas sociedades capitalistas avançadas, estão sujeitos às bajulações dospublicitários, enquanto o governo também entra – em geral em nome do bem-estar social – paracoletivizaroconsumodetalmodoquelheproporcioneapossibilidadedemanejá-lo(mediantepolíticasfiscais egastosdogoverno)demaneira consistente coma acumulação.Entretanto, tudo issonãonegaaquele outro lado da “racionalidade” capitalista que eternamente pressiona por salários reais maisbaixos.Oquenoslevadevoltaàcontradiçãofundamentalqueimpedeademandadeostrabalhadoressetornarumasoluçãoparaoefetivoproblemadademanda.

Oscapitalistasgeramumademandaefetivaparaoprodutocomocompradoresdematérias-primas,produtos parcialmente acabados e vários meios de produção (que incluem maquinário, prédios einfraestruturasfísicasrequeridasparaaprodução).Ovalortotaldocapitalconstanteadquiridoforneceademanda total para o produto das indústrias que produzem essasmercadorias. Como acontece com ocapitalvariável,essademandaefetivapelocapitalconstanteseoriginacomocapitalista.Aexpansãodaproduçãorequeroaumentodegastosligadosaocapitalconstanteeàexpansãodademandaefetiva.Namedida em que a mudança tecnológica obriga substituições entre a variável e insumos de capitalconstante (a produção se torna mais constante – capital-intensiva), então testemunharemos umdeslocamentoparaaproduçãoeoconsumodemeiosdeprodução.

Entretanto,devemosnotarqueademandaagregadatotalemqualquerpontonotempoéigualac+v,enquantoovalordoprodutototaléc+v+m.Emcondiçõesdeequilíbrio,issoaindanosdeixacomoproblemadenãosaberdeondevemademandadem, omais-valorproduzido,masnão realizadopormeiodatroca.

Antesdetudo,podemosbuscarumarespostaparaissotendoemvistaoconsumodeluxosporparteda burguesia.O que deve acontecer para a demanda e a oferta se equilibrarem é a classe capitalistacolocar dinheiro em circulação para a compra demercadorias exatamente equivalentes aomais-valorproduzido:

Aindaqueàprimeiravistapossaparecerparadoxal,éaprópriaclassecapitalistaquecolocaemcirculaçãoodinheiroqueserveparaarealização do mais-valor incorporado nas mercadorias. Mas, note bem, ela não o coloca em circulação como dinheiro antecipado e,portanto,nãocomocapital.Elaogastacomoummeiodecompraparaseuconsumoindividual.[48]

Issonosindicaimediatamentequeumadascondiçõesnecessáriassustentadaparaaacumulaçãoéque“oconsumodetodaaclassecapitalistaedeseusservidoresacompanheaqueledaclassetrabalhadora”,

Page 108: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

equeoscapitalistasdevemgastarumapartedeseumais-valorcomorendaparaacompradebensdeconsumo[49].Paraissoacontecerénecessária“umasuficienteprodigalidadedaclassecapitalista”[50]ouumadesagregaçãodaclassecapitalistaemcapitalistasqueeconomizamede“classesconsumidoras”que“não só constituemuma saída gigantesca para os produtos lançados nomercado,mas que não lançamnenhuma mercadoria no mercado”[51]. Essas “classes consumidoras” representam “o consumo peloconsumo” e existem como uma espécie de imagem refletida da “acumulação pela acumulação” queprevaleceentreoscapitalistasprodutivos.

Malthus, é claro, viu a necessidadede consumoconspícuoporparte daburguesia e apostounissocomoumacondiçãonecessáriaesuficienteparaaacumulaçãodecapital.Marxaceitaque,paraevitarascrises,oconsumoburguêsdeveacompanharaacumulação,masdesdenhaanoçãodeMalthusdequetalclassedeconsumidores improdutivos–oucompradores–podeatuarcomoodeusexmachina para aacumulação – fornecendo tanto o estímulo para o ganho quanto os meios para realizar o mais-valoratravésdoconsumo.Oscapitalistasindividuaisemgeraltêm,éclaro,acapacidadedesobrevivermuitobemeviverdasuariquezaenquantoesperamqueomais-valorretorneaeles.Dessepontodevista,naverdade,parecequeoscapitalistaslançamodinheiroemcirculaçãoparaadquirirbensdeconsumoque,no fimdoperíododeprodução, serão recompensadospelaproduçãodemais-valor.Porém,há limitesclaros para isso como um processo social geral. Em primeiro lugar, temos de considerar de ondeexatamentevêmessesrecursosfinanceirossenãofordomais-valor.Oquenoscolocaàbeiradeumatautologia do seguinte tipo: os recursos financeiros para realizar o mais-valor vêm da produção doprópriomais-valor.Vamosfinalmenteterdemergulharnessatautologiaedescobriroqueestáportrásdela.

Jápodemosver,entretanto,queascondiçõesdedistribuiçãoprevalecentesnasociedadecapitalistaerguem barreiras à realização por meio da troca que são muito mais restritivas do que aquelas queexistemnaesferadaprópriaprodução.SegundoMarx,“édanaturezadaproduçãocapitalistaproduzirsem considerar os limites do mercado”[52]. “Como o mercado e a produção são dois fatoresindependentes”, continua ele, “a expansão de um não corresponde à expansão do outro”. Asuperprodução,umasaturaçãodemercadorias,

é especificamente condicionada pela lei geral da produção de capital: produzir no limite estabelecido pelas forças produtivas […] semqualquer consideração pelos atuais limites do mercado ou pelas necessidades apoiadas pela capacidade de pagar; e isso é realizadomedianteaexpansãocontínuadareproduçãoedaacumulação[…]emboraporoutroladoamassadosprodutores(aclassetrabalhadora)permaneçaligadaaonívelmédiodasnecessidades,edevapermanecerligadaaeladependendodanaturezadaproduçãocapitalista.[53]

Umapotencialsaídadessadificuldadeéexpandirasrelaçõescomerciaiscomsociedadesesetoresnãocapitalistasoupré-capitalistas.Esta seria a soluçãodeLuxemburgoparaoproblemadademandaefetiva,ealevouaestabelecerumafirmeconexãoentreaacumulaçãodocapitaleaexpansãogeográficadocapitalismomedianteaspolíticascoloniaiseimperialistas.Marx,namaiorparted’Ocapital,excluideconsideraçãoasquestõesdecomércioexterioreassume“queaproduçãocapitalistaseconsolidouemtodaparteeapoderou-sedetodososramosindustriais”[54].MasnosGrundrisse[55]elenãoserestringetanto.Eledeclaraqueuma“condiçãodaproduçãobaseadanocapitaléaproduçãodeumcírculosempreampliadodacirculação”,deformaquea“tendênciadecriaromercadomundialestáimediatamentedadano próprio conceito do capital”. Isso leva Marx a uma proposição geral que se aplica tanto àdisseminaçãogeográficacomoaoaprofundamentodainfluênciadocapitalismosobreavidasocial:

Page 109: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Ocapital,deacordocomessasuatendência,move-separaalémtantodasfronteirasedospreconceitosnacionaisquantodadivinizaçãoda natureza, bem como da satisfação tradicional das necessidades correntes, complacentemente circunscrita a certos limites, e dareprodução domodo de vida anterior. O capital é destrutivo disso tudo e revoluciona constantemente, derruba todas as barreiras queimpedemodesenvolvimentodasforçasprodutivas,aampliaçãodasnecessidades,adiversidadedaproduçãoeaexploraçãoeatrocadasforçasnaturaiseespirituais.[56]

Acapacidadedocapitalismoparageraressastransformaçõesrevolucionáriasnomododevidaedesetornarumsistemamundialnãofoiapreciadapelosteóricosdasaturaçãogeral.Dessepontodevista,concluiMarx,

Oseconomistasque,comoRicardo,concebemaproduçãocomoimediatamenteidênticaàautovalorizaçãodocapital–que,portanto,nãosepreocupamnemcomoslimitesdoconsumo[…]apreenderamdemaneiramaiscorretaeprofundaanaturezapositivadocapitaldoqueoseconomistasque,comoSismondi,enfatizaramoslimitesdoconsumo.[57]

OqueRicardodeixoudeapreciarfoiqueaderrubadaincessanteeinexoráveldasantigasbarreirasea transformação revolucionáriadasnecessidadesemumaescalamundial“só transfereascontradiçõesparaumaesferamaisamplaelhesdámaiorlatitude”[58].

EmboraMarxaceiteaideiadequeaacumulaçãoinevitavelmenteresultanapenetraçãoenaabsorçãode setores não capitalistas – incluindo aqueles em locais distantes – pelo capitalismo, ele negaespecificamentequeissopossaresolveroproblemaefetivodademanda.Eleclaramenteachavaquesefosse encontrada uma solução para isso, esta deveria estar dentro do próprio modo capitalista deprodução[59].

Eassim,Marxpassaaconsideraroutrapossívelsoluçãoparaoproblema.“Omais-valorcriadoemumpontorequeracriaçãodomais-valoremoutroponto[…],mesmoque,deinício,sejasóproduçãodemais ouro e prata, mais dinheiro, de maneira que, se o mais-valor não pode ser reconvertidoimediatamente em capital, na forma do dinheiro ele existe como possibilidade de capital novo.”[60]Talvez a demanda extra requerida para realizar omais-valor possa se originar simplesmente de umaexpansão da quantidade de dinheiro, quer diretamente mediante a produção de uma mercadoriamonetária,comooouro,ouindiretamentemedianteosistemadecrédito.

À primeira vista, tal solução parece ter algum sentido. Uma análise do dinheiro mostra que ainsuficiência na quantidade de dinheiro pode impedir seriamente a circulação de mercadorias. Emcondições de insuficiência de dinheiro, frequentemente observamos uma aceleração na acumulaçãoquando a oferta de dinheiro aumenta. A partir daí podemos ser atiçados a extrair a inferênciainjustificável de que uma expansão na oferta de dinheiro sempre conduz à acumulação, e que issoacontecesuprindoaefetivademandapeloprodutoquedocontrárioestariafaltando.EmboraMarxaceiteque a organização do sistema de crédito seja uma condição necessária para a sobrevivência daacumulação (ver capítulo 9), ele nos adverte contra “forjar representações místicas sobre a forçaprodutiva do sistema de crédito”[61]. Mas ainda é tentador ver a fonte da demanda efetiva extra nopróprio sistema de crédito. Além disso, do ponto de vista do circuito do capital monetário, D-M-(D+ΔD),parecequemaisdinheiroérequeridonofimdecadacursoparaacomodarΔD,olucro.

Por todasessas razões,é tentadoraceitarumaversãoda ilusãomonetaristanaqualoproblemadademanda efetiva é resolvido por uma expansão na oferta de dinheiro. EmboraMarx observe que osprodutoresdeourorealmentecriammaisdinheirodoqueadiantamnaprodução(poiselesproduzemomais-valorqueé lançadodiretamenteemcirculaçãocomodinheiro), ele rejeitaperemptoriamenteque

Page 110: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

issopossaproporcionarumasoluçãoparaoproblemadademandaefetiva.Comoodinheiroémaisumcustodecirculaçãodoqueumaatividadeprodutiva,confiarnosprodutoresdedinheiroparafornecerademandaextrateriaoefeitodeafastarocapitaldaproduçãodemais-valorparacolocá-lonaabsorçãode mais-valor como custos de circulação. Marx observa que a tendência histórica tem sido buscareconomizar nos custos da circulação por meio do sistema de crédito, o que ilustra a inutilidade derecorrer aos produtores demercadoriasmonetárias comouma fonte de demanda efetiva.Combater as“representaçõesmísticas” que cercam o sistema de crédito é uma questãomais complexa que vamosexaminaremdetalhesnoscapítulos9e10,masvamosdescobrir,no fim,queargumentossimilaresseaplicam.

Marxdesfereogolpedemisericórdiana ilusãomonetarista,considerandoopapeldodinheiroemrelaçãoàmercadoriaeaoscircuitosdocapitalprodutivo.Aquantidadededinheirorequeridaemumadada velocidade de circulação (mais o que quer que seja requerido como um estoque reserva) estárelacionadaaovalortotaldasmercadoriasqueestãosendocirculadas.Dessepontodevista,“issonãomudaabsolutamentenada […]queressamassademercadoriascontenhaounãoalgummais-valor”.Oestoquededinheiropodeprecisardesubstituiçãoouaumentoparaacomodaraproliferaçãodatroca,masissonãotemdiretamentenadaavercomarealizaçãodomais-valorpormeiodatroca[62].

Essa investigação dos aspectosmonetários para a realização domais-valor parece conduzir a umbecosemsaída.Masumaanáliseadequadadelanosproporcionaalgunsindíciossobrequalpodeseraúnicaresoluçãopossívelaoproblemaefetivodademanda.Ailusãosurgeemparte,porexemplo,deumaconfusãodaquantidadetotaldedinheirocomaquantidadetotaldedinheirofuncionandocomocapital.Ocapital monetário pode ser aumentado convertendo-se em uma quantidade crescente de um estoqueconstantededinheiroemcapital.EassimMarxchegaàsuaprópriasolução.Éaconversãoadicionaldedinheiroemcapitalquesupreademandaefetivarequeridapararealizarmais-valornatroca.Vamosexploraressasoluçãosimples,emboraumtantosurpreendente,paraoproblema.

Odinheirodeveexistirantesdepoderserconvertidoemcapital.Alémdisso,umainsuficiênciadedinheirorelativaàquantidadedemercadoriasemcirculaçãonaverdadeagirácomoumimpedimentoàacumulação.Masacriaçãodedinheironãogarantedemaneiraalgumasuaconversãoemcapital.Essaconversão envolve a criação do queMarx chama de “capital fictício” – dinheiro que é lançado emcirculaçãocomocapitalsemqualquerbasematerialemmercadoriasouatividadeprodutiva.Essecapitalfictício, formadoporprocessosquevamosconsiderar emdetalhesnocapítulo9, está sempreemumaposição precária justamente porque não tem base material. Mas isso então o provê da sua forçacaracterística: na busca de uma base material ele pode ser trocado pelo mais-valor incorporado nasmercadorias.Oproblemadarealização,comoexistenaesferadatroca,estáresolvido.

Masessasoluçãoparaoproblemadademandaefetivasignificaacriaçãodenovocapitalmonetário,quedeve agora ser realizadonaprodução.E assim fechamoso círculo.Estamosde volta à esfera daprodução,queé,evidentemente,ondeMarx insistequedevemosestaro tempo todo.Asoluçãoparaoproblema da realização na troca é convertido no problema de realizar o mais-valor através daexploraçãodaforçadetrabalhonaprodução.Vimos,maisumavez,anecessidadesocialdeacumulaçãoperpétua,mas agoraderivamos essanecessidadedeumestudodosprocessosde realizaçãodentrodocontínuofluxodaproduçãoedoconsumo.

Foi no primeiro livro d’O capital, em um capítulo intitulado, bastante significativamente,“Transformaçãodemais-valoremcapital”,queMarxestabeleceuanecessidadesocialda“acumulaçãopelaacumulação,aproduçãopelaprodução”,dadasasrelaçõessociaisprevalecentesnocapitalismo.É

Page 111: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

nocapítuloparalelonosegundolivro,intitulado“Acirculaçãodomais-valor”,queMarxtentaderivaromesmoprincípiodeumestudodasrelaçõesentreaproduçãoeoconsumo.Vemosqueumequilíbrioentreaproduçãoeoconsumosópodeseralcançadonomododeproduçãocapitalista–dadasàssuasrelaçõesdedistribuição“antagonistas”–medianteaperpétuaacumulação.

Entretanto, a acumulação perpétua depende da existência de força de trabalho capaz de produzirmais-valor. Por isso, a necessária expansão geográfica do capitalismo deve ser interpretada como ocapitalembuscademais-valor.Ainserçãodasrelaçõescapitalistasemtodosossetoresdaeconomiaeamobilizaçãodeváriasfontes“latentes”deforçadetrabalho(mulheresecrianças,porexemplo)têmumabasesimilar.Eassimpassamosaverocapitalismocomooqueelerealmenteé:ummododeproduçãoperpetuamente revolucionário, constantemente trabalhando sob a necessidade social de se transformarinternamente,emboraestejao tempo todopressionadocontraascapacidadesdomundosociale físicoparasustentá-lo.Esteé,evidentemente,umprocessocontraditório.Paracomeçar,ocapitalismoencontrabarreiras externasporqueas “fontesduradourasdessa fertilidade”–o soloeo trabalhador–não têmcapacidades ilimitadas[63].Mas ele tambémencontra “limites existentes da própria circulação”[64] – eestassãoas“contradiçõesinternasdocapitalismo”queMarxvaiprocurarexpor.

OqueMarxfezentãopornósfoidarumainterpretaçãomuitoespecíficadaideiadeque“produção,distribuição, troca e consumo […] são membros de uma totalidade, diferenças dentro de umaunidade”[65].Eleremodelouaideiadovalorcomoumconceitoquedevecaptarasrelaçõesdentrodessatotalidade.Eledemonstrou,comrespeitoaorelacionamentoentreaproduçãoeoconsumo,comocadaum“criaooutroàmedidaqueserealiza”,enosmostraprecisamenteoquedeveacontecerquando“adistribuição[interpõe-se]àproduçãoeaoconsumo”[66].

Mas Marx também nos mostrou que o carrossel da acumulação perpétua não é uma máquinaautomáticaoumesmobemlubrificada.Elenosmostrouorelacionamentonecessárioquedeveprevalecerentreaproduçãoeadistribuição,aproduçãoearealizaçãodemais-valor,oconsumoeaformaçãodenovo capital, e entre a produção e o consumo. Ele também identificou toda uma série de condiçõesnecessárias–particularmentecomrespeitoàcriaçãodedinheiroeinstrumentosdecrédito–quedevemsermantidasparaoequilíbrioseratingido.

Mastambémnosmostrouquenadagarantequeessepontodeequilíbriosejaencontradonaprática.Omelhorquepodemosesperaréqueoequilíbriosejaatingido“poracaso”.Opior,eéissoqueMarxestácomeçandoanosmostrar,équeháfortesfontesafastandoosistemadoequilíbrio,queaacumulaçãopelaacumulaçãoéumsistemainstáveltantoemcurtoquantoemlongoprazo.Ascrisesentãoaparecemcomooúnicomeioefetivodeumaoposiçãoaodesequilíbrio,pararestauraroequilíbrioentreaproduçãoeoconsumo.Entretanto,essascrisesenvolvemadesvalorização,adepreciaçãoeadestruiçãodocapital.Eessenuncaéumprocessoconfortávelcomoqualconviver–particularmenteporquetambémenvolveadesvalorização,adepreciaçãoeadestruiçãodotrabalhador.

[1]AquieumebaseeimuitoemumexcelenteestudodeThomasSowell,Say’sLaw:anHistoricalAnalysis(Princeton,PrincetonUniversityPress,1972),sobreaLeideSay.

[2]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.468.

[3]Ibidem,p.500.

[4]Ibidem,p.53.

Page 112: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[5]Ibidem,p.57.

[6]Ibidem,p.56,84.

[7]Ibidem,p.53.

[8]PaulSweezy,TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.;paraumahistóriacríticadeteoriasdesubconsumo,veroexcelenteestudodeMichaelBleaney,UnderconsumptionTheories(NovaYork,InternationalPublishers,1976).

[9]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.484.

[10]RosaLuxemburgo,TheAccumulationofCapital (Londres,Routledge andK.Paul, 1951 [ed. bras.:Aacumulaçãodo capital, SãoPaulo,NovaCultural,1985]).

[11] IrinaOsadchaya (FromKeynes toNeo-Classical Synthesis: aCriticalAnalysis,Moscou, Progress Publishers,1974) apresenta umavisãointeressantedasdiferentesmaneiraspelasquaisosargumentosdeMarxforamapropriadospelasdiversasescolasdepensamento.

[12]JohnKeynes(TheGeneralTheoryofEmployment,InterestandMoney,NovaYork,Harcourt,Brace,1936[ed.bras.:Ateoriageraldoemprego,dojuroedamoeda,SãoPaulo,NovaCultural,1996])fazapenasumareferênciadepassagemaMarx,masMichalKalecki(SelectedEssaysontheDynamicsoftheCapitalistEconomy,Londres,CambridgeUniversityPress,1971)eJoanRobinson(AnEssayonMarxian Economics, cit.; “Marx andKeynes”, emDavidHorowitz [org.],Marx andModern Economics, NovaYork,ModernReaderPaperbacks, 1968) forammuitomais diretamente influenciados. Sobre o relacionamento entre os pensamentos keynesiano emarxiano, verGérardDuménil,MarxetKeynesfaceàlacrise(Paris,Economica,1977);BenFine,EconomicTheoryandIdeology(NovaYork,Holmes& Meier Publishers, 1981); Paul Mattick,Marx and Keynes (Boston, P. Sargent, 1969); e Shigeto Tsuru, “Keynes versus Marx: theMethodologyofAggregates”,emDavidHorowitz(org.),MarxandModernEconomics,cit.

[13]IrinaOsadchaya(FromKeynestoNeo-ClassicalSynthesis:aCriticalAnalysis,cit.)discuteisso(vemdaíacitaçãodeDomar),masveja tambémMarkBlaug,EconomicTheory inRetrospect (Londres,Heinemann, 1978);AlexanderErlich, “Dobb and theMarx-FeldmanModel: aProblem inSovietEconomicStrategy”,CambridgeJournalofEconomics, 1978;KarlKühne,Economics andMarxism (NovaYork,St.Martin’sPress,1979);eWilhelmKrelle,“MarxasaGrowthTheorist”,GermanEconomicReview,1971.

[14]OformidáveldebatesobreseocapitalismoestavaounãoprestesaentraremcolapsoproduziuumaimensaondadeliteraturanoiníciodoséculoXX.PaulSweezyresumegrandepartedessedebate,assimcomoKarlKühne(EconomicsandMarxism,cit.);masvejatambémRosaLuxemburgo,The Accumulation of Capital, cit.; Rosa Luxemburgo e Nicolai Bukharin, Imperialism and the Accumulation of Capital(NovaYork,MonthlyReview Press, 1972 [ed. bras.:A economiamundial e o imperialismo, São Paulo,NovaCultural, 1986]);HenrykGrossman,“Archive:Marx,ClassicalPoliticalEconomyandtheProblemofDynamics”,CapitalandClass, 1977;AntonPannekoek, “TheTheoryoftheCollapseofCapitalism”,CapitalandClass,1977;eRomanRosdolsky,TheMakingofMarx’sCapital,cit.

[15]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.53.

[16]Ibidem,p.44.

[17]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.186.

[18] Idem,AContribution to theCritique of Political Economy (NovaYork, International Publishers, 1970 [ed. bras.:Contribuição àcríticadaeconomiapolítica,SãoPaulo,ExpressãoPopular,2004]),p.94.

[19]Ibidem,p.93.

[20]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.186;TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.500-13.

[21]Ibidem,p.504-5.

[22]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.249.

[23]Ibidem,p.190.

[24]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.529.

[25]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.495.

[26]Ibidem,p.48.

[27]Alguns tradutorese teóricospreferemo termo“processodevalorização”paracobriracriaçãodemais-valormedianteoprocessodotrabalho(vera introduçãodeErnestMandelàediçãodaPenguind’Ocapital ).Emboraeste tenhaavirtudede fazerumadistinçãoclaraentreosprocessosderealizaçãonaproduçãoeosprocessosderealizaçãonomercado(eenfatizeasdiferençasfundamentaisentreeles),temadesvantagemdedesviaraatençãodanecessáriacontinuidadenofluxodocapitalatravésdasdiferentesesferasdeproduçãoetroca.Comoestou interpretando o valor em termos da unidade de produção e troca, prefiro usar o termo “realização” parame referir aomovimentoperpétuoeàautoexpansãodocapitaledeixarocontextoouummodificadoradequadoparaindicarseestoufalandosobrearealizaçãoatravésdoprocessodotrabalho(valorização),realizaçãoatravésdatrocaouaunidadedeambos.

[28]Ibidem,cap.3.

[29]Ibidem,p.519.

Page 113: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[30]Ibidem,p.451.

[31]Ibidem,p.364.

[32]Ibidem,p.343.

[33]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.514.

[34]Idem,Grundrisse,cit.,p.451.

[35]Ibidem,p.519.

[36]Ibidem,p.527.

[37]A.D.Magaline(Luttedeclasseetdévalorisationducapital,Paris,Maspero,1975)constróiumargumentomuitointeressantebaseadonisso.

[38]KarlMarx,Manuscritoseconômico-filosóficos(trad.JesusRanieri,SãoPaulo,Boitempo,2010),p.140.

[39]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.506.

[40]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.181-2.

[41]Ibidem,p.244.

[42]Ibidem,LivroII,p.348.

[43]Ibidem,LivroI,p.646.

[44]Idem,Grundrisse,cit.,p.566.

[45]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.316.

[46]Ibidem,LivroII,p.341;LivroIII,p.188.

[47]Ibidem,LivroII,p.515-6.

[48]Ibidem,p.334.

[49]Ibidem,p.332.

[50]Ibidem,p.410.

[51]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.50-2.

[52]Ibidem,parte2,p.522-5.

[53]Ibidem,p.535.

[54]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.657.

[55]Idem,Grundrisse,cit.,p.332.

[56]Ibidem,p.334.

[57]Idem.

[58]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.468.

[59]AquiMarxpareceestarseguindoaFilosofiadodireitodeG.W.F.Hegel.Vercapítulo12.

[60]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.332.

[61]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.346.

[62]Ibidem,p.473.

[63]Ibidem,LivroI,p.573.

[64]Idem,Grundrisse,cit.,p.334.

[65]Ibidem,p.53.

[66]Ibidem,p.48-9.

Page 114: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

4.Mudançatecnológica,processodetrabalhoecomposiçãodevalordocapital

A tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo imediato deprodução de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida e das concepçõesespirituaisquedelasdecorrem.[1]

DetodasasmásinterpretaçõesdopensamentodeMarx,talvezamaischocantesejaaquelaquefazdeleumdeterministatecnológico[2].Elenãoencaraamudançatecnológicacomoaforçaimpulsoradahistória.Essa interpretação equivocada do seu argumento surgiu, em parte, da imposição de significadoscontemporâneos nas palavras de Marx, e também de um fracasso em entender seu método deinvestigação. Por exemplo, definições comumente aceitas agora indicam que a tecnologia significa aaplicação do conhecimento científico para criar a ferramenta física para a produção, a troca, acomunicaçãoeoconsumo.OsignificadodeMarxéaomesmotempomaisamploemaisrestritodoqueisso.

QuandoMarx fala de “tecnologia”, ele se refere à forma concreta assumida por um processo detrabalho real em um dadomomento, àmaneira observável em que são produzidos os valores de usoespecíficos.Essatecnologiapodeserdiretamentedescritadeacordocomasferramentaseasmáquinasusadas,aestruturafísicadosprocessosdeprodução,adivisãotécnicadotrabalho,odesdobramentorealdasforçasdetrabalho(tantoasquantidadesquantoasqualidades),osníveisdecooperação,ascadeiasde comando e as hierarquias da autoridade, e os métodos específicos de coordenação e controleutilizados.

Atarefaé,então,penetrarporbaixodessaaparênciasuperficialeentenderporqueosprocessosdetrabalho particulares assumem as formas tecnológicas específicas que assumem. Para isso, Marxconsideraoprocessodetrabalhoemtermosdasforçasprodutivasedasrelaçõessociaisdaproduçãonele incorporadas[3].Por “forçaprodutiva”,Marxentendeopoder absolutode transformaranatureza.Por “relações sociais”, entende a organização social e as implicações sociais do que, do como e doporquêdaprodução.Sãoconceitosabstratoseprecisamosperceberbemseusignificado.Muitodoquevemaseguirsebaseiaemsuainterpretaçãoadequada.Essesconceitosserãoutilizadosparamostraras

Page 115: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

contradições dentro da produção, de umamaneiramuito parecida com aquela de que a dualidade dovalordeusoedovalordetrocaproporcionaaalavancaconceitualparaexporascontradiçõesdatrocademercadorias.Oparaleloéapropriado.Aforçaprodutivaeasrelaçõessociaisdevemserinicialmenteencaradascomodoisaspectosdomesmoprocessodetrabalhomaterial,damesmamaneiraqueovalordeusoeovalordetrocasãodoisaspectosdeumaúnicamercadoria.Ovalordetrocanasmercadoriastem um referente externo na forma de dinheiro, e as relações sociais da produção têm um referenteexterno na forma das relações de classe que prevalecem na sociedade em geral e que permeiam amudança,adistribuiçãoeoconsumo,assimcomoaprodução.E,damesmamaneiraqueovalordeusose tornareintegradonaeconomiapolíticacomovalordeusosocial,assima ideiapuramentefísicadaforça produtiva é reintegrada na economia política como o poder de criar mais-valor para o capitalmediante a produção de mercadorias materiais. Dada a importância desses conceitos, devemos nosmovercomcuidadoaoestabeleceroseusignificado.

Começamos eliminando uma fonte de confusão comum. Identificar “tecnologia” com “forçasprodutivas”éumerro,etambémamolamestradessaleituraequivocadadeMarxqueotransformaemumdeterministatecnológico.Atecnologiaéaformamaterialdoprocessodetrabalho,pormeiodaqualas forças produtivas e as relações de produção subjacentes são expressas. Comparar tecnologia comforçasprodutivasseriaigualacompararodinheiro,aformamaterialdovalor,comoprópriovalor,oucomparar o trabalho concreto com o trabalho abstrato. Mas, da mesma maneira que uma análise dodinheiropoderevelarmuitosobreanaturezadovalor,umaanálisedastecnologiasreaispode“revelar”a natureza das forças produtivas e as relações sociais incorporadas dentro do modo de produçãocapitalista.Esseéosentidoaseratribuídoàcitaçãocomaqualiniciamosestecapítulo.

Aanálisedastecnologiasexistentespodeserumexercíciopreliminarútil(enecessário).MasMarxconcebe o seu método de maneira muito diferente[4]. Ele começa pelas abstrações mais simplespossíveis,extraídasdas“relações reaisdavida”,eentãodesenvolveconceituaçõesmais ricasecadavezmaiscomplexaspara“abordar,passoapasso”,asformasconcretasqueasatividadesassumem“nasuperfíciedasociedade”[5].Eledeclaraqueesteé“oúnicométodomaterialistae,portanto,científico”de interpretar os fenômenos com os quais nos encontramos cercados – a produção de mercadorias,dinheiroetroca,formastecnológicasconcretas,crisesetc.[6].

OmétodomaterialistadeMarxeasuapreocupaçãocomas“relaçõesreaisdavida”oconduzemaconcentraraatençãonoprocessodetrabalhocomoumpontodepartidafundamentalparaainvestigação.Eleescreveque

Oprocessodetrabalho,comoexpusemosemseusmomentossimpleseabstratos,éatividadeorientadaaumfim–aproduçãodevaloresdeuso–,apropriaçãodoelementonaturalparaasatisfaçãodenecessidadeshumanas,condiçãouniversaldometabolismoentrehomemenatureza,perpétuacondiçãonaturaldavidahumana.[7]

Eoquepodesermaisfundamentaldoqueisso?Arelaçãocomanaturezaétratadadialeticamente,éclaro. A separação entre o “humano” e o “natural” é encarada como uma separação dentro de umaunidade porque a “vida física emental do homem estar interconectada com a natureza não tem outrosentidosenãoqueanaturezaestáinterconectadaconsigomesma,poisohomemépartedanatureza”[8].Alinguagemémuitohegeliana,masMarxnãopartedessaposiçãoemsuasúltimasobras[9].Aatençãosedesloca,noentanto,paraumestudodaseparaçãodentrodaunidade:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza […]. Ele se confronta com amatéria natural como com uma

Page 116: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

potência natural.A fim de se apropriar damatéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe emmovimento as forçasnaturaispertencentesa suacorporeidade: seusbraçosepernas,cabeçaemãos.Agindosobreanaturezaexternaemodificando-apormeiodessemovimento,elemodifica,aomesmotempo,suapróprianatureza.[10]

Aqui encontramos o conceito de “força produtiva” em sua formamais simples emais facilmentecompreensível: ela representa o poder para transformar e apropriar a natureza mediante o trabalhohumano.Essepoderpodeseraumentadopelousodeváriosinstrumentosdetrabalhoque,comaprópriaterra, formam os meios de produção e constituem a base necessária para o trabalho produtivo[11].Entretanto,aformaespecíficaquearelaçãocomanaturezaassumeéumprodutosocial,“umpresente,nãodanatureza,masdeumahistóriaabarcandomilharesdeséculos”[12].Atecnologiarealdoprocessodetrabalhoémoldadapelosprocessoshistóricosesociaisenecessariamenterefleteasrelaçõessociaisentreossereshumanosquandoelessecombinamecooperamnastarefasfundamentaisdaprodução.Asforçasprodutivasdotrabalhonãopodemseraferidasdemaneiraabstratadessasrelaçõessociais.

Além disso, o processo de trabalho é aomesmo tempo instrumental e intencional em relação aosdesejosenecessidadeshumanos–“oquedesdeoiníciodistingueopiorarquitetodamelhorabelhaéofatodequeoprimeirotemacolmeiaemsuamenteantesdeconstruí-lacomacera”[13].Asconcepçõesmentaisdomundopodemsetornaruma“forçamaterial”emduplosentido:são“objetivadas”nosobjetosmateriaisematerializadasnosprocessosreaisdaprodução.Porisso,aatividadedaproduçãoincorporacertoconhecimentodomundo–conhecimentoqueétambémumprodutosocial.Cadamododeproduçãodesenvolve um tipo específico de ciência, um “sistema de conhecimento” apropriado para suasnecessidades físicas e sociais distintas. Marx vai elaborar muito sobre como o capitalismo procuraunificar “as ciências naturais como processo de produção” e sobre comoo princípio da “análise doprocessodeproduçãoemsuasfasesconstituintes–ederesoluçãodosproblemasassimpropostospelaaplicação da mecânica, da química e de toda a série de ciências naturais – torna-se o princípiodeterminante em toda parte”[14]. Ele até comenta a respeito de como a própria invenção se torna umnegócioeaproduçãodenovosentendimentoscientíficossetornanecessariamenteintegradanadinâmicadocapitalismo[15].

Então, o processo de trabalho é inicialmente concebido como uma unidade de forças produtivas,relações sociais e concepçõesmentais domundo.No primeiromomento, a importância da separaçãodentro da unidade é que elamolda as perguntas que formulamos sobre qualquer tecnologia, qualquerprocessodetrabalho,quepossamosencontrar.

Considere,porexemplo,umapessoacavandoumcanal.Podemosdescreverousodosnervosedosmúsculose talvezmedirogasto físicodeenergiaporpartedoescavador.Domesmomodo,podemosdescreverasqualidadesdanatureza(afacilidadecomqueaterrapodeserescavada)eosinstrumentosdetrabalho(páouescavadeira).Epodemosmediraprodutividadedotrabalhodeacordocomosmetrosde canal escavados por hora de trabalho. Porém, se nos limitarmos a essa descrição física direta,perderemos muita coisa importante. Na verdade, Marx consideraria a medida da produtividade umaabstraçãosemsignificado.Parainterpretaradequadamenteaatividade,primeiroprecisamosdescobriroseupropósito, o projeto consciente doqual ela é umaparte e a concepçãomental domundoque estáincorporadanaatividadeeoseuresultado.Devemostambémconhecerasrelaçõessociaisenvolvidas.Otrabalhoestásendorealizadoporumescravo,porumtrabalhadorassalariado,umartesão,umsocialistadedicado,um fanático religiosoqueparticipadeumacerimônia religiosaouumsenhor rico comumainclinaçãoporexercíciosfísicosárduos?Açõesfísicasidênticaspoderiamterumainfinitavariedadede

Page 117: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

significados sociais.Nãopodemos interpretar as atividades semalgumentendimentodo seupropósitosocial.Somentedessamaneirapodemos terumamedidasignificativadaprodutividade.Nessesentido,Marx dissertará muito sobre a ideia de que a produtividade em relação aos desejos e necessidadeshumanosémuitodiferentedaprodutividadeemrelaçãoàcriaçãodemais-valor.E,finalmente,sóquandoentendemos completamenteo significado social e opropósito social seremos capazesde entenderporquealgumastecnologiassãoescolhidasemvezdeoutras;porquealgumasconcepçõesmentaisdomundotêmprecedênciasobreoutras.Nofim,o importanteéarelaçãoentreasforçasprodutivas,asrelaçõessociais da produção e as concepções mentais do mundo, todas expressas no interior de um únicoprocessodetrabalho.

Apartirdaíseconcluiqueasrevoluçõesnasforçasprodutivasnãopodemserrealizadassemumareestruturaçãoradicaldas relaçõessociaisedosistemadeconhecimento.Entretanto, segundoMarx,oímpetoparaessamudançaestánapróprianaturezadopróprioprocessode trabalho–“agindosobreanaturezaexternaemodificando-apormeiodessemovimento,elemodifica,aomesmotempo,suapróprianatureza”[16].Porisso,arelação(dialética)recíprocaentreosujeitoeoobjetodotrabalhoestánocernedo processo de desenvolvimento. Esse processo, quando generalizado para contextos sociais ehistóricos,conduzàideiadeque“aoadquirirnovasforçasprodutivas,oshomensmudamseumododeprodução; e,mudando seumododeprodução […]elesmudam todas as suas relações sociais”, assimcomosuasconcepçõesmentaisdomundo[17].

Podemosdissecaresseprocessomaisexatamenteconsiderandoasseparaçõesdentrodaunidadedoprocessodetrabalho.Oqueacontece,porexemplo,seacooperaçãosocialrequeridaparaoperarcertotipodesistemadeproduçãonãoestáacessível,ouseacapacidadesocialeodesejodetransformaranatureza não correspondem aos meios de produção disponíveis? O que acontece quando o resultadodesejadonãocorrespondeaoentendimentocientíficodoprocessodeproduçãonecessárioparaproduziresse resultado?Existepotencialidadepara todosos tiposdeoposiçõeseantagonismosentreas forçasprodutivas, as relações sociais e as concepçõesmentais domundo.No entanto, uma coisa é falar depotencialidade e outra bem diferente é estabelecer, como Marx procura fazer, a necessidade dessascontradiçõesnocapitalismo.

Seuargumentogeralprosseguedaseguintemaneira.Paraproduzirereproduzir,ossereshumanossãoimpelidos a ingressar em relações sociais e a lutar para se apropriarem da natureza de umamaneiraconsistentecomessasrelaçõessociaisecomoseuconhecimentodomundo.Nodecorrerdessalutaelesnecessariamente produzem novas relações com a natureza, novos conhecimentos e novas relaçõessociais.Controlessociaispoderosospodemmanterassociedadesemestadosrelativamenteestacionários–estadosaqueMarxsereferecomo“pré-história”.Mas,umavezqueessescontrolessãoderrubados(porquaisquermeios),oequilíbrioéperturbadoeforçascontraditóriasentramemjogo.Ascontradiçõesentre as forças produtivas, as relações sociais e as concepções mentais do mundo tornam-se a fontecentraldetensão.Alutaeternaparasuperarascontradiçõestorna-seaforçamotrizdahistória.

A interpretação geral das forças que dominam a trajetória da história humana é utilizada paraentendermos a dinâmica do capitalismo. A busca insaciável por parte dos capitalistas para seapropriaremdomais-valor impele as eternas revoluções nas forças produtivas.Mas essas revoluçõescriamcondiçõesquesãoinconsistentescomaacumulaçãoadicionaldocapitalecomareproduçãodasrelaçõesdeclasse.Issosignificaqueosistemacapitalistaéinerentementeinstávelepropensoacrises.Emboracadacrisepossaserresolvidapormeiodeumareestruturaçãoradicaldasforçasprodutivasedasrelaçõessociais,afontebásicadoconflitojamaiséeliminada.Surgemnovascontradiçõesquegeram

Page 118: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

formasdecrisesmaisgerais.Aúnicaresoluçãofundamentalparaascontradiçõesestánaeliminaçãodasuafonte,nacriaçãoderelaçõessociaisfundamentalmentenovas–aquelasdosocialismo.

Colocado nesses termos, esse argumento provavelmente não vai convencer ninguém. Sua utilidadeestánasquestõesqueelevailevantar.Eledirigeanossaatenção,antesdetudo,paraasrelaçõessociaisquesemeiammudançasnasforçasprodutivase,emparticular,nosimpelemaconfrontarabasedeclasseparataismudanças.Emsegundolugar,somosdesafiadosamostrarqueavelocidade,aformaeadireçãodas revoluções na capacidade para transformar a natureza podem ser sempre consistentes com ocrescimentoestáveleequilibrado.E,senãoforassim,nãodevemosteraquiumaexplicaçãofundamentalpara as crises periódicas evidentes do capitalismo? Estas são as grandes questões que procuraremosrespondernospróximoscapítulos.Masantesprecisamos,commuitocuidado,vincularonossoaparatoconceitualàformahistóricaespecíficaassumidapelomododeproduçãocapitalista.

I.APRODUTIVIDADEDOTRABALHONOCAPITALISMOInicialmente,podemosser tentadosa trataraprodutividadedo trabalhoemtermospuramente físicoseavaliá-la pela quantidade de matéria-prima que um trabalhador consegue transformar, usandodeterminadosinstrumentosdeprodução,emumadadaquantidadedeprodutoacabadoousemiacabado,dentrodealgumperíododetempopadronizado.Marxestáempédeguerracomessaconcepção[18].Elafalha em distinguir entre trabalho concreto e trabalho abstrato, e presume que os capitalistas estãointeressadosnaproduçãodevaloresdeusoemvezdenovaloremgeralenomais-valoremparticular.Marxpropõeumadefiniçãodistintamentecapitalistadaprodutividadedotrabalhador:

Sóéprodutivoo trabalhadorqueproduzmais-valorparaocapitalistaou serveàautovalorizaçãodocapital. […]Assim,oconceitodetrabalhador produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto dotrabalho,mastambémumarelaçãodeproduçãoespecificamentesocial,surgidahistoricamenteequecolanotrabalhadororótulodemeiodiretodevalorizaçãodocapital.[19]

Marxprossegueacrescentando,enigmaticamente,que“sertrabalhadorprodutivonãoé,portanto,umasorte, mas um azar”. Essa definição de valor da produtividade proporciona a Marx uma ferramentapoderosacomaqualcombateroseconomistascomuns.

Sóamentalidadeestreitaburguesa,queencaraasformasdeproduçãocapitalistas[…]comoeternas[…]podeconfundiroproblemadoque é força de trabalho produtiva do ponto de vista do capital, com a questão do que é força de trabalho produtiva em geral […] e,consequentemente,seconsideramuitosábiaapresentandoarespostadequetodamãodeobraqueproduzoquequerqueseja[…]poresseprópriofatoconstituimãodeobraprodutiva.[20]

Munidomaiscomessaconcepçãodevalordoquecomaprodutividade física,Marxpode tambémridicularizar a noção comumente sustentada de que o capital é em si de algum modo produtivo. Osaumentos na produtividade física, particularmente aqueles atingidos por meio da aplicação demaquinário,parecemserumatributo,atéumproduto,docapital.Ocapital“torna-seumsermuitomísticoumavezquetodasasforçasprodutivassociaisdotrabalhoparecemserdevidasaocapital,emvezdeaotrabalhocomotal,eparecemprovirdoúterodoprópriocapital”[21].Masoqueessaaparênciarealmentedenota? SegundoMarx, ela simplesmente representa a capacidade do capitalista de se apropriar dasforçaspositivasdotrabalhosocial,detalmaneiraqueestasúltimasparecemserasforçasprodutivasdo

Page 119: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capital[22].Eissosópodeacontecerdevidoàsrelaçõesdeclasseespecíficasqueprevalecemdentrodaprodução, relações que dão ao trabalhador acesso aosmeios de produção em condições amplamenteditadaspelocapital.

A definição de valor da produtividade de Marx também cria dificuldades. Ela tem gerado, porexemplo, um longo e um tanto tedioso debate sobre a diferença entre trabalhador “produtivo” e“improdutivo”[23]. Na definição de Marx, como apenas esse trabalhador que produz mais-valor éconsiderado “produtivo”, várias atividades fisicamente produtivas (principalmente em serviços ecirculação) terminam sendo caracterizadas como “improdutivas”, não importa o quão socialmentenecessárias elas possam ser. O objetivo do argumento de Marx era tomar o que era uma meraclassificação dos trabalhadores, como é discutido pelos economistas políticos (Adam Smith, emparticular),econvertê-laemtermosquereflitamasrelaçõesdeproduçãocapitalistas.Hámuitopoucaevidência de queMarx quisesse ir alémdisso.Ele certamente não estava propondo uma nova emaiselaboradaclassificaçãodasocupaçõesemagrupamentosdasprodutivaseimprodutivas–fazerissoteriasido exatamente colocar o debate de volta ao terreno definido pelos fisiocratas e por Adam Smith,terreno esse queMarx procurava desalojar. Tudo o queMarx estava sugerindo era, na verdade, quequalquerdefiniçãodetrabalhoprodutivonocapitalismotinhadeservistoemrelaçãoaoprocessorealdaproduçãodemais-valor.Quandoampliamosanossaperspectivasobreesseprocesso–porexemplo,dedentroparaforadoprocessodetrabalhoparaabarcartodooprocessodecirculaçãodocapital–adefinição do trabalho produtivo também se amplia. “Para trabalhar produtivamente, já não é maisnecessáriofazê-locomsuasprópriasmãos;basta,agora,serumórgãodotrabalhadorcoletivo,executarqualquerumadesuassubfunções.”[24]

A ideia de que o que conta é a produtividade do trabalhador coletivo, e não a produtividade dotrabalhadorindividual,temimplicaçõesparaanossaconcepçãodaforçaprodutiva.Asmaneirasemqueostrabalhadoresserelacionamereforçammutuamenteumaooutronodesempenhodesuasváriastarefastêm evidentemente uma influência na sua produtividade coletiva. A eficiência não é uma questãopuramentetécnica,mas,comotodoespecialistaemrelaçõesindustriaissabe,épelomenosemparteumaquestãosocial.Odilemaparaocapitalistaémobilizarospoderespositivosdacooperaçãocomoumaforçaprodutivadocapitalmediantemecanismosque,emúltimainstância,devemserjulgadoscoercivos.As estratégias do enriquecimento no emprego, na cooperação e na integração trabalhador-gerênciaparecem especificamente destinadas a mascarar a relação básica de dominação e subordinação quenecessariamenteprevalecedentrodoprocessodetrabalho.Issonoslevaaconsiderar,noentanto,opapeldecisivodalutadeclassesdentrodopróprioprocessodetrabalho.

II.OPROCESSODETRABALHOUmdosaspectosmaisconvincentesdoprimeirolivrod’OcapitaléamaneiracomqueMarxsedeslocatão fluentemente das abstraçõesmais profundas emais simples possíveis (comovalor) para reflexõessobreahistóriadaslutassobreajornadadetrabalhoeamecanização,paraaimplicaçãodanecessidadede uma derrubada revolucionária do capitalismo. Embora o trabalho seja executado com um talentoartísticoconsumado,seusprópriosfeitospodememsiserumtantoequivocados.Colocadonocontextodo seu projeto geral, até mesmo como está articulado nos dois outros livros d’O capital, podemosperfeitamenteargumentarqueovínculoentreahistóriaeateorianoprimeirolivroestáprematuramente

Page 120: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

estabelecido, e que as implicações políticas são muito apressadamente derivadas. Marx não estavanecessariamente errado nisso. Nem a interpretação histórica nem a ação política podem esperar pelaperfeição da teoria, enquanto esta última só pode emergir da eterna testagem contra a experiênciahistóricaeapráticapolítica.Masoprimeirolivroéumdocumentotãosedutorquemuitosmarxistasotratam como a palavra final quando ele deve ser encarado como uma tentativa extraordinária, porémpreliminar,deexplicarcomoainterpretaçãohistóricaeasestratégiasparaaaçãopolíticasedeterminammutuamenteeserelacionamumacomaoutra.

O caráter controvertido do argumento de Marx se torna imediatamente aparente no debatecontemporâneosobreanaturezadoprocessodetrabalhonocapitalismo.Odebateéimportanteporqueoprocessode trabalho é fundamental para aoperaçãodequalquermododeprodução.Se amaneiradeMarxrepresentá-loestáerrada,entãoquasetodoorestodevetambémserquestionado.Odebateassumiuuma urgência e uma direção adicionais desde a publicação de Labor and Monopoly Capital, deBraverman,em1974.ComexceçãodofascinanteensaiodeGramscisobreo“fordismo”[25],esta foiaprimeiraobraimportantenatradiçãomarxistaaabordarasmudançasnoprocessodetrabalhonoséculoXX. Obras subsequentes questionaram tanto a concepção original deMarx quanto a sua extensão deautoriadeBraverman.

Marxorganizaseuspensamentossobreoassuntoemtornodadistinçãoentreasubsunção“formalereal do trabalho ao capital”[26]. A “subsunção formal” é suficiente para a produção de mais-valorabsoluta e surge assim que os trabalhadores são impelidos a vender sua força de trabalho parasobreviver.Oprocessodetrabalhoprosseguecomoantes,comexceçãodaintroduçãode“umarelaçãoeconômica de supremacia e subordinação”, que surge porque os capitalistas “naturalmente” dirigem esupervisionamasatividadesdotrabalhador,edevidoaumatendênciadotrabalhodesetornarbemmaiscontínuoeintensivo,“poistodoesforçoéfeitoparagarantirquenãomais(oumesmomenos)tempodetrabalhosocialmentenecessáriosejaconsumidonafabricaçãodoproduto”[27].Medianteacompetiçãonatroca,otempodetrabalhosocialmentenecessáriocomeçaaserpercebidocomoreguladordoprocessode trabalho, ainda que os trabalhadores mantenham um controle substancial sobre suas habilidadestradicionaise sobreosmétodosempregados.A reduçãodo trabalhoespecializadoparao simplesnãoocorre. E a única imposição envolvida surge da necessidade de o trabalhador vender sua força detrabalhoparasobreviver.

A “real submissão do trabalho ao capital” surge quando os capitalistas começam a reorganizar opróprio processo de trabalho para obtermais-valor relativo.Com isso, todo omodo de produção “éalteradoeumaformadeproduçãoespecificamentecapitalistacomeçaaaparecer”,juntamentecom“asrelaçõesdeproduçãocorrespondentes”[28].Emoutras palavras, as relações de classe queprevalecemdentro do capitalismo em geral agora penetram dentro do processo de trabalho por meio dareorganizaçãodasforçasprodutivas.

Oscapitalistasmobilizamasforçasquesurgemdacooperaçãoedadivisãodetalhadadotrabalho,elucramcomaprodutividadeaumentadadotrabalhodaíresultante.Ostrabalhadorestornam-secadavezmais“modosespeciaisdeexistênciadocapital”eficamcadavezmaissujeitosaocontrole“despótico”dos capitalistas e de seus representantes.Uma estrutura hierárquica e autoritária das relações sociaisemerge dentro do local de trabalho. Os métodos de trabalho podem continuar os mesmos, mas aespecializaçãodostrabalhadoresemtarefasespecíficaspodempermitirqueestassejamsimplificadasaponto de poderem ser realizadas por trabalhadores com pouco conhecimento ou habilidades. “Namanufatura, o enriquecimento do trabalhador coletivo e, por conseguinte, do capital em sua força

Page 121: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produtiva social é condicionado pelo empobrecimento do trabalhador em suas forças produtivasindividuais”[29].Emergeentãoumadistinçãogeralentreotrabalhoespecializadoeonãoespecializado,masabasetécnicadaproduçãotambémrequerapreservaçãodeumahierarquiadasforçasdetrabalhoedas habilidades, juntamente com diferenciais de salário (a redução do trabalho especializado para osimplesnãoécompleta).Nessescasos, também,aforçade trabalhocadavezmaisprodutivasurgedeuma reorganização dos processos de trabalho existentes e não envolve necessariamente nenhuminvestimento importante por parte dos capitalistas – embora novos locais e prédios possam sernecessários,poisacooperaçãocomfrequênciasignificaaagregaçãodeváriosprocessossobomesmoteto[30].

Ocapitalismosuperaa“basetécnicaestreita”damanufaturamedianteaintroduçãodemaquinárioeaorganizaçãodosistemafabril.Atransiçãoparaummododeproduçãoverdadeiramentecapitalistatorna-seentãopossível.Emboraissoenvolvauminvestimentoativoporpartedoscapitalistas,avantageméque amáquinapode ser usadapara aumentar a produtividade física do trabalho aomesmo tempoquepermite que os capitalistas controlem a intensidade e o ritmo do processo de trabalho mediante aregulaçãodavelocidadedamáquina.Otrabalhadortorna-seentãoummero“apêndice”–umescravo–damáquina.Aseparaçãodotrabalhomentaldotrabalhomanual,adestruiçãodashabilidadesdotrabalhoartísticoedo trabalhoartesanal,easuasubstituiçãopormerashabilidadesatendidaspormáquinas,oemprego de mulheres e crianças – tudo isso foi consequência. Para Marx, o empobrecimento dotrabalhadornocapitalismotinhatanto,senãomais,avercomadegradaçãoimpostaaotrabalhadornoprocesso de trabalho quanto com os baixos salários e os altos índices de exploração. Com o usocapitalista das máquinas, “o instrumento de trabalho torna-se o meio de escravizar, explorar eempobrecer o trabalhador; a combinação social e a organização dos processos de trabalhos sãotransformadas em um modo organizado de extinguir a vitalidade, a liberdade e a independênciaindividuaisdotrabalhador”[31].

Aviolênciaquea classe capitalistadevenecessariamente impor ao trabalhadorpara extrairmais-valor em parte alguma émais prontamente aparente do que na relação degradada com a natureza queresulta no processo de trabalho. Isso provoca sua própria resposta.Os trabalhadores recorrem a atosindividuais de violência, sabotagem – patologia industrial de todos os tipos – assim como a formascoletivasderesistênciaaousoeabusodasmáquinas.Aslutassociaisàsquaisessaresistênciaviolentadáorigemconstituemum temacentralnashistórias sociaisepolíticasdaquelespaísesqueseguiramocaminho capitalista para a industrialização.MasMarx parece insistir que, em longo prazo, as formasindividuaisecoletivasderesistênciadotrabalhadordentrodoprocessodetrabalhodevemcairdiantedas forças esmagadoras que o capital pode exibir. As formas de resistência isolada só atrasam oinevitável.Somenteummovimentorevolucionáriodebaseamplapodereconquistarparaotrabalhadoroquedocontrárioquasecertamenteestaráperdido.

Mastodoesseprocessotambémnãoestáisentodecompensaçõesecontradições.Arotinadastarefasrequerhabilidadesgerenciais,conceituaisetécnicas(deengenharia)sofisticadas.Issoenvolveumnovotipo de ordenação hierárquica (a queMarx concede pouca atenção, embora isso esteja implicado nanecessáriapersistênciadacooperaçãoedadivisãodetalhadadotrabalhodentrodosistemafabril).Ostrabalhadorestambémpassamaserindiferentesàstarefasespecíficasquerealizam,prontosaseadaptaracadanovatecnologiaecapazesdesedeslocarlivrementedeumalinhadeproduçãoparaoutra.Essacapacidade de adaptação – que com frequência envolve alfabetização, habilidades matemáticas,capacidadeparaseguirinstruçõeseparatornarrapidamenteastarefaspartedarotina–secontrapõede

Page 122: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

maneirasimportantesàtendênciaparaadegradaçãodotrabalho.Habilidadesdessetipo,emboramuitodiferentes daquelas do artesão tradicional, implicam a criação de um novo tipo de trabalhador: o“indivíduoplenamentedesenvolvido,paraoqualasdiversasfunçõessociaissãomodosalternantesdeatividade”[32].“Liberando”ostrabalhadoresdesuashabilidadestradicionais,ocapitalaomesmotempogeraumtiponovoepeculiardeliberdadeparaotrabalhador.

Devemosnotar comoapalavra “habilidade” sofreuma sutil transformaçãode significado.Porumlado,háahabilidadeartísticaeartesanalqueconferecertopoderaquemapossui,porqueelaé,atécertoponto, monopolizável. Essas habilidades são anátemas ao capital. Podem atuar como uma barreira àacumulação do capital (as taxas salariais são sensíveis à sua escassez) e impedir a penetração dasrelaçõessociaiscapitalistasdedominaçãoesubordinaçãodentrodaprodução.Essassãoashabilidadesquetêmdesereliminadasparaocapitalismosobreviver.Poroutrolado,éimportanteparaocapitalquenovashabilidadesemerjam:habilidadesquepermitamflexibilidadeeadaptabilidadee,acimadetudo,que possam ser substituídas – que não são passíveis de monopolização. A “desqualificação dashabilidades” sobre a qual Marx escreve com assiduidade envolve uma transformação direta dashabilidadesmonopolizáveis em nãomonopolizáveis.Mas o primeiro tipo de habilidade pode jamaisdesaparecer totalmente. As habilidades dos engenheiros, dos cientistas, dos administradores, dosdesignersetc.frequentementesetornammonopolizáveis.Aúnicaquestãoé,então,saberseospoderesdomonopólioqueestãoligadosaessashabilidadessãototalmenteabsorvidoscomoumpoderdocapital,mediante a formação de uma facção distinta da burguesia (os administradores e os cientistas), ou sepodemsercapturadoscomopartedospoderescoletivosdotrabalho.

Braverman,emumaobraqueéaomesmotemporicaecativante,atualizaorelatodeMarxeprocuratambémmostrarcomooprocessodotrabalhofoimodificadoàmedidaqueocapitalismosemoveuparao seu “estágio de monopólio”[33]. É difícil lidar com um argumento tão sutil em poucos parágrafos.Entretanto,Bravermanconfereumaimportânciafundamentalaogerenciamentocientíficoeàrevoluçãocientífico-técnicacomodoisaspectosdocapitalque“crescemapartirdocapitalismomonopolistaeopossibilitam”.Ambostêmprofundasimplicaçõesparaasrelaçõessociaisdentrodaproduçãoeparaaforma que o processo de trabalho assume. A gerência científica (taylorismo) envolve uma separaçãosistemáticadotrabalhomentaldaconcepçãodotrabalhomanualdaexecuçãoe,dessemodo,fragmentaesimplifica o último, que até mesmo um “macaco amestrado” conseguiria realizar. A mobilização daciência e da tecnologia proporciona ao capital a capacidade organizada para revolucionar quase àvontade as forças produtivas. Ela aumenta a separação do trabalho manual do mental e, quandocombinadacomagerênciacientífica,garantequeocontroledoprocessodotrabalhopassedasmãosdotrabalhador para aquelas da gerência – “essa transição se apresenta na história como a progressivaalienaçãodoprocessodeproduçãodo trabalhador”[34]. Issogarantiu“que,àmedidaqueoartesanatodeclinasse,otrabalhadorseafundasseaoníveldaforçadetrabalhogeraleindiferenciada,adaptávelaumaamplasériedetarefas,enquantoàmedidaqueocenáriocrescesse,eleestariaconcentradonasmãosda gerência”[35]. A “desqualificação das habilidades” da massa dos trabalhadores prosseguiarapidamentee,àmedidaqueocapitaladquiriaumcontrolecadavezmaisprofundoecompletosobreoprocessodetrabalho,otrabalho“seaproximavamaisaocorrespondente,navida,àabstraçãoempregadaporMarxnaanálisedomododeproduçãocapitalista”–areduçãodotrabalhoespecializadoaotrabalhoabstratosimplesécompleta[36].Oproblemaapresentadoanteriormenteestáresolvido.

Oúnicoproblemasubstancialquerestaaocapitaléhabituarereconciliarostrabalhadores–sereshumanoscomaspiraçõesepreocupaçõesreais–comadegradaçãodotrabalhoecomadestruiçãodas

Page 123: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

habilidadestradicionais.Oaparentedeslocamentonaestratégiagerencialdocontroledotrabalhoparaocontrole do trabalhador por meio de programas de relações industriais planejados para aumentar asatisfaçãonoemprego,reduzirassensaçõesdealienaçãoetc.,éinterpretadoporBravermancomoumaextensão e um aprofundamento das táticas do taylorismo para penetrar dentro da composição muitopsicológicadosprópriostrabalhadores.Masissotambémtemdesercolocadoemseucontexto.OmaisnotávelnacontribuiçãodeBravermanéaformaqueeleabordaamaneiramuitoespecíficaemqueosprocessosdotrabalhoindustrialsãotransformadosnocapitalismomonopolistaparaatransformaçãodetodososaspectosdavidanoséculoXX[37].

Ele mostra, por exemplo, como outros reinos, além da produção, são afetados pelas mesmastendências. Grande parte do trabalho de concepção e controle torna-se rotina, fazendo com que asprópriasoportunidadesparaasnovasformasdehabilidadesqueocapitalismocriesejamdemodogeralnegadas.Otrabalhoengajadonacirculaçãodemercadorias,dinheiro,informaçãoecoisassemelhantes–atividadesquesetornaramcadavezmaisimportantesàmedidaqueocapitalismomonopolistasetornoumaiscomplexo–tambémfoidegradadoedesqualificadoemsuashabilidades,assimcomograndepartedo trabalho de administração.Mas Braverman não para no trabalho de escritório. Ele estende o seuargumentoparaacomunidadeeparaocernedavidafamiliar,ondemostraasprofundasimplicaçõesparaadivisãosexualdotrabalho,aorganizaçãofamiliaretc.Eletrata,comodisseBurawoy,da

penetraçãodetodaaestruturasocialpelamercadorizaçãodavidasociale,comela,adegradaçãodotrabalhomanifestadapormeiodaseparaçãodaconcepçãoedaexecução.Comoumcrescimentocanceroso,oespíritodamercadorizaçãoedadegradaçãoaparececomumímpetopróprio[…].Elenãopodedescansaratétersubordinadoasitodaaestruturadavidasocial.Umapreocupaçãocomcausasespecíficas,produzindoissomaisaquidoqueali,maisagoradoquemaistarde,éirrelevanteparaoamplomovimentodahistória.[38]

OtrabalhodeBraverman,emboradescrevesseoelogiouniversalcomoumacontribuiçãoimportante,tambémprovocouuma torrentede críticas e comentários.ComoBravermanexplicitamente fundamentaseusargumentosnosdeMarx,surgiuumdebategeralcomrelaçãoàadequaçãocomaqualumououtro,ouambos, lidoucomoprocessode trabalhonocapitalismo.Adiscussão foiextremamentematizadaecomfrequênciaidiossincrática.AlgunsbuscamrepresentaçõesmaisrigorosasemaisacuradasdentrodaestruturaamplaqueMarxeBravermandefinem;outrosfazemobjeção,nãoaMarx,masàextensãoqueBraverman faz deMarx para as condições do capitalismo no século XX; enquanto outros expressamfortes críticas a ambos.É pouco provável que eu possa aqui fazer justiça a esse debate.Apresento aseguirummosaicodascríticasdirigidastantoaMarxquantoaBraverman[39].

O último foi acusado por seus críticos de umavariedade de ofensas. Por toda a sua compaixão epreocupação,tantoBravermanquantoMarxtratamostrabalhadoresdentrodoprocessodetrabalhocomoobjetos,dominadospelocapitalesubordinadosàsuavontade.Elesignoramostrabalhadorescomosereshumanos, dotados de uma consciência e de vontade, capazes de articular preferências ideológicas,políticas e econômicas sobre a fábrica, capazes (quando lhes é adequado) de se adaptar e secomprometer, mas também preparados, quando necessário, para travar uma guerra perpétua contra ocapitalparaprotegerseusdireitosdentrodaprodução.Alutadeclassesdentrodoprocessodetrabalhoé, assim, reduzida a um caso transitório de importância relativamente menor, e a “resistência dotrabalhadorcomoumaforçaqueprovocamudançasdeacomodaçãonomododeproduçãocapitalista”étotalmentenegligenciada[40].Marx e Braverman descrevem equivocadamente amudança tecnológica eorganizacional como uma reação inevitável à operação da lei do valor, às regras que governam acirculação e a acumulação do capital, quando as lutas travadas pelos trabalhos na fábrica afetaram o

Page 124: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

cursodahistóriacapitalista[41].Essahistória,quandoadequadamentereconstruídapelastécnicasfiéisaomaterialismo histórico, apresenta um relato totalmente diferente daquele apresentado por Marx ouBraverman.Esteúltimo impôsconstructos teóricosàs realidadeshistóricase,dessemodo,distorceuahistória. Pior ainda, suas teorias refletiam mais a ideologia capitalista do que a prática capitalista.SegundoLazonick[42],Marxapresentauma“descriçãoequivocadadosefeitosdamulaautomática […]porquetirousuaconclusãodaonipotênciadatecnologianasubmissãodotrabalhoaocapital,partindodeumaaceitaçãoacríticadaideologiacapitalista”(particularmenteaqueladefendidaporUreeBabbage).Palmer,EdwardseBurawoytambémencaramBravermancomoumavítimadaideologiadotaylorismoporque, segundo eles, a históriamostra que a classe trabalhadora derrotou o taylorismo na fábrica eobrigouoscapitalistasabuscaremmeiosdecontrolenovosemaisaceitáveis(paraotrabalhador)[43].Oscapitalistastinhamdesecomprometer,empartedevidoàpuratenacidadedalutadaclassetrabalhadorana fábrica, mas também porque os novos processos de produção, em vez de reduzirem a força dotrabalhadorparalutarcontraocapital,aumentaram,porsuaprópriacomplexidadeeinterdependência,acapacidade para a sabotagem e a desordem. Por isso, os capitalistas tiveram de “fabricar oconsentimento” e despertar a cooperação voluntária dos trabalhadores[44]. O resultado líquido foitransformaro“terrenocontestado”dentrodolocaldetrabalhoemum“terrenodecompromisso”[45].Acooperaçãoentreocapitaleotrabalho,sobreaformaassumidapeloprocessodetrabalho(esquemasdeenriquecimentonoemprego,“autonomiaresponsável”etc.),sobreadefiniçãodaestruturadoempregoedosalário(hierarquicamenteordenadoparaofereceraotrabalhadormobilidadedentrodaempresaeatémesmoumacarreira),torna-seaordemdodiae,poucoapouco,substituiaconfrontaçãoeoconflitonafábrica.

Essas críticas são potencialmente devastadoras. Elas não só desafiam as linhas básicas dainterpretaçãohistóricae teórica traçadasporMarx,como tambémdesafiamaprópriabasedapolíticarevolucionária de Marx[46]. As críticas foram seriamente levadas a diante e em alguns casoscuidadosamentedocumentadas.Por isso,elasnãopodemserdesdenhosamenterejeitadas.AvirtudedeconstruirdefesascontraelaséqueissoaguçaeemalgunsaspectoscorrigeanossainterpretaçãodeparaondeMarxestavasedirigindo.

A acusação de queMarx trata o trabalhador como um “objeto” em certo sentido é verdade. Eraprecisamente o objetivo deMarx que omundo não fosse entendido apenas pela experiência subjetivadireta dele, e que a própria visão da classe trabalhadora de suas potencialidades e poderes ficasseseriamente enfraquecida sem o avanço de uma ciência verdadeiramente materialista. Apresentar esseargumento não nega a validade das experiências subjetivas dos trabalhadores nem diz que a absolutacriatividade e variedade das reações dos trabalhadores nãomerecem ser comentadas ou estudadas.Évital entender como os trabalhadores enfrentam, os “jogos” que inventam para tornar suportável oprocessode trabalho, as formasparticulares de camaradageme competiçãomediante as quais eles serelacionamumcomooutro,astáticasdecooperação,confrontaçãoeasutilmaneiradeevitarlidarcomaqueles que estão em postos de autoridade e, acima de tudo, talvez, as aspirações e o senso demoralidadecomosquaiseles investemsuasvidascotidianas.É também imperativoentendercomoostrabalhadoresconstroemumaculturadistinta,criaminstituiçõesecaptamoutrosparaassuaspróprias,econstroemorganizaçõesparasuaautodefesa.

MasoqueMarxbuscaéumentendimentodoqueostrabalhadoresestãosendoobrigadosalidarcomeasedefendercontra;parachegaraumacordocomasforçasmanifestasquelhessãoimpingidasacadapasso. Por que os trabalhadores têm de enfrentar novas tecnologias, acelerações, dispensas,

Page 125: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

“desqualificaçãodashabilidades”eautoritarismonolocaldetrabalho,einflaçãonomercado?Entendertudoissorequerqueconstruamosumateoriamaterialistadomododeproduçãocapitalista,dacirculaçãoeacumulaçãodocapitalmedianteaproduçãodemercadorias.Eateoriamostraque,dopontodevistadocapital,os trabalhadoressãonaverdadeobjetos,ummero“fator”deprodução–a formavariável docapital–paraacriaçãodemais-valor.A teoriaexibeparaos trabalhadores,comoemumespelho,ascondiçõesobjetivasdeseupróprioestranhamento,eexpõeasforçasquedominamsuaexistênciasocialesua história. A construção dessa teoria, por técnicas que foram além da simples replicação daexperiênciasubjetiva,foi,certamente,arealizaçãomaisnotáveldeMarx.

Masoinquestionávelpoderreveladordateoriamarxiananãogaranteporsiasuaabsorçãoporpartedoproletariadocomoumguiaparaaação.Afinal,aconsciênciapolíticaedeclassenãoéforjadapeloapeloàteoria.Elatemsuasraízesprofundasnaprópriaestruturadavidacotidianaenaexperiênciadotrabalho em particular. Mas a teoria mostra que o capitalismo é caracterizado pelos fetiches queobscurecem, tantoparaocapitalistaquantoparao trabalhador,aorigemdomais-valornaexploração.Por isso, a experiência subjetiva imediata do processo de trabalho não conduz necessariamente àsmesmasconclusõesqueMarxexpressou,pelasmesmasrazõesqueopróprioMarxrevelou.Nãoobstante,a experiência subjetivaé realpor tudo isso.Então,podeexistir uma lacunaentreoquea experiênciadiáriaensinaeoquea teoriaprega–uma lacunaqueas ideologiasdoscapitalistasnãosãodemodoalgumavessasadeixarpersistireaexacerbar.Marx,porsuavez,estavamaisqueumpoucoinclinadoanegaraautenticidadedaexperiência(acategoriadesafortunada,“falsaconsciência”,vemimediatamenteàmente),pressionandomuitofortementeparaopoderreveladordateoria.Alémdisso,suahostilidadeprofundaedescomprometidaparacomaquelessocialistasqueteceramredesutópicasdosubjetivismoeda ilusão tornou ainda mais difícil para ele criar um espaço em seu próprio pensamento em que aexperiência viva e subjetiva da classe trabalhadora pudesse desempenhar seu próprio papel. Emconsequênciadisso,elenãoconseguiuresolveroproblemadaconsciênciapolítica,eéinteressantenotarqueBravermantambémachouprudenteevitaressaquestão[47].

Entretanto,aquestãoéfundamentalenãovaidesaparecer.Elatemincomodadoalgunsdosmelhorespensadoresmarxistas–porexemplo,Lukács,GramscieaquelesdaescoladeFrankfurt,comoFromm,Marcuse,Horkheimer eHabermas – que buscaram uma explicação do caráter não revolucionário dasclassestrabalhadorasnospaísescapitalistasavançadosmedianteumaintegraçãodeMarxeFreud.Maséjustodizerqueadualidadedotrabalhadorcomo“objetoparaocapital”ecomo“sujeitocriativovivo”nunca foiadequadamente resolvidana teoriamarxista.Naverdade,esta temsidoacausadeumatritoimenso e continuado dentro da tradição marxista. Aqueles, como E. P. Thompson, em seu épico Aformaçãodaclasseoperária inglesa,que insisteprincipalmenteno trabalhadorcomosujeitocriativo,frequentementeseveemcastigadosecondenadosaoostracismocomo“moralistas”e“utópicos”porseuscolegas mais teoricamente inteligentes, cuja principal preocupação parece ser a preservação daintegridade e do rigor da ciência materialista marxista. Thompson condena estes últimos por uma“separaçãoarbitráriadeum‘mododeprodução’de tudooque realmenteacontecenahistória”–uma“prática teórica” autovalidadora que “termina sem nos dizer nada e se desculpando por tudo”.Maisespecificamente,elelançaoseudesprezosobreas

autoridadesno“processodetrabalho”quenuncaacharamrelevanteparaasuaexaltadateoriaaobradeChristopherHillsobre“osusosdo sabatarianismo”,nemaminha sobre“o tempoeadisciplinade trabalho”,nemadeHobsbawmsobre“oartesãovagabundo”,nemaquele de uma geração de (americanos, franceses e britânicos) “historiadores do trabalho” (um grupo com frequência rejeitado comdesprezo)sobreoestudodetemposemovimentos,dotaylorismoedofordismo.

Page 126: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Não surpreendentemente, os críticos de Marx e Braverman extraíram muita força da obra deThompson[48].

Então, o que acontece comanossa teoria quando admitimosde volta o trabalhador como“sujeitocriativo”? Thompson é bastante explícito. “Contrariando a visão de alguns profissionais teóricos”,escreveele,

nenhum trabalhadorconhecidodoshistoriadores jamais tevemais-valor extraídode suapele semencontrar algumamaneiradecontra-atacar(hámuitasmaneirasdesediminuiroritmo);e,paradoxalmente,medianteoseucontra-ataque,astendênciasforamdesviadaseas“formasdedesenvolvimento”foramelasprópriasdesenvolvidasdemaneirasinesperadas.[49]

Aqui chegamosà raizdoproblema:opapelda lutade classes eda resistênciado trabalhador emmodificareguiaraevoluçãodopróprioprocessodetrabalho.Seráqueostrabalhadorespodem,comosujeitoscriativosqueresistemàsdepredaçõesdocapital,setornarassimpelomenosautoresparciaisdesua própria história? Será que eles podem alterar as formas damudança tecnológica, os sistemas decontroleeautoridadegerencial,aorganização,aintensidadeeavelocidadedotrabalho,ospadrõesdeinvestimentoereinvestimentoe,daí,adireção,oritmoeoconteúdodaacumulaçãodoprópriocapital?Aexperiência imediatasugeririaumarespostapositivaparaessasperguntas.Ateoriapareceindicarocontrário.Seráquepodemosconciliarasduas?

Oqueateoriamarxianaensinaéqueocapitalismooperasoboimperativoeternoeincansávelpararevolucionarasforçasprodutivas(entendidasemtermosdovalordaprodutividadedaforçadetrabalho).Isto é, já declaramos, uma proposição abstrata concretizada por referência às especificidades damudança tecnológica[50]. Tanto Marx quanto Braverman podem aqui ser julgados culpados de umatransição fácil demais da abstração para as estratégias muito concretas da desqualificação dashabilidades. Uma inspeção mais próxima do que acontece na fábrica indica que a interseção daresistência do trabalhador e da contrapressão gerencial é um assuntomuito complicado, que não temresultados inteiramente previsíveis; a sutilmistura de coerção, cooptação e integração que compõe aestratégiadomanejoérecebidacomrespostasigualmentesutisderesistênciaecooperaçãoporpartedostrabalhadores. E nós também tomamos consciência, como declara Friedman, das limitações tanto darepressãoquantodaautonomiadotrabalhadordentrodoprocessodaprodução.Quandolevadaaosseuslimites,nenhumaestratégiapareceinteiramenteviávele,porisso,asrelaçõessociaisdentrodaempresaquaseinevitavelmenteenvolverãoumequilíbrioflutuanteentreasduas[51].

Masoque tudo issosignifica?Emprimeiro lugar,maisdefinitivamentesignificaquenãopodemosentenderaconsciênciapolíticadostrabalhadoressemumaconsideraçãoatentaàmaneiracomooperamessesprocessos.Masisso,emsi,nãodiznadaemparticularsobreavelocidade,adireçãoeoconteúdoda acumulação do capital.As formas concretas de tecnologia, organização e autoridade podemvariarmuitodeumlocalparaoutro,deumaempresaparaoutra,jáqueessasvariaçõesnãodesafiamoprocessodeacumulação.Há,evidentemente,maismaneirasdeseconseguirlucrodoquedesetirarapeledeumgato.Eseovalordaprodutividadedotrabalhopudersermaisbemasseguradoporalgumnívelrazoáveldeautonomiado trabalhador,queassimseja.Ocapital é, aparentemente, indiferente aomodocomoovalor da produtividade do trabalho é preservado e aumentado.E é essa indiferença que é captada noconceitoabstratodeforçasprodutivas.

Marx,porsuavez,seconcentrafundamentalmentenoextraordináriopoderdocapitalparaseadaptaràscircunstânciasvariadasemqueeleseencontra–circunstânciasqueincluemumaenormediversidade“nanatureza”,assimcomona“naturezahumana”.Porexemplo,aameaçadamobilidadedocapital,do

Page 127: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

fechamentodefábricas,de“runawayshops”[a]edaconsequenteperdadoempregoéumaforçapoderosacomaqualdisciplinarotrabalhador.Taisadaptaçõesporpartedocapitalnãosãoisentasdecustosoudecontradições internas,mas no longo prazo o queMarx prevê é que a resistência do trabalhador devecederdiantedessesenormespoderesdeadaptação.Eaforçadirecionadoraqueestáportrásdetudoissoéatendênciaparaigualarataxadelucropormeiodacompetição.Anobreaçãodefensivatravadaaqui,a resistência específica oferecida ali, podem ser importantes para se entender o desenvolvimentodesigualdocapitalismomundial(porque,porexemplo,aindústriabritânicaficouparatrásdaqueladasoutras nações), mas elas beiram a insignificância, tornam-se irrelevantes, quando julgadas emcontraposiçãoaoamplomovimentodahistóriadaacumulaçãocapitalista.

É precisamente em relação aos poderes adaptativos do capital em geral e aos processos decompetição em particular que os críticos deMarx entram nas brigasmais assustadoras. Por um lado,Friedman e Elbaum et al. parecem querer negar a eficácia da competição como o imperativodirecionadorderevoluçõeseternasnasforçasprodutivasparasubstituí-lapelaslutasdeclassesdentrodaprodução[52].Écomose,tendoentradonoprocessodetrabalhodeumamaneiramaisinstrutiva,elesentão se esquecessem de que há todo um mundo lá fora de preço competitivo, desinvestimento ereinvestimento,mobilidadedocapitalmonetárioetc.OqueMarxdescrevecomooefeitodisciplinadormútuodaleidovalornatrocaenointeriordaproduçãoé totalmenteignorado.Burawoy,porsuavez,emboraenfatizeaimportânciaideológica,políticaeeconômicadaslutasnafábrica,éobrigadoavoltaràcompetição para explicar por que essas lutas não se tornaram a fonte de mudanças no processo detrabalho.E,assim,elechegaàconclusão,frequentementeinsinuadaemoutrasobrasdessetipo,deque“alutadeclassesnãofoiocoveirodocapitalismo,masseusalvador”[53].

De ummodo bem interessante, isso nos proporciona a chave para colocar as lutas na fábrica naperspectiva adequada.Como as lutas econômicas sobre a taxa salarial (ver capítulo 2), elas são umaparte da guerra de guerrilha eterna entre o capital e o trabalho.Os trabalhadores colocam limites naalavancagemdocapitalcomrespeitoàmudança tecnológica,masacontrapressãogerencialdomesmomodo impede qualquermovimento real na direção da genuína autonomia ou do autogerenciamento dotrabalhador. Dentro do fluxo e refluxo da militância do trabalhador e da contrapressão gerencial,podemos localizar uma tendência para “a introdução da mudança unidirecional de longo prazo noprocessodetrabalho”.Adinâmicacíclicadaslutasnafábricasãofatoresdeequilíbrioparaasmudançasdelongoprazodentrodatrajetóriageraldodesenvolvimentocapitalista[54].Dessepontodevista,essaslutasdevemserencaradascomoresultantesdeconflitose transitórias,oquenãoquerdizerquesejampolíticaou ideologicamentedesimportantes.Elaspodemproporcionarabasepara lutaspolíticasmaisamplas e grandiosas, embora os fetichismos necessários que as cercam impeçam qualquer translaçãoautomáticadaexperiênciadelasparaestadosmaisgeraisdeconsciênciapolítica[55].

Aslutasdessetipodesempenhamumpapelmuitoimportanteparaocapital.Elassão,porumlado,umaeternaameaçaaosistema.Mas,poroutro,ajudamaestabilizarosnegóciosporumarazãobásicaemuitofundamental.Amudançatecnológicaemeternaaceleraçãopodeserextraordinariamentedestrutivaparaocapital–istoé,comoveremos,umaimportantefontedeinstabilidade(imagineumasociedadeemque as tecnologias mudassem todos os dias!). A resistência do trabalhador pode conter o passo damudança tecnológica e, namedida emque isso coloca umpatamarmínimopara a concorrência, podeajudaraestabilizarocursododesenvolvimentocapitalista.Háaquium“terrenodecompromisso”noqual o capital pode estar relutantemente disposto a operar. De uma maneira muito semelhante, essescapitalistaspassamaverosbenefíciosaseremextraídosdaregulaçãodajornadadetrabalho,umavez

Page 128: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

que os custos sociais de não regulá-la se tornaram prontamente aparentes, e assim podem vir areconhecerobenefíciodasformasinstitucionalizadasdenegociaçãocomotrabalhadorsobreoritmoeadireçãodamudançatecnológica.Oproblemaparaocapitaléevitaroscontratemposdentrodoprocessodetrabalhoeatingiraqueleritmoeconfiguraçãodamudançatecnológicaconsistentescomaacumulaçãosustentada.Ocapitalnãoénecessariamentebem-sucedidonissoe,comoveremos,háforçasemaçãoquemilitamcontraqualquersoluçãobem-sucedidaparaesseproblema.Masoscapitalistasestãocertamenteconscientes dos imensos perigos que espreitam a mudança tecnológica irrestrita e quase certamentepassam a encarar a negociação comos trabalhadores na fábrica comoparte do pacote de controles –outrosincluemamonopolizaçãoearegulamentaçãoestatal–quecontémmudançatecnológicadentrodecertos limitesaceitáveisparaeles.Dessepontodevista,asrestriçõesmodestasquelhessãoimpostasmediante amilitância do trabalhador podem ser encaradas comoúteis.Oproblema, é claro, é que asexigênciasdos trabalhadoresnemsempresãoconhecidasporsuaparcimônia,e,nesseponto,ocapitaldevereagircomtodaaforçaepoderquepossareunir[56].

Isso nos deixa com um problema residual de alguma importância. TantoMarx quanto Bravermanindicamquea reduçãodo trabalhoespecializadoparao trabalhoabstrato simplesocorrepormeiodadivisãotécnicadotrabalho,amecanização,aautomaçãoeagerênciacientífica.Alémdisso,“paraMarx,a tendência da evolução do processo de trabalho era criar um proletariado industrial homogêneo quedescobriria sua unidade em sua submissão comum ao capital mediante a destruição das habilidades‘tradicionais’e‘pré-industriais’”.Elbaumetal.declaramqueessespontosdevistasãosimplesdemais.

Seja qual for a estrutura técnica da produção, os capitalistas podem requerer divisões hierárquicas do trabalho como modos degerenciamento. E, na determinação da estrutura destas hierarquias, as lutas formais e informais por parte de grupos estratégicos detrabalhadorescomfrequênciadesempenhamumpapelfundamental[…]nãosóo[…]desenvolvimentodocapitalismoindustrialfalhaemeliminar todosessesgrupos“tradicionais”comoosartesãoseatémesmoos trabalhadoresexternos,mas tambémas relaçõesentreosdiferentes grupos de trabalhadores (especialmente os artesãos e os menos especializados) desempenharam um papel crucial nadeterminaçãodaestruturadadivisãodetrabalhoqueemergedamudançatécnica.[57]

Váriasquestões estão envolvidas aqui–questõesdeveracidadehistórica emdiferentes relatosdaevoluçãodoprocessodetrabalho,questõesdeestratégiaeideologiapolítica,deconsciênciadeclasseetc.Masaquestãomaisimportantenestepontodanossainvestigaçãodomododeproduçãocapitalistadiz respeito à redução do trabalho especializado para o trabalho simples. Se a evolução histórica doprocesso de trabalho não semoveu na direção dessa redução, então que crença podemos ter em umateoriadovalorquepressupõequetal reduçãoocorreu?Certamente,osrelatosqueoshistoriadoresdotrabalhoatualmentenosapresentam indicamque, sea redução realmenteocorreu, foiporumprocessoqueseguiuumcaminhomaistortuosoeintrincado[58].Vemo-nosobrigadosarefletir,umavezmais,sobrea relação entre a teoria do modo de produção capitalista como um todo e a evolução histórica dasformaçõessociaiscapitalistas.

Podemos começar simplificando o problema. Em primeiro lugar, a separação de hierarquiasgerenciaisedebasetécnicaéemprincípioirrelevanteporqueambastêmumpapelnamobilizaçãodasforçasprodutivasdo trabalhoparaacriaçãodemais-valor.Emsegundo lugar,Marxmuitocertamentenão declarou que a redução do trabalho especializado para o trabalho abstrato simples envolvia ahomogeneização da força de trabalho até o ponto onde não restassemais nenhuma especialização. Areduçãosignificouaeliminaçãodashabilidadesmonopolizáveiseacriaçãodeumpadrãodehabilidadeflexívelquepermitissesubstituiçõesrelativamentefáceis.Ashabilidadesentãoremanescentespoderiam

Page 129: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

razoavelmente ser responsabilizadas por tantos múltiplos de trabalho abstrato simples. Finalmente,devemosrecordarainsistênciadeMarxemqueareduçãoemsinãotemnadadiretamenteavercomopadrão das diferenças salariais baseadas nos custos da produção ou em “diferenças que há muitodeixaram de ser reais e continuam a existir apenas em convenção tradicional”[59]. O sistema salarial,obscurecendo a origem do mais-valor, contém caracteristicamente todos os tipos de distorções eesquisitices–otrabalhoporempreitada,porexemplo,poderiaterefeitosdiferenciaissubstanciaissobreasrecompensasdostrabalhadoreseassimdarum“maiorespaçodeação”à“individualidadee,comela,o sentimento de liberdade, a independência e o autocontrole dos trabalhadores”, assim como a “suaconcorrência uns com os outros”[60]. Marx sem dúvida não se sintonizou muito com os detalhes dadeterminaçãosalarialoucomsuaordenaçãohierárquica.Masarazãodissofoisimplesmentequeelenãoatribuíagrandeimportânciaaessa“aparênciasuperficial”dascoisas.Amedidaessencialdareduçãodotrabalhoespecializadoparaotrabalhosimplesestánograuemqueocapitalismocriouhabilidadesquesãofacilmentereprodutíveisefacilmentesubstituíveis.Todasasevidênciassugeremqueestatemsidoadireçãoemqueocapitalismovemsemovendo, com ilhasde resistência substanciais aqui e inúmerosbolsõesderesistênciaali.Namedidaemqueareduçãodotrabalhoespecializadoparaosimplesaindaestáemviasdeserconsumada,temosdeconcluirqueocapitalismoestáemviasdesetornarmaisfielàleidovalorinsinuadaemseumododeproduçãodominante[61].Dessepontodevista,pelomenos,parecehaverpoucocampoparaadiscussãodalinhadeargumentaçãobásicadeMarxouBraverman.

III.ASFONTESDAMUDANÇATECNOLÓGICANOCAPITALISMOO fato de a sociedade capitalista ter exibido um grau extraordinário de dinamismo tecnológico eorganizacionaldurante todaasuahistóriaéevidente.Adificuldadeéexplicaressedinamismodeumamaneiraque localize suasorigensdentroda sociedade, emvezde tratá-lo comoalguma força externacomsuaprópriadinâmicaautônoma[62].ÉnesseaspectoqueencontramosMarxemsuamaioreficiênciatanto como analista quanto como crítico. Ele atribuirá amplamente o dinamismo tecnológico eorganizacionaldocapitalismoaumalutadesesperada,travadapelocapital,paraestabilizarascondiçõesinerentemente instáveis da reprodução de classe. Irámedir os limites desse processo e explorar suascontradições.Moldaráumateoriadaformaçãodacrise.E,emparte,basearáoseuapeloàtransiçãoparaosocialismonanecessidadedecurarasgrandesirracionalidadesquesurgemdacontradiçãoexplosivaentreocrescimentonasforçasprodutivasenasrelaçõessociaisnasquaissebaseiaomododeproduçãocapitalista.

Quandopassamosaconsideraramatrizdasrelaçõessociaisqueimpelemamudançatecnológica,nosvemos confrontados com algumas contracorrentes que correm em direção uma à outra de maneirasinteressantes. A concorrência entre os capitalistas e, em menor grau, dentro da classe trabalhadora,desempenhaumpapelimportante,masnãopodemosjulgarareaçãoaessaconcorrênciaisoladamentedasegmentação fundamental entre o capital e o trabalho, que é a marca registrada das relações sociaiscapitalistas.Considere,porexemplo,aspossíveisreaçõesdoscapitalistasaoaumentodaconcorrência.Eles podem (1) baixar a taxa salarial, (2) aumentar a intensidade de uso de um sistema de produçãoexistente,(3)investiremumnovosistemadeprodução,(4)economizareminsumosdecapitalconstantes(usar pormais tempomáquinas antigas, usar demaneiramais eficiente insumos de energia ematéria-

Page 130: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

prima, procurarmatérias-primasmais baratas nomercado etc.), (5) buscar “combinações de fator” esubstituições mais eficientes, (6) mudar a organização social da produção (estruturas de emprego,cadeiasdecomando)nabuscadeumgerenciamentomaiseficiente,(7)apelarparaostrabalhadoresparacooperaremetrabalharemmaisarduamenteparasalvarseusempregos,(8)criarnovasestratégiasparaacomercialização (diferenciação do produto, propaganda etc.), (9)mudança de local (ver capítulo 12).Atravésdeumaoudequalquercombinaçãodessasreações,oscapitalistaspodemesperarpreservaroumelhorar sua posição competitiva. A estratégia escolhida dependerá das circunstâncias e daspossibilidades, assim como das predileções gerenciais. O curso da mudança tecnológica nessascondiçõesparecedifícildeprever.

MasopontocentralqueMarxquerenfatizaréodequeaconcorrência impeleocapitalismopararevoluções eternas nas forças produtivas por quaisquer meios de qualquer tipo. Os capitalistasconcorrem uns com os outros no reino da troca. Cada um tem a possibilidade de alterar seu próprioprocessodeproduçãoparaqueelesetornemaiseficientequeamédiasocial.Estaé,paraeles,afontedomais-valor relativo.Umavezqueos competidores a captaram,os inovadoresoriginais têm todooincentivoparamaisumavezdarumsaltoà frenteparamanteromais-valor relativoqueelesestavampreviamente conseguindo. É claro que aqui há muitas oportunidades para o empresário arrojado,imaginativo e individualista – esse indivíduo inspirado e nobre tão importante para o folclore docapitalismoetãofrequentementedescritocomoaúnicafontedoseudinamismotecnológico[63].

A consequência social da concorrência é, evidentemente, obrigar o contínuo salto para frente naadoção de novas tecnologias e novas formas organizacionais independentes da vontade de qualquerempresário particular – contanto, é claro, que os mercados continuem competitivos. A única questãocolocadaé:quaissãooslimitesparaumprocessodessetipo?

Mas os capitalistas também são extremamente interdependentes uns dos outros, e o grau dessainterdependênciaaumentacomaproliferaçãonadivisãodotrabalho.Efeitoscolateraisemultiplicadorestornam-seimportantes:

Orevolucionamentodomododeproduçãonumaesferadaindústriacondicionaseurevolucionamentoemoutra.Issovale,antesdemaisnada,paraosramosdaindústriaisoladospeladivisãosocialdotrabalho–cadaumdelesproduzindo,porisso,umamercadoriaautônoma–,porémentrelaçadoscomofasesdeumprocessoglobal.Assim,afiaçãomecanizadatornounecessáriomecanizaratecelagem,eambastornaramnecessáriaarevoluçãomecânico-químicanobranqueamento,naestampagemenotingimento[…].Masarevoluçãonomododeproduçãodaindústriaedaagriculturaprovocoutambémumarevoluçãonascondiçõesgeraisdoprocessodeproduçãosocial, istoé,nosmeiosdecomunicaçãoetransporte[que][…]foigradualmenteajustadoaomododeproduçãodagrandeindústriapormeiodeumsistemadenavios fluviais transatlânticosavapor, ferroviase telégrafos.Entretanto,as terríveisquantidadesde ferroque tinhamdeserforjadas, soldadas, cortadas, furadas emoldadas exigiam, por sua vez, máquinas ciclópicas […]. A grande indústria teve, pois, de seapoderardeseumeiocaracterísticodeprodução,aprópriamáquina,eproduzirmáquinaspormeiodemáquinas.Somenteassimelacriousuabasetécnicaadequadaesefirmousobreseusprópriospés.[64]

Parece não haver fim para tal espiral de efeitos multiplicadores. Para começar, qualquerdesenvolvimentodesigualdasforçasprodutivasdentrodasdiferentesfasesdeumsistemaverticalmenteintegradodeproduçãovaicriarproblemasparaofluxoestáveldeinsumoseprodutosdamatéria-primabruta até o produto acabado. E é difícil imaginar como as estruturas tecnológicas puderam algumdiaestarexatamentecertasparaequilibrarumprocessodesse tipo.Osefeitosgeraisdealastramentoparaoutras esferas também serão provavelmente marcados pelo desenvolvimento desigual e por efeitoscolateraisemespiral.Considere,porexemplo,aquelasmudançastecnológicasquediminuemocustoeotempodecirculação.Àmedidaqueadivisãodotrabalhoproliferaeasinteraçõesdomercadosetornam

Page 131: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

maiscomplexas,oscustostendemasubireapressãoparareduzi-losaumenta.Dopontodevistafísico,issosignificapressãoparareduzirocustoeotempodemovimentodasmercadoriaseparaeconomizarnos custos do atacado, do varejo e da comercialização. Inovações que afetam a velocidade que odinheiropodecircular(osistemadecrédito)equeasinformaçõespodemsercoletadasedisseminadas–otelégrafo,otelefone,orádio,otelexetc.–tambémsetornamimperativas.Nemmesmoosaparelhosdomésticosficamimunes:atecnologianoconsumofinaldeveacompanharasexigênciasparaabsorverasquantidadesaumentadasdasmercadoriasproduzidas.

Emcertopontodotempoprovavelmentehaveráumadesigualdadeconsiderávelnodesenvolvimentodasforçasprodutivasentreasfirmas individuais,as indústriaseatésetoreseregiões inteiros.Masosestados tecnológicosnãosão independentesumdooutro.Cadaumserveparadefinirooutromedianteefeitosdeinteraçãomúltiplos.Estessãoextremamentedifíceisderastrear.Naverdade,asinteraçõessãotão extensas, tão amplas as ramificações, que a mudança tecnológica parece assumir uma dinâmicaautônoma,inteiramentedivorciadadesuasorigensnacompetiçãocapitalistaenasrelaçõesdeclasse.Amudança tecnológicapodese tornar“fetiche”comouma“coisaemsi”,comoumaforçadirecionadoraexógena na história do capitalismo. A presunção da necessidade e inevitabilidade da mudançatecnológica se torna tão forte que a luta por ela – incorporada em uma ideologia prevalecente deprogressotecnológico–passaaserumfimemsi.

Isso tudoapontaparaumaespiralsemfimesempreaceleradademudança tecnológica,estimuladapelacompetiçãoesustentadapormeiodeefeitosmultiplicadoresquereverberampelasesferascadavezmais integradas da atividade econômica.O notável nessas circunstâncias não é o fato de a sociedadecapitalista ser tecnologicamente dinâmica, mas o fato do seu dinamismo ter sido tão tranquilo econtrolado.O fatode isso acontecerdeve emparte ser atribuído abarreirasque surgemdas relaçõessociaisdocapitalismo.Considere,então,asbarreirasqueoprópriocapitalerguecontraatendênciaparaamudançatecnológicaeorganizacionalemperpétuaaceleração.

Qualquer mudança tecnológica e organizacional incorre em custos diretos e indiretos. Entre osprimeirosestãoosgastosemnovafábricaeequipamentos,ocustodoretreinamentodaforçadetrabalhoeoutros custosdiretosde implementação.Entreosúltimos estão a inexperiênciagerencial comnovastécnicasounovossistemasdeautoridade,resistênciadotrabalhadoreatémesmosabotagemdosmétodosaos quais os trabalhadores não estão acostumados ou que eles acham degradantes, horas perdidasaprendendo no emprego, e mais uma variedade de efeitos de externalidades não previstas que nãoentraram nos cálculos iniciais. Qualquer firma tem de pesar os custos e benefícios da mudança emrelaçãoaosestadosdecompetiçãoexistenteseesperados.Comomuitosdessescustosebenefíciossãodesconhecidoseoestadodacompetiçãoésempreimprevisível,acapacidadeindividualea tendênciaparacorrerriscos–maisumavez,muitoenfatizadapelosintérpretesburguesesdahistóriacapitalista–entramnelacomoumelementodemediação.

Entretanto, os principais entre os custos potenciais são aqueles ligados à retirada prematura docapital fixo que ainda não foi totalmente amortizado. O valor incorporado nasmáquinas e em outrasformasdecapital fixosópodeser recuperadoapóscertoperíodode tempo.As revoluçõesnas forçasprodutivaspodemterimpactosdesastrososaquieobrigaremosprodutoresaassumirgrandesperdassenovosequipamentos(maisbaratosemaiseficientes)entraremnomercado.Issonoslevaaoterritórioqueiremosexploraremdetalhesnocapítulo8.Nomomento,vamossimplesmenteobservaraironiadequeocapitalfixo,elepróprioumdosprincipaismeiosempregadosparaaumentaraprodutividadedotrabalhosocial, se torna, uma vez instalado, uma barreira para outras inovações. Assim, o capital constitui

Page 132: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

barreirasparasuaprópriadinâmicadentrodesimesmo.Ospotenciaisefeitosperturbadoresdamudançatecnológicapodemserrastreadosemtodoosistema

deproduçãoenegociaçãodovalor.Mudanças importantessãodifíceisdeabsorverepodemprovocarumgravechoquenaestabilidadedosistema.Quandoodesenvolvimentosetornademasiadodesigual,elepodesemearcrisesdedesproporcionalidadeentre,porexemplo,acapacidadeparaproduzirmeiosdeprodução em relação à capacidade para produzir bens de consumo. Deixando de lado os efeitosdisciplinadores das crises, há outras forças emaçãoque servemparamoderar a inserção arbitrária epotencialmentecatastróficademudançatecnológicanoqueéfrequentementeumsistemadeproduçãoenegociação muito delicadamente equilibrado. As empresas individuais vão naturalmente relutar emadotar inovações que aumentem seu produto além do que o sistema pode absorver. Conscientes dosobstáculosnotransporteenascomunicações,ounacapacidadedomercado,asfirmasvãomoderarseusimpulsosparaamudançatecnológicacompetitivaeseacomodaralucrosmédios,emvezdeexcedentes.E,namedidaemqueo resultadodacompetição for semprealgumgraudemonopolização,aspráticasmonopolistassetornampartedeumaestratégiaparacontrolaroritmogeraldamudançatecnológica.Aparticipação ativa doEstado através de leis de patentes, financiamento da pesquisa básica etc., podeadicionar uma bateria impressiva de controles potenciais que mantêm a tendência para a aceleraçãoperpétuanoprogressotecnológicosobcontrole.Vamosretomaressasquestõesnocapítulo5.

Asbarreirasparaamudançatecnológicaeorganizacionalestãoaí.Servindoparamanteroritmodamudançaemlimitesrazoáveisparaocapital,elasajudamaequilibraroquedocontráriopoderiaserumprocessoperigosamenteinstável.Quandolevadasaextremos,essasbarreirasatuamcomobarreirasparaaprópriaacumulaçãoe,porisso,devemsersuperadasparaocapitalismopodersobreviver.Ocaminhoparaamudançatecnológicanuncafoiexatamentetranquilo,masasforçasqueoregulamtêmdesermuitodelicadamenteequilibradasparaacontinuaçãotranquiladaacumulaçãodocapitalserassegurada.

Alguns dos mecanismos pelos quais um equilíbrio delicado é mantido tornam-se mais evidentesquandointroduzimosnocenárioarelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalho.Jávimosqueovalordaforça de trabalho, assumindo um padrão de vida constante em termos físicos, é reduzido pelaprodutividade crescente do trabalho no setor de bens salariais, mas que as forças contrárias estãotambémemaçãoparagarantir queo trabalhoobtenhaum“equilíbrionaparticipaçãodemercado”dovalortotalproduzido.Seotrabalhoobtivermaisdoqueasuaparteeossaláriossemoveremacimadovalor de uma maneira que ameace a acumulação, então a pressão aumentará para a introdução detecnologiasqueeconomizemaforçade trabalhoe induzamodesemprego.Aproduçãodeumarelativapopulaçãoextraquediminuaossaláriosedetenhaopoderdotrabalhoemrelaçãoaocapitaltorna-seumdispositivo crucial para garantir a perpetuação da acumulação em face das condições cambiantes daoferta de trabalho. A tecnologia também pode ser acionada para diminuir o poder da mão de obraorganizada,sejana fábricaounamesadenegociações.Asmáquinas,declaraMarx,“sãoaarmamaispoderosaparareprimirasgreves,essasperiódicasrevoltasdaclassetrabalhadoracontraaautocraciadocapital”. A máquina a vapor, por exemplo, “permitiu aos capitalistas esmagar as crescentesreivindicações dos trabalhadores, que ameaçavam conduzir à crise o incipiente sistema fabril”. Naverdade, “poder-se-ia escrever uma história inteira dos inventos que, a partir de 1830, surgirammeramentecomoarmasdocapitalcontraosmotinsoperários”[65].Adinâmicadacompetiçãocapitalistapareciamaisumavezapontarparaacompletadestruiçãodopodereconômicoepolíticodotrabalhador.

Mashátambémemaçãotendênciascontrárias–tendênciasqueestabelecemumpatamarmínimoparaacompetiçãoe,por isso, servempara regularo ritmodamudança tecnológica.Oempregoounãodo

Page 133: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capital fixo dependeria, por exemplo, da “diferença entre o valor damáquina e o valor da força detrabalhoporelasubstituída”.Dadasasdiferençasinternacionaisnopreçodaforçadetrabalho,nãoerademodoalgumsurpreendentequeasmáquinas inventadasnaInglaterrasóencontrassem“aplicaçãonaAméricadoNorte”equeaInglaterra,“opaísdasmáquinas”,devesseaomesmotemposercaracterizadapor um “um desperdíciomais desavergonhado de força humana para ocupaçõesmiseráveis”.A razãoparaissopoderiaserapresentadadeummodobastantebrutal:

naInglaterra,ocasionalmenteaindaseutilizam,emvezdecavalos,mulheresparapuxarosbarcosnoscanais,porqueotrabalhoexigidopara a produção de cavalos e máquinas é uma quantidade matematicamente dada, ao passo que o exigido para a manutenção dasmulheresdapopulaçãoexcedenteestáabaixodequalquercálculo.[66]

Às vezes, quando o exército industrial de reserva se torna maciço, o capital tem abundantesincentivos para voltar às técnicas de mão de obra intensiva (daí a revivificação contemporânea dotrabalhoescravoatémesmonospaísescapitalistasavançados).Oestímuloparaformasmaiscomplexasdemudançatecnológicaeorganizacionalcertamenteéembotadoemépocasdeexcedentecrônicodemãodeobra.

Tambémtemosdeclaradoquea lutadeclassesna fábrica temum importantepapeladesempenharcomo um dispositivo de equilíbrio. Essas lutas podem servir para deter de inúmeras maneiras aaceleraçãoperigosadamudançatecnológica(porexemplo,asnovastecnologiasrequeremalgumgraudecooperação do trabalhador quando são introduzidas). Por isso, a guerra de guerrilha na fábrica podedesempenharpapéistantopositivosquantonegativosnaestabilizaçãodocapitalismo.

Mas as relações exatas aqui sãomuito complexas. Podemos ter certeza de que o imperativo paraacumular está perpetuamente no pano de fundo. O problema é que as formas reais de mudançatecnológica e organização são tão variadas, e as forças que as regulam tão interligadas, que nãoconseguimos prontamente distingui-las. Embora a mudança tecnológica desempenhe um papelfundamentalnateoriamarxiana,nãotemosumentendimentocompletodela.Ofatodeacompetiçãoeainterdependênciacapitalistas,assimcomoa lutadeclassesentreocapitaleo trabalho,constituíremoeixoemtornodoqualgiraaanáliseéinquestionável.Masainteraçãoeosefeitosmultiplicadoresnãoforamtotalmenteanalisados,assimcomoasconsequênciasdaproduçãodiretadenovosconhecimentoscientíficos.

Isso indica uma séria lacuna na exposição de Marx. A lacuna está ali, mas devemos interpretarcorretamente o seu significado. Afinal, se a tecnologia de um processo de trabalho particular é umaexpressãoeumaincorporaçãodascontradiçõesfundamentaisdocapitalismo,comoMarxfrequentementeafirma,entãoumplenoentendimentodaprimeiradependedeumasoluçãocompletadoúltimo.Emvistadisso, um entendimento da tecnologia deve ser encarado como um produto final dessa linha deinvestigaçãoqueMarxnãoconcluiu.

Masnãopodemossequeriniciaraanálisedasleisdomovimentodocapitalismosemantesapresentaralgumaconceituaçãodatecnologia.IssoMarxfazmedianteosconceitosabstratosdeforçaprodutivaerelações sociais, pois estes estão incorporados na materialidade concreta do processo de trabalho.Assim, Marx pode abstrair os detalhes específicos das mudanças tecnológicas reais e simplesmentedeclarar que as revoluções nas forças produtivas são um produto necessário das relações sociais docapitalismo.Masumentendimentomaisprofundodisso,comooentendimentodaprópria leidovalor,deveemergirnodecorrerdainvestigaçãosubsequente.OqueMarxprocuraprovaréqueasrevoluçõesnas forças produtivas são fundamentalmente antagônicas às próprias relações sociais que as semeiam.

Page 134: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Aqui, na opinião deMarx, está a principal contradição do capitalismo: aquela entre a evolução dasforçasprodutivasedasrelaçõessociais.

AprovaqueMarxapresentadessaproposiçãogeraléparcialeincompleta.Primeiroprecisamosveraté que ponto ele progrediu nesse árduo caminho; depois, através de uma avaliação crítica, tentarempurrarsuaargumentaçãoatéseuslimites.

IV.ASCOMPOSIÇÕESTÉCNICAS,ORGÂNICASEDEVALORDOCAPITALAgoravamosabordaradifícilquestãodoimpactodasrevoluçõeseternasnasforçasprodutivassobreopróprio capital.Assim será conveniente assumir que as tecnologias concretas empregadas (no sentidoamploqueMarxdáaessetermo,queincluitodasascaracterísticasorganizacionais)expressamfielmenteaconfiguraçãofundamentaldasforçasprodutivas.Vamostrabalhardomesmomodocomosvalores,nasuposição de que todas asmercadorias são negociadas em seus valores (os preços refletemvalores).Essas suposições possibilitam maior grau de generalidade à discussão e nos permitem falar maislivremente sobre os efeitos concretos potenciais das forças fundamentais de uma maneira que épotencialmentegeneralizávelparaaexperiênciahistórica.Ocarátertentativodessasidentificaçõeseocaráterhipotéticodasgeneralizações resultantesdevemestaraparentesapartirdenossasobservaçõesanteriores.

Noprimeiromomento,umestadotecnológicoparticularestáassociadoàcertaprodutividadefísicada força de trabalho. Essa produtividade física émedida em diversas unidades não comparáveis – onúmerodemetrosdepanotecido,onúmerodesapatosfabricados,astoneladasdeferroeaçoproduzidasetc., por trabalhador por hora.Marx chama essas proporções de “a composição técnica do capital”.Quando reduzidas a uma base de valores comum, são expressas em termos da proporção de capitalconstanteparacapitalvariávelempregadoemumperíododeproduçãopadronizado.Aproporçãoc/véchamadade“acomposiçãodevalordocapital”.Emalgunscasos,aproporçãoc/(v+m)épreferívelcomo medida, porque esta capta com maior precisão a proporção entre o trabalho “morto” passado(meiosdeproduçãodetodosostiposdepropriedadedocapitalista)eonovovaloracrescentadopelo“trabalho ativo”. Indústrias e setores diferentes podem então ser comparados segundo as diferentescomposiçõesdevalordeseuscapitais.Asindústriasdecapitalconstanteintensivoexibemcomposiçõesdealtovalor,enquantoaquelasindústriasqueempregammuitotrabalhoativoestãonaoutraextremidadedaescaladacomposiçãodevalor.

Jávimoscomoeporqueoscapitalistasprecisamrecorreràmudançatecnológica.Issosignificaqueas composições técnicas do capital estão eternamentemudando.O próximo passo émostrar como asmudançasnacomposiçãotécnicaafetamacomposiçãodevalor.ParafazerissoMarxintroduzoconceitoda “composição orgânica do capital”. Diz ele: “para expressá-la, chamo a composição de valor docapital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e reflete suas modificações, decomposiçãoorgânicadocapital”[67].A implicação imediata dessaobservação é que a composiçãodevalortambémpodemudarporrazõesquenãotêmnadaavercomacomposiçãotécnica.

Temos aqui três conceitos fundamentais para o argumento que se segue. Infelizmente, há uma boapartedeconfusãonopensamentodeMarx–eumaconfusãobastantemaciçanaliteraturasubsequente–quantoàsrelaçõesentreascomposiçõestécnicas,orgânicasedevalordocapital.Adistinçãoentreas

Page 135: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

composições de valor e orgânicas, por exemplo, parece muito importante. Mas em alguns pontosencontramosMarx usando os termos alternadamente, enquanto em outros ele parece enfatizar que ostermosdevemsermantidosseparados.Ainconsistênciadousopodeseremparteexplicadapelofatodeque ele chegou a esses conceitos relativamente tarde e não conseguiu um refinamento apropriado dosmesmos. O conceito de composição orgânica, por exemplo, aparece apenas na terceira edição doprimeiro livro de O capital, supostamente como uma amostra das ideias a serem publicadas noinacabadoterceirolivro.Sejacomofor,hámuitaconfusãoaquiquedeveserorganizada[68].

Considere,emprimeirolugar,aideiadequeacomposiçãodevalorpodealterarporoutrasrazõesalémdemudançasnacomposiçãotécnica.EmsuascríticasaRicardoeCherbuliez[69],Marxsugerequeacomposição de valor pode alterar e altera independentemente as forças que regulam a composiçãoorgânica.Nocapítulosobrea“rentabilidadeabsoluta”emOcapital[70],elevaialém:

capitais de igual composição orgânica podem ser de diferentes composições de valor, e capitais com percentagens idênticas decomposiçãodevalorpodemmostrargrausvariadosdecomposiçãoorgânicae,assim,expressardiferentesestágiosnodesenvolvimentodaprodutividadesocialdotrabalho.

Como há, presumivelmente, apenas uma proporção de valor que pode prevalecer dentro de umprocesso de produção, essa declaração bastante extraordinária nos coloca em certa dúvida quanto àinterpretação exata a dar à composição orgânica vis-à-vis a composição de valor. Depois disso,certamente, não podemos tratar a composição orgânica e de valor como termos idênticos (como tãofrequentementeéfeitonaliteratura).

Marx aparentemente pretendia reservar o termo “composição orgânica” para indicar aquelasmudançasnatecnologiadentrodeumaempresaqueafetamacomposiçãodevalordocapital.Esseéumrótuloque identifica uma fonte particular demudanças na composição de valor.A importância de talidentificaçãoestánoseguinte:amisturatecnológicadentrodaempresaestáamplamentesobocontroledecapitalistasindividuais,quepodemalterá-laerealmenteaalteram(namedidaemquesãocapazesdefazê-lo)emsuabuscaincessantedemais-valor,queremrespostaàcompetiçãoouporpreocupaçãopelasituaçãodalutadeclasses.Adinâmicadeumprocessodessetipopodeserentendidaindependentementedoscustosflutuantesdosinsumosnaprodução.

Mas as composiçõesdevalor serão tambémalteradaspor várias considerações sobre as quais oscapitalistas individuais não têm controle.As forças externas que regulam a composição de valor sãodiversasemsuaorigem,maspodemosproveitosamentesepará-lasemdoisgrupos.Primeiro,devemosconsiderar as forças “acidentais e conjunturais” que afetam o valor dos insumos que os capitalistasadquiremnomercado.Estesvariamdesde“acidentes”climáticos(nãoimportasesãoinduzidosounãopor açãohumana), contratemposnocomércio,guerras, a exploração sistemáticada superfícieda terrapararecursosmais“produtivos”etc.,todososquaisafetamotempodetrabalhosocialmentenecessáriorequerido para produzir mercadorias. Em segundo lugar, temos de considerar a multiplicidade deinteraçãoeefeitosmultiplicadoresquevinculamaprodutividadedotrabalhoemumsetorcomovalordosinsumosparaoutro.Entretanto,osefeitosdeinteração,quetêmsuasorigensdentrodoprocessodetrabalho,nãoestãosobocontroledocapitalistaindividual.Emoutraspalavras,acomposiçãodevalordo capital dentro de um processo de produção depende fundamentalmente do estado da tecnologiaadotadapelosempresáriosqueproduzemosinsumosparaesseprocessodeprodução.

Ocontrasteentreasforçasinternaseexternasàempresaémuitoimportante,eé,acreditoeu,aideiaque Marx estava procurando captar na distinção entre as composições de valor e orgânica. Os

Page 136: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capitalistasindividuaiscontrolamseupróprioprocessodeproduçãoeescolhemsuatecnologiasegundoas circunstâncias econômicas.Mas eles operam em um ambiente demercado em que os valores dosinsumossão fixadospor forçassobreasquaisnenhumindivíduo temcontrole,mesmoqueasescolhastecnológicas individuais dos empresários tenham efeitos multiplicadores sistêmicos. O queMarx vaifinalmente tentar provar é que escolhas individuais aparentemente racionais por parte dos indivíduosameaçarãoabaseparaaacumulaçãoe,portanto,aprópriasobrevivênciadaclassecapitalista.Foiessacontradição que Marx buscou captar por meio dos conceitos similares de composição de valor ecomposiçãoorgânica.

Oprimeirolivrod’Ocapitalconsideraaproduçãodopontodevistadoempresárioindividualqueprocuramaximizaroslucrosnacompetição.Somenteaquelasinovaçõestecnológicasquecaptamomais-valor relativo dentro da empresa são consideradas. Embora os efeitosmultiplicadores das inovaçõestecnológicas sejam mencionados, o impacto que estas podem ter sobre o valor das proporções deinsumoséemgeralignorado,excetonocasodocapitalvariável–ovaloremquedadaforçadetrabalhocomo um resultado do aumento da produtividade nas indústrias que produzem bens salariais éconsiderado uma fonte primordial de mais-valor relativo para os capitalistas. Aqui encontramos asuposta“tendênciaparaaeconomiademãodeobra”norelatodeMarxda inovaçãotecnológica.Mascom a atenção voltada à mudança tecnológica dentro da empresa, Marx pode concluir que há umatendência inevitável para a composição de valor aumentar como resultadoda crescente produtividadefísicadotrabalhador.Essaideiaemergevigorosamentenoterceirolivrod’Ocapital,àpágina212:

Amesmaquantidadedeforçadetrabalho,colocadaemmovimentoporumcapitalvariáveldeumdeterminadovalor,opera,sedesenvolveeconsomeprodutivamente,nomesmoespaçodetempo,umaquantidadesemprecrescentedetrabalho,máquinasecapitalfixodetodosos tipos, matérias-primas e auxiliares – e, consequentemente, um capital constante de um valor sempre crescente. Essa contínuadiminuiçãorelativadocapitalvariávelvis-à-visoconstante[…]éidênticaàcomposiçãodevalororgânicoprogressivamentemaisaltadocapitalsocialemsuamédia.É,domesmomodo,apenasoutraexpressãoparaodesenvolvimentoprogressivodaprodutividadesocialdotrabalhador.

Apretensa “lei” do “aumento da composição orgânica do capital” desempenha um papel vital noargumentodeMarxe,porisso,devemosconsiderá-lacuidadosamente.OqueMarxestádizendoéqueaproporção de trabalho “morto” para trabalho “vivo” tende a aumentar como resultado da inovaçãotecnológica dentro da empresa. Mas ele não nos prova que isso vai necessariamente acontecer. Naverdade, àmedida que nos aprofundamosmais em seu argumento, descobrimos que todos os tipos dedificuldadesestão ligadosàmaneiraemqueele formulaoproblema.O fatoéqueelenãose libertouinteiramentedasconcepçõesequivocadasdaeconomiapolíticatradicional.Vamosveremquaisaspectosissoacontece.

A economia política tradicional lidou com a estrutura da produção capitalista em termos de umestoquedecapital fixoefluxodecapitalcirculante.Olucrofoientão interpretadocomoumfluxodosganhos reais a seremobtidos do emprego apropriado de um estoque de bens (dinheiro ou instalaçõesfísicas).Marxrompeucomessaconcepçãoesubstituiuadistinçãoentrecapitalconstanteevariável.Eleconcebiaamboscomofluxos[71].Ocapital,lembre-se,édefinidoporMarxcomoumprocessoemqueovalor sofreumaexpansão, epor issoelebuscoudefiniçõesque refletissemo fluxodesseprocesso.Aforçadetrabalhoéusadaparapreservarovalordosmeiosdeproduçãousadosaomesmotempoqueelaadiciona valor – “é pelo mero acréscimo de novo valor que ele [o trabalhador] conserva o valoranterior”[72]. A composição de valor do capital representa a proporção entre o valor que está sendo

Page 137: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

preservado e o valor que está sendo adicionado. É uma proporção entre dois fluxos. Vimos que oconceitodecomposiçãoorgânicaconcentraanossaatençãonamaneiraemqueamudançatecnológicanointerior do processo de produção permite a mesma quantidade de força de trabalho aplicada parapreservareexpandirmaiorvalordoqueanteriormente.Surgementãoduasdificuldades.

Antesde tudo, podemos enxergar claramenteque a composiçãodevalor do capital, comoMarx aavalia, é extremamente sensível ao grau de interpretação vertical nos processos de produção. Se umprocessodeproduçãocomeçacomoalgodãobrutoeterminacomumacamisa,ovalordoinsumoinicialdocapitalconstanteépequenoemcomparaçãocomocapitalvariávelaplicado.Seomesmoprocessodeprodução é dividido em duas empresas independentes, uma que produz roupas de algodão e outra,camisas, então a quantidade de capital constante parece aumentar porque o trabalho incorporado naproduçãoderoupasapareceagoracomoocapitalconstanteadquiridopelosfabricantesdecamisas.

Podemos ilustrar essa ideiapormeiodeumdiagrama (verFigura4.1)[73].Considereumprocessoqueseinicianotempot0,comuminsumoinicialdecapitalconstantec0,equeprossegueatéotempotnadicionando capital variável aovalor dev0 e adicionandomais-valorm0.A composição de valor docapital nesse caso é c0 /v0. Agora considere esse mesmo processo de produção dividido em doissegmentos no tempo tk, de forma que o valor total naquele momento se torna o insumo do capitalconstante,c2,nosegundosegmentodoprocesso (verFigura4.2).Acomposiçãodevalormédionessecasoé(c1=c2)/(v1=v2),queéobviamentemuitomaiorquec0/v0.

Figura4.1

Ummodelodeestoqueefluxodesseprocessoencontraaquantidadedeestoquedocapitalconstantesensívelaograudeintegraçãovertical.Ummodelodefluxopurodegenerarapidamentenoreductioadabsurdumdequesomenteaqueletrabalhoqueestásendoincorporadonesseexatomomentoéotrabalhovivo, enquanto todo outro trabalho tem de ser considerado como trabalho “morto” passado.O últimomodelosópodesersalvoconsiderando-secomoessesfluxossãorompidospelastrocasdomercado,oquenoslevadevolta,umavezmais,àquestãodograudaintegraçãovertical.

Page 138: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Figura4.2

Essa dificuldade não é de modo algum tão prejudicial ao argumento de Marx quanto parece àprimeiravista.Afinal,eleincluiascaracterísticasorganizacionaisemsuacaracterizaçãodatecnologia,eosníveisdecentralizaçãoeconcentração,emqueoproblemada integraçãovertical tambémdeveserincluído, são de vital interesse para ele. Na verdade, podemos usar essa aparente dificuldade demaneirascriativas.Seaconcentraçãoverticaltemoefeitodediminuirovalordacomposiçãodocapital– sempre assumindo, é claro, que a tecnologia de produção real permanece constante – então elaproporcionaummecanismoquesecontrapõeàsuposta“leidaascensãodacomposiçãoorgânica”.Antesdeficarmosfascinadoscomessaideia,precisamosconsiderarmelhoralgumascircunstânciasimportantesqueamodificam.

OsegundolivrodeOcapitaltratadoprocessodecirculaçãodocapital.Oatodaproduçãoéagoratratadocomoummomentoemumprocessodecirculação.Estamosaquiparaapreciaramplamenteoquesignificaconceberocapitalcomoumprocesso,comoumfluxo.Somosexpostosaumaanálisedoscustosdecirculação,giro,produçãoe temposdecirculação, assimcomoàspeculiaridadesdacirculaçãodocapital fixo. Mais importante de tudo, do ponto de vista dos problemas que estamos presentementeconsiderando,ostemposderotaçãodocapitalvariáveledocapitalconstante,assimcomoomais-valor,sãoexaminadoscomalgumdetalhamento.

A mudança tecnológica é vista como importante e necessária em cada um desses aspectos. Adiminuiçãodoscustosdecirculaçãoe a reduçãodos temposde rotaçãopodemservirparaacelerar aacumulação.Ousodocapitalfixolevantaumproblema,poisporumladoelepodeservirparaaumentarovalordaprodutividadedotrabalho,enquantoporoutroladoelerequerumtempoderotaçãomaislongoe, assim, diminui a acumulação. O impacto dessasmudanças tecnológicas na composição do valor –dentro das empresas e também na sociedade como um todo – não é explorado de nenhuma formacoerente. Em algumas passagens esparsas Marx parece sugerir que tempos de rotação mais rápidosaumentamascomposiçõesdevalor.Mas,emgeral,oconceitodecomposiçãodevaloroucomposiçãoorgânicaétotalmenteignoradonosegundolivro.

Acomposiçãodevalordocapitaléclaramentemuitosensívelàsvelocidadesde rotaçãorelativastantodocapitalvariávelquantodocapitalconstante.Seotempolevadoparareobterocapitalvariáveldiminui, então o capital variável adiantado diminui e a composição de valor aumenta, ainda que aquantidadedeforçadetrabalhoempregadacontinueexatamenteamesma.Otempoderotaçãodocapitalconstanteéaindamaisproblemático.Temosdelidarcomváriasmatérias-primaseinsumosdeenergia,em diferentes velocidades, assim como acontece com o capital fixo (máquinas, prédios etc.), cujasrotaçõespodemsermuitomaislentasdoqueadeoutrositens.Nãoéfácilcriarumamedidadevolume

Page 139: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

do capital constante sendo preservado nessas condições. Mesmo deixando de lado os problemascomplicadosligadosàcirculaçãodocapitalfixo(vercapítulo8),deveserevidentequeumaaceleraçãonotempoderotaçãodocapitalconstantereduzacomposiçãodevalordocapital.

Porisso,independentementedograudeintegraçãovertical,ostemposderotaçãorelativosdocapitalvariáveledocapitalconstantedentrodaempresatêmumimpactodiretosobreascomposiçõesdevalordos capitais usadosnaprodução.Nas circunstâncias certas, a quedada composiçãodovalor atingidamediante a integraçãovertical crescente poderia sermais que compensadapelo aumentodo tempoderotaçãodaconstanterelativaaocapitalvariávelusado.

Mas a análise apresentada no segundo livro também nos indica outras circunstâncias quemilitamdiretamentecontraoaumentodaintegraçãoverticalnaprodução.Acirculaçãogeraldocapitalassumeaforma

Quantotempoocapitaldevepermanecerdentrodaproduçãoantesdetestaroseuvalornaesferadatroca?A resposta deMarx a essa pergunta é: o tempomais curto possível, pois o capital só é valorquandoestáemmovimento,istoé,noatodesertransformadodedinheiroematividadeprodutivaedaíemmercadoriasedaíemdinheiro,eassimpordiante.Porisso,háumforteincentivoparaaceleraraomáximoarotaçãodocapital.Issomilitacontraaintegraçãoverticaldaprodução,poisestaúltimarequerqueocapitalpermaneçaduranteumperíodomaislongonaprodução,antesdeentrarnaesferadatroca.Adivisãodeumprocessodeproduçãoemmuitasfaseseempresasdiferentesvinculadaspelointercâmbionomercadoparece ser altamente desejável, pois ela diminui o tempode rotaçãodo capital. Por essarazão,atégrandescorporaçõespreferemsubcontratarumlotedeproduçãoparapequenasempresascomtemposderotaçãomaiscurtos.Masoefeitodisso,comojávimos,éaumentaracomposiçãodevalordocapitalindependentementedequaisquermudançasquepossamserinstituídascomrespeitoaosprocessosdeprodução.Examinaremosasimplicaçõesdissoparaaorganizaçãocapitalistadaproduçãonopróximocapítulo.

HáumaspectoemqueaestruturaconstruídanosegundolivrodeOcapitalnosproporcionaummeioparaanalisarasforçasqueregulamacomposiçãodevalordocapital.Nosdoisúltimoscapítulosdessevolume,Marxconstróiummodelodesagregadodeumaeconomiaeexaminaascondiçõesparaoaumentodo equilíbrio (ver capítulo 6). Esse modelo desagregado proporciona um formato interessante paraexploraralgunsdosefeitosdeinteraçãodamudançatecnológicaemdiferentessetoresdeumaeconomia.Considereumaeconomiadivididaemdoissetoresproduzindonecessidades(quefixamovalordaforçade trabalho) e meios de produção (os elementos do capital constante). Se a velocidade da mudançatecnológicaémaisaltanosetorqueproduznecessidades,entãoacomposiçãodevalortotaldocapitaltenderáaaumentardevidoàeconomiarelativanosgastosdocapitalvariável.Docontrário,acrescenteprodutividadedotrabalhonosetorqueproduzmeiosdeproduçãotorna-seumaalavancaparabaixaracomposiçãodevaloragregadodocapital.Por isso,seacomposiçãodevaloragregadodocapitalvaiaumentarounãoemrespostaà inovaçãotecnológica,dependerá inteiramentedossetoresemqueessasmudançastecnológicasocorremedosefeitosdeinteraçãoqueelastêmnaeconomiacomoumtodo[74].Temos aqui a possibilidade de discriminar entre economia do capital constante, economia do capital

Page 140: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

variávelouformasneutrasdemudançatecnológica.Aoqueparece,háumasériedeconsideraçõesquederivamdaanálisedosegundo livroeque têm

implicações para o entendimento do impacto da mudança tecnológica e organizacional sobre acomposição de valor do capital. Poucas dessas considerações são abordadas no terceiro livro.Comoesteúltimopretendetratardaproduçãocapitalistacomoumtodo,comoumaunidadedeprodução,trocaenegociação,aomissãoéumpoucosurpreendente.Issotemumaexplicaçãobastantesimples.Oesboçodoterceiro livroque chegouaténós foi escrito relativamente cedo, antesque fosse realizada a extensivainvestigaçãoregistradanosegundolivro.

Podemosapenasespecular em relaçãoaoqueMarxpode ter escritono terceiro livro seo tivesserevisado após concluir o assunto inacabado do segundo. Mas podemos evitar algumas confusõesdesnecessárias semantivermos emmente o propósito geral do seu projeto.E podemos até dar algunspassosbastantemodestosesimplesparaesclarecereavançarnessasuaargumentação.

V.MUDANÇATECNOLÓGICAEACUMULAÇÃOJámostramosporqueocapitalismoé,pornecessidade, tecnologicamentedinâmico,porqueeleexistesob o imperativo: “inovar ou morrer!”. Muito simplesmente, as relações de classe dominantes docapitalismoreforçameasseguramreorganizaçõesperpétuasdoprocessodetrabalhonabuscapelomais-valorrelativo.Certamente,oscapitalistasnãooperamemumvazio,eencontramváriosimpedimentos–aluta de classes dentro do processo de trabalho, os limites do conhecimento científico e tecnológico,problemas de cancelamento dos valores incorporados em máquinas e equipamentos velhos, o custocompletodamudançaetc.Avelocidade,aformaeadireçãodamudançatecnológicasãorestringidasdemaneiras importantes.E tambémsabemosqueo imperativobásicopara revolucionarperpetuamenteasforçasprodutivas(entendidascomoumaproposiçãoabstrata)podesernegociadomedianteoalcancedeampla variedade de estados tecnológicos reais (entendidos como a configuração particular dosequipamentos físicos e aorganização social quepreserva epromove aprodutividadedo trabalho).E,acimadetudo,temosvistocomoéimportanteenfatizarque,nofim,oqueimportaéaprodutividadedovalorno trabalho.Asmudançasnaprodutividadefísicasãoapenasummeioparaatingiressefim.Porisso, amudança tecnológica existe como a principal alavanca para aumentar a acumulação do capitalmedianteaumentosperpétuosnaprodutividadedovalordaforçadetrabalho.

Sesujeitarmostodoesseprocessoaumcuidadosoescrutínio,imediatamentetomamosconsciênciadoseucarátercontraditório.Essascontradições,devemosenfatizar,sãointernasaoprópriocapitaleseriamumaimportantefontedeconfusãoeestresse,mesmonaausênciadequaisquerbarreiras“nanatureza”(aslimitaçõesdabasede recursos)ounas formasespecíficasda lutadeclassesquea real submissãodotrabalho ao capital pode incitar. Então vamos, por um momento, imaginar um mundo em que agenerosidadeda“natureza”seja ilimitadaeemqueos trabalhadoresnegociemcomocapitalcomumadocilidadeeumservilismomaiscaracterísticosdeumautômatodoquedeumserhumano.Opropósitodeumaficçãotãoterrívelénosajudaraentendercomoocapitalismocriabarreirasdentrodesi,assimfrustrandocontinuamenteoseupróprioprocessodedesenvolvimento.

Considere,primeiro,oqueacontececomataxadeexploração,m/v,comoaumentodaprodutividadedaforçadetrabalho.Háaironia,éclaro,que“aprodutividadecrescentedotrabalhoacompanha,comovimos,obarateamentodotrabalhadore,portanto,umataxacrescentedemais-valor”[75]–masentãoissoéexatamenteoquesequerdizercomaumentarovalordaprodutividadedaforçadetrabalho.Entretanto,

Page 141: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Marxemgeral sustentaqueos tiposdemudanças tecnológicasqueaumentama taxadeexploração sópodem fazê-lo em uma velocidade diminuída[76]. Esta é uma proposição forte, que requer uma provarigorosa.Marxnosofereceapenasum limitematemáticosegundooqualquantomaioraproporçãodocapitalvariávelnovalortotaladicionado,maioradificuldadeparareduziraindamaisessaproporção.Masoslimitesnecessáriosaquisãosociais,nãomatemáticos.Podemosinvocaranecessidadedemanteropoderdeconsumodostrabalhadorescomoumafontenecessáriadedemandaefetivaparaanegociaçãodocapitalatravésdatroca.Podemos,emresumo,invocartodososargumentosapresentadosnocapítulo2,quesugeremaexistênciadeumequilíbrionaparticipaçãodemercadodocapitalvariávelnoprodutosocial totalquenãopodeserseparadasemsedestruirascondiçõesdeequilíbrioparaaproduçãoeanegociaçãodocapitalemgeral.Vemosaquiacontradiçãonecessáriaquesurgequandocadacapitalistalutaparareduziraparceladecapitalvariávelnovaloradicionadodentrodaempresaenquantoespeculasobre a venda do seu produto para os trabalhadores empregados por outros capitalistas. Esse dilemasurge independentemente de quaisquer lutas sobre a taxa de salário real, e podemos prontamente vercomo essas lutas, no conjunto certo de circunstâncias, podem ajudar a livrar os capitalistas dasdificuldadesqueelespróprioscriam.

Considere,emsegundolugar,oqueacontececomataxadelucroagregadanascondiçõesdemudançatecnológicageral.Semedirmosataxadelucrocomom/(c+v),queéomesmoquem/v/(1+c/v),entãoobviamentea taxade lucrovaicairseacomposiçãodevalordocapitalaumentar,enquantoa taxademais-valorpermanececonstante.Vamosabordaressaideiaemdetalhesnocapítulo6,maspodemosverimediatamentequeumacomposiçãodevalorestáveldocapitaltemumpapelpotencialmenteimportantenaestabilizaçãodataxadelucroagregada.Masaideiadecomposiçãoorgânicanosdizqueamudançatecnológicadentrodaempresaéprincipalenecessariamenteorientadaparaaumentaracomposiçãodovalor.Certamente,váriasinfluênciascontráriaspodemseridentificadas–osefeitosdainteraçãopodemser tais que mantenham a composição de valor geral estável em face de uma composição orgânicacrescente. Mas também podemos ver claramente que os capitalistas individuais, pressionados pelacompetiçãoenabuscaperpétuademais-valorrelativo,captamaformaefêmeradestaúltimadevantagemtecnológicatemporária,masnoprocessotendemacriarummistotecnológicoagregadonasociedadequeéinconsistentecomumataxadelucroestável.Emresumo,oscapitalistasindividuaissecomportamdemaneiraaameaçarascondiçõesquepermitemareproduçãodaclassecapitalista.

Tudo isso coloca a questão da mistura tecnológica no centro das contradições do capitalismo.Concordarcomessaposiçãocentralnãoé,evidentemente,proporcionar-lheaçãoautônomanamoldagemda história capitalista. Isso simplesmente diz que a tecnologia real incorporada em um processo detrabalhoéumlocaldecontradiçõessemeadasporexigênciasantagonistas.ÉesseantagonismoqueMarxcapta,emboradeumamaneiraindistintaeconfusa,pormeiodosconceitosduaisdecomposiçãoorgânicaecomposiçãodevalor.Oproblemaparaocapitalemgeralédealgummodoestabilizaracomposiçãodevalor diante de uma tendência perpétua para aumentar a composição orgânica através da mudançatecnológicadentrodaempresa.OqueMarxfundamentalmenteprocuraránosmostraréqueháapenasumamaneiraemqueissopodeserfeito:pormeiodecrises.Estasúltimaspodemser interpretadascomoareestruturaçãoforçadadoprocessodetrabalhodemodoalevartodoosistemaparatrás,paraalgoquemaisoumenoscorrespondaàscondiçõesdaacumulaçãoequilibrada.

Marxnãoapresentaoargumentodessaformanemexploratodasassuascomplexidadesedimensões.Vamoslevaraargumentaçãomaisadiantenospróximoscapítulos.Há,noentanto,umadimensãodelequemerecemaisumcomentárioaqui,poisestáimplícitanasconsideraçõesquejáavançamosnestecapítulo.

Page 142: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Marxcomfrequênciaenfatizaocontrasteentreaanarquiaeadesordemcaracterísticasdasrelaçõesde mercado e do despotismo, da autoridade e do controle que existem dentro da empresa. Essapolarizaçãonãoé,naprática,tãoferozquantoMarxadescreveu–alutadeclassesdentrodoprocessodetrabalhomodificaesteúltimo,eocomportamentomonopolista,oligopolistaede“liderançadopreço”modificaoprimeiro.Mas,mesmolevandoemcontaessasmodificações,oprincípiogeralaoqualMarxapelou parece razoavelmente válido. Observe que o conceito de composição orgânica está ligado adeterminaçõesdentrodaempresae,porisso,estádentrodaarenadocontrolecapitalista.Acomposiçãodevalor,poroutrolado,representaarelaçãogeralentreotrabalhovivoeotrabalhomortoapóstodososefeitosde interaçãoeoutras forçasdiversasdentrodomercado teremsidoaplainados–estápor issoligadaàsdeterminaçõesexpressadaspelaanarquiaepeladesordemdomercado.

Os limites entre o reino do controle e a anarquia domercado são estabelecidos pelo tamanho daempresa. Onde exatamente esses limites estão traçados é da maior importância para o trabalho daeconomiacomoumtodo.Porisso,devemosconsiderarasforças,seaindaháalguma,quedeterminamemlinhas gerais a posição deles. Aqui, a análise da definição do fluxo da composição de valor produzalgunsresultadosinteressantes.Jámostramosquequantomaiorforograudeintegraçãovertical,maiorseráacomposiçãodevalordocapitaldentrodaempresaemaioraarenadocontrolecapitalistadireto.Aisso se opõe a exigência de acelerar o tempo de rotação do capital pela atividade fragmentada, asubcontratação e a geração de uma proliferação na divisão do trabalho. Isso serve para aumentar acomposiçãodevalordocapital,aomesmotempoqueestendeaarenadasrelaçõesdetrocacaóticaseanárquicas à custa da produção regulada e controlada. Entre essas duas forças, podemos começar alocalizar a exigência de alguma organização de equilíbrio da produção que fixe o grau de integraçãovertical, o tamanho da empresa etc., e desse modo fixe os limites entre o mercado e o ambiente(relativamente) controlado dentro da empresa. Como esse equilíbrio é o produto de forçasfundamentalmenteopostas,eleéinerentementeinstável.Masaquiháumaconexãocomasperspectivasdeacumulação.Acomposiçãodevalordocapitalnãopodeserdeterminadaindependentementedestascaracterísticasorganizacionais.Seumacomposiçãodevalorestáveldocapitaléessencialparalucrosestáveis,entãoháalgumaformadeorganizaçãoequilibradaconsistentecomaacumulaçãoequilibrada.Essaéumaideiafundamentalemuitosimples,queajudaaentenderaorganizaçãocambiantedaproduçãocapitalista.Abordaremosessaideiademaneiramaisconcretanopróximocapítulo.

[1]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.446.

[2] SidneyHook (Towards theUnderstanding of KarlMarx: a Revolutionary Interpretation, Nova York, John Day Co.,1933), muitotempo atrás, procurou eliminar tal interpretação, mas esta passou por algum renascimento nos últimos anos. De longe o argumentomaispoderoso é aquele apresentado por G. A. Cohen em Karl Marx’s Theory of History: a Defence, cit., que aceita a denominação de“tecnológico”,mas não aquela de “determinista” em sua interpretação da primazia das forças de produção dentro da versão deMarx domaterialismo histórico. A obra de G. A. Cohen, embora extremamente útil no esclarecimento de muitos pontos emMarx, demonstra asconsequênciasquesurgemquandoMarxéinterpretadodeacordocom“ospadrõesdeclarezaerigorquedistinguemafilosofiaanalíticadoséculoXX” (p. ix).SegundoG.A.Cohen,Marxdefineuma forçaprodutivacomo“apropriedadedeobjetos”, emvezdeuma relaçãodeposseentreosobjetos(p.28).A listadas forçasprodutivas incluia forçade trabalho(e todasassuasqualidades)eosmeiosdeprodução(incluindo os instrumentos de produção, asmatérias-primas e os espaços).G.A.Cohen analisa as declarações deMarx e descobre que,emborahajainúmerasocasiõesemqueMarxafirmaqueasmudançasnasforçasprodutivasgerammudançasnasrelaçõessociais,“nãohágeneralizações afirmando o suposto movimento inverso […] no corpo da obra deMarx” (p. 138). A relação “dialética” entre as forçasprodutivaseas relações sociaisnãosemantéme,por isso, aprimaziadas forçasprodutivaséestabelecida.Oúnicomotivodedúvidaéaafirmaçãodequeéaburguesiaquerevolucionaasforçasprodutivasquemudamasrelaçõessociais.G.A.Cohenadmitequeasrelaçõesde

Page 143: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produçãocapitalistas“sãoumestímuloprodigiosoparaodesenvolvimentodasforçasprodutivas”,mastornaissocompatívelcomaprimaziadatesedasforçasprodutivasaoafirmarque“afunçãodasrelaçõescapitalistasépromoverocrescimentonaforçaprodutiva–elassurgemepersistemquandoestãoaptasafazê-lo”.AcaracterizaçãodadefiniçãoinicialdeMarxdeforçaprodutivaé,emminhaopinião,correta.Mascomoo“valordeuso”,essaconcepçãoinicialtememsipoucointeresseparaMarx.Maisumavez,comoovalordeuso,asforçasprodutivassósãointegradasdevoltaaoargumentoquando são entendidas como uma relação social especificamente incorporada dentro do modo de produção capitalista. G. A. Cohen, noentanto,seapegaàdefiniçãoinicialsemperceberatransformaçãonousoqueMarxfazdotermo.TodoofluxodoargumentoemOcapitaléprecisamenteadequadoparadesvendarainterpenetraçãodialéticadasforçasprodutivasedasrelaçõessociaiscomoolocaldascontradiçõesque impulsionam eternamente o capitalismo para novas configurações. A filosofia analítica pode ser boa em analisar sentenças, mas,aparentemente,nãoétãoboaparacapturarofluxototaldeumargumento.

[3]GöranTherborn,emScience,ClassandSociety,cit.,p.356-86,reconstróidemaneiramuitocompletaagênesedessesconceitosemtodoodesenvolvimentointelectualdeMarx.

[4]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.27-37.

[5]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.25.

[6]Ibidem,LivroI,p.446.

[7]Ibidem,p.261.

[8]Idem,Manuscritoseconômico-filosóficos(SãoPaulo,Boitempo,2010),p.84.

[9]Alfred Schmidt apresenta um estudo abrangente deTheConcept of Nature inMarx (Londres, NLB, 1971). Ele se equivoca, comomostraNeilSmithem“TheProductionofNature”(mimeo,1980),aodefiniranaturezacomooreinodosvaloresdeusoeseesquecerdequea preocupação deMarx é com os valores de uso social ou, nesse caso, com a produção de valores de uso na forma de uma “naturezaproduzida” (o ambiente construído, uma paisagem física modificada pela ação humana). Essa natureza produzida assume uma forma demercadoriae,porisso,deveserconcebidaemtermosdarelaçãoentreosvaloresdeuso,osvaloresdetrocaeosvalores.Anatureza,nessascircunstâncias, não pode mais ser vista como totalmente externa à existência humana e à sociedade humana. Abordaremos maisdetalhadamenteessaquestãonoscapítulos8e11.

[10]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.255.

[11]Ibidem,p.258.

[12]Ibidem,LivroII,p.512.

[13]Ibidem,LivroI,p.256.

[14]Ibidem,LivroII,p.387,461.

[15] Idem,Grundrisse, cit., p. 587.DavidNoble, emAmericabyDesign: Science,Technologyand theRiseofCorporateCapitalism(Nova York, Knopf, 1977), explora em detalhes como a ciência da engenharia, a inovação tecnológica e o capitalismo corporativo serelacionammutuamentenosEstadosUnidosdepoisdaGuerraCivil.Apesardetodososseusdefeitos,aobradeJohnD.BernalScienceinHistory(Cambridge,MITPress,1969)aindapermaneceumclássico.

[16]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.255.

[17]Idem,PovertyofPhilosophy(NovaYork,InternationalPublishers,1963),p.109.

[18]Mark Blaug (“Technical Change andMarxian Economics”, emDavid Horowitz (org.),Marx andModern Economics, Nova York,ModernReader Paperbacks, 1968, p. 231) acusaMarx de fazer uma “terrível confusão entre a produtividade física e a produtividade devalor”,masaconfusãoseoriginamaisdamáinterpretaçãodeMarkBlaugdamaneirarelativadeMarxdeprocederdoquedopróprioMarx.

[19]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.578.

[20]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte1,p.393.

[21]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.827.

[22]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte1,p.389-91.

[23]Aqueles interessados em acompanhar o debate devem consultar Ben Fine e LaurenceHarris,Re-ReadingCapital, cit., cap. 3; IanGough, “Productive and Unproductive Labour in Marx”, New Left Review, 1972; E. K. Hunt, “The Categories of Productive andUnproductive Labor inMarxist Economic Theory”, Science and Society, 1979; James O’Connor, “Productive and Unproductive Labor”,Politics and Society, 1975; e os vários números doBulletin of theConference of Socialist Economists (1973-1975).Há também umaconsiderável literatura em francês sobreoassunto:verArnaudBerthoud,Travail productif et productivité du travail chezMarx (Paris,Maspero,1974);MichelFreyssenet,Lesrapportsdeproduction:travailproductifettravailimproductif(Paris,CSU,1971)eLadivisioncapitalistedutravail (Paris,Savelli,1977);eJacquesNagels,Travailcollectifet travailproductif (Bruxelas, Editionsde l’Universite deBruxelles, 1974). O debate assume uma importância adicional na medida em que alguns autores, como Nicos Poulantzas (Classes inContemporary Capitalism, cit.), investigam diferenciais em estados de consciência subjetivos dentro de algumas frações da classe

Page 144: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

trabalhadoraparaosdiferentesstatusdotrabalhadorprodutivoeimprodutivo.

[24]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.577.

[25] Antonio Gramsci, PrisonNotebooks (Londres, Lawrence &Wishart, 1971 [ed. bras.:Cadernos do cárcere, trad. Carlos NelsonCoutinho,RiodeJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,1999]).

[26]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.578.

[27]Idem,ResultsoftheImmediateProcessofProduction(Harmondsworth,Penguin,1976),p.1.025.

[28]Ibidem,p.1.024.

[29]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.436.

[30]Ibidem,cap.11.

[31]Idem,ResultsoftheImmediateProcessofProduction,cit.,p.506.

[32]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.558.

[33]HarryBraverman,LaborandMonopolyCapital,cit.

[34]Ibidem,p.57-8.

[35]Ibidem,p.120-1.

[36]Ibidem,p.182.

[37]Ibidem,p.271.

[38]MichaelBurawoy,“TowardaMarxistTheoryoftheLaborProcess:BravermanandBeyond”,PoliticsandSociety,1978,p.295-6.

[39]Aomontarumacolagemdascríticas,estoutotalmenteconscientedequenãofaçojustiçaaopontodevistadeninguémindividualmente,emboranãoestejasendointeiramentejustocomHarryBravermanoucomMarx.AsnumerosascontribuiçõesparaodebateforamresumidaserevistasporTonyElger,“Valorizationand‘Deskilling’;aCritiqueofBraverman”,CapitalandClass,v.7,1979,que tambémproporcionaumaextensabibliografia.Meumosaico tambémse inspiraexpressivamenteemMichaelBurawoy,“TowardaMarxistTheoryof theLaborProcess:BravermanandBeyond”,cit.,eManufacturingConsent:ChangesintheLaborProcessunderMonopolyCapitalism(Chicago,UniversityofChicagoPress,1979);RichardEdwards,ContestedTerrain:theTransformationoftheWorkplaceintheTwentiethCentury(NovaYork,BasicBooks, 1979),AndrewFriedman, IndustryandLabour (Londres,Macmillan, 1977) e “ResponsibleAutonomy versusDirect Control over the Labour Process”, Capital and Class, 1977; e Bryan Palmer, “Class, Conception and Conflict: the Thrust forEfficiency,ManagerialViewsofLabour,and theWorkingClassRebellion,1903-1922”,ReviewofRadicalPoliticalEconomics, 1975.OsnúmerosespeciaisdePoliticsandSociety(v.8,n.3-4,1978)eMonthlyReview(v.28,n.3,1976),eosimpósiopublicadonoCambridgeJournalofEconomics(v.3,n.3,1979),quecontémumaimportantedeclaraçãodeaberturaescritaporElbaumeoutrosautores,alémdeartigosdetalhadosporWilliamLazonick,Zeitlineoutros,tambémforamextensivamenteusados.

[40] Andrew Friedman (Industry and Labour, cit., e “Responsible Autonomy versus Direct Control over the Labour Process”, cit.) éparticularmentevigorososobreesseponto.

[41]RichardEdwards (ContestedTerrain: theTransformationof theWorkplace in theTwentiethCentury, cit.) adota este como temabásicoemseulivro.

[42]WilliamLazonick,“IndustrialRelationsandTechnicalChange: theCaseof theSelf-ActingMule”,CambridgeJournalofEconomics,1979,p.258-9.

[43] Ver Bryan Palmer, “Class, Conception and Conflict: the Thrust for Efficiency,Managerial Views of Labour, and theWorking ClassRebellion,1903-1922”,cit.;RichardEdwards,ContestedTerrain:theTransformationoftheWorkplaceintheTwentiethCentury, cit.; eMichaelBurawoy,“TowardaMarxistTheoryoftheLaborProcess:BravermanandBeyond”,cit.

[44]OcuidadosoestudodeMichaelBurawoydoManufacturingConsent:ChangesintheLaborProcessUnderMonopolyCapitalism(Chicago,UniversityofChicagoPress,1979)éumaexcelentetentativadedocumentaressaideia.

[45]AsexpressõessãodeRichardEdwards(ContestedTerrain:theTransformationoftheWorkplaceintheTwentiethCentury,cit.)eBernardElbaumetal.(“TheLabourProcess,MarketStructureandMarxistTheory”,CambridgeJournalofEconomics,1979).

[46]RichardEdwards(ContestedTerrain:theTransformationoftheWorkplaceintheTwentiethCentury,cit.)declara,porexemplo,quea perpetuação e o aumento da ordenação hierárquica das estruturas de emprego e salário sob o controle “burocrático” das grandescorporações (um sistema que ele distingue acentuadamente do controle “técnico” mediante o taylorismo) fragmentou, em vez dehomogeneizar,aclassetrabalhadora.Osindivíduoseosgruposdetrabalhadoresbuscamseusprópriosinteressespormeiodeumamisturadeconfrontação e compromisso, e os mais privilegiados deles (que com frequência ocorrem de ser aqueles com as habilidades artesanaistradicionais)podemganhargrandepartedoquequerem(saláriosepensões,segurançanoemprego,responsabilidadenotrabalhoetc.).E,nascondiçõesdooligopólio,ocapitaltemumespaçoadicionalparafazeressasconcessões.AclassetrabalhadoranosEstadosUnidosnuncafoieprovavelmente não se tornará realmente revolucionária, e a trombeta deMarx convocando uma transformação revolucionária domodode

Page 145: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produção corre o risco de cair em ouvidos moucos. A única estratégia política da esquerda é proteger o “terreno do compromisso” tãolaboriosamenteconstruídoatravésdeanosde lutadeclasses(particularmentenaarenapolítica)ebuscar,pormétodossocial-democráticos,estenderesseterrenoparaondeforpossível,emnomedosocialismo.CríticaspungentesaessaabordagempodemserencontradasemduasrevisõesdaobradeEdwardsemMonthlyReview,dez.1979.

[47] Ver Harry Braverman, Labor andMonopoly Capital, cit., p. 27. Michael Burawoy, em “Toward a Marxist Theory of the LaborProcess:BravermanandBeyond”,cit.,seconcentramaisdiretamentenessepontoaomoldarsuacríticadeHarryBraverman.

[48]EdwardThompson,ThePovertyofTheoryandOtherEssays, cit. p. 347-54.Odebate entreEdwardThompson ePerryAnderson(Arguments within English Marxism, Londres, NLB, 1980) gira em torno dessa dualidade e, lido da maneira correta, oferece algumaesperançadereconciliarosdiferentespontosdevistadentrodeformulaçõesnovasemuitomaispoderosas.

[49]EdwardThompson,ThePovertyofTheoryandOtherEssays,cit.,p.345-6.

[50]Existemvárias tentativasdeseamarrara interpretaçãodeMarx,ealgumasdelassãoextremamenteúteis;ver,porexemplo,BrightonLabour Process Group, “The Capitalist Labour Process”, emCapital and Class, 1977, e Christian Palloix “The Labour-Process: FromFordismtoNeo-Fordism”,emConferenceofSocialistEconomists,TheLabourProcessandClassStrategies,Londres,1976.ArevisãodeTonyElger,“Valorizationand‘Deskilling’;aCritiqueofBraverman”,cit.,tambémmereceserconsultada,tantopelasinformaçõesquecontémquantopelaposiçãoqueadota.

[51]TantoAndrewFriedman, IndustryandLabour, cit., e“ResponsibleAutonomyversusDirectControl over theLabourProcess”, cit.,quanto Michael Burawoy, “Toward a Marxist Theory of the Labor Process: Braverman and Beyond”, cit., eManufacturing Consent:ChangesintheLaborProcessunderMonopolyCapitalism,cit.,exploramesseprocessocomalgumaatenção.

[a]Plantasindustriaistransferidaspelosproprietáriosparaoutralocalizaçãoparaescapardepressõessindicaisouleisestatais.(N.T.)

[52]BernardElbaumetal.,em“TheLabourProcess,MarkeStructureandMarxistTheory”,CambridgeJournalofEconomics,cit.,p.228-9,declaramqueacompetiçãodivideoscapitalistase,dessemodo,checamacapacidadedoscapitalistasparausarnovas tecnologiasparaminaropoderdosseustrabalhadores.NaseçãoIII,aseguir,vamosabordaramaneiraemqueacompetiçãoealutadeclassesseentrelaçamemrelaçãoàmudançatecnológica.

[53]MichaelBurawoy,ManufacturingConsent:ChangesintheLaborProcessunderMonopolyCapitalism,cit.,p.178-9,195.

[54]Ibidem,p.178.

[55]Aqui estamos simplesmente ecoandoMarx eLenin sobre a diferença entre a consciência “sindicalista” economicista e a consciência“socialistarevolucionária”.

[56] A existência disseminada de cooperação entre a gerência e os trabalhadores que, acredito eu, Michael Burawoy (ManufacturingConsent:Changes in theLaborProcess underMonopolyCapitalism, cit.) acha que deve ser interpretada sob essa luz.Quando duaspartescooperameumadetémconsideravelmentemaispoder(naanálisefinal)doqueaoutra,anaturezavoluntáriadacooperaçãopodeserrazoavelmentequestionada.Eumesintoumtantosimilarmentecéticoquandoleioqueossuspeitosestão“cooperando”comasautoridadesnainvestigaçãodealgumcrime.

[57]BernardElbaumetal.,“TheLabourProcess,MarkeStructureandMarxistTheory”,cit.,p.228-9.

[58]As obras deDavidMontgomery,Workers’Control inAmerica (Londres,CambridgeUniversity Press, 1979),KatherineStone, “TheOriginofJobStructuresintheSteelIndustry”,TheReviewofRadicalPoliticalEconomics,1974,eMauriceZeitlin,“CorporateOwnershipandControl:theLargeCorporationandtheCapitalistClass”,AmericanJournalofSociology,1979,constituemalgunsexemplosexcelentes.

[59]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.274.

[60]Ibidem,p.626.

[61]Devemosobservarqueaperfeiçãodacompetiçãoésimilarmentevitalparaaobtençãoderelaçõesdevalorpurasnaesferada troca,masessaperfeiçãojamaisexistiuempartealguma,aindaque,comoveremosnocapítulo5,atendênciahistóricadentrodocapitalismovenhasendoparaaperfeiçãodacompetição.

[62] A. D. Magaline (Lutte de classe et dévalorisation du capital, cit.) tem uma excelente revisão das perspectivas marxiana e nãomarxianasobreessasquestões.Paraumbomexemplodestasúltimas,verArnoldHeertje,EconomicsandTechnicalChange(NovaYork,Wiley,1977).

[63]ProvavelmenteomaisdesavergonhadodefensordessaideiadentrodoscírculosintelectualmenterespeitáveisfoiJosephSchumpeter,TheTheoryofEconomicDevelopment(Cambridge,HarvardUniversityPress,1934[ed.bras.:Ateoriadodesenvolvimentoeconômico,SãoPaulo,AbrilCultural,1984]);BusinessCycles(NovaYork/Londres,McGraw-HillBookCompany,1939).

[64]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.457-8.

[65]Ibidem,p.508.

[66]Ibidem,p.466-7.

[67]Ibidem,p.689.

Page 146: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[68]A posição que assumo é bastante similar àquela apresentada emBenFine eLaurenceHarris (Re-ReadingCapital, cit.),mas estouparticularmente em dívida comGérardDuménil (“L’expression du taux de profit dans ‘LeCapital’”,Revue Économique, 1975;Marx etKeynes face à la crise, Paris, Economica, 1977) por estimular ideias sobre o assunto. Há uma boa quantidade de literatura atualmenteemanandodeautorescomumainclinaçãomaismatemática,comoJohnRoemer,“TechnicalChangeandthe‘TendencyoftheRateofProfittoFall’”,JournalofEconomyTheory,1977,e“TheEffectofTechnologicalChangeontheRealWageandMarx’sFallingRateofProfit”,Australian Economic Papers, 1978, mas de longe a obra mais instrutiva é a de VonWeizsäcker, “Organic Composition of Capital andAveragePeriodofProduction”,Revued’ÉconomiePolitique,1977.JoanRobinson(“TheOrganicCompositionofCapital”,Kyklos, 1978),comosepoderiaesperar,tambémapresentaumacontribuiçãoestimulantequenãopodesermuitofacilmentenegligenciada.

[69]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.275-89;parte3,p.382-96.

[70]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.766.

[71]MarkBlaug,“TechnicalChangeandMarxianEconomics”,cit.,p.229,queixa-seamargamentedamaneirapelaqualMarx“searrastoulivremente entre as definições de estoque e fluxo sem advertir o leitor”, enquanto VonWeizsäcker, “Organic Composition of Capital andAveragePeriodofProduction”,cit.,p.201,comentaque“oqueMarxrealmenteestavaprocurandoeraaproporçãodecapitalconstante(umestoque)paraoprodutodecapitalvariáveleavelocidadedacirculaçãodocapitalvariável(umfluxo)”.Aúltimapartedessadefiniçãoéútil,maseudiriaqueMarxestátambéminteressadonoprocessodetrabalhocomoumfluxoquepreservaativamenteocapitalconstante.

[72]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.277.

[73]AideiavembasicamentedeGérardDuménil,“L’expressiondutauxdeprofitdans‘LeCapital’”,cit.

[74]MichaelHowardeJohnKing,emThePoliticalEconomyofMarx,cit.,p.198-9,resumemessadiscussão.VertambémArnoldHeertje,“EssayonMarxianEconomics”,SchweizerischesZeitschriftfürVolkwirtschaftundStatistik ,1972,paraumaapresentaçãotécnica.

[75]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.679.

[76]Idem,Grundrisse,cit.,p.427.

Page 147: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

5.Aorganizaçãomutantedaproduçãocapitalista

Aparentemente vivemos emummundomuito diferente daquele que prevalecia no tempodeMarx.Emparte alguma isso é mais evidente do que nas mudanças dramáticas que têm ocorrido nas formascapitalistasdeorganizaçãodeproduçãoecomercialização. “Desdeo iníciodaRevolução Industrial”,escreve Hymer, “tem havido uma tendência para a empresa representativa aumentar em tamanho daoficinaparaafábrica,paraacorporaçãonacional,paraacorporaçãomultidivisionale,agora,paraacorporaçãomultinacional”[1].Emboraosgovernosnuncatenhamexatamentelaissez-fairecomrespeitoà atividade econômica durante todo o século XIX (sempre desempenharam papéis fundamentais comrelaçãoaodinheiroeàsobras“públicas”emgrandeescala,assimcomoparagarantirabaselegaldoscontratoseapropriedadeprivada),aatual familiar intervençãodoEstadopor intermédiodepolíticasfiscaisemonetáriaseradesconhecidaantesdadécadade1930.Aescalacompletaeacomplexidadedaorganização – tanto no governo quanto nos negócios – tornaram-se quase irreconhecíveis nos últimosduzentosanos.

Qualquer teoria da evolução econômica do capitalismo deve considerar essas mudançasorganizacionais maciças e explicar sua necessidade histórica.Marx frequentemente se referia ao quechamavade“leisde centralizaçãodocapital”, eEngelsversouextensamente sobre essa ideia.Engelsescreveuqueanecessidadederesolvero“antagonismo”entreocontroleexercidodentrodaoficinaea“anarquiadaproduçãonasociedadeemgeral”inevitavelmenteconduziuacentralizaçãodocapitalcomoummeioparaestenderasilhasdecontrolesistemáticodentrodomardasforçascegasdomercado.Associedades anônimas foram o primeiro passo organizacional nessa direção, mas logo “essa formatambémsetornainsuficiente”edálugaramonopóliosemlargaescala(trustes,cartéisetc.),quebuscamadominaçãodomercadoeaintegraçãoverticalnaproduçãoenadistribuição.Porfim,“orepresentanteoficialdasociedadecapitalista–oEstado–teráfinalmentedeassumiradireçãodaprodução”.Essastransformaçõesnecessárias,declarouEngels,não“acabamcomanaturezacapitalista”daprodução,massimplesmenteservemdamelhormaneiraparaconseguiraproduçãodemais-valor.

Depois de Engels, Hilferding tentou realizar uma análise abrangente do “capital financeiro”,conceituadocomoaunificaçãodocapitalbancárioedocapitalprodutivopormeiodeváriosarranjosorganizacionais. Lenin, baseando-se muito na argumentação de Hilferding, embora rejeitando suapolítica,chamouoimperialismode“omaiselevadoestadodocapitalismomonopolista”e,logodepois,

Page 148: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

cunhouaexpressão“capitalismodemonopólioestatal”paradescreverasnovasformasdeorganizaçãoeconômicaquesedesenvolviamnospaísescapitalistasavançados.Desdeentão,umasériedeescritoresprocuroucaracterizareinterpretartaismudançasorganizacionais.Issonãoseprovoufácilefoiseguidoporumdebatecalorososobreospontosfundamentaisdateoriamarxiana[2].

Em suamaior parte, o debate se concentra em uma suposta transição das formas “competitivas”,atravésdasformas“monopolistas”ou“financeiras”docapitalismo,paraumatualestágiodecapitalismo“monopolistaestatal”.Algunsescritoresdesafiamaterminologiadeestágios,enquantooutrosaaceitamcomoalgodescritivamenteútil,masinterpretamosignificadodostermosdemaneirabastantediferente.Notextoquesesegue,tentareianalisaroprocessodetransiçãosemmeincomodarparticularmentecomos rótulos a serem nele colocados. Assim, espero identificar uma interpretação da transformaçãoorganizacionalquesejaconsistentecomateoriadovalormarxianae,portanto,capazdeenterrarváriosdosfantasmasqueassombramaliteraturamarxista.

PoderiaserútilnoinícionoslembrarmosdequeseMarxnosensinouqualquercoisafoi,certamente,queomundodasaparênciaséilusórioequeétarefadaciênciapenetrarsobasaparênciaseidentificarasforçasqueestãoemaçãoabaixodelas.Sea teoriadeMarxé tãorobustaquantoeledeclara,entãodeve nos proporcionar a base necessária para interpretar as formas dramáticas e muito evidentes damudançaorganizacionalqueocorreunocapitalismoduranteaproximadamenteoúltimoséculo.

Começamosconectandoaquestãodamudançaorganizacionalcomodebategeralsobreamudançatecnológicadesenvolvidonocapítuloanterior.Essaconexãoédiretaeóbvia,aindaqueapenasporqueMarx inclui especificamente as características organizacionais em sua definição de tecnologia. Anecessidade de realizar revoluções perpétuas nas forças produtivas implica, então, que devem existirrevoluçõesperpétuasnaorganizaçãodaprodução.Entretanto,seaabordagemgeraldeMarxdamudançatecnológicasemantém,entãodevemosinterpretaramudançaorganizacionalcomoumareaçãoaforçascontraditórias. Devemos também antecipar que a organização conseguida em determinado momentoincorporarápoderosascontradiçõesqueprovavelmenteserãofontedeinstabilidadeecrises.

Nissonãoháintençãodetentardivorciaraanálisedamudançaorganizacionaldaanálisedasformascambiantesdoprocessodetrabalho.Cadaumatemdeservistacomointegrantedaoutra.Entretanto,aconcentração no lado organizacional dessa relação nos proporciona alguns insights especiais. Issotambém nos permitirá considerar o grau em que os argumentos de Marx, moldados em um mundoorganizado ao longo de linhas totalmente diferentes daquelas com que agora estamos familiarizados,aindaseaplicam.

Alutacompetitivapelomais-valoreanecessidadededisciplinarostrabalhadoressegundoasleisdaacumulação constituem, como já vimos, a base para o dinamismo tecnológico do capitalismo. Aapropriaçãoporpartedocapitaldospoderesprodutivosdotrabalhorequerinovaçãoorganizacional.Aanálisedacooperaçãoeadivisãodetalhadadotrabalhoedasmáquinasindicamanecessidadedeumaorganizaçãohierárquicadoprocessodetrabalhoeaseparaçãodotrabalhomentaldotrabalhomanual.Aescala de produção crescente também requer a concentração de capital, principalmente através daacumulação.

Masaconcentraçãopoderiasertambémaceleradaporumprocessodecentralizaçãodocapital.Oscapitalistas em larga escala podem engolir osmenores, quer pormeio da competição ou empregandovários estratagemas financeiros (incorporações, fusões etc.). Tudo isso requer novos arranjosinstitucionaiseorganizacionais,comfrequênciaexplicitamentesancionadosouencorajadospeloEstado.Acentralizaçãocompleta“aobradaacumulação,colocandooscapitalistasindustriaisemcondiçõesde

Page 149: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

ampliar a escala de suas operações”. Isso constitui o “ponto de partida” para “a transformaçãoprogressiva de processos de produção isolados e fixados pelo costume em processos de produçãosocialmentecombinadosecientificamenteordenados”.Acentralizaçãopodeser realizada“numpiscardeolhos”,oqueiriarequerermuitosanosdeconcentraçãoatravésdaacumulaçãoparaviraacontecer.Marx conclui que há uma “lei de concentração do capital” que desempenha um papel fundamental naregulaçãodaorganizaçãocambiantedaproduçãonocapitalismo[3].

Muitaatençãotemsidodadaaessasuposta“lei”naliteraturasubsequente,poiselapareceexplicarmuitíssimobemacentralizaçãoobservávelebastantemaciçadopodereconômicoepolíticodentrodealgumas corporações dominantes.Entretanto, assim como acontece com todas as declarações do “tipolei” de Marx, devemos ser cautelosos ao lhe atribuir poderes absolutos e incontrolados. Da mesmamaneira que podemos identificar forças opostas à “lei da crescente composição orgânica do capital”,podemostambémconceberváriasforçasqueseopõemàtendênciaparaacentralização.

Marx prestou muita atenção ao fenômeno da centralização. Ele declara que o monopólio é oinevitável resultado da competição e que o impulso para o controle conduzirá à integração verticalprogressivadentrodosistemadeproduçãocapitalista.Olimiteparaestesóseriaatingido“noinstanteemqueocapitalsocialtotalestivessereunidonasmãos,sejadeumúnicocapitalista,sejadeumaúnicasociedadedecapitalistas”[4].Maseledeclaraemoutrapartequeatendênciaparaacentralização“logoproduziriaocolapsodaproduçãocapitalistasenãofossemastendênciascontrárias,quetêmumefeitodedescentralização contínua”[5]. Algumas “forças de repulsão” estão sempre em ação para garantir que“partesdoscapitaisoriginaissedescolemepassemafuncionarcomonovoscapitaisindependentes”[6].

O queMarx parece estar propondo é que há alguma organização de “equilíbrio” da produção –expressada em termos do tamanho da empresa, grau de integração vertical, nível de centralizaçãofinanceira,ouseja,oquefor–queéconsistentecomaacumulaçãocapitalistaeaoperaçãoda leidovalor.Alémdisso,elepareceestarsugerindoqueessepontodeequilíbrioseriaatingido,pelomenosemteoria, pelo desenvolvimento de tendências opostas para a centralização e a descentralização. Comosempre,devemosencararoconceitodeequilíbriocomoummeioconvenienteparaidentificarcondiçõesde desequilíbrio às quais a sociedade está propensa. E, também como sempre, devemos procuraridentificarasforçasqueperturbamaorganizaçãoequilibradadaproduçãonocapitalismoepromoveracentralizaçãooudescentralizaçãoexcessiva.

Oproblema,evidentemente,éofatodeMarxnãoserexplícitocomrelaçãoaotipodecentralizaçãoao qual está se referindo (financeira, produtiva etc.) e de não declarar explicitamente quais são as“forças de repulsão” que contribuem para a descentralização, embora em vários lugares discuta oincentivoparaocapitalseengajarnasubcontrataçãoextensivadesuasoperações[7]eatendênciadentrodocapitalismoparaabrirnovosramosdeproduçãoquesãotipicamentedepequenaescalaedetrabalhointensivo[8].

Entretanto,considerandoosachadosdocapítuloanteriorsobreoslimitesparaaintegraçãoverticaleosnecessários limitesentreaproduçãoea troca,podemos teorizarsobreesseprocesso.A integraçãovertical aumentada diminui a composição do valor (que é vantajosa para a obtenção de lucro), masaumentaotempoderotação(quediminuiasperspectivasdelucros).Ograudeintegraçãoverticalpode,emumprimeiromomento,serinterpretadocomoprodutodestesdoisincentivosopostos.

Consideraçõesgeraisquefixamoslimitesentreaesferadocontrolecapitalistadentrodaproduçãoedomercadotambémentramemjogoagora.Nomercado,éverdade,“odiversificadojogodoacasoedoarbítriotemplenodesempenho”.Mastambémdevemosnoslembrardequealeidovalor,apoiadapela

Page 150: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

“autoridade”dacompetiçãoepela“coerçãoquesobreeleséexercidapelapressãodeseusinteressesrecíprocos”,éestabelecidaempartepormeiodecoordenaçõesdomercado,quedeterminam“quantodotempo total de trabalho disponível a sociedade pode gastar na produção de cada tipo particular demercadoria”[9]. As esferas da produção e da troca sãomutuamente condicionadas.O capitalismo nãopode funcionar sem as coordenações do mercado e ainda assim permanecer sendo capitalismo. Acentralizaçãoestendeaesferadaproduçãocontroladaàcustadatroca.Seaesferadaoperaçãodoúltimoé cortada no ponto em que as coordenações do mercado estão seriamente prejudicadas, então osprocessosquepermitemqueosvaloressejamdeterminados(vercapítulo1)tornam-semenosefetivoseaoperação da lei do valor fica enfraquecida. Isso, presumivelmente, explica por que a centralizaçãoexcessiva sem “forças de repulsão” contrárias “produziriam o colapso da produção capitalista”. Asesferas da produção e da troca, como separações dentro de uma unidade, são importantes para amanutençãodocapitalismo.Olimiteentreelaspodeserfluido,maselenãoécapaz,evidentemente,desedistanciar muito de algum ponto de equilíbrio sem ameaçar seriamente a reprodução do própriocapitalismo.

OcomentáriodeMarxdequealeidovalorseafirmacomo“umaleidanatureza”nocapitalismonãofoi uma observação casual ou irreverente. Certamente, a lei do valor é um produto social, mas asrelações sociais do capitalismo asseguram que uma sociedade capitalista não esteja apenas ligada àsconsequênciasdalei,masdevatambémbuscarsempreaperfeiçoarofuncionamentodalei.Issoexigequeamudançaorganizacionalsejainterpretáveldeacordocomtalprocesso.Seessaideiaforaceitacomohipótese,entãoatarefaquetemoséexplicarcomoasmudançasevidentesedelongoalcancenaestruturaorganizacional do capitalismo têm servido para aperfeiçoar a operação da lei do valor. Nessa linha,presumivelmente,EngelsargumentouqueasmudançasorganizacionaisobserváveisduranteoséculoXIXforampromovidaspelodesejodeaperfeiçoaraproduçãodemais-valor.

Mas a transição das formas de organização competitivas para o monopólio e depois para omonopólioestatalcertamenteparecemrepresentarummovimentodistanteda“autoridade”dacompetiçãoe,portanto,ummovimentodistantedopoderregulatóriodaleidovalor.Algunsmarxistastêmextraídoumaconclusãodessetipo.BaraneSweezy,porexemplo,declaram:

Não podemos nos contentar em remendar e emendar o modelo competitivo que dá suporte à teoria econômica [deMarx] […]. Natentativadeentenderocapitalismoemseuestágiodemonopólio,nãopodemosnosabstrairdomonopólioouintroduzi-locomomerofatormodificador;devemoscolocá-lonoprópriocentrodoesforçoanalítico.[10]

Oabandonodo“modelocompetitivo”emMarxcertamenteenvolveoabandonodaleidovalor–oque,paraseucrédito,BaraneSweezyestãoplenamentepreparadospara fazer.Oproblemaéquenãopodemos retiraroeixodaanálisedeMarxsemquestionaroucomprometer seriamente todasasoutrascategorias marxianas. Afinal, quando as categorias são definidas relacionalmente, uma não pode seralteradaoumagicamentevarridadaanálisesemperturbartodasasoutras[11].

Boccara também aceita a ideia de uma transição de um estágio competitivo, passando de ummonopólio para ummonopólio estatal, mas busca reconciliar essas transições com a teoriamarxianaencarando-as“dialeticamente”,emvezdeunilateralmente.Omovimentodeumaformaparaoutraé,emsuaopinião,umatentativadesuperarascontradiçõesimplícitasemumaformaanteriorpelacriaçãodeumanova formade capitalismoque está, por sua vez, condenada a expressar as contradições básicasfundamentaisdocapitalismo,emborademaneirasnovaseaparentementemuitodiferentes.Nãodevemos

Page 151: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

confundirofatodequeocapitalismosemprepermanececapitalismocomaideiadequearelaçãodeproduçãoeaestruturaeconômicageral permanecem nãomodificadas. Segundo a teoriamarxista, as relações de produção são o objeto de um incessante processo detransformação[…].Issonãoimpedequeanaturezaessencialmentecapitalistadestasrelaçõessejapreservadaeaprofundada;arelaçãodeexploraçãofundamentaldoproletariadopersiste.[12]

Para ser convincente, o tipo de reconciliação que Boccara propõe deve ser ao mesmo tempoteoricamenteseguroehistoricamenteapropriado.Umateoriamarxianadadinâmicacapitalistadeveestarunidaaosresultadosdainvestigaçãomaterialistahistórica–umaunificaçãoqueMarxinsistiuservitalparaambas.Comoestaésempreumatarefadifícil,vouprocederdemaneiraesquemática.Teoricamente,vou presumir que a operação da lei do valor depende da articulação de um conjunto demecanismoscompetitivosqueservetrêspropósitosfundamentais:igualarospreçosdasmercadorias,igualarataxadelucroentreasempresaseentreossetorese,finalmente,canalizaromovimentodocapitalealocaraforçadetrabalhoparaqueaacumulaçãopossasermantida.Emproldasimplicidade,voutambémmeabstrairdasmecânicasreaisdoprocessoemquenovasestruturasorganizacionaissãoformadas.Atarefabásicaéentãocompararosestágiossupostamentediferentesdocapitalismocomrespeitoaograudecompetição,preçoeequalizaçãodolucro,eofluxoautossustentáveldocapitalemlinhasdeatividadeprodutivademais-valor.

Considere,agora,oestágiosupostamente“competitivo”docapitalismocomoeleexistia,digamos,nadécada de 1840, nomundo capitalista “avançado”.A atividade industrial nessa época era organizadaquase inteiramente nos moldes da empresa familiar, usando métodos de contabilidade e práticas denegóciosextremamentetradicionais,nosentidodequeoempresáriodadécadade1840teriasesentidomuito à vontade em meio aos negócios dos mercadores italianos do século XIV. A posse e ogerenciamento do negócio eram uma coisa só, o tamanho da firma fazia com que toda a estruturaindustrial pudesse ser razoavelmente caracterizada como extremamente descentralizada. É claro quehavianaquelaépocamuitosexemplosdeindústriasverticalmenteintegradas,emqueadivisãosocialdotrabalhoaindatinhadeserconsolidada,assimcomoasformasdemonopóliomaisantigasqueaindanãotinham sido eliminadas – por exemplo, a Companhia das Índias Orientais Britânicas durou até 1845.Podemos razoavelmente supor que esta última desapareceria com o tempo, como desapareceriam ossetores de atividade extensiva ainda organizados ao longo dos moldes pré-capitalistas (produçãoartesanal, agricultura camponesa, comércio pequeno-burguês e produção emoficina etc.). Todas essasformasfinalmenteseriamreduzidasaopuromodelocapitalista.Asúnicasatividadesemlargaescalaecentralizadaseramasobraspúblicasouquasepúblicas–ferrovias,canais,instalaçõesportuáriasetc.–eas finanças do governo. Algumas das principais casas bancárias, como a Barings e a Rothschilds,estavam em posição de instalar ou derrubar governos, e os poderes fiscais estavam cada vez maisintegradosnomundodasaltasfinançasviadívidadogoverno.Nessasarenashaviaqueixasabundantesrelacionadas a imensas concentrações do poder econômico e financeiro.Mas a atividade industrial eagrícola,demodogeral,aconteciaempequenaescalaeresistiaaoenvolvimentodelongoprazodiretocomaprodução industrial e agrícola.Aprincipal conexão entre a atividadeprodutiva e omundodasfinançasestánaprovisãodecréditocomercialdecurtoprazo.

Uma coisa é apontar para a pequena escala da empresa e para a fragmentação da atividadeeconômica; outra totalmente diferente é presumir que isso envolvia uma competição perfeita, aequalização dos preços e dos lucros, que dirá uma base adequada para a acumulação sustentada. Asvariaçõesdepreçodeumalocalidadeparaoutraerammuitomarcadas.Emboranãohajamuitosestudossistemáticossobreosdiferenciaisnastaxasdelucro,quaisquerevidênciasquetenhamos–todasasquais

Page 152: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

emtermosdedinheiroepreço–sugeremqueelasvariavammuitodefirmaparafirma,deindústriaparaindústriaedelocalparalocal[13].Omecanismoparaigualarospreçoselucrospormeiodacompetiçãoeraqualquer coisamenosperfeito, e as alocaçõesdemãodeobra eramnomáximoaleatórias.Nãoédifícilenxergaromotivo.

Paracomeçar,oscustosdetransporteeramrelativamentealtoseaintegraçãoespacialdaseconomiasnacionais,quedirádaeconomiainternacional,estavaemseusestágiosiniciais.Firmasmuitopequenaspodiam operar como monopolistas nos mercados locais que comandavam. Os custos da transação –gastosnecessáriosparaacirculação–eramtambémrelativamentealtosemrelaçãoaovolumeeaovalor,aopassoqueofluxodeinformaçõeseralento,esporádicoeincompletoemrelaçãoaosmovimentosdopreço,oportunidadesdelucro,técnicasdeproduçãoetc.Osmercadosdecapitalestavamemumestadobastanteprimitivo;frequentementeerammaislocaisdoquenacionais,etodaaestruturainstitucionalparafacilitaçãodofluxodedinheiro(sejaparapermitira trocademercadoriasousuafunçãocomocapitalmonetário)dificilmenteeraadaptadaparaproduzirajustesrápidosnaprodução.E,paracoroartudoisso,aestruturafamiliartradicionaldapropriedadeeraaomesmotempoumabarreiraeumavirtudequandosetratavadesercapazdereagiranovasoportunidadesdelucro.Comoaposseeocontroleeramidênticoseaformadesociedadeanônimaaindaestavaporpenetrarnaatividadeindustrialeagrícola,opotencialparaaexpansãonosnegócios,atravésdaoperaçãoemlargaescalaoudadisseminaçãogeográfica,eraestritamentelimitadopelascapacidadesgerenciaisdafamíliaoudeumasociedadelimitada.

Porisso,umaltograudedescentralizaçãoorganizacionalacompanhouopoderdemonopólioetodosostiposdeatritoseobstáculosqueinibiamacompetiçãogenuínaeimpediamaequalizaçãodepreçoselucros[14].Avirtudedoscapitalistasempresariaispioneiros,aquelasfiguraslendáriasdocapitalismodoséculoXIX, está precisamente em sua notável capacidade paramanter a acumulação diante de todosesses obstáculos – incluindo, devemos notar, seu próprio modo de organização. E, embora astransferênciastecnológicaseosmovimentosdocapitalfossembastantenotáveis,dadooestadogeraldascoisas,issonãoatingianempodiaatingir,porquaisquerpadrões,aperfeiçãodacompetição.Então,porquecostumamoschamaresseperíododahistóriadocapitalismode“oestágiocompetitivoclássico”?

A resposta provavelmente está namaneira com a qual a “empresa” foi idealizada no pensamentoburguêsenopapelhegemônicoqueessepensamentodesempenhanamoldagemdonossoentendimentodomundo. A visão dos empresários, visando seu próprio interesse, mas guiados pela mão invisível domercado a fim de melhorarem o bem-estar social, é comum a Adam Smith e aos economistasneoclássicoscontemporâneos.Estesúltimos,emparticular,idealizamasempresasdeummodoqueelasjamais existiram e tratam como fetiche a empresa de pequeno porte, que carece de qualquer grau depodermonopolistademercado,comooagente idealparaseconseguirumequilíbriocompetitivo.Daísurgiuumainjustificadaassociaçãoentreapequenaescaladaorganizaçãoeacompetitividade.

Marx não se deixava enganar por tal visão. E não deveria mesmo. No estágio supostamente“competitivo”docapitalismo,quandoasempresaseramrelativamentepequenas,aleidovaloroperavademaneira imperfeitaeas leisdomovimentosóeramparcialmente sentidas.Por isso,oproblemanadécada de 1840 era aperfeiçoar a competição, melhorar a operação da lei do valor e continuar aaumentaraprodutividadedotrabalhodemodoqueaacumulaçãopudessesersustentada.Osobstáculosàcirculaçãoeaomovimentotinhamdesersuperadoseosmonopólioslocaiseliminadospelaintegraçãoespacial. Os custos das transações tinham de ser muito reduzidos, os mecanismos para a coleta edisseminaçãodasinformaçõesmelhorados,eumaestruturainstitucionalparafacilitarospagamentosemdinheiro,os fluxosdocapitaletc., tinhadesercriada.Tinhamdeserencontradassoluçõespara todos

Page 153: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

esses problemas. A ironia aqui é que a organização da empresa tradicional de pequena escala – tãoidealizadanateoriaburguesacomooparadigmadacompetitividade–eraumadasbarreirasmaissériaspara se encontrar soluções para esses problemas. A organização tradicional da empresa tinha de sersuperadaparaaperfeiçoaracompetitividadedatrocaedaobtençãodelucro.

Atécertoponto,asbarreirasàcompetiçãoforamreduzidaspormaciçasmelhoriasnotransporte,nascomunicações enas técnicasbancárias.Entretanto, emcadaumdesses setorespodemos testemunhar aascensãodas formasdeorganização em larga escala, quasemonopolistas, comuma forçademercadoimensa para os padrões do século XIX. As ferrovias, em particular, proporcionavam o campo dedesenvolvimento para as formasmodernas de organização corporativa.A “revolução organizacional”,queocorreunofimdoséculoXIXeculminounaemergênciadetrustesecartéis,podeemparteservistacomoumatentativadelidarcomtodasessasbarreirasàcompetição,substituindoonegóciofamiliarpelaempresamoderna. SegundoChandler, essa substituição ocorreu quando a “coordenação administrativapermitiumaiorprodutividade,custosmaisbaixoselucrosmaioresdoqueacoordenaçãoporpartedosmecanismosdomercado”.Asvantagensdanovaformaerammuitas:

Pelarotinizaçãodastransaçõesentreasunidades,oscustosdestastransaçõesforamdiminuídos.Vinculandoaadministraçãodeunidadesdeproduçãocomunidadesdecompraedistribuição,oscustosdainformaçãosobreosmercadosefontesdesuprimentoforamreduzidos.Demuitomaiorimportância,ainternalizaçãodemuitasunidadespermitiuqueofluxodeprodutosdeumaunidadeparaoutraadquirisseum uso mais intensivo das facilidades e do pessoal empregado nos processos de produção e distribuição e, assim, aumentasse aprodutividadeereduzisseoscustos.[15]

Aempresamodernadessetipo,continuaChandler,“apareceupelaprimeiraveznahistóriaquandoovolume de atividades atingiu um nível que tornou a coordenação administrativamais eficiente emaislucrativadoqueacoordenaçãodomercado”.Abuscapelolucrodiminuiuopapeldatrocaeestendeuaesferadaproduçãoporque,emcertaescaladeprodutos,oscustosdetransaçãoecirculaçãoerammaiselevadosnomercadodoquedentrodaempresa.Internalizandoessescustos,aempresapoderiadiminuirasbarreirasparaacirculaçãodocapitalemelhoraracapacidadeparaigualarataxadelucro.Porisso,acentralizaçãodocapitalpodemelhorar,emvezdediminuir,acapacidadedeigualaroslucros.

Na visão de Marx, a empresa moderna também envolve uma “transformação do capitalista querealmentefuncionaemummerogerente,administradordocapitaldeoutraspessoas,edodonodocapitalem[…]ummerocapitalistamonetário”[16].Aformafinanceiraqueocapitalismoentãoassumiupermitiu“uma enorme expansão da escala de produção e dos empreendimentos”, bem além daquela que oscapitalistas individuais jamais esperavam alcançar. E isso significava “a abolição do capital comopropriedadeprivadadentrodaestruturadaprópriaproduçãocapitalista”[17].

A separação da posse e da gerência ajudou a superar as limitações administrativas da empresafamiliar de estilo antigo e abriu o campo para a aplicação de técnicasmodernas de gerenciamento eorganização. Mas havia riscos à espreita. Adam Smith, sem dúvida tendo em mente as bolhasespeculativasdo iníciodo séculoXVIII, encarava as sociedades anônimas comopermissõesparaqueempresáriosirresponsáveisespeculassemcomodinheirodeoutraspessoas.Arelutânciaemsancionarasformasdeorganizaçãodesociedadeanônima,excetoparaobrassemipúblicasemlargaescala–canais,ferrovias,docasetc.–derivouprecisamentedessasobjeções.TodaahistóriadoscrashesespeculativosdemeadosdoséculoXIXatéaépocaatualsugerequeasobjeçõesestãolongedesereminfundadas,equea forma“financista”docapitalismoenfrentaumproblemaeternodemanterasuaprópriacasaemordem(vercapítulos9e10).

Page 154: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Mas o efeito líquido de aumentar a escala, a centralização do capital, a integração vertical e adiversificaçãodentrodaformadeempresacorporativatemsidosubstituira“mãoinvisível”domercadopela “mão visível” dos gerentes. Então, como essamão visível, ou coordenação gerencial dentro daesferadaprodução,se relacionacomaexpressãodovalorque,assimnosdiznossa teoria,devepelomenosserparcialmenteatingidamedianteatroca?

O controle domonopólio e o poder domercado permitemque a grande corporação sejamais um“criadordepreço”doqueum“cumpridordepreço”nomercado.Contudo,aindaqueosgerentestenhamàsuadisposiçãováriasestratégiasdepreço,nenhumaéexatamentearbitráriaealgumas,comoopreçodecustomarginal,estão tãosintonizadascomascondiçõesdeofertaedemandaquantosempreestevequalquerfixaçãodepreçonomercadoaberto.Emborasejaverdadequeospreçosresultantesnãosãoosmesmos que aqueles atingidos pormeio de preços competitivos, os desvios não são demodo algumsuficientementesubstanciaisparagarantirqueseabandoneaideiadequeosvaloressãoexpressospormeiodospreçosdemercado.Aofertaeademandasimplesmentesubstituemacompetiçãoabertacomoomecanismo utilizado. A objeção a que os gerentes tomem decisões baseadas em considerações deestabilidadeecrescimentoemumprazorelativamentelongotemmaissubstância(emboraparamuitosolongoprazonãosejatãolongoassim).Amudançadoshorizontesdetempoedacapacidadeparaplanejaraobsolescência éparticularmente importantequando se tratadasquestõesdousodocapital fixo (vercapítulo8).

Podehaver tambémpoucadúvidadequea “classegerencial” tenhaaté certopontoassumidoumavidaprópria,setornado“relativamenteautônoma”dosdonosdocapitale,dessemodo,setransformadoem uma “fonte de permanência, poder e crescimento contínuos”[18]. Na medida em que as estruturasgerenciaisseburocratizaram, tornaram-serígidas, inflexíveise incapazesdegrandesadaptações.E,namedidaemqueacorporaçãomodernacapturouaciência,atecnologiaeoplanejamento–que,pormeiodasleisdepatente,desenvolveuumacapacidadepararegularainovação–,elainternalizoucomsucessoosprocessosdemudançatecnológica[19].Acorporaçãocomeçaaproduzirnovostiposdeprocessosdetrabalho e novas estruturas organizacionais, assim como novos produtos e novas linhas produção.Namedida em que isso domina alguns ramos da produção, os promove à custa de todos os outros, comfrequência em detrimento da estrutura econômica geral. E, na medida em que as corporações sãoobrigadas, em virtude de seu tamanho e importância, a negociar com os governos, elas executam aspolíticasabertamente,veladamenteeinescrupulosamenteeminteressepróprio.

Emtodosessesaspectos,aformadasorganizaçõescorporativasmodernaspareceseraantítesedacompetitividadee,por implicação, incapazde igualarospreçose lucrosdeacordocomospreçosdaproduçãoeataxamédiadelucro.

Masvamosolharparaooutroladodessequadro.Osgrandesconglomeradosfinanceirosatingiramacapacidadededeslocarocapitaleaforçadetrabalhodeumalinhaparaoutraedeumapartedomundopara outra “num piscar de olhos”. Isso pode desenvolver, e na verdade desenvolve, sistemasextremamente sofisticados para a coleta e o uso de informações sobre as técnicas de produção, omercadoeasoportunidadesdelucro.Oscustosdastransaçõessãomínimosdentrodacorporação,eaproduçãoeadistribuiçãopodemserplanejadasatéoúltimodetalhecomosenãohouvessebarreirasànegociação.Domesmomodo,issopoderesponderamuitasdasdificuldadespresentessobreacrescenteconfiançanocapitalfixoprogramandoaobsolescência.Emtodosessesaspectos,acorporaçãomodernaaumentouapotencialidadeparaatingirumaequalizaçãodataxadelucrodentrodosseuslimites[20].

Noentanto,umacoisaéfalardapotencialidadeeoutramuitodiferenteapontarparaanecessidadede

Page 155: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

avanço.Paradescobrirossegredosdaequalizaçãodolucroedasformasdecompetiçãocontemporâneastemosdeentrarno labirintodasestruturasgerenciaismodernasmaisoumenosdamesmamaneiraqueMarx insistiu que deveríamos entrar no “terreno oculto da produção, em cuja entrada se lê: Noadmittanceexceptonbusiness.Aquiserevelaránãosócomoocapitalproduz,mascomoelemesmo,ocapital,éproduzido”[21].

Chandleréumdospoucoshistoriadoresque teveoprivilégiodese inserirnessedifícil território.Suasdescobertassãomuitointeressantes.Amaisimportantedopontodevistadanossaargumentaçãoéque o que aparece externamente como um movimento constante e aparentemente irreversível para acentralizaçãotemsidoacompanhadointernamenteporumadescentralizaçãoprogressivaecontroladanaestrutura da gerência. Aqui talvez consigamos encontrar o segredo do movimento de oposição àdescentralização,que impedeocolapsodaproduçãocapitalistamedianteacentralizaçãoexcessiva.Aideia de uma organização equilibrada, atingida por um equilíbrio entre as forças de repulsão, quecontribuemparaadescentralização,easforçasdecentralização,nãoédemodoalgumremota.Maselaagoraéexpressaporumainternalizaçãodacompetiçãodentrodeumacorporaçãoqueseapresentaaomundocomoummonstromonopolistacentralizado.

Asevidênciashistóricasnãosãoinconsistentescomesseargumento.Asestruturasdescentralizadasemultidivisionaisdentrodagrandecorporaçãocomeçamaemergirnadécadade1920,emrespostaatiposdeproblemasespecíficoscomosquaisossistemascentralizadosdoperíodoimediatamenteprecedentetiveram grande dificuldade para lidar. Como disse Chandler, “colocando uma pressão cada vezmaisintolerável sobre as estruturas administrativas existentes, a expansão territorial e, em muito maiorextensão, a diversificação criaram a forma multidivisional”. A reorganização estrutural realizada naGeneralMotorsemmeioàcrisedosanos1921-1922criouumaorganizaçãodescentralizadaque

nãoapenasaajudouaconquistaramaiorparceladomercadoautomobilísticonosEstadosUnidos,mastambémaexpandireadministrarcomsucesso suas atividadesde fabricaçãoe comercializaçãonoestrangeiro.Alémdisso,devidoà suaestrutura administrativa, ela foicapazdeexecutarbrilhantementeumaamplaestratégiadediversificaçãonafabricaçãoenavendadetodosostiposdemáquinasedeprodutosqueutilizammáquinasnosanosseguintesàquedadomercadoautomobilístico,nofinaldadécadade1920.

Acompetição,atémesmodavariedadelimitadaqueoperanooligopóliodomercado,logoobrigouasoutras empresas automotivas a fazerem o mesmo. A estrutura corporativa descentralizada emultidivisionalsetornougeneralizadanomundotodonadécadade1960[22].

Evidentemente,oponto interessante équeessa estruturadescentralizada éorganizadade tal formaque cada divisão (seja ela uma linha de produção ou um território) pode sermantida financeiramenteresponsável.Odesempenhogerencialdecadadivisãopodesermedidoemtermosdeumataxaderetornosobre o capital de cada divisão.A função da gerência central émonitorar o desempenho e alocar osrecursos–forçadetrabalho,habilidadesgerenciaisefinanças–emrelaçãoàlucratividadepresenteoufutura estimada de cada divisão. Com os custos das transições mantidos em um mínimo, a estruturagerencialmodernacriaumaformadecompetiçãodentrodesiquecomfrequênciatemoefeitodeigualara taxa de lucro. A conclusão fundamental para a qual isso aponta é que o conglomerado financeiromoderno é, pelo menos em termos da sua organização interna, bem mais eficiente e efetivo naequalizaçãodataxadelucrodoqueseusantepassados,peloquesesupõeperfeitamentecompetitivos,naprimeirametadeoséculoXIX.

Essaestruturacorporativamultidivisionaleainternalizaçãodacompetiçãonãosurgiramporacaso.OsgrandestrustesecartéisformadosnoiníciodoséculoXX,emumafasedecentralizaçãomaciçado

Page 156: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capital,estavamenfrentando,dentrodeumcurtoperíodo,umaprofundadificuldadefinanceira,apesardetodo o seu suposto imenso poder de mercado. E estavam em dificuldades precisamente porque nãosabiam exatamente de onde, no meio de suas operações complexas, estavam vindo os lucros ou quecustosdesnecessáriosestavamsendoincorridos.Ocolapsodaproduçãocapitalistanaverdadepareciaiminente,nãofossempostasemação“asforçasderepulsão”paracriaraestruturamultidivisional.

Noentanto,as“forçasderepulsão”forammobilizadasporrestriçõesexternasoperandopormeiodomercado–restriçõesqueobrigaramatéasmaiorescorporaçõesaentraremalgumtipodesubmissãoàleidovalor.Issonoslevaàquestãodecomoacompetiçãoémantidaentreosconglomeradosfinanceiroseograuemqueessacompetiçãoproduzumaequalizaçãodospreçosedoslucrosemtodasasunidadeseconômicas,nãoimportaoseutamanhooutipo.

Oprincipaltestedooligopólioedomonopólioestánograudepoderdomercadoenacapacidadeparaditarpreços isentosdaspressõescompetitivasdomercado.Ospreçosdomercadosão igualadosaos ditames do monopólio ou de acordo com as estratégias de “liderança do preço” dentro de umoligopólio.Astaxasdelucroaindatêmdeserigualadas,masaequalizaçãoédistorcidapelospreçosdomonopólioquesupostamentesedesviamdospreçosdaproduçãoqueseriamnegociadosnacompetição.

É fácil enfatizar esse argumento. As grandes corporações, operando dentro de um ambiente demercado oligopolista, estão sujeitas a várias pressões competitivas. Elas competem por meio dadiferenciaçãodoproduto,dasofisticaçãodomercadoeassimpordiante.Aseparaçãoentreaposseeagerênciatambémtemumimpactoimportantesobreaformaqueacompetiçãoagoraassume.Namedidaemqueacorporaçãooperasobrefundosemprestadosecriadinheiropormeiodolançamentodeaçõesebônus, ela entra em uma competição geral por capital monetário. O desempenho de uma empresa émedidoemtermosdaprodução(omais-valordistribuídocomolucrosparaospossuidoresdeaçõesebônus) e dasperspectivasparao crescimento em longoprazo.Umaempresa ineficiente e combaixossaláriosnãoconseguepermanecervivapormuitotempo,nãoimportaqualsejaopoderdemercadocomrelaçãoaospreços.

Porissoacompetiçãoassumemuitasformasalémdaquelasassociadasàcompetiçãopelopreçonomercado.Aspráticasgerenciaiseasreorganizaçõesinternalizaramosprocessoscompetitivosdentrodaempresa (criaram até mercados de trabalho internos), enquanto a competição pelo capital monetáriodeslocouasuaatençãoparaosmercadosdecapitalcomoomeioparadisciplinaratéamaispoderosadasunidadeseconômicas.Essasformasdecompetiçãopodemsertãoefetivasquantoaequalizaçãodospreçosedos lucros,dadaaeficiênciasuperioratingidaemoutrosaspectos,comoaformaclássicadacoordenaçãodomercado,emquea“mãoinvisível”supostamenteguiavaosempresáriosinfalivelmenteparasecomportarememconformidadecomaleidovalor.

Entretanto,issonãoquerdizerqueacompetiçãofuncionaperfeitamentenooligopólio.Naverdade,há muitos problemas resumidos pelas relações entrelaçadas entre as instituições financeiras e ascorporaçõesindustriais,aproliferaçãodecompanhiasdeholdingegrandesconglomeradosfinanceiros(quecomfrequênciaprestampoucaatençãoaosdetalhesdogerenciamentocotidiano)etc.Osprocessoscompetitivos–dequalquertipo–estãosempresujeitosaseremcastradospelacentralizaçãoexcessiva.E o tamanho, o peso e o poder dos agentes econômicos envolvidos significam que se torna cada vezmenos certo que as formas de organização capitalistas venham a se aproximar daquele estado deequilíbrioquegarantiriaaequalizaçãodospreçosedoslucros,alémdeumaacumulaçãosustentável.

OproblemademanterosprocessoscompetitivosatravésdearranjosorganizacionaissetornaaindamaisagudoquandoconsideramosoenvolvimentodoEstadonasesferasdeproduçãoe troca.Estamos

Page 157: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

falandoaquidasvariedadesdeintervençãodiretaporpartedoEstado,emvezdeoEstadocomoprotetordos direitos de propriedade privada, contratos etc., ou o Estado como “gerente” dos processos deprodução e reprodução da força de trabalho (por meio de investimentos na saúde, na educação, nosserviços de assistência social etc.). Embora toda a questão do intervencionismo do Estado sejademasiado complexa para ser tratada aqui em profundidade, podemos identificar imediatamente astendências opostas para a centralização e a descentralização expressas tanto dentro quanto através doaparatodoEstado.

Porumlado,vemosoEstadoprocurandoevitaracentralizaçãoexcessiva,querregulandoasformasde organização capitalistas (por meio de uma série de leis destinadas a evitar o monopólio), quergerando arranjos administrativos descentralizados dentro de si mesmo. A estrutura política eadministrativadofederalismoeaorganizaçãoda indústriabancárianosEstadosUnidosproporcionamexemplosexcelentesdearranjosaltamentedescentralizadosmantidosatravésdaprópriaaçãodoEstado.

Por outro lado, o governo frequentemente atua no sentido de estimular a centralização do capital.Fusões e incorporações podem ser encorajadas e até subsidiadas como parte de uma política dereorganizaçãoindustrialpatrocinadapeloEstado.Osempreendimentosdelargaescalaqueestãoalémdoescopo do capital privado podem ser financiados, construídos e até gerenciados pelo governo – porexemplo,nenhumafábricadeferroeaçodelargaescalafoiconstruídanosúltimosanosnaEuropasemaextensiva participaçãodogoverno.Serviços de utilidadepública, o transporte e as comunicações sãocampos em que o governo ou participa diretamente ou regulamenta, em parte devido à escala deinvestimentorequeridaeemparteporqueestamosaquilidandocom“monopóliosnaturais”quesurgemporqueéfisicamenteimpossívelterumgrandenúmerodecompetidoresoperandonamesmaárea(quinzediferentesferroviasentredoispontossimplesmentenãotemsentido).Eosgovernospodembuscar,emdeterminadas circunstâncias, consolidar a empresa enfraquecida em algum setor-chave da economia esubsidiá-laparabaixarocustodosconstantesinsumosdecapitalàsempresasprivadas.Issoconduz,éclaro,aumadistorçãodospreçosdomercadoemrelaçãoaospreçosdaprodução,oquepodeconduziraumareestruturaçãodastaxasdelucrodeacordocomaslinhasditadaspelogoverno.

As políticas fiscais e monetárias que os governos buscam também têm impactos profundos.Destinadas a manter “a estabilidade e o crescimento econômicos”, essas políticas, sejam ou nãoconstruídas nosmoldes keynesianos, nãopodemevitar ter implicações para as formasde organizaçãocapitalistas.Para começar, a canalizaçãodo fluxodecapitalpormeiodopróprio aparatodogovernoproduz poderes fiscais emonetários altamente centralizados para o governo.Os gastosmilitares e asobraspúblicasdelargaescalapodem,emdeterminadascondições,absorvergrandesporçõesdoprodutosocialtotal.Alémdisso,asleisquegovernamataxação,osarranjosdedepreciaçãoetc.,quepodemserconstruídoscomopartedasériedeferramentasparagarantiraestabilidadeeocrescimentoeconômicos,frequentementetêmprofundasconsequênciasparaaorganizaçãocorporativa.

Essassãoquestõesmuitocomplexasequemerecemumestudoatento.Opropósitodeabordá-lasaquié considerar em termos teóricos gerais o grau em que estes tipos de arranjos organizacionais podempossivelmenteserconsistentescomaoperaçãodaleidovalorcomoMarxadefinia.Aparentemente,pelomenos,asatividadesdogovernoparecemterpoucoounadaavercomamanutençãodesseprocessodetrocacompetitivopormeiodoqualateoriamarxianaenxergaaleidovaloroperando.O“capitalismomonopolistadoEstado”,comoéàsvezeschamado,parececadavezmaisfundamentalmenteantagonistaàoperaçãodaleidovalordoqueocapitalismomonopolistaoufinanceiro[23].

PodemosreduziracomplexidadedessaquestãonosconcentrandonosmecanismosemqueoEstado

Page 158: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

podeserdisciplinadopelocapital.Infelizmente, issonãoresolvetodasasdificuldades,masindicaumcaminhoquepodemosseguirparanoslivrarmosdoquepareceserumsérioimpasseteórico.

PoderíamosconceberoEstadocomopoliticamentecontroladono interessedaclassecapitalista.AideiadequeoEstadoé“ocomitêexecutivodaburguesia”nãoédesconhecidanoscírculosmarxistas.Embora haja com frequência um elemento de verdade em uma concepção desse tipo, não temosnecessariamente de invocá-lo aqui, pois há outras forças em ação que podem servir igualmente paradisciplinaroEstadoàsexigênciasdocapital–assumindo,éclaro,queosarranjoslegaiseinstitucionaisbásicos do capitalismo sejam preservados. Essas forças são principalmente financeiras. Em primeirolugar,astaxas–queconstituemocernedaatividadedoEstado–sãoemsiumafatiadomais-valoroudonossocapitalvariável.OEstadonãopodeextrairmaisdoquealguma“parceladeequilíbrio”demais-valoroudocapitalvariávelsemdestruirfundamentalmenteosarranjosdistribucionaisquedãosuporteàcirculaçãodocapital.Devemosnotaraqui,éclaro,que,comoaproduçãoeoconsumonuncapodemserequilibrados nas relações de distribuição antagonistas, este se torna um objetivo característico daspolíticaskeynesianasderealizaroimpossível–porisso,quantomaisaspolíticaskeynesianassãobem-sucedidasnaproduçãoenoconsumoequilibradosem longoprazo,maiselasameaçamas relaçõesdedistribuição social que são fundamentais para o capitalismo. Quando a política pública é obrigada areverterparaprotegeressasrelaçõesdedistribuiçãosocial,acapacidadeparaequilibraraproduçãoeoconsumoéimediatamentediminuída.

Emsegundolugar,namedidaemqueoEstadoseengajanaproduçãodiretaemumabasedelongoprazo,eleemgeraltemdepediremprestadoaosmercadosdecapital.Nãopodepediremprestadooquenão está ali e é obrigado a competir, embora em uma base um tanto privilegiada, por sua parcela decapitalmonetário.Eledevetambémpagarumataxaderetornosobreocapitalquetomaemprestado–umretorno que deve vir diretamente da exploração da força de trabalho no setor sob o seu controle ouindiretamentepelataxaçãodomais-valorproduzidaemoutroslugares.

O que tudo isso significa é que em um ponto ou outro o Estado tem de ser financeiramenteresponsável em relação aos processos fundamentais da circulação do capital e da produção demais-valor. Os mecanismos por meio dos quais essa responsabilidade é reiterada são com frequênciaintrincadosesutis.Masháexemplossuficientesdoexercíciobrutodospoderesdisciplinaresparatornaresse argumento mais do que meramente plausível. Um poder capitalista dominante, como os EstadosUnidos, ou uma agência internacional, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), provavelmentepressionará muito os governos mais fracos para que se adaptem a determinados padrões decomportamento. A participação do governo em alguns setores considerados do domínio da empresaprivadapodeserreduzida,contendoacentralizaçãoexcessivadopodereconômicodentrodogoverno.Exigências severas podem ser impostas às operações das empresas estatais (com respeito à suaeficiênciaelucratividade,porexemplo)quandoosgovernosbuscamapoiofinanceiro.AGrã-Bretanha,aItáliaePortugalestãoentreosváriospaísesque têmsidofinanceiramentedisciplinadospeloFMInosúltimos anos. O governo da cidade de Nova York também foi similarmente disciplinado por forçasmobilizadasdentrodosistemafinanceirodosEstadosUnidosnoperíodode1973a1978.

UmaconclusãorazoávelquepodemosextrairdissoéqueEstadosqueseafastamdemaisdasformasorganizacionaisedaspolíticasquesãoconsistentescomacirculaçãodocapital,comapreservaçãodosarranjos distribucionais do capitalismo e com a produção sustentada domais-valor logo se veem emdificuldadesfinanceiras.Acrisefiscal,emsuma,setransformanomeioemqueadisciplinadocapitalpode ser fundamentalmente imposta aqualquer aparatodoEstadoquepermaneçadentrodaórbitadas

Page 159: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

relaçõesdeproduçãocapitalistas.Aoqueparece,todaahistóriadamudançaorganizacionalnocapitalismopodeserinterpretadacomo

umaprogressãoditadaporumalutaembuscadaperfeiçãonaoperaçãodaleidovalor.Poresserelato,ocapitalismo se tornou mais, e não menos, receptivo à lei do valor. A aparência superficial de ummovimento afastado da competitividade e em direção às formas demonopólio emonopólio estatal –embora descritivamente precisa em alguns aspectos – ao ser inspecionada torna-se histórica eteoricamente equivocada, se considerada de forma literal. O capitalismo nunca foi perfeitamentecompetitivo oumesmo remotamente situado em conformidade com esse ideal. Lutando para se tornarmaiscompetitivo,ocapitalismodesenvolveuestruturasquedivergemdeumaimagempredominantedoquedeveparecerumaorganizaçãoverdadeiramentecompetitiva.Masemsuaspráticaseledesenvolveunovosmodosdecompetiçãoquepermitemquealeidovaloroperedemaneirasdiversas,mascadavezmais efetivas. A vida diária para a massa das pessoas mantidas cativas nas relações sociais docapitalismopassouasercadavezmaiscompetitiva.Acompetiçãonoestágiointernacionalseaviva;adisciplinadosgovernospelosmecanismosfinanceiros torna-separtedanossadietadiáriadenotícias.Osgerentesdivisionaissentemabordaafiadadacompetiçãodiariamenteemsuascomunicaçõescomagerênciacentral.Detodosessespontosdevista,percebemosasleisdemovimentodocapitalismoaindanocursodaperfeição,aleidovalorfinalmenteseenvolvendoemsimesmacomooditadorabsolutodenossasvidas.

Masdizerquealeidovalorestásendoaperfeiçoadanãosugerequeestejamosentrandoemumaeradeharmoniacapitalista.Longedisso.Aleidovalorincorporacontradiçõeseosarranjosorganizacionaisquesãomoldadosdeacordocomseufuncionamentonãopodem,emtaiscircunstâncias,estarisentosdecontradições.Oresultadoéumatendênciadeinstabilidadeorganizacionaldentrodomododeproduçãocapitalista[24].

O impulso para controlar todos os aspectos da produção e da troca tende a criar umasupercentralização dos capitais – tanto no setor privado quanto no estatal –, que é na verdade umaameaça à perpetuação da própria produção capitalista. Namedida em que as forçasmitigadoras quecontribuemparaadescentralizaçãosãodifíceisdeentraremmovimento,osistemaentraemestagnação,fica atolado e émantido cativo pelo peso e a complexidade da sua própria estrutura organizacional.Inversamente,adescentralizaçãoexcessivaeaoportunidadeeocaprichodomercadopodemcriar talclima de incerteza, tantas lacunas entre a produção e a negociação, que isso também tem de sercompensado pormovimentos rumo à centralização.O ponto de equilíbrio entre essas duas tendênciasopostaséinerentementeinstável.Eleé,nomáximo,atingidoapenasporacaso,enãohámecanismosparaimpedir as relações antagonistas do capitalismo que empurram as estruturas organizacionais para odesequilíbrio.Nessepontopodemosperceberqueascrisestêmumpapelconstrutivoadesempenharnãosomente impondo novas tecnologias no sentido estrito, mas também forjando novas estruturasorganizacionaisqueestejammaisdeacordocomaleidovalor,namedidaemqueproporcionemabaseparaumaacumulaçãorenovadamedianteaproduçãodemais-valor.Entretanto,estaéumaquestãoquevamosretomarnocapítulo7.

Alémdisso tudo, existe uma ironia aindamais profunda.A lei do valor é umproduto social. E arelaçãosocialqueestánofundodelanãoéoutrasenãoaquelaqueexisteentreocapitaleo trabalho.Masapróprialeidovalorenvolvetodaumasériedetransformaçõesorganizacionaisquenãopodemserrealizadas sem uma transformação simultânea das relações de classe. A ascensão de uma “classegerencial”, separada e distinta dos donos do capital, das estruturas de intervenção e regulação do

Page 160: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

governo,dedisposiçõescadavezmaishierárquicasnadivisãodotrabalho;aemergênciadeburocraciascorporativasegovernamentais– tudo issoobscureceocapital simples–a relaçãode trabalhoquedásuporteàpróprialeidovalor[25].

Ofatodeessasextensasmudançassociaisseremoprodutoda leidovalornãodeveserencaradocomsurpresa. Issosimplesmenteconfirmaaproposiçãomarxistabásicadaqualpartimos.Procuramoscriar uma estrutura tecnológico-organizacional apropriada para um conjunto particular derelacionamentos sociais, apenasparadescobrir queestesúltimosprecisammudarpara se acomodar àprimeira– ao tentarmudaromundo,mudamosanósmesmos.Ou, colocandona formamarxianamaisclássica, a resolução de um conjunto de contradições dentro do aparato social e tecnológico docapitalismo inevitavelmente engendra outras. As contradições são replicadas em formas novas efrequentemente mais confusas. E é, evidentemente, a elaboração de tal processo que está escrito nahistóriadasformasdeorganizaçãocapitalistasenastransformaçõesqueelassofreram.

[1]StephenHymer,“TheMultinationalCorporationand theLawofUnevenDevelopment”,emJ.Bhagwati (org.),EconomicsandWorldOrderfromthe1970stothe1990s(NovaYork,Macmillan,1972),p.113.

[2]RudolfHilferding,Lecapitalfinancier (Paris,ÉditionsdeMinuit,1970);Vladimir I.Lenin,SelectedWorks (Moscou,Progress, 1970).GrandepartedodebatecontemporâneonomundodelínguainglesaseoriginadePaulBaranePaulSweezy(MonopolyCapital,NovaYork,MonthlyReviewPress,1966),masnaEuropaodebateassumiuumafeiçãobemdiferente–verPaulBoccara,Étudessur lecapitalismemonopoliste d’État, sa crise et son issue (Paris, Éditions Sociales, 1974),Nicos Poulantzas,Classes in ContemporaryCapitalism, cit.,ElmarAltvater, “Notes on Some Problems of State Interventionism”,Kapitalistate, San Francisco, San FranciscoBayAreaKapitalistateGroup,1973,easrecentesdeclaraçõesresumidasdeBenFineeLaurenceHarris,Re-ReadingCapital,cit.,cap.7e8,JohnHollowayeSolPicciotto,StateandCapital:aMarxistDebate (Londres,E.Arnold, 1978) e JohnFairley, “FrenchDevelopments in theTheoryofStateMonopolyCapitalism”,ScienceandSociety,1980.

[3]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.703.

[4]Idem.

[5]Ibidem,LivroIII,p.246,eTheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.311.

[6]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.701.

[7]Ibidem,cap.11.

[8]Idem,Grundrisse,cit.,cap.3.

[9]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.429-30.

[10]PaulBaranePaulSweezy,MonopolyCapital,cit.,p.5-6.

[11]PaulBoccara,Études sur le capitalismemonopoliste d’État, sa crise et son issue, cit., p. 31.Há certa ironia aqui. EnquantoPaulBaranePaulSweezysepreparamparaabandonaraleidovalornatroca,HarryBraverman(LaborandMonopolyCapital,cit.),inspirando-senaobradessesautores,mostraconvincentementecomoanoçãodevalormarxianacaptacomumaprecisãodevastadoraascondiçõesqueprevalecemdentrodaprodução(vercapítulo4,seçãoII).Comoosvalorespodemprevalecerdentrodaprodução,masnãonatroca,paramiméummistério.

[12]ParaumafortecríticadaformulaçãodePaulBoccara,verBrunoThéreteMichelWieviorka,Critiquede la théorieducapitalismemonopolisted’État(Paris,Maspero,1978).

[13]Estudossobreoquerealmenteaconteceucomastaxasdelucrosãopoucosecronologicamentemuitoespaçados.JeanBouvier,FrançoisFuret eMarcelGillet (Le mouvement du profit en France au XIXe siècle, Paris, La Haye,Mouton et Cie, 1965) produziram uma dasmelhoresemaisinstrutivasobrassobreoassunto.

[14]AlfredChandler,emStrategyandStructure(Cambridge,MITPress,1962),p.3,escreve:“ascompanhiascompravamsuasmatérias-primaseseusprodutosacabadosnoâmbitolocal.Quandofabricavamparaummercadoquedistassemaisdealgunsquilômetrosdafábrica,compravamevendiammedianteagentescomissionados,querepresentavamosnegóciosdeváriasempresas”.

[15]Ibidem,p.6-12.

Page 161: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[16]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.436.

[17]Idem.

[18]AlfredChandler(TheVisibleHand:theManagerialRevolutioninAmericanBusiness,Cambridge,BelknapPress,1977)proporcionaboashistóriassobreisso.Oproblemageralda“classegerencial”temsidoabordadoporváriosautores,taiscomoNicosPoulantzas(ClassesinContemporaryCapitalism,cit.),JamesBecker(MarxianPoliticalEconomy,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1977)eErikOlinWright(Class,CrisisandtheState,Londres,NLB,1978[ed.bras.:Classe,criseeoEstado,RiodeJaneiro,Zahar,1979]).

[19]DavidNoble,emAmericabyDesign:Science,TechnologyandtheRiseofCorporateCapitalism,cit.,apresentaumexcelenterelatodecomoissoaconteceu.

[20]EstaéaprincipalconclusãoaserextraídadaobradeChristianPalloix,Lesfirmesmultinationalesetleprocèsd’internationalisation(Paris, Maspero, 1973); ver também as leituras organizadas por Hugo Radice (International Firms and Modern Imperialism,Harmondsworth /Baltimore,PenguinBooks,1975).EmcontrastecomadisjunçãoqueprevaleceentrePaulBarranePaulSweezy,porumlado,eemHarryBravermanporoutro(veranota11destecapítulo),ChristianPalloixassociaessavisãodacrescenteinserçãodaleidovalormediante a troca internacional com a crescente inserção da lei do valor na produção (ver Christian Palloix, “The Labour-Process: FromFordismtoNeo-Fordism”,cit.).

[21]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.250.

[22]AlfredChandler(StrategyandStructure,cit.,1962,p.44-6);LeslieHannah(TheRiseoftheCorporateEconomy,Londres,Methuen,1976) apresenta um estudo análogo da experiência britânica. Ver também John Scott, Corporations, Classes, Capitalism (Londres,Hutchinson,1979).

[23]Nosúltimosanos,ateoriadoEstadotemsidoobjetodeintensadiscussãoentreosmarxistas.Odebatetemsidomultilateraleimpossívelde ser resumido em um curto espaço. Ben Fine e LaurenceHarris,Re-ReadingCapital, cit., JohnHolloway e Sol Picciotto,State andCapital:aMarxistDebate, cit., eErikOlinWright,Class,Crisisand theState, cit., apresentam interessantesperspectivase sínteses.Amaneira que introduzo o Estado na presente discussão sugere certa simpatia pela abordagem defendida por Holloway e Picciotto. Elesdefendemuma teoria doEstadomaterialista construída a partir de um exame cuidadoso do necessário relacionamento entre as formas deEstadoporumladoe,poroutro,entreasformasdeproduçãoeasrelaçõessociaiscomoestãoexpressasmedianteoscontraditóriosprocessosdeacumulação.Despojadadoseuformalismo lógicoepotencialmenteárido,acreditoqueessaabordagemtenhamuitoaoferecerparanosajudaraentenderdiversosaspectosdoEstadonocapitalismo.SeelapodeounãonosconduzirdurantetodoocaminhoatéacompletateoriadoEstadoéoutraquestão,sobreaqualnãoestoupreparadoparaespecularnessaconjuntura.Voltareiaissonoscomentáriosdeconclusãodestaobra.

[24]RudolfHilferding, emLecapital financier, cit., observoumuito claramente que o impacto do oligopólio, dos cartéis etc. distorceu ospreçosdaproduçãoaindamaisdoqueaconteceriadeoutromodo,eque,porisso,amonopolizaçãotendeuaexacerbar,emvezdesanar,osproblemasfundamentaisdainstabilidade.

[25]Observamos no capítulo 4, seção I, que a transformação do processo de trabalho tendeu para uma capacidade cada vezmaior paraobscureceraorigemdolucronomais-valor,eaquivemosa imagemrefletidadaquela ideiacomoestáexpressanasformasdeorganizaçãocapitalistas.TudoissoindicaqueotemadonecessáriofetichismoqueMarxenuncianessaextraordináriapassagemnoprimeirovolumedeOcapitalémaisrelevantedoquenuncaparaonossoentendimentodomundo.

Page 162: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

6.Adinâmicadaacumulação

O capitalismo é extremamente dinâmico e inevitavelmente expansionista. Impulsionado pelomotor daacumulação e abastecido pela exploração da força de trabalho, constrói uma força revolucionáriapermanente que constantemente reformula o mundo em que vivemos. Como podemos representar eanalisaradinâmicacomplexa–asleisinternasdomovimento–domododeproduçãocapitalista?

Marxlidacomessaquestãocriandovárias“representaçõesabstratas”dosprocessosdeproduçãoecirculação do capital. Ele então trata tais representações como “objetos teóricos”, investigasistematicamente suas propriedades, e assim constrói vários “modelos” da dinâmica da acumulação.Cada “modelo” cria uma “janela” ou ponto de observação a partir do qual se pode ver um processoextraordinariamentecomplexo.

Em O capital são apresentados três “modelos” importantes da dinâmica da acumulação. Essesmodelos refletemamaneira pela qual o “objeto teórico” é constituído emcadaumdos três livros daobra.Noprimeirolivro,Marxprocurarevelaraorigemdolucroemumprocessodeproduçãorealizadosobaégidedorelacionamentosocialentreocapitaleotrabalho.Ateoriadomais-valoréconstruídaeelaborada sobre os processos da mudança tecnológica e organizacional, e grande ênfase é nelescolocada. Mas questões ou dificuldades que podem estar ligadas à circulação do capital estãointeiramente excluídas da análise sob a simples suposição de que os capitalistas não experimentamdificuldadeemdispordasmercadoriasqueproduzem.IssodeixaMarxlivreparaconstituirseuprimeiromodelodaacumulação,queabordaascondiçõessociaisetecnológicasquefixamataxadeexploração.Omodelo,emborafirmementeancoradonodomínio teóricodaprodução, lidacomadistribuiçãodosvaloresproduzidosentreoscapitalistaseos trabalhadores.Omodeloéapresentadoem termosduros,rigorososeinflexíveis.

OsegundolivrodeOcapitalseconcentranacirculaçãodocapitaldurantetodasassuasfases:

Aproduçãoeaaquisiçãode forçade trabalhosãoencaradascomo“momentos” relativamentenão

Page 163: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

problemáticos nesse processo.A atenção está voltada aos problemas que surgem quando o capital semovedeumestadoparaoutroeàsrelaçõesdetrocaquedevemprevalecerparaocapitalsernegociado.Amudançatecnológicaémuitopoucoenfatizadaeasgrandeslinhasdalutadeclasses,tãoevidentesnoprimeiromodelo,desaparecemquaseinteiramentedoquadro.IssopermiteaMarxconstruirum“modelo”de acumulação totalmente diferente pormeio da reprodução da circulação do capital. Omodelo estáfundamentado no domínio teórico da circulação do capital e da troca, e trata das condições denegociação do capital pormeio do consumo (ver capítulo 3).Mas isso é argumentado demodomaisimaginativoetentativodoquerigoroso.

AintençãonoterceirolivrodeOcapitalésintetizarosachadosdosdoisprimeiroslivroseconstruirummodeloqueintegreorelacionamentodeproduçãoedistribuiçãocomasexigênciasdaproduçãoedanegociação.Ummodelosintéticodadinâmicacapitalista–da“produçãocapitalistacomoumtodo”–éconstruídoemtornodotempoda“taxaemquedadolucroedesuastendênciascontrárias”.Essemodelo,enganosamente simples na sua forma, é utilizado como um veículo para expor as várias forças quecontribuem para o desequilíbrio no capitalismo e, desse modo, proporcionar uma base para oentendimentoda formaçãoe resoluçãodacrise. Infelizmente,omodelo fazmuitopouca referênciaaosachados do segundo livro e, por isso, carece de um terreno firme em um domínio teórico que deveabranger conjuntamente a produção e a circulação. Então, o modelo tem de ser tratado como umatentativapreliminarebastanteincompletadeentenderumproblemadifícilecomplexo.Oqueemseguidaveremoséatéquepontoesseterceiromodeloéincompleto.

Aintençãodestecapítuloéresumirascaracterísticasdecadaumdesses“modelos”deacumulaçãoeavaliar suas deficiências e também os insights que eles geram. Como Marx, tentarei apresentar oargumentodetalmaneiraqueascontradiçõesfundamentaisinerentesentreaproduçãoeatroca,entreasexigênciasdeequilíbrioparaaproduçãodomais-valoreacirculaçãodocapital,evidenciem-se.Essascontradiçõesrealmenteproporcionamumabaseválidaparaoentendimentodaformaçãoedaresoluçãodascrisesnocapitalismo.Amecânicarealdesseprocesso,tãovitalparaalógicainternadocapitalismo,seráabordadanocapítulo7.

I.APRODUÇÃODOMAIS-VALOREALEIGERALDAACUMULAÇÃOCAPITALISTASe,comoMarxafirma,“avocaçãohistóricadoperíodoburguês”é“aacumulaçãopelaacumulação,aproduçãopela produção”[1], então umaparte domais-valor deve ser convertida emnovo capital paraproduzirmaismais-valor.Próximoaofimdoprimeirolivro,Marxexplicaclaramentea“influênciadocrescimento do capital no destino das classes trabalhadoras” e, no processo, constrói ummodelo dadinâmica da acumulação. Algumas suposições são tacitamente incorporadas para facilitar aargumentação. Há apenas duas classes na sociedade: capitalistas e trabalhadores. Os primeiros sãoobrigados pela competição a reinvestir pelo menos parte do mais-valor do qual se apropriam paragarantirsuaprópriareproduçãocomoclasse.Ostrabalhadores,aosquaisénegadoqualqueracessoaosmeios de produção, são inteiramente dependentes do emprego proporcionado pelos capitalistas paragarantir suasobrevivência (aclasse trabalhadoranãopodeproduzirnadaparasi).Oscapitalistasnãoencontram barreiras para a disponibilização das mercadorias em seu valor. Os custos da circulação,assim como todos os custos da transação, são ignorados. A economia é considerada um simples

Page 164: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

agregado,deformaqueasrelaçõesinsumo-produtoentreosdiferentessetorespodemserignorados.Emumaeconomiatãoextremamentesimplificadaháapenasduasformasdereceita:salárioselucros

agregados, ou, como foi conceituado em termos de valor, capital variável e mais-valor. Como sm/vrepresenta a taxa de exploração, podemos explorar algumas facetas do “destino do trabalhador”examinandoasmudançasnataxadeexploraçãonasrelaçõessociaisdaproduçãoedatrocacapitalistas.Fazerissorequerqueexaminemosaspartesrelativasdocapitalvariável(ototaldosencargossalariais)eomais-valor(antesdadistribuição)noprodutosocialtotal.EmboraMarxconduzaaanáliseemtermosde valor, há um apelo tácito aos preços domercado porque os salários são considerados livres paravariarapartirdovalorbásicodaforçadetrabalho.Ataxasalarial,ataxarealdaexploração,éfixadapelaofertaedemandadeforçadetrabalho.OqueMarxtemdeexplicaragoraécomoasrealidadesdaofertaedademandadocotidianosãoestruturadasafimdegarantirumataxadeexploraçãoconsistentecomasexigênciasdaacumulação.

Marx constrói duas versões do seu modelo de acumulação. A primeira exclui as mudançastecnológicaseorganizacionaisepresumequeasprodutividadesfísicasedevalordaforçadetrabalhocontinuam constantes. A acumulação nessas condições envolve um desembolso crescente do capitalvariável. Por isso, ele “reproduz a relação capitalista em escala ampliada – de um lado, maiscapitalistas,oucapitalistasmaiores;deoutro,maisassalariados”.Emoutraspalavras,a“acumulaçãodocapitalé,portanto,multiplicaçãodoproletariado”[2].

De onde vem esse aumento na oferta de força de trabalho? Podemos vislumbrar um aumento napopulação totalouumaparticipaçãocadavezmaiordeumapopulaçãoexistentena forçade trabalho.Esse aumento quantitativo não é necessariamente acompanhado por qualquer aumento na taxa deexploração – a massa de força de trabalho explorada simplesmente aumenta para acompanhar aacumulação.Naverdade,odestinodotrabalhadorpodemelhorar.Ossaláriospodemaumentarepodemcontinuar aumentando, contanto que isso não interfira no progresso da acumulação.No entanto, se ossaláriossubiremacimadovalordaforçadetrabalhodetalmaneiraqueaacumulaçãodiminua,entãoataxadeacumulaçãoseráajustada:

uma partemenor da renda é capitalizada, a acumulação desacelera e omovimento ascensional do salário recebe um contragolpe. Oaumentodopreçodotrabalhoéconfinado,portanto,dentrodoslimitesquenãosódeixamintactososfundamentosdosistemacapitalista,masasseguramsuareproduçãoemescalacadavezmaior.[3]

A velocidade da acumulação parece se mover no sentido inverso ao da taxa salarial.MasMarxinsisteque,apesardasaparências,aacumulaçãopermaneceumavariávelindependente,eataxasalarial,avariáveldependente.Afinal,emprimeirolugar,foiaacumulaçãopelaacumulaçãoqueobrigouataxasalarialaaumentar,empurrandoademandaporforçadetrabalhoacimaealémdesuaofertadisponível.

Aprimeiraversãodessemodelonospermiteexplicarasoscilaçõesdecurtoprazonastaxassalariaisem relaçãoàs flutuaçõesnavelocidadedaacumulação.A taxadaexploração real, representadapelossalários, flutua em torno do valor de equilíbrio básico da força de trabalho. Mas não há nada naespecificaçãodomodeloquegarantaqueimportantessaídasdoequilíbrionãoocorramemlongoprazo.Diantedasfortesbarreirasaqualqueraumentonaofertadeforçadetrabalho,astaxassalariaispoderiamaumentar tão acima do valor da força de trabalho que praticamente nada seria deixado para aacumulação.Nessascondições,areproduçãodocapitalismoestariaameaçada.

E assim Marx constrói sua segunda versão do modelo de acumulação. Ele agora abandona asuposiçãodequeasprodutividadesfísicasedevalordotrabalhopermanecemconstantes.Asmudanças

Page 165: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

tecnológicas e organizacionais podem ser usadas como meios para manter a acumulação diante daescassez de mão de obra. Reduzindo a demanda por capital variável em relação ao capital totaladiantado,essasmudançasdiminuemataxasalariale,dessemodo,permitemumaumentonataxarealdeexploração.SegundoMarx,esseresultadoéalcançadoaumentando-seacomposiçãodevalordocapital.Por isso,umaumentona“produtividadedo trabalho social se convertenamaispoderosaalavancadaacumulação”[4].

Marxespecificaosmecanismosexatosquepermitemumataxacrescentedeexploraçãoaseratingida,nãoimportaqualsejaavelocidadedaacumulação.Asmudançastecnológicaseorganizacionaisreduzemademandaportrabalhoemrelaçãoàofertadisponível,queéproduzidaporuma“populaçãoexcedenterelativa”ouum“exércitoindustrialdereserva”.Emresumo,umapartedaforçadetrabalhoédispensadadotrabalhoesubstituídapormáquinas.

Mas se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação […], essa superpopulação se converte, emcontrapartida, emalavancadaacumulaçãocapitalista, e atémesmonumacondiçãodeexistênciadomododeproduçãocapitalista.Elaconstituiumexércitoindustrialdereservadisponível,quepertenceaocapitaldemaneiratãoabsolutacomoseeleotivessecriadoporsuaprópria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado,independentementedoslimitesdoverdadeiroaumentopopulacional.[5]

Esse desemprego induzido pela tecnologia não só proporciona uma fonte de reserva de força detrabalho para facilitar a conversão demais-valor emnovo capital variável como também exerce umapressãoparabaixarastaxassalariais:

Nos períodos de estagnação e prosperidade média, o exército industrial de reserva pressiona o exército ativo de trabalhadores; nosperíodosdesuperproduçãoeparoxismo,elebarrasuaspretensões.Asuperpopulaçãorelativaé,assim,opanodefundosobreoqualsemovealeidaofertaedademandadetrabalho.Elareduzocampodeaçãodessaleialimitesabsolutamentecondizentescomaavidezdeexploraçãoeamaniadedominaçãoprópriasdocapital.[6]

Nósfinalmentedescobrimosaquiosegredodessesmecanismosquemantêmaparceladossaláriosnoprodutototalnaquelaproporção“absolutamenteconveniente”àacumulaçãodocapital(vercapítulo2).Amudançatecnológica,amplamentesobocontroledoscapitalistas,podeserutilizadaparagarantirqueataxa de exploração sejamantida próxima de uma condição de equilíbrio definida pelas exigências daacumulação.Nãohánadaquegarantaqueesseequilíbrioserárealmenteatingido.Asoscilaçõesclínicasnasparcelasrelativasdesalárioselucrosvãorefletira“aformaçãoconstante,sobreamaioroumenorabsorçãoesobreareconstituiçãodoexércitoindustrialdereservaousuperpopulação”[7].

As taxas salariais podem também ser sistematicamentemantidas comprimidas abaixo do valor daforçadetrabalhoemdeterminadascondições.Vimosnocapítulo4queamudançatecnológicatemsuasorigens na competição e também na necessidade de lidar com a escassez demão de obra ou com aexacerbaçãoda lutade classes.Oaumentodoexército industrial de reserva só enfraqueceo estímuloparaamudançatecnológicaquandoastaxassalariaiscaemtantoqueocapitalfixocustamaisqueamãodeobraaqueele édestinadoa suplantar. Inversamente, as taxas salariais sóparamdecairquandooestímulopara amudança tecnológica fica enfraquecido.Nãohánadaquegarantaqueo limite inferiorestabelecidoparaastaxassalariaisporconsideraçõesdessetipocorresponderáaosaláriodeequilíbriorequeridopara a acumulação equilibrada.Assim, ficamontadoo cenáriopara a derivaçãodo famosoteoremadeMarxrelacionadoaoinevitáveleprogressivoempobrecimentodoproletariado.

Oteoremaéderivadomuitonaturalmentedassuposiçõesincorporadasnessemodelodeacumulação.

Page 166: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Marxmostraqueaacumulaçãoeamudançatecnológicanocapitalismosignificamumaumentononúmeroabsoluto de desempregados – uma tendência que, nas suposições domodelo, só poderia ser revertidabrevemente emperíodosde extraordinária expansão.Odesemprego eo emprego sãoproduzidospelocapital. Consequentemente, a classe trabalhadora fica diante de uma crise endêmica com respeito àsegurançanoemprego,taxassalariais,condiçõesdetrabalhoetc.

Asforçasquecontribuemparaum“aumentodoproletariado”sãotãopoderosasquepodem,amenosquecontidas,reduzirostrabalhadoresa“merascondiçõesanimaisdeexistência”.AúnicarestriçãoqueexistenasuposiçãodomodelodeMarxéaquelaassociadaaoincentivodiminuídoparainovarquandoastaxassalariaiscaemaníveisaindamaisbaixos.Comoessarestriçãoérelativamentefraca,aleigeraldaacumulação realmente implica o aumento da proletarização da população e o aumento doempobrecimento. Issoé frequentementeencaradocomoumadas“previsões”equivocadasdeMarxemrelação ao futuro da classe trabalhadora no capitalismo. Embora Marx não fosse de modo algumcontrário a explorar tal proposição politicamente, esta não é na verdade uma previsão, mas umaproposiçãointeiramentecontingentesobreassuposiçõesdoprimeiromodelodeacumulação.Ofatodeexistiremoutras influências contrárias em ação vai se tornar aparente quando examinarmos o segundomodelodeacumulaçãomedianteareproduçãoexpandida.

HátrêsconclusõesfundamentaisaseremextraídasdoprimeiromodelodeacumulaçãodeMarx.Emprimeiro lugar, a acumulação do capital está estruturalmente ligada à produção do desemprego e, porisso, gera uma crise endêmica de intensidade flutuante para grande parte da classe trabalhadora. Emsegundo lugar, as forças que regulam as taxas salariais tendem a conservá-las abaixo desse nívelrequerido para manter o crescimento equilibrado. Essa segunda conclusão é vital para o argumentoapresentado nos segundo e terceiromodelos de acumulação. Em terceiro lugar, o controle capitalistasobreaofertadeforçadetrabalho(medianteaproduçãodeumexércitoindustrialdereserva)destróiaforçade trabalhodentrodoprocessodotrabalhoe inclinaoequilíbrioda lutadeclassesnaproduçãoparaavantagemdocapital(vercapítulo4).

Toda a estrutura teórica queMarx constrói para derivar a lei geral da acumulação capitalista sebaseiaemalgumassuposiçõesfortesebastanterestritivas.Emboraalgumasdestassejamabandonadasnocursodaanálisesubsequente,outraspermanecerãoincontestadas.Éaestasúltimassuposiçõesquevamosnosreferiragora.

Considere,porexemplo,adefiniçãodovalordaforçadetrabalho.Amudançatecnológica,quereduzovalordasnecessidades,podereduzirovalordaforçadetrabalhoe,porconseguinte,gastaremcapitalvariável semdemaneira alguma diminuir o número de trabalhadores empregados ou o seu padrão devida. Esta é, como já vimos, uma fonte de valor excedente relativo para o capitalista. Mas tambémsignificaqueaparceladossaláriosnoprodutosocialtotalpodeestardiminuindo,enquantoopadrãodevidarealdo trabalhador,medidoemtermosdevalordeuso,permanececonstanteouatéaumenta(vercapítulo2).Marxnãoincluiessapossibilidadeemseumodeloepresume,naverdade,queovalordasmercadoriasrequeridasparareproduziramãodeobraemumdeterminadopadrãodevida(medidoemtermosdevalordeuso)permanececonstanteaolongodotempo.Oempobrecimentodostrabalhadoreséjulgadoemrelaçãoaessepadrão.Sobessassuposições,qualquerquedanaparceladecapitalvariávelno produto social total pode ser automaticamente representada como o empobrecimento absoluto doproletariado.

Asuposiçãodequeafamíliadotrabalhadornãotemcapacidadeparaproduzirparasimesmaedequeovalordaforçadetrabalhoéinteiramentedefinidopelatrocademercadoriasnomercadotambém

Page 167: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

criaproblemas,deinteressetantoteóricoquantohistórico.Namedidaemqueostrabalhadoresconsigamsesustentar,ovalordaforçadetrabalhodiminuieataxadeacumulaçãoaumenta.Dessepontodevista,édointeressedoscapitalistaspressionaromáximopossíveloscustosdareproduçãodaforçadetrabalhodevoltaàestruturadavidafamiliar(eporissogeralmentesobreosombrosdasmulheres)[8].Issoentãosignificaqueostrabalhadoresprecisamterpelomenosumacessolimitadoaosseusprópriosmeiosdeprodução. Mas se os trabalhadores puderem cuidar em parte das suas próprias necessidades dereprodução, então eles terão menos necessidade de participar como trabalhadores assalariados ecertamenteserãomaisresilientesquandosetratardegrevesedeoutrasformasdelutatrabalhista.Dessepontodevista,édointeressedaclassecapitalistaaumentaradependênciadostrabalhadoresdatrocademercadorias,masissosignificapermitirumpadrãodevidaascendentedotrabalhadoreumaumentonovalordaforçadetrabalho.

Oscapitalistasindividuais,nalivrebuscadeseusinteressesmateriaisimediatoseindividualizados,semdúvidafarãotudooquepuderemparamanterossaláriosbaixos.Porisso,a“tendênciaconstantedocapitaléobrigarocustodamãodeobraavoltara[…]zero”.Quantomaisbem-sucedidosforemnesseempreendimento, menos controle poderão exercer sobre a força de trabalho: “se os trabalhadorespudessemviverdear,tampoucoseriapossívelcomprá-losporpreçoalgum”[9].Porisso,háumconflitopotencial entre a necessidade de economizar nos gastos de capital variável para aumentar a taxa deexploração, e a necessidade de controlar a força de trabalho por fortes vínculos de dependênciaeconômica. Somente quando os trabalhadores são totalmente dependentes dos capitalistas para amanutençãodeumpadrãodevidarazoávelocapitalistapoderáreivindicaropoderparadominaraforçadetrabalhonolocaldetrabalho.

Essa contradição tem desempenhado um papel importante na história do capitalismo e,aparentemente, tem tidomuito aver comasmudançasnospadrõesdevida,mudançasnoprocessodetrabalhofamiliar,mudançasnopapeldasmulheresnafamília,naestruturadavidafamiliar,nosestadosde consciência de classe, nas formas de luta de classes etc.Marx exclui essas considerações do seumodelodeacumulação.Dificilmentepodemosculpá-loporisso,poissãoquestõesdifíceisecomplexas.Entretanto,umescrutíniocríticodassuposiçõesemseumodelonospermitegeraralgumasespeculaçõesinteressantesnasforçascontraditóriasquedominamahistóriacapitalista.

Asmudançasevidentesnopadrãodevidamaterialdotrabalhadornospaísescapitalistasavançadosrefletemumaextensãodocontroledocapitalsobreotrabalhomedianteamaiordependênciamaterialqueumpadrão de vida ascendente induz?Essa tendência para o controle também significa uma tendênciasecular para reduzir o grau em que os trabalhadores e suas famílias têm de arcar com seus próprioscustosdereprodução?Essessãoostiposdeperguntasquepodemserformuladas[10].

Mas,mais importantequetudo, issonoslevaaconsideraromuitosurpreendentefracassodeMarxemrealizarqualquerestudosistemáticodosprocessosquegovernamaproduçãoeareproduçãodaforçade trabalho. A força de trabalho é, afinal, a única mercadoria fundamental para todo o sistema deprodução capitalista. É também a únicamercadoria que não é produzida diretamente nas relações deproduçãocapitalistas.Éproduzidaporumprocessosocialemqueafamíliadaclassetrabalhadorateve,e ainda tem, um papel fundamental a desempenhar no contexto das instituições sociais e tradiçõesculturaisquepodemser influenciadaspelaburguesiaecompensadaspor todo tipode intervençõesdoEstado,masque,naanálisefinal,estãosempredentrododomíniodavidadaclassetrabalhadora.Comoa quantidade e qualidade da oferta de trabalho é uma característica importante para a lei geral daacumulaçãocapitalista, podemosesperarqueMarx faça alguma referência a ela, nemque seja apenas

Page 168: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

paraprotelaradianteconsideraçõesmaisdetalhadasaseurespeito.Entretanto,umpapelmuitopequenoédadoaoproblemae,certamente,elenãoseráretomadoadiante.Essaomissãotalvezsejaumadasmaissériasde todasas lacunasna teoriadeMarx,eumaqueestásecomprovandoextremamentedifícildefechar,aindaqueapenasporqueasrelaçõesentreaacumulaçãoeosprocessossociaisdereproduçãodaforçadetrabalhoestãoocultasemtallabirintodecomplexidadequeparecemdesafiaraanálise[11].

PoderíamosdefenderMarxdessacríticaapontandoqueopropósitodaleigeraldaacumulaçãoeraestabelecerqueocapitalproduzidoemumexércitoindustrialdereserva,nãoimportaqualaofertademão de obra, e que poderíamos explicar a pobreza e o desemprego sem referência aos processos dereprodução social que eram frequentemente invocados, embora mal-entendidos, pelos economistaspolíticos clássicos.Os ataques deMarx à teoria da populaçãomalthusiana – uma teoria queRicardoaceitavacomalegriaeacriticamente–eramexplícitoseviolentos.MasMarxsequeixavaamargamentedavisãomalthusianadeumaleisupostamente“natural”dapopulação.Marxargumentavaquenãoexisteessa“leiuniversaldapopulação”,masque“cadamododeproduçãoparticularnahistóriatemsuasleisdepopulaçãoparticulares,historicamenteválidas”[12].Oquea leigeraldaacumulaçãofaz,commuitosucesso,édemonstrarqueaproduçãodeumapopulaçãoexcedenterelativaporpartedocapitalsubjaz“àpretensa‘leinaturaldapopulação’”queMalthusformulouequeRicardoaceitou.

Entretanto, surgem problemas assim que procuramos empurrar a lei geral da acumulação para umterritóriomaisrealista.Marxaconselhaque,parafazerdessaumateoriadeacumulaçãoecrescimentodapopulaçãoelateriadeserconstruídacomoumtodointegrado.Aacumulação,declaraele,envolvecomo“condição fundamental omáximo crescimento da população – das capacidades de trabalho vivas”[13].Além disso, “para a acumulação ser um processo contínuo e estável, esse crescimento absoluto dapopulação – embora possa ser decrescente em relação ao capital empregado – é uma condiçãonecessária.Umapopulaçãocrescentepareceserabasedaacumulaçãocomoumprocessocontínuo”[14].Oaumentodapopulação,comodizSweezy,pareceserumaimportantesuposiçãoocultanaleigeraldaacumulação capitalista. Ou seja, parece que os processos que Marx invoca não poderiam operarefetivamenteemcondiçõesdedeclínioabsolutodapopulação,equequantomaisrápidaforavelocidadeda expansão na oferta de mão de obra por meio do crescimento populacional, menos marcadas setornariamasflutuaçõescíclicas[15].

Mas somos providos com poucas ideias sobre os mecanismos que vinculam o crescimento dapopulação com a acumulação. Quando se trata das características que promovem uma alta taxa decrescimentodapopulação(idadeprecocedocasamento,taxasdenatalidadecrescentesetc.),MarxnãointerpretamuitodiferentementedeMalthus.Oúnicoacréscimoqueelefaz,eestedegrandeimportância,équeafamíliatrabalhadora,comoacessonegadoaosmeiosdeprodução,lutariatantoemperíodosdeprosperidade quanto em períodos de depressão para acumular a única forma de “propriedade” quepossuía:aprópriaforçadetrabalho[16].Masasleisdocrescimentodapopulaçãonocapitalismo–seéqueexistemtaisleis–aindatêmdeserespecificadas.EMarxpareceestaratoladonomesmopântanodaignorânciaqueseuscontemporâneoscomrespeitoaosprocessosdereproduçãodaforçadetrabalho.

A força de trabalho pode também ser expandida pelo aumento da proporção da participação dapopulação total como trabalhadores assalariados. Esse exército industrial de reserva “latente”, comoMarxochama,podeexistirdeváriasformas:mulheresecriançasnafamíliaaindanãoempregadascomotrabalhadores assalariados, proprietários camponeses e trabalhadores especializados independentes,artesãos de todos os tipos e uma série de outros que podem ganhar a vida sem vender sua força detrabalhocomoumamercadoria.Marxdeclaraqueaexpansãodomododeproduçãocapitalistatendea

Page 169: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

serdestrutivadetodasessasformassociais–muitasdasquaissãorelíquiasdeumsistemaeconômicopré-capitalista–eaaumentaraproporçãodapopulaçãoquetemdevendersuaforçadetrabalhoparasobreviver. Na própria época deMarx essa proporção era relativamente pequena,mesmo nos paísescapitalistasavançados,comoaGrã-Bretanha.Somenteemépocasmuitorecentesasrelaçõessociaisdocapitalismo penetraram lentamente em todas as esferas da vida para tornar o trabalho assalariado acondiçãogeraldaexistência.Nesseaspecto,nosencontramosnosmovendoprogressivamentenadireçãode uma perfeição dessas condições que permitem que a lei do valor opere de maneira irrestrita.Entretanto,acriaçãodoproletariadomodernonãofoiumaquestãofácil,e,desdeosprimeirosmomentosdaacumulaçãoprimitivaatéopresente,envolveuaexpropriaçãoviolenta,esquemasdetodosostiposenãopoucastrapaças.Porisso,amobilizaçãodeumexércitoindustrialdereservanãodeveserencaradacomoumatarefasimplesoufacilmenterealizável[17].

A expansão da oferta de trabalho por esses meios atinge seus limites quando toda a populaçãofisicamenteaptaparticipada forçade trabalho.Emboraesse limiteestejapróximode ser atingidoemalgumaseconomiasindustriaisavançadas,hámaciçasreservasdeforçadetrabalhoemoutraspartesdomundo. A história do capitalismo está repleta de exemplos de economias pré-capitalistas que foramdestruídas e de suas populações proletarizadas pelas forças domercado ou por violência física. IssoaconteceucomosirlandesesemmeadosdoséculoXIX(esteeraumdosexemplosfavoritosdeMarx),maspodemosverosmesmosprocessosemaçãohoje,quandomexicanoseporto-riquenhossãoinseridosnaforçadetrabalhonosEstadosUnidos;quandoosalgerianossetornampartedoproletariadofrancês;quandoiugoslavos,gregoseturcostornam-separtedaforçadetrabalhosueca,eassimpordiante.Tudoissonos leva ao limiar deoutroproblemaquediz respeito à lei geral da acumulação capitalista– asmobilidadesrelativasdocapitaledotrabalhonocenáriomundial(vercapítulo12).

Amobilizaçãodeumexércitoindustrialdereserva–particularmenteaporção“latente”–dependedamobilidadesocialegeográficadotrabalhoedocapital.Comrespeitoaotrabalho,porexemplo,“quantomais rapidamente a força de trabalhopode ser transferida de uma esfera para outra e de um local deproduçãoparaoutro”,maisrapidamentea taxadelucropodeser igualadaeapaixãopelaacumulaçãosatisfeita[18].Umaforçade trabalhoextremamentemóvel torna-seumanecessidadeparaocapitalismo.Mas aqui também podemos localizar uma contradição. O exército industrial de reserva só podedesempenhar o seu papel nas taxas salariais deprimidas se permanecer atuando como uma ameaçapermanente àqueles já empregados. A força de trabalho não pode ser tão móvel a ponto de escaparinteiramentedocontroledocapital.Nesseaspecto,amobilidadesuperiordocapitalnocenáriomundial,impedindoaspossibilidadesdefuganomundotodo,eatraindocadavezmaisdapopulaçãodomundopararelaçõesdetrocademercadorias,oumesmopararelaçõesdeproduçãocapitalistas,torna-sevitalparaasustentaçãodaacumulaçãopelaacumulação.

Os aspectos sociológicos, demográficos e geográficos da oferta de trabalho são importantes paraqualquerteoriageraldaacumulação.Maselesnãopodemseraceitavelmentecolocadosdeladoquandose considera o principal propósito deMarx ao construir esse primeiromodelode acumulação.OqueMarx demonstra de maneira convincente, rigorosa e brilhante é que se a miséria, a pobreza e odesempregosãoencontradosnocapitalismo,elestêmdeserinterpretadoscomooprodutodessemododeprodução e não atribuídos à “natureza”. Uma teoria mais geral da acumulação requer, no entanto, oabandonodassuposiçõesmaisrestritivas,eissoMarxpassaafazeremseusegundoeterceiromodelos.

Page 170: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

II.AACUMULAÇÃOMEDIANTEAREPRODUÇÃOEXPANDIDANo fim do segundo livro deO capital, Marx tira a acumulação do reino da produção e molda suascaracterísticas no reino da troca.Osmodelos da “reprodução expandida” exploram as condições quepermitiriamqueaacumulaçãoprosseguissedemaneiraequilibradamedianteas trocasdemercadoriasentrediferentesseçõesou“setores”deumaeconomia.Os“esquemasdereprodução”queMarxconstróicontinuaram a fascinar desde então tanto escritoresmarxistas quanto nãomarxistas, e exerceram umainfluência profunda, embora com frequência subterrânea, sobre todos os aspectos do pensamentoeconômico. Em consequência disso, os esquemas têm sido dissecados e analisados em detalhes, e osinvestigadores têm empregado variantes deles e os utilizado para lançar luz nas teorias marxiana eburguesa.Comohámuitosrelatosdosesquemaspublicadosemoutroslocais,vousimplesmenteresumirsuasprincipaiscaracterísticaseapresentarumainterpretaçãoeavaliaçãodelas[19].

Marxapelaparaousodecritériosdevalorparadesagregarumaeconomiaem“setores”.Osetor1produzcapitalconstantefixoecirculante–osvaloresdeusodestinadosaoconsumoprodutivo.Osetor2produzosvaloresdeusoparaoconsumoindividual–asnecessidadesparaostrabalhadoreseosluxospara a burguesia. Um modelo de acumulação com dois setores é construído para mostrar comoproporcionalidadesdefinidasetaxasdecrescimentorelativotêmdesermantidasnaproduçãodosmeiosdeprodução(setor1)edosbensdeconsumo(setor2)paraquesejaalcançadaumaacumulaçãodelongoprazoequilibrada.Entretanto,emváriospontosdo textoMarxsugerequeoutrasdesagregaçõesdevemserfeitas–distinguindoentreocapitalfixoeocirculantenosetor1,eentreasnecessidadeseosluxosnosetor2,porexemplo.

As quantidades físicas dos insumos e produtos nos dois setores têm de estar exatamente nasproporçõescertasparaqueaacumulaçãoocorratranquilamente.Osetor1precisaproduzirexatamenteaquantidade exata de meios de produção para satisfazer as necessidades de todos os produtores demáquinas,matérias-primasetc.Osetor2temdeproduzirexatamenteaquantidadedebensdeconsumocapaz de sustentar a força de trabalho em seu padrão de vida comum e satisfazer os desejos enecessidades da burguesia.A formamaterial e a quantidade demercadorias têmum importante papelpotencialadesempenharnessesmodelosdeacumulação[20].

Astrocasfísicasentreossetoressãoefetivadaspormeiodomercadoe,apartirdaí,essastrocasdedinheiro entre os setores devem também estar em equilíbrio. Para estudar tal processo sem muitascomplicações,Marxassumequetodasasmercadoriassejamtrocadasemseusvalores.Issosignificaqueoefeitodacompetiçãocapitalistaéignorado,assimcomoofatodequeasmercadoriassãotrocadasaospreços de produção, e não de valores.Marx tambémabstrai inteiramente as flutuações nos preços domercado monetário, nos fluxos reais do dinheiro, no sistema de crédito etc. Os esquemas têm porobjetivo lidarapenascomosvaloresdeusoecomosvalores.Mas,naprática,aanáliseéconduzidaquaseinteiramenteemtermosdevalor,commuitopoucareferênciaàsmagnitudesmateriaisfísicas.

AanálisedeMarxdo fluxodevaloréemparteverbaleempartenumérica.As ideiaspodemserexpressasdemaneiramuitomaissimplesemtermosalgébricos.Oprodutototaldosetor1,W1,podeserexpressocomoc1+v1+m1e,paraosetor2,c2+v2+m2=W2.Seocorreacumulação,entãoumapartedovalorexcedenteemcadasetoréreinvestidoparaadquirirosmeiosdeproduçãoeaforçadetrabalhoadicionais.Podemosentãofragmentaroscomponentesdovalornooutputtotalparacadasetordaseguintemaneira:

Page 171: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Setor1(meiosdeprodução)c1+v1+m01+Δc1+Δv1=W1Setor2(bensdeconsumo)c2+v2+m02+Δc2+Δv2=W2

Aqui,m0 representa a quantidade de valor excedente que permanece para o consumo depois doreinvestimentoemmeiosdeproduçãoadicional,Δc,ecapitalvariáveladicional,Δv.

Paraessesistemaestaremequilíbrio,aquantidadetotalextraídadosmeiosdeproduçãonosetor1(W1)temdeserexatamenteigualàdemandapormeiosdeproduçãonosdoissetores,1e2(c1+Δc1+c2+Δc2).Presumindoqueostrabalhadoreseoscapitalistasgastamtodasassuasreceitasembensdeconsumo,entãoW2=v1+Δv1+m02+v2+Δv2+m01.Éentãofácilmostrarqueaproporçãodetrocarequeridaentreossetoresparamanterocrescimentoequilibradoé:

c2+Δc2=v1+Δv1+m01

Emoutraspalavras,issosimplesmentesignificaqueademandatotalpormeiosdeproduçãonosetor2 deve ser exatamente igual à demanda total para bens de consumo emanada do setor 1. Se essaproporcionalidadenãoformantida,entãoaacumulaçãoequilibradanãopoderásersustentadaeocorreráuma crise de desproporcionalidade (super ou subprodução de meios de produção ou de bens deconsumo).

O exemplo numérico de Marx tem algumas propriedades interessantes e, por isso, merece serreconstruído.Osprodutosdosdoissetoressão:

Setor14000c+1000v+1000m=6000=W1Setor21500c+750v+750m=3000=W2

Observequea taxadeexploração,m/v, éamesmanosdois setores,mas tantoascomposiçõesdevalordocapital,c/v,quantoastaxasdelucro,s/(c+v),diferementreossetores.Nãoháequalizaçãonataxadelucro–issoacompanhaasimplificaçãodeMarxdequeasmercadoriassãocomercializadasemseusvalores,emvezdedeacordocomseuspreçosdeprodução.

Asproporçõesdereinvestimentoquevãomanteressesistemaemequilíbriosão:

Setor14000c+400Δc+1000v+100Δv+500m01–6000=W1Setor21500c+100Δc+750v+50Δv+600m02=3000=W2

AmaneiracomoMarxestabeleceissopresumequeapenasoscapitalistaspoupamequereinvestemapenasemseuprópriosetor–umasuposiçãoumtantoestranha,dadaacaracterizaçãohabitualdocapitalcomoextremamentemóvelentreossetores.Observetambémqueoreinvestimentoocorredetalmaneiraque as composições de valor do capital permanecem intactas. Nenhuma mudança tecnológica estáincorporadanomodelo.Essatambéméumasuposiçãoestranha,quesegueinteiramenteaocontráriodaênfasedadaàmudançatecnológicanoprimeiromodelodeacumulação.Ataxadereinvestimentotambém

Page 172: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

difereentreosdoissetores–oscapitalistasdosetor1convertemametadedoseuvalorexcedenteemmeiosdeproduçãoadicionaisecapitalvariável,enquantooscapitalistasnosetor2convertemapenasumquintodovalorexcedentequeelesproduzem.AlgoestranhoocorrecomessafunçãodereinvestimentoquandopegamososnúmerosdeMarxecontinuamosaacumulaçãodurantealgunsanos.Paramanterosistemaemequilíbrio,oscapitalistasdosetor2têmdeaumentarsuataxadereinvestimentonosegundoanoeacadaanosubsequenteem20a30%.

EmboraessaspeculiaridadespossamseratribuídasemparteàescolhadenúmerosdeMarx,servemtambém para concentrar a atenção nas taxas de reinvestimento relativas nos dois setores comofundamentais para preservar a estabilidade do sistema. Designando estas taxas como a1 e a2,respectivamente,eascomposiçõesdocapitalnosdoissetoresdamesmaformacomok1ek2,pode-semostrarqueumacondiçãoparaatrocaequilibradanareproduçãoexpandidaé:

quedizqueastaxasdereinvestimentorelativasdevemrefletirdiferençasnascomposiçõesdevalornosdois setores[21]. Em consequência disso, as taxas de expansão relativas no emprego nos dois setoresvariamsegundoastaxasdereinvestimentoeascomposiçõesdevalor.

O modelo de acumulação de dois setores que Marx constrói parece mostrar que, nas condiçõescertas,incluindoasestratégiascorretasdereinvestimentoporpartedoscapitalistas,aacumulaçãopodecontinuar para sempre relativamente isenta de problemas. Um modelo descrevendo a reproduçãoperpétua do capitalismo tem alguns atrativos para os economistas burgueses, mas apresenta sériosdilemasparaosmarxistas.Seocapitalismopodecontinuaraacumulareternamente,entãoemquebasesosmarxistaspreveemofiminevitáveldocapitalismooumesmoainevitabilidadedaformaçãodecrise?Rosa Luxemburgo, por exemplo, estava tão treinada nessas questões que todo o seu tratado sobreAacumulação do capital é dedicado a uma vigorosa denúncia dos erros e omissões deMarx em suaformulação dos esquemas de reprodução. Paramelhor entender esse debate precisamos considerar assuposiçõesincorporadasnosesquemaseaintençãodeMarxaoconstruí-las.

OpropósitodeMarxnãoédifícildeadivinhar.ElequeriamelhoraronotávelQuadroeconômicodeQuesnay, em que “os inúmeros atos individuais da circulação estão imediatamente reunidos em seucaracterísticomovimentodamassasocial–acirculaçãoentregrandesclasseseconômicasdasociedadefuncionalmente determinadas”[22]. Ele quer, em suma, estudar o “processo de circulação” do “capitalsocialagregado”emtermosdasrelaçõesdeclassedocapitalismo.

Mas ele também quer se livrar das contradições incorporadas nesse processo. Então cria umdispositivo que lhe permite identificar as taxas de crescimento simétricas nos diferentes setores, nasquantidadesdeprodução,nastrocasdevalorenoempregoque,senãoforemsatisfeitas,resultarãoemcrises.A razão para se ter tanto trabalho em definir o equilíbrio é, como sempre, sermais capaz deentenderporqueassaídasdessacondiçãosãoinevitáveisnasrelaçõessociaisdocapitalismo.

Ocrescimentoharmoniosoequilibradoqueosesquemasdereproduçãodescrevemtambémtemdeserjulgadoemcontraposiçãoàssuposiçõesrestritivasnelesincorporados.Devemosobservar,antesdetudo,queamaneiradeexposiçãodeMarxcontrariaoconceitodocapitalcomoumprocessocontínuoe,porisso,divergedalinhageraldeataqueassumidaemtodoosegundolivrodeOcapital.Osesquemasde

Page 173: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

reproduçãoavaliamocapitalcomoovalordeumestoquedeinsumosdisponívelnoiníciodeumperíododeprodução(ocapitalinicialconstanteevariável),aumentadopelovalorexcedenteredistribuídoparaadquirir um capital constante e variável adicional no fim de um período de produção.Os equilíbriosnecessáriossãodefinidosporumprocedimentodecontabilidadeno“inícioenofimdoano”queignoratudoqueocorreno intervaloentre eles.Acontabilidade tambémpresumeque todoocapital existenaformademercadoriasquesãototalmenteusadasduranteoperíododeprodução–nenhumcapitalexistecomo dinheiro, como estoques ou como capital fixo conduzido de um período de produção para oseguinte.Moldandoaacumulaçãoemtermosdeestoqueextremamentesimplificado,Marxganhamuitoem tratamento analítico.Masopreçoque elepaga éuma saídadaprópria concepçãode fluxo,muitobásica, mas mais difícil, que ele procura não discutir em profundidade nos capítulos precedentes,particularmentenaquelesrelacionadosàcirculaçãodocapitalvariáveleaomais-valor.

Em segundo lugar, a ênfase no valor muda para a exclusão de tudo o mais inconsistente com opropósito estabelecido por Marx, e viola a sua regra de nunca tratar isoladamente qualquer um dotriunviratodevalor,valordeusoevalordetroca.Ocrescimentoequilibradonaverdaderequereriaqueovalordeusoeastrocasdedinheirotambémseequilibrassem.EmboraMarxpudesseserperdoadoporabandonar uma destas dimensões de análise, ele não pode ser desculpado por abandonar duas,particularmenteporqueasuaintençãodeclaradaeraconsiderartantoosaspectosdovalordeusoquantodovaloremseumodelo.Seeletivessepersistidonessaintenção,teriaapresentadoalgumasideiasmaisúteis.

Parasaber,porexemplo, seuma trocaequilibradadevalorescoincidecoma trocaequilibradadevaloresdeuso,primeiroprecisaríamosdasinformaçõesnecessáriassobreoscoeficientestecnológicosquerelacionamosinsumosfísicosaosprodutosefixamosvaloresrelativosdasmercadoriasqueestãosendo trocadas. Issonosconduzdiretamenteaoconceitomuito importantedeuma tecnologiaviável –definida como aquela tecnologia da produção que consegue equilibrar as trocas físicas e de valorsimultaneamenteentreossetores.Issoevidentementecolocaseverasrestriçõesàtecnologiaquepodeseradotada.

Marxpareceestarconscientedealgumasdasdificuldades,porquemantématecnologiaconstanteemseus modelos de reprodução expandida. Esse tratamento contrasta muito com a ênfase colocada namudança tecnológica no modelo de acumulação do primeiro livro. O contraste é tão vivo queimediatamente sugere uma hipótese muito importante: que há um conflito potencial sério entre a“tecnologiaviável”definidadopontodevistadatrocaequilibradaeamudançatecnológicarequeridapara manter a acumulação durante a produção. Esse confronto de requisitos, se adequadamenteidentificado e entendido, nos proporciona um instrumento para dissecar as crises no capitalismo. SeMarxtivesseapresentadotalargumentocomfirmeza,osproblemasqueincomodamomodelosintéticodeacumulaçãono terceiro livrodeOcapital teriamsidomais facilmente resolvidos.Esse“confrontoderequisitos tecnológicos”é,por isso,umtemaaoqualretornaremosemdetalhesnapróximaseçãoenocapítulosubsequente.

HáváriasoutrassuposiçõesrestritivasincorporadasnomodeloderepresentaçãoexpandidadeMarxque requerem um exame crítico. Há supostamente apenas duas classes na sociedade – capitalistas etrabalhadores–eoutrosaspectosdadistribuiçãosão ignorados.Odinheiro funcionaapenascomoummeiodepagamento;nãoháaçambarcamento;omais-valorproduzidoemumsetornãopodeserinvestidoemoutro;nãoháequalizaçãona taxade lucro;háuma infinitaofertade forçade trabalhoetc.Comastécnicasmatemáticasmodernas épossível exploraroque acontecequandoalgumasdessas suposições

Page 174: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

sãoabandonadase,emalgunscasos,chegou-seavaliososinsights.AobradeMorishimaaolongodessalinhaéparticularmenteinteressanteporqueajudaaesclarecer

algunsdostemasbásicoscomosquaisMarxestavapreocupado.Morishimaconsideraoqueaconteceráquandoomais-valorcriadoemumsetorpuderserreinvestidoemoutro.EleconcluiqueocrescimentoequilibradoqueosexemplosnuméricosdeMarxdescrevementãosetornariaminstáveiscom“oscilaçõesexplosivas […] em tornodo caminhodo crescimento equilibrado, se o setor 2, queproduz salários eartigosde luxo, formais altonacomposiçãodevalordocapital (oumais capital intensivo)doqueosetor 1”. Temos “explosão sem flutuações” ou “divergências monótonas de um caminho para ocrescimentoequilibrado”quandoacomposiçãodevalordocapitalémaisaltonosetor1doquenosetor2. Por isso, é precisomuito pouco para gerar fortes flutuações cíclicas ou instabilidade crônica dosesquemasdereprodução–eisso,presumivelmente,eraoqueMarxestavaquerendoanalisar.Entretanto,ocasoqueMorishimamoldaédeparticularinteresseporquesugerequeaequalizaçãodataxadelucronacompetiçãoromperáoequilíbriorequeridoparaocrescimentoequilibrado.Issoemsiéumaperfeitailustração do tema marxiano fundamental, que o crescimento equilibrado é impossível nas relaçõessociaisdocapitalismo[23].

OmodelodeMorishima tambémincorporasuposiçõesque têmsidodevidamentecriticadas.Desaiaponta que, variando suas taxas de reinvestimento em vez de reinvestir em uma taxa constante comoMorishimaassume,oscapitalistaspodemsercapazesdeamorteceratendênciaparaainstabilidadeemlongoprazoeasoscilaçõescíclicasexplosivas.Mas,dessamaneira,podemtambémgerarmovimentoscíclicosnataxadedesemprego,oqueapontaparaoutradificuldade:nãohánenhumagarantiadequea“tecnologiaviável”ea“taxadereinvestimentoapropriada”aumentarãoademandapormãodeobradeuma forma consistente com sua oferta. Isso nos traz de volta à contradição entre as condiçõesestabelecidasparaaacumulaçãosustentadanoprimeiroenosegundomodelosdeacumulação[24].

Revela-seentãoquetambémnãofizemosjustiçaàcomplexidadedoprópriopensamentodeMarx.Ocapítulolongo,tortuosoeelaborado,masnãoobstanteprofundamenteimaginativoqueEngelsreconstruiudasanotaçõesdeMarxsobreareproduçãosimplescontémumagrandequantidadedemateriaisquesãodifíceisdeseremintegradosnomodelosimplificadodareproduçãoexpandida.Etambémnãodevemosignorarosinteressantescapítulossobreacirculaçãodocapitalvariáveleomais-valorqueoprecedem.Marxestavatotalmenteconscientedasdificuldadesexistentesnalinhadeanálisequeassumira.Emborapossaparecerumpoucoodiosopegareescolherquestõesdessagrandequantidadedemateriaiscomosendodeparticularimportância,hátrêsproblemasquesedestacam.

Emprimeirolugar,devemosnotarqueareproduçãodaforçadetrabalhoéintegradaàcirculaçãodocapital.Naverdade,otrabalhadorsetornaum“apêndicedocapital”,tantonaesferadatrocaquantonaesfera da produção. EmboraMarx não preste grande atenção aos detalhes, ele vê que a “acumulaçãoequilibrada”requerqueostrabalhadoresusemocapitalvariávelquerecebemparacomprarmercadoriasdosprodutoresnosetor2.Ademandaefetivadaclasse trabalhadora–quedependeda taxasalarial–torna-se um fator que pode contribuir para, ou depreciar, o crescimento equilibrado. Os processosdescritosnoprimeirolivrodeOcapitalexplicamporqueossaláriosnãopodemaumentarmuitoacimadealgumaproporçãodeequilíbriodoprodutonacionale,alémdisso,sugeremumatendênciaprevalenteparadeprimirossaláriosmuitoabaixodesseequilíbrio.Nosegundolivrovemosporqueossaláriosnãopodem cairmuito abaixo desse nível de equilíbrio sem precipitar uma crise na circulação do capitaldentro e entre os setores: mudanças rápidas na parcela de trabalho no produto total vão romper aacumulaçãoequilibradamedianteatroca.

Page 175: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Asconsequênciassociaisdetransformaçãodaclassetrabalhadoraemummeroapêndicedocapital–como“capitalvariável”–no reinoda troca são inúmeras.Umavezqueoconsumodos trabalhadoresintegra-seàcirculaçãodocapital,suaindependênciaeautonomianaesferadasrelaçõesdetrocatornam-se uma potencial ameaça que os capitalistas devem tomarmedidas para diminuir.Os capitalistas queproduzembens salariais são obrigados a produzir os valores de uso específicos que os trabalhadoresqueremenecessitam.Afinal,comopossuidoresdedinheiro,ostrabalhadoressão“livres”paraexercerescolhascomoconsumidores.Mastambémpodemosverqueo“consumoracional”–racional,ouseja,dopontodevistadaacumulaçãodecapital–éumanecessidadeparaatranslaçãotranquiladocapitalvariávelpagocomosaláriosparaasmercadoriasproduzidasnosetor2.Omecanismopeloqualocapitalatinge o local de moradia para garantir o “consumo racional” por parte dos trabalhadores e dareproduçãodasquantidadesequalidadesrequeridasdaforçadetrabalhoécomplexo.OpróprioMarxzombadamaneiracomque“ocapitalistaesuaimprensa[…]filosofam,tagarelamsobreaculturaeseenvolvem em conversa filantrópica” quando “[o capitalista] está insatisfeito com amaneira em que aforça de trabalho gasta o seu dinheiro”[25]. A isso devemos acrescentar os vários instrumentos depersuasãoedominação,incluindoaquelesmobilizadosatravésdaaçãodoEstado(emgeral,éclaro,emnomedobem-estarpúblico),pormeiodosquaisaculturaeoshábitosdeconsumodaclassetrabalhadoraentrammaisoumenosemconformidadecomasexigênciasde“consumoracionalparaaacumulação”.Entretanto,quantomaisnosaventuramosaolongodessecaminho,maissomosobrigadosaentrarnaqueledomínio da reprodução da força de trabalho queMarx geralmente ignora[26].Mas a transformação dotrabalhadorativoemmerocapitalvariávelnospermiteperceber,aindaqueindistintamente,aslinhasdeumaformadiferentedelutadeclassessobreaqualidadedevidaparaotrabalhador.

Emsegundolugar,Marxfazumabreve incursãonaquestãodaformaçãoedousodocapital fixo.Issocrioudemasiadasdificuldadesparasuainclusãonomodelodareproduçãoexpandida,masnolongocapítulosobrea reproduçãosimples,Marx temmuitoadizersobreosproblemasdeseencontrarumataxade investimentoequilibradaparaos itensdecapital fixoqueduramváriosperíodosdeprodução.Eleapontaentãoqueosetor1,queproduzocapitalfixoetambémocapitalconstantecirculante,temdeenfrentar alguns problemas peculiares de determinação do momento certo para o reinvestimento, osfluxosdedinheiroecoisasafins.Elesugerequeoinvestimentonocapitalfixoprovavelmenteengendraráfortesmovimentoscíclicos,quetêmapotencialidadedesedesenvolveremcrises,atémesmonasmaisrigorosassuposiçõesdesimplificação.Porisso,acirculaçãodocapitalentreosdoissetorespelomenoséobrigadaaoscilaremtornodoequilíbrioassimqueocapitalfixoéintroduzidonocenário.Esteéumitem importante de negócio inacabado na teoria de Marx – tão importante que vamos considerá-loseparadamentenocapítulo8.

Em terceiro lugar, embora o dinheiro seja tratado como um meio de pagamento no modelo dereproduçãoexpandida,háinúmerasdeclaraçõesnotextoqueindicamqueaproduçãoeacirculaçãodedinheironãosãotãosimplesquantoparecem.Marxeliminaoproblemacolocadopelocapitalmonetárioe o sistema de crédito, sob a alegação de que eles obscurecem os reais processos de circulação devalores[27].Masele tambémreconhecequeacirculaçãodedinheiroeacriaçãodecrédito têmefeitosreais,emboraaproduçãodeumamercadoriamonetárianãopossasersimplesmenteincorporadacomoum ramo dentro do setor 1 porque tem algumas característicasmuito peculiares (isto é, por exemplo,aquele ramo da produção que lança o dinheiro em circulação em vez de absorvê-lo na aquisição decapitalconstanteevariável).Marxtentalidarcomtudoissoassumindoque“certaofertadedinheiro,aserusadaparaoavançodocapitalouparaogastodareceita[…][existe]juntoaocapitalprodutivonas

Page 176: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mãosdoscapitalistas”[28].Deondevemodinheiro,queméresponsávelporsuaofertaecomoessaoferta“promove”mudançase“facilitaoavançodocapital”sãoquestõesincômodasàsquaisretornaremosnoscapítulos9e10.Tudoissonãointerferenecessariamentecomomodelodareproduçãoexpandida,poisessemodeloassumequeocapitalsóexistecomomercadoria.Massebuscarmosmodelosmaisrealistas,emqueocapitaltambémassumeaformadedinheiroedeaparatoprodutivoconduzidodeumperíododeprodução para o seguinte, então toda a questão do dinheiro e do crédito torna-se fundamental para aanálise.

Esses três tópicos não esgotam de maneira alguma as questões que Marx levanta, mas não asresolvem,naanálisedaacumulaçãomedianteatroca.EuasselecioneiparaseremmencionadasemparteparailustrarariquezadotratamentoimaginativodeMarxdosprocessosdereproduçãodocapital,eemparte para apresentar pontos de grande importância para a argumentação geral que estou procurandoestabelecer. Com respeito à circulação do capital variável, por exemplo, podemos agora ver forçascontrárias àquelas que contribuem para aumentar o empobrecimento do proletariado. No entanto,colocandooprimeiroeosegundomodelosdaacumulaçãoemrelaçãoumaooutro,podemosidentificarasforçasquecontribuemparaumataxasalarialequilibradaouparapartesdossaláriosnoprodutototal.Qualquersaídaradicaldessaparceladeequilíbriodossaláriosemvalorestotaisprovavelmentegeraráuma crise na circulação do capital – crise que pode atingir as esferas da troca e da produção,dependendodeossaláriosestaremmaisacimaoumaisabaixodoseuvalordeequilíbrio.Osprocessossociaisdedeterminaçãosalarial–competiçãoentrecapitalistas,lutadeclassesetc.–garantemqueesseequilíbriosósejaatingidoporacaso.Aproduçãoeoconsumonãopodemsermantidosemequilíbrionasrelaçõesdedistribuiçãoantagonistas(veraseçãoIII,aseguir).

Então, onde isso nos deixa em termos de uma avaliação geral dos esquemas da reproduçãoexpandida? Marx certamente não estava tentando construir uma estrutura com a qual modelar asrealidadesdoprocessodecrescimentocapitalistaouasrealidadesdasestruturasdeinsumoeproduto.Julgadosemcontraposiçãoaessestiposdeprojeto,osesquemasdeproduçãoseriamdemerointeressehistórico – inovadores e imaginativos para a sua época, mas carentes do poder dos modeloscontemporâneos. JulgadosemrelaçãoaopróprioprojetodeMarx,osesquemas têmuma interpretaçãocompletamente diferente. Eles são destinados a nos produzir insights teóricos na lógica interna daacumulaçãocapitalista,insightsgeradospelamoldagemintensivadeum“objetoteórico”definidocomrespeito ao domínio da circulação do capital mediante a troca. Vamos considerar a natureza dessesinsightseamaneiracomqueelespodemserlegitimamenteusados.

NoprimeirolivrodeOcapital,Marxescreve:

Assim, o processo capitalista de produção, considerado em seu conjunto ou como processo de reprodução, produz não apenasmercadorias,nãoapenasmais-valor,masproduzereproduzaprópriarelaçãocapitalista:deumlado,ocapitalista,dooutro,otrabalhadorassalariado.[29]

Nóstambémvimos,noprimeiromodelodeacumulação,como“areproduçãoemescalaampliada,ouseja,aacumulação,reproduzarelaçãocapitalistaemescalaampliada–deumlado,maiscapitalistas,oucapitalistasmaiores;deoutro,maisassalariados”[30].

Osesquemasdereproduçãonospermitemexaminarareproduçãodorelacionamentodeclasseentreocapitaleotrabalhodopontodevistadasrelaçõesdetroca.Ocapitalcircula,porassimdizer,entreamassadetrabalhadores,comoumcapitalvariávele,dessemodo,transformaotrabalhadoremummeroapêndicedacirculaçãodoprópriocapital.Ocapitalficadamesmaformaaprisionadodentrodasregras

Page 177: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

decirculaçãodocapital,porquesóatravésdaobservânciadessasregraségarantidaareproduçãoeaexpansãodocapitalconstanteedaproduçãodemaismais-valor.Estamos,emsuma,buscandoasregrasquegovernamareproduçãoemumaescalaprogressivadetodasasclassessociais.

Notado apenasdopontodevista da troca, esseprocessode reprodução social naverdadepareceestar relativamente isento de problemas. Certamente, há inúmeras peculiaridades e complicações quedevem ser consideradas em qualquer relato completo da acumulação equilibrada. As dificuldadescolocadas pela circulação do capital fixado, o problema da contabilidade para os inventários, osestoques de capital monetário, as operações do sistema de crédito etc., são todas importantes. Masmuitosdessesproblemasoudesaparecemnaanáliseounomáximopartilhamoscilaçõescíclicascomumprocessodereproduçãosecularquefuncionasempercalços.

Umaexploraçãoelaboradadessascaracterísticasadicionaisnãoproduzmaisqueumadepressãoemmodelosquedescrevemareproduçãodasrelaçõesdeclassedocapitalismoemestadosdeperpetuidadeerelativamenteisentosdeproblemas.Consideradosdiretamentepeloquesão,inteiramenteseparadosdoprojetogeraldeMarx,osmodelosmerecemasvigorosasdenúnciasàsquaisLuxemburgoossubmete.ELuxemburgoestánaverdadebastantecorretaemsuaprincipalobjeção:Marxempartealgumaexplicaemseusesquemasdereproduçãodeondeviráademandaefetivaqueserviráparanegociarovalordasmercadoriasnatroca.MasnessepontoMarxestáapenassendohonestoconsigomesmo.Afinal,foisuaintençãoprincipalnoprimeirolivrodeOcapitalquenuncadescobríssemosossegredosa respeitodeonde vemo lucro pela análise do reino da troca.E, no capítulo sobre a circulação domais-valor nosegundolivrodeOcapital,Marxfazexatamenteamesmaobservaçãosobreademandaefetiva.Pormaisfundoqueescavemos,nuncaconseguimosdescobrircomoocapitalénegociadonatrocasemvoltaraoreinodaprodução–aquele“terrenooculto[…]emcujolimiarestáescrito:‘Noadmittanceexceptonbusiness’ [Entradapermitidaapenaspara tratardenegócios]”.É,então,noreinodaproduçãoque“serevelaránãosócomoocapitalproduz,mascomoelemesmo,ocapital,éproduzido”[31].Étambémnessereino da produção que o capital é realizado (ver capítulo 3). Ou seja, afinal, o que significa “aacumulaçãopelaacumulação”comooprimusagensnointeriordomododeproduçãocapitalista.

O que tudo isso faz, é claro, é nos obrigar a considerar o absoluto contraste entre as regras queregulamaacumulaçãonoreinodaproduçãoeaquelasqueregulamoacúmuloequilibradonoreinodatroca.InterpretadonocontextodoprojetogeraldeMarx,osesquemasdareproduçãoproduzemamaiorpartedosinsightsteóricosquenecessitamos.Naverdade,aacumulaçãoequilibradamedianteatrocaépossívelnaperpetuidade,contantoqueamudançatecnológicafiqueconfinadadentrodelimitesrígidos,contantoquehajaumaofertainfinitadeforçadetrabalhoquesempreécomercializadaemseuvalor,econtantoquenãohajacompetiçãoentreoscapitalistasenãohajaequalizaçãonataxadelucro.Umavezque reduzamos essas suposições, as variáveis fundamentais no primeiro modelo da acumulação,problemascrônicosvãosurgirnoprocessodetroca.A“tecnologiaviável”quedeveprevalecernatrocaéeternamenteperturbadapelasrevoluçõesnasforçasprodutivas.

Emtermossimples,ascondiçõesquepermitemqueoequilíbriosejaatingidonoreinodaproduçãocontradizemascondiçõesquepermitemqueoequilíbriosejaalcançadonoreinodatroca.Éimprovávelque o capitalismo possa estar em tal estado que venha a satisfazer simultaneamente esses requisitosconflitantes.Ocenárioestámontadoparaaconstruçãodoterceiromodelodeacumulação–aquelequeexpõeascontradiçõesinternasdocapitalismoedemonstracomoelassãoafontedetodasasformasdecrisecapitalista.

Page 178: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

III.ATAXADECRESCENTEDELUCROESUASINFLUÊNCIASMITIGADORASOs esquemas de reprodução no segundo livro deO capital demonstram que o processo de produçãocapitalistacomoumtodorepresentaumasíntesedaproduçãoedacirculação.Noterceiro livro,Marxprocurairalémda“reflexãogeralrelativaàsuasíntese”para“localizaredescreverasformasconcretasqueseoriginamdosmovimentosdocapitalcomoumtodo”e,assim,“seaproximampassoapassodaformaqueassumemnasuperfíciedasociedade”[32].

Para Marx concluir o seu projeto, ele teria de construir um terceiro modelo de acumulação quesintetizasseasnoçõesdosdoisprimeiros.Omodelodeveriadescrevererefletirascontradiçõesinternasdo capitalismo e descrever também suas manifestações no mundo de aparência. Para Marx issosignificavaexplicaraorigem,asfunçõeseasconsequênciassociaisdascrises.

Infelizmente,Marxnãochegouefetivamenteaconcluiroseuprojeto.Emvezdisso,nosdeixacomumesboçopreliminardecomopoderiaparecero terceiromodelodeacumulação.Elearticulasuas ideiascom“éaleimaisimportantedaeconomiapolíticamoderna”–aqueladeumatendênciaparaumataxadecrescente de lucro.Ou seja, declara ele, “é uma lei que, a despeito de sua simplicidade, até agoranuncafoicompreendidaemuitomenosconscientementeexpressa”[33].Noentanto,aideiadequeastaxasdelucrotenderiamadeclinarnãoeranova.Smith,RicardoeJohnStuartMilldescreveramocapitalismogradualmenteperdendoaforçaecaindoemum“estadoestacionário”,comumataxazerodeacumulação.Sempre ansioso para transformarO capital em uma crítica da economia política, e também em umaexposição das “verdadeiras leis domovimento” do capitalismo,Marx tenta construir ummodelo queexpliqueasupostatendênciaparaumataxadecrescentedelucroeaomesmotempoidentifiqueasorigensdascrisesnocapitalismo.

A economia política clássica (com exceção de Smith) explicava a tendência para uma taxadecrescentede lucropormeiodefatoresexternosàsoperaçõesdocapitalismo.Ricardosugeriuqueafalhaestavananatureza,porqueaprodutividadeagrícolaerasujeitaalucrosdecrescentes.Apelosdessetipoà“natureza”eramanátemasparaMarx;quandosevêdiantedoproblemadoslucrosdecrescentes,elecomentaofensivamentesobreRicardo:“fugindodaeconomia,eleserefugianaquímicaorgânica”[34].Marx procura a causa dos fenômenos dentro da lógica interna do capitalismo. O argumento que eleconstróiéaomesmotempobrilhanteesimples.

Elediz:vamosdefinirataxadelucrocomo:

A partir da segunda destas expressões podemos ver que a taxa de lucro varia ao inverso dacomposiçãodevalor epositivamentecomuma taxadeexploraçãocrescente.Sea taxadeexploraçãoaumentarmaislentamentedoqueacomposiçãodevalor,entãoteremosumataxadecrescentedelucro.

Marx em geral sustenta que a taxa de exploração só pode aumentar numa taxa decrescente. Adificuldadecrescenteemcomprimiras taxasdeexploraçãomaiselevadasdeumaforçade trabalho jáseveramenteempobrecida,oestadodalutadeclasseseanecessidadedemanterumconsumomódicoporpartedaclasse trabalhadoraexercemuma influência repressora.Alémdisso,podesermostradoquea

Page 179: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

taxadelucrotorna-secadavezmenossensívelamudançasnataxadeexploraçãoquantomaiorsetornaacomposiçãodevalor[35].

Por isso, o ônus da prova para a taxa decrescente de lucro está emmostrar que a composiçãodevalor do capital tende a aumentar sem restrições. Marx simplesmente invoca aqui a suposta “lei dacomposiçãoorgânicacrescentedocapital”comosendosuficienteparaessatarefa.Eleentãoconcluiqueé o “desenvolvimento progressivo da produtividade social do trabalho” que, nas relações sociais docapitalismo, provoca uma tendência perpétua para uma taxa decrescente de lucro[36]. Por meio desseestratagemasimples,Marxtornaaleidoslucrosdecrescentescompatívelcomas“leisdemovimentodocapitalismo”.

Mas,dadoo“enormedesenvolvimentodasforçasprodutivasdotrabalhosocial”nocapitalismo,“adificuldadequeatéentãoperturbouoeconomista,ouseja,explicarataxadecrescentedelucro,dálugaraoseuoposto,ouseja,explicarporqueessedecréscimonãoémaioremaisrápido”[37].A“lei”passaaseruma“tendência”porqueémodificadaporumasériedeinfluênciascontrárias.

Marxlistaseisdessasinfluênciascontráriasn’Ocapital,masduasdelas(ocomércioexterioreumaumentonocapitalsocial)falhamemseadaptaràssuassuposiçõesusuais(umaeconomiafechadaeumconceitodemais-valorqueexcluiosfatosdadistribuição).Issonosdeixacom(1)umataxacrescentedeexploração,emboracomtendênciaadiminuir;(2)custosdecrescentesdocapitalconstante(queimpedemaelevaçãonacomposiçãodevalor);(3)depressãodossaláriosabaixodovalordaforçadetrabalho;e(4) um aumento no exército industrial de reserva (que preserva alguns setores das devastações doprogresso tecnológico reduzindo o incentivo para substituir a força de trabalho por máquinas). NosGrundrisse,Marxlistaváriosoutrosfatores“alémdacrise”quepodemestabelecerataxadolucro.Eleescrevesobrea“desvalorizaçãoconstantedeumapartedocapitalexistente”(peloqualeupresumoqueeleserefereàobsolescênciaprogramada),a“transformaçãodegrandepartedocapitalemcapitalfixoque não serve como agente da produção direta” (investimento em obras públicas, por exemplo) e o“desperdícioimprodutivo”(osgastosmilitaressãofrequentementeusadoscomoumexemplonaliteraturacontemporânea).Eletambémprosseguedizendoqueodecréscimonataxadelucropodeser“contidopormeio da criação de novos ramos de produção em que é necessário mais trabalho imediatoproporcionalmenteaocapital,ouondeaforçaprodutivadotrabalhoaindanãoestáevoluída,i.e.,aforçaprodutiva do capital” (setores de trabalho intensivo são abertos ou preservados)[38]. E, finalmente, amonopolizaçãoétratadacomoumantídotoparaataxadecrescentedelucro.

Em termosmais brandos, esta é uma série de fatores um tanto diversificados a serem levados emconta.TodosmerecemmaisescrutíniodoqueMarxlhesconcede,eempartealgumanoséapresentadauma firme análise deles. Alguns, como os salários se movendo abaixo dos valores, parecem ser nomáximopaliativostemporários,enquantooutros,comoaspoupançasnocapitalconstanteeaaberturadelinhas de produção de trabalho intensivo, parecem manter a taxa de lucro estável em longo prazo.Devemos também notar que alguns fatores, como o investimento em obras públicas e em gastos nãoprodutivos,podemprovavelmentesermaisbemconstruídoscomoreaçõesàquedadoslucros,enquantooutros,comoapreservaçãoouaaberturade linhasdeproduçãode trabalho intensivoepoupançasnocapital constante, ocorrem “naturalmente” com as mudanças tecnológicas geradas nas relações deproduçãocapitalistas.

De todo modo, Marx nos deixa com a nítida impressão de que nenhuma dessa série variada deinfluências contrárias, quando consideradas separadamente ou todas juntas, pode se contrapor comsucesso à tendência em longo prazo para uma taxa decrescente de lucro. No máximo, elas adiam o

Page 180: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

inevitável.Elepodeentãoenfatizarseuargumentoatésuaconclusãofinal:

A crescente inadequação do desenvolvimento produtivo da sociedade às suas relações de produção anteriores manifesta-se emcontradiçõesagudas,crises,convulsões.Adestruiçãoviolentadecapital,nãoporcircunstânciasexternasaele,mascomocondiçãodesuaautoconservação, é a formamais contundente em que o capital é aconselhado a se retirar e ceder espaço a um estado superior deproduçãosocial.[39]

Aparentemente, Marx matou dois coelhos com uma só cajadada. Ele esclareceu os economistaspolíticosquantoàrazãodeataxadelucroprecisardiminuiraomesmotempoqueesboçouummodeloque reflete as contradições do capitalismo e suasmanifestações concretas no “mundo da aparência”.Infelizmente,seuargumentoéincompletoedemodoalgumrigorosamenteespecificado.EemboraEngelsimponhaumaformamuitoclaraaoargumentopormeiodasuaedição,otextoestáinfestadodetodotipodeambiguidades.

AexplicaçãoeousoqueMarxfazda lei têmsido,por isso,ocentrodaatençãodeumaimensaecontinuada controvérsia dentro da tradiçãomarxista, aomesmo tempo que ambos têm sido sujeitos amuitadepreciaçãonosambientesburgueses(oque,dadooquealeidescreve,dificilmentesurpreende).A lei temsido investigadaapartirdeváriospontosdevista (teórico,histórico, empírico), examinadaatentamenteporsuas implicaçõespolíticase interpretadademaneirasmuitodiferentes.Nãovou tentarexaminarascontrovérsiasousuamaneiradeseremesclarecidas,poisaquelesquequiserempoderãoseregalar com inúmeros artigos sobre o assunto[40]. Mas alguma avaliação desse terceiro modelo deacumulaçãodeMarxéevidentementerequerida.

Aavaliaçãopodeproceder emdoisníveis.Noprimeiro, podemos consideraro rigor, a coerêncialógicaeosignificadohistóricoda“lei”doslucrosdecrescentescomoumaproposiçãoporseuprópriomérito.Nosegundonível,maisgeral,podemosconsideraratéquepontoa lei(oualgumaversãodela)efetivamentesintetizaosachadosdosdoisprimeirosmodelosdaacumulaçãoparaproporcionar,assim,umafirmeinterpretaçãodasleisdomovimentodocapitalismocomoumtodo.

A seguir vou argumentar queMarx, em sua ansiedade para esclarecer os economistas políticos, éatraídoparaumaespecificaçãoequivocadadoquedevetersidoummodelosintéticodascontradiçõesdocapitalismo.Maisespecificamente,assumindooproblemadainevitabilidadedeumataxadecrescentedelucroporpartedoseconomistaspolíticosdaépocaetratandoestacomoumaquestão,Marxsedesviadalógicadoseupróprioargumentoatéumpontoemqueoquedeveriatersidoumaproposiçãotangencialparece fundamental, enquanto a proposição fundamental fica enterrada em uma massa de argumentostangenciais.Comoresultado,Marxnãosintetizacomsucessoosdoisprimeirosmodelosdaacumulação.Nem representa adequadamente as “formas concretas” que as contradições internas do capitalismoassumem “na superfície” da sociedade. Entretanto, apesar de todas essas falhas, ele conseguedesmascarar o que bem poderia ser a fonte fundamental das crises capitalistas: por um lado, acontradiçãoentreaevoluçãodasforçasdeprodução;poroutro,asrelaçõessociaisnasquaisaproduçãocapitalistaébaseada.Vamosdetalharesseargumentogeral.

No entanto, o estado exato da chamada “lei” deve primeiro ser esclarecido.Uma coisa seria, porexemplo,afirmarteoricamenteque,seháumatendênciaparaumataxadecrescentedelucro,eladeveserexplicada de maneira consistente com as leis gerais do movimento do capitalismo; outra coisa seriasustentar,comoMarxdefinitivamentefazemváriasocasiões,quealeicaptaalógicainternadadinâmicacapitalista aomesmo tempoque explica as tendências históricas reais e observáveis na taxa de lucroreal[41].Há,naverdade,umaboapartedeconfusãoemrelaçãoaoestadoepistemológicoexatodalei–

Page 181: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

uma confusão indicada pela maneira que Marx alternadamente se refere a ela como uma “lei”, uma“tendência”ouatémesmocomoumahíbrida“leitendencial”.Emproldaconveniência,continuareiamereferiraoargumentodataxadecrescentedelucrocomoumalei,sempresumirquetalrótulolheconfiraqualquerestadoepistemológico.

Osignificadoteóricodaleiébastanteclaro:acapacidadeparaproduzirmais-valorrelativoaovalortotalcirculantecomocapitalédiminuídocomopassardotempopelasprópriasrevoluçõestecnológicasqueoscapitalistasindividuaisinstituememsuabuscapelomais-valor.Noentanto,Marxserefereàleimais em termos de valores do que empreços demercado, demodoque as consideraçõesmonetáriastantodelongoquantodecurtoprazo(comoainflaçãoendêmicaouopânicofinanceiro)nãopodemserincluídasnaanálise.Issosignificaquealeinãopodeserusadaparadescrevera“aparênciasuperficial”da dinâmica capitalista. Além disso, o lucro é construído comomais-valor antes da sua distribuiçãocomorenda,juro,lucrosobreocapitalindustrialedoscomerciantes,impostoseassimpordiante.Issosignificaqueataxadelucrosobre,digamos,ocapitalindustrialpodeaumentaroudiminuir,maiscomoresultadodemudançasnadistribuiçãodoquecomoum reflexodemovimentosna taxade lucrocomoMarxadefine[42].

Porisso,temosdeserparticularmentecautelososaotratardaleicomoumaproposiçãohistóricaouempírica.Nãopodemos,porexemplo,reunirdadossobrelucroscorporativosnosEstadosUnidosdesde1945 e aprovar ou desaprovar a lei apelando para esse registro histórico particular. Tentativas aindamais corajosas e mais sofisticadas – como aquela de Gillman[43] – para descrever mudanças nacomposiçãodevalordocapitaleparaataxadelucro,duranteumlongotempo,sãosuspeitasporqueosnecessários relacionamentos entre os valores e os preços do mercado são difíceis de estabelecer,enquanto os arranjos distribucionais deslocados também turvam consideravelmente as águas (acontabilidade dos impostos é particularmente incômoda). Um registro histórico dominado pelosmovimentosdospreçosepelaspartesdistribucionaisnãopodeserfacilmentecomparadocomaleidoslucrosdecrescentes[44].

O máximo que a lei pode suportar como uma proposição histórica é o peso não substancial daexplicação pela estagnação secular em longo prazo e pela crises periódicas violentas.Marx tende aenfatizar a crise, mas o texto apresenta muita confusão sobre se o capitalismo poderia superar umatendência inerente para o declínio de longo prazo devido talvez às convulsões violentas e àracionalizaçõesatingidasnodecorrerdascrises.Escolasdepensamentodiferentesexistemsobreesseponto[45].

Infelizmente,oargumentodataxadecrescentedelucrodeMarxnãoéparticularmenteaprimoradoourigorosamente definido, mesmo como uma proposição puramente teórica. Considere, por exemplo, adefiniçãodelucroqueMarxutiliza:

Não está exatamente claro, no texto de Marx, a que c, o capital constante, se refere. Há trêspossibilidades:(1)ocapitalconstanteusado(preservado)nodecorrerdeumano;(2)ocapitalconstanteempregadoduranteumano todo(que incluiriaocapital fixadonãousado);ou(3)ocapitaladiantadoparaaaquisiçãodecapitalconstante(emcujocasoasépocasdemovimentaçãodosvárioselementosdecapitalconstantesetornamfundamentaisparaocálculo).OpróprioMarxoscilaentreasduasprimeiras

Page 182: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

definiçõeseocasionalmenteinvocaaterceira.Engels,sabendoqueMarxnãofezjustiçaaosachadosdosegundolivrodeOcapital, inseriuumcapítulosobreo“efeitodomovimentosobreataxadelucro”eacrescentasentençaseparágrafosparachamaraatençãoparaoqueeleviacomoumasériaomissãodeMarxnaformulaçãodoproblema.

Emgeral,aargumentaçãodeMarxnoterceirolivrodeOcapitalrefleteseupensamentonoprimeirolivro,masfazrarasreferênciasàspoderosasformulaçõesdosegundo(oquenãosurpreende,poisotextodoterceirolivroquechegouaténósfoiaparentementeescritoantesdeteremsidorealizadasasextensasinvestigaçõesdosegundo).Aexclusãodocapitalfixoedotempodemovimentaçãodaanálisenosdeixacomapenasumadefiniçãodeccomoocapitalconstanteusadonodecorrerdeumanoeumadefiniçãodelucroquedemaneiraalgumasintetizaasestruturasanalíticasdosdoisprimeirosmodelosdeacumulação.Emresumo,amedidadataxadelucropodeserrazoávelseestivermospreparadosparaassumirquetodocapitaléproduzidoeusadoemtodosossetoresduranteumperíododeproduçãopadrão.Taldefiniçãolimitada pode ser aceitável para alguns propósitos,mas dificilmente é adequada para captar a lógicainterna do capitalismo como um todo, que dirá “as formas concretas” assumidas “na superfície dasociedade”pelasleisdemovimentodocapitalismo.

Alémdisso,todasasobjeçõesteóricasquelevantamosnocapítulo4,associadasaosrelacionamentosentreascomposições técnicas,orgânicasedevalordocapital,agoraentramtotalmenteemjogocomoobjeçõesàespecificaçãodeMarxdaleidoslucrosdecrescentes.Vamosaplicartaisobservações,umaauma,naargumentação.

Marxestá totalmenteconsciente,éclaro,dequeasmudanças tecnológicasquereduzemovalordocapitalconstantefixoecirculantepodem,nascondiçõescertas,elevarataxadelucrooupelomenossecontrapor à sua suposta tendência para decrescer. Mas ele não explica diretamente por que essasmudançasnãoconseguemestabilizaracomposiçãodevalortotaldocapitale,portanto,ataxadelucroemlongoprazo.SeuscríticosporissotêmapontadoparaumsupostoviésnateoriadeMarxcomrelaçãoà “poupança de trabalho” em oposição ao que é chamado de “poupança de capital” ou inovações“neutras” – um viés que alguns encaram como justificável na própria época deMarx,mas nãomuitoadiante disso, dadas as formas predominantes de progresso tecnológico desde a segunda metade doséculoXIX[46].Essaéumacaracterizaçãoumtantoinfelizdoproblema–que,devemosnotar,seoriginadateoriaburguesa–,porqueMarxestápreocupadoapenascomosmovimentosnaproporçãodevalordocapitalconstanteevariável.Nesseaspecto,eletemàmão,nosmodelosdereproduçãodosegundolivrod’O capital, uma ferramenta pronta para explorar os impactos das taxas diferenciais de mudançatecnológicanosdoissetoresqueproduzem,respectivamente,bensdecapitalconstantesevariáveis.

Assim,Morishima eHeertje[47]mostram que uma distribuição especial damudança tecnológica –uma distribuição que se concentra particularmente em algumas seções dentro do setor 1, que produzmeiosdeprodução–podeconduziraumacomposiçãodevalorestáveloumesmodeclinantedocapitalnaeconomiacomoumtodo.Acircunstânciaquepermitequeessesejao resultadoéexatamenteoqueMarx acreditava ser o momento em que o capital realmente se impôs – quando desenvolveu umacapacidadeparaproduzirmáquinascomaajudademáquinas[48].Umaeconomiadedicadaàproduçãodemáquinaspormáquinassempremais sofisticadaspareceum tanto insano,éclaro,masapossibilidadetécnicadequeissopudesseestabilizaracomposiçãodevalordocapitalrealmenteexiste.Somosentãoobrigadosaperguntarseosprocessossociaisqueregulamamudançatecnológicanocapitalismosãoounãoumagarantiadesseresultado.

Como os capitalistas individuais instituem mudanças tecnológicas em resposta a pressões

Page 183: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

competitivaseaoestadodalutadeclasses,podemosimediatamenteconcluirqueamisturaparticulardemudançastecnológicasrequeridasparamanteracomposiçãodevalordocapitalestávelseránomáximoalcançada por acaso. Na verdade, os capitalistas individuais que estão no comando do seu próprioprocesso de produção podem procedermelhor procurando aumentar a produtividade do trabalho queempregamemrelaçãoàmédiasocial.Oimpulsodainovaçãotecnológicadentrodaempresaésemprenosentidodeeconomizarotempodetrabalhosocialmentenecessário.E,emcondiçõesdeescassezdemãode obra ou luta de classes exacerbada, há todos os incentivos para os capitalistas individuaiseconomizaremnaforçadetrabalhoqueempregam.Oincentivoparaleloparaoscapitalistasindividuaisbuscaremeconomiasnoempregodecapital constante é, emcontraste,muitomais fraco.Osprocessosreais que regulamamudança tecnológica no capitalismo são, na verdade, sistematicamente inclinadospara a economia de capital variável, em oposição ao capital constante. O caráter anárquico dacompetição entre os capitalistas impede qualquer aplicação racional da mudança tecnológica –“racional”,ouseja,dopontodevistadasustentaçãodaacumulaçãopormeiodeumaestabilizaçãodacomposiçãodevalordocapital.Por isso,ascrisesse tornamosmeiospara racionalizarasestruturastecnológicasemrelaçãoàsexigênciasdaacumulação.Colocadanessestermos,aargumentaçãodeMarxsobreataxadelucroemquedaparecemenosvulnerávelàsfarpasdeseuscríticos.Nãoéaí,portanto,queestãoasreaisdificuldadesdamaneiradeMarxformularoproblema.

Umalinhadecríticadiferentepodeserconstruídatendoporbaseasideiasapresentadasnocapítulo4,seçãoIV.Nosémostradoqueamedidadacomposiçãodevalordecresce(todoorestopermanecendoconstante)comoaumentoda integraçãovertical.Emconsequência,amedidada taxade lucrocaptadapelas empresas individuais deveaumentar como crescimentoda integraçãovertical –mais umavez,assumindo que todo o resto permanece constante. Em certo sentido, o efeito é ilusório, porque oargumentodeMarxsobreataxadecrescentedelucroédirecionadoparaaeconomiaencaradacomoumagregado isolado.Eleestápreocupadocomavelocidadecomqueoscapitalistas,encaradoscomoumagregado,usamosvaloresque comandampara criarmais-valor.E a integraçãovertical, amenosqueacompanhadapelamudançatecnológica,diferentespadrõesdeexploraçãoetc.,presumivelmentenãotemimpacto sobre aquela velocidade de agregação em si. Afeta-se a maneira como os capitalistascompartilhamomais-valoragregado.Umsimplesaumentonaintegraçãoverticalpareceserumamaneiradeelevarouprotegerosníveisdelucrodentrodaempresaquandoomais-valorrealproduzidoéinferioràmédia.Háevidentesoportunidadesparaodeslocamentodaforçadetrabalhonessascondições.

A integração vertical crescente em geral significa o aumento da centralização do capital e oafastamento da tecnologia do capital variável na direção do capital constante. O que pode ser ganhomediante a integração vertical pode ser perdido devido à mudança da tecnologia no processo dotrabalho.Poroutrolado,aempresadepequenoportetemavantagemdeumacirculaçãomaisrápidaeumamisturatecnológicaqueemgeraldependemaisdocapitalvariável(emboraestenemsempresejaocaso).Adesagregaçãodaprodução,acompanhadapormudançasnamisturatecnológica,podenaverdadeproporcionar um meio para aumentar a taxa de lucro agregada. O problema é que as vantagens daintegraçãoverticalexercemumapressãoexatamentenadireçãooposta.Nesse sentido,a taxade lucropodeserconsideradasensívelàmisturaexatadecaracterísticasorganizacionaisetecnológicas.Nósnosencontramosconsiderando,umavezmais,aideiadeumgrauótimodecentralizaçãoedescentralizaçãonaproduçãoemrelaçãoàacumulaçãosustentada.

ÉcontratalpanodefundoquepodemosavaliaralgumasdasmaneirascomqueMarxpensavaqueataxa de lucro podia ser estabilizada. Em alguns casos, estas envolvem amobilização das “forças de

Page 184: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

repulsão”que tipicamentesecontrapõemàcentralizaçãoexcessiva.Antesdequalquercoisa,osnovossetores demão de obra intensiva compensamo aumento da confiança no capital constante em setoresmaisvelhosemaiscentralizados.Poderíamosaquiintroduziraideiade“ciclosdeinovaçãodoproduto”,pois temsidofrequentementeobservadoquenovosprodutos, inicialmenteproduzidosemumapequenaescalacomtecnologiasdetrabalhointensivo,sãoporfimtransformadosemindústriasdeproduçãoemmassa e de capital intensivo constante. Podemos então facilmente mostrar que, para a inovação doproduto compensar plenamente a taxa decrescente de lucro, seria requerida uma velocidadeperpetuamenteaceleradadedescobertadeproduto.Issoéinconcebívelemlongoprazo.

Por outro lado, o aumento da divisão do trabalho e da especializaçãodas empresas nas linhas deproduçãoexistentesproporcionaummecanismomaispoderosodeestabilizaçãodacomposiçãodevalordocapital.Historicamente,temhavidoumatendênciaparaoqueéchamadode“rotatividade”aumentadanaprodução–umasegmentaçãocrescentedeprocessosdeproduçãopreviamente integradosem fasesseparadas, especializadas, coordenadas pelo mercado ou mais diretamente pela subcontratação. Avantagemestáemumaeficiênciasuperiorderivadadaespecializaçãodafunçãoedotempodecirculaçãoreduzido do capital (um fenômeno que em breve examinaremos detalhadamente). Como as empresasmenores, emparte emvirtudedo seu tamanho, tendema exigirmãodeobramais intensiva, e comoaespecializaçãoda funçãopermite umamudança dramática no caráter da força de trabalho requerida etambémnas relaçõesde trabalho,o resultadopodeserestabilizara taxade lucroagregadaapesardassupostasdesvantagensdadesagregação[49].

O decréscimo na taxa de lucro pode também ser contido por mecanismos que detêm o ritmo damudançatecnológica.Háumasériedemaneiras–tomadadopoder,leisdepatenteecoisasdessetipo–com que as grandes organizações poderosas enfraquecem a competição e o impulso para a inovação.Grandes populações excedentes relativas podemapressar o recuopara técnicas de trabalho intensivo,comootrabalhoescravo[50],particularmenteseasmáquinassetornammaiscarasdoqueamãodeobraque elas substituem. Alguns críticos vão mais além nesse argumento. Eles dizem que não há nadairreversível na tecnologia, e que a troca e a “reversão” da troca damãode obra para as técnicas decapital intensivoconstantepodemfacilmenteestabilizara taxade lucro[51].VanParijs[52], por suavez,usaoteoremadeOkishio[53]paramostrarqueoscapitalistas,nacompetição,vãoescolhertécnicasquenecessariamentereduzemosvaloresunitáriosdetodasasmercadorias(incluindoaforçadetrabalho)eaumentamataxadelucrotransitóriaparasimesmosetambémataxadelucrosocial,nãoimportaoqueaconteçacomacomposiçãodevalor,contantoapenasqueopadrãodevidadotrabalhadorpermaneçaconstante. Essa poderosa versão da teoria domais-valor relativo só se fragmenta namonopolização,aumentando os padrões de vida do trabalhador, ou graças às barreiras colocadas pela circulação docapitalfixo.

A inovação pormeio da competição não produz necessariamente o resultado particular queMarxprevê. Entretanto, ela pode ainda funcionar como a força básica fundamental que contribui para odesequilíbrioeascrises.Seossaláriosreaisforemmantidosconstantes,comosupõeOkishio,aparceladecapitalvariávelnoprodutototaldeclinaestimulandodesequilíbriosentreaprodução,adistribuiçãoeanegociação,amenosquehajaumaaceleraçãomitigadoranademandapormeiosdeproduçãoeitensdeluxo.Umaeconomiaqueseprendea tal trajetória logosevênaquelacondição“lunática”deproduzircadavezmaismáquinaspormáquinas,oudesebasearemumadisparidadesemprecrescentenariquezadasduasgrandesclassessociais.Ademais,amudançadastécnicas,emborasejaumapossibilidadereal,éotipodeajustequemaisprovavelmenteseráimpostonodecorrerdascrisesdoqueatingidonocurso

Page 185: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

normaldosacontecimentos.Alémdisso,atrocaeareversãodatrocadastecnologiasincorrememcustos.Marxdefinitivamente

sustenta que as reorganizações tecnológicas maciças só poderiam ser “impostas por catástrofes ecrises”[54].Esseeraparticularmenteocaso,devidoàs“peculiaridades”ligadasàcirculaçãoeaousodocapital fixo. Isso,noentanto,nos levaaopontoemque temosdeadotarestudoselaboradosporMarxsobre os tempos de trabalho, produção e circulação, circulação do capital fixo etc., e integrá-los nomodelodoslucrosemqueda.ParaissotemosdevoltaraosconceitosbásicoseredefinirolucrodeumamaneiraquereflitagenuinamenteumasíntesedopensamentodosprimeiroesegundolivrosdeOcapital.

Ocapital,podemosnoslembrar,éconcebidocomoumprocessodecirculaçãoeexpansãodovalor.Nosegundolivro,vemosqueocapitalassumeexpressõesmateriaismuitodiferentesnodecorrerdasuacirculação.IssosugereumafórmulaparaolucromuitodiferentedaquelautilizadaporMarx[55].

Odenominadoraquivisacaptaremtermosdevaloraquantidadetotaldecapitalnasdiferentesfasesde sua circulação. Como se coloca, essa formulação não leva em conta os tempos de circulaçãodiferenciais e presume que todos os produtos são produzidos e consumidos dentro de um período decirculação estabelecido.Também trata omais-valor comoum fluxo em relação aos estoques totais decapitalnosváriosestados.

Agora,consideremoscomopodeparecerumaversãodefluxodessafórmula.Nãopodemossequercomeçaraespecificarissosemoconhecimentodasestruturasedasexigênciasdetempodeproduçãoecirculação em diferentes setores da economia. Os modelos da reprodução expandida são úteis naelucidação das estruturas. Podemos ver, por exemplo, que o capital que assume a forma de capitalvariáveltemexistênciadual:porumlado,suaformadedinheiroestáemalgumlugarentreoscapitalistasque pagaram os salários e os produtores de mercadorias que ainda têm de receber de volta aqueledinheiroemtrocadosbenssalariaisqueelesoferecem,enquantoemsuaformademercadoriaeleexistecomoforçadetrabalhoemaçãosobocomandodoscapitalistas.Podemos,dessamaneira,examinarascondiçõesdecirculaçãodocapitalconstanteedocapitalvariável,edomais-valor[56].

Mas as exigências de tempovariammuito e são extremamente difíceis de incorporar emqualquerconcepção de lucro (por exemplo, os diferentes componentes do capital constante são usados naproduçãoemvelocidadesmuitodiferentes).Algumamaneiratemdeserencontradaparareduzirainfinitadiversidade dos tempos de circulação a algum denominador comum. Em outras palavras, temos deidentificardemaneira teóricaepráticaalguns“processosnormaisdecirculaçãodocapital”ou,comovou preferir chamá-lo, “o tempo de circulação socialmente necessário”. Vou definir o último, poranalogiacomoconceitodetempodetrabalhosocialmentenecessário,como“otempomédiousadoparacircularumadeterminadaquantidadedecapitaldentrodeumsetorparticular,nascondiçõesnormaisde

Page 186: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produçãoecirculaçãoprevalentesnaépoca”.Asempresascom temposdecursomaiscurtosqueonecessáriovão receber lucrosexcedentesou

mais-valor relativo. Por isso, elas provavelmente estarão numa luta concorrencial para acelerar ostemposde curso.Podemos tambémverqueum tempode cursomais rápidoproduzuma taxade lucromaiselevadaemumabaseanualquandotodoorestoémantidoconstante.Ostemposdecursopodemserreduzidosporváriosmeios,comoporexemplodividirumprocessodeproduçãoemfasesindependentessob o comando de empresas independentes. Isso, como já vimos, proporciona um incentivo para acriação de uma “rotatividade” aumentada nos sistemas de produção. Por isso, os lucros decrescentesassociados a uma desagregação crescente podem ser comprimidos por lucros crescentes associados atemposdecursomaisrápidos.Há,presumivelmente,umpontodeequilíbrioentreessasduastendênciasopostasconsistentescomumataxadelucroestável.

Entretanto,umainspeçãomaispróximadoconceitodetempodecursosocialmentenecessáriosugereque o estamos usando para cobrir uma multiplicidade de complexidades que não devem ser tãodesdenhosamentesepultadas.Diferenteselementosdocapitalvariáveledocapitalconstantecirculamemvelocidadesdiferentesmesmodentrodasempresas,eprovavelmentehaverávelocidadesdecirculaçãomédia amplamente divergentes nos diferentes setores. Podem ser necessárias décadas para circular ocapital investido em um projeto hidrelétrico e poucos dias para recuperar o capital aplicado noestabelecimento de um trabalho escravo na indústria de confecções. Como tempos de circulação tãodivergentespodemserreduzidosaalgumparâmetrocomumdemodoaserpossívelcompararastaxasdelucro?

Éfundamentalencontrarumarespostaparaesseproblema,assimcomoo foiparaexplicarcomoaforça de trabalho abstrata se torna um parâmetro contra o qual diversas formas da força de trabalhoconcretapodemseravaliadas.Semumamedidacomumdotempodecurso,nãoháequalizaçãodastaxasde lucroporquenãohaveriapadrãocontraoqualdeterminar sea taxade lucroeramaisaltaoumaisbaixadoqueamédia,oumesmocrescenteoudecrescente.

A solução queMarx está eternamente sugerindo no segundo livro d’O capital, mas que falha emressaltaratésuaconclusão,équeosistemadecréditoproporcionaomecanismoparareduzirdiferentestemposdecursoaumabasecomum,equeessa“basecomum”éataxadejuros.Damesmamaneiraqueomercado de mercadorias serve para reduzir diversos trabalhos concretos ao denominador comum dotrabalhoabstrato,osprocessosdomercadoqueenvolvemoprópriodinheiro(emparticular,aquelapartedo mercado monetário chamado de mercado de capitais) reduzem vários processos de produçãoconcretoscomsuasexigênciasde tempoespecíficasecomfrequênciaextremamente idiossincráticasaumtempodecirculaçãopadronizadosocialmentenecessário.

Entretanto, essa conclusão abala profundamente a própria argumentação deMarx. Ele insiste quetantoaorigemquantoataxadelucropodemserdiscutidasindependentementedosfatosdadistribuição.Emboraaorigemdolucronaexploraçãodaforçadetrabalhopossadefatoserbastantediscutida,nósconcluímosquea taxa de lucronãopode serdiscutida independentementedosprocessosdistributivosque determinam a taxa de juros, exceto sob algumas suposições extremamente restritivas (queespecificaremosembrevemente).

AnotóriarelutânciadeMarxempermitirosfatosdedistribuiçãoemsuaanáliseseoriginoudasualuta feroz com uma economia política burguesa que tratava a distribuição como fundamental, emboraevitando claramente a necessidadede considerar as relações sociais daprodução.MasMarx erra emoutradireção.Suarecusaemassumiropapeldosistemadecréditoeataxadelucronosegundolivro

Page 187: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

d’Ocapitalimpedeoplenoflorescimentodeumaanálisepotencialmentericadoprocessodecirculaçãodocapital.Seufracassoemintegraratémesmoosachadoslimitados,emboraprofundamentesugestivos,sobre o tempo de curso em sua taxa decrescente de lucro impede esta última de ser usada como ummodelosintéticoviáveldascontradiçõesdocapitalismo.

Então, para onde isso nos leva com relação à lei dos lucros decrescentes? Será que não há umamaneirademinimizarmososdanoseresgatarmosaomenosumapartedaargumentaçãodeMarx?

À primeira vista, parece que o máximo que podemos fazer é apresentar muito claramente assuposiçõesquepermitiriamapoiaraargumentaçãodeMarx.Suponhamos:(1)umasociedadededuasclassescompreendidaapenasporcapitalistasetrabalhadores;(2)umaeconomiacomumaestruturaextremamentesimplesemquetodasasmercadoriassãoproduzidas

econsumidasdentrodomesmoperíododetempopadrão:issosignificaquetodosostemposdecursosãoconsiderados iguais,quenãoexisteminventáriosouacúmulosdemercadoriasoudedinheiroequenenhumcapitalfixoélevadodeumperíododeproduçãoparaoseguinte;

(3)odinheirofuncionaapenascomoummeiodetrocaquerefleteemedeosvalorescomprecisão;(4)asrelaçõesdeproduçãoetrocacapitalistasdominamcadafacetadavida.

Então, dada a caracterização deMarx das “relações capitalistas de produção e troca”, podemosdeduzir que a taxa de lucro (mais uma vez assumindo que a fórmula de Marx para o lucro sejaapropriada) deve necessariamente cair. O problema dos lucros decrescentes, que incomodou oseconomistas políticos da época, está efetivamente resolvido.Entretanto, não encaro isso como amaisimportanteconclusãoaserobtidadeumaespecificaçãomaisrigorosadaleideMarx.

A proposição fundamental emerge de uma consideração dos processos que tendem a gerar, emprimeiro lugar, os lucros decrescentes. O que Marx na verdade nos mostra é que os capitalistasindividuais–coagidospelaconcorrência,capturadospelasnecessidadesda lutadeclassesereagindoaosditamesocultosda leidovalor–fazemajustes tecnológicosquedirecionamaeconomiacomoumtododistantede“umdesenvolvimento‘sólido’e‘normal’doprocessodaproduçãocapitalista”[57].Emoutraspalavras,oscapitalistasindividuais,agindoeminteressepróprionasrelaçõesdeproduçãoetrocacapitalistas,geramummistotecnológicoqueameaçaumaacumulaçãoadicional,destróiapotencialidadeparaocrescimentoequilibradoecolocaareproduçãodaclassecapitalistacomoumtodoemrisco.Emsuma,oscapitalistasindividuaisnecessariamenteatuamdemaneiraadesestabilizarocapitalismo.

Infelizmente, Marx obscurece essa proposição fundamental concentrando-se em sua supostaexpressãocomoumaleidelucrosdecrescentes,comtodasasconotaçõeshistóricas,empíricaseteóricasquetalleiimplica.PodemosresgatarMarxtantodeseusapologistasquantodeseusdetratores,voltandoao princípio fundamental de uma contradição entre as forças de produção e as relações sociais daprodução no capitalismo e seguindo a expressão dessa contradição em termos das característicastecnológicas e organizacionais às quais o capitalismo deve necessariamente aderir para conseguir umcrescimentoequilibrado.

No primeiro livro d’O capital vemos os capitalistas individuais no comando de seus própriosprocessosdeprodução,usandoamudançatecnológicadentrodaempresacomouma“alavanca”paraaacumulação – uma alavanca a ser usada contra outros capitalistas na luta pelo mais-valor relativo econtrao trabalhadorna lutapara impedirqueaclasse trabalhadoraseapropriedegrandeparteoudequalquer parte do mais-valor produzido. Resultado: revoluções eternas nas forças produtivas e umaprodutividadesemprecrescentedaforçade trabalho.Essaéa ideiaqueMarxprocuroucaptaremseu

Page 188: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

conceitodeumacomposiçãoorgânicadocapital.QuandopressionamosaanálisedosesquemasdereproduçãonosegundolivrodeOcapitalumpouco

alémdoqueMarxtevetempodefazer,chegamosaoconceitodeumatecnologiaviávelquepermitiriaareprodução bem-sucedida das relações de classe, ao mesmo tempo que permitiria a “acumulaçãoequilibrada”entreedentrodossetoresemtermosfísicos,monetáriosedevalor.OqueMarxalmejaemseuterceiromodeloédemonstrarque,paraaacumulaçãosersustentada,acomposiçãodevaloragregadodo capital deva permanecer razoavelmente estável. Recuando para a estrutura dos esquemas dereprodução,podemosespecificarmaisclaramenteoqueissosignifica.Atecnologiaviávelagoraabrangeuma distribuição específica da mudança tecnológica entre os setores de modo a manter estável acomposição de valor do capital. O que isso nos diz é que a dinâmica da mudança tecnológica eorganizacional é fundamental para a estabilidade do capitalismo e que os caminhos da mudançacompatíveiscomocrescimentoequilibradosão,serealmenteexistirem,extremamenterestritos.

A questão básica queMarx apresenta é a seguinte: como os processos damudança tecnológica eorganizacional,reguladospeloscapitalistasindividuaisqueatuamnasrelaçõesdeclassedocapitalismo,chegamaadquirira tecnologiaviávelparapermitiraacumulaçãoequilibradaeareproduçãoperpétuadas relaçõesdeclasse?EmboraMarxnãoprove seuargumentoalémdequalquerpossível sombradedúvida,eleapresentaumexcelenteexemplodequeamisturatecnológicaeorganizacionalnecessáriasópoderiaserconseguidatemporariamenteporacaso,equeocomportamentodoscapitalistasindividuaistendeeternamenteadesestabilizarosistemaeconômico.AcreditoqueestasejaainterpretaçãocorretaaserdadaaoqueMarxdescrevecomoacontradiçãofundamentalentreasforçasprodutivaseasrelaçõessociaisnocapitalismo.Eeutambémsugeririaqueestaéaproposiçãofundamentalqueestáenterradanointeriordoargumentodataxadecrescentedelucro.

[1]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.670.

[2]Ibidem,p.690.

[3]Ibidem,p.697.

[4]Ibidem,p.698.

[5]Ibidem,p.707.

[6]Ibidem,p.714.

[7]Ibidem,p.708.

[8]Énessecontextoquetemosdeconsideraraquestãodopapeldafamílianadeterminaçãodovalordaforçadetrabalho.Ver,emNewLeftReview, o debate subsequente à publicação do artigo de Wally Seccombe (“The Housewife and Her Labour under Capitalism”, 1974),ConferenceofSocialistEconomists(“OnthePoliticalEconomyofWomen”,1976).VeraindaSusanHimmelweiteSimonMohun,“DomesticLabourandCapital”,CambridgeJournalofEconomics,1977,eEllenMalos,ThePoliticsofHousework (Londres,Allison&Busby,1980).

[9]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.675.

[10]Namedida emqueumpadrãodevidamaterial ascendenteda forçade trabalhoaumenta adependênciados trabalhadores ede suasfamíliasdocapital,issopodeserassociadoaumgraumaiordecooperaçãoenegociaçãodotipoqueMichaelBurawoy(“TowardaMarxistTheoryoftheLaborProcess:BravermanandBeyond”,cit.)relata.Oscapitalistassupostamenteestãoconscientesdobenefícioqueterãonoaumento da dependência e, certamente, mediante a ação do Estado, saindo com frequência do seu caminho para encorajar o crescenteendividamentoetc.

[11]Esseéumtópicoquegaranteumaanálisehistóricaeteóricaextensiva.FrancisThompson(EnglishLandedSocietyintheNineteenthCentury,Londres,Routledge/KeganPaul,1963),JohnFoster(ClassStruggleintheIndustrialRevolution,NovaYork,St.Martin’sPress,1975),JoanScotteLouiseTilly(Women,WorkandFamily,NovaYork,Holt,RinehartandWinston,1975),ClaudeMeillassoux(Maidens,

Page 189: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Meal andMoney, Londres, Cambridge University Press, 1981) e muitos outros assumiram a tarefa, enquanto a literatura feminista temquestionadomuitasdasideiasmarxistastradicionaisereformuladotantooconteúdoquantoadireçãodadiscussãodemaneirasimportantes–ver,porexemplo,ZillahEisenstein,CapitalistPatriarchyandtheCaseforSocialistFeminism (NovaYork,MonthlyReview,1979);JaneHumphries,“ClassStruggleand thePersistenceof theWorking-ClassFamily”,CambridgeJournalofEconomics, 1977,HeidiHartmann,“The UnhappyMarriage of Marxism and Feminism: Towards a More Progressive Union”,Capital and Class, 1979; e a introdução deEleanor Leacock a Engels,TheOrigin of the Family, Private Property and the State (NovaYork, International Publishers, 1942).VertambémEliZaretsky,Capitalism, theFamilyandPersonalLife (Londres,Pluto,1976),JacquesDonzelot,ThePolicingof theFamilies:Welfare versus the State (Nova York, Pantheon Books, 1979) eMichelMerignas, “Travail social et structures de classe”,Critiques del’ÉconomiePolitique,1978.

[12]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.707.

[13]Idem,Grundrisse,cit.,p.506.

[14]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.47;cf.Grundrisse,cit.p.323s.

[15]VerPaulSweezy,TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.,p.222-6,eMichioMorishimaeGeorgeCatephores,Value,ExploitationandGrowth,cit.

[16]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.786.

[17]AindavaleapenaleroestudodeLeninsobreTheDevelopmentofCapitalisminRussia(Moscou,ForeignLanguages,1956[ed.bras.:OdesenvolvimentodocapitalismonaRússia,SãoPaulo,AbrilCultural,1982]).

[18]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.196.

[19]Relatos completos podem ser encontrados emMeghnadDesai,MarxianEconomics, cit.;MichaelHoward e JohnKing, cit.;MichioMorishima,Marx’sEconomics,cit.;ePaulSweezy,TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.

[20]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.94.

[21]MichaelHowardeJohnKing,ThePoliticalEconomyofMarx,cit.,p.191.

[22]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.359.

[23]MichioMorishima,Marx’sEconomics,cit.,p.125-7.

[24]MeghnadDesai,MarxianEconomics,cit.,cap.16e17.

[25]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.515.

[26]Nãodevemosdemodoalgumocultar adificuldadede transformar avida e a culturada classe trabalhadora empadrões receptivos àexploraçãomediante a acumulação de capital. Isso dá origem a formas de conflito e luta no local demoradia que são um aspectomuitoimportantedavidacapitalista–verManuelCastells,TheUrbanQuestion(Londres,EdwardArnold,1977[ed.bras.:Aquestãourbana,SãoPaulo,PazeTerra,2009]),eDavidHarvey,“UrbanizationunderCapitalism:aFrameworkforAnalysis”,InternationalJournalofUrbanandRegionalResearch,1978.

[27]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.421.

[28]Ibidem,p.420.

[29]Ibidem,LivroI,p.653.

[30]Ibidem,p.690.

[31]Ibidem,p.250.

[32]Ibidem,LivroIII,p.25.

[33]Idem,Grundrisse,cit.,p.626.

[34]Ibidem,p.631.

[35]VerPaulSweezy,TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.

[36]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.212.

[37]Ibidem,p.232.

[38]Idem,Grundrisse,cit.,p.627-8.

[39]Ibidem,p.627.

[40]AspesquisasrealizadasporBenFineeLaurenceHarris(Re-ReadingCapital,cit.)eErikOlinWright(Class,CrisisandtheState,cit.)sãoúteis.UmaboaamostradeopiniãoseriaproporcionadaporMarioCogoy,“TheFallintheRateofProfitandtheTheoryofAccumulation:a Reply to Paul Sweezy”,Conference of Socialist Economists Bulletin, 1973; Desai,Marxian Economics, cit.; Geoff Hodgson, “TheTheoryoftheFallingRateofProfit”,NewLeftReview,1974;MichioMorishima,Marx’sEconomics,cit.;IanSteedman,MarxafterSraffa,

Page 190: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

cit.;PaulSweezy,TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.;eDavidYaffe,“TheMarxianTheoryofCrisis,CapitalandtheState”,cit.

[41]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.627;Capital,LivroIII,cit.,cap.13.

[42]Idem,Grundrisse,p.629.

[43]JosephGillman,TheFallingRateofProfit(Londres,D.Dobson,1957).

[44]VertambémadiscussãodeMeghnadDesai,MarxianEconomics,cit.,p.193-8.

[45]ResumempartedosdebatesKarlKühne,EconomicsandMarxism,cit.;ePaulSweezy,TheTheoryofCapitalistDevelopment,cit.

[46]VerMarkBlaug“TechnicalChangeandMarxianEconomics”,cit.;eArnoldHeertje,EconomicsandTechnicalChange,cit.

[47]MichioMorishima,Marx’sEconomics,cit.,p.160-3;ArnoldHeertje,EconomicsandTechnicalChange,cit.

[48]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.458.

[49]MichaelBurawoy,emManufacturingConsent:ChangesintheLaborProcessunderMonopolyCapitalism,cit.,apresentaalgumasobservações interessantessobreadiferençanas relaçõesde trabalhoentreasgrandesepequenascompanhiaseoque issopodesignificarparaaprodutividadedamãodeobra.

[50]BarbaraKoeppel,“TheNewSweatshops”,TheProgressive,1978.

[51]MichaelHowardeJohnKing,ThePoliticalEconomyofMarx,cit.,p.207-10.

[52]PhilippeVanParijs, “TheFalling-Rate-of-ProfitTheoryofCrisis: aRationalReconstructionbyWayofObituary”,Review of RadicalPoliticalEconomics,1980.

[53]NobuoOkishio,“TechnicalChangeandtheRateofProfit”,KobeUniversityEconomicReview,1961.

[54]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.170.

[55]GérardDuménil(“L’expressiondutauxdeprofitdans‘LeCapital’”,cit.)estimulaopensamentoaolongodestaslinhas.

[56]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,cap.15-17.

[57]Ibidem,LivroIII,p.255.

Page 191: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

7.Superacumulação,desvalorizaçãoeo“primeirorecorte”nateoriadacrise

A tendência para o decréscimo da taxa do lucro “gera superprodução, especulação, crises e capitalexcedente, juntamente com população excedente”. Além disso, revela “que a produção capitalistaencontranodesenvolvimentodasforçasprodutivasumabarreiraquenãotemnadaavercomaproduçãode riqueza como tal; e essa barreira peculiar atesta as limitações e o caráter transitório meramentehistóricodomododeproduçãocapitalista[…]”[1].

Crisesperiódicas,declíniosecularemlongoprazo,estagnaçãoeatémesmo,talvez,algumacatástrofeeconômicafundamentalparecemestar implícitosnoscomentáriosdeMarx.A interpretaçãoexataaserdadaaelesédegrandeimportânciapolítica.Osteóricosdo“bigbang”assumemumaposiçãopolíticatotalmentediferentedaquelesqueenxergamocapitalismo terminandocomuma lamúria.Asdiferençaspolíticas que dividiram o movimento socialista internacional no período de 1890 a 1926 – entreLuxemburgoeLenin,entreaquelesquesemantinhamfiéisaumalinha“revolucionária”eaquelesque,comoBernstein,Kautsky eHilferding, buscavamum caminho social-democrático para o socialismo –eramfrequentementeexpressadasemtermosdediferentesinterpretaçõesdadinâmicadelongoprazodocapitalismo.Hoje emdia, a postura política doPartidoComunista Francês está refletida na teoria datransiçãoparaocapitalismomonopolistadeEstado,eataquesàquelateoriaporpartedeautorescomoMagalinerefletemaposturapolíticabemdiferentedeoutrasforçasdaesquerda.Estratégiasdealiançade classe, de “compromisso histórico”, de “eurocomunismo”, são tambémdebatidas contra o pano defundodealgumateoriadocaminhoevolucionárioemlongoprazodocapitalismo.Porisso,abuscaporuma interpretação “correta” da teoria deMarx não é um exercício acadêmico vazio, mas uma tarefapoliticamentesensívelquedeveserrealizadacomtodoorigorquepudermosdispor.

O próprio Marx é enfurecidamente ambivalente. Como consequência disso, seus escritos foramsujeitos a interpretações amplamente divergentes[2]. A ambivalência permanece mesmo quando eleparecedescartar algumaspossibilidades.Porexemplo, eledeclaracomfirmezaque“a superproduçãonãoprovocaumaquedaconstantenolucro,masasuperproduçãoperiódicaocorreconstantemente[…]seguidaporperíodosdesubprodução”,eque“quandoAdamSmithexplicaodecréscimonataxadelucrodevidoaumasuperabundânciadecapital […]eleestásereferindoaumefeitopermanentee issoestá

Page 192: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

errado. […]A superabundância transitória do capital, a superprodução e as crises são algodiferente.Crisespermanentesnãoexistem”[3].Masodeclínioseculardelongoprazoaindaépossível–talvezatéculminando na catástrofe final que alguns marxistas preveem – mediante o escopo ampliado e aintensidadeaprofundadadessascrisesperiódicas.EacertaalturaMarxpareceindicarqueocapitalismorealmenteencaraessedestino[4].

Tudoo que podemos dizer comabsoluta certeza é queMarx encarava a sua exposição da lei doslucrosdecrescentescomoumadeclaraçãodo“primeirorecorte”dasuateoriadaformaçãodecrisenocapitalismo.Chamode“primeirorecorte”porque,comovimosnocapítuloanterior,oseufracassoemintegrar todos os insights dos dois primeiros livros d’O capital impede uma declaração plena dascontradições internasdocapitalismono terceiro livro.Mas tambémachamosque,aoescrever sobreaformaçãodacrise,Marxéobrigadoaprosseguirdemaneirasdesconcertantes a suaprópria análise–invocando aspectos da teoria que ainda estãomuito incipientes. E assim somos deixados commuitosassuntos inacabados. Uma inspeção dessas breves seções em que Marx considera explicitamente oaspecto e a forma das crises produz uma lista de questões invocadas que ainda estão por serconsideradas:(1)omododeprodução,circulaçãoenegociaçãopeculiardocapitalfixoeasdificuldadesquesurgem

dediferentesmomentosdecirculação;(2) o processo de mudança organizacional e estrutural que afeta o grau de centralização e

descentralizaçãodocapital;(3)opapeldosistemadecrédito,dosjurosacumuladosedocapitalmonetário(todososquaisrequerem

queosaspectosmonetáriosdacirculaçãodocapitalsejamanalisados);(4)asintervençõesdoEstadonacirculaçãodocapital;(5)osaspectosfísicosdacirculaçãodemercadorias(omovimentodasmercadoriasnoespaço),como

comércioexterior,aformaçãodo“mercadomundial”etodaaestruturageográficadocapitalismo;(6) as configurações complexasdas relaçõesde classe tantodentroquanto entre as formações sociais

(porexemplo,distinçõesfaccionáriasdentrodaclassecapitalistaedistinçõesdentrodoproletariadobaseadasemdiferentesvaloresnacionaisdaforçadetrabalho).

Essalistanãoesgotaosmuitosaspectosquedevemserincluídosemqualquerversãofinaldateoriada crise. Deslocamentos na esfera da reprodução social – a reprodução da força de trabalho, daideologiaburguesa,nos aparatospolíticos emilitaresdestinadosagarantiro controle etc.– tudo issorequerconsideração.MasMarxevidentementeencaraascontradiçõesinerentesnaproduçãoenatrocademercadoriascomofundamentaisparaseentenderaformaçãodacrisenocapitalismo.Nessesentido,ateoriado“primeirorecorte”dacriseémaisqueapenasumaprimeiraaproximação.Elarevela,emvezdisso, as justificativas básicas para a evidente instabilidade do capitalismo como um modo deorganizaçãoeconômicaesocial.

Aestruturadasrelaçõesdeclasseimplícitanessateoriado“primeirorecorte”daformaçãodacrisenão é difícil de esquematizar. No primeiro livro d’O capital vemos que a acumulação “reproduz arelaçãocapitalistaemescalaampliada–deumlado,maiscapitalistas,oucapitalistasmaiores;deoutro,maisassalariados”.Tambémvemosqueodesemprego,umexército industrialde reserva,énecessáriopara a acumulação, e isso se traduz em uma crise endêmica para uma proporção flutuante da classetrabalhadora.Nosegundo livrod’Ocapitalvemosascondiçõesquepermitemqueatos individuaisdecirculaçãosejamunidosemumprocessode“circulaçãoentregrandesclasseseconômicasdasociedade

Page 193: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

funcionalmente determinadas” que permite a reprodução tanto da classe capitalista quanto da classetrabalhadora.Ascontradiçõessãoapresentadasnoterceirolivro.Elassãoexpressascomoumcolapsodestruidordosprocessosdereproduçãosocialdasduasgrandesclassessociaiseassumemaformade“umexcessodecapitalsimultaneamentecomumacrescentepopulaçãoexcedente”.Epodemosverque“uma pletora de capital surge das mesmas causas que aquelas que trazem à tona a superpopulaçãorelativa”,queenvolveacondiçãopeculiarmenteirracionaldo“capitalnãoempregadoemumpoloeumapopulaçãodetrabalhadoresdesempregadosnooutro”[5].

A crise evidentemente atinge tanto o capital quanto o trabalho, assim como a própria base dareproduçãodasrelaçõesdeclasse.Umentendimentotécnicodomodusoperandidateoriado“primeirorecorte”daformaçãodacrisedeMarxtemdeserexplicado,porisso,contraessepanodefundodacrisenareproduçãodasrelaçõesdeclasse.

I.ASUPERACUMULAÇÃOEADESVALORIZAÇÃODOCAPITALO argumento da taxa decrescente de lucro de Marx não demonstra convincentemente que a paixãonecessária dos capitalistas pela mudança tecnológica produtora de mais-valor, quando associada aoimperativo social da “acumulação pela acumulação”, produz um excedente de capital com relação àsoportunidadesdeempregá-lo.Talestadodesuperproduçãodocapitaléchamadode“superacumulaçãodocapital”.

Paraaquantidadedecapitalemcirculaçãosermantidaemequilíbriocomacapacidadelimitadaparanegociaressecapitalpormeiodaproduçãoedatroca–umacondiçãoexigidapelaestabilizaçãodataxadelucro–umapartedocapitaltotaldevesereliminada.Paraoequilíbrioserrestabelecido,atendênciaà superacumulação deve ser contrabalançada pelos processos que eliminam da circulação o capitalexcedente.Essesprocessospodemserexaminadossobotítulode“adesvalorizaçãodocapital”.

Àprimeiravista,oconceitode“desvalorização”pareceumpoucoestranho,senãoabsurdo.Afinal,ocapitalfoi inicialmentedefinidocomo“ovaloremmovimento”e,portanto,estamosaquifalando,naverdade,da“desvalorizaçãodovalor”,oquesoacomoumacontradição[6].OobjetivodoargumentodeMarxécederàcontradição,masinsistirqueelaestánomododeproduçãocapitalista,emvezdeestarnos termos per se. Os últimos são simplesmente destinados a refletir as contradições inerentes naprodução e na troca capitalistas. Todos eles estimulam reflexões fundamentais sobre a natureza dopróprioconceitodevalor.

Nocapítulo1observamosqueMarxpartiudaconcepçãodevalordeRicardo–tempodetrabalhoincorporado – apenas para inserir a expressão qualificadora, “socialmente necessário”, na definição.Entãoargumenteiqueéa invocaçãoda“necessidadesocial”queproporcionaaMarxaalavancaparamoldar uma crítica da economia política e um relato das leis contraditórias do movimento docapitalismo.Porisso,oconceitodevalorcomotempodetrabalhoincorporadonãodeveserconstruídocomoumblocoimutávelsobreoqualpodeserassentadaumaanálisedascontradiçõesdocapitalismo,mascomoumconceitoquesofremodificaçõesperpétuasemseusignificado,quantomaiscaptamosquaissãoascaracterísticassocialmentenecessáriasdocapitalismo.Ese,comoMarxmostranoterceirolivro,ocapitalismoénecessariamenterepletodecontradições,entãooconceitodevalordevenecessariamenterefletir esse fato. Em outras palavras, o “valor” não é umamétrica fixada para descrever ummundo

Page 194: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

instável, mas uma medida instável, incerta e ambivalente que reflete as contradições inerentes docapitalismo.

Marx nos alerta para essa possibilidade no início d’Ocapital [7], quando observa que o trabalhoincorporado não preenche um desejo ou uma necessidade social, que não é um valor de uso, que étrabalho desperdiçado e, por isso, não é valor. O problema que essa noção coloca é daí em diantemantidoemsuspenso,nasuposiçãodequetodasasmercadoriassãonegociadasemseusvaloresouemseuspreçosdeprodução(queaindasãomedidosemvalores).Entretanto,umaanálisedascontradiçõesinternas do capitalismomostra uma tendência eterna para produzir “não valores”, para desperdiçar aforçade trabalhoquernãoaempregandoquerautilizandopara incorporaro trabalhoemmercadoriasquenãopodemsatisfazerdesejosenecessidadessociaisqueestãoestruturadosnasrelaçõessociaisdocapitalismo. Lembre-se de que o valor não é um atributo universal de todo trabalho humano em todaparte.Eleestáligadoespecificamenteàproduçãoeàtrocacapitalistaseagoradeveservistoincluindooseu oposto, a não produção dos valores e a produção de não valores. É isso que a desvalorizaçãoenvolve.

É interessante notar que já introduzimos o aparato conceitual para permitir essamodificação. Nocapítulo 3 mostramos como e por que Marx considerava a desvalorização como um “momentonecessário” na circulação do valor. O capital, no curso de sua circulação, sofre uma série de“metamorfoses”dodinheiroparamercadoriasmateriais,daíparaosprocessosdeprodução,depoisparamercadoriasetc.Comoocapitalévaloremmovimento,ovalorsópodepermanecervalorcontinuandoemmovimento. Isso permite queMarx apresente uma definição puramente técnica da desvalorizaçãocomovalorqueestá“emrepouso”,emqualquerestadoparticular,pormaisdeummomento.Umestoquedasmercadoriasqueaindanãoestãosendousadasouaindanãoforamvendidas,umareservadedinheiroetc., podem todos ser agrupados sob o título de “capital desvalorizado”, porque o valor não está emmovimento.Essadesvalorizaçãonecessária,inerentenacirculaçãodoprópriocapital,éautomaticamentesuspensaquandoovalorreiniciaseumovimento,realizandoa“metamorfose”deumestadoparaoutro.Nenhumefeitoruimpermanentederivadadesvalorização,contantoqueocapitalconsigacompletarsuacirculaçãoportodasasfasesdentrodeumdeterminadoperíodo.Dessepontodevistatécnicopodemosperceber que o conceito de “tempo de circulação socialmente necessário” está inserido na noção doprópriovalor, e queovalor podenão ter significado independentedas “necessárias desvalorizações”envolvidasnacirculaçãodocapitalduranteosdiferentesestados.

OpropósitodaargumentaçãodeMarx,quenaverdadetornaadesvalorizaçãopartedoprópriovalor,éfugirdasidentidadesassumidaspelaLeideSay,paramostrarqueaofertanãocrianecessariamentesuaprópriademandaequeapotencialidadeparacrisessempreseescondenanecessidadedeeternamentesuperarosvários “momentos”ou “fases”na circulaçãodo capital no tempoeno espaço[8].Namaiorparted’Ocapital,Marxsesatisfazeminvocarapossibilidadeeapenasapossibilidadedecrises.Mas,quandoapresentasuateoriado“primeirorecorte”dacrise,oconceitodadesvalorizaçãovemàtonaparaajudar a compreender os efeitos daninhos e permanentes das contraditórias leis do movimento docapitalismo.Adesvalorizaçãoéaparteinferiordasuperacumulação.

Estamosagoraemumaposiçãodenosinspirarmosnosinsightsgeradosporaquelesquedevemterparecidoargumentosabstratoseminuciososadiantadosnocapítulo3.Asuperacumulaçãodocapitalemgeralpodeserimediatamentetraduzidaemmanifestaçõesparticularesdecapitalexcessivo“levantado”emtodososestadosqueeleassumenodecorrerdacirculação.Assim,podemoster:(1) uma superprodução de mercadorias – uma abundância de mercadorias materiais no mercado

Page 195: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

expressada como um excesso de estoques além daquele normalmente requerido para realizar acirculaçãotranquiladocapital;

(2) inventáriosexcedentesde insumosdecapitalconstanteemercadoriasparcialmenteacabadas,alémdaquelesrequeridosparaacirculaçãonormaldocapital;

(3)capitalociosodentrodoprocessodeprodução–particularmenteocapital fixoquenãoestásendousadoemsuaplenacapacidade;

(4) capital monetário excedente e saldos de caixa ociosos além das reservas monetárias normaisrequeridas;

(5)excedentesdaforçadetrabalho–osubempregonaprodução,umaexpansãodoexércitoindustrialdereservaalémdaquelanormalmente requeridaparaaacumulação,uma taxadeexploraçãocrescentequecriapelomenosumadesvalorizaçãotemporáriadaforçadetrabalho;

(6)taxasderendimentodocapitalinvestidoexpressadascomotaxasdejurosreaisdecrescentes,taxasdelucrosobreocapitalindustrialemercantil,aluguéisdeclinantesetc.

Essalistaresumeas“formasdeaparência”dasuperacumulaçãoevincula todaselasàcontradiçãobásicafundamentalentreaevoluçãodasforçasprodutivaseabarreiracolocadapelasrelaçõessociaisdocapitalismo.IssopermiteaMarxexporoerroteóriconavisãoricardianadequepoderiahaverumexcesso de capital, mas, em geral, não de superprodução de mercadorias[9]. Marx achava totalmenteabsurdoadmitir “aexistênciae anecessidadedeum fenômenoparticularqueéchamadodeA,masonegaassimqueeleéchamadodeB”[10].

Aanálisetambémnosajudaalidarcomacontrovérsiaeternamenteestrondosaemuitoequivocadanos círculos marxistas sobre se as crises devem ser construídas como surgidas do “subconsumo” (aincapacidadedasmassasdepagarasimensasquantidadesdemercadoriasqueoscapitalistasproduzem)ou de uma tendência para uma taxa decrescente de lucro[11]. No mundo das aparências, as taxasdecrescentes de lucro e uma abundância de mercadorias são representações superficiais do mesmoproblemabásico.Concebidateoricamente,atendênciaparaasrevoluçõeseternasnasforçasprodutivas,como estão expressas na crescente composição de valor do capital, só se torna a base para oentendimento da formação da crise quando é colocada em oposição às relações “antagonistas” dedistribuiçãoeproduçãonasquaisocapitalismosebaseia.Ofundamentaléaoposiçãoentreasforçasprodutivaseasrelaçõessociais,e,portanto,nãopodemosatribuirprioridadeaumououtrolado.

Alémdisso, a análise sugerequea tendênciapara a superacumulaçãocertamente será expressanahistória capitalista por períodos e fases emque vamos testemunhar saturações nomercado, elevaçõesmaciças nos estoques, capacidade produtiva e capital monetário ociosos, desemprego e taxasdecrescentes de lucromonetário (após a distribuição). Podemos adquirir certa confiança na teoria do“primeirorecorte”dascrisesdeMarxatéopontoemqueahistóriacapitalistaencontra-semuitoregulareperiodicamentemarcadaporeventoscomoestes.A interpretação temdesercautelosa,porqueMarxdeixamuitacoisadeforaeaanálisedaformaçãodecriserealaindaestáporserrealizada.Omáximoquepodemosconcluirnestepontoéqueossinaissãomuitootimistas.

Seasuperacumulaçãoassumenessasuperfícieformasdeaparência,entãopodemosesperarqueasuanêmese – a desvalorização – ocorra nas mesmas maneiras tangíveis. O capital mantido na formamonetária pode ser desvalorizado pela inflação; a força de trabalho pode ser desvalorizada pelodesemprego e por salários reais diminuídos para o trabalhador; as mercadorias mantidas na formaacabadaouparcialmenteacabadapodemservendidascomperda;ovalor incorporadonocapital fixo

Page 196: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

podeserperdidoenquantopermaneceocioso.Asmecânicassãodiferentesemcadacaso,eosimpactosvariarãodeacordocomotipodedesvalorizaçãoaoqualestamosnosreferindo.Aindanãoestamosemumaposiçãocapazdetornarexplícitostodososaspectosdesseprocesso–aindatemosdeimplementar,por exemplo, estruturas para considerar a inflação, a formação e o uso do capital fixo. No entanto,podemosapresentaralgumasanálisesmaisdetalhadasdosprocessosdedesvalorizaçãodadooaparatoconceitualquetemosàmão.Esseseráotemadorestantedestecapítulo.

II.A“DESVALORIZAÇÃOCONSTANTE”DOCAPITALQUERESULTADAPRODUTIVIDADECRESCENTEDAMÃODEOBRAMarxdeclaraquehácaracterísticasnalógicainternadocapitalismoqueatrasamataxadecrescentedelucro “não pormeio de crises; é o caso, por exemplo, da desvalorização constante de uma parte docapitalexistente”[12].

OqueMarxtememmenteaquiébastantesimples,emsuaessência.Comoovalordeumamercadoriaéestabelecido, emprimeira instância,pelo tempode trabalho socialmentenecessárioparaproduzi-lo,entãoessevalorcaicomaprodutividadecrescentedaforçadetrabalho.Omesmoprincípiosemantématéquandoapelamosparaospreçosdeprodução(ataxademudançadifereentreossetorese,emalgunscasos,podesubiremvezdediminuir).Porisso,aprodutividadecrescentedotrabalhonocapitalismoégeralmenteacompanhadapelaquedadosvaloresunitáriosdasmercadorias[13],contantoquetudoomaispermaneçaconstante.Ovalordeumamesmamercadoriapodesealterardeummomentoparaooutro.Naesfera da troca, esse fato se expressa como a diferença entre o preço de compra original e o custosubsequentequeosubstituiemtermosreais.

Essa lacuna dá origem às potenciais apreciação e depreciação dos valores de troca dasmercadorias[14]. Em certas circunstâncias, a depreciação pode ser entendida como uma forma dedesvalorização. Quando a produtividade do trabalho está aumentando rapidamente, por exemplo, osvaloresunitáriosdasmercadoriascaemdepressaparaqueovalorincorporadoeminventáriosdocapitalconstante, deprodutosparcialmente acabadosouacabados edemercadoriasnomercadoesteja sendoperpetuamentereavaliadoemrelaçãoàprodutividaderecém-atingidadaforçadetrabalho.Emcondiçõesnormais, a depreciação pode ter apenas um impacto marginal nas mercadorias que são produzidas eusadas dentro de um períodomuito curto. Porém, os processos de produção que requerem um longoperíodo de trabalho, grandes inventários de reserva de capital constante ou grandes quantidades decapitalfixo,sãomuitomaissensíveis.Asmercadoriasquenecessariamentepermanecemmuitotemponomercado,ousópodemserconsumidaslentamente,sãotambémafetadas–habitação,serviçospúblicos,redesdetransporteetc.

Asincessantes“revoluçõesnovalor”promovidaspelabuscaeternapormais-valorrelativosempreameaçamovalordequalquertrabalhopassadoemortoqueaindanãotenhasidonegociadomedianteaproduçãoouoconsumofinal.Emboraessadificuldadesejasentidaemalgumgrauemtodaparte,édemuito maior importância social em algumas esferas do que em outras. O capitalista individualprovavelmentepercebeissomaisdiretamentequandoaintroduçãodeumcapitalfixomaisbaratoemaiseficiente realmente reduz o valor dasmáquinas que ele está empregando. Há uma forte pressão paraevitaressesefeitosnegativosusandoocapitalfixoomaisrápidopossível,oquesignificaintensificaro

Page 197: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

processodetrabalho,partirparaumsistemadeturnosetc.[15]Asociedadecomoumtodoprovavelmentepercebeoproblemamaisenfaticamentequandohárevoluçõesnovalordamercadoriamonetáriabásica(ouro) ou quando há inflação no valor atribuído ao papel-moeda – este último como a forma socialassumida pela desvalorização nos tempos modernos par excellence. Ambas são questões queabordaremosemcapítulosposteriores,poisaindanãodesenvolvemosabasetécnicaparadiscuti-las.

Aqui, no entanto, podemosdar algumaconsideração à relaçãoda superacumulação/desvalorizaçãocom a centralização do capital.Marx está aflito para enfatizar que uma taxa decrescente de lucro éacompanhadaporumamassacrescentedelucro,ecomissoelequerdizerqueascrisestendemaresultarnãodedeclíniosabsolutosnaproduçãodemais-valor,masdevidoaofatodequeamassadomais-valorproduzidanãoconsegueacompanharaexpansãodaquantidadedecapitalqueprocuracapturá-la.Searedução da quantidade total de capital é tudo o que é necessário para trazer o sistema de volta aoequilíbrio,entãoacentralizaçãodocapital–queenvolvea“expropriaçãoprogressivadosprodutoresmaisoumenosdiretos”[16]–podeservistacomoumdosmeiosdisponíveispararealizaressatarefa.Ocontroledospequenoscapitalistasporpartedosgrandescapitalistasprivaosprimeirosdoseucapitalatravésdeum tipodeexpropriaçãoque,naverdade,desvalorizao seucapital–paraavantagemdosgrandes capitalistas. Os últimos podem absorver os bens materiais e financeiros dos pequenoscapitalistasporumvalorreduzido.Amesmamassadelucroéentãodivididaentreumnúmeromenordecapitalistas que conseguiram diminuir a quantidade total de capital em circulação sem, de maneiraalguma,prejudicarsuasprópriasatividades.Naverdade,patrocinaramoscustosdedesvalorizaçãodospequenos capitalistas que foram expropriados. Na medida em que a centralização está sempreacontecendonocapitalismo,elaconstituiumdosmeiosparaseatingirumaconstantedesvalorizaçãodeuma parte do capital existente. Apoiados nisso, esperaríamos que crises periódicas fossemacompanhadasporfortesfasesdecentralização[17].

Quando Marx sugere que um aumento no “capital social” pode ajudar a impulsionar a taxadecrescentedelucro,estásereferindoaumaformadedesvalorizaçãobemdiferentedaquelarealizadacom auxílio da centralização. Se uma parte do capital na sociedade circula de tal maneira quereivindiqueapenasumaporçãodomais-valorqueelaajudaaproduzir,entãoéliberadoummais-valorquepodeserdistribuídoentreoscapitalistasremanescentesparaestabilizarataxadelucro.Marxcitaoexemplodas ferrovias,quepodemserproduzidaseoperadascomcustomais jurospagosnaformadedividendos[18].Oexemploéinstrutivo.Elesugerequeumapartedocapitalfixosocialmenterequeridopode ser emprestado a juros aos usuários, de forma física oumonetária.Adisseminaçãoda formadeorganização de sociedades anônimas e o advento do “capitalismo financeiro” (que pode desenvolverpráticas como o arrendamento de equipamentos financiados por bancos etc.) podem então serinterpretados como um ajuste organizacional e estrutural que compensa a superacumulação, pois umapartedocapitalsocialtotalagoracirculaparacaptarjurosemvezdereivindicartodaaparcelademais-valor que produz. O capital que circula dessamaneira é relativamente desvalorizado porque recebemenosdoqueataxamédiadelucro.Porisso,atendênciaparaasuperacumulaçãopodesercompensadapelos ajustes organizacionais que aumentam a quantidade de capital relativamente desvalorizado emcirculação.Adificuldadecomessaideiaé,evidentemente,ofatodeMarxserobrigadoainvocarfatosdadistribuiçãonopontodeseuargumentoemqueaindanãolançouasbasesparaconsiderarataxadejurosouos impactosdas formas financeirasdecapitalismosobreas tendênciasna taxade lucro.Masesta,comojáobservamos,éumaáreageraldefraquezanateoriamarxianaquerequerretificação.

Esseargumentopodeserlevadoumpassoadiante.Boccara[19],porexemplo,apontaquepodehaver

Page 198: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

umadesvalorizaçãoabsolutadocapitalcasoestecontinueacircularaumataxadelucrozero.IssopodeacontecerquandooEstadointervémparaorganizaralgunssetores(porexemplo,serviçospúblicosedetransportes), de modo a contribuir para a produção agregada de mais-valor enquanto não reivindicanenhumaporçãodomais-valorproduzido.Assim,oEstadopodesubsidiarosetorprivadoeaumentarartificialmente a taxa de lucro que os capitalistas individuais recebem. Esta, declara Boccara, é umafunçãoimportantedoEstadonoestágiode“monopólioestatal”docapitalismo.

Na verdade, Boccara vê os princípios análogos da superacumulação e da desvalorização como achave para entender as transformações estruturais que o capitalismo experimentou no decorrer da suahistória. Ele sugere que a única resposta viável de longo prazo para a superacumulação é realizar“desvalorizações estruturais” que permitam que a tendência para uma taxa decrescente de lucro sejacontraposta pelamanutenção de cada vezmais capital em circulação, tanto nos estados relativamentedesvalorizados quanto nos absolutamente desvalorizados. As sucessivas transições das finançascompetitivas para as finanças monopolistas e, então, finalmente, para o capitalismo monopolista deEstado,devemser interpretadascomoreorganizaçõessociaisdocapitalismoquepermitemtal soluçãoestruturalpermanenteparaascontradiçõesinternasdocapitalismo.

O argumento de Boccara é uma versão especial da teoria de Marx. Não é implausível, não édesprovido de evidências de apoio e, em alguns aspectos, é muito atrativo. Entretanto, os críticosdeclaram que se trata de uma simplificação grosseira e seriamente capciosa[20]. Concentra-seprincipalmentenamaneiraemqueoscapitalistascompartilhamomais-valor,emvezdenosprocessossujeitos a crises da produção de mais-valor agregado. Toma um aspecto parcial da tese dasuperacumulação e da desvalorização de Marx e o transforma em uma estrutura monolítica parainterpretarateoriacapitalista.E,pior,sevaledosprocessosdaconstantedesvalorizaçãodocapitaleostratacomoresoluçãogeralparaa tendênciacrônicaparaasuperacumulação,distorcendoseriamenteaversãodeMarxdecomosedesenvolveacrisecapitalista.Ascríticassão,nessesaspectos,amplamentejustificadas.Mas,nãoobstante,aconstantedesvalorizaçãodocapitaléumprocessobastanterealcomefeitosmateriais tangíveissobreasuperacumulação.AanálisedeBoccaraéútilnesseaspecto.Nãoéumabaseapropriadaparaainterpretaçãodahistóriacapitalistaoudaformaçãoeresoluçãodecrisesnocapitalismo.

Finalmente, temos de considerar a desvalorização da força de trabalho. A teoria do mais-valorrelativomostraque“éimanentenocapitalumainclinaçãoeumaconstantetendênciaaaumentaraforçaprodutiva do trabalho para baratear amercadoria e, com ela, o próprio trabalhador”[21]. Além disso,Marx,observandoque“essedesenvolvimentodaforçaprodutivaé,aomesmotempo,acompanhadodeuma depreciação parcial dos capitais em funcionamento”, também indica que, “conforme essadepreciaçãosetornamaisaguda,emrazãodaconcorrência,opesoprincipalrecaisobreotrabalhador,comcujaexploraçãoaumentadaocapitalistaprocuraseressarcir”[22].EMarxnãovaiadiantesevalendodaideiada“desvalorização”,emumsentidomoral,paraigualarosprocessosqueconduzemaumvalordeclinantedaforçadetrabalhoaosprocessosquegeram“aacumulaçãoderiquezanumpolo,aomesmotempo [que existem] a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, abrutalização e a degradação moral no polo oposto”[23]. Embora essas polêmicas ameaçadoras sejamconstruídasemtornodomodelounilateraldaacumulaçãoapresentadonoprimeirolivrod’Ocapital,anecessidadeestruturaldeumexércitoindustrialdereservaparaodesempregotecnologicamenteinduzidonão pode ser considerada outra coisa senão uma exigência para manter “desvalorizada” a força detrabalhoàmãoparaalimentarofogodaacumulaçãofutura.

Page 199: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

III.ADESVALORIZAÇÃODURANTEASCRISESAsimagensamenasda“depreciação”dãolugaràsimagensmaisdramáticaseviolentasda“destruição”quando se trata de descrever as desvalorizações que ocorrem no desenvolvimento das crises. Nomomento da crise, todas as contradições inerentes aomodo de produção capitalista são expressas naforma de violentos paroxismos que impõem “soluções momentâneas e poderosas” e “durante algumtemporestauramoequilíbrioperturbado”[24].Asuperacumulaçãoécontrapostapelaretiradaeatépeladestruiçãoparcialdocapital[25].Adestruiçãopodeafetarosvaloresdeusoouosvaloresdetroca,ouambosconjuntamente:

Namedidaemqueoprocessodereproduçãoécontidoeoprocessodotrabalhoérestringidoou,emalgunscasos,completamentedetido,ocapitalreal(produtivo)édestruído.Omaquinárioquenãoéutilizadonãoécapital.Amãodeobraquenãoéexploradaéequivalenteàproduçãoperdida.Amatéria-primaquepermaneceinutilizadanãoécapital.Asinstalações(tambémasmáquinasrecém-fabricadas)quenãosãousadasoupermaneceminacabadas,asmercadoriasqueapodrecemnosarmazéns– tudo issoédestruiçãodocapital […].Osmeiosdeproduçãoexistentesnãosãorealmenteusadoscomomeiosdeprodução,nãosãocolocadosemoperação.Assim,oseuvalordeusoeoseuvalordetrocasãodestruídos.Emsegundo lugar,noentanto,adestruiçãodocapitalduranteascrisessignificaadepreciaçãodosvalores […].Umapartegrandedocapital nominal da sociedade, isto é, do valor de troca do capital existente, é de uma vez por todas destruída, embora essa própriadestruição,comonãoafetaovalordeuso,possamuitobemexpressaranovareprodução.[26]

Adestruiçãodovalorde troca,paralelamenteàpreservaçãodosvaloresdeuso,éparticularmenteimportanteemsetoresquesebaseiamnocapitalfixo.Emcondiçõesdecrise,ovalordeusodocapitalfixo pode com frequência ser adquirido por quase nada, o que significa que o valor de troca que oscapitalistas têm para adquirir o capital constante fixo de seus concorrentes arruinados caidramaticamente, assim como a composição de valor do capital. Marx também observa que talcircunstânciaédeparticularimportância,poisafetaaintroduçãodasinovações–“ospioneirosemgeralvãoàfalência,esóaquelesquemaistardecompramasinstalações,asmáquinasetc.,aumpreçobaixo,ganhamdinheirocomisso”[27].

Marxéaindamaisexplícitocomrespeitoàdestruiçãodosvaloresn’Ocapitale,seexaminarmosdepertoseuscomentários,poderemosveramaioriadas formasdasuperacumulaçãoedadesvalorizaçãoquejálistamosemrelaçãoumaàoutra:

Oprincipaldano, e aqueledenaturezamais aguda,ocorreria com respeito […]aosvalores dos capitais.Essaporçãodovalordeumcapitalqueexisteapenas[…]sobaformadenotaspromissóriassobreaproduçãoemváriasformas,é imediatamentedepreciadapelareduçãodasreceitasemqueelaécalculada.Umapartedoouroedapratanãoestáemuso,ouseja,nãofuncionacomocapital.Partedas mercadorias que estão no mercado podem completar seus processos de circulação e reprodução apenas mediante uma imensacontração dos seus preços e, portanto,mediante uma depreciação do capital que eles representam.Os elementos do capital fixo sãodepreciadosemmaioroumenorextensão,exatamentedamesmamaneira[…].Oprocessodareprodução[…]édetidoe lançadoemconfusãoporumaquedageralnospreços.Essaconfusãoeestagnaçãoparalisamafunçãododinheirocomoummeiodepagamento[…].Acadeiadeobrigaçõesdepagamentodevidasemdatasespecíficasérompidaemumacentenadelugares.Aconfusãoéaumentadapelocolapso concomitante do sistema de crédito, que [conduz a] depreciações repentinas e violentas, até a verdadeira estagnação e àdestruiçãodoprocessodereproduçãoe,assim,aumaquedanareprodução.[28]

Aconsequênciadissoéqueareproduçãodasrelaçõesdeclasseécolocadaemrisco.Emergeentãoumasériedeconflitossociaisque,pelomenosemseuscontornosmaisamplos,refletemascontradiçõesfundamentais nas quais opera o capitalismo. Por exemplo, o antagonismo latente entre os capitalistas

Page 200: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

individuais,atuandoemseuproveitopróprio,eosinteressesdeclassedocapitalvêmàtona:

Enquanto as coisas vão bem, a competição provoca uma fraternidade operante da classe capitalista […] de forma que cada umcompartilhedosaquecomumemproporçãoaotamanhodoseurespectivoinvestimento.Entretanto,nomomentoemquenãosetratamaisde uma questão de compartilhamento dos lucros,mas de compartilhamento das perdas, cada um tenta reduzir sua própria parte a ummínimoeatirá-laparaooutro.Aclassecomo taldeve inevitavelmenteperder.Atéquepontoocapitalista individualdevearcarcomaperda […] é decidido pela força e pela astúcia, e a competição se torna então uma luta entre irmãos hostis.O antagonismo entre osinteressesdecadacapitalistaindividualeaquelesdaclassecapitalistacomoumtodovementãoàtona.[29]

A luta em relação a quemdeve suportar o ônus da carga da desvalorização, da depreciação e dadestruiçãodocapitalprovavelmenteseráamargaeintensa.Orompimentodosvínculosfraternaisdentroda classe capitalista tem suas reverberações com respeito às parcelas distributivas quando osproprietáriosde terra, os financistas, os capitalistas industriais emercantis, e os interessesdoEstadocompetem para preservar suas respectivas parcelas de mais-valor. Mas o que acontece aqui não ésimplesmenteumreflexodopoderfaccional.Aexistênciadocapitalexcedentenaformadedinheiro–que,lembre-se,é“aformamaisadequadadecapital”–significaque,invariavelmente,“ointeressedocapitalmonetárioéseenriqueceràcustadocapitalindustrialduranteacrise”[30].Aprópriaestruturaeamaneiracomqueascrisesocorremditamalgunsefeitosdistributivosdistintos.

Eomesmoacontecenarelaçãoentreocapitaleotrabalho.Tirandoostrabalhadoresdotrabalho,oscapitalistasnaverdadedescartamocapitalvariávele,dessemodo,transformamoproblemaendêmicodacriseparaoexércitoindustrialdereservaemumacondiçãodedesajustecrônicoecolapsosocial.Ostrabalhadoressuficientementeafortunadosparapreservarseusempregosquasecertamentesofrerãoumadiminuiçãonossaláriosquerecebem,oquesignificapelomenosumadepreciaçãotemporárianovalordaforçadetrabalhoquepode,nascircunstânciascertas,sertraduzidaemumareduçãopermanentenessevalor.Acompetiçãoentreostrabalhosseráexacerbada,assimcomooantagonismogeralentreotrabalhoeocapital.

Entretanto, as perdas são distribuídas e, qualquer que seja a luta de poder que as acompanhe, aexigênciageralpararetornarosistemaaalgumtipodepontodeequilíbrioéadestruiçãodovalordecertaporçãodocapitalemcirculaçãodemodoaequilibrarocapitalcirculantetotalcomacapacidadepotencialparaproduzirerealizarmais-valornasrelaçõesdeproduçãocapitalistas.Umavezrealizadaanecessária desvalorização, a superacumulação é eliminada e a acumulação pode renovar o seu curso,comfrequênciaemumanovabasesocialetecnológica.Eassimociclovaipercorrermaisumavezoseudestino[31].Maspermaneceoparadoxofundamental:

omáximo desenvolvimento da força produtiva e amáxima expansão da riqueza existente coincidirão com a depreciação do capital, adegradaçãodotrabalhadoreomaisestritoesgotamentodesuascapacidadesvitais.Essascontradiçõeslevamaexplosões,cataclismos,crises,nasquais,pelasuspensãomomentâneadotrabalhoeadestruiçãodegrandepartedocapital,esteúltimoéviolentamentereduzidoatéopontoemquepodeseguirempregandoplenamentesuascapacidadesprodutivassemcometersuicídio.Contudo,essascatástrofesregularmenterecorrenteslevamàsuarepetiçãoemumaescalamaiselevadaefinalmenteàdestruiçãoviolentadocapital.[32]

Essa teoria do “primeiro recorte” da formação da crise no capitalismo é umamistura de insightagudo,exposiçãoconfusaejulgamentointuitivo,temperadoscomumapitadadaquelavisãomilenaraqueMarxerapropenso.Masorelato,emboraincompleto,édeumaforçairrefutável,pelomenosemtermosdasconsequênciassociaisdadesvalorizaçãodocapitalqueeledescreve.Podemoscomeçaravercomo,porqueesegundoquaisregrasoscapitalistasbrigamunscomosoutrosemtemposdecrises,comocada

Page 201: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

facçãobuscapoderpolíticocomoummeiodelançarosdanossobreosoutros.Epodemoscomeçaraveraverdadeiratragédiahumanadaclassetrabalhadoraresultantedadesvalorizaçãodocapitalvariável.

A lógica internaquegovernaas leisdomovimentodocapitalismoé fria, implacávele inexorável,respondendo apenas à lei do valor. Mas o valor é uma relação social, um produto de um processohistórico particular. Os seres humanos foram organizadores, criadores e participantes dessa história.Marxafirmaquenósconstruímosumavastaempresasocialquenosdomina,confinanossasliberdadese,fundamentalmente, lança sobre nós as piores formas de degradação. A irracionalidade desse sistematorna-semaisevidenteemmomentosdecrise:“Adestruiçãoviolentadecapital,nãoporcircunstânciasexternasaele,mascomocondiçãodesuaautoconservação,éaformamaiscontundenteemqueocapitaléaconselhadoaseretirarecederespaçoaumestadosuperiordeproduçãosocial”[33].

[1]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.242.

[2]AnwarShaikh,em“AnIntroductiontotheHistoryofCrisisTheories”,U.S.CapitalisminCrisis,NovaYork,UnionofRadicalPoliticalEconomists,1978,eErikOlinWright,emClass,CrisisandtheState,cit.,apresentamanálisesdediferentesinterpretaçõesdateoriadacrisedeMarx.

[3]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.468,497.

[4]Idem,Grundrisse,cit.,cap.2.

[5]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.245,251.

[6]Aquelesqueinterpretamateoriadovalormarxianacomoummerosistemacontábilpodemnãoversentidonaideiade“desvalorização”,eéperceptívelqueoconceitonuncaemergenasapresentaçõesdeMichioMorishima(Marx’sEconomics,cit.),MauriceDobb(Theories ofValueandDistributionsinceAdamSmith:IdeologyandEconomicTheory,cit.)oumesmoMeghnadDesai(MarxianEconomics, cit.).Os intérpretes burgueses têm uma grande dificuldade com isso. Assim, Ladislaus von Bortkiewicz, em “Value and Price in theMarxianSystem”,International Economic Papers, v. 2, 1952, atribui aMarx “o desejo perverso de projetar as contradições lógicas nos própriosobjetos, àmaneiradeHegel”.Deve-senotarqueMarx foi, naverdade,profundamente influenciadopelaLógica deHegel, e por isso nãodevemosnossurpreenderaodescobrirqueoconceitodevalorcontémsuapróprianegaçãonaformade“nãovalor”.Oqueé interessantecomrelaçãoàapresentaçãodeMarxédequeformaelesupera“omododeapresentaçãoidealista”característicodeHegeleproporcionaatodaaideiaumabasematerialista.Muitosimplesmente,podemosdizerqueseovalorforinterpretadocomotrabalhohumanoemseuaspectosocialnocapitalismo,entãoo“nãovalor”podeserinterpretadocomootrabalhohumanoqueperdeuseusignificadosocialdevidoaprocessosquesãotambémespecíficosdocapitalismo.

[7]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.113s.

[8]Seconcebemoso“valor”comotrabalhohumanoemseuaspectosocialexpressadoduranteacirculaçãocontínuadocapitalaolongodaproduçãoedatroca,entãoacríticadeMarxàLeideSay,queenfatizaa“separaçãodentrodaunidade”daproduçãoedoconsumo,significaqueoprópriovalordeve internalizaressaseparaçãocomo“nãovalor”.Dessamaneira,apossibilidadedecrisesedistúrbiosé internalizadadentrodanoçãodoprópriovalor.

[9]Ibidem,LivroIII,p.256.

[10]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.parte2,p.496-9.

[11]AsconfusõesestãodiscutidasemdetalhesporMichaelBleaney,UnderconsumptionTheories,cit.,AnwarShaikh,“AnIntroductiontotheHistoryofCrisisTheories”,cit.,eErikOlinWright,Class,CrisisandtheState,cit.

[12]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.628.

[13]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.226.

[14]Ibidem,p.311.

[15]Ibidem,p.113-4.

[16]Ibidem,p.219.

[17]LeslieHannah(TheRiseof theCorporateEconomy, cit., apêndice1)apresentaalgunsdados interessantes sobreacentralizaçãodocapitalmediantefusõesnaGrã-BretanhanoséculoXX,eMichelAglietta(ATheoryofCapitalistRegulation,Londres,NBL,1979)reúne

Page 202: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

materiaissimilarescomrelaçãoaosEstadosUnidos.

[18]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.240.

[19]PaulBoccara,Étudessurlecapitalismemonopolisted’État,sacriseetsonissue,cit.

[20] Bruno Théret eMichelWieviorka, emCritique de la théorie du capitalismemonopoliste d’État, cit., explicam detalhadamente ascríticas.Eu aceito amaior parte dos seus argumentos.Ver também JohnFairley, “FrenchDevelopments in theTheoryofStateMonopolyCapitalism”,cit.,v.44.

[21]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.p.394.

[22] Ibidem, p. 680. EmboraMarx use o termo “depreciação”, ele claramente quer indicar “desvalorização”, no sentido em que estamosusandoessetermo.

[23] Ibidem, p. 721.A.D.Magaline (Lutte de classe et dévalorisation du capital, cit.) apresenta de longe a discussãomais clara dasimplicaçõesdadesvalorizaçãodaforçadetrabalhoparaateoriamarxiana.

[24]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.249.

[25]Ibidem,LivroI,p.282.

[26]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.495-6.

[27]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.104.

[28]Ibidem,p.254-5.

[29]Ibidem,p.253.

[30]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.496.

[31]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.255.

[32]Idem,Grundrisse,cit.,p.628-9.

[33]Ibidem,p.627.

Page 203: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

8.Capitalfixo

A análise de Marx das contraditórias “leis de movimento” do capitalismo se baseia fortemente noentendimento das correntes de fluxo rápido e das perturbações profundas associadas à mudançatecnológica. Embora a concepção de tecnologia de Marx seja muito ampla, ele concede algumaprioridadeaosinstrumentosdetrabalho–àsmáquinasemparticular–comoimportantesarmasnalutapara preservar a acumulação do capital. Esses instrumentos de trabalho podem ser usados na lutacompetitiva pelo mais-valor relativo, para aumentar a produtividade física e de valor da força detrabalhoeparareduzirademandaportrabalho(dessemodo,pressionandoparabaixoastaxassalariaispor meio da formação de um exército industrial de reserva). Eles podem também ser usados paraempregaropoderdamãodeobra“morta”namãodeobraativanoprocessodetrabalho,comtodosostiposdeconsequênciasparao trabalhador(vercapítulo4,seçãoIV).Estassãoarmas terríveisqueoscapitalistaspodemusartãologoassumamocontroledosmeiosdeprodução.

Mas os instrumentos de trabalho capazes de produzir esses efeitos úteis têm primeiro de serproduzidos:

Anaturezanãoconstróimáquinasnemlocomotivas,ferrovias,telégrafoselétricos,máquinasdefiarautomáticasetc.Elassãoprodutosdaindústriahumana;materialnaturaltransformadoemórgãosdavontadehumanasobreanatureza[…].Elassãoórgãosdocérebrohumanocriadospelamãohumana;forçadosaberobjetivada.[1]

Essas forças de produção, associadas à habilidade e ao conhecimento que incorporam, devem serapropriadaspeloscapitalistas,moldadasàsexigênciasdosúltimosemobilizadascomouma“alavanca”paraaacumulação:

Odesenvolvimentodomeiodetrabalhoemmaquinarianãoécasual[…],maséareconfiguraçãodomeiodetrabalhotradicionalmenteherdadoemumaformaadequadaaocapital.Aacumulaçãodosaberedahabilidade[…]édessemodoabsorvidanocapitalemoposiçãoaotrabalho,eaparececonsequentementecomoqualidadedocapital,maisprecisamentedocapitalfixo.[2]

Noprimeiromomento,oscapitalistasassumemocontroledosinstrumentosdetrabalhomedianteumprocessohistóricoespecífico–aacumulaçãoprimitiva.Issoimplica,noentanto,quedeinício“ocapitalsubordinaotrabalhoconformeascondiçõestécnicasemquehistoricamenteoencontra”[3].Entretanto,à

Page 204: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

medidaqueo impulsoparaomais-valor relativo se tornacadavezmaispoderoso,o capitalistadevecriarmeiosparaproduzirinstrumentosdetrabalho“adequadosaoseupropósito”.Epodeproduzi-losdaúnicamaneiraqueeleconhece:pormeiodaproduçãodemercadorias.Quandoosváriosinstrumentosdetrabalho são produzidos como mercadorias, trocados como mercadorias, produtivamente consumidosdentro de um processo de trabalho consagrado à produção demais-valor e, no fim de sua vida útil,substituídospornovasmercadorias,elessetornam,noléxicodeMarx,capitalfixo.

Osmodelosdeacumulaçãoqueconsideramosnocapítulo6presumiamquetodaproduçãoeconsumoocorriamdentrodealgumperíododetempopadrão.Eleslidamcomosefeitosdamudançatecnológica,emborapresumindoqueo capital fixo, que é conduzidodeumperíodode tempoparao seguinte, nãoexiste!Devemos agora retificar essa omissão e considerar como a formação, o uso e a circulaçãodocapitalfixo(implícitosnaideiadamudançatecnológica)serelacionamcomaacumulação.

A definição de Marx de capital fixo é bem distinta – na verdade, muito diferente daquela doseconomistas clássicosouneoclássicos.Emprimeiro lugar, comoocapital édefinidocomo“valor emmovimento”,emconsequênciadissoocapitalfixodevetambémserassimencarado.Ocapitalfixonãoéuma coisa, mas um processo de circulação do capital através do uso de objetos materiais, como asmáquinas. Disso então também decorre que a circulação do capital fixo não pode ser consideradaautônomadosefeitosúteisespecíficosqueasmáquinaseoutrosinstrumentosdetrabalhotêmdentrodoprocessodeprodução.Ocapital fixonãopodeserdefinido independentementedousoqueédadoaosobjetosmateriais.Apenasosinstrumentosdetrabalhorealmenteutilizadosparafacilitaraproduçãodomais-valorsãoclassificadoscomocapitalfixo.

Váriasimplicaçõesderivamdessadefinição.Porexemplo,nemtodososinstrumentosdetrabalhosãocapital fixo– as ferramentasdo artesãonão sãousadasparaproduzirmais-valor e, por isso, não sãodefinidascomocapitalfixo.Ositensusadosnoconsumofinal,maisquenoprodutivo,comofacas,garfosecasas,nãosãocapitalfixo,masfazempartedoqueMarxchamade“bensdeconsumo”[4].Ocapitalfixoé,então,apenasaquelapartedariquezasocialtotal,doestoquetotaldebensmateriais,queéusadaparaproduzirmais-valor.Comoosmesmosobjetospodemserusadosdediferentesmaneiras,osobjetossãodefinidoscomocapital fixo, “nãopelo seumododeterminadode ser,maspor seuuso”[5]. Por isso, aquantidade total de capital fixo pode ser aumentada ou diminuída simplesmentemudando os usos dascoisasexistentes.Essaideiaésuficientementeimportanteparagarantirumexemplo.Doestoquetotaldegadodeumpaís,apenasaquelesanimaisusadoscomobestasdecarganaagriculturacapitalistapoderiamser considerados capital fixo. O capital fixo poderia ser aumentado simplesmente utilizando-se maisanimaiscomobestasdecarga.Oexemplotambémsugereoutracoisa:namedidaemqueogadopodeserusadosimultaneamentetantocomobestadecargaquantocomoprodutordeleiteoucarne,elepodeterdoisusos,masapenasumpodesercaracterizadocomocapital fixo.Marxcitaumexemplosimilardaestrada, que pode ser usada simultaneamente “tanto de meio de comunicação para a produçãopropriamenteditaquantoparapassear”[6].

AflexibilidadedadefiniçãoqueMarxfazdocapitalfixoemrelaçãoaousoédegrandeimportância,mastambémconstituiumriscodeinterpretação.Marxnosadvertequenãonosatrevemosaassumir“queesse valor de uso – a maquinaria em si – seja capital, ou que sua existência como maquinaria sejaidênticaàsuaexistênciacomocapital”[7].Assumiressaidentidadeseriaigualarovalordeusoaovalor,ecairnasmãosdaquelefetichismoquetransforma“ocarátersocialeeconômicoimpressonascoisasnoprocesso de produção em um caráter natural que se origina da naturezamaterial dessas coisas”[8]. Oponto-finaldessaconcepçãoequivocadaéaideiadequeasmáquinaspodemsetornarofatorativono

Page 205: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

processodetrabalho,emsicapazesdeproduzirvalor.Então,aoconsiderarmosocapitalfixoquetemos,devemossempreteremmentearelaçãoentreovalordeuso,ovalordetrocaeovalordeumobjetonocontextodaacumulaçãomedianteaproduçãodemais-valor.

Emprimeirolugar,ocapitalfixopodeserdistinguidodocapitalcirculantepelamaneiraemqueoseuvalor é transmitido ao produto final.Diferentemente do capital constante, que funciona comomatéria-prima,oselementosmateriaisquecompõemoinstrumentodetrabalhonãosãofisicamentereconstituídosnoprodutofinal.Ovalordeusodamáquinapermanece inferiordepoisqueoprocessodeproduçãoécompletado.Namedidaemqueamáquinasedesgasta,ocapitalfixoéinteiramenteconsumidodentrodoprocesso de produção e nunca retorna à esfera da circulação. Não obstante, o valor equivalente docapitalfixocircula“fragmentado,naproporçãoemqueelepassadaíaoprodutofinal”[9].

Asegundacaracterísticadistintivadocapitalfixoéoseupeculiar“modoespecíficodevalorização,de rotação, de reprodução”[10]. Ele pode ser distinguido de outros elementos “auxiliares” do capitalconstantequenãosãoreconstituídosnoprodutofinal(insumosdeenergia,porexemplo)devidoaoseuuso durante vários períodos de circulação. Isso vincula a definição de capital fixo ao processo decirculaçãodeoutroselementosdocapitalconstante,ejáobservamosqueotempodecirculaçãonãoédemodoalgumhomogêneo.Porisso,adistinçãoentrecapitalfixoecirculanteé,noprimeiromomento,umamera distinção quantitativa que “endurece” para uma diferença qualitativa quando são usadosinstrumentosdetrabalhomaisduráveisemaisduradouros[11].Ocapitalfixoeocapitalcirculanteentãose tornam“doismodosdocapital”[12], exibindocaracterísticasdecirculaçãomuitodistintas.Comoosinstrumentosde trabalhosão transformadosemcapital fixomedianteumprocessohistóricoespecífico,também esse “próprio capital produz sua forma dupla de circulação como capital fixo e capitalcirculante”[13].Arelaçãoentreocapitalfixoeocapitalcirculante,comoveremosnaseçãoII,torna-seentãoumaconsideraçãofundamentalnomapeamentodasleisdemovimentodocapitalismo.

As categorias de capital “fixo” e “circulante” organizam o nosso pensamento de maneirasfundamentalmentediferentesdaquelasimplicadasnascategoriasdecapital“constante”e“variável”queusamos até agora. Os dois conjuntos de categorias têm isso em comum: são definidos dentro daprodução.Ocapitalnaformademercadoriaoudedinheiroestá“emumaformaemquenãopodesernemfixonemcirculante”.Comotodocapitaldeveassumiraformadedinheirooudemercadoriaemalgumponto da sua existência, ocorre que a relação entre o capital fixo e o capital circulante, assim comoaquela entre o capital constante e o capital variável, é “mediada” pelas trocas de mercadoria e dedinheiro e modificada pela existência de capital nessas outras formas[14]. Mas dentro da esfera daprodução podemos agora identificar duas maneiras totalmente diferentes de conceituar a formaorganizacionaldocapital.Asdefiniçõesduais,apresentadasnatabela8.1,sãoàprimeiravistaconfusas.Entãoqualé,exatamente,oseupropósito?

Tabela8.1

Page 206: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Ascategoriasdecapitalconstanteecapitalvariávelrefletemarelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalhodentrodo“refúgioocultodaprodução”.Dessemodo,elasnosajudamaentenderaproduçãodemais-valor,aorigemdolucroeanaturezadaexploração;elasnospermitemver“nãosócomoocapitalproduz, mas como ele mesmo, o capital, é produzido”[15]. Mas o movimento do capital mediante aproduçãotambémencontraalgumasbarreirasquepodemcontereocasionalmenteperturbaracirculaçãogeral do capital. A dicotomia fixo-circulante é destinada a nos ajudar a entender esses problemas.Entretanto, isso de modo algum nos ajuda a entender a origem do lucro, porque se “todas as partesconstituintesdocapital […]foremmeramentedistinguidasporseumododecirculação”eseocapitalpreparadoparaossaláriosnãoformaisdistinguíveldeoutrasmatérias-primas,“entãoabaseparaumentendimentoda[…]exploraçãocapitalistaéenterradadeumsógolpe”[16].Poucoespanta,então,queoseconomistasburgueses fizessem tantadistinçãoentreocapital fixoeocirculante, embora ignorandoadistinçãoentreocapitalconstanteeocapitalvariável.

Como observamos antes, é característico de Marx construir diferentes “janelas” no mundo paraentenderacomplexidadedossistemaseconômicosdediferentespontosdevista.Atéaquiexaminamosocapitalismodopontodevistadocapitalconstanteedocapitalvariávele,dessemodo,entendemosmuitosobreoprocessobásicodaacumulação.Masainvestigaçãodacirculaçãorequercategoriasdiferentes.Atarefaqueestádiantedenóséadeconstruirumentendimentodosprocessosdecirculaçãodocapitalmedianteaprodução,pormeiodosconceitosdecapitalfixoecapitalcirculante.

I.ACIRCULAÇÃODOCAPITALFIXO“Acirculaçãodaporçãodocapitalqueestamosagoraestudando”,escreveMarx,“épeculiar”[17].Paraendossar as peculiaridades, vamos primeiro examinar o caso mais simples. Considere, então, umamáquina produzida como uma mercadoria, utilizada em um processo de produção sob o controle docapitalesubstituídanofimdesuavidaútilporoutramáquina.

Comoumamercadoria,amáquinaéapenasumpotencialcapitalfixo.Torna-secapitalfixoassimque

Page 207: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

écompradaporumcapitalistaeincorporadaemumprocessodeprodução.Pormeiodoatodatroca,oprodutornegociaovalordetrocadamáquina,enquantoocompradoréagoraobrigadoatentarpreservaressevalordetrocapormeiodoconsumoprodutivo.Vamosassumirnomomentoqueovalordetrocadamáquinanaocasiãodasuaaquisiçãosejaequivalenteaoseuvalor.

Como outros insumos de capital constante, o valor damáquina tem de ser repassado, negociado,medianteasmercadoriasproduzidas.Mas,comoumvalordeuso,amáquinanuncadeixaoprocessodeprodução.Elamantém sua forma corporalmentematerial comoumvalor de uso que é produtivamenteconsumidoduranteváriosperíodosdeprodução.Masovalordamáquinadevedealgummodocontinuara circular para que esse valor seja negociado. A peculiaridade dessa forma de circulação está noseguinte: o capital fixo continua a circular como valor enquanto permanece materialmente confinadodentrodoslimitesdoprocessodeproduçãocomoumvalordeuso[18].

Para começar, o consumo produtivo da máquina depende em certo grau de suas característicasmeramentefísicas–adurabilidadeeaeficiênciasãodeprimordialimportância.Porisso,quantomaisdurávelforamáquina,maislentamenteelatransferevalorparaoprodutofinal.MasMarxtambéminsisteque as máquinas ociosas ou subutilizadas perdem o seu valor sem transferi-lo: elas sofremdesvalorização. Por isso, a taxa de transferência de valor para o produto final depende daquelascondiçõesdentrodoprocessode trabalho–aextensãododiade trabalho,a intensidadedotrabalhoeassimpordiante–queafetamograuemqueasmáquinassãoemmédiautilizadas.

Finalmente, e aqui encontramos uma importante dificuldade, o valor de uso da máquina para ocapitalistadependedomais-valor(oulucro)queamáquinaajudaagerar.Emumasituaçãodemercadocompetitivo,emquetodasasmercadoriassãocomercializadasemseusvalores(oupreçosdeprodução),ocapitalistaquepossuimáquinasmaiseficientesoumaisduráveisemrelaçãoàmédiasocialvaiauferirummais-valor relativo.Amáquina serámais oumenos útil dependendo do estado da competição, dovalordasmercadoriasnomercadoedaeficiênciadasmáquinasdentrodeumadeterminadaindústria.Ocapitalistapoderia,pelomenoshipoteticamente,trocaramáquinaemqualquerpontodasuavidaútil,oumesmo alugar o seu valor de uso em uma base anual. Mesmo levando em consideração o valor játransferidoatravésdoconsumoprodutivo,essevalordetrocaprovavelmentevariadeummomentoparaoutrosegundoascircunstânciassociais–avelocidadedamudançatecnológicadentrodeumaindústriaéclaramente um fator de grande importância. A implicação é que o valor da máquina é ajustado nodecorrerdoseutempodevidaútil,equeesteémaisumagrandezainstáveldoqueumagrandezaestável.

O ato final no drama da circulação do capital fixo vem quando amáquina é desgastada e requersubstituição. Para o capital ser reproduzido, deve ser gerado um estoque de valor suficiente parasubstituir amáquina no fim da sua vida útil. Aqui encontramos outra peculiaridade: o valor de trocainicialaserrecuperadonãoénecessariamenteomesmoqueovalordetrocadasubstituiçãorequeridoparagarantirareproduçãodocapitaldaprodução.

Porisso,parecehavertrêsmaneirasparaqueo“valor”docapitalfixopossaserdeterminado:pelopreço de compra inicial, pelo valor do mais-valor que ele ajuda a produzir por meio do consumoprodutivooupelocustodasubstituição.Então,qualéovalor“real”damáquina?Esenãosabemososeuvalorreal,entãocomopodemossequerdiscutiracirculaçãodocapitalfixocomovalor?Essasnãosãoperguntas fáceis de responder. Vou demonstrar que o valor da máquina em qualquer momento é umadeterminaçãosimultâneadetodasastrêscircunstâncias.Issoimplicaqueovalordasmáquinasestáemum eterno estado de fluxo – uma conclusão que é incompatível com uma concepção de valor como“tempodetrabalhoincorporado”,masquecertamenteéconsistentecomaconcepçãodevalordeMarx

Page 208: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

comoumarelaçãosocial.Marxevitaessasdificuldadesconcentrando-sebastantenoqueacontecedentrodoreinodaprodução

quandoo valor do capital fixo –medido por seu preço de compra inicial – é recuperadomediante oconsumoprodutivo.Elepropõeaseguinteregraparaacirculaçãodocapitalfixo:“suacirculaçãocomovalorcorrespondeaoseuconsumocomovalordeusonoprocessodeprodução”[19].Porisso,devemosprestarmuitaatençãoàspropriedadesdovalordeusofísicodasmáquinascomoabase–eapenasabase–paraoentendimentodoprocessodecirculaçãodocapitalfixo.AsamplasinvestigaçõesdeMarxdaspropriedadesmateriaisdasmáquinastêmdeserentendidasemumcontextodessetipo.Finalmente,temostambémdeconsideraramaneiraemqueosvaloresdeusosãoelesprópriossocialmentedeterminadoseintegradoscomateoriadovalor.Entretanto,começamoscomaspropriedadesmeramentemateriaisdasmáquinas.

Asmáquinasmelhoramaeficiênciafísicadosrepetidosprocessosdetrabalho.Essaeficiênciapodepermanecerconstante,melhorar,declinarouexibirváriosaltosebaixosduranteavidaútildamáquina.Emboraaqui,comoemqualqueroutraparte,o importante sejaamédia,a regradeMarx indicaqueovalordevecirculardeumamaneiraquereflitaaeficiênciamédiacambiantedasmáquinasdurantesuasvidasúteis.Marxtambémlevouemconsideraçãoqueadurabilidadedamáquinaera“umabasematerialdomododecirculaçãoqueatransformaemcapitalfixo”[20].Adurabilidadedasmáquinaspodevariar,masaqui,maisumavez,éamédiaquedecide[21].Avelocidadeemqueocapitalfixocirculadependeempartedavelocidademédiaemqueasmáquinassedesgastamcomouso.

Essetempo“médio”devidaútildepende,porsuavez,do“desgastenormal”eda“manutençãoedosreparosnormais”.Essessãoconceitosdifíceisdedefinircomalgumaprecisão,emborasuaimportânciageral seja bastante clara. Sem uma manutenção adequada, o tempo de vida útil da máquina seráencurtado.Mas amanutenção requermais insumos da força de trabalho e demateriais alémdaquelesenvolvidosnaproduçãooriginaldamáquina.Omesmoéverdadecomrelaçãoaosreparos“normais”.Marx trata esses gastos como parte do valor damáquina, com a diferença de que eles são dispersosduranteotempodevidaútildamáquina,enãoincorridostodosdeumasóvez.Poressarazão,Marxtratatais gastos mais como parte do capital circulante do que do capital fixo[22]. A aquisição inicial damáquinaobrigaocapitalistaareservarumapartedocapitalcirculanteparaamanutençãoeoreparodocapital fixo: “a transferência do valor devido ao desgaste do capital fixo é calculada sobre sua vidamédia,masessaprópriavidamédiasebaseianasuposiçãodequeocapitaladicional requeridoparapropósitosdemanutençãoécontinuamenteantecipado”[23].

Infelizmente, a distinção entre os reparos e a substituição é mais confusa. As máquinas comfrequência“consistemdecomponentesheterogêneos,quesedesgastamemperíodosdetempodesiguaisedevem ser, portanto, substituídos”[24]. A máquina como um todo pode ser reparada mediante asubstituição dos componentes defeituosos, mas quando todas as partes constituintes de uma máquinaforam substituídas, amáquina como um todo não foi substituída?Circunstâncias desse tipo dificultammuitocalcularotempodevidaútildamáquina.Marxdespendeumaconsiderávelquantidadedeenergiapensandonessasquestões,sem,noentanto, resolvê-lasdeumamaneiraqueosatisfaça[25].Ele terminacolocandodeladotodasessascomplicaçõesfísicasparadefinirummodeloextremamentesimplificadoda“depreciação”dasmáquinas,emqueacirculaçãodocapitalfixoexibeasseguintescaracterísticas:

Pelodesgastedos instrumentosde trabalho,umapartedo seuvalor é transmitidoparaoproduto, enquantoaoutrapermanece fixanoinstrumentodetrabalhoe,portanto,noprocessodeprodução.Dessamaneira,ovalorfixodiminuiconsistentemente,atéoinstrumentode

Page 209: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

trabalho estar desgastado, seu valor tendo sido distribuído durante um períodomais curto oumais longo em umamassa de produtosoriginadosdeumasériedeprocessosdetrabalhoconstantementerepetidos.[…]Quantomaistempodurauminstrumento,maislentoéoseudesgaste,maisoseuvalordecapitalconstantepermaneceráfixonessaformadeuso.Masqualquerquepossaserasuadurabilidade,aproporçãoemqueeleproduzvalorésempreinversaatodootempoemqueelefunciona.Sededuasmáquinasdeigualvalorumasedesgastaemcincoanoseaoutraemdez,entãoaprimeiraproduz,nomesmotempo,duasvezesmaisvalorqueasegunda.[26]

O queMarx está propondo aqui é o que atualmente é conhecido como “depreciação linear” dasmáquinas.Paraevitarconfusão,usareiotermo“transferênciadevalor”paramereferiràvelocidadecomque o valor incorporado nas máquinas é realizado através do consumo produtivo. Marx estava bemconscientedequeummodelode“transferênciadevalorlinear”eraumasupersimplificação.IssotambéméprofundamenteinconsistentecomoteorgeraldoargumentodeMarxn’Ocapital,poiseleconfereumpapel autônomo e aparentemente determinante aomodo de ser físico ematerial do capital fixo.Marxparececairnaarmadilhadoprópriofetichismoqueeletãofrequentementecritica.Aadmissãodovalordeusocomoumacategoriaeconômicaécorreta,masissonãoaliviaMarxdaobrigaçãodeespecificarcomoessevalordeusoé“modificadopelasmodernasrelaçõesdeprodução”.Seencararmosomodelodatransferênciadevalorlinearcomosacrossanto,rapidamenteenfrentaremosváriasdificuldades.

Porexemplo,atransferênciadevalorlinearcalculadacomrespeitoaumpreçodeaquisiçãooriginal(assumidocomoequivalenteaovalor)sóigualaráoinvestimentonareposiçãoemcondiçõesespeciaiseabsolutamenteirrealistas–seminovaçãotecnológica,semvariaçõesnocustodasmáquinasetc.Quandoessascondiçõesnãosemantêm,surgeumadiscrepânciaentreovalorrecuperadoeovalornecessárioparaasubstituição.Acirculaçãocontinuadadocapitalfixoéameaçadanessepontodesubstituição.

Atransferênciadevalor linear tambémpresumequeo tempodevidaútildamáquinaéconhecido.Então, como esse tempode vida útil é determinado?Marx apresenta duas respostas. Inicialmente, eleapelaparaumconceitomeramentefísico–umamáquinaéconstruídacomumadeterminadacapacidadefísica e durabilidade e se desgasta dentro de um determinado período de tempo. Mas ele tambémreconhecequeotempodevidaútileconômicapodeserdiferente.Ocapitalistadescartaumamáquina,não porque ela esteja fisicamente desgastada, mas porque um lucro maior poderia ser obtidosubstituindo-a.Ovalordeusodamáquinaparaocapitalistaéofatodeelalhepermitirproduzirmaismais-valor,eessevalordeuso,comoMarxclaramentereconhece,mudadependendodascircunstânciassociais.Porisso,avidaeconômicadeumamáquinanãopodeserpreviamenteconhecida,poisdependedemudançasnodesenhoenocustodamáquina,navelocidadeenaformageraisdamudançatecnológica,nas condições que afetam a taxa de exploração da força de trabalho (o fluxo e refluxo do exércitoindustrialdareserva,porexemplo),nosdiferenciaisdataxadelucrocomousodediferentestecnologiasdentrodeumadeterminada linhadeprodução,eassimpordiante.O tempodevidaútildasmáquinas,sendo uma determinação social, é, namelhor das hipóteses, variável e, na pior,muito imprevisível –variando muito dependendo da competição, da busca incessante por lucro e por um processo deacumulaçãoquegeraumritmomuitodramáticodemudançatecnológica.Oquecomeçouparecendoumasólidabasematerialparaaanálisedatransferênciadovalorétransformadopelosprocessossociaisemumemaranhadodeincertezas.

A velocidade com que o capital fixo transfere o seu valor para o produto final, originalmenteconcebidocomoumaquestãoquepertenciaapenasàprodução,nãopode,evidentemente,seranalisadaindependentementedosefeitosdosventosgeladosdacompetiçãodomercado.Éinteressantenotarquejáencontramosumproblemaparalelonadeterminaçãodosignificadodascomposiçõesorgânicasedevalordocapital.Eébastanteprovávelqueencontremosessamesmaquestãoaqui,poisocapitalfixotemum

Page 210: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

papelmuito importante a desempenhar na determinação das composições orgânicas e de valor.Agoraencontramosaregradequeovalordeusodocapitalfixodentrodoslimitesdaproduçãoedaempresadepende da capacidade da empresa para obter lucros em um mercado competitivo. Como, então,podemoscriarummétodoparalidarcomatransferênciadevalordocapitalfixonessascircunstâncias?Fazerissoobviamenterequerqueconstruamosalgumtipodeponteentreosprocessosseparados,porémrelacionados,daproduçãoedacirculação.

Asdificuldadespodemsermaisfacilmenteresolvidastratando-seacirculaçãodocapitalfixocomoum caso de produção conjunta. No início de cada período de produção, o capitalista adianta umaquantidadetotaldevalorparaadquirirforçadetrabalho,matérias-primaseinstrumentosdetrabalho.Nofimdoperíodo,ocapitalistatemumamercadoriaparaservendidanomercadoeumaquantidaderesidualdevalor de capital fixo incorporado emumamáquinaquepode ser usadadenovo, substituídaou atémesmo vendida para outra pessoa. O valor residual do capital fixo é tratado como um produto,decorrentedoprocessodeprodução.EssamaneiradelidarcomoproblematemsidousadacomgrandeefeitoporautorescomovonNeumann,Sraffa,SteedmaneMorishima.Oúltimoautormostracomoesseartifício pode ser utilizado para determinar o tempo de vida útil econômica das máquinas, paraproporcionarum“critérioeconômicoparaasdecisõesdosempresáriosdenãousar [umamáquina]deumadeterminadaidademaisantiga”eummétodoparacolocaratransferênciadevaloralinhadacomocustode reposição[27].É interessante notar queopróprioMarx foi pioneironessa técnica–que tantoSraffa quanto Morishima estão se esforçando para enfatizar –, com respeito à análise do capitalempregadonaproduçãodebensconsiderandodiferentesperíodosdetempo.EhásinaisdequeMarxviuumaanálisedosprodutosconjuntoscomoumasaídaparaosdilemascolocadosporseumodelolineardetransferênciadevalor[28].Elesimplesmentefalhouemreiterarapossibilidade(porquaisquerrazões)e,dessemodo,escancararoquesetransformouemumadasmaiscomplexasdetodasasquestõesaseremtratadaspelateoriaeconômica.

Noentanto,esseartifícioteóricodosprodutosconjuntosémaisqueumaficçãoconveniente,porqueosmercadosdesegundamãoparaasmáquinasrealmenteexistem,enquantooalugueleoarrendamentodeequipamentoemumabaseperiódicanãosãoalgoincomum.Alémdisso,namedidaemqueosdireitosàcapacidadedeproduçãopodemsercomercializadosnaformadetítuloseações,podemosidentificaroutrotipodemercadoquereflete,emparte,aatualprodutividadedoestoquedecapitalfixoemrelaçãoàproduçãodemais-valor.Há,então,umabasematerialesocialparaareavaliaçãodoestoquedecapitalfixodeummomentoparaooutro.

Entretanto, aqueles que nos últimos anos têm examinado com rigor essa questão concluíramque otratamentodacirculaçãodocapitalfixocomoumcasoespecíficodaproduçãoconjuntaapresentasériosdilemas para a teoriamarxiana do valor.Morishima, por exemplo, afirma que “o reconhecimento daproduçãoconjuntaedosprocessosalternativosdemanufatura[…]nosencorajamasacrificaraprópriaformulaçãodateoriadovalor-trabalhodeMarx”[29],enquantoSteedmanéaindamaisenfático:

Napresençadocapitalfixo,aescolhadavidamaiseficientedeumamáquinasóédeterminadanodecorrerdamaximizaçãodataxadelucro, fazendo com que as grandezas de valor, que dependem da vida efetiva da máquina, sejam determinadas apenas depois dedeterminadaa taxade lucro.Ascondiçõesfísicasdaproduçãoea taxadesaláriorealsãoosdeterminantesmaispróximosda taxadelucro.Atarefaémostraroquedeterminaestascondiçõesdeproduçãofísicaseossaláriosreais,enãoseengajaremcálculosdevalorinúteis.[30]

LevinetambémargumentaqueseMarxtivesseaplicadoaregrado“tempodetrabalhosocialmente

Page 211: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

necessário” à transferência de valor do capital fixo, ele teria descoberto “dificuldades essenciais nocálculodovalordotrabalhodasmercadorias”produzidascomaajudadocapitalfixo:

Ovalorcontribuídopelocapitalfixoaoprodutonãoédeterminadoporseuvalororiginalnemporseuvaloratual,maspelamudançanovalorduranteoperíodorelevante.Éessecomponenteinerentementedinâmicodadeterminaçãodovalordoprodutodamercadoriaqueéperdido em sua redução a uma quantidade de tempo de trabalho. A quantidade de valor “transferida” para o produto dentro de umdeterminado período varia segundo a velocidade em que o valor do capital fixo empregado muda durante esse período. Como adeterminaçãodovalordamercadoriaégovernadaporumavelocidadedemudançadovalor,esteéinerentementeirredutívelaqualquerquantidadefixadetempodetrabalho.Adeterminaçãodovalordetrocaemumasomadetempodetrabalhopassadoeatualéexcluída.[31]

Levineprossegueacrescentando,pormeiodeumanotaderodapé,que“paramanterateoriadovalordotrabalhocomoumateoriadadeterminaçãodovalordetroca[…]serianecessário,naverdade,excluirocapitalfixo”[32].

Todosessesrelatosrefletemcomprecisãoadificuldadedesechegaraalgumamaneiraapropriadadecalcular avelocidadeemqueovalordocapital fixoé transferidoparaoproduto[33].E todoselesindicam que o valor do capital fixo será necessariamente alterado com o tempo, dependendo dascircunstânciassociais.Alémdisso,todoselesprovamconclusivamentequeacirculaçãodocapitalfixonão pode ser reconciliada com uma teoria do valor que se baseie apenas no tempo de trabalhoincorporadonopassadoenopresente.OpróprioMarxchegouexatamenteaessaconclusão.Umavezqueocapitalfixoseseparadocirculante,encontramoscircunstânciasque“contradizemtotalmenteadoutrinadovalordeRicardo,assimcomosuateoriadolucro,queé,naverdade,umateoriadomais-valor”[34].

AdoutrinadovalordeRicardocomootempodetrabalhoincorporadodevesernaverdaderejeitada.Masa teoriadovalordeMarxcomootempodetrabalhosocialmentenecessárioémuitodiferente[35].EmboraMarx frequentemente equipare o trabalho socialmente necessário com o trabalho incorporadoporconveniência,esteúltimonãoabrangetodososaspectosdovalorcomoumarelaçãosocial.Ovalor,lembre-se,“existeapenasnumvalordeuso,numacoisa”,deformaque“aperdadovalordeusoimplicaaperdadovalor”[36]. Essa é uma simples extensão da regramarxiana segundo a qual asmercadorias“têmdeserealizarcomovaloresantesquepossamserealizarcomovaloresdeuso”,equeseacoisa“éinútil, também o é o trabalho nela contido; o trabalho não conta como trabalho e não cria, por isso,nenhumvalor”[37].Porisso,autilidadecambiantedamáquinaduranteoseutempodevidaútilnãodeixaoseuvalorintacto.Eosprincipaisentreosfatoresqueafetamovalordasmáquinassãoasfrequentes“revoluçõesnovalor”associadasàmudançatecnológica.“Éjustamenteaproduçãocapitalista,àqualamudança contínua das relações de valor é peculiar, ainda que apenas devido à produtividade semprecambiantedotrabalho,quecaracterizaessemododeprodução”[38].Amudançatecnológicadesempenhatanto um papel desestabilizador com respeito à circulação do capital fixo quanto o faz nos modelossimplesdesuperacumulaçãoedesvalorizaçãoqueexaminamosnocapítuloanterior.

O valor, como já declaramos, não é uma métrica fixa a ser usada para descrever ummundo emmutação,masétratadoporMarxcomoumarelaçãosocialqueincorporaacontradiçãoeaincertezaemseu próprio centro. Então, não há nenhuma contradição entre a concepção de valor de Marx e acirculaçãodocapitalfixo.Acontradiçãoéinternalizadadentrodapróprianoçãodovalor.

II.ASRELAÇÕESENTREOCAPITALFIXOEOCAPITAL

Page 212: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

CIRCULANTEMarxacreditavaque“capitalfixoépressupostodaproduçãodocapitalcirculante,domesmomodoqueocapitalcirculanteoéparaaproduçãodocapitalfixo”[39].Alémdisso,comoocapitalfixoperdeoseuvalorquandonãoestáemuso,umfluxocontínuodecapitalcirculante–tantodaforçadetrabalhoquantodasmatérias-primas–éumacondiçãonecessáriaparaanegociaçãodoseuvalor.

Como cada um é necessário para o outro, deve existir certa relação entre os fluxos de capitalcirculanteedecapitalfixo.Porexemplo,paraseconseguirumaacumulaçãoequilibrada,ocapitaltotalnasociedadedeveserdivididoemproporçõesfixasecirculantesdeacordocomalgumaregra“racional”– quer dizer, racional do ponto de vista da acumulação. Os economistas políticos clássicosfrequentementeatribuíamascrisesaumadesproporcionalidadeentreocapitalfixoeocirculante,eMarxnãodiscordadisso.Maseletrataadesproporçãomaiscomoumsintomadoquecomoumacausa,ebuscaosmecanismosqueaproduzem.

Considere, então, o simples casode umamáquina comumconhecido tempodevida que transferevalor para o produto final segundo a regra da “linha reta”. Os valores na forma demercadorias sãotiradosdecirculação(excetoparareparosemanutenção)atéamáquinasersubstituída.Acadaano,noentanto, as mercadorias voltam à circulação através do consumo produtivo da máquina até que amercadoriaequivalenteaovalorincorporadonamáquinavoltetotalmenteàcirculaçãonoúltimoanodesuavida.Acirculaçãododinheiroassumeumcursomuitodiferente.Eleélançadoemcirculação“todoaomesmo tempo, (mas) retirado da circulação apenas aos poucos, segundo a venda dasmercadoriasproduzidas”[40].Naausênciadeumsistemadecrédito,ocapitalistatemdecriarumacúmulodedinheiroatéquehajaosuficienteparacomprarumanovamáquina[41].

Apeculiaridadenessatrocaestáemsuascaracterísticasdetempo.Dinheiroemercadoriascirculamsegundo padrões temporais bastante diferentes. Imediatamente depois da compra da máquina há umexcesso de dinheiro em circulação em relação àsmercadorias. Próximo ao fim do tempo de vida damáquinasurgeacondiçãooposta.Emlongoprazo,essesdesequilíbriosneutralizarãoumaooutro(nassuposições que especificamos), para que não haja efeitos negativos agregadores enquanto o sistemapuderfuncionarparafacilitarospagamentosemdinheiroduranteotempodevidadamáquina.Mas,nãoobstante, a circulação do capital fixo exerce influências perturbadoras de curto prazo atémesmo nosprocessos de reprodução simples. A troca de dinheiro e de mercadorias entre os setores 1 e 2 (vercapítulo6)corresponderiaapenasàcondiçãoimprováveldequeumaproporçãoigualdocapitalfixonasociedade fosse “retirada” e substituída a cada ano. Isso requereria uma taxa fixa de transferência devaloreumaestruturadeidadeparticularparaoestoquedecapitalfixo.Desequilíbriossurgiriamtambémnaausênciadeumsistemadecréditoporqueoscapitalistasteriamdeacumulardinheiroparacobriroscustos de reposição, enquanto o capital circulante necessário para construir a máquina teria de seradiantadoantesdasubstituição.Eassim,concluiMarx,“umadesproporçãodaproduçãodecapitalfixoecirculante[…]podeedevesurgirmesmoquandoocapitalfixoéapenaspreservado”[42].

Esse insight técnico – que Marx, à sua maneira habitual, estabelece por meio de exemplosaritméticos tortuosos – nos traz à beira das questões muito amplas que surgem quando a mudançatecnológicarequerqueaproporçãodocapitalfixosejaexpandidaemrelaçãoaocapitalcirculante.Issoaconteceporqueaproduçãodemáquinasenvolvea“produçãodemeiosdecriaçãodevalor”emvezdeacriaçãodiretadevaloresdeusoparaoconsumoindividual[43].Emoutraspalavras,

Page 213: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Apartedaproduçãoorientadaparaaproduçãodocapitalfixonãoproduzobjetosdafruiçãoimediatanemvaloresdetrocaimediatos.[…]Porconseguinte, […]dependedograudeprodutividade jáalcançado[…]queumapartedo tempodeproduçãosejasuficienteparaaprodução imediata.Para tanto, éprecisoquea sociedadepossaesperar;queumagrandeparteda riqueza jácriadapossa ser retiradatanto da fruição imediata quanto da produção destinada à fruição imediata, para empregar essa parte no trabalho não imediatamenteprodutivo.[44]

Marxprossegueentãoparaespecificarascondiçõesquevãopermitirqueocapitalfixosejaformado:

Issoexigequejásetenhaalcançadoumaltoníveldaprodutividadeedoexcedenterelativo,nívelelevadoque,naverdade,édiretamenteproporcionalàtransformaçãodocapitalcirculanteemcapitalfixo.[…]Acondiçãoparaissoépopulaçãoexcedente(desdeessepontodevista),bemcomoproduçãoexcedente.[45]

Alémdisso,essas“populaçãoexcedenteeproduçãoexcedenterelativas”devemseraindamaioresseocapitalfixofordelargaescala,longavidaeapenasindiretamenterelacionadoàprodução–“ouseja,maisparaconstruirferrovias,canais,aquedutos,telégrafosetc.queparaproduzirmaquinaria”[46].Então,antes de qualquer coisa, como esses excedentes de produto e força de trabalho serão obtidos ouproduzidos?Háduasrespostaspossíveisaessapergunta.

Emprimeirolugar,osexcedentespodemserobtidosmedianteaapropriaçãodiretaeaacumulaçãoprimitiva.Porexemplo,aformaçãodeumproletariadosemterraapartirdeumapopulaçãocamponesapodecriara forçade trabalhoexcedentenecessária.Assimos irlandesesse tornaramos trabalhadoresbraçaisedaconstruçãocivilnomundo,particularmentedepoisdafomedabatata,umaconsequênciadapenetraçãodasrelaçõessociaiscapitalistasnasociedadeirlandesa,quefinalmenteosobrigouasairdopaís.Oscapitalistaspodemtambém,porapropriaçãoouconversão,adquirirovalordeusodocapitalfixosemqueovalordeusosejaprimeiroproduzidoporoutroscapitalistasnaforma-mercadoria. Issopode acontecer porque o capital fixo pode ser criado simplesmente mudando os usos das coisasexistentes.Osmeios de produção e os instrumentos de trabalho podem ser apropriados de artesãos etrabalhadores;osbensdeconsumopodemseradquiridosecolocadosemusoprodutivo.Sobosistema(domiciliar)deproduçãoporencomenda,porexemplo,ascasasdostecelões,queatéentãoerampartedosbensdeconsumo,começaramafuncionarcomocapitalfixo[47].Ocorreumefeitosimilarquandoossistemasdetransportecriadosprincipalmenteparaoconsumocomeçamaserusadoscadavezmaisparaatividadesrelacionadasàprodução.

A vantagem aqui é que o capital fixo pode ser formado sem interferir demaneira alguma com ocapitalcirculante.Noentanto,aquantidadedecapitalfixoquepodesercriadadessamaneiradependedecondições preexistentes – o capital, afinal, “não participou da criação do mundo, mas encontrou aproduçãoeosprodutosjáprontosantesdesubmetê-losaoseuprocesso”[48].AGrã-BretanhadoséculoXVIII,porexemplo,possuíaumvastoreservatóriodebensmateriais(talvezduasoutrêsvezesosbensqueaNigériapossuiatualmente),eessesvaloresdeusopodiamserfacilmenteconvertidosemcapitalfixo a pouco ou nenhum custo. Os primeiros industriais adquiriram grande parte do seu capital fixocolocando antigas estruturas (moinhos, celeiros, casas, sistemas de transporte etc.) em novos usosprodutivos. A formação de taxas de capital fixo nunca subirammuito acima de 5 ou 6% do produtonacional,comparadoscomos12%oumaisemgeralconsideradosessenciaisparaatingiraacumulaçãodocapitalexistente[49].OcasoaberrantedaGrã-Bretanha,queétãovitalporqueliderariaocaminhonaacumulaçãosustentadadocapital,éexplicáveldadaafluidezdasdefiniçõesdeMarx.Aapropriação,aconversão e a acumulação primitiva proporcionaram o capital fixo sem desviar nada do capital

Page 214: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

circulante.Essesaspectoscontinuamaserdealgumaimportânciadurantetodaahistóriadocapitalismo–os imigrantes africanos, por exemplo, desempenhamumpapel fundamental na atividade da construçãofrancesa, assim como os europeus do sul em grande parte da Europa ocidental.Mas para amudançatecnológicadesempenharoseupapelapropriado,ocapitalismotemdedesenvolveracapacidadeparaproduzirexcedentesdeprodutoeforçadetrabalhodentrodosseusconfins.

Issonoslevaaosegundomecanismoimportanteparaageraçãodasprecondiçõesnecessáriasparaaformaçãodecapitalfixo.Asuperacumulação,quevimossurgirnecessariamentenocapitalismoemumabase periódica, envolve a criação de “capital não empregado em um polo e uma população detrabalhadores desempregados no outro” (ver capítulo 7). Os excedentes da força de trabalho, dasmercadorias,dacapacidadeprodutivaedocapitalmonetáriosãopotencialmenteconversíveisemcapitalfixo.Eéuminsightteóricofundamentalemuitoimportante.Elediz,naverdade,queascontradiçõesdaacumulação produzem as precondições necessárias para a formação de capital fixo em uma baseperiódica.Aseguir,vamostentardeslindaralgumasdasimplicaçõesdessenotávelinsightteórico.

Começamosporconsiderarcomoo fluxoe refluxodoexército industrialde reservase relacionamcomaformaçãodocapitalfixonaausênciadequalquer“acumulaçãoprimitiva”oucomamobilizaçãodesetores “latentes” dentro de uma população. Nessas condições, uma população excedente relativa éfundamentalmenteoprodutodamudança tecnológicaquecriadesemprego.Masamudança tecnológicaem geral requer a formação de capital fixo. E este último requer a formação anterior de um exércitoindustrialdereserva.Oritmodaofertaedademandadeforçadetrabalhoeacapacidadeparaabsorvera força de trabalho excessiva por meio da formação de capital fixo parecem ser regulados porcircunstânciascontraditórias.Opróprioprocessoqueproduzumexércitoindustrialdereservatambémoabsorve. A contradição é tipicamente expressada através das fases de formação do capital fixo e daabsorçãode forçade trabalhoexcedente seguidaspelodesempenhodisseminadoepela estagnaçãonaformação de capital fixo. Entretanto, não podemos entender tal processo sem considerar como osprodutosexcedentestambémsãogeradoseabsorvidos.

Os excedentes de mercadorias, as capacidades produtivas e a força de trabalho, associados àsuperacumulação, não podem ser instantaneamente deslocados de, digamos, as indústrias dos bens deconsumo (vestuário, calçados etc.) para a produção de itens de capital fixo (máquinas, ferrovias).Frequentementeérequeridaumacriseparaobrigartaldeslocamentodocapitalcirculanteparaocapitalfixo – na verdade, Marx declarou que “uma crise sempre cria o ponto de partida para novosinvestimentos”, que estabelecem“umanovabasematerial para o próximociclode circulação”[50]. Seessesdeslocamentospudessemocorrerinstantaneamenteesemcusto,osproblemasdasuperacumulaçãoedadesvalorizaçãodocapitalcirculantepoderiamserinteiramenteresolvidospelaformaçãodecapitalfixo. O limite para esse deslocamento estaria apenas na capacidade para negociar o valor dosinvestimentosdecapitalfixo.Comooempregodocapitalfixosignificaumaumentonaprodutividadedamão de obra, o deslocamento do capital circulante para o fixo só pode exacerbar o problema dasuperacumulaçãoemlongoprazo.Apartedocapital fixovaisercondenadaaumaociosidadeforçadamediante a superacumulação, e o próprio capital fixo vai sofrer umadesvalorização.Uma soluçãodecurtoprazoparaoproblemadasuperacumulaçãoexacerbaasdificuldadesdelongoprazoecolocaparteda carga geral das desvalorizações periódicas sobre o capital fixo. A única diferença seria que omomento e o ritmo da formação e da resolução da crise seriam agora profundamente afetados peloprocessodecirculaçãodoprópriocapitalfixo.

Adesvalorizaçãodocapital fixopoderiaser indefinidamenteproteladapelodeslocamentodecada

Page 215: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

vezmaiscapitalparaaformaçãodecapitalfixo.EssapossibilidadefoidiscutidaporTugan-BaranovskinocontextodosesquemasdereproduçãoexpandidadeMarx[51].Elemostrouqueaacumulaçãopoderiacontinuareternamente,contantoqueoinvestimentonocapitalfixoaumentassenasproporçõescertas.Issoimplicaria uma economia em que as máquinas seriam construídas para produzir máquinas queconstruíssem máquinas – algo que parece totalmente absurdo do ponto de vista das necessidadeshumanas, mas que o capitalismo é teoricamente capaz de desenvolver, pois os capitalistas estãointeressados apenas no mais-valor e não se importam nem um pouco com os valores de uso queproduzem.Oslimitesparataleconomialunáticasóseriamatingidosquandoofluxodocapitalcirculantese tornasse insuficiente para apoiar o uso continuado do capital fixo, ou quando o ritmo damudançatecnológica indicado pela formação do capital fixo se tornasse tão rápido que as desvalorizaçõesmediantetemposdevidaeconômicaencurtadosdasmáquinassetornassemumproblemasério.EmboraasoluçãodeTugan-Baranovskinãopudessesersustentadaemlongoprazo,elaajudaaexplicarporqueocapitalismo tem surtos frequentes de investimento excessivo na produção de alta tecnologia semconsiderar os excedentes de força de trabalho que já existem ou as necessidades humanas daspopulações. Por isso, em curto prazo, o capital pode reagir à superacumulação se deslocando para aformaçãodecapitalfixo–equantomaislongaforavidaemaislongaaescaladocapitalfixo,melhor(por exemplo, obras públicas em larga escala, represas, ferrovias etc.).Mas, em algummomento emlongo prazo, problemas de superacumulação podem reemergir, talvez para serem registrados em umaescalaaindamaiornadesvalorizaçãodoprópriocapitalfixo.

Ascontradições inerentesna formadecirculaçãodocapital fixopodemser abordadas apartirdeoutroângulo.Marxdeclaraque“quantomaiorforaescalaemqueocapitalfixosedesenvolve[…]maisa continuidade do processo de produção […] devém condição externamente imposta do modo deproduçãobaseadonocapital”[52].Quandooscapitalistasadquiremcapitalfixo,elessãoobrigadosausá-loatéoseuvalor(nãoimportacomocalculado)sertotalmenterecuperado.Ocapitalfixo“comprometeaproduçãodosanosseguintes”,“tambémantecipaotrabalhofuturocomovalorequivalente”e,porisso,exerceumpodercoercivoparausosfuturos[53].Marxseconcentranatiraniaqueocapitalfixo,naformadamáquinasobocontroledocapitalista,exercesobreascondiçõesde trabalhodo trabalhador(daíolongoemuitoeficientecapítulosobreasmáquinasnoprimeirolivrod’Ocapital).Masopontopodesergeneralizado.Quantomaisocapitalcirculanaformafixa,maisosistemadeproduçãoeconsumoficafechadoematividadesespecíficasadequadasparaarealizaçãodocapitalfixo.

A contradição envolvida nisso deve estar prontamente aparente. Por um lado, o capital fixoproporciona uma alavanca poderosa para a acumulação, enquanto o investimento adicional em capitalfixo proporciona um alívio pelomenos temporário para os problemas de superacumulação. Por outrolado,aproduçãoeoconsumoficamcadavezmaisaprisionadosdentrodasmaneirasfixasdefazerascoisasecadavezmaiscomprometidoscomlinhasdeproduçãoespecíficas.Ocapitalismoperdeasuaflexibilidade,eacapacidadedeinovaçãosevêparalisada[54].

Isso nos lança imediatamente de volta a esse mundo complexo, sobre o qual Marx tinhaconhecimento,mas pouco fez para nos esclarecer a respeito, em que o tempo de vida econômica docapitalfixonãomaiscorrespondeaoseutempodevidafísica.Atransferênciadovalorlinearnãopodemaissermantidacomoumadescriçãoadequadadacirculaçãodocapitalfixo.Oproblemamaissérioquepodesurgiraquidizrespeitoaoimpactodenovasmáquinas,maisbaratasemaiseficientesnovalordeuso e, portanto, no valor imputado das máquinas antigas. Recorrendo à linguagem dos preços, Marxobserva como as “constantes alterações na construção e o barateamento das máquinas depreciam de

Page 216: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

modo igualmente constante seus modelos antigos e fazem com que estes só sejam lucrativos quando,compradosapreçosirrisórios,sãoutilizadosemmassaporgrandescapitalistas”[55].Revoluçõeseternasnatecnologiapodemsignificaradesvalorizaçãodocapitalfixoemumaescalaextensiva.

Astrocasentreossetores1e2podemtambémsersujeitasacontratempos.Noentanto,seoritmodamudançatecnológicaforcontínuo,eseoscapitalistaspuderemsesentirrazoavelmentesegurosemsuasexpectativas com respeito às tecnologias futuras, então é possível programar a obsolescência do seucapitalfixoelidarcomacirculaçãodocapitalfixosegundoalgumplanoracional[56].Dessamaneira,osefeitosperturbadoresdamudançatecnológicapodemserminimizadoseoimpactonasrelaçõesdetrocaentreosdoissetorespodeserreduzidoaoscilaçõesbemmenores.Masaobsolescênciaprogramadasóépossívelseavelocidadedamudançatecnológicaforcontida.Amonopolização,opatrocíniodogovernoàpesquisaeaodesenvolvimento,easrestriçõeslegaiscomrespeitoàaplicaçãodasinovações(leisdepatentes e licenciamento em particular) desempenham papéis importantes para regular o ritmo damudançatecnológicaeparatornaraobsolescênciaprogramadaummeiodisponívelparasecontraporàevidentetensãoentreamudançatecnológicaeseuinevitávelcorolário,adesvalorizaçãodocapitalfixo.Na verdade, pode-se justificar que os efeitos incoerentes e destrutivos da mudança tecnológicadescontroladatrazemàtonaumareaçãocapitalistanaformadeváriosarranjos–comomonopólioseleisdepatente–paracontrolaroritmodessamudança[57].

Na ausência de controles bem-sucedidos, a obsolescência programada torna-se impossível.O quecomeçacomopequenasoscilaçõesedesequilíbriosentreossetoresenasproporçõesdecapitalfixoparacapital circulante rapidamente seampliaparaoscilaçõesexplosivasoudivergênciamonotônicadeumcaminhodecrescimentocontrolado(verp.242).Acirculaçãodocapitalfixotorna-seenredadanamalhade forças contraditórias associadas à mudança tecnológica, ao desequilíbrio, à formação de crise, àsuperacumulação e à desvalorização.Era justamente esse resultadoqueMarx tinha emmente em seusestudosdacirculaçãodocapitalfixo.

Porexemplo,eledeclaraexplicitamentequeabuscacompetitivapelomais-valorrelativoobrigaasubstituiçãode“antigosinstrumentosdetrabalhoantesdaexpiraçãodasuavidanatural”,equeseestaocorrer em “uma escala social mais ampla” é “principalmente imposta por meio de catástrofes ecrises”[58].Eletambémobservaqueas“melhoriascontínuasquediminuemovalordeusoe,portanto,ovalor,dasmáquinasexistentes,dasconstruçõesdasfábricasetc.”têmum“efeitoparticularmentehorríveldurante o primeiro período de máquinas recentemente introduzidas […] quando estas se tornamcontinuamenteantiquadasantesde teremtempodereproduzirseuprópriovalor”.Reduçõesrápidasnocustodereposiçãotêmefeitossimilares.Eentãodescobrimosque“grandesempresasfrequentementenãoflorescematépassaremparaoutrasmãos, istoé,apósseusprimeirosproprietários teremfalidoeseussucessores,queascomprambarato,começaremdoiníciocomumdesembolsodecapitalmenor”[59].

Nodecorrerdecrisesparciaisougerais,oselementosdocapitalfixosãodesvalorizadosemmaioroumenorgrau.Esteentãoconstitui“umdosmeiosimanentesnaproduçãocapitalistaparadeteraquedadataxadelucroeaceleraraacumulaçãodovalordocapitalmedianteaformaçãodenovocapital”[60].Acomposiçãodevaloragregadodocapitalé,emsuma,estabilizadadiantedeumamudança tecnológicaforte pela desvalorização forçada de uma parte do capital constante fixo. Os conceitos desuperacumulação e desvalorização têm, então, um papel particular a desempenhar em relação àcirculaçãodocapitalfixo.DizMarx:

Aconclusãoaquesechegaédequeessecicloderotaçõesencadeadas,queseestendeporumasériedeanosequeocapitalpercorre

Page 217: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

por meios de seus componentes fixos, fornece uma base material para as crises periódicas. Durante esse ciclo, o negócio sofre assucessivas fases de depressão, animaçãomédia, exaltação e crise. Os períodos em que se investe o capital são, na realidade, muitodistintosediscrepantes.Porém,acriseconstituisempreopontodepartidadeumnovograndeinvestimento.E,portanto,dopontodevistadasociedadeemseuconjunto,tambémfornece,emmaioroumenorgrau,umanovabasematerialparaopróximocicloderotação.[61]

Ascrises,então,assumemumaspectobemdiferenteeumanovadimensãoquandointroduzimosnoquadroacirculaçãodocapital fixo.Acontradiçãobásicaentreaevoluçãodas forçasprodutivaseasrelaçõessociaisdocapitalismoaindapermanecenocentrodascoisas.Oritmodamudançatecnológica–ela própria fundamentalmente associada ao impulso para o mais-valor relativo (ver capítulo 4) –continuaaseraomesmotempoaprincipalalavancaparaaacumulaçãoeaprincipalforçaresponsávelpelo desequilíbrio.Mas agora vemos que a própria maneira que muitas das forças de produção sãoconstituídas–medianteaproduçãodemercadoriasemais-valor–envolveumaformadecirculaçãodovalorqueestáemcontradiçãocommaismudançastecnológicas.Amudançatecnológicaoudiminuioseuritmo(assimprivandoocapitaldesuaprincipalalavancadeacumulação)ouopressionarapidamente,sendoa inevitável desvalorizaçãodo capital fixo seu resultado.Todamanifestaçãomaterial eo ritmotemporaldaformaçãodecrisesão,portanto,fundamentalmentealteradas.Emumasituaçãodessetipo,ateoriado“primeirorecorte”dacrisedeMarx(vercapítulo7)evidentementenãofuncionará.Aindaestáporservistocomoessateoriadeveserajustadaparalevaremcontaaformaçãodocapitalfixo.

III.ALGUMASFORMASESPECIAISDACIRCULAÇÃODOCAPITALFIXOApegando-nosaoexemplodasmáquinas,temossidocapazesdesimplificaraconcepçãodocapitalfixo.Mas capital fixo inclui também itensmuito diversos, como navios e portos, ferrovias e locomotivas,represas e pontes, suprimento de água e sistemas de esgotos, estações hidrelétricas, construções defábricas,armazénsetc.Umapicaretaeumaferroviapodemserambasclassificadascomocapital fixo,massuasimilaridadeapósissorapidamentetermina.Assim,devemosdesagregaroconceitodecapitalfixoeconsideraralgumasdas“peculiaridades”especiaisqueentãosurgem.

Até agora também excluímos quaisquer considerações detalhadas sobre a maneira em que asintervençõesdossistemasdecréditoafetamosnegócios,emboraaquestãotenhaassomadonofundodaanálise. O crédito certamente aparece, à primeira vista, como um meio apropriado para superar ascontradiçõesentreocapital fixoeocapitalcirculante.Mas, fielàssuas ideias,Marx insistiráque,namedidaemqueocréditodesempenhacomsucessoessafunção,eleinternalizacontradiçõesdentrodasuaprópria esfera. As contradições são então deslocadas, não removidas.Marx sugere tal deslocamentoquando caracteriza o tipo diferente de rendimento sobre o capital fixo e circulante, assim como adiferença entre rendaanual, juro e asdiferentes formasde renda,deum lado, e avenda eo lucrodeoutro[62].Vamoselaborarsobreessetemanasseçõesqueseseguem.

Comoaesferadodinheiro,docréditoedolucroéextraordinariamentecomplexa,devemosadiarsuaconsideraçãoatéopróximocapítulo.Omelhorquepodemosesperarfazeraquiémostrarcomoeporqueos sistemas de crédito devem necessariamente existir como um meio para lidar com alguns dosproblemascrônicosquesurgemnocontextodaformaçãoedousodocapitalfixo.Eissopoderemosfazermelhorconsiderandosituaçõesemqueosproblemasdecirculaçãodocapitalfixoassumemumaformaexageradaemuitoespecial.

Page 218: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

1.Ocapitalfixodelargaescalaegrandedurabilidade

Otempodecirculaçãodocapitalfixoéumafunçãodasua“durabilidaderelativa”,ea“durabilidadedo seu material é por isso uma condição da sua função como um instrumento de trabalho e,consequentemente,abasematerialdomododecirculaçãoqueotransformaemcapitalfixo”[63].Enquantoa durabilidade depende de propriedades físicas, as qualidades materiais dos valores de uso têm umimportanteefeitosobreotempodecirculação.MasMarxtambéminsisteque“amaiordurabilidadedocapitalfixonãodeveserconcebidacomoumaqualidademeramentefísica”[64].Osmateriaisduráveissãoincorporados em itens de capital fixo porque as vantagens surgem de assim fazê-lo – por exemplo,“quantomaiorafrequênciacomque[oinstrumento]tivessedeserrenovado,tantomaiscaroseria”[65].Por outro lado, quanto mais dura o capital fixo, maior a probabilidade de ele ser exposto àdesvalorizaçãopormeiodamudançatecnológica.

Por isso, a durabilidade do capital fixo varia segundo as circunstâncias econômicas e aspossibilidadesmateriaise tecnológicas. Jáobservamosque“diferentesconstituintesdocapital fixodeumnegócio têm diferentes períodos de circulação, dependendo de suas diferentes durabilidades”, e amesmaproposiçãoseaplicaaocapitalfixonasociedadecomoumtodo.Então,precisamosconsiderarosproblemas especiais que surgem quando, por qualquer razão que seja, um capital fixo de grandedurabilidadeécriadoemrelaçõesdeproduçãocapitalistas.

Aquantidadedevalorque temdeser lançadanacirculaçãomonetáriaeextraídadacirculaçãodemercadorias no início tambémvariamuito, dependendo da natureza do capital fixo formado.Docas eportosrequeremmuitomaisdoquesimplesimplementosagrícolas.Etambémocorredealgunsitensdecapital fixo poderem ser produzidos incrementalmente – expandidos pouco a pouco, como uma linhaférrea–,enquantooutrostêmdesertotalmenteacabadosantesdepoderementraremuso–umarepresa,por exemplo. Em todos esses casos, omodo de ser físico ematerial do capital fixo afeta o grau dedificuldadeencontradoemformá-lo.Há,porassimdizer,barreirasàentradadecapitalemalgunstiposdeatividadesporcausadaescaladoesforçoinicialenvolvido.Essasbarreirassãoemparteumreflexodas propriedadesmateriais e físicas do valor de uso requerido,mas aqui, também, as circunstânciaseconômicas desempenhamo seupapel.A escala de investimentode capital fixodepende emparte doimpulsoparaconseguireconomiasdeescalanaprodução,economiasnoempregodocapitalconstante,enãoindependedograudeconcentraçãoecentralizaçãodocapital.

Sejacomofor,aproduçãoeacirculaçãodocapitalfixodelargaescalaegrandedurabilidadecriaalgunsproblemasmuitoespecíficosquetêmdesertratados.Considere,porexemplo,asdificuldadesquesurgememrelaçãoao investimentoeaousodesses itenscomoumainstalaçãomodernae integradadeproduçãodeferroeaço,umcomplexopetroquímico,umausinanuclearouumagranderepresa.

Paracomeçar,operíododetrabalhorequeridoparaproduziressesitensseriamuitolongoeimpõeumacargabastanteconsiderávelsobreosprodutores.Marxdeclarouque,

nas fasesmenos desenvolvidas da produção capitalista, os empreendimentos que necessitam de um período de trabalho prolongado e,portanto,deumgrandeinvestimentodecapitalporumperíodomaislongo,especialmentesesópodemserexecutadosemgrandeescala[…]nãosãoemabsolutoexecutadosdemodocapitalista,comoéocaso,porexemplo,deestradas,canaisetc.construídosàcustadacomunidadeoudoEstado.[66]

Naeracapitalistaavançada,noentanto,aconcentraçãoecentralizaçãodocapitaleaorganizaçãodeumsistemadecréditosofisticadopermitemquetaisprojetossejamrealizadosemumabasecapitalista.

Page 219: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Problemassimilaressurgemdevidoaomaciçodesembolsodedinheiroporpartedosusuáriosdessecapitalfixoedevidoaolongotemporequerido–digamos,trintaanosoumais–paraobteressedinheirodevoltamedianteaprodução.Porisso,oscapitalistasindividuaispodem,pornecessidade,“joga[r]asdespesas”dessesprojetos“sobreosombrosdoEstado”[67].Certamente,ocapitalfixoeadurabilidadedessaescalanãodevemserproduzidosouusadossemqueserecorraaosistemadecrédito.Esteúltimoalivia os capitalistas individuais da obrigação de acumular quantidadesmaciças de capitalmonetáriopreparatórioparaaaquisiçãodecapitalfixoeconverteopagamentodessecapitalfixoemumpagamentoanual.Oquenaverdadeacontece–presumindo-seanãoexistênciadepoupançaspessoaisporpartedasoutras classes da sociedade – é que os produtores capitalistas que investem no presente pedememprestadoaoutroscapitalistasqueestãopoupandocomumolharvoltadoaoinvestimentooureposiçãofuturo.Dessamaneira,ocapitalémantidototalmenteempregado,apesardalongacirculaçãodositensdecapitalfixodelargaescala.

Ocréditotornateoricamentepossívelequilibrarosintercâmbiosmonetáriosentreosváriossetoresque produzem bens salariais, capital circulante constante ou capital fixo constante, embora osintercâmbios de mercadorias não sejam de modo algum diretamente modificados. Mas para existirharmonia nos intercâmbios monetários agregados, as poupanças devem estar em equilíbrio com asnecessidadesde investimento.Somos imediatamente levadosa investigarcomo tal equilíbriopode serestabelecidonasrelaçõessociaisdocapitalismo.Eissosópodesertratadonoamplocontextodeumaanálisedosistemadecrédito.Seessacondiçãodeequilíbrionãoformantida–emaistardeveremosporqueissonãopodeacontecer,“excetoporacaso”(vercapítulo9)–,ocréditopodeterminarexacerbandooproblema,emvezderesolvê-lo.

Os intercâmbiosdemercadoriasmateriaisentreossetoresaindaestãosujeitosacontratemposporsuaprópriaconta,eessescontratempostornam-seamplificadospelaintroduçãodecapitalfixodelargaescalaevida longa.Afinal,“quantomenorocapital fixo”,maioresdevemser“essapopulaçãoeessaproduçãoexcedentesrelativas;ouseja,maisparaconstruirferrovias,canais,aquedutos, telégrafosetc.que para produzir maquinaria”[68]. Isso significa que a apropriação maciça (trabalho escravo,acumulaçãoprimitivaetc.)ouumasuperacumulaçãomuito intensaérequeridapara taisprojetosseremconcluídos.E,namedidaemqueelesantecipamos“futurosfrutosdotrabalho”duranteumperíodomuitolongonofuturo,elestambémaprisionamocapitaldemaneirasnemsempredesejáveis.

Se,nodecorrerdodesenvolvimentocapitalista, tivessehavidoumaprogressãoregularemtodasasfrentesdesdeapequenaatéalargaescalaedesdeoinvestimentodecurtoalongoprazoemcapitalfixo,seria mais fácil incorporar a teoria da formação e circulação do capital fixo na teoria geral daacumulação.Emborahajarazõesobjetivaspara“amagnitudeeadurabilidadedocapitalfixoaplicadosedesenvolveremcomodesenvolvimentodomododeproduçãocapitalista”[69],étambémverdadeque“odesenvolvimento da produtividade em diferentes linhas da indústria procede em velocidadessubstancialmente diferentes e frequentemente até em direções opostas”, devendo-se não apenas acondições naturais e sociais,mas também à “anarquia da competição e da peculiaridade domodo deprodução burguês”[70]. Há, por exemplo, várias formas de capital fixo – infraestruturas físicas comodocaseportos,sistemasdetransporteetc.–emquehárelativamentelargaescalaequenecessitamserproduzidasdesdeo inícionahistóriadodesenvolvimentocapitalista.E,namedidaemqueas tensõessurgementreograudecentralizaçãoedescentralizaçãodocapital,entreasesferasdomercadodetrocase da produção, devemos esperar que esses fatores também interajamcomas decisões sobre o uso docapital fixo de determinada escala e durabilidade. Ao que parece, as diferenças na escala e na

Page 220: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

durabilidade do capital fixo são destinadas a ser uma característica essencial do desenvolvimentodesigualdocapitalismo.

2.Ocapitalfixodotipo“autônomo”

Surgemcircunstânciasemqueocapitalfixo“nãoaparececomosimplesinstrumentodeproduçãonointeriordoprocessodeprodução,mascomoformaautônomadocapital,p.ex.,naformadeferrovias,canais,estradas,aquedutos,comocapitalincorporadoàterraetc.”[71].Ocapitalfixodotipo“autônomo”podeserdistinguidodocapitalfixofechadodentrodoprocessodeproduçãoimediatodevidoàsfunçõesmuitoespecíficasqueelerealizaemrelaçãoàprodução–eleatua,comodizMarx,como“ascondiçõesgeraisdaprodução”[72].

Paraocapitalistaindividualasdiferençaspodemserexpressascomoaquelasentreasmáquinaseasconstruções que alojam as máquinas. Mas, na sociedade como um todo, podemos observar muitassituações em que os capitalistas fazem uso dos tipos autônomos de capital fixo em comum e, comoindivíduos, em uma base parcial, intermitente ou temporária[73]. A relação peculiar que esse tipo decapitalfixotemcomaproduçãoéassociadaaotipoespecíficodeprocessodecirculação–“arealizaçãodovaloredovalorexcedentenelecontidosaparecenaformadeumaanuidade,daqualojurorepresentaomais-valoreaanuidade,oretornosucessivodovaloradiantado”[74].Naverdade,ocapitalistaadquireo valor de uso desse tipo de capital fixo emumabase anual ou através de serviços remunerados – aconstruçãoquealojaaproduçãoéalugadaporumano,umaempilhadeiraéalugadaporumasemana,umcontêineréalugadoparalevaramercadoriaparaoseudestino.

Isso implica que a forma autônoma de capital fixo é de propriedade de outra pessoa que não oprodutorcapitalista.Eaíestáabaseracionalparaaformadecirculaçãoqueentãosurge.Naverdade,osdonosdocapitaloemprestamaosusuáriosmaisnaformadecapitalfirmedoquenaformamonetária:

Asmercadoriasemprestadascomocapitalsãoemprestadascomocapitalfixooucapitalcirculante,dependendodesuaspropriedades.Odinheiropodeseremprestadodeumadasduasformas.Porexemplo,elepodeseremprestadocomocapitalfixosefordevolvidonaformade uma anuidade, em que uma porção do capital flui de volta com juro.Algumasmercadorias, como casas, navios,máquinas etc. sópodemseremprestadascomocapital fixodevidoànaturezadosseusvaloresdeuso.Mas todocapitalemprestado,sejaqual forasuaforma,enãoimportacomoanaturezadousopossamodificaroseuretorno,ésempreapenasumaformaespecíficadecapitalmonetário.[75]

Por isso, não vamosmuito longe na discussão dessa forma de circulação do capital fixo sem umexamecompletodocapitalmonetárioedojuro.FoiporessarazãoqueMarxexcluiuoutrosexamesdoproblemanaspassagensquelidamcomocapitalfixoetratouexclusivamentedocapitalfechadodentrodo processo de produção. Ele apresenta alguns comentários provocativos que merecem algumaexplicação.Eleobserva,porexemplo,queoscompromissosdelargaescalaquesebaseiampesadamentenocapitalfixo,comoasferrovias,

aindasãopossíveisseproduziremumjuroreduzido,eestaéumadascausasoriginadasdodecréscimodataxadelucrogeral,poisessescompromissos,emqueaproporçãodocapitalconstanteemrelaçãoàvariávelétãoenorme,nãoentramnecessariamentenaequalizaçãodataxadelucrogeral.[76]

Porisso,épossívelimpedirascrisestransformando“grandepartedocapitalemcapitalfixoquenãoservecomoagentedaproduçãodireta”[77].

Page 221: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Émuitoestranhoqueosmarxistasnão tenhamabraçadoessa ideiaeexploradosuas implicações–tanto teóricas quanto históricas[78].Marx faz duas afirmações. Em primeiro lugar, se o capital fixo éemprestadoemvezdevendido,entãoelefuncionacomoumequivalentematerialdocapitalmonetário.Comotal,elepodecircularcontantoqueovalorneleincorporadosejarecuperadoduranteoseutempodevida e contanto que ele seja acrescidode juro.Comoo juro é apenas uma parte domais-valor, ocapital fixode tipoautônomocirculasemreivindicar todoomais-valorqueeleajudaaproduzir. Issoliberaomais-valor,quepodesercompetitivamentedivididoentreoscapitalistasremanescentesenquantoeleslutamparaigualarataxadelucro.Evidentemente,umcrescimentonasformasdecapitalautônomoemrelaçãoàsformasfechadasdecapital liberammais-valore,dessemodo,podemsecontrapor,pelomenos em curto prazo, à taxa decrescente de lucro comoMarx a definiu. Provavelmente foi por essarazãoqueMarxconsiderou importanteanalisar“a relaçãoemqueocapital totaldeumpaíssedividenessasduasformas”[79].Eisso,porsuavez,temimplicaçõesparaanossainterpretaçãotantodaescalacambiantequantodaorganizaçãodocapitalismoduranteosúltimosduzentosanos(vercapítulo5).

Emsegundolugar,podemosexaminartodaessaquestãodopontodevistadocapitalistaindividual.SeaceitarmosumadasdefiniçõesdeMarxda taxade lucrocomoa taxademais-valorproduzidoemrelação ao capital total empregado, então um aumento no uso do capital fixo dentro do processo deprodução aumenta o capital empregado em relação ao capital real consumido em um período deprodução. O uso de formas de capital fixo autônomo não tem o mesmo efeito porque o capital totalempregado inclui agora apenas o pagamento que o capitalista faz para usar o capital fixo por aqueleperíododetempo.Asubstituiçãodocapitalfixoautônomopelasformasfechadasdecapitalfixoreduzocapital total empregadopeloscapitalistas individuais, aindaqueocapital total consumidopossaestaraumentando.A taxade lucroparaocapitalista individualpodeseraumentadapor talestratagema.Umdeslocamento para o capital fixo do tipo autônomo ajuda a impulsionar a tendência para uma taxadecrescentedelucro.Nocontextoéimportantereconhecerque,emcertograu,arelaçãoentreasformasautônomaefechadadocapitalfixoéfluida–umindustrialpodealugarprédiosemáquinasouadquirirdiretamente os itens. E quando os tempos ficam difíceis, podemos antecipar um crescimento noarrendamento de equipamentos, do tipo que testemunhamos nos últimos anos nos países capitalistasadiantados.

Mastudoissoassumequeasformasdeorganizaçãosãocriadascomcapacidadeparasuprircapitalfixodeumtipoautônomo,equeasuacirculaçãonãoéincomodadapornenhumadificuldadepeculiarouinibidaporqualquerbarreiraséria.Éessencialumsistemadecréditoquefuncioneativamente,eformasde organização – como sociedades anônimas – têm de ser criadas. São condições necessárias. Alémdisso,ocapitalfixoquecirculaindependentementeincorrecertorisco.Emcertosentido,osproblemasdanegociaçãodovalorincorporado(eocálculodatransferênciadovaloretc.)sãomaissériosaquidoquenocasodocapitalfixofechadodentrodaprodução–ousodocapitalfixodependeinteiramentedascondiçõeseconômicasgeraiseémaisvulneráveladesvalorizaçõesrepentinasdevidoaosdeclíniosnouso. Por outro lado, como estamos lidando aqui com o capital fixo que com frequência é usado emcomum,equeatuacomoacondiçãogeralparaaprodução,abuscacompetitivapormais-valordentrodaempresanãoestimularádesvalorizaçõesmedianteamudançatecnológicaparapartealgumapróximadomesmograu–amenosqueosfornecedoresdecapitalfixoautônomoestejamemcompetiçãounscomosoutros.Evidentemente, nãopodemos ir alémnessamatéria semumaconsideraçãomuito específicadecomoaofertaeademandadetiposautônomosdecapitalfixosãoorganizadas.

Os pontos de vista de Marx sobre essa forma particular de capital estão longe de estar bem

Page 222: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

desenvolvidos.Eoresumodaargumentaçãoqueapresentamoslevantaperguntaserespostas.Entretanto,comoMarx, devemos necessariamente adiar qualquer avaliaçãomais profunda até termos pelomenosalgumentendimentodosistemadecréditovigente.Aquisópodemoslevantarideiasqueparecemserdegrandeimportância,masqueaindanãoestamosequipadosparaexploraremtodaasuaplenitude.

IV.OSBENSDECONSUMOAlgumas mercadorias desempenham no reino do consumo um papel um tanto análogo àqueledesempenhado pelo capital fixo no processo de produção. As mercadorias não são consumidasdiretamente,masservemcomoinstrumentosdeconsumo.Elas incluemitensdiversos,comotalhereseutensílios de cozinha, refrigeradores, aparelhos de televisão e lavadoras de roupa, casas e os váriosmeios de consumo coletivo, como parques e caminhos para pedestres. Todos esses itens podem serconvenientementeagrupadossobotítulodebensdeconsumo.

Adistinção entre capital fixo ebensde consumoébaseadanousodasmercadorias e não em seumodo de ser material. Os itens podem ser transferidos de uma categoria para outra mediante umamudançanouso(verp.205).Ocapitalfixoincorporadoemarmazénseoficinaspodeserconvertido,porexemplo,emitensdebensdeconsumo,comoapartamentosegaleriasdearte,evice-versa.Algunsitensfuncionamsimultaneamentecomomeiosdeproduçãoecomomeiosdeconsumo(rodoviaseautomóveis,porexemplo).Usosconjuntossãosemprepossíveis.

Osinstrumentosdeconsumonãotêmdeserproduzidoscomomercadorias.Ostrabalhadorespodemproduzirsuasprópriascasasemseuprópriotempoeatravésdeseusprópriosesforços,etrocarentresiosprodutosdoseupróprio trabalho.Sistemasdesse tipo,comunsnosanos iniciaisda industrializaçãocapitalista, persistemnochamado setor “informal”das economiasdo terceiromundoenas economias“paralelas” dos países capitalistas adiantados[80]. O valor da força de trabalho é sensível à formaassumida pela provisão dos bens de consumo, porque ele é determinado segundo as mercadoriasadquiridasnomercado.Mascomoonossoprincipalinteresseaquiéoprocessodecirculaçãodocapital,vamos assumir que os bens de consumo são produzidos apenas mediante a produção capitalista demercadorias.

Umamercadoriaécapital circulanteparao seuprodutor,não importacomoela sejautilizada.Eladesaparecedacirculaçãoquandoévendidaparaoconsumidorfinaleovalorequivalentedamercadoriaretornaparaocapitalistanaformadedinheiro.Seasmercadoriastêmumavidalongaepermanecememuso, então constituem uma parte da riqueza social total da sociedade,mas nãomais funcionam comocapitalemmovimento.Nesseaspecto,háumadiferença fundamentalentreousocontinuadodocapitalfixo(quemantémovalorcirculandocomocapital)eousocontinuadodositensdebensdeconsumo.

Seissofossetudooqueimportasse,entãopoderíamosalegrementedeixardeladoaquestãodosbensdeconsumo.Masconsidereaquestãodopontodevistadoscompradores.Estesúltimostêmdepagarovalor total equivalente à mercadoria em um momento do tempo para ganhar uma série de futurosbenefícios.Elespodemjuntardinheiroouemprestaropróprioitem(emcujocasoelespagamumaluguelporele)ouodinheiroparaadquiri-lo(emcujocasoelespagamjuros).Ospagamentosdealuguelejurossãoumacompanhamentopadrãoparaousodemuitositensdebensdeconsumo.Éimportanteentenderoporquê.

Alguns itens de bens de consumo, comomoradia, requeremumdesembolso inicial tão grandequeestãoalémdosmeiosdeaquisiçãodiretaparatodos,comexceçãodosmuitoricos.Paraamoradiaser

Page 223: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produzida como uma mercadoria, torna-se essencial o aluguel ou o empréstimo de dinheiro. Sem asintervençõesdoproprietário,dosistemadecréditoedoEstado,oacessoaocapitalserianegadoaumaformadeproduçãomuitoextensaemuitobásica[81].Oaçambarcamentodedinheiroparaaaquisiçãodebens de consumo caros também tumultua a circulação do capital, pois vincula o dinheiro (que docontráriopoderiaserconvertidoemcapital)eatuacomoumabarreiraparaatransformaçãotranquiladacirculaçãoderendimentosnanegociaçãodocapitalmedianteatroca.Quandoosistemadecréditovememsocorro, elepermitequealgunsconsumidoreseconomizem(em trocade juros) equeoutros façamempréstimoepaguemtantoos jurosquantooprincipalduranteumperíodode tempoestendido.Dessemodo,osintercâmbiosentreosváriossetorespodemserprotegidoscontraoexcessivoaçambarcamentoderendimentos.

Entretanto,oefeitoimediatoéintegrarousodegrandepartedosbensdeconsumoàcirculaçãodocapitalquerendejuros.Odinheiroéempregadoemtrocadosrendimentosfuturosdaquelesqueusamobemdeconsumo.Oitematuacomoumasegurançaparaoempréstimo,oquesignificaqueeledeveretero seu caráter de mercadoria como um valor de uso material potencialmente comercializável. Se omutuário falhanospagamentos,ocredordevepoder retomaramercadoriaeoferecê-laparavendanomercado. A formação de um mercado de segunda mão em muitos itens de bens de consumo (casas,automóveisetc.)éumcorolárionecessárioaofinanciamentodadívidadasuaaquisição.

O capital pode circular e circula dentro e através dos bens de consumo.Àmedida que o capitalmonetáriopenetra,osinstrumentosdeconsumoassumemaformadecapitaldemercadoriaarmazenado.As regras de circulação do capital nos bens de consumo tornam-se um aspecto importante para acirculação do capital em geral. O próprio Marx evitou qualquer consideração detalhada do tema,baseadonofatodequeele“estárelacionadocomoutrasdeterminações(alugaremvezdevender,juroetc.)”, que ainda precisam ser exploradas[82]. A questão é bem pertinente, mas vários pontos iniciaisrelacionadosaosbensdeconsumopodemserproveitosamenteapresentadosaqui.(1)Ostemposdevidafísicaeeconômicadositensdosbensdeconsumosãoestabelecidosporforças

diferentesdaquelasqueprevalecemnocasodocapitalfixo.Acompetiçãopelomais-valorrelativoque eternamente revoluciona e periodicamente desvaloriza o capital fixo está perceptivelmenteausentedentrodaesferadoconsumo.Acompetiçãoqueexisteestáligadaaoscaprichoscambiantes,àsmodas e ao desejo de exibir sinais de status.Namedida em que o “consumo racional” para aacumulaçãodependedamanutençãodealgumacirculaçãodosusosdosbensdeconsumo,asforçasdamoda e do status têm de ser mobilizadas pelo capital. Por mais que isso possa acontecer, aobsolescênciadositensdebensdeconsumonãoocorreemrespostaàsmesmaspressõesquemoldamousodocapitalfixo.Asrevoluçõesnasforçasprodutivassócriamobsolescênciaindiretamente–osprodutosdeconsumomaisbaratosemaiseficientestornamnãoeconômicaamanutençãodosantigos;as revoluções nas relações de transporte e na transferência das instalações industriais tornamredundanteahabitaçãoemalgumasregiões;eassimpordiante.Otempodevidamaterialfísicadosobjetos tem um papel mais importante a desempenhar no caso dos bens de consumo. Por isso, aincorporação na obsolescência física é tão importante quanto a obsolescência econômica para amanutençãodosmercados.

(2)Ovalordetrocadositensdesegundamãonosbensdeconsumoéamplamenteditadopelovalordenovos itens equivalentes. A possibilidade de comercialização desses itens depende de suaalienabilidadeedesuacapacidade(emqualquerestágiodoseutempodevidafísica)paraproduzirumfluxoderendimentosfuturosemtrocadoseuuso.Opreçodobeméentãofixadopelorendimento

Page 224: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

queelepodegerarcapitalizadonataxadejurosvigente(vercapítulos9e11).(3)Aaquisiçãodeitensdebensdeconsumoviahipotecaseoutrasformasdecréditoaoconsumidoré

sensívelàdisponibilidadededinheiro.Porisso,osimpulsoscíclicosquederivamdatendênciaparaa superacumulação são tão ativos na formação de bens de consumo quanto o são com respeito aoinvestimentoemcapitalfixo.Entretanto,acapacidadeparaabsorverocapitalmonetárioociosonosbens de consumo é limitada pela circulação de rendimentos futuros. O superendividamento comrespeitoaosbensdeconsumopodeserumproblematãosérioquantoosuperinvestimentoemcapitalfixo.Areivindicaçãoderendimentosfuturosderivadosdotrabalhofuturopodeexcederemmuitoascapacidadesdecriaçãodevalordesse trabalhofuturo.Osbenscomercializáveisdentreosbensdeconsumo consequentemente tendem a ser desvalorizados no decorrer de uma crise, enquanto osuperendividamentopodeserumafontededesequilíbrio.Poroutrolado,osistemadecréditotemacapacidadedeestimularaprodução(mediantea formaçãodecapital fixo)e anegociaçãona troca(mediantea criaçãodebensdeconsumo).Vamosconsiderar as ramificaçõesmaisprofundasdissonospróximoscapítulos.

(4)Valeapenaconsideraradistinçãoentre“necessidades”e“luxos”nosbensdeconsumo.Amaneira,com frequência conspícua, como a burguesia consome seus rendimentos tem ramificações muitodiferentesdacriaçãodeumbemdeconsumoparaareproduçãodaforçadetrabalho.Lembre-sedequeareduçãonocustodasnecessidadeséumafontedemais-valor.Moradiabarataealuguelbaixooupagamentodejurosbeneficiamocapitalporque“aeconomianessascondiçõeséummétodoparaelevarataxadejuros”[83].Aconstruçãodemoradiasparaostrabalhadorescomfrequênciaestimulaumatendênciaaconflitosentreosproprietáriosdeterra,osconstrutores,oscapitalistasmonetários,os trabalhadores assalariados e os capitalistas em geral[84]. Com frequência isso resulta emintervençõesdoEstado.

V.OAMBIENTECONSTRUÍDOPARAAPRODUÇÃO,ATROCAEOCONSUMO

Umapartedosmeiosde trabalho,naqualse incluemascondiçõesgeraisde trabalho,éou imobilizadanumdeterminadolocal, tão logoentranoprocessodeprodução[…]ouéproduzidadesdeoinícioemsuaformaimóvel,espacialmentefixa,talcomomelhoriasdosolo,edifíciosfabris,altos-fornos,canais,ferroviasetc.Avinculaçãoconstantedomeiodetrabalhoaoprocessodeproduçãonointeriordoqualeledeveatuaréaquicondicionada,aomesmo tempo,pelo seumodomaterialdeexistência.Poroutro lado,ummeiode trabalhopodemudarconstantementedelugar,mover-see,noentanto,encontrar-senoprocessodeprodução,talcomoumalocomotiva,umnavio,umboidecargaetc.Nemaimobilidadelheconfere,numcaso,ocaráterdecapitalfixo,nemamobilidadeoprivadessecaráter,nooutro.Noentanto,acircunstânciadequeosmeiosdetrabalhosejamespacialmentefixos,enraizadosnaterra,confereaessapartedocapitalfixoumpapelespecialnaeconomiadasnações.Elesnãopodemsermandadosaoexterior,circularcomomercadoriasnomercadomundial.Ostítulosdepropriedadesobreessecapitalfixopodemsertrocados,permitindoaessecapitalsercompradoevendidoe,nessamedida,circularidealmente.Taistítulosdepropriedadespodematémesmocircularemmercadosestrangeiros,porexemplo,naformadeações.Mascomamudançadaspessoasquedetêmapropriedadedessetipodecapitalfixonãosealteraarelaçãoentreapartepermanente,materialmentefixadariquezanumpaíseapartemóveldessamesmariqueza.[85]

Marxinsisteemquenãodevemosconfundircapitalfixocomcapitalimóvel (navioselocomotivassãocapital fixo, embora eles semovam, enquanto alguns elementos de capital circulante, como a energiahidráulica, têmdeserusados insitu).Mas temosde considerar o “papel peculiar”queo capital fixoimóveldesempenhanocapitalismoemgeralenaeconomiadasnaçõesemparticular.Umapartedosbens

Page 225: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

deconsumo(moradias,parquesetc.)étambémimóvelnoespaço.Issonosconduzàconcepçãodeumambienteconstruídoquefuncionacomoumsistemaderecurso

vasto,humanamentecriado,compreendendovaloresdeuso incorporadosnapaisagemfísica,quepodeserutilizadoparaaprodução,atrocaeoconsumo.Dopontodevistadaprodução,essesvaloresdeusopodem ser tanto considerados condições gerais para a produção quanto forças diretas da produção.Então,temosdelidarcom“melhoriasincorporadasnosolo,aquedutos,edificações;e,emgrandeparte,aprópria maquinaria, uma vez que ela, para exercer sua atividade, precisa ser fisicamente fixada;ferrovias; em suma, toda forma em que o produto da indústria é preso à superfície da terra”[86]. Oambienteconstruídoparaoconsumoeatrocanãoémenosheterogêneo.

O ambiente construído compreende toda uma série de elementos diversos: fábricas, represas,escritórios, lojas,armazéns,rodovias,ferrovias,docas,usinashidrelétricas,sistemasdesuprimentodeáguaetratamentodeesgoto,escolas,hospitais,parques,cinemas,restaurantes–alistaéinfinita.Muitoselementos–igrejas,casas,sistemasdedrenagemetc.–sãolegadosdeatividadesrealizadasemrelaçõesdeproduçãonãocapitalistas.Aqualquermomentooambienteconstruídoaparececomoumpalimpsestodepaisagensmoldadassegundoosditamesdediferentesmodosdeproduçãoemdiferentesestágiosdoseu desenvolvimento histórico. Nas relações sociais do capitalismo, no entanto, todos os elementosassumemumaformademercadoria.

Consideradossimplesmentecomomercadorias,oselementosdoambienteconstruídoexibemalgumascaracterísticaspeculiares.Aimobilidadenoespaçosignificaqueumamercadorianãopodesermovidasemqueovalornelaincorporadosejadestruído.Oselementosdoambienteconstruídotêmumaposiçãoou localização espacial como atributo mais fundamental do que incidental. Por isso eles têm de serconstruídosoureunidosinsitunaterra,deformaqueaterraeaapropriaçãodoarrendamentodaterra(vercapítulo11)setornemsignificativas.Alémdisso,autilidadedeelementosparticularesdependedasualocalizaçãoemrelaçãoaoutros–lojas,moradias,escolasefábricasdevemtodasserrazoavelmentepróximasumasdasoutras.Todaaquestãodaordenaçãoespacialdoambienteconstruídotementãodeserconsiderada;adecisãodeondecolocarumelementonãopodeserdivorciadado“onde”dosoutros.

Oambienteconstruídotementãodeserencaradocomoumamercadoriageograficamenteordenada,complexa e composta. A produção, disposição, manutenção, renovação e transformação dessamercadoria implica sérios dilemas. A produção de elementos individuais – casas, fábricas, lojas,escolas,rodoviasetc.–temdesercoordenada,tantonotempocomonoespaço,demaneiraapermitirqueamercadoriacompostaassumaumaconfiguraçãoapropriada.Osmercadosfundiários(vercapítulo11)servemparaalocar terraaosusos,masocapital financeiroeoEstado(principalmentemedianteainterferência na regulação e no planejamento do uso da terra) também atuam como coordenadores.Também surgem problemas porque os diferentes elementos têm diferentes tempos de vida física e sedesgastam em velocidades diferentes. A depreciação econômica, particularmente de elementos quefuncionamcomoforçasprodutivasparaocapital,tambémdesempenhaoseupapel.Mascomoautilidadedoselementos individuaisdepende,emgrandeparte,dautilidadedoselementoscircundantes,padrõescomplexosdedepreciaçãoeapreciação(comramificaçõesparaasrelaçõesdevalor)sãoacionadosporatosindividuaisderenovação,reposiçãooutransformação.Osefeitosde“repercussão”dasdecisõesdeinvestimento individuais são localizadosnoespaço.Similarmente,odesinvestimentoemumapartedoambienteconstruídopodedepreciarosvaloresdaspropriedadesadjacentes.

Dizer que há uma produção de mercadoria para o ambiente construído implica que podem serformadosmercadosparaaproduçãoeavendadeelementosindividuaisque,consequentemente,têmum

Page 226: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

valor de uso, um valor de troca e um valor. Aqui encontramos alguns problemas adicionais. Aexclusividade do uso e da apropriação privada dos valores de uso pode ser estabelecida para algunselementos (casas, fábricas etc.), enquanto os usos coletivos são possíveis para outros elementos(rodovias,calçadasetc.).Oambienteconstruídocomoumtodoéempartebempúblicoeempartebemprivado, e os mercados para os elementos individuais refletem as interações complexas entre osdiferentes tipos de mercado. Além disso, como os vários elementos dentro do ambiente construídofuncionamcomovaloresdeusolocalizados,existeapossibilidadedeanexar-lhesumaetiquetadepreço,mesmodepois que o seu valor tenha sido totalmente retornado ao capital.Umarrendamento pode serextraídoparaoseuusoecapitalizado,nataxadejurosvigente,emumpreçodemercadoparaaterraeseuspertences.Então,doistiposdevalordetrocaexistemladoalado:oaluguelcapitalizadosobreoselementos antigos e o preço de produção sobre os novos.Os dois preços são derivados demaneirastotalmentediferentes,massãoconciliadosemumaúnicaestruturadepreçopelosistemademercado.Seeupossocomprarumacasavelhapormenosdoquecustaconstruirumanovacomcaracterísticasquaseidênticas,entãoporquedevomedarotrabalhodeconstruirumanova?

A formação da terra e dos mercados imobiliários tem um impacto extremamente importante nacirculaçãodocapitalatravésdoambienteconstruídoemgeral.Umataxaderentabilidadesobreocapitalmonetáriopodeserobtidainvestindo-seempropriedadesvelhasassimcomonaconstruçãodenovas.Ocapitalmonetário ocioso podemuito facilmente ser emprestado tanto como propriedade quanto sob aforma de dinheiro.Comouma parte do valor de uso de uma propriedade depende da sua localizaçãorelativa,oscapitalistasmonetáriospodem igualmente investirna terraena futura rendaqueelapossaproduzir.Comoarendaéencaradacomoumaporçãodemais-valorapropriadopelosproprietáriosdeterra, o capitalmonetário está sendo agoramais investido na apropriação do que na produção.Comoproposiçãoteórica,issopareceabsolutamenteirracional.Entretanto,arelevânciamaterialéquetodososaspectosdaproduçãoedousodoambienteconstruídosãolevadosparadentrodaórbitadacirculaçãodo capital. Se as coisas não fossem assim, o capital não poderia se estabelecer (com todas as suascontradições) na paisagem física de uma maneira que em geral apoia a acumulação – o ambienteconstruídoqueocapitalrequerparaaprodução,atrocaeoconsumonãopoderiaserinfluenciadonosinteressesdocapital[87].

OpróprioMarxestavabastanteconscientedasimplicaçõesmaisamplasdetudoisso.Eleescreveuqueaconcepçãodacirculaçãodocapitalmedianteoambienteconstruídoimplicaqueamera“condiçãotecnológicaparaodesenrolardoprocesso(olocalemquesedáoprocessodeprodução)”podeemsiser considerada uma “forma de capital fixo”. A apropriação “dos agentes naturais, como água, terra(sobretudo esta), minas etc. “em princípio não é diferente da apropriação de outros valores de usosmateriaisedesuatransformaçãoemcapitalfixocolocando-osemusocomotais”[88].Amelhoriadaterra–querpelaagriculturaoupelaindústria–significaqueaprópriaterra“devefuncionarfundamentalmentecomocapitalfixo[…]emalgumprocessodeproduçãolocal”[89].

Como, então, podemos discutir a circulação do capital no ambiente construído sem dar a devidaconsideraçãoàpropriedade fundiária?E,umavezquepermitimosaentradadapropriedade fundiária,podea teoriada renda ficar superada[90]?Nãopodemosobter total comandodoqueestá acontecendosementenderplenamenteasteoriasdarendaedojuro.PodemosagoraverporqueMarxdeclaraqueotipodiferentederendimentosobreocapitalfixoeocapitalcirculanteéadiferençaentrearendaanualporumladoeavendadiretacomlucroporoutro.Astarefasqueestãodiantedenósnospróximostrêscapítulosestão,portanto,claramentedefinidas.Arendaeojurocomoformasdedistribuiçãotêmdeestar

Page 227: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

totalmenteintegradosnateoriadomododeproduçãocapitalista.

VI.OCAPITALFIXO,OSBENSDECONSUMOEAACUMULAÇÃODECAPITALOscapitalistas nãopodemdurantemuito tempoprocurar captar osbenefíciosdamudança tecnológicasemcriarcapitalfixo.Comisso,criamummododecirculaçãodocapital,distintoebastantepeculiar,que,nodevidocurso,se“solidifica”emum“mododeexistênciaseparadodocapital”.Domesmomodo,umbemdeconsumotambéménecessárioparaareproduçãodaforçadetrabalhoeformasespeciaisdecirculaçãodocapitalsurgemparaabarcarsuaproduçãonaformademercadoria.

Os efeitos agregados sobre o processo de acumulação são dramáticos. Relações temporaisespecíficassãointroduzidasemmodelosdeacumulação,quesãodeinícioespecificados(vercapítulo6)semreferênciaaqualquerescaladetempo.Acriaçãodeumambienteconstruídonosobrigaaconsiderarosarranjoslocaiseespaciaiscomoatributosespecíficosdomododeproduçãocapitalista.Oprocessodeacumulaçãotemdeservistoagoracomooperandodentrodeumaestruturadetempoeespaçodefinidadeacordocomacaracterísticalógicadocapitalismo.Umavezquevamosabordaroproblemadelocaleespaçonoscapítulos11e12,limitareiminhaatençãoaquiaalgumasreflexõessobreoaspectotemporaldostemas.

Por conveniência, voume referir à totalidade dos processos em que o capital circula através docapital fixoedaformaçãodosbensdeconsumoedoseuusocomoocircuito secundáriodocapital.Dentro desse circuito secundário devemos atribuir certa prioridade de local à formação e ao uso docapital fixoemrelaçãoàproduçãodemais-valor,pois issodefineaescalade tempo relativanaqualcirculamdiferenteselementosdocapitalconstante.Entretanto,éinteressanteobservarcomooritmodaformaçãoedousodosbensdeconsumoégradualmenteatraídoparaumpadrãodeamplaconformidadecomaqueleexperienciadopelocapitalfixo.Mostraremosbrevementeporqueissoacontece.

Oprocessodecirculaçãodocapitalfixonãoestabeleceumaescaladetempoabsolutacontraaqualaacumulação pode ser medida. A investigação de Marx das propriedades materiais das máquinas seaproxima às vezes da confinação da circulação do capital fixo às velocidades de decadência dasubstânciamaterial devido ao “desgaste normal”.Mas o desgaste normal não pode ser definido semalgumanoçãoanteriordaintensidadedouso,eoconceitodetempodevidaeconômica,emoposiçãoàfísica, rapidamente desordena qualquer construção fácil de uma métrica temporal. Esta última setransforma em uma reflexão da intensidade geral da produção de mais-valor dentro do processo detrabalho.Os tempos de trabalhonecessário e excedente são, afinal, umacaracterística fundamental doaparato conceitual inicial deMarx.O esforçono sentidodomais-valor relativopromove, assim, umaconstanteremodelagemdatemporalidadedotrabalhosocialedavidasocial.

Alémdisso,Marxdemonstraqueaseparaçãoentreocapitalfixoeocapitalcirculanteimprimeumritmocíclico–potencialmenteexplosivo–nos intercâmbiosentreossetores1e2.Dadosofluxoeorefluxonovolumedoexércitoindustrialdereservaeosatrasosenvolvidosnaformaçãodecapitalfixo(particularmente trabalhos em larga escala, que utilizam um longo período de trabalho), flutuaçõescíclicasnoritmodaacumulaçãopareceminevitáveis.Estas,porsuavez,comunicamimpulsoscíclicosàcriaçãodebensdeconsumoquepodem,emalgumascircunstâncias,ampliarassaídasdoequilíbriopormeiodeumefeitomultiplicador.

Page 228: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Tambémobservamosqueasuperacumulaçãodocapitalenvolveaproduçãodeexcedentesdeforçadetrabalho,mercadoriasecapitalmonetário–condiçõesquesãoexatamentecorretasparaestimularosfluxosdecapitalcirculantenocircuitosecundáriodocapitalcomoumtodo.Contantoqueodeslocamentoparaocircuitodocapitalpossaserproduzido–umprocessoquepodemuitobemenvolveralgumtipode“crisededeslocamento”–,ocircuitoaparececomoumpresentedosdeusesparaaabsorçãodocapitalexcedente,superacumulado.Acapacidadeparaaabsorçãodoexcessodecapitalestálimitadadeduasformasdistintas.Anegociaçãodocapitalfixodependedoconsumoprodutivoaumentadoque,emlongoprazo,geraaindamaiscapitalaserabsorvido.Anegociaçãodocapitalnosbensdeconsumodependedaexpansãodas receitas futurasparacobriradívidadasaquisiçõesatuais.Emambososcasos,então,aperspectiva da desvalorização surge se as condições apropriadas não forem preenchidas.Mas, nesseponto,ainteraçãoentreocapitalfixoeaformaçãoeousodosbensdeconsumotorna-sedeprimordialimportância. É possível surgir circunstâncias em que o capital fixo expandido na produção pode sernegociadomedianteaexpansãodocapitalcirculantenointeriordosbensdeconsumo.Ofatodeessaserumasoluçãoirrealparaoproblemadasuperacumulaçãodeveriaserevidente(vercapítulo10).Masnamedidaemqueosdoisprocessospodemreforçarealimentarumaooutro,elesvãoimpediroinevitáveldesenlace.

A implicação disso é que, no primeiromomento, a formação da crise assume um ritmo temporalparticular definido pelos tempos de circulação relativos nos vários componentes do capital fixo emrelação à produção de mais-valor. Entretanto, a diversidade dos tempos de circulação potenciais éconsiderável.Osistemaparecedirecionadoparaumatotalincoerência–amenosquepossamosrastrearumaforçaunificadoraúnicaquecoloqueasuamarcanosprocessos temporaiscomoumtodo.A ideiacentralqueemergedoestudodaformaçãodocapitalfixoéqueataxadejurosdesempenhaexatamenteessa função.Sepudermosdescobriroque regulaa taxade juros, revelaremoso segredodo tempodecirculaçãosocialmentenecessário–eessaéatarefadosdoispróximoscapítulos.

Há,porém,certaironia.Acirculaçãodocapitalmedianteaformamaterialdocapitalfixoedosbensdeconsumoéregulamentadapeloapeloaocapitalemsuamaissimplesformamonetária.Aquiestãoassementesdeumacontradiçãofundamental.Porumlado,ocapitalfixoaparececomoaglóriarematadadodesenvolvimentocapitalistapassado,a“forçadosaberobjetivada”,umindicadordograuemqueo“osabersocialgeral,conhecimento,deveioforçaprodutivaimediata”[91].Ocapitalfixoelevaospoderesprodutivosdotrabalhoanovasalturas,aomesmotempoqueasseguraadominaçãodotrabalhopassado“morto”(capitalincorporado)sobreotrabalhovivonoprocessodetrabalho.Apartirdopontodevistadaproduçãodomais-valor,ocapitalfixoaparececomo“aformamaisadequadadocapital”.

Poroutrolado,ocapitalfixoéo“valorpresoaumvalordeusodeterminado”,associadoaformasespecíficas de produção demercadoria em condições tecnológicas específicas. Isso deve comandar otrabalhofuturocomoumcontravalor,casooseuvalorvenhaasernegociado.Poressarazão,ocapitalfixo limita a trajetória dodesenvolvimento capitalista futuro, inibe amudança tecnológica adicional ecoageocapital justamenteporqueele“estápresoàsuaexistênciacomovalordeusodeterminado”.Ocapital em geral “é indiferente a qualquer forma determinada do valor de uso e pode assumir ou sedesfazerdequalquerumadelascomoencarnaçãoindiferente”.Dessepontodevista,ocapitalcirculante(dinheiro) parece ser “a forma adequada” de capital porque é mais instantaneamente maleável àsexigênciasdocapital[92].

Ocapitalfixo,queparecedopontodevistadaproduçãoopináculodosucessodocapital,torna-se,do ponto de vista da circulação do capital, uma simples barreira à acumulação adicional. Por isso o

Page 229: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capital “encontra barreiras em sua própria natureza”. E há apenas duas maneiras de resolver essascontradições.Elasousãotratadasforçosamentenodecorrerdeumacrise,ousãodeslocadasparaalgumplanomais alto emais geral ondeproporcionamos ingredientespara a formaçãode crisedeum tipodiferenteecomfrequênciamaisprofundo.Tendoissoemmente,agoravamosnosvoltarparaoproblemadodinheiro,docréditoedasfinançasemrelaçãoàacumulaçãodocapital.

[1]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.589.

[2]Ibidem,p.582.

[3]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.382.

[4]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.210.

[5]Idem,Grundrisse,cit.,570.

[6]Ibidem,p.575.

[7]Ibidem,p.583.

[8]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.225.

[9]Ibidem,p.158.

[10]Idem,Grundrisse,cit.,p.612.

[11]Ibidem,cap.3.

[12]Ibidem,p.621.

[13]Ibidem,p.607.

[14]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.207-9.

[15]Ibidem,LivroI,p.250.

[16]Ibidem,LivroII,p.216-9.

[17]Ibidem,p.158.

[18]Idem,Grundrisse,cit.,cap.3;Capital,LivroII,cit.,p.157-8.

[19]Idem,Grundrisse,cit.,p.570.

[20]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.221.

[21]Ibidem,p.157.

[22]Ibidem,p.173-4.

[23]Ibidem,p.175.

[24]Ibidem,p.171.

[25]Ibidem,p.169-82.Oproblemadadiferenciaçãoentreoreparoeasubstituiçãoéparticularmentesérionocasodoambienteconstruído,comoveremosmaisadiante(p.314-8).

[26]Ibidem,p.158.

[27] Michio Morishima (Marx’s Economics, cit., p. 178). Nas mãos de Piero Sraffa (The Production of Commodities by Means ofCommodities, cit.), esse método produz o interessante insight de que a escolha da tecnologia e, portanto, o valor de uso das máquinas,dependedataxadelucro,equeatrocaearetrocadetecnologiaspodeocorrercomvariaçõesnataxadelucro.Jávimosqueumadascríticasdo argumento da taxa decrescente de lucro deMarx é a falha em admitir a possibilidade dessa troca (ver p. 258-9), e vamos agora nosesforçarparamostrarmaisconcretamenteporqueháumconflitoentreoprocessodecirculaçãodocapitalfixoeacapacidadedetrocarastecnologiasàvontade.

[28]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.153;TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.391.

[29]MichioMorishima,Marx’sEconomics,cit.,p.180.

[30]IanSteedman,MarxafterSraffa,cit.,p.183.

Page 230: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[31]DavidLevine,EconomicTheory,cit.,p.302.

[32]Idem.

[33] O debate sobre “lucros positivos commais-valor negativo” em condições de produção conjunta é instrutivo nesse aspecto. Ver IanSteedman(MarxafterSraffa,cit.,cap.11),MichioMorishimaeGeorgeCatephores(Value,ExploitationandGrowth, cit.,p.29-38)earejeiçãodoargumentocomoespúrioporBenFineeLaurenceHarris(Re-ReadingCapital,cit.,p.39-48).

[34]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.223.

[35]BemFineeLaurenceHarris(Re-ReadingCapital,cit.,p.45)apontamque“nemSteedmannemMorishimaempregamoconceitodevalordeMarx.Adivergênciamais fundamentaldo conceitodeMarxemambosos casos éque cada autor enxergaovalor simplesmentecomoumconceito contábil, enquantoMarxo trata comoum fenômeno real que temefeitos concretos”.Amesmacríticapode ser feita àtentativa abortiva de John Roemer (“Continuing Controversy on the Falling Rate of Profit: Fixed Capital and Other Issues”,CambridgeJournalofEconomics,1979,v.3)deintegraraformaçãoeousodocapitalfixonoargumentodeMarxsobreataxadecrescentedelucro.

[36]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.280.

[37]Ibidem,p.119,160.

[38]Ibidem,LivroII,p.72.

[39]Idem,Grundrisse,cit.,p.614.

[40]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.161-7.

[41]Ibidem,p.182.

[42]Ibidem,p.469.

[43]Idem,Grundrisse,cit.,p.592.

[44]Ibidem,p.589-90.

[45]Ibidem,p.590.

[46]Idem.

[47]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.23.

[48]Idem,Grundrisse,cit.,p.565.

[49]SegundoTheStagesofEconomicGrowth(Londres,CambridgeUniversityPress,1960)deWaltRostow(comseuinteressantesubtítulodeum“manifestonãocomunista”),aGrã-Bretanhaatingiusua“decolagem”paraocrescimentoeconômicoentre1783e1802,duplicandoasua taxa de investimento de 5 para 10%. Phyllis Deane e W. A. Cole (British Economic Growth: 1688-1959, Londres, CambridgeUniversityPress,1962,p.261-4)encontrarampoucasevidênciasparatalondanaformaçãodecapital,eosubsequentedebate–grandepartedoqualéreproduzidoemFrançoisCrouzet(CapitalFormation in theIndustrialRevolution,Londres,Methuen,1972)–dáforteapoioaessa conclusão. Também vale a pena consultar Peter Mathias, “Capital Credit and Enterprise in the Industrial Revolution”, Journal ofEuropeanEconomicHistory,1973,v.2.

[50]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.186.

[51] Michal Kalecki (Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy, cit, cap. 13) apresenta um relato interessante doesquemadeTugan-Baranovski.

[52]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.587.

[53]Ibidem,p.611-2.

[54]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.185.

[55]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.545;LivroIII,cit.,p.114-5.

[56]OparalelocomospontosdevistadePaulBoccarasobreadesvalorizaçãorelativa(vercapítulo7)mereceserconferido.

[57] O relato de David Noble (America by Design: Science, Technology and the Rise of Corporate Capitalism, cit.) sobre o usocontroladodasleisdepatentesnosEstadosUnidosdesdeoiníciodoséculoXXseadequamuitobemaesserelatoteórico.

[58]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.170.

[59]Ibidem,LivroIII,p.113-4.

[60]Ibidem,p.249,254.

[61]Ibidem,LivroII,p.186.

[62]Idem,Grundrisse,cit.,cap.3.

[63]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.220-1.

Page 231: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[64]Ibidem,p.221.

[65]Idem,Grundrisse,cit.,p.593.

[66]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.233.

[67]Idem,Grundrisse,cit.,p.438.

[68]Ibidem,p.590.

[69]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.185.

[70]Ibidem,p.260.

[71]Idem,Grundrisse,cit.,p.574-5.

[72]Ibidem,p.438.

[73]Ibidem,cap.3.

[74]Ibidem,p.604.

[75]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.344.

[76]Ibidem,p.437.

[77]Idem,Grundrisse,cit.,p.628.

[78]OprimeirorelatodePaulBoccara(Étudessurlecapitalismemonopolisted’État,sacriseetsonissue,cit.) sobreadesvalorizaçãolevanta esse ponto, mas depois enfraquece sua real importância anexando-o a uma teoria da desvalorização estrutural no capitalismomonopolista estatal (ver capítulo7).A.D.Magaline (Lutte de classe et dévalorisation du capital, cit.), enquanto corretamente rejeita aposiçãoteóricageraldePaulBoccara,deixadeabrirmãodaverdadeparcialdoargumentodesteúltimocomrelaçãoàcirculaçãodocapitalfixocomumataxaderemuneraçãoinferioràmédiasocial.

[79]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.575.

[80]AlejandroPortes(“TheInformalSectorandtheCapitalAccumulationProcessinLatinAmerica”,emA.PorteseJ.Walton[orgs.],ThePolitical Economy ofDevelopment, NovaYork, Academic Press, 1980) examina a literatura sobre o setor informal e a acumulação docapital(principalmentecomreferênciaàAméricaLatina).

[81]Osetorhabitacionaltemsidoofocodegrandepartedapesquisarealizadaapartirdeumaperspectivamarxiananosúltimosanos.Verolevantamento feito por Keith Bassett e John Short (Housing and Residential Structure: Alternative Approaches, Londres/Boston,Routledge&K.Paul,1980).

[82]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.593.

[83]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.86.

[84]Examino isso emmaiores detalhes emDavidHarvey, “Labor,Capital andClass StruggleAround theBuilt Environment inAdvancedCapitalistSocieties”,PoliticsandSociety,1977,v.6.

[85]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.162-3.

[86]Idem,Grundrisse,cit.,p.619.

[87]VerDavidHarvey(“UrbanizationunderCapitalism:aFrameworkforAnalysis”,cit.)paraumaanálisemaisdetalhadadessetema.

[88]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.596.

[89]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.210.

[90]Idem,Grundrisse,cit.,cap.3.

[91]Ibidem,p.589.

[92]Ibidem,p.580.

Page 232: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

9.Dinheiro,créditoefinanças

Marx não completou sua análise dos fenômenosmonetários e financeiros. Ele estabeleceu uma teoriamuitogeraleextremamenteabstratadodinheironoprimeirolivrod’Ocapital(aliresumindoasanálisesmaisextensas,porémmaishesitantes,apresentadasnosGrundrisseenaContribuiçãoparaacríticadaeconomiapolítica). Seus comentários sobreo funcionamentodo sistemade crédito se tornarammuitoconfusos.Engelstevegrandedificuldadeparacolocá-losemumaespéciedeordemparasuapublicaçãono terceiro livro d’Ocapital. Em seu prefácio a essa obra, Engels se queixou de que “não havia umrascunho acabado, nem sequer um esquema cujas linhas gerais pudessem ter sido preenchidas – comfrequênciaapenasumamassadesordenadadeanotações,comentárioseextratos”.EngelsfoifielaMarxe terminou replicando grande parte da desordem. Essa foi uma parte importante dos “negóciosinacabados”nateoriadeMarx.

ÉdifícildizeratéquepontoMarximaginavaserimportanteessapartedosnegóciosinacabados.Eleachavaqueaanálisedodinheiroerasuficientementeimportanteparacolocá-laantesdesuainvestigaçãoda circulação do capital. Mas também insiste que a origem do lucro (no mais-valor) poderia serentendidasemseapelarparaquaisquerdascategoriasdedistribuição.Aanálisedocrédito,dasfinançasedacirculaçãodocapitalquerendejurosfoi,porisso,deixadaparadepoisdaanálisedosmovimentosgerais,eatémesmodataxadelucro.Équestionávelsetalintroduçãotardiadopapeldocréditopodeserjustificada.Mesmoenrouteparasuaderivaçãodatendênciaparaumaquedadecrescentedolucro,Marxfrequentemente indica que este ou aquele problema não poderia ser resolvido sem a consideração dopapel do crédito.Quando juntamos essas observações, o sistemade crédito parece cadavezmais umpontocentralcomplexodentrodoquebra-cabeçamarxianodasrelaçõesinternas.Maséumpontocentralquedescreveasrelaçõesdentrodaclassecapitalista–entreoscapitalistasindividuaiseasexigênciasde classe, assim como entre as facções do capital. O sistema de crédito é um produto dos própriosesforçosdocapitalparalidarcomascontradiçõesinternasdocapitalismo.OqueMarxvainosmostrarécomoasoluçãodocapitalterminaaumentando,enãodiminuindo,ascontradições.

Infelizmente,osmarxistasprestarampoucaatençãoaesseaspectodateoria.Essanegligênciaéaindamais surpreendente dada a importância que muitos, seguindo principalmente o exemplo de Lenin,atribuíram à “forma financeira do capitalismo” como sendo um estágio específico na história dodesenvolvimento capitalista. O trabalho de Hilferding (no qual Lenin se baseou diretamente) foi

Page 233: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

publicado em 1910 e permaneceu, até muito pouco tempo, a única tentativa importante de lidardiretamentecomaquestãodosistemadecrédito[1].Duranteadécadade1960,RosdolskyeDeBrunhoffcolocaramaanálisedodinheirodeMarxdevoltaaocentrodascoisas.Masasreferênciasaosistemadecréditonaliteraturamarxistaaindasãoextremamenteinsuficientes[2].

Noquesesegue,voutentarpreencheraslacunasteóricas.Oobjetivoéintegraraanálisedodinheiroedocréditoàteoriageraldaacumulação.Issonoscolocaemumaposiçãomelhorparaentendercomoepor que as “leis do movimento” do capitalismo são necessariamente enunciadas, e até certo pontoguiadas, pela circulação do retorno do capital monetário investido canalizado através do sistema decrédito.Um“segundorecorte”nateoriadacrise,queintegraosfenômenosmonetáriosefinanceiroscoma teoria geral da produção demercadorias capitalistas, não deve então estarmuito distante do nossoalcance.

Entretanto,édifícilconceberummétododeexposiçãoqueretrateospontosessenciaissemminimizaras complexidades. Por isso, dividi os materiais em dois capítulos. Neste capítulo trato dos váriosaspectosdodinheiro,docréditoedasfinançasdeumpontodevistamaistécnico.Começamoscomumaapresentaçãomais completa do papel do dinheiro – tópico brevemente abordado no capítulo 1. Estereflete a visão deMarx de que o dinheiro tem de ser entendido independentemente da circulação docapital.Atransformaçãododinheiroemcapitalpodeentãoservistacomonovasconfiguraçõesdosusosbásicosdodinheiro.Dessemodo,odinheiroadquireopotencialparacircularcomoretornodocapitalmonetárioinvestido.Entãoconsideramosasfunçõesdessaformadecirculaçãoparamostrarqueelaéumaspectosocialmentenecessáriodomododeproduçãocapitalista.Ocapítuloseencerracomumabrevedescrição das principais instrumentalidades e instituições que facilitam de maneiras concretas acirculaçãodocapitalquerendejuros.

Aspeçassãoinicialmentecolocadasnolugar,sempreocupaçãodemasiadacomadinâmicageral,oplenodesenvolvimentodascontradiçõesouasuposta“transformaçãointernadocapitalismo”promovidapelaascensãodosistemadecrédito.Essasquestõesmaisamplasemaisinstigantesestãoabordadasnocapítulo10.

Seháumtemageralqueuneosdoiscapítulos,équeodinheiroexistecomoaencarnaçãodopodersocial geral, independente de e externo aos processos particulares da produção ou das mercadoriasespecíficas[3].Ocapitalmonetáriopodefuncionarcomoocapitalcomumdaclassecapitalista,maspodetambémserapropriadoeacumuladoporindivíduosprivados.Acontradiçãoentreaaçãoindividualeasexigênciasparaareproduçãodaclassecapitalista(vercapítulo7)torna-seassimmaisaguda.Entretanto,Marx tambéminsistequeodinheiroexpressaumpodersocialcontingente,quedependedacriaçãodevalor real através da incorporação do trabalho social nasmercadoriasmateriais. É a relação entre odinheiro como a expressão geral de valor e asmercadorias como a incorporação real do valor queformaoeixosobreoqualgiragrandepartedaanálise.

I.DINHEIROEMERCADORIASUmamercadoria,podemosrecordar,éumacoisamaterialqueincorporatantoumvalordeusoquantoumvalordetroca.Essadualidadeéafontedaqualfluemtodasascontradiçõesdentrodaformadodinheiro.Considerecomoessadualidadedevalordeusoedevalordetrocaéexpressanatroca.Aformarelativadovalorsurgeporqueovalordetrocadeumamercadorianãopodesermedidoemseusprópriostermos,

Page 234: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

devendosempreserexpressoemoutrostermos(aideiadeque20metrosdelinho=20metrosdelinhonãonosdiznada,mas20metrosdelinho=1casaconosdizmuito).Atrocadeduasmercadoriastambémpressupõe uma relação de equivalência entre elas e indica a existência de uma forma equivalente devalor queMarx atribui ao tempode trabalho socialmentenecessário ou aopróprio valor.Essa formaequivalentedevalortemdeencontrarummaterialrepresentativo“concebível”paraatrocadosvaloresde uso se tornar geral. A proliferação da troca garante que uma mercadoria se torne o equivalenteuniversal, a encarnação socialmente reconhecida do trabalho humano no abstrato. Essamercadoria échamadademercadoria-dinheiro.Osvaloresrelativosdetodasasoutrasmercadoriaspodementãoserrepresentadospelospreços,astaxasdeacordocomasquaiselestrocamessamercadoria-dinheiro.Maspodemos imediatamente localizar uma contradição – o trabalho, no sentido abstrato, está sendorepresentadoporumamercadoriaproduzidaemcondiçõesespecíficasdetrabalhohumanoconcreto.Essacontradição sempre estará conosco no que se segue, embora, como veremos, ela usualmente assumaformasmaismistificadas.

Amercadoria-dinheiro,comoqualqueroutramercadoria,temumvalor,umvalordeusoeumvalorde troca.Seuvaloré fixadopelo tempode trabalhosocialmentenecessárionela incorporado (emboramedianteotrabalhoconcreto).Comooequivalenteuniversal,odinheirofuncionacomoumamedidadevaloreseproporcionaumpadrãodepreçocontraoqualovalordetodasasoutrasmercadoriaspodeseravaliado.Masarealizaçãodessespreçosdependedeumprocessodetrocae,porisso,envolvevaloresde troca. A intervenção da troca converte uma relação necessária entre as proporções de valor em“relaçãodetrocaentreumamercadoriaeamercadoria-dinheiroexistenteforadela”.Comoresultado,ospreços do mercado se desviam dos valores. “Isso não é nenhum defeito dessa forma”, insisteMarx,porqueo“desregramento”daproduçãoedatrocademercadorias,aseternasoscilaçõesentreademandaeaoferta,possivelmentenãopodemserequilibradasexcetopermitindoqueospreçosflutuememtornodosvalores[4].

Ovalordeusodamercadoria-dinheiroéo fatodeele facilitar a circulaçãodasmercadorias.Porisso,funcionacomoummeiodecirculação.Ovalordamercadoria-dinheiroé,nessecaso,fixadocomoumreflexodastrocasqueelaajudaaproduzir–“bastalerdetrásparafrenteascotaçõesnumalistadepreçosparaencontraragrandezadevalordodinheiro,expressaemtodasasmercadoriaspossíveis”[5].Dessepontodevista,odinheiroassumeaformarelativadevalor.Oantagonismoentreasformasrelativaeequivalentedevalorépreservadodentrodaprópriaformadodinheiroporqueamercadoria-dinheiroagoraincorporaduasmedidasdevalor:otempodetrabalhosocialmentenecessárioqueelaincorpora,eotempodetrabalhosocialmentenecessáriopeloqualelapode,emmédia,sertrocada.Éclaroqueemum mundo perfeito as duas representações de valor devem coincidir. Mas o “desregramento” daproduçãoedatrocademercadoriassempreimpossibilitaoalcancedessaperfeição.Adivergênciaentreasduasrepresentaçõesfrequentementevoltaráanosassombrarnaanálisequesesegue.

Considere,agora,afunçãododinheirocomoummeiodecirculação.Assuma,porummomento,queoourosejaaúnicamercadoria-dinheiro.Aquantidadedeourorequeridaparacircularcertaquantidadedemercadorias em seus preços é fixada pelo volume de ouro em circulação, multiplicado por suavelocidadedecirculação.AfórmulaMV=PQéidênticaàquelaempregadapelosteóricosquantitativos,comoRicardo.Marxtambémautiliza,masrejeitaaideiadequeaquantidadededinheirodeterminaoníveldospreços–umprincípiobásicodosteóricosquantitativos[6].Ospreçossão,nofim,fixadosporvalores(ouos“preçosdaprodução”–vercapítulo2).Masavelocidadedacirculaçãotantododinheiroquantodasmercadoriasflutuadiariamente,eospreçosequantidadesdasmercadoriastambémsealteram

Page 235: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

segundoascircunstâncias.Porisso,anecessidadedeouroflutuaeospreçospodemsedesviarmuitodosvalores,amenosquepossaserencontradaalgumamaneiradeaumentarediminuiraquantidadedeouroem circulação numprazo relativamente curto.Marx declara que um estoque de reserva de ouro – umentesouramento–énecessárioparaacomodaressasflutuações[7].Aquantidadetotaldeourorequeridaéentãoigualaoouronecessárioparacircularasmercadoriasemseusvalores,maisoquefornecessárioparaumareserva.

Evidentemente,oourodeveserprimeiroproduzidocomoumamercadoria.Podeserrequeridoouroadicional para substituir aquele perdido pelo desgaste ou para facilitar a produção expandida demercadorias.Masacapacidadeparaaofertadeouroégovernadaporcondiçõesdeproduçãoconcretas,ecomoqualquermercadoria-dinheirodeveserraraepossuirqualidadesespecíficas,descobrimosqueaofertadeouro(oudequalqueroutramercadoria-dinheiro)nãoéinstantaneamenteajustável.Alémdisso,quando o ouro funcionameramente comoummeio de circulação, seus custos de produção têmde serencarados como parte dos custos necessários, ou faux frais, da circulação. Isso porque o ouro quefunciona como dinheiro (em oposição ao ouro que tem usos não monetários) deve permanecereternamente em circulação e nunca se tornar uma parte do consumo individual ou produtivo. Comofornecedoresdo“lubrificante”datroca,osprodutoresdeouroextraemrecursosdosusosprodutivos.

Apesagemeacalibraçãodoourosãoaomesmotempoarriscadaseincômodas.Oouro,emcomumcom outras moedas metálicas, é inflexível, caro e inconveniente quando usado como uma meramercadoria-dinheiro,aindaqueelepossuaasqualidadesrequeridasparafuncionarcomodinheiro,eemalguns aspectos precisamente por isso. O inconveniente do peso pode ser substituído pela simplescontagemassimqueamercadoria-dinheirosetransformaemmoeda:

Moedassãopeçasdeourocujoformatoegravaçãosignificamqueelascontêmpesosdeourocomoestáindicadopelosnomesdopadrãodamedidamonetária,comolibraesterlina,xelimetc.TantooestabelecimentodascasasdamoedaquantootrabalhotécnicodacunhagemrecaemsobreoEstado.Amoedacunhadaassumeumcaráterlocalepolítico,elausadiferenteslinguagensnacionaiseusadiferentesuniformesnacionais.[…]Porisso,amoedacunhadacirculanaesferainternadacirculaçãodemercadorias,queestácircunscritapeloslimitesdeumadadacomunidadeeseparadadacirculaçãouniversaldomundodasmercadorias.[8]

Entretanto, com as moedas surge a possibilidade de uma separação entre seus valores reais enominais.Adegradaçãodacunhagempodesetornarumproblema,enquantoaproduçãodemoedastemde ser cuidadosamente controlada. A legislação torna-se imperativa e o Estado em geral assume aresponsabilidadedacunhagem(emboraa“livrecunhagem”–aproduçãodemoedasporparticulares–tambémsejapossível).OEstadoassumenecessariamenteumpapeldeagenteeconômico[9].Asmoedaspodem,porsuavez,sersubstituídasporfichasousímbolosdepapel.Opapel-moedaconversívelvinculaovalornominaldacédulaaumadeterminadaquantidadedamercadoria-dinheirobásica.Essespapéis-moedastêmavantagemdequeasuaquantidadepodesermaisprontamenteajustadaaqualqueraumentonanecessidadededinheirodevido,porexemplo,aovolumeexpandidodatrocademercadorias,emboraeles sejam também muito mais baratos de produzir e, desse modo, ajudem a reduzir os custos dacirculação. Entretanto, essas economias só são possíveis se a quantidade total de papel-moeda puderexceder a quantidade da mercadoria-dinheiro em que esse papel-moeda pode ser convertido. Emcondições normais, tal diferença não constitui problema, mas em tempos de crise a convertibilidadefrequentemente tem de ser suspensa. Isso aponta para uma desvantagem peculiar de todos os papéis-moedas.Umavezqueasnotasentramemcirculação,elasnãopodemserretiradas(pelomesmo,nãodamesmamaneiraqueasmoedasdeouropodemserfundidaseusadasparaoutrospropósitos),deforma

Page 236: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

queficaimpossívelajustarparabaixoaofertadepapel-moedaparaacomodarumvolumecontraídodecirculaçãodemercadoria.Ainflaçãotorna-seumapossibilidademuitoreal.

O papel-moeda puro – “o papel-moeda não conversível lançado pelo Estado e com circulaçãocompulsória”[10]–cortacompletamenteaconexãoentreodinheiroeoprocessodeproduçãodequalquermercadoria-dinheiro.Dessemodo,aofertadedinheiroé liberadadequaisquerrestriçõesdaproduçãofísicaeasvantagensdaflexibilidadedaofertaedaeconomiadacirculaçãopodemsermaisfacilmentealcançadas.MasopoderdoEstadotorna-seentãomuitomaisrelevante,porqueoapoiopolíticoelegaldeve substituir o apoio proporcionado pelamercadoria-dinheiro caso os usuários dos papéis-moedaspretendamconfiaremsuaestabilidadeevalor.

Dopontodevistadeumsimplesmeiodecirculação,odinheirotambémpodeassumirmuitasformas.Acapacidadeparaagilizaratrocaéoqueimporta.Aescolhadaformaqueodinheiroassumedependeentãodaeficiênciarelativadecadaumanasuperaçãodoscustosdatransação.Naverdade,oscustosdatransaçãopodemserinteiramenteeliminadosesubstituídospeloscustoscontábeis,namedidaemqueastransaçõespossamser registradasemumlivrocontábileequilibradasentreosagenteseconômicosnofimdodia,domês,doanooudequalquerperíodoqueseja.Dessepontodevista,odinheiropodesereliminado,excetocomo“moedadeconta”.

Masodinheiroémaisqueumsimplesmeiodecirculação.Deixandodeladoasuafunçãocomoumamedida de valor – função esta que tanto a sociedade capitalista como os economistas burguesesperiodicamente, mas sem sucesso, buscam descartar como irrelevante[11] –, o dinheiro ainda possuialgumaspropriedades“transcendentais”.Odinheirorepresenta,afinal,ovalordetrocaparexcellence,epor isso se coloca emoposição a todas as outrasmercadorias e aos seus valores de uso.O dinheiroassumeumpoderindependenteeexternoemrelaçãoàtrocaporque,comoequivalenteuniversal,eleéaprópria encarnação do poder social.Além disso, esse poder social pode ser apropriado e usado porparticulares.Aimportânciadissotemagoradeseravaliada.

O dinheiro permite a separação das vendas e compras no espaço e no tempo. As restrições doescambopodemsersuperadasporqueumagenteeconômicopodevenderumamercadoriapordinheiroemumlocaletempoeusarodinheiroparaadquirirumamercadoriadevalorequivalenteemoutrolocaleemumaépocasubsequente.A trocaéassimlibertadada tiraniadaLeideSay(verp.136-40).Masparaissoaconteceréprecisoqueopodersocialdodinheiropermaneçaconstantecomrelaçãoaotempoeaoespaço.Odinheirotemdesercapazdefuncionarcomoumareservadevalorconfiável;masquantomais dinheiro for usado como reserva de valor emvez de circular valores,mais altos se tornarão oscustosmonetáriosdacirculação.

O uso do dinheiro como “moeda de conta” aparece como tábua de salvação. E, desse modo, odinheiro creditício “possui suas raízes naturais-espontâneas” no interior dos processos da troca demercadorias[12]. O dinheiro creditício tem sua origem em letras de câmbio e notas de crédito queadquirema forma social de dinheiro assimque começama circular comomeios de pagamento.Essesdinheiros têm a dupla vantagem de poderem se ajustar instantaneamente às alterações no volume daproduçãodemercadoria (osprodutores simplesmente aumentamoudiminuemas letrasde câmbioquecirculam entre si), enquanto também economizam muito nos custos de transação e circulação. Aquantidadedemercadoria-dinheirorequeridaéreduzidaàquelanecessáriaparaacirculaçãoativa,maisqualquer coisa que seja necessária para equilibrar as contas, e um fundode reservapara enfrentar ascontingências.

Odinheirocreditícioé,emoutrosaspectos,umtantopeculiar.Nãoimportaaquedistânciaumaletra

Page 237: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

decâmbioprivadamentenegociadapossacircular,eladevesemprevoltaraoseulocaldeorigemparaserresgatada.Asoutrasformasdedinheironãocirculamdessamaneira.Umabarradeouropodepassardemãoemãoesemprepermaneceemcirculação, sem jamais retornaraoseupontodeorigem.Essasformas de dinheiro são sociais desde os seus primórdios, apesar de utilizadas para o uso privado.Odinheirocreditício,emcontraste,éodinheiroprivadamentecriadoquepodeserviraumpropósitosocialquandocolocadoemcirculação.Quandoadívidaoriginal é saldada, no entanto, odinheiro creditíciodesaparecedacirculação.Odinheirocreditícioestásendoperpetuamentecriadoedestruídoatravésdasatividadesdeindivíduosprivados.Essaéumaconcepçãodevitalimportância.Porumlado,eladependedacapacidadedosindivíduosprivadosedeinstituições(comobancos)paraajustarinstantaneamenteaquantidadededinheiroaovolumedastransaçõesdemercadorias–odinheirocreditício(diferentementedoouro)podeserexpandidoecontraídoàvontade.Poroutrolado,aquelesqueemitemocréditodevemestarsujeitosaalgumadisciplina,eaqualidadedodinheirocreditíciodevesergarantidaparaqueesteúltimocirculecomsegurança.

Noprimeiromomento,odinheirocreditícioestávinculadoaumconjuntoparticulardetransaçõesdemercadorias empregadas por indivíduos particulares. Se as transações de mercadoria não foremcompletadas ao preço acordado, ou se os indivíduos falharem, a “destruição” do dinheiro creditícioassumeumafeiçãomaissinistra.Odinheirocreditícioédiretamente“desvalorizado”ou“depreciado”porqueadívidanãopodeserpaga.Odinheirocreditícionãopodeserconvertidoemoutrasformasdedinheiro(exceto,talvez,comumgrandedescontoporalguémdispostoacorreroriscodecompraroquepodeserumaletradecâmbiosemvalor).Adestruição“normal”dodinheirocreditícioéaquiexpressacomo uma anormalidade, característica das crises comerciais e monetárias. Entretanto, a“desvalorização”dodinheiro creditício éumaquestãoprivadaquepode ter consequências sociais.A“desvalorização”dospapéis-moedasemitidospeloEstado (mediantemudançasnaconvertibilidadeousimplesmente acompanhando as impressões de prorrogação) é uma questão fundamentalmente social(comconsequênciasprivadaseredistributivasdistintas).Abordaremosotemada“desvalorização”eda“destruição” do dinheiro no capítulo 10. Nomomento, vamos simplesmente observar a possibilidadeformaldessesprocessosmedianteousodequalquertipodedinheirocreditício.

É requerido que as instituições monetárias relacionem os diversos dinheiros creditícios uns aosoutros,assimcomoaodinheiro“real”,comoouro,oudinheirodecursolegalapoiadopeloEstado.Essasinstituições têm sua origem com os corretores de câmbio que, em troca de uma parte dos custos datransaçãodiminuídaqueelesconseguem,administramosaspectospuramentetécnicosdacirculaçãododinheiro. Quando o dinheiro é usado como um meio de pagamento, os corretores de câmbio podemregistrar as transações e se reunir para descobrir os protótipos dos bancos de compensação[13]. Elespodementãousaro seuprópriodinheiro eproporcionaruma funçãodedesconto centralizadopara asinúmerasletrasdecâmbioqueseoriginamecirculamentreosprodutoresindividuaisdemercadorias.E,em algum ponto, os corretores de câmbio podem considerar mais conveniente, eficiente e lucrativosubstituirsuasprópriasletrasdecâmbioporaquelasdeinúmerosprodutoresindividuais.Oscorretoresde câmbio então se transformamembanqueiros.A emissãodenotas bancáriasmeramente formaliza aquestão, porque essas notas não são nada além de cheques nelas inspirados. Com a emergência dosbancoséimplementadooprimeironíveldeumarranjohierárquicodentrodosistemamonetário:amoedabancáriasubstituiasletrasdecâmbioemitidaspelosprodutoresindividuaiscomoomeiodecirculação.

O banco assume duas tarefas básicas. Em primeiro lugar, ele proporciona uma câmara decompensação para as letras de câmbio e, desse modo, economiza muito nos custos de transação e

Page 238: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

circulação.Emsegundolugar,quandoosbancosemitemsuasprópriasnotasoupermitemqueoschequesseinspiremnelas,elessubstituemsuaprópriagarantiaporaqueladeinúmeroscapitalistasindividuais.Quandoosistemadetrocaérelativamentesimples,oconhecimentopessoaleaconfiançadoscapitalistasindividuaispodegarantiraqualidadedasdívidasincorridas,masemumsistemademercadocomplexoissonãopodeconstituirumabaseadequadaparaosistemadecrédito.Obancoprocurainstitucionalizaro que era antes uma questão de confiança e credibilidade pessoais entre capitalistas individuais. Amaioriadasletrasqueseoriginamdoscapitalistasindividuaisserãolivrementeconvertidasemmoedabancária.Mas,paraobancomanter aqualidadedo seuprópriodinheiro,deveconservarodireitoderecusar letras que ele considere arriscadas ou sem valor. O banco monitora a credibilidade doscapitalistasindividuaiseatuacomoumintermediárioparaestesúltimos.

Mas os bancos são também instituições privadas que competem uma com a outra. Eles tambémdevem, como facilitadores da troca de mercadorias, entrar em relação um com o outro. Têm de serencontradosmeiosparaequilibrarascontasentreeles.Cadabancopodepreservarumestoquedeouropara esse propósito. Em condições normais, a reserva de ouro precisa ser apenas uma pequenaproporção do valor total dasmercadorias em circulação – suficientemente simples para equilibrar ascontasentreosbancos.Noentanto,quandoovalordasmercadoriasnomercadoéincerto,anecessidadedeumareservaadequadademercadoria-dinheirotorna-semaispremente–docontrário,obancopodefalir. Por outro lado, despachar ouro e armazená-lo é incômodo, arriscado e ineficiente. Tem de serencontradaoutramaneiradetornarasdiferentesmoedasbancáriaslivrementeconversíveisumanaoutra.

Um banco central de algum tipo pode resolver esse problema. Ele proporciona osmeios para osbancosequilibraremascontasumcomooutrosemprecisardespacharouro.Paraisso,obancocentraldevepossuirdinheirodealtaqualidadequepossagarantirasegurançadastransaçõesentreosbancos.Odinheirodosbancosindividuaissóélivrementeconversívelemmoedadobancocentralquandoobancocentralestásatisfeitocomaqualidadeouestabilidadedamoedadosbancosindividuais.Obancocentralconstitui o nível seguinte na hierarquia das instituiçõesmonetárias.A partir desses altos comandos obancocentralprocuragarantirasolvênciaeaqualidadedamoedadosbancosprivados.

Vários arranjos institucionais podem satisfazer a necessidade de um banco central. Um bancoindividual ou umconsórcio de bancosmuito poderoso pode assumir esse papel.Antes do colapso de1907,porexemplo,J.P.Morgan,aoladodeoutrosbancosdeNovaYork,desempenhouessafunçãonosEstadosUnidos.Masháumadificuldadeduplaemumasoluçãodessetipo.Namedidaemqueosbancosestãoemcompetiçãoumcomooutro,“odinheiro ruimdesalojaobom”e issosolapaaqualidadedodinheiroqueosbancosdevemproteger.Acapacidadedeumgrupoprivadodedesempenharopapeldeavalista depende do seu poder sobre os outros bancos do sistema. Garantir a qualidade da moedanacional éum luxoaoqual sóosmaispoderosospodemsepermitir.Não foipor acasoqueopânicofinanceirode1907nosEstadosUnidosassumiuumrumoincontrolável;issoaconteceuemparteporqueopoderdeJ.P.Morganestavasendoentãoseriamentedesafiadopelaascensãodeconcorrentesdocentro-oeste e do extremo-oeste. A outra dificuldade é que o imenso poder de qualquer banco que possadesempenharumafunçãodessetipoésempresuscetívelaumusoarbitrárioeimprevisívelporpartedeseusdiretoresprivados[14].

Por isso,amaioriadosbancoscentraisécolocadaseparadadosoutrosbancospelaconcessãodealgunsprivilégiosdemonopólio.Liberadodanecessidadedecompetir,obancocentralpodesededicaràsuaúnicatarefa:defenderaqualidadedamoedanacional.Pararealizaressafunção,obancocentralsetornaoguardiãodasreservasdeourodopaís.Issolhedáopoderderejeitaramoedadobanco“ruim”

Page 239: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

recusandosuaconvertibilidadeparaamoedadobancocentral,queéoúnicotipodemoedalivrementeconversívelemouro.

Comoguardiãodoestoquedeouronacional,obancocentralsópodegarantiraqualidadedodinheirodentrodoterritóriodoEstado-nação.Obancocentralentãoassumeatarefadeequilibrarospagamentosentre as nações.Durante todoo tempo emque amoedadobanco central é conversível emouro, esteúltimofuncionacomooequivalenteuniversalnocâmbiomundial.Masumavezqueospaísesabandonama conversibilidade dentro de suas próprias fronteiras, torna-se progressivamente mais difícil manterintactoopadrão-ouroemescalainternacional(particularmentequandoocapitalsetornamultinacional).Seaúnicamaneiradeequilibrarascontasentreasnaçõesépormeiodasdiferentesmoedasnacionais,então estas têm de ser livremente conversíveis uma na outra em alguma determinada taxa de câmbio.Surgeentãooproblemadegarantiraqualidadedasmoedasnacionaisnomercadomundial.Algunspaísesextremamentepoderosos–comoaGrã-BretanhanoséculoXIXeosEstadosUnidosentre1945e1971–podemdesempenhar o papel de “banqueiromundial”.Quando amaior parte das reservas de ouro domundoestavatrancadanoFortKnoxeosEstadosUnidostinhamumaposiçãodominanteemtermosdobalanço de pagamentos e do comércio mundial, o padrão-dólar estabelecido no Bretton WoodsAgreement de 1944 pôde prevalecer e o dólar se tornou, na verdade, o equivalente universal.Mas obalanço de pagamentos deteriorado e a competição cada vezmais feroz daAlemanha ocidental e doJapãofizeramaosEstadosUnidosinternacionalmenteoqueacompetiçãodosbancosdocentro-oesteedoextremo-oestefezaJ.P.Morgan.Asubsequentedesvalorizaçãododólarem1971indicouocolapsodo Bretton Woods Agreement, e teve início a busca por uma nova ordem monetária internacional.Implementou-se, então, uma série de expedientes tapa-buracos comvistas a estabelecer algum tipo depapel-moeda supranacional de qualidade superior – como os direitos de saque especiais do FundoMonetário Internacional (“títulos de ouro”).Mas, como apontaDeBrunhoff[15], essas tentativas forambaseadasnaproposiçãofalaciosadequeumaformadedinheirocreditíciopodefuncionarcomoamedidafundamental de valor. Nenhuma maneira havia sido ainda encontrada para garantir a qualidade dasmoedasnacionais,excetovinculando-asàproduçãodealgumamercadoriaespecífica.

Essahistória tambémnosalertaparaosdilemasdaspolíticasmonetáriascomoestãodesignadaserealizadas através das operações dos bancos centrais. Os países (como aGrã-Bretanha e os EstadosUnidos) que permitem que suasmoedas sejam usadas comomoedas de reserva para saldar as contasinternacionais sãoeternamente atormentadosporumdilemapolítico:defenderos interessesdocapitalnacionaloudefenderosinteressesdocapitalemumaescalaglobal.Quandoumadeterminadaeconomiadomina a produção e o comérciomundial demercadorias, os dilemas ficam relativamente atenuados,porémsetornammaisagudosàmedidaqueoambienteinternacionalsetornamaiscompetitivo.Masocapitalismomundialsimplesmentenãofuncionasemalgumtipodemoedadereservaestável–eestaéadificuldadequeosistemamonetáriointernacionaltemenfrentadodesdeoiníciodadécadade1970.

Emboratenhamossimplificadoextremamenteaestruturaecertamentesimplificadoascomplexidadesda circunstância histórica, o caráter hierárquico abrigado das instituições monetárias pode ser muitoclaramente estabelecido como um corolário necessário para a existência dos dinheiros de crédito. Anecessidadede tal ordenamentohierárquicopode ser remontadaà contradiçãobásica entreodinheirocomo umamedida de valor e o dinheiro como ummeio de circulação. Pois, embora os dinheiros decréditopareçamfantasticamenteadaptadosàfunçãocomoummeiodecirculaçãoquasesematrito,suacapacidadepararepresentarosvalores“reais”damercadoriaéeternamentesuspeita.Anoçãodealgumamedida absoluta de valor pode parecer redundante em qualquer nível particular na hierarquia, mas

Page 240: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

permaneceoproblemadegarantiraqualidadedamoeda–eoqueéessaqualidadesenãoumagarantiadequeumaquantidadenominaldedinheirocreditíciorealmenterepresentavaloresreaisdamercadoria?

As instituições de ordemmais elevada garantema qualidade damoeda emumaordem inferior nahierarquia – comoosbancos fazemcomos capitalistas individuais, comoobanco central faz comosbancosprivados,comoo“banqueiromundial”defactofazcomosbancoscentraisnacionais.Masoquegaranteaqualidadedamoedanoápicedessahierarquia?Ouro?“Papelouro”?“Ouronegro”(petróleo)?Dólares?Nessenível,anoçãodamoedacomoumamedidadevalornecessáriaserecusaamorrer.Marxobserva que “somente no mercado mundial o dinheiro funciona plenamente como a mercadoria cujaforma natural é, aomesmo tempo, a forma imediatamente social de efetivação do trabalho humano inabstracto”[16]. A ordenação hierárquica das instituições monetárias supera as contradições entre asformas equivalentes e relativas do valor, entre o dinheiro como umamedida de valor e ummeio decirculação, nos níveis local e nacional, apenas para deixar o antagonismo não resolvido na arenainternacional.

Um comentário adicional tem de ser feito a respeito dessa estrutura hierárquica das instituiçõesmonetárias.Àprimeiravista,parecequeseaquelasqueestãoassentadasnoápicedessahierarquia–osbanqueiroscentraisemparticular–estãonofirmecontroledacirculaçãodamoedae,porisso,emumaposiçãopoderosaparainfluenciaraproduçãoeatrocademercadorias.Marxrejeitaexplicitamenteessavisão.“Opoderdobanco”,declaraele,“somentecomeçaondeterminaopoderdos‘descontadoresdetítulos’ privados, em um momento, portanto, no qual seu próprio poder já está extraordinariamentelimitado”[17]. O caráter de monopólio de um banco central dentro de um país não lhe proporcionapoderes de controle efetivo, não importa o quão impressionantes sejam os poderes da autoridademonetária. De uma maneira parecida, os banqueiros privados só exercem controle quando osdescontadoresindividuaisnãopodemiradiantenousodesuasletrasdecâmbioprivadas.

O máximo que qualquer autoridade monetária pode fazer em tais circunstâncias é se engajar na“repressãofinanceira”,recusando-seadescontarodinheirocreditícioqueexisteemordensinferioresnahierarquia[18].OFundoMonetárioInternacionalpodesededicaradisciplinarosEstadosnacionais,osbancos centrais podem disciplinar os bancos e os bancos podem disciplinar os produtores demercadorias.Entretanto,ospoderesexercidossãomaisdenegaçãodoquedecriação.Por isso,Marxprontamente admite que uma oferta inadequada de dinheiro, estrutura financeira inapropriada ou, nocontextopresente,políticasmonetáriasrígidaspodemoperarcomobarreirasàexpansãodaproduçãodemercadoriase,emalgumascircunstâncias,exacerbarascrises–comoaconteceuem1847-8,depoisda“equivocada”LeiBancáriade1844naGrã-Bretanha[19].Mas,nasuaopinião,nãohápodermonetárionaterraquepossaporsigerarmagicamenteumaexpansãonaproduçãodemercadorias.O incentivorealparaosistemaestánaacumulaçãomedianteaproduçãoeatrocademercadorias.Porisso,Marxseopôsviolentamente àquela versão da doutrina monetarista que acredita nos efeitos criativos da oferta dedinheiro[20].

Essa análisedodinheiro emcondiçõesde simplesproduçãodemercadoria indicaqueaprincipalcontradiçãoentreodinheirocomoumamedidadevaloreodinheirocomoummeiode troca jamaiséresolvida:elaémeramentetranspostaparaníveiscadavezmaiselevadosdentrodeumahierarquiadeinstituiçõesmonetárias.Asváriasfunçõesderivativasdodinheiro–comoreservadevaloremeiosdepagamento,porexemplo–dãoorigemamaisconfusões.Maspodemosinterpretarmelhorasdiferentesformasqueodinheiroassume–amercadoria-dinheiro,asmoedas,ospapéis-moedasconversíveisenãoconversíveis, vários dinheiros creditícios etc. – como um resultado do movimento para o dinheiro

Page 241: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

perfeitocomoum“lubrificante”sematrito,semcustoe instantaneamenteajustávelda troca,aomesmotempoquepreservaa“qualidade”dodinheirocomoumamedidadevalor.Ocaráterincertoe“ilegal”daproduçãoetrocademercadoriasfazcomquediferentesagenteseconômicosexijamdiferentestiposdedinheiro para propósitos definidos em conjunturas particulares. Em tempos de crise, por exemplo, osagentes econômicos tipicamente buscam formas seguras de dinheiro (como o ouro), mas quando aproduçãodemercadoriasestáexplodindoeasrelaçõesdetrocaproliferando,ademandapordinheiroscreditíciostendeaaumentar.

Munidos desses insights gerais, podemos agora passar a considerar como o dinheiro éespecificamentecolocadoemusonomododeproduçãocapitalista.Emseguidavamosdescobrirqueacontradição fundamental entre o dinheiro como umamedida de valor e o dinheiro como ummeio decirculaçãovai se tornar aindamaismarcadanocapitalismo,masqueas funçõese formasdedinheiroserãocolocadasemusosincrivelmentenotáveisecomfrequênciaextremamentesutis.

II.ATRANSFORMAÇÃODODINHEIROEMCAPITALMarxconstróisuateoriadodinheiroapartirdeumainvestigaçãodaproduçãoedatrocademercadorias,semqualquer referênciaaqualquerquesejaacirculaçãodocapital.Elesegueessecursoporqueumaeconomia monetária é comum a vários modos de produção diferentes e não específicos docapitalismo[21]. Declara que estaríamos cometendo um erro sério se procurássemos derivar umentendimentododinheiroapartirdeumestudodacirculaçãodocapital.Mas, alémdisso, estaríamossendoigualmentenegligentessebuscássemosentenderosmundoscomplexosdacirculaçãomonetáriaedas operações financeiras no capitalismo tendo por base apenas alguma teoria geral do dinheiro[22].Devemos evitar a todo custo confundir dinheiro com capital e reconhecer que há uma “diferençapalpável entre a circulação do dinheiro como capital e sua circulação como mero dinheiro”[23].Precisamosagoraconsiderarmaisatentamenteesta“diferençapalpável”.

Emcondiçõesdesimplesproduçãoetrocademercadoriasorganizadasemtermosnãocapitalistas,encontramosque“odinheirofazcircularasmercadorias”e“asmercadoriasfazemcircularodinheiro”–“a circulação das mercadorias e a circulação do dinheiro condicionam-se reciprocamente”[24]. Odinheirobasicamentecirculaemordem inversaàcirculaçãodemercadorias.Ascomplicaçõessurgemquandoodinheiroéusadocomoummeiodepagamento(odinheirofluieatrocademercadoriasdivergenoespaçoenotempo,etambémemquantidade)equandoodinheirosemovimenta,porqualquerrazão,paradentroouparaforadeumaçambarcamento.Tambémnãoéfácilintegrarosprodutoresdedinheiroemumsistemamonetáriodessetiposemperturbarsualógicanormalmentesimples.

Entretanto,asquestõessurgemdemodomuitodiferentequandoconsideramosaformadecirculaçãocapitalista,daqualaexpressãomaissimplesé

MasMarxinsistequequandoodinheirofuncionacomocapital,eleainda“podedesempenharapenasfunçõesdedinheiro”comomeiodecirculação(elefacilitaastrocas

Page 242: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

eamedidadovalor(dequeoutramaneiraoaumentoD-D’podeservalidado?).Então,“aquisevoltaacomprovar, aomesmo tempo, queo capitalmonetárionãodesempenhano interior do ciclodo capitalindustrialsenãofunçõesdedinheiro,equeestassópossuemosignificadodefunçõesdocapitalpormeiodesuaconexãocomoutrosestágiosdesseciclo”[25].

A “diferença palpável” entre a circulação do dinheiro como capital e a “mera circulação” dodinheiromediantea trocademercadoriasestá, emprimeira instância,nasnovasmaneirascomqueoscapitais usamodinheiro.A“transformaçãododinheiro emcapital”[26] tambémdependede condiçõessociais e históricas. O dinheiro só pode circular como capital quando a força de trabalho, com acapacidadedeproduzirmaisvalordoqueelaprópriapossui,estádisponívelcomoumamercadoria:

Oproprietáriododinheiroeoproprietáriodaforçadetrabalhosóserelacionamumcomooutrocomocompradorevendedor.[Mas]ocompradorseapresentadeantemão,aomesmotempo,comopossuidordosmeiosdeprodução[…]portanto,arelaçãodeclasseentrecapitalista e assalariado já está dada. […] Não é o dinheiro que engendra, por sua própria natureza, essa relação, mas, antes, é aexistênciadessarelaçãoquepodetransformarumasimplesfunçãododinheironumafunçãodocapital.[27]

Consequentemente, a mão de obra assalariada cria uma ponte entre aquelas que normalmentepoderiamserasesferasmuitodistintasdaproduçãoedatroca.Porumlado,acompraeavendadaforçadetrabalhonãoénadamaisqueumasimplestransaçãodemercadoriastornadaespecialpelofatodeserumreflexonomercadodeumarelaçãosocialnaprodução.Poroutrolado,umasimplesrelaçãoentreocomprador e o vendedor “torna-se uma relação inerente na produção”[28]. As relações sociais daproduçãotêmumaexpressãotantodentroquantoforadoprocessorealdaprodução.Édooutroladodaponte proporcionada pela mão de obra assalariada que o capital pode fluir continuamente (aparte, éclaro, os contratempos das crises) pelas esferas da produção e da troca. O dinheiro não poderia serconvertidoemcapitalseotrabalhoassalariadonãoexistisse.

Mesmoassim,atransformaçãododinheiroemcapitalnãoéumaocorrênciaindolor.Nãopossopegar10 dólares ou 10 libras domeu bolso e convertê-los instantaneamente em capital. Em cada linha deprodução,precisoadiantarcertaquantidadedecapitalmonetárioparaadquirirosprédios,asmáquinas,as matérias-primas e a força de trabalho necessários para iniciar a produção demais-valor. Precisoentesourardinheirosuficientepara ingressarnonegócio(aquantidadevariadeuma linhadeproduçãoparaoutra– compare as ferrovias comos estabelecimentos escravizantesna indústriade confecções).Mas o entesouramento tira dinheiro de circulação e isso, se ocorre em qualquer larga escala, podeperturbar a circulação de dinheiro e demercadorias.O sistema de crédito torna-se uma necessidade.Posso então realmente converter os 10 dólares que tenho no bolso em capital, depositando-o em umbancoondeelepossaimediatamenteseremprestadocomocapitalemtrocadejuros.

Acirculaçãodocapital impõeobrigaçõesecargasadicionaisaosistemamonetário,oquesópodeser enfrentadomediante aorganizaçãodo sistemade crédito comoabaseparaoperações financeiras.Vamosconsiderardetalhadamenteas funçõesdosistemadecréditonaseção IV,maspodemosesboçarcom proveito aqui algumas das demandas que o capital lhes impõe. Por exemplo, a preservação eexpansãodovalorrequeremcontinuidadeecoordenaçãoestávelquandoabasematerialdaproduçãoécaracterizadapordescontinuidadeediscordância.Astrocasentreossetoreseasindústriascomperíodos

Page 243: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

de trabalho, circulação e tempos de rotação diferentes têm de ser de algummodo desobstruídas e ascoordenaçõesentreodinheiro,asmercadoriaseoscircuitosprodutivosdocapital têmtambémdeseralcançados.Ataxadelucrosópodeserigualadaseocapitalmonetáriopudersemoverrapidamentedeuma esfera de produção para outra, enquanto a acumulação e o reinvestimento requeremdesembolsosperiódicosdegrandessomas,quedocontrárioteriamdeseracumuladas.

Poressaseoutrasrazões,osistemadecréditoemergecomoofilhoespecialdomododeproduçãocapitalista e o capital que rende juros passa a desempenhar um papel muito especial em relação àcirculaçãodocapital.Masessemundoelaboradodecréditoefinançasénecessariamenteerigidosobreabase monetária definida por condições de simples produção e troca de mercadorias. E isso é assimporque o dinheiro só pode desempenhar funções de dinheiro quando é lançado em circulação comocapitalouoferecidocomocapitaldeempréstimos.Namedidaemqueabasemonetáriaestárepletadecontradições,omundodas finançaséerigidosobrealicerces instáveis.Namedidaemqueas finançascapitalistas se libertam dos grilhões do sistema monetário, elas ao mesmo tempo internalizam ascontradições e se movem na direção de uma postura antagônica com respeito à sua própria basemonetária.Marxproduzgrandepartedesseantagonismoe,nocapítulo10,procuraremosentendercomoeleimpõeumareviravoltamonetáriaefinanceirapeculiaràformaçãodacrisenocapitalismo.

Podemos com proveito traçar um esboço das linhas básicas desse antagonismo, ainda que apenaspara indicar para onde a análise é encaminhada.A argumentação é apresentada em termos gerais naslinhasqueseseguem.

Emvirtudedoseucontrolesobreosmeiosdeprodução,oscapitalistastambémpodemapropriaropodersocialinerenteaodinheiroecolocá-loparatrabalharcomocapitalmonetário,eassimproduzirmais-valor mediante a produção. A lógica da circulação geral do capital os obriga a criar novosinstrumentosfinanceiroseumsistemadecréditosofisticadoque impulsionaodinheiroeocapitalquerendejurosparaumpapelproeminenteemrelaçãoàacumulação.Masopodercoercivodacompetiçãoobriga os capitalistas, como agentes econômicos individuais, a abusar desse sistema e desse modocorroeropoder socialdoprópriodinheiro:amoedapodeserdesvalorizada,ocorre inflaçãocrônica,crisesmonetárias sãocriadasetc.Constata-sequeoseuusododinheirocomoummeiodecirculaçãoatravésdaaçãodosistemadecréditosolapaautilidadedodinheirocomoumamedidaeumareservadevalor.Entãodevemsertomadasmedidasparapreservaraqualidadedodinheiro.Tornam-senecessárioscontroles monetários rígidos e severos. Esses controles surgem no decorrer de uma crise quando oscapitalistas se apressam em segurar a mercadoria-dinheiro (o ouro, por exemplo) como a únicarepresentaçãolegítimadovalor,ouentãosãoimpostoscomopartedeumapolíticaconscienteporpartedeumaautoridademonetáriapoderosaqueoperacomoumbraçodoEstado.Nasúltimascircunstâncias,apolíticadaestratégiamonetária,comoéseguidapeloEstado,torna-secrucialparaoentendimentodadinâmicadaacumulaçãodocapital[29].Entretanto,sejamquaisforemascircunstâncias,atendênciaparaoexcessono reinodas finançasé fundamentalmenteassinaladaporumretornoàseternasverdadesdabasemonetária.

Em seguida vamos procurar deslindar passo a passo as relações entre os fenômenosmonetários efinanceiros.Começaremoscomosjuroseocapitalquerendejuroscomocategoriasfundamentaisqueoperam dentro do sistema de crédito. Depois procederemos a uma descrição simples das funções einstrumentalidadesdosistemadecréditoemrelaçãoàcirculaçãodocapital.Emambososcasos,vamosprocedercomoseoconflitocomabasemonetárianãotivesseumpapelimportanteadesempenhar.Issoentão vai nos colocar em uma posição propícia para atacar questõesmais amplas emais complexas

Page 244: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

relacionadasaosaspectosmonetáriosefinanceirosdaformaçãodacrisenocapítuloseguinte.

III.JUROSOcapitalquerendejurosou,comopodemoschamá-loemsuaformaantiquada,ocapitaldousurário,pertencejuntamentecomseuirmãogêmeo, o capital comercial, às formas antediluvianas do capital que precedem em muito o modo de produção capitalista e vão serencontradasnasmaisdiversasformaçõeseconômicasdasociedade.[30]

Podemos rapidamente estabelecer as condiçõesquepermitemqueo empréstimodedinheiro e ausurafloresçam.Mediante a proliferação das relações de troca, o dinheiro “se estabelece como um poderexterno aos produtores e independente deles”. Ele assim adquire um poder social que pode serapropriado e usado por particulares. A usura surge do uso privado desse poder social na forma deempréstimodedinheiro.Elacorroeua“antigariquezafeudaleaantigapropriedadefeudal”,etambémasformas de organização política características dessas sociedades. Ajudou a pôr fim ao poder dosproprietáriosde terras feudais e adesligarospequenoscamponeses, artesãoseprodutores“pequenosburgueses”dapossedosseusprópriosmeiosdeprodução.Entretanto,emboraausuratenhaum“efeitorevolucionário”,seus impactossãomaisdestrutivosenegativosdoquepositivosecriativos.“Elanãoalteraomododeprodução,masseligafirmementeao[mododeprodução]comoumparasitaetorna[oúltimo]ummiserável”[31].Asproibiçõeseassançõeslegaiscontraausurasurgemporessasrazões.

Na medida em que os usurários se apropriam de todo o mais-valor produzido, eles contêm acirculaçãodocapital.Essabarreiratemdeserderrubada:

Nodecorrerdasuaevolução,ocapitalindustrialprecisaportantosubjugar[ocapitaldousurárioedocomerciante]etransformá-losemfunçõesderivadasouespeciaisdelepróprio.[…]Ondeaproduçãocapitalista[…]setornouomododeproduçãodominante,ocapitalquerende juros é dominado pelo capital industrial, e o capital comercial torna-semeramente uma forma de capital industrial, derivado doprocessodecirculação.Masambosprecisamprimeiroserdestruídoscomoformasindependentesesubordinadasaocapitalindustrial.Aviolência[doEstado]éusadacontraocapitalquerendejurospelareduçãocompulsóriadas taxasde juros,paraqueelenãosejamaiscapazdeditaros termosparaocapital industrial. […]Amaneira realemqueocapital industrial subjugaocapitalquerende juroséacriaçãodeumprocedimentoespecíficodelepróprio–osistemadecrédito.[…]Osistemadecréditoésuaprópriacriação.[32]

Ojuro,assimcomoasoutrasimportantescategoriasdistribucionaisdarendaedocapitalcomercial,é encarado como uma forma antiga de apropriação, moldada pelo capitalismo para suas própriasexigências específicas. A “usura” e os “juros sobre o capital monetário” têm, por isso, significadossociaisinteiramentediferentesnoléxicodeMarx.Adiferençanãopodeseratribuídaàformadoprópriodinheiroporqueodinheirosópodedesempenharfunçõesmonetárias:

Oquedistingueocapitalquerendejuros–namedidaemqueeleéumelementoessencialdomododeproduçãocapitalista–docapitaldousurárionãoédemodoalgumanaturezaouocaráterdesseprópriocapital.Sãosimplesmenteascondiçõesalteradassobasquaiseleopera.[33]

AscondiçõesqueMarx tememmente são exatamente aquelasquepermitemas transformaçõesdodinheiro em capital. O dinheiro, em resumo, deve ser capaz de comandar o trabalho dos outros – otrabalhoassalariadojádeveexistir,produzidoporprocessoshistoricamenteespecíficosdeacumulaçãoprimitiva (em que as práticas de usura sem dúvida desempenhavam o seu papel). O poder social dodinheiropodeentãoserusadoporseusdonosparaadquirirtantoaforçadetrabalhoquantoosmeiosde

Page 245: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produção–oprimeiropassonadescidadaestradaescarpadadaproduçãoerealizaçãodomais-valor.Oantagonismoentreocapitaleotrabalhoassalariadoassumeagoraumadimensãototalmentenova.Porumlado,aconcentraçãodopodersocialdodinheironasmãosdepoucoséumpré-requisitonecessárioàiniciação da forma de circulação capitalista. Isso pressupõe que uma apropriada “distribuiçãodeterminandoaprodução”dariquezadedinheirojáhaviasidoatingida.Poroutrolado,aconcentraçãoecentralizaçãoprogressivasdepodermonetárionasmãosdoscapitalistassãooresultadodaproduçãodemais-valor.Aconcentraçãodopodermonetárioéumacondiçãodistributivaqueétantonecessáriaquantoperpetuamentereproduzidanocapitalismo[34].

Tudoissocolocaodinheiroemumaposiçãomuitoespecialemrelaçãoàcirculaçãodocapitaleàprodução de mais-valor. O dinheiro existe como uma forma de propriedade capitalista fora de eindependentede qualquer processo real de produção. Surge então uma distinção entre os capitalistascomo proprietários de dinheiro e como empregadores de capital que usam esse dinheiro paraestabelecer a produção de mais-valor. A atividade de emprestar e pedir emprestado estabelece umarelaçãodeclasseentreessesdoisdiferentestiposdecapitalistas.Marxexplicaessarelaçãodaseguintemaneira.Osproprietáriosdedinheirovisamaumentarseucapitaloemprestandoajuros,oqueimplicaemumaformadecirculaçãodotipoD–(D+j).Suponhaqueodinheiroéemprestadoaumcapitalistaengajadonaproduçãoquenãotemrecursosmonetáriospróprios.Entãotemos:

Mas os proprietários de dinheiro e os empregadores de capital tipicamente se confrontam comopessoasjurídicasindependentes.Oscredoresevidentementenãovãoemprestarseudinheiroamenosqueobtenham algum tipo de recompensa. Os produtores não vão emprestar dinheiro a menos que eles,também,ganhemalgo.Eassim,declaraMarx,omais-valorédivididoentreosproprietáriosdecapitalquerecebemjuroseosempregadoresdocapitalquerecebemolucrodoempreendimento.ComoMarxestáaqui,comoemtodaparte,maispreocupadocomospapéisdoquecomasmaneirasparticularesemque esses papéis são personificados, e como os empregadores de capital sempre têm a opção deemprestarqualquerdinheiroquetenhamajurosemvezdereinvesti-lo,Marxconcluique“oempregadordecapital,mesmoquandoestátrabalhandocomseuprópriocapital,divide-seemduaspersonalidades–o proprietário do capital e o empregador de capital”[35]. A concepção básica que então emerge é aseguinte: o juro é o “mero fruto”de se possuir capitalmonetário comopropriedade fora de qualquerprocesso real de produção, enquanto o lucro do empreendimento é o “fruto exclusivo” do capitalcolocadoparatrabalhardentrodoprocessodaprodução.Acirculaçãododinheirocomocapitaldeveserinterpretadadaseguintemaneira:

Page 246: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Ocapitalquerendejurospodeserentãodefinidocomoqualquerdinheiroouequivalenteadinheiroemprestadopelosproprietáriosdecapitalemtrocadataxadejurosvigente.

Nesteponto,váriasobservaçõeseadvertênciaspodemserutilmente introduzidasnaargumentação.Paracomeçar,osdonosdodinheiropodememprestá-loaoutrosagenteseconômicosalémdosprodutoresdemais-valor–paracomerciantes,proprietáriosdeterras,governos,váriasfraçõesdaburguesiaeatémesmo para os trabalhadores. E o dinheiro pode ser emprestado para vários propósitos que guardamqualquer relação direta com a produção de mais-valor. Como os proprietários de dinheiro estãoprincipalmentepreocupadosemaumentaroseudinheirocomosjuros,elessãosupostamenteindiferentesa quem, e por que propósitos, o dinheiro é emprestado, contanto que o retorno seja seguro. Isso criaalgumasdificuldadesdasquaisMarxestáconsciente,maspõedeladoporrazõesbastanteplausíveis.Se,naanálisefinal, todosospagamentosdejurosdevemserprovidos,diretaouindiretamente,pelomais-valor,entãoarelaçãocrucialaserexaminadaéaquelaentreocapitalquerendejuroseaproduçãodemais-valor.Infelizmente,circunscreveraanálisedessamaneiracriatantosproblemasquantoosresolvequandoprocuramosrevelarasforçasquedeterminamataxadejuros.Voltaremosposteriormenteaessaquestão.

AvirtudedaabordagemdeMarxéo fatodeeleconcentraranossaatençãona relaçãoentreduasformasdecapitaleumaimanenterelaçãodeclasseentreosdonosdodinheiro–capitalistasmonetários–eosinvestidoresdecapital–capitalistasindustriais.“Ojuroéumarelaçãoentredoiscapitalistas,nãoentre o capitalista e o trabalhador.”[36] Marx rejeita a visão burguesa de que o lucro da empresa érealmente um retorno para as habilidades do empresário como trabalhador. Ele não nega que acoordenação e o gerenciamento sejam atividades produtivas, mas insiste em que a determinação dosalárioaquié fundamentalmenteharmonizadacomossaláriosemgeralpelo“desenvolvimentodeumanumerosaclassedegerentesindustriaisecomerciais”epelo“desenvolvimentogeralquereduzocustoda produção da força de trabalho especialmente treinada”[37]. Embora essa seja uma visão muitosimplistadadeterminaçãosalarialparaaschamadas“classesgerenciais,nãohárazãoparanegarqueolucro da empresa é um retorno sobre e acima daquilo que é pago como salário de superintendência,embora grande parte da teoria e da prática burguesas possa disfarçar esse lucro como uma forma desalário. Mais tarde vamos abordar as circunstâncias – as formas de organização das companhias desociedadeanônima,emparticular–emqueodisfarcetorna-seaindamaisefetivo(verp.393-8).

Mas se o juro é uma “relação entre dois capitalistas”, então temos de entender a natureza e asimplicações dessa relação.A existência do dinheiro como capital fora da produção e a atividade deemprestar e pedir emprestado implicamque o dinheiro adquire “umvalor adicional, aquele de servircomocapital”.Essevalordeusoresideemsua“faculdadedegerareaumentarovalor”,acapacidadepara“produzirolucromédiosobascondiçõesmédias”.Odinheirocomocapitalsetorna,emresumo,umamercadoria,emboradeumtipomuitoespecial,comseu“própriomodopeculiardealienação”[38].Ocernedarelaçãoentreoscapitalistasmonetárioseoscapitalistas industriaisestánas“peculiaridades”quesurgemquandooprópriocapitalassumeumcaráterdemercadoria.

Considere,então,arelaçãoentreumcapitalistamonetárioqueemprestaaumcapitalistaindustrial.Ocapitalistamonetáriocompartilhaovalordeusododinheirosemrecebernenhumequivalenteemtroca,oqueemsiconstituiumtipomuitopeculiarde transaçãodemercadorias.Oqueocapitalistamonetárioesperaéoretornodocapitalmonetáriooriginalmaisojuronofimdeumperíodoespecificado.Antesdetudo,umadimensãode tempoespecíficaéassimimpostaàcirculaçãodocapitalemgeral,oqueabretodosostiposdecaminhosparalidarcomdiferentestemposderotação,temposdecirculação,períodos

Page 247: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

deproduçãoetc.Vamosretornarbrevementeaessesaspectos.Emsegundolugar,issofazparecerqueodinheiro “cresce” automaticamente como tempo e faz até o próprio tempo parecer dinheiro.Marx seconcentramuitoemexporofetichismodessaconcepção,mostrandodemaneiramuitoconcretaque,seocapitalmonetárioaumentacomojuroduranteumdeterminadoperíododetempo,issoaconteceporqueoscapitalistas produtivos conseguiramproduzir suficientemais-valor dentro desse períodopara cobrir opagamentodosjuros[39].Oscapitalistasmonetários,namedidaemquepodemditarastaxasdejuroeosprazos de liquidação da dívida, controlam diretamente a intensidade da produção de mais-valor.Retornaremos posteriormente aos potenciais poderes coercivos dos capitalistas monetários sobre oscapitalistasindustriais(verp.364-7).

Ovalordeusododinheirocomoumamercadoriaébastanteclaro,masoquedizerdoseuvalordeusoedoseuvalordetroca?Aquiencontramosoutrapeculiaridade.Odinheiroéorepresentantedovaloreprovavelmentenãopodesermaisvaliosodoqueovalorqueelerepresenta.Masovalordeusododinheiroéaquelequepodeserusadoparaproduzirmaiorvalornaformademais-valor.ChegamosentãoaoqueMarxconsideraumaexpressãototalmenteirracional:ovalordovaloréaquelequeproduzmaiorvalor!Como“opreçorepresentaaexpressãodovaloremdinheiro”,damesmaformaocorreque“ojuro,significandoopreçodocapital,édesdeoinícioumaexpressãobastanteirracional”[40].Odinheirocomoumamercadoria tem um valor de uso,mas não um “valor” ou “preço natural”. Isso também aconteceporque a transformação do dinheiro em capital não envolve um processo de produçãomaterial e nãoenvolveaincorporaçãodamãodeobra.

Oargumentoéum tantocontorcido,masconduzdiretamenteà rejeiçãodeMarxde teoriasdeumataxa de juros “natural”, uma doutrina que foi disseminada na economia política da época. Ele rejeitatambém, emgrande parte por implicação, qualquer “teoria da produtividademarginal” do “preço” docapitalmonetário,baseadonofatodequeessasteoriasidolatramocapitalcomoum“fatorindependentedaprodução”,dotadadospoderesmísticosdaautoexpansão[41].

Então,comoa taxade jurosédeterminada[42]?Naausênciadequalqueroutraexplicação,Marxsevoltaparaademandaeaoferta.Emtodososoutroscasoselerejeitaexplicaçõesdessetipo,baseadonofatodeque,quandoaofertaeademandaestãoequilibradasnomercado,elasnãoservemparaexplicarnada.Ataxadejuroséumaaparenteexceçãoaessaregra.Elaédeterminadapelasforçasdomercadodaofertaedademandapordinheirocomocapitalemcondiçõesdecompetição.Alémdisso,“nãoháleidedivisão, exceto aquela imposta pela concorrência”, e então a taxade juros “se torna algo arbitrário eilegal”–“suadeterminaçãoéacidental,puramenteempírica,esóopedantismoouafantasiaprocurariamrepresentaresseacidentecomoumanecessidade”[43].

Podemosinterpretaressescomentáriosdeduasmaneiras.OuMarxestádizendoqueadeterminaçãoda taxa de juros é totalmente arbitrária e ilegal, e não suscetível à investigação científica adicional,excetocomoumaregularidadeempírica;oupodemosinterpretá-locomodizendoqueataxadejurosnãoédiretamentereguladapela leidovalor.Eume inclinoparaasegunda interpretação,pautadoemdoisaspectos.Emprimeiro lugar, seriamuitopoucocaracterísticodeMarx,e totalmente inconsistentecomsualutacontraasforçasquedeterminamataxadejuros,assumiraprimeiraposição.Emsegundolugar,encontramosMarxemváriasocasiõesfazendoafirmaçõesquesugeremque“leisseparadas”determinamo juroeo lucrodaempresa[44].Ele também indicaque, emborao limite inferiorpara a taxade jurospossa em princípio ser “qualquer limite baixo”, haverá “sempre influências contrárias a elevá-la denovo”[45]. Quando Marx invoca as influências contrárias em geral encontramos alguma noção de

Page 248: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

equilíbrio não muito atrás. Esse equilíbrio é determinado “pela oferta e pela demanda de capitalmonetáriocomodistintasdasoutrasformasdecapital”.Marxentãoindicafirmementeadireçãoparaaqualfoiencaminhado:“Tambémpoderiaserperguntado:Comoademandaeaofertadecapitalmonetáriosãodeterminadas?”[46].

Podemos concluir que não há “taxa de juros natural” regulada, como frequentemente supunham oseconomistasburguesesdaépoca,pelovalordodinheirocomoumamercadoria.Ovalor eopreçododinheirosãoexpressõesinteiramente“irracionais”.Ataxadejuroséreguladamedianteumprocessodemercado em que a oferta e a demanda têm um papel fundamental a desempenhar. O que temos deestabeleceragoraécomoaofertaeademandapordinheirocomocapitalestãoestruturadasnomododeprodução capitalista. Infelizmente,Marx não nos proporciona nenhuma análise coerente do processo.Teremos de preencher algumas lacunas. Mas, evidentemente, não podemos entender a demanda pordinheirocomocapitalsemprimeiroentenderosváriosusosquepodemserdadosaocapitalmonetárioeàs funções que ele é convocado a desempenhar no capitalismo. Da mesma maneira, não podemosentender a oferta de dinheiro como capital sem ter um entendimento geral das estruturas emediaçõesinstitucionaisdasoperaçõesfinanceirasnareuniãoeconsolidaçãododinheirocomocapitalpassíveldeser emprestado.Precisamos, em suma, dissecar as funções e instrumentalidades do sistemade créditocomooprodutodistintivodomododeproduçãocapitalista,comoosistemaquepermitequeocapitalsubjugue a usura e a converta em formas de capital, que rende juros apropriados aos seus própriospropósitosinerentementecontraditórios.

Nas duas próximas seções nos dedicaremos a uma análise detalhada do sistema de crédito.Inicialmente,o faremoscomoseessesistemafosse isentodecontradiçõese funcionasseperfeitamenteem relação à circulação do capital. Isso preparará o campo para considerarmos as contradições nocapítulosubsequente.

IV.ACIRCULAÇÃODOCAPITALQUERENDEJUROSEASFUNÇÕESDOSISTEMADECRÉDITOA circulação do dinheiro como capital que rende juros pressagia a formação de uma classe decapitalistasmonetáriosquecontrolamopodersocialdodinheiroesãosustentadospelospagamentosdosjuros.Aexistênciarealdessaclassenãopodeseratribuídasimplesmenteaodesejodosindivíduosdesedarem ao trabalho de se envolver na produção, embora os capitalistas, tendo a oportunidade, comfrequência tendam a fazer exatamente isso. A extensão e o poder de qualquer classe de capitalistasmonetáriosedacirculaçãododinheirocomocapitalquerendejurosestãonaverdadecontidosdentrodelimitesbemestritos.“Seumapartedesagradavelmentegrandedecapitalistasconvertesseseucapitalemcapital monetário, o resultado seria uma depreciação assustadora do capital monetário e uma quedaassustadora na taxa de juros; muitos… seriam então compelidos a se reconverterem em capitalistasindustriais.”[47]

Na verdade, como os capitalistas monetários absorvem mais que o mais-valor gerado, podemosmuitobemimaginarporqueocapitalismotoleraessesaparentesparasitas.Háduasrazões.Emprimeirolugar,acirculaçãodocapitalconfereumpapelmuitoespecialaodinheirocomooequivalentegeraldovalor,eessepapelinevitavelmenteproporcionaumafontepotencialdesustentaçãoparaumaclassedemeros capitalistasmonetários.Em segundo lugar, a circulaçãodo capital que rende juros desempenha

Page 249: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

algumasfunçõesvitaise,porisso,aacumulaçãodocapitalrequerqueoscapitalistasmonetáriosatinjame ativamente se imponham como um poder externo aos processos reais da produção, e independentesdeles.Vamos,aseguir,explicarcomoeporqueissoacontece.

O quadro geral que vai finalmente emergir é o de que a acumulação equilibrada depende de umequilíbrioespecíficodopoderedaalocaçãodasfunçõesentrecapitalistasmonetáriosoperandosem,edecapitalistasindustriaisoperandodentro,dosprocessosreaisdaprodução.Atarefaqueseapresentadiantedenósédeterminarondeestáessepontodeequilíbrioeexplicarcomoascontradiçõesinternasdocapitalismoinevitavelmenteoviolamapenaspararestaurá-loduranteascrises.

Comooprimeiropassoemdireçãoaesseobjetivo,assumimosasfunçõesdecapitalquerendejurosemrelaçãoàacumulação.Issonosajudaráaestabeleceranecessidadedocapitalquerende juroseocapitalistamonetário como um poder independente em relação ao capital industrial.Mas, ao assumiressas questões, devemos sempre nos lembrar de que o dinheiro só pode desempenhar funções dedinheiro.Issoexigequeosistemadecréditosejaconstruídocomoumaelaboraçãodasfunçõeseformasde dinheiro que existem na simples produção e troca de mercadorias. Essas funções e formas são“estendidas, generalizadas e elaboradas” no capitalismo de modos que não eram possíveis nemdesejáveisnosmodosdeproduçãopré-capitalistas[48].Entretanto,esta“elaboração”ocorredemaneiraa“envolveromovimentorealemmistério”,aumpontoemqueobásicodesaparecequaseinteiramentedavisão[49].Nossatarefaé,portanto,dupla:descreverarelaçãoentreosistemadecréditoeaacumulaçãoaomesmotempoqueobservamosestritamentearelaçãoentreosistemadecréditoesuabasemonetária.

As funçõesdosistemadecréditoedacirculaçãodocapitalque rende jurossãoconsideradassobseistítulosprincipaissemconsideraramaneiraqueestasfunçõessefundemouexpressamcontradições.

1.Amobilizaçãododinheirocomocapital

O dinheiro que não circula como capital pode ser encarado como capital monetário latente oupotencial. Em condições de simples produção e troca de mercadorias, grande parte do dinheiro nasociedadeéativamenteempregadocomoummeiodecirculaçãoouutilizadocomoumarmazenamentodevalorporagenteseconômicosqueprecisammanterumfundodereservaparaqualquerpropósito:

Osnumerosospontosemqueodinheiroéretiradodecirculaçãoeseacumulaemnumerososentesouramentosindividuaisoupotenciaiscapitaismonetáriosaparecemcomotantosobstáculosàcirculação,porqueimobilizamodinheiroeoprivamdesuacapacidadedecircularporumacertaextensãodetempo.[…]Pode-seentenderoprazerexperienciadoquandotodosessescapitaispotenciais[…]tornam-sedisponíveis,“capitalpassíveldeserconvertidoemempréstimo”,capitalfinanceiroquenaverdadenãoémaispassivoemúsicadofuturo,masumcapitalativosubindodeposição.[50]

Via sistema de crédito, o dinheiro pode ser mobilizado como capital de duas maneiras distintas.Antesdetudo,osbancospodemconverterumfluxodetransaçõesmonetáriasemcapitaldeempréstimo.Eleso fazemsubstituindoseuprópriodinheirocreditício (extratosouchequesbancários)pordinheirovivo, internalizando a função do dinheiro como meio de circulação dentro de suas operações e sebaseandoemdepósitosdecompensaçãoe retiradaspara fornecerumequilíbriomonetáriopermanentequepossaserconvertidoemcapitaldeempréstimo.Porisso,amudançadepagamentosemdinheirovivoparapagamentosemcheque(deserviçosprestadosousalários,porexemplo)podeservistacomopartedeumaestratégiageralparagerarcapitaldeempréstimoapartirdetransaçõesmonetáriascorriqueiras.

Em segundo lugar, as instituições financeiras concentram as “poupanças em dinheiro e o capitalmonetário temporariamenteociosode todosos tipos”econvertemessedinheiroemcapital. “Quantias

Page 250: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

pequenas,cadaumaemsiincapazdeatuarnacapacidadedocapitalmonetário”,podemassim“sefundiremgrandesmassaseformarumpodermonetário”[51].Aconcentraçãoeacentralizaçãodocapitalpodemprosseguir rapidamente.Os capitalistas individuaisque estãopoupandopodememprestar a jurosparacapitalistas que estão reinvestindo, e isso reduz os níveis de açambarcamento porque os capitalistaspodemacumularcréditosenquantomantêmsuasreservasmonetáriasativascomocapitalquerendejuros.Omesmoprincípio se aplica a todosos agentes econômicosna sociedadeque requeremum fundodereservaporqualquerrazãoqueseja.Poupançasdetodosostipospodemsermobilizadascomocapitalmonetário.Entretanto,aconsequênciadissoéqueoscapitalistas,osrentistas,osproprietáriosdeterras,os governos, os trabalhadores, os administradores etc., perdem sua identidade social e se tornampoupadores. Os fundos de reserva de todos os tipos ficam indiscriminadamente agregados em uma“[massa] homogênea indiferenciada de valor-dinheiro independente”[52]. Isso cria alguns problemasconceituais, ao mesmo tempo que proporciona mais que um indício de potenciais confusões econtradições.

Considere,porexemplo,aposiçãodos trabalhadores.Eles tipicamentepoupamparaadquirirbensduráveis, para enfrentar as necessidades da velhice, para pagar despesas extraordinárias (doença,gravidez, enterros etc.), e podem tambémpoupar quando os tempos são propícios e os salários estãoacimadovalorparaenfrentaros“mausdias”,quandoasituaçãoestáruimeossalárioscaemabaixodovalor. O conceito do valor da força de trabalho deve abarcar certo nível das poupanças dostrabalhadores. Mas quando essas poupanças são mobilizadas como capital, os trabalhadores tambémpodemreceberjuros.Issoparececonverterostrabalhadoresemcapitalistasmonetáriosetransgredirasleisdovalorcomoasespecificamosatéagora,porqueostrabalhadorespassamaterdireitoaumapartedomais-valorqueproduzem(verp.362,maisadiante).Alémdisso,os trabalhadorespassamaterumforte interesse na preservação do próprio sistema que os explora porque a destruição desse sistemaenvolveria a destruição de suas poupanças. Por outro lado, na medida em que as poupanças dostrabalhadores se transformam em uma fonte importante de capital monetário, as organizações detrabalhadores adquirem um poder econômico considerável – daí a luta pelo controle dos fundos depensãosindicais,fundosdeseguroetc.Todaumanovadimensãoéintroduzidanalutadeclasses.

Seja qual for a importância social que isso possa ter, a oferta de capitalmonetário é claramenteafetadapelosarranjosdistribucionaisqueprevalecemnocapitalismoepelasvárias“reservasdevalor”que os diferentes agentes econômicos têm de manter para funcionar efetivamente. As verdadeirasrelaçõesdentrodosistemadecréditotornam-semuitodifíceisdediscernir,enquantoocomportamentodosagenteseconômicoscomopoupadoresficasujeitoapressõesmuitodiferentesemcomparaçãocomseuscomportamentoscomoganhadoresdesalários,proprietáriosdeterras,industriaisetc.

2.Reduçõesnocustoenotempodecirculação

DeacordocomMarx,“umdosprincipaiscustosdacirculaçãoéoprópriodinheiro”[53].Osistemadecréditoajudaapromoveraeficiênciadacirculaçãomonetáriaeeconomizarnoscustosdastransações.Assim,ajudatambémareduziroscustosnecessários,porémimprodutivos,dacirculaçãoincorridosatémesmonaproduçãodemercadoriassimples.Aqui,navisãodeMarx,estáa“basenatural”dosistemadecréditonaproduçãoetrocademercadoriassimples.

Demaneiraparecida,osistemadecréditopodeajudararemovertodotipodebarreiraaofluxolivredocapitalatravésdasrespectivasesferasdaproduçãoedacirculação.Porexemplo,asmercadoriasque

Page 251: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

requerem períodos de produção muito longos podem ser pagas em prestações. Isso permite que osprodutorescirculemomesmocapitalváriasvezesduranteumúnicoperíododeprodução.Aarticulaçãodos fluxos de dinheiro entre as indústrias, requerendo períodos de produção radicalmente diferentes,também é possibilitada pelo uso do crédito. Tempos de circulação diferenciais e o crescimento docomércio de longa distância também constituem uma das “bases materiais” do sistema de crédito,enquantoocrescimentodocréditopermitequeasmercadoriaspenetrememmercadosmaisdistantes[54].Os consumidores que querem adquirir o valor de uso de um objeto (como uma casa) por um longoperíodo de tempo podem também procurar fazê-lo realizando pagamentos periódicos “a crédito”. Emtodosessesaspectos,osistemadecréditopermiteacontinuidadedacirculaçãododinheiro,aomesmotempoqueaceitaadescontinuidadenaprodução,nacirculaçãoenoconsumodasmercadorias.Pormeiodosistemadecrédito,todosostemposdecirculaçãosãoreduzidosa“tempodecirculaçãosocialmentenecessário”.

Dopontodevistadocapital,otempodecirculaçãoétempoperdido,eMarxfrequentementeenfatizaqueanecessidadedeaceleraracirculaçãodocapitaléuma“determinaçãofundamentaldocréditoedosmecanismos de crédito do capital”[55]. A redução do tempo de circulação realmente libera o capitalmonetário, que pode então ser usado para uma acumulação adicional. Podemos discernir um efeitomultiplicadordentrodosistemadecrédito–ousodocapitalmonetárioparaaceleraracirculaçãoliberamaiscapitalmonetário[56].

Anecessidadedemanteracontinuidadedosfluxosdedinheiroereduzirostemposdecirculaçãoemfacedamiríadedemovimentosdasmercadorias,daproliferaçãodadivisãodotrabalhoedaproduçãoedos tempos de circulação extremamente divergentes é um estímulo poderoso para a criação de umsistemadecrédito.Semcrédito,todooprocessodeacumulaçãoestagnariaeafundaria.

Por isso,ocréditoé indispensávelaqui;créditocujovolumeaumentacomovolumecrescentedovalornaproduçãoecujaduraçãodetempo aumenta com a distância aumentada dos mercados. Uma interação mútua ocorre aqui. O desenvolvimento do processo deproduçãoestendeocrédito,eocréditoconduzaumaextensãodasoperaçõesindustriaisecomerciais.[57]

Mas, damesmamaneira, o crédito permite queuma fatia bemmaior seja inserida nas identidadespressupostas pela Lei de Say do que jamais seria em outras formas de dinheiro. As aquisições e asvendaspodemsetornarcadavezmaisseparadasumadaoutra,tantonotempoquantonoespaço.Nessascondições,opotencialparaascrisestorna-semuitomaior.Ocréditonãopermiteapenasqueasfunçõestradicionaisdodinheirosejamampliadas,generalizadaseelaboradas:ele fazexatamenteomesmoemrelaçãoàstendênciasparaacrisenocapitalismo.

3.Acirculaçãodocapitalfixoeacriaçãodosbensdeconsumo

O capital fixo […] compromete a produção dos anos seguintes [e] também antecipa o trabalho futuro como valor equivalente. Aantecipaçãodosfrutosfuturosdotrabalhonãoé[…]nenhumainvençãodosistemadecrédito.Elatemsuaraiznomodoespecíficodevalorização,derotação,dereproduçãodocapitalfixo.[58]

Oquechamaaatençãonessadeclaraçãoéa relação implícita entrea formaçãoea circulaçãodocapital fixo, a ascensão de um sistema de crédito e a antecipação dos futuros frutos do trabalho. Acirculaçãodocapitalfixoimpõeumaenormecargaaocapital.Dinheirosuficientetemdeseracumuladopara cobrir o preço de compra inicial e para cobrir o tempo até o retorno dos valores mediante aprodução.Osistemadecrédito torna-sevitalna facilitaçãodacirculaçãodocapital fixo.Mesmonão

Page 252: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

presumindopoupançaspessoaisporpartedeoutrasclassesdasociedade,oscapitalistasqueinvestemnopresente podem emprestar a juros dos capitalistas que estão poupando visando a expansão ousubstituiçãofuturas.Namedidaemqueacirculaçãodocapitalfixo“endurece”esetornaumaformadecirculaçãoindependente,enamedidaemqueasuaescala,quantidadeedurabilidadeaumentamcomaacumulação,ocapitalismodeveevoluirparaumsistemadecréditocadavezmaissofisticadoparalidarcomosproblemascriadospelacirculaçãodocapitalfixo.

Os investimentos do “tipo independente”, particularmente no ambiente construído, seriamimpossíveis de ser realizados sem o acesso ao crédito. Os investimentos de longo prazo podem serconvertidosempagamentosanuais,ouocapitalpodesercentralizadoemumaescalacapazdefinanciarempreendimentos tão vastos como ferrovias, represas, docas e portos, usinas elétricas etc. O créditotambémfacilitaoconsumoindividualdemercadoriasquetêmvidalonga–automóveisecasassãobonsexemplos–,enquantoogovernopodeproporcionarbenspúblicosmedianteofinanciamentodadívida.Ocapitaltambémpodeseremprestadonaformademercadorias.Equipamentos,materialdeconstruçãoetc.podemseradquiridospelocapitalistamonetárioeemprestadosajurosaosusuários.Oresultadoéqueocapitalquerendejurospodecircularemrelaçãoaocapitalfixodeváriasmaneiras.Aúnicacoisaquetodasasformastêmemcomuméqueopagamentodejurosestá ligadoàmãodeobrafuturacomoumcontravalor.

Por essa razão, o crédito torna-se um vínculo de mediação essencial entre os fluxos de capitalcirculanteedecapitalfixo.Acimaealémdosproblemasdiretosdecoordenardoisfluxosquemarchamseguindoritmosmuitodiferentes,devemostambémconsiderarcomoosistemadecréditofuncionapararedirecionarosexcedentesdecapitaledepopulaçãonaformaçãodecapitalfixo.

Nós observamos, no capítulo 8, a dificuldade potencial que surge quando o capital circulantesuperacumuladotemdesertransformadoemcirculaçãodecapitalfixo.Ocapitalmonetárioociosode,digamos,fabricantesdecalçadospodeserdesviadoviaosistemadecréditoecolocadoparatrabalharcomtrabalhadoresdesempregadosparaconstruir,porexemplo,umaferrovia.Masissodeixaintocadasacapacidadeprodutivaexcedenteeasmercadoriasexcedentesdepropriedadedosfabricantesdesapatos.Através da criação de valores monetários equivalentes aos excedentes de sapatos e à capacidadeprodutivaociosa,ecolocandoessedinheiroemcirculaçãocomocapitalnaconstruçãode ferrovias,ocapitalpodenaverdadeserdeslocadodeumaesferaparaoutra.Masessedeslocamentoocorresemserapoiadoporqualquertrocarealdemercadorias.Osistemadecréditooperacomumaformade“capitalfictício” – um fluxo de capital monetário não apoiado por qualquer transação de mercadorias. Aexpectativa,evidentemente,équeoempregoexpandidonaconstruçãodeferroviasaumenteademandaporsapatosdemodoaeliminarosestoquesexcedentesefazeracapacidadeprodutivaociosavoltaratrabalhar.Nessecaso,ocapitalfictícioavançadoésubsequentementerealizadonaformadevalorreal.

Acategoriade“capital fictício”éumfato implícitoquandoocréditoéampliadopreviamente,emantecipação ao trabalho futuro como um contravalor. Isso permite um deslocamento suave do capitalcirculante superacumulado para a formação de capital fixo – um processo que, em curto prazo, podedisfarçar inteiramente a aparência das crises.Mas a criação de valores fictícios antes da produção erealização real damercadoria é sempreumnegócio arriscado.O sistemade crédito torna-se a últimapalavra da acumulação com todos os riscos concomitantes que essa exposição traz.A lacuna entre osvaloresfictíciosdentrodosistemadecréditoeodinheiroligadoaosvaloresreaisseamplia.Émontadoopalcoparaascrisesdentrodosistemadecrédito.Comessesprofundosriscosespeculativos,antesdequalquercoisaporqueocapitalismotoleraocapitalfictício?Precisamosagoraresponderaessaquestão

Page 253: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

emtermosgerais.

4.Capitalfictício

Noprimeiromomento,podemosdefiniracirculaçãodocapitalquerendejuroscomoumaintersecçãoentreocircuitomonetáriodocapitalporumladoeoscircuitosdasmercadoriasedocapitalprodutivoporoutro:

Quando o capital existe como dinheiro, ele possui todas as virtudes da capacidade de troca,flexibilidadedeuso,mobilidadeecoisasdessetipo.Ocapitalquerendejurospoderealizarmelhorsuasfunções de coordenação se preservar sua flexibilidade em relação a usos específicos, se permanecereternamente fora da produção e não comprometido com produtos específicos. Mas, no curso de suacirculação,osemprestadoresdevemsacrificaraflexibilidadedoseudinheiroporumperíododetempoespecíficoemtrocadeumpagamentodejuros.Duranteessetempo,odinheiroficaligadoavaloresdeuso específicos (mercadorias, aparatos produtivos etc.). Os problemas surgem imediatamente. Osemprestadorespodemnãosercapazesounãoestardispostosadesistirdocontrolesobreoseudinheiropelaextensãodetempoqueostomadoresdeempréstimosnecessitamparafinanciarsuasoperações.Noentanto,adificuldadedecoordenaravariedadedenecessidadesaparentementeinfinitastantoporpartedosemprestadores(poupadores)quantodostomadoresdeempréstimosésintomáticadeumdilemamaisprofundo. Na medida em que o capital que rende juros se torna comprometido com valores de usoespecíficos,eleperdeseuspoderesdecoordenaçãoporqueperdeasuaflexibilidade.Surgembarreirasdentrodopróprioprocessodecirculaçãodocapitalquerendejuros.EssasbarreirassãoremovidaspelacriaçãodoqueMarxchamade“capitalfictício”.

A potencialidade para o “capital fictício” está dentro da própria forma do dinheiro e estáparticularmenteassociadacomaemergênciadodinheirocreditício.Considereocasodeumprodutorquerecebecréditoemtrocadagarantiadeumamercadorianãovendida.Odinheiroequivalenteàmercadoriaéadquiridoantesdeumavendareal.Essedinheiropodeentãoserusadoparaadquirirnovosmeiosdeproduçãoeforçadetrabalho.Oemprestador,noentanto,detémumafolhadepapelcujovaloréapoiadoporumamercadorianãovendida.Essafolhadepapelpodesercaracterizadacomovalor fictício,quepodesercriadoporqualquertipodecréditocomercial.Seasfolhasdepapel(principalmenteletrasdecâmbio)começamacircularcomodinheirocreditício,entãoévalorfictícioqueestácirculando.Assim,abre-seumalacunaentreosdinheirosdecrédito(quesempretêmumcomponentefictício,imaginário)eos dinheiros “reais” diretamente ligados a umamercadoria-dinheiro[59]. Se esse dinheiro creditício éemprestadocomocapital,elesetornacapitalfictício.

Nesse caso, a criação de capital fictício pode ser encarada como mais ou menos acidental.Entretanto,oacidenteéconvertidoemnecessidadequandoconectamososprocessosdecirculaçãodocapitalquerendejurosedocapitalfixo.Ocapitalmonetáriotemagoradeseradiantadoemrelaçãoà

Page 254: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mãodeobrafutura,emvezdeemrelaçãoàgarantiadasmercadoriasjáexistentes.Alémdisso,eletemdeseradiantadodurante todaavidadocapital fixoe ficarcomprometidoduranteesse tempocomumvalordeusoespecífico.Aúnicagarantiaéovalordocapitalfixo,eeste,comovimosnocapítulo8,estásujeitoadeterminaçõescomplexaseinstáveis.Oquenaverdadeaconteceéqueareivindicaçãodamãode obra futura que o capital fixo define é convertida via o sistema de crédito em uma reivindicaçãoexercida pelo capital monetário sobre uma parcela da futura produção de valor excedente. O capitalmonetárioéinvestidonaapropriaçãofutura.Porisso,desdeoinício,ocapitalmonetárioavançadotemdeserencaradocomocapitalfictícioporqueelenãoéapoiadopelagarantiadenenhumaempresa.Alémdisso,afuturaproduçãodevalorexcedenteéincertaevariasegundoasituaçãodacompetição,oritmodamudançatecnológica,ataxadeexploraçãoeadinâmicageraldaacumulaçãoedasuperacumulação.Entretanto,mesmodiantedessaincerteza,ocapitalmonetáriodeveseradiantadodurantepelomenosotempodevidadocapitalfixo.Sériasbarreirassãoimpostasàcirculaçãodocapitalquerendejuros.

Váriassoluçõespodemsercriadasparalidarcomessasbarreiras.Intermediáriosfinanceirospodementrar nas brechas, nas poupanças e nos riscos para conseguirempedir empréstimos emcurto prazo eemprestaremlongoprazo.Elespodemfazerissoemantecipaçãoapoupançasfuturaseàfuturaproduçãodevalorexcedente(quefinalmentedevemsignificaramesmacoisa,porqueaspoupançassãogeradasdereceitasquefluemdaprodução).Aoutrasoluçãoéosprodutoresrefinanciaremsuadívidaemumabaseanualounegociarostítulosdiretamenteporparcelasdafuturaproduçãodevalorexcedente.Acompraevenda dos estoques e das parcelas permite que os donos do dinheiro preservem a flexibilidade e aliquidezenquantoospreçosdasparcelaspodemseajustaràsvariaçõesnaproduçãodevalorexcedente.

Essassoluções,queinstitucionalizamocapitalfictíciodentrodosistemadecrédito,geramalgumasconfusões.“Asaçõesdeferrovias,minas,companhiasdenavegaçãoetc.representamocapitalreal,istoé,ocapital investidoeofuncionamentonessesempreendimentos,ouaquantidadedecapitaladiantadopelosacionistascomopropósitodeserusadocomocapitalnessesempreendimentos.”[60]Masotítulodepossenão“colocaessecapitalàdisposiçãodeumapessoa”,eoprópriocapitalnãopodeserretiradoporque o título é apenas uma reivindicação de uma parte dos rendimentos futuros. O título é uma“duplicata”docapitalreal–aduplicatapodecircular,enquantoocapitalrealnãopode.“Namedidaemqueaacumulaçãodessepapelexpressaaacumulaçãodeferrovias,minas,naviosavaporetc.,tambémexpressaaextensãodoprocessorealdareprodução.”Masàmedidaqueopapelduplica,ostítulossãomeramente“formasilusóriasefictíciasdecapital”.Ospreçosdessestítulospodementãoflutuarsegundosuasprópriasleismuitoindependentementedomovimentodovalordocapitalreal[61].

Mas em um aspecto esses preços flutuantes podem refletir algo real com respeito à condição docapitalprodutivo.Observamosnocapítulo8comoovalordocapitalfixoeraemsiumadeterminaçãoinstável, porque o preço de compra inicial, o custo de substituição e a taxa de produção do valorexcedente, todos proporcionavam diferentes medidas de valor. Daí surgiu a concepção do valor docapital fixo como uma grandeza em eterna modificação, afetada pelo estado da competição, pelodinamismotecnológicoepelopróprioritmodaacumulação.Atécertoponto,avariaçãonascotaçõesdasaçõespodemserencaradascomoumreflexodosvalorescambiantesdaaçãodoprópriocapitalfixo.

Infelizmente,ospreçoscambiantesdostítulossãotambémmoldadospormuitasoutrasforças.Alémdisso,opreçonãoéaúnicaformaderendimentonasociedadecapitalista.Há,porexemplo,asrendaseos impostos. Marx afirma que “a forma do capital que rende juros é responsável pelo fato de todorendimentoregulardodinheiroaparecercomojurosobrealgumcapital,querelesejaounãodecorrentedealgumcapital”[62].Essesrendimentospodemsercapitalizadosnataxadejurosvigenteeosdireitosa

Page 255: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

elespodemtambémsernegociadosnomercado.Adívidadogoverno(ofundamentalnocapitalfictícionoquedizrespeitoaMarx)eaterra(vercapítulo11)nãotêmvalorinerente,emborapossamassumirumpreço:

Ostítulosdogovernosãocapitaisapenasparaocomprador,paraquemelesrepresentamopreçodecompra,ocapitalqueeleinvestiu.Eles,emsi,nãosãocapital,massimplesmentereivindicaçõesdedébito.Casosetratedehipotecas,sãomerostítulossobreafuturarendadaterra.[…]Nenhumdestesécapitalreal.Elesnãosãopartesconstituintesdocapitalnemsãovaloresemsi.[63]

Em todos esses casos, o capital monetário é investido na apropriação. O capitalista monetário é(presumivelmente)indiferenteàfontefinaldarendaeinvestenadívidadogoverno,emhipotecas,açõeseparticipações, comércio a prazodemercadorias ouoquequer que seja, segundo a taxade lucro, asegurançadoinvestimento,sualiquidezetc.“Todaconexãocomoatualprocessodeexpansãodocapitalfica por isso completamente perdida e a concepção do capital como algo com propriedades deautoexpansãoautomáticaé,portanto,fortalecida.”Oresultado,acreditaMarx,équeocapitalquerendejuros“éaorigemdetodosostiposdeformasinsanas”emque,“atémesmonaacumulaçãodasdívidas”,elepode“parecerumaacumulaçãodecapital”.Tudo,dizele,“éduplicadoetriplicadoetransformadoemummerofantasmadaimaginação”.Osistemadecréditoregistraa“alturadadistorção”emumpontoemqueaacumulaçãodasreivindicaçõessuperaemmuitoaproduçãoreal[64].

OprincipalpropósitodeMarxénosdissuadirdaideiadequeumareivindicaçãocomercializáveldealgumrendimento futuroéuma forma realdecapital.Eledesejanosalertarparaa insanidadedeumasociedadeemqueoinvestimentoemapropriação(rendas,dívidasdogovernoetc.)parecetãoimportantequantouminvestimentonaprodução.Marxinsistequenofimsomenteoúltimoimporta–“senãoocorrerumaacumulaçãoreal,istoé,aexpansãodaproduçãoeoaumentodosmeiosdeprodução,queproveitoviriadaacumulaçãodasreivindicaçõesdodinheirododevedorsobre[…]aprodução?”[65].Seocapitalinvestisse todoodinheironaapropriaçãoenenhumnaproduçãoreal,entãoocapitalismonãoserviriamaisparaestemundo.Equandoa“alturadadistorção”éatingidanosistemadecrédito,aqualidadedodinheiro como umamedida de valor fica ameaçada: tanto que no decorrer de uma crise, comoMarxincansavelmenteobservou,osistemaéobrigadoabuscarumabasemonetáriamaissólidadoqueaquelaproporcionadapelosdinheirosdecréditoepelocapital fictício.Com tanta insanidade incorporadanosistemadecrédito,porquepermitirquetalestadodecoisascontinue?

Quandoexploramos,passoapasso,oprocessodeacumulaçãoesuascontradições,descobrimosqueocapitalfictícioestácontidonopróprioconceitodocapital.Aformaçãoecirculaçãodocapitalfixosãonecessáriasparaaacumulação.Abarreiraqueocapitalfixocriaparaaacumulaçãofutura(vercapítulo8)sópodesersuperadapormeiodosistemadecréditoemgeralepelacriaçãodeformasfictíciasdocapital emparticular. Permitindo que o capital fictício floresça, o sistema de crédito pode suportar atransformaçãodacirculaçãoemcapitalfixoeenfrentarascrescentespressõesquesurgemàmedidaquecadavezmaiscapitalsocialtotalnasociedadecomeçaacircularemformafixa.Ocapitalfictícioétãonecessárioparaaacumulaçãoquantooprópriocapitalfixo.E,embreve,encontraremoscircunstânciasquetornarãoessaconclusãoaindamaisempática.DadaàlinhageraldoargumentodeMarxrelacionadaà maneira em que as contradições internas do capitalismo são generalizadas e elaboradas, não devesurpreenderqueacirculaçãodocapitalquerendejurossejasimultaneamenteasalvaçãodaacumulaçãoe “a origemde todos os tipos de formas insanas”.Assimpodemos entender o papel duplo do capitalfictício.

Page 256: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

5.Aequalizaçãodataxadelucro

Háinúmerasbarreirasàequalizaçãodataxadelucro,masofluxolivredocapitalquerendejuros(aumentadopelaexistênciadas formasfictíciasdocapital)contribuimuitoparaeliminá-las.A taxadelucrogeral,evidentemente,“nuncaémaisdoqueumatendência,ummovimentoparaequalizartaxasdelucroespecíficas”queestãoemfluxoperpétuoentreas firmas,as indústriaseosempreendimentos.O“equilíbrio das constantes divergências” mediante a competição presume que o capital pode fluir deesferascomlucrosabaixodamédiaparaesferascomlucrosacimadamédia[66].Ocréditotemumpapelóbvio a desempenhar aqui.É, por exemplo, “omeio emqueo capital acumuladonão é apenas usadonaquelaesferaemqueeleécriado,masemtodolugarqueeletenhaamelhorchancedesertransformadoemumaboaconta”[67].Masocréditoémaisqueapenasummeioútilparaatingirumfimvital:

Nomercadomonetáriosomenteosemprestadoreseaquelesquepedememprestadoenfrentamumaooutro.Amercadoriatemamesmaforma–odinheiro.[Oscapitalistasindividuais]sãotodoslançadosjuntoscomopessoasquepedememprestado,eocapitalosconfrontaatodosdeumaformaemqueeleéatéagoraindiferenteàmaneiraprospectivadoseuinvestimento.[Ocapitalparece]essencialmenteocapital comum de uma classe – algo que o capital fez apenas no movimento e na competição do capital entre as várias esferasindividuais.Porumlado,ocapitalmonetário[…]possuiaformaemque,indiferenteaoseuempregoespecífico,eleédivididocomoumelementocomumentreasváriasesferas,entreaclassecapitalista,comoditamasexigênciasdaproduçãoemcadaesferaindividual.[68]

Em resumo, o sistema de crédito parece uma espécie de sistema nervoso central que coordena asatividades divergentes dos capitalistas individuais.O capital que rende juros, representandoo capitalcomumdeumaclasse, flui em resposta aosdiferenciaisda taxade lucro.Alémdisso, a taxade jurospodefuncionarcomoum“barômetroetermômetro”paraocapitalismo,demaneiraqueataxadelucronãopode. Issoporque a taxade juros é alcançada comoum“efeitodemassa simultâneo”daoferta edemandaporcapitalmonetário,umresultadoqueéconhecido(écitadodiariamentenomercado)evariauniformemente(emboraMarxreconheçaosdiferenciaisdataxadejurosentreosdiferentesmercadoseosdiferentespaíses).Porisso,quandoataxadejurosdelongoprazosemovesubstancialmenteparaumpatamarmaisaltoqueolucrodaempresarecebidoemumadadalinhadeprodução,osindustriaistêmtodooincentivoparanãoreinvestir,masparaaplicarquaisquerexcedentesquepossamternomercadomonetário.Ainformaçãoqueataxadejurosproporcionaeasfunçõesqueocapitalquerendejurospodedesempenharpermitem,porisso,ajustesbemmaisrápidosnosfluxosdecapital,eassimaperfeiçoamumconjuntodemecanismosparaequalizarataxadelucro[69].Eissopodeacontecerporque“ocapitalquerende juros é capital como propriedade” externa à produção, “tão distinto do capital como função”dentrodaprodução[70].Infelizmente,ocapitalcomumdaclassedetodososcapitalistaséconvertido,nasrelações sociais do capitalismo, no capital comum de uma classe de capitalistas monetários cujosinteresses específicos nem sempre coincidem com aqueles do capital em geral. Vamos abordar essacontradiçãonopróximocapítulo.

6.Acentralizaçãodocapital

Osistemadecrédito

em seus primórdios insinua-se sorrateiramente comomodesto auxílio da acumulação e, pormeio de fios invisíveis, conduz àsmãos decapitalistasindividuaiseassociadosrecursosmonetáriosqueseencontramdispersospelasuperfíciedasociedadeemmassasmaioresoumenores,mas logo se converte numa arma nova e temível na luta concorrencial e, por fim, num gigantescomecanismo social para acentralizaçãodoscapitais.[71]

Page 257: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Nesse aspecto descobrimos que “institutos de créditomodernos foram tanto efeito como causa daconcentraçãodocapital”[72].Vamosconsiderarcomoissopodeacontecer.

Acentralizaçãodocapitalviaosistemadecréditodesencadeiatodoopoderepotencialdamudançatecnológica e organizacional como uma importante alavanca para a acumulação (ver capítulo 4). Aseconomias de escala são mais facilmente atingidas, as barreiras colocadas pelas capacidadesorganizacionaisda firma familiarpodemser superadas, eosprojetosde larga escala (particularmenteaquelesincorporadosnoambienteconstruído)podemserassegurados.E,comaajudadocapitalfictício,tudoissopodeserfeitoseminterromperindevidamente–excetoduranteascrises,éclaro–ofluxolivredo capital monetário.Mas o sistema de crédito também fornece os meios para se reagir aos efeitosdesestabilizadores damudança tecnológica e organizacional. Por exemplo,Marx lista um aumento nocapitalsocialcomoumadasinfluênciasquereagemàtendênciaparaumataxadecrescentedelucro.Asgarantiasda composiçãodevalor particularmente alta compreendidas emgrandepartedo capital fixopodemserorganizadasviaosistemadecréditoparanão“entrarnaequalizaçãodataxadelucrogeral”,pois elas só podem ser produzidas se renderem “juros limitados”[73]. O capital circulantesuperacumulado pode ser “transformado” em uma forma de circulação de capital fixo que ajuda aaumentar a taxa de lucro[74]. A composição de valor do capital pode do mesmo modo ser reduzida,aumentando-seaintegraçãoverticaleataxadelucroelevadapelotempodecirculaçãoacelerado.E,seo resto falhar, violentos processos de acumulação primitiva podem continuar no cerne do capitalismocomo os “cavaleiros errantes do crédito” que acarretam o caos fazendo dinheiro mediante adesvalorizaçãodocapitaldeoutraspessoas–“ospeixinhossãodevoradospelostubarõeseoscordeirospelos lobos da bolsa de valores”[75]. Em todos esses aspectos o sistema de crédito torna-se uminstrumento vital na luta para conter as forças destrutivas contidas dentro da lógica interna docapitalismo.

EemborasejaverdadequeMarxcolocaamaiorênfasenacentralizaçãodocapitalviaosistemadecrédito, também ocorre de as forças da centralização – a abertura de novas linhas de produção, aproliferaçãonadivisãodo trabalhoe adescentralização internadentrodas formascontemporâneasdaorganizaçãocapitalista–poderemsermanobradaspelo sistemadecrédito.Acentralizaçãodocapitalmonetáriopodeseracompanhadaporumadescentralizaçãonaorganizaçãodaatividadeprodutiva.Surgeassimumadistinçãoentreasformasfinanceiraeindustrialdaorganização,aomesmotempoquetiposespecíficos de relações surgem para vinculá-las (ver capítulo 10). Por isso, a proliferação dosdispositivosdecréditoedosestratagemasfinanceirosparecevitalparaapreservaçãodocapitalismoe,dessepontodevista,énaverdadetantoumefeitoquantoumacausadaacumulação.

V.OSISTEMADECRÉDITO:INSTRUMENTALIDADESEINSTITUIÇÕESEmborapossamoscertamenteencontrarmuitaprestidigitaçãonomundoinstáveldasfinanças,osistemade crédito não opera pormágica.Meios têm de ser encontrados para realizar as tarefas, e osmeiosrequerem instituições, e as instituições necessitam de pessoas para organizá-las e dirigi-las. Osbanqueiros,financistas,corretoresdeaçõesetc.quepovoamomundodasfinançasdesempenhamfunçõesaltamente especializadasdentrodadivisãodo trabalho.Emumamedidaououtra eles constituemumaclasseespecialdentrodaburguesia.E,namedidaqueosistemadecréditorealmentefuncionacomouma

Page 258: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

espéciedesistemanervosocentralqueregulaomovimentodocapital,essaclasseocupaosqueparecemserosaltospostosdecomandodaeconomia,deondeconfrontaoscapitalistasindustriaisoumercantiscomoosrepresentantesdocapitalsocialtotal.

Nãoobstante,oscapitalistasmonetários,comooschamaremos,sãocapturadosemumemaranhadodecontradições – o sistema de crédito internaliza as contradições do capitalismo e não as abole. Porexemplo, os banqueiros são capitalistas em competição um com o outro e devem se ocupar do seunegóciocomtodosos truquesque têmàmão– truquesque,de temposem tempos,osarrastamparaoabismo da ruína financeira. Por outro lado, imagina-se que eles atuem como representantes“responsáveis”docapitalsocialtotaleusemseuspoderescomsabedoriaecorretamente“nointeressedopúblico”.Imagina-sequemantêmodinheirodetodostão“seguroquantooBancodaInglaterra”.

Grande parte da complexidade que surgiu no mundo das finanças reflete tentativas continuadas eelaboradasparaharmonizardoispapéis inconciliáveis.Nãoobstante,emboraestapossaserasimplesverdadedaquestão,somosobrigadosaexaminarasinstrumentalidadeseasinstituiçõesquesurgiramnocapitalismo, pois estas têm importantes efeitos materiais e implicações teóricas. Marx se concentraprincipalmente nos bancos, apresenta uma análise preliminar das sociedades anônimas e fazmenção,emboraemgeraldepassagem,àamplasériedeinstituiçõesfinanceirasespecializadas,comoosbancosdepoupançapara os trabalhadores, as companhias de seguros etc.Ele provavelmentenãopoderia terprevistoocrescimentoextensivodocréditoaoconsumidor,dosfundosdepensãoedeoutrosacessóriosdosistemadecréditomoderno.Então,parecehavermuitoafazernaatualizaçãodaanálisedeMarx.

Entretanto, não estamos buscando categorias com as quais descrever a variedade aparentementeinfinita de arranjos institucionais que surgiram em diferentes países durante toda a história docapitalismo.Umaanáliseexaustiva,comoMarxapontou,nãoénecessária,poiselesóbuscouaquiumabaseteóricafirmeparaentendercomoasinstrumentalidadeseasinstituiçõesincorporadasnosistemadecrédito afetam as leis demovimento do capitalismo. Consideramos esse tópico sob quatro principaissubitens.

1.Osprincípiosgeraisdamediaçãofinanceira:acirculaçãodocapitaleacirculaçãodasreceitas

Na base de todas as operações financeiras está uma transação elementar entre as unidadeseconômicasque controlamos excedentesdosvalores e asunidades econômicasquequerem fazerusodesses excedentes para algum propósito.As unidades econômicas podem ser indivíduos (de qualquerclasse), corporações, governos, sindicatos, instituições como a igreja e a coroa, organizaçõesprofissionaisecomerciais,fundosdepensão,instituiçõesbeneficentes,bancosetc.,enquantoasériedepossíveis propósitos é imensa (para circular como capital industrial oumercantil; para adquirir umacasa,erguerummonumento,lançarumacampanhapolítica,comprarumapropriedadenocampoparaumaamantefavorita,construirumaigrejaetc.).

As instituições financeiras secongregamem tornodanecessidadedeencontrarmaneiraseficientesparacoletar,concentrare,senecessário,converteressesexcedentesnaformadedinheiropreparatóriapara lançá-lo em circulação como capital que rende juros. Nomeio do que parecer ser uma imensaconfusão,devemos,antesdetudo,fazerumafirmedistinçãoentreacirculaçãodoqueMarxchamoudeformamonetáriadareceitaeaformamonetáriadocapital[76].

Játratamosextensivamentedestaúltimaformadecirculação–omais-valoréconvertidoemdinheiroeusadoparaproduzirmaismais-valor.Acirculaçãodaformamonetáriadareceitaéumprocessomuitodiferente. Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores montem instituições como as primeiras

Page 259: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

sociedades de crédito imobiliário na Grã-Bretanha ou associações de poupança e empréstimo nosEstadosUnidos – que permitemque as economias de alguns trabalhadores sejamusadas, em troca depagamentos de juros, para ajudar outros trabalhadores a comprar suas casas. Tudo o que estáacontecendoaquiéqueasreceitasdostrabalhadores(capitalvariável)estãosendoredistribuídasdentroda classe trabalhadora de famílias com excedentes para famílias que precisam entrar em déficit paraadquirirahabitaçãoquenecessitam.Oproblemaéinterpretaropagamentodejurosque,evidentemente,nãoéumaporçãodomais-valor.Arespostaébastantesimples.Amonetizaçãodasrelaçõesnoâmbitodaclassetrabalhadoraasubjugaàdominaçãoformal,emoposiçãoàdominaçãorealdocapitalquerendejuros,comoacoordenadoracentralizadadaofertadaspoupançasdos trabalhadoresedademandadosmesmospormoradia.

Acirculaçãodasreceitaséextensiva.Elaabrangeacontrataçãodeempregadosdomésticosporparteda burguesia, pagamentos por toda uma série de serviços por parte de todas as classes. Pormeio dosistemadecrédito,muitasdessastransaçõessãoconvertidasemumarelaçãodedevedorecredor,comempréstimossendofeitosparaosconsumidorescontraasreceitasfuturas.Astransaçõespodemsetornartãofictíciasnessaesferaquantonaesferadacirculaçãodocapital.Marxnãoencaravaacirculaçãodasreceitascomoumalvoimportanteaserinvestigado,poistodasessasreceitastêmsuaorigemnoprocessodecirculaçãobásicadocapitalpara a exclusãode todoo resto.Noentanto,onossoentendimentodaofertaedemandadefundosdisponíveispodesetornarmuitofacilmenteobscurecidoporqueosistemadecréditotendeafundiracirculaçãodasreceitaseacirculaçãodocapitalindiscriminadamente.

Teoricamente,podemosdistinguirvários“minicircuitos”dentrodosistemadecrédito.Oscircuitospodem conectar unidades nos excedentes com aquelas em carência dentro da classe trabalhadora, daburguesia,entreosgovernoseentreosdiferentestiposdeunidadeseconômicas.Emnenhumdessescasospodemos interpretar o pagamento de juros como uma fatia direta do mais-valor que o dinheiroemprestadoajudaaproduzir.Ataxadejurosservesimplesmentepararegularatomadaeaconcessãodeempréstimosdasreceitasdentrodaesferadoconsumo.Aúnicaconexãocomacirculaçãodocapital–euma conexão importante – está em uma diminuição do açambarcamento pessoal e em uma demandaaumentadaporbensdeconsumoqueessesarranjosdecréditopodemajudaragerar.Osminicircuitossãomuito diferentes daqueles que conectam capitalista com capitalista ou que vinculam poupanças dereceitascominvestimentonaproduçãodiretademais-valor.

Suponhamos,porenquanto,queosváriosminicircuitosestãoisoladosumdooutro.Ataxadejurosem cada circuito seria estabelecida dentro dessa esfera e provavelmente variaria de acordo com ascondiçõesdeofertaedemanda.Masdinheiroésempredinheiro,nãoimportaemquebolsoeleesteja.Odinheirocomeçaafluirapartirdoscircuitosemqueataxadejurosébaixaparaaquelesemqueelaéalta.Haveriaumatendênciaparaumaequalizaçãodataxadejuros.

Marxassumeumataxadejurosuniformeehomogêneaquepressupõeaexistênciadeumsistemadecréditoextremamenteintegrado.Asfragmentaçõespoderiamentãoser interpretadascomoumresultadodaespecializaçãonafunção.Doladodaoferta,amobilizaçãodaspoupançascriadiferentesproblemassegundootipodeunidadeeconômica.Osbancosdepoupança,associedadesdecréditoimobiliárioeasassociações de poupança e empréstimo, uma rede nacional de poupanças, sociedades beneficentes,fundosdepensãoesegurosetc.,podemserapropriadosparaostrabalhadores,masessasinstituiçõesnãoestão bem adaptadas para lidar com as poupanças dos Rockefellers ou dos xeiques árabes ricos empetróleo. As poupanças das grandes corporações e dos governos também requerem um manejoespecializado. Do lado da demanda, os empréstimos aos pequenos negócios, o crédito agrícola, o

Page 260: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

financiamento das compras do consumidor (automóveis, casas etc.), o financiamento da dívida dogoverno,ofinanciamentodeprojetosdelargaescala(ferrovias,sistemasdetransportepúblico,serviçosdeutilidadepública)easatisfaçãodasnecessidadesdasgrandescorporaçõesmultinacionaissãotiposmuitodiferentesdenegóciosquerequeremumaexpertiseespecializada.

A estrutura financeira resultante é até certo ponto fragmentada[77] (embora os sistemas nacionaisvariem muito nesse aspecto, desde serem extremamente descentralizados nos Estados Unidos atéextremamentecentralizadosnaFrança)[78].Asfragmentaçõesnaverdadeindicamquenãoexisteapenasummercado financeiro,masmuitos. E nós podemos certamente discernir os diferenciais das taxas dejurosentreosmercadoseentreasnações,emboraexistamdiferentestaxasdeempréstimoemrelaçãoaofinanciamentodediferentestiposdeatividades.Entretanto,oqueéimpressivonossistemasmodernosdecrédito é o fato de existir um alto nível de integração dentro de uma estrutura com frequênciaextremamente fragmentada.O fluxo de fundos para dentro e para fora das associações de poupança eempréstimonosEstadosUnidos,porexemplo,éextremamentesensívelàstaxasdejurosoferecidasemoutros lugares.A oferta de dinheiro de hipoteca para omercado imobiliário é, portanto, afetada pelademandapordinheiroemoutrossetoresdaeconomia.Osdiferenciaisda taxade jurosentreospaíses(quando ajustadas para as taxas diferenciais de inflação nas moedas locais) também estimulamrapidamente fluxos de capitalmonetário “quente” para onde a taxa real de juros émais elevada. Háevidentementefortesforçasemaçãoquetendemaigualarataxadejurosdelongoprazo.Aconsequênciadisso, no entanto, é que a circulação de dinheiro como receitas e como capital torna-se quaseindistinguíveldentrodosistemafinanceiro.

2.Associedadesanônimaseosmercadosparaocapitalfictício

Expusemos no capítulo 5 que o capital tinha de ser liberado das restrições impostas pela firmafamiliarparapoderexpandiresobreviver.Aformacorporativadeorganizaçãopôsemaçãoosplenospoderes da mudança tecnológica e organizacional, estimulou a produção de novos conhecimentos epermitiu a realização de economias de escala na produção, na organização e na comercialização. E,simultaneamente,separouapossedaadministraçãoeconduziuaumaformadefinanciamentoqueliberouo capital monetário como um poder independente, como a pura propriedade capitalista externa àproduçãoeàcirculaçãodemercadorias.

Ascorporaçõesorganizadassegundooprincípiodasociedadeanônimalevantamdinheirovendendoações,quotasetítulosparaoscapitalistasmonetários.Odinheirolevantadoécolocadoparafuncionarcomocapitalparaproduzirmais-valor(ouseja,supondoqueainiciativasejadestinadaaalgomaisquea“pura fraude”). Os investidores detêm títulos de propriedade e recebem juros (fixos ou variáveis,conformeocaso).Os títulossãosimplesmentedireitosnegociáveisaumaquotanaproduçãofuturademais-valor.Osinvestidorespodemrecuperaroseudinheiroaqualquermomentovendendosuasações,quotasetítulosaoutrosinvestidores.Acompraevendaconduzàcriaçãodeumtipoespecialdemercado–omercadodeações.Essemercadoéummercadoparaocapitalfictício,paraacirculaçãodosdireitosdepropriedadecomotais.

Masosdireitosdepropriedadetêmmuitasformas.Títulosdequalquertipopodememprincípiosernegociados. Os governos podem vender direitos a uma porção das receitas de impostos futuros. Osdireitosdepropriedadedasmercadoriaspodemsernegociadossemasmercadoriasrealmentetrocaremde mãos ou, como nos mercados futuros de mercadorias, antes da produção real da mercadoria. Osdireitos à terra, aos prédios, aos recursos naturais (perfuração de petróleo, direitos de exploração

Page 261: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mineraletc.)tambémpodemsernegociados.Aoqueparece,hámuitosmercadosdiferentesparaocapitalfictício,assimcomohádiferentesformasdepossedepropriedadenocapitalismo.

A complexidade desses mercados é realmente espantosa e várias instituições e mecanismosespecializados surgempara lidarcomosproblemasmuitoespecíficosqueaparecemcomrespeitoaosdiferentes tiposdedireitodepropriedade (omercadohipotecário funcionademaneiramuitodiferentede, por exemplo, o mercado futuro de mercadorias). Mas todos esses mercados têm uma coisa emcomum.Ostítulosdepropriedadesão“duplicatasdepapel”que,emsi,nãotêmvalor,emboracirculemcomumpreço.Issosuscitaduasquestões:primeiro,oqueéquefixaospreços;e,segundo,otítulodeumaduplicadatemqualquervalorreal?

Opreçodostítulosdepropriedadeéemgeralfixadopelasreceitaspresentesefuturasantecipadasacujaposseodetentortemdireito,capitalizadasnataxadejurosvigente.Namedidaemqueestaúltimaéfixadapelaofertaepelademandadecapitalmonetário,ospreçosevidentementepodemmudardeumamaneira inteiramenteautônomadasalteraçõesnas receitas antecipadas.Opreçoé tambémmodificadoporoutrasconsiderações,comoafacilidadedenegociação,asegurança,otermodeposse,asexigênciasdetaxaçãoetc.Nãoprecisamosnospreocuparaquicomessesdetalhes,poisoprincipalenfoquetemdeserarelaçãoentreessespreçosemgeraleosvaloresreaisqueelesdevemfinalmenterepresentar.Essarelação nos proporciona uma dica importante ao buscar explicar como e por que os valores fictícios(preços)alcançadosmedianteosistemadecréditopodemficartãodistanciadosdosvaloresexpressadosna“basemonetária”.

Nocasodassociedadesanônimas,ocapital real (naformadeferrovias, fábricaprodutivaetc.)naverdadeexiste,eotítulodepossequeproduzumdividendo(juro)éapoiadodeumaformaoudeoutraporumacapacidaderealdeproduzirmais-valor.Oproblemaédiscernirafirmezadoapoio,eestesópodeserconhecidodosinvestidoresseforrequeridaaplenarevelaçãodasfinançasdacompanhia.Docontrário, as corporações podem encontrarmaneiras de fazer parecer que elas estão em uma posiçãomaisforte(oumaisfraca)doquerealmenteestãoemanipularospreçosdesuasaçõesdeacordocomisso.Por exemplo,dinheiroemprestadopode serusadopara suplementarpagamentosdedividendoseassimencorajarmais investimentoemumaempresaqueparece lucrativaemboranãooseja (processoconhecidocomo“lavagemdetítulos”,muitocomumnoiníciodoséculoXX)[79].

Osmercadosdemercadoriasemgeraloperamcomvalorrealespreitandoemalgumlugarnofundodacenae,deixandode ladocasosóbviosdefraude,os investidoressimplesmenteespeculamsobreascondiçõesderealizaçãodosvaloresemdiferenteslocaiseépocas.Essaatividadeespeculativaéútilnosentidodeque,senãoforsujeitaademasiadamanipulação,podeconduziraumaequalizaçãodospreços.Osmercados futuros demercadoria podem desempenhar uma função similar proporcionando um guiaparaosproprietáriosdemercadoriasemrelaçãoasedevemestocarou liberarasmercadoriasemumdeterminadomomentonotempo.Masissorequerumaantecipaçãodaproduçãodovalorfuturonaformademercadoria.Osmercadoshipotecários(terraepreçosdeconstrução)levantamproblemasaindamaiscomplexos,quesópodemseresmiuçadosapósumainvestigaçãocompletadarendacomoumacategoriaeconômica(vercapítulo11).

Adívidadogovernoétambémdifícildeesmiuçar.Marxaconsideravaumaformapuramenteilusóriadecapitalfictício.Odinheirorepresentadopeladívidanacionalhaviasidogastoháumlongotempo(emguerras,cobrindodespesasestataisetc.),eentãoosinvestidoresnegociavamostítulosdadívida,queégarantidaapenaspelospoderesdogovernoparataxaraproduçãodemais-valor.Essacaracterizaçãoécertamenteapropriadaparagrandepartedadívidanacional.Mashátambémformasdegastopúblicoque

Page 262: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

nãoseajustamaessemodelo.Seumainstituiçãomunicipal,financiadaporempréstimosdomercadodecapitais, vende uma mercadoria (eletricidade, gás, água, transportes) a um preço que cria receitassuficientesparapagarosjurosdadívidaedeixaosuficienteparaaexpansãofuturadonegócio,entãoelaem princípio não é diferente de uma sociedade anônima. A única diferença está em sua forma depropriedade e em seus poderes de determinar o preço. Se a atividade for parcial ou totalmentesubsidiadaporreceitasdeimpostos,entãoaquestãocomeçaasurgirdemaneiramuitodiferente.MashámuitasatividadesprodutivasquepodemserrealizadaspeloEstadocomrespeitoàsinfraestruturasfísicase sociais (saúde e educação, por exemplo).Melhorando as forças produtivas na sociedade, o Estadopodecontribuir,diretaouindiretamente,paraaproduçãodemais-valor.OdinheiroinvestidonadívidadoEstadonãodeixaautomaticamentedecircular comocapital simplesmenteporqueentranaestruturadasfinançaspúblicas.Ocapitalquerendejurospodecontinuaracircularseoaumentonaproduçãodemais-valor alcançado pelos investimentos produtivos do Estado gerar o aumento das receitas dosimpostosqueformam,porsuavez,abaseparaospagamentosdosjurosàquelesqueinvestiramnadívidadoEstado.Essaé,evidentemente,ateoriados“gastosprodutivos”quetemproporcionadoajustificativaparatodosostiposdeatividadesdoEstado[80].Masofatodeumresultadodessetiposerpossívelnãogarante de maneira alguma que os valores reais sejam realmente criados por essas intervenções doEstado.

Entretanto,emtodosessescasosa relaçãoentreospreçosdos títuloseosvalores reaisqueessestítulos representam é necessariamente obscura. As próprias receitas não estão diretamente ligadas àproduçãodemais-valor,massãomediadasporregrasdedistribuiçãoeportodaumasériedearranjosinstitucionaisqueajudamacoordenarofluxodocapitalquerendejuros,masqueobscurecemarelaçãocom valores reais. A oferta e a demanda de capital financeiro também intervêm, pois os preços sãoreceitas capitalizadas na taxa de juros. Mas os mercados para o capital fictício são vitais para asobrevivência do capitalismo porque somente pormeio deles a continuidade do fluxo do capital querende jurospode ser assegurada.Esse fluxo, comoabordamosna seçãoanterior, desempenhaalgumasfunçõesvitaisdecoordenação.Osmercadosparaocapitalfictícioproporcionammaneirasdecoordenaraforçadacoordenaçãonasociedadecapitalista.

3.Osistemabancário

Adistinçãoentreosbancoseoutrosintermediáriosfinanceiroséimportante[81].Bancosdepoupança,fundosdepensãoeseguros,associaçõesdepoupançaeempréstimosesociedadesdecréditoimobiliário,associaçõesdecrédito,contaspoupançadoscorreiosetc.mobilizampoupançasquesãopoupançasdeuma quantidade de valores existentes. Nessas condições, é impossível poupar antes da produção devalores.Amesmarestriçãonãoseaplicaaosbancos,queaomesmotempodãocréditoecriamvaloresmonetários em virtude do crédito que dão. Os bancos criam valores monetários fictícios quandosubstituemseusprópriosextratosporletrasdecâmbioqueoscapitalistas(eoutros)circulamentresi.Osvaloresmonetários fictícios podem então ser emprestados como capital. Isso significa que os bancospodem converter um fluxo de dinheiro que está sendo usado como ummeio de pagamento em capitalmonetário“livre”.Elespodemcriarcapitalmonetárioantesdaproduçãodevalores.Oúnicolimiteparaessacapacidadeestánanecessidadedemantercertareservadedinheiroparasatisfazerqualquerondarepentinanademandadedinheiroporpartedosseusclientes.Umacorridaaobancoocorrequandoosdepositários perdem a fé no dinheiro creditício do banco e, em seu lugar, buscam “dinheiro real” (amercadoria-dinheiroouaofertalegalgarantidapeloEstado).

Page 263: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Acapacidadedosbancosparacriarcapitalmonetáriodiretamentedevaloresfictícioséimportante.Há,como jávimos,umproblemaeternonocapitalismodeencontraros recursosescassosnecessáriosparapermitira realocaçãodocapitaldeusos relativamente improdutivosparausosmaisprodutivos–sempredefinidos,éclaro,emtermosdaproduçãodemais-valor.Nosestágiosiniciaisdocapitalismo,aacumulação e apropriação primitivas forçaram as realocações direta ou indiretamente (por meio dausura).Nosestágiosposteriores,amobilizaçãodaspoupançasdesempenhouumpapelimportante.Masna medida em que a acumulação primitiva declinou em relativa importância, e na medida em que aproporçãoaumentadadaspoupançastotaisnasociedadeficatotalmentemobilizadamedianteosistemadecrédito, tambémacriaçãodocapitalmonetáriodo fluxododinheirodentrodosistemabancáriosetornaafonteisoladamaisimportantedosrecursosescassosnecessáriosparaforçarasrealocaçõesnosfluxosdocapital.Aúnicafontealternativaéasuperacumulação,masmesmoaíacapacidadeprodutivaociosaeasmercadoriasemexcessodevemprimeirosermonetizadasviaosistemabancárioparaqueasrealocações possam ocorrer. Além disso, a capacidade do sistema bancário de gerar uma oferta decapitalmonetário antesdaproduçãodevalor real aumenta comovolumecrescentedas transaçõesnomercadoenacrescenteproporçãodessastransaçõesrealizadaspormeiodosistemabancário.

Marx se concentrounopapel dos bancos emvezde emoutros tipos de intermediários financeirosprecisamente porque eles combinavam tanto funções monetárias quanto funções financeiras. Comoconclui corretamente De Brunhoff, “o sistema bancário é o setor estratégico do sistema de crédito”porque os bancos são “as únicas instituições que combinam tanto omanejo dosmeios de pagamentoquanto o capital monetário”[82]. Esses dois papéis gerenciais complementam primorosamente um aooutro,aopassoqueoprogressodaacumulaçãorequeracriaçãodevaloresfictíciosnaformadedinheiroantesdequalquerproduçãoreal.Masjáobservamos(verp.330-3)queacapacidadedosbancosdecriardinheirosdecréditosemrestriçãocriaumaeternaameaçaàqualidadedodinheirocomoumamedidadevalor. Essa ameaça é duplicada e triplicada quando a criação dos valores fictícios se torna umanecessidade,emvezdeapenasumatentaçãoconstante.

A potencialidade para a superespeculação em tais circunstâncias é enorme. Os valores fictícios(dinheiros de crédito) são lançados em circulação como capital e convertidos em formas fictícias decapital. Como resultado, “a maior parte do capital do banqueiro é puramente fictícia e consiste deobrigações(letrasdecâmbio),títulosdogoverno(querepresentamocapitalgasto)eações(saquessobrereceita futura)”[83].Marx passa páginas citando com júbilo exemplos de como a “altura da distorção”ocorredentrodosetorbancáriodosistemadecrédito.Agravidadedaameaçaàqualidadedodinheiroéóbvia.

Aresposta,comovimosnaseção1,écriarumahierarquiadeinstituiçõescomopropósitoexpressodeprotegeraqualidadedodinheiro.Dentrodequalquerpaís,umbancocentraltipicamentesecolocanoápicedessahierarquia(nósnomomentodeixamosdeladoosaspectosinternacionaisdoproblema).Seobancocentralforbem-sucedidoemsuatarefa,eledeveimpedirqueosvaloresfictíciossaiammuitodolimitedosvaloresreaisdamercadoria.Elenãopodeimporumaidentidaderígida–mesmosupondoquetivesse o poder para fazê-lo – porque isso negaria a produção de capitalmonetário livre para impornovasformasdeacumulação.Tambémnãopodedeixarqueacriaçãodedinheirosdecréditocorrasolta.Aíestáoqueatémesmooseconomistasburguesesadmitemquesejaa“arte”,maisquea“ciência”,dobancocentral[84].

Entretanto,oresultadoéque“obancocentraléoeixodosistemadecrédito”e“areservademetal,por sua vez, é o eixo do banco”[85]. Despojado do seu vínculo direto com umamercadoria-dinheiro

Page 264: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

indicadapelaexpressão“reservademetal”,issosignificaqueobancocentralnecessariamenteregulaofluxo de crédito procurando preservar a qualidade do dinheiro. Então, existe uma tensão entre anecessidade demanter a acumulação pormeio da criação de crédito e a necessidade de preservar aqualidadedodinheiro.Seaprimeiraforinibida,terminamoscomumasuperacumulaçãodemercadoriaseumadesvalorizaçãoespecífica.Seforpermitidoqueaqualidadedodinheirosedestrua,generalizamosadesvalorizaçãomedianteumainflaçãocrônica.Assimsãoapresentadosimpecavelmenteosdilemasdostemposmodernos.

Os sistemasmonetário e financeiro estão unidos dentro do sistema bancário e, dentro do Estado-nação,obancocentralsetornaosupremopoderregulatório.Naverdade,oqueocorreéoseguinte:osistemadecréditoproporcionaummeioparadisciplinaroscapitalistasindividuaiseatéfacçõesinteirasdocapitalparaasexigênciasdeclasse.Masalguémtemderegularosreguladores.Obancocentralseesforçaparadesempenharessafunção.Entretanto,namedidaemqueessespoderesreguladoresestãonasmãosdeumafacçãoespecíficadocapital,elessãoquaseobrigadosaserpervertidosedestruídos.IssonoslevadiretamenteatodaaquestãodoenvolvimentodoEstadonasquestõesmonetáriasefinanceiras.

4.Instituiçõesestatais

Ossistemasdecréditomodernosexibemumaltograude integraçãoentreasatividadesprivadaseestatais,enquantotodoumramodoaparatodoEstadoestáatualmentededicadoàadministraçãodiretaouindiretadosistemadecrédito.AsrazõesparaessealtograudeenvolvimentodoEstadonãosãodifíceisdelocalizar.

Aacumulaçãorequerumfluxo livre,desregulamentadoecontínuodecapitalquerende juros.Essefluxotemdesermantidodiantedasuperespeculação,dadistorçãoedetodasasoutras“formasinsanas”queosistemadecréditoinevitavelmentegera.Aregulaçãodealgumtipoéevidentementerequeridaparaqueacirculaçãodocapitalquerendejurosprossigaisentadedestruiçãoseveraecrônica.Acapacidadedos capitalistasmonetários – banqueiros e financistas – para se regulamentarem (não importa o quãoperspicazespossamsercomrelaçãoàssuasobrigaçõesparacomaclassecapitalistacomoumtodo)éestritamentelimitadaporsuaposturacompetitivavis-à-visumcomooutroeporsualealdadefaccionaldentrodaestruturainternadasrelaçõesdeclassecapitalistas.Aregulaçãodeumtipolimitadopodeseratingidanooligopólio(porexemplo,os“cincograndes”bancosnaGrã-Bretanhafizeramumexcelentetrabalho de se regularem até recentemente), mas os firmes poderes regulatórios necessariamente sebaseiamnomonopólio,eesteúltimodevenecessariamentesermantidosobaregulaçãodoEstado.Porisso,osbancoscentraisnãosãoapenasoeixodosistemadecréditomoderno,masumpontodecontrolecentraldentrodoaparatodoEstado.

Noentanto,anecessidadedaregulaçãodoEstadonãocomeçaeterminacomobancocentral.Quandooscapitalistasmonetáriosfalhamemregularseusprópriosexcessos,oEstadotemdepartirparaeliminaraspioresformasdeabusonabolsadevalores(“lavagemdetítulos”eoutrostiposdefraude),enquantoasbarreirasàofertadecapitalmonetáriopodemserremovidasporgarantiasdoEstadoparadepósitosepoupanças.OEstadopodetambémacharnecessárioestimularalgunstiposdefluxodecréditoporrazõeseconômicasousociais(ofinanciamentodemoradiaéemgeralcolocadodeladocomoumtipoespecialde mercado de crédito por essa razão). O Estado pode até estabelecer instituições de crédito compropósitosespeciais(paracréditoagrícola,desenvolvimentodeprojetosemáreascarentes,empréstimospara pequenos negócios, empréstimos para estudantes etc.). O sistema de crédito é, portanto, umimportantecampodeaçãoparaapolíticaestatal.

Page 265: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Em muitos aspectos, essas intervenções do Estado podem ser encaradas como opcionais oucontingentesporquedependemdosucessooudofracassodoscapitalistasmonetáriosemseregulamentarou da situação geral da luta de classes como expressada através e dentro do aparato do Estado. Domesmo modo, seria tolice negar que a política monetária e fiscal tem um conteúdo político forte edevastador.MastambéménecessárioentenderqueoEstadonuncaconsegueescapardasuaobrigaçãogeral de regular, e que a intervenção institucionalizada do Estado é uma reação inevitável àinternalização e à exacerbação das forças contraditórias do capitalismo dentro do próprio sistema decrédito.

Emtermossociais, issodemonstraqueospoderesdoEstadotêmdeser invocadospararegularasoperaçõesdoscapitalistasmonetárioseconduz imediatamenteàquestão:quemcontrolaoEstado?Emtermosteóricosmaisgerais,descobrimosqueaspoderosascontradiçõesmobilizadasdentrodosistemade crédito só podem ser contidas pelo apelo dos arranjos institucionalizados de ordemmais elevadacaracterísticosdoaparatodoEstado;equeissonoslevaaconsiderarcomoosantagonismosdeclassefundamentaisentreocapitaleotrabalho,assimcomoentreasváriasfacçõesdeambossãointernalizadosdentro doEstado.Estas são, é claro, questões gigantescas e importantes,mas, lamentavelmente, estãoalémdoescopodopresentetrabalho[86].[1]VerV.I.Lenin,SelectedWorks,cit.;RudolfHilferding,Lecapitalfinancier,cit.

[2]RomanRosdolsky(TheMakingofMarx’s“Capital”,cit.)prestamuitaatençãoaoproblemadodinheiro,enquantoasobrasSuzanneDeBrunhoff(L’offredemonnaie,Paris,Maspero,1971;MarxonMoney,cit.;TheState,CapitalandEconomicPolicy,Londres,PlutoPress,1978;Les rapportsd’argent, Grenoble, Presses universitaires deGrenoble, 1979) são fundamentais. ErnerstMandel (Marxist EconomicTheory,cit.,cap.7e8)proporcionaumdospoucostextosemqueodinheiroeocréditoestãoincorporadosnaanálise,eeletambémprocuroumanter as questões financeiras na linha de frente de suas obras posteriores.Outras contribuições importantes são as de LaurenceHarris(“The Science of the Economy”, cit., e “TheRole ofMoney in the Economy”, cit.) e Christian Barrère (Crise du système de crédit etcapitalismemonopolisted’État,cit.),comesteúltimotentandointegrarumateoriadodinheiroedocréditocomateoriageraldocapitalismomonopolistaestatal.AntonyCutler,BarryHindess,PaulHirsteAtharHussain(Marx’sCapitalandCapitalismToday,cit.,v.2,parte1)têmalgumas coisasmuito interessantes a dizer sobreo dinheiro e as instituições financeiras emgeral,mas representamdemaneira totalmenteinapropriadaaprópriaposiçãodeMarxsobreessasquestões.AcontribuiçãodeSamirAmin(AccumulationonaWorldScale,NovaYork,MonthlyReviewPress,1974)tambémédignademenção.

[3]Aideiadodinheirocomoumpodersocial,apropriadopeloscapitalistasetransformadoemcapitalmonetário,estánocentrodaconcepçãomarxiana e a diferencia dos pontos de vista burgueses, todos os quais tendem, em última análise, a se reduzir a alguma versão da teoriaquantitativadamoeda(verLaurenceHarris,“TheRoleofMoneyintheEconomy”,cit.;SuzanneDeBrunhoff,Lesrapportsd’argent,cit.).Os textos burgueses na tradição neoclássica (como aquele de JürgNiehans,TheTheory ofMoney, Baltimore, JohnsHopkinsUniversityPress,1978)modificamasuposiçãoneoclássicatradicionalparaasupostaneutralidadedodinheirodentrodeumsistemaeconômicoemfavordeumaanálisemaissofisticadadoscustosdetransação,daofertaedemandadossaldosdecaixaetc.Assim,épermitidoqueaquantidadeeasformasdedinheirotenhamefeitosreaissobreaacumulação,ademanda,ocrescimento,oemprego,oprodutoetc.Masaconcepçãodedinheirocomoumafontedepodersocialeadiferenciaçãoentredinheiroecapitalmonetárioestãototalmenteausentes.

[4]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.176-7.

[5]Ibidem,p.170.

[6]Ibidem,p.196-7.SuzanneDeBrunhoff(L’offredemonnaie,cit.;Lesrapportsd’argent,cit.)eLaurenceHarris(“TheRoleofMoneyintheEconomy”,cit.)examinamateoriaquantitativadodinheiroapartirdeumaperspectivamarxista.

[7]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.207.

[8]Idem,AContributiontotheCritiqueofPoliticalEconomy,cit.,p.107.

[9]SuzanneDeBrunhoff(TheState,CapitalandEconomicPolicy,cit.)tratadetalhadamentedarelaçãoentreodinheiroeoEstado.PierreVilar(AHistory ofGold andMoney, Londres/AtlanticHighlands,NLB/Humanities Press, 1976) apresenta uma interessante história dasváriasformasdedinheiro.

Page 266: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[10]KarlMarx,AContributiontotheCritiqueofPoliticalEconomy,cit.,p.127.

[11]JürgNiehans (TheTheoryofMoney, cit.,p.140)comenta sobrea tendênciadisseminadaparadenunciaramoedamercadoriacomouma“relíquiabárbara”de“estágiosmenosesclarecidosdasociedadehumana”naveiaquesesegue;“Amoedamercadoriaéoúnicotipodedinheiroque,nopresentemomento,sepodedizerquepassounotestedahistórianaseconomiasdemercado.Excetodurantecurtosinterlúdiosdeguerra,revoluçãoecrisefinanceira,aseconomiasocidentaistêmusadosistemasdemoedamercadoriadesdeosprimórdiosdasuahistóriaquaseatéaatualidade.Maisprecisamente,sóapartirde1973aausênciadequalquervínculocomomundodasmercadoriaspassouaserconsiderada como uma característica normal do sistema monetário. Ainda vai demorar várias décadas até podermos dizer se o mundoocidentalfinalmenteembarcou,comoétãofrequentementeproclamado,emumanovaerademoedanãomercadoriaouseoperíodopresenteacabará se mostrando apenas mais um interlúdio”. A perspectiva marxiana indicaria que já estamos em “apenas outro interlúdio”,provavelmentecaracterizadoporcrisesfinanceiras,guerraetalvezatémesmorevolução.

[12]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.200.

[13]Ibidem,cap.3.

[14]GabrielKolko (TheTriumph ofConservatism: aReinterpretation ofAmericanHistory,NovaYork, Free Press ofGlencoe, 1963)apresenta uma interpretação muito interessante do colapso das garantias privadas da qualidade do dinheiro nos Estados Unidos, e dasubsequenteformaçãodoSistemadeReservaFederalapoiadapeloEstadonoperíodode1907a1913.

[15]SuzanneDeBrunhoff,MarxonMoney,cit.,p.48-53.

[16]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.215.

[17]Idem,Grundrisse,cit.,p.124.

[18]O termo“repressão financeira”éusadoporMcKinnon (1973,cap.7),eeuousoaquinãoporconcordarcomadefinição técnicadeMcKinnon,masporqueeledescrevegraficamenteofenômenoqueestásendoinvestigado.

[19]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.516.

[20]SuzanneDeBrunhoff(L’offredemonnaie,cit.)eLaurenceHarris(“TheRoleofMoneyintheEconomy”,cit.)apresentambonsrelatosdacríticamarxistadomonetarismo.

[21]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.116.

[22]Ibidem,p.30.

[23]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.225.

[24]Idem,Grundrisse,cit.,p.134.

[25]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.77,81.

[26]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,seçãoII.

[27]Ibidem,LivroII,p.29-30.

[28]Ibidem,p.117.

[29]VerSuzanneDeBrunhoff,MarxonMoney,cit.,paraumadiscussãodasrelaçõesentreoEstado,asfinançaseaacumulação.

[30]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.593.

[31]Ibidem,cap.36.

[32]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.468-9.

[33]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.600.

[34]Ibidem,p.355.

[35]Ibidem,p.374-8.

[36]Ibidem,p.382.

[37]Ibidem,p.89.

[38]Ibidem,p.338-52.

[39]Ibidem,p.348.

[40]Ibidem,p.354.

[41]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.453-540.

[42]LaurenceHarris(“OnInterest,CreditandCapital”,cit.)temumaintroduçãoútilàsforçasquedeterminamataxadejurosnaanálisedofenômenoporMarx.

Page 267: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[43]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.356,354.

[44]Ibidem,p.375.

[45]Ibidem,p.358.

[46]Ibidem,p.419.

[47]Ibidem,p.377-8.

[48]Ibidem,p.400.

[49]Ibidem,LivroII,p.148.

[50]Ibidem,p.493.

[51]Ibidem,LivroIII,p.403.

[52]Ibidem,p.368.

[53]Ibidem,p.435.

[54]Ibidem,LivroII,p.251-2;LivroIII,p.480-2.

[55]Idem,Grundrisse,cit.,p.551;Capital,LivroII,cit.,p.282.

[56]SuzanneDeBrunhoff(L’offredemonnaie,cit.)examinaadistinçãonateoriaburguesaentreodinheiroeosmultiplicadoresdocréditodentroumaperspectivamarxistaedemonstraqueadistinçãotempoucaimportância.

[57]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.481.

[58]Idem,Grundrisse,cit.,p.611-2.

[59]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.573-4.

[60]Ibidem,p.466.

[61]Ibidem,p.466-77.

[62]Ibidem,p.464.

[63]Ibidem,p.475.

[64]Ibidem,p.464-72.

[65]Ibidem,p.424.

[66]Ibidem,p.366.

[67]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.482.

[68]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.368.

[69]Ibidem,p.366-9.

[70]Ibidem,p.379.

[71]Ibidem,LivroI,p.702.

[72]Idem,Grundrisse,cit.,p.74.

[73]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.240,437.

[74]EsteéosignificadodateoriadadesvalorizaçãorelativadePaulBoccara(Étudessurlecapitalismemonopolisted’État,sacriseetsonissue,cit.),discutidanocapítulo7.

[75]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.440.

[76]Ibidem,p.443.

[77]EmboraorelatodeRudolfHilferding(Lecapitalfinancier,cit.) sejadatado,adescriçãoqueeleapresentadasestruturas financeirasaindaédegrandeinteresse.

[78]Relatos convencionais da estrutura financeira francesapodem ser encontrados emAntoineCoutière,Le systèmemonétaire français(Paris, Economica, 1976), e François Morin, La structure financière du capitalisme français (Paris, Calmann-Lèvy, 1974), e materiaiscomparativosparaaGrã-BretanhaemJackRevell,TheBritishFinancialSystem(Londres,Macmillan,1973),eparaosEstadosUnidosnaCommission onMoney andCredit,Money andCredit, Their Influence on Jobs, Prices, andGrowth (EnglewoodCliffs, Prentice-Hall,1961),atualizadapeloHuntCommissionReport,FinancialStructureandRegulation (Washington,1971).RaymondGoldsmith (FinancialStructureandDevelopment,NewHaven,YaleUniversityPress,1969)tentaalgumascomparaçõesgeraisemtornodotemadaestruturaedodesenvolvimentofinanceiros.

Page 268: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[79] Alguns exemplos espetaculares de especuladores que ganharam milhões desvalorizando os investimentos de outras pessoas por talatividadepodem ser encontradosnahistória do financiamentodos transportes demassanadécadade1890 e início de1900–verBurtonHendrick,“GreatAmericanFortunesandTheirMaking:StreetRailwayFinanciers”(McCluresMagazine,1907),eSidneyRoberts,“Portraitsof aRobberBaron:CharlesT.Yerkes” (BusinessHistoryReview, 1961), contra o quadro descrito por Charles Cheape emMoving theMasses(Cambridge,HarvardUniversityPress,1980).

[80]ObarãoHaussmanfoiopioneirodessaideiados“gastosprodutivos”porpartedoEstadoemseuprogramadereconstruçãodramáticaparaParisduranteoSegundoImpério(verDavidPinkney,NapoleonIIIandtheRebuildingofParis,Princeton,PrincetonUniversityPress,1958). A ideia é agora uma postura padrão na maioria das teorias burguesas das finanças públicas. As teorias marxistas do Estado sãopeculiarmente reticentes ao lidar com essa potencialidade, embora Colin Barker (“The State as Capital”, International Socialism, 1978)proponhaumaestruturainteressantequemereceserelaborada.

[81]Essadistinçãoéproveitosamentediscutida,emboraemtermosburgueses,porJohnGurleyeEdwardShawemMoneyinaTheoryofFinance(Washington,BrookingsInstitution,1960).

[82]SuzanneDeBrunhoff,TheState,CapitalandEconomicPolicy,cit.,p.78.

[83]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.469.

[84]VerJürgNiehans,TheTheoryofMoney,cit.,cap.12.

[85]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.572.

[86]Infelizmente,grandepartedarecenteteorizaçãomarxistasobreoEstadoestámuitomalinformadaquandosetratadeentenderarelaçãoentreoEstadoeodinheiroeossistemasdecrédito.Essa relaçãoé,paramim,absolutamente fundamentalparaa interpretaçãodegrandepartedoqueoEstado faz,assimcomodadiferenciadaestruturadas instituiçõesdoEstadonocapitalismo.AqualidadenotáveldaobradeSuzanneDeBrunhoffderivaprecisamentedasuasensibilidadecomrespeitoaessarelação.

Page 269: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

10.Ocapitalfinanceiroesuascontradições

Oconceitodecapitalfinanceirotemumahistóriapeculiarnopensamentomarxista.OpróprioMarxnãousou o termo, mas deixou uma enorme quantidade de escritos sobre o processo de circulação dediferentestiposdecapitalmonetário.Adefiniçãoimplícitadecapitalfinanceiroéadeumtipoparticularde processo de circulação do capital que se concentra no sistema de crédito. Autores posteriorestenderamaabandonaressepontodevistadoprocessoetrataroconceitoemtermosdeumaconfiguraçãoparticulardealiançasfracionáriasnointeriordaburguesia–umblocodepoderqueexerceumaenormeinfluênciasobreosprocessosdeacumulaçãoemgeral.Entretanto,comexceçãodeumaobrabasilardeHilferdingsobreoassuntoeareplicaçãoinfluentedealgumasdesuasideiasnoensaioseminaldeLeninsobre o imperialismo, o conceito permaneceu praticamente não analisado. Passou para o folclore dateoriamarxianasempraticamentenenhumdebate.

Dessedomínioprivilegiado,o conceito éperiodicamente ressuscitadopelosmarxistas semprequeconsideradodemodopolêmicoouquandoécientificamenteapropriado.Semdúvidaousodoconceitopor este ou aquele autor com frequência atrai comentários críticos e, ocasionalmente, surgem debatesacirradossobrequestõescomo:osbanqueiroscontrolamascorporaçõesouascorporaçõescontrolamosbancos[1]? Entretanto, os debates tipicamente se concentram na maneira em que um bloco de poderchamado“capitalfinanceiro”éconstituídoeaimportânciarelativadesseblocodepodervis-à-visoutrosblocosdepoder.Ajustificativaparaaconstituiçãode talblocodepoder,anecessidadesocialdesuaexistência,nãoéemgeralquestionada.

Oobjetivodestecapítuloécontrastaravisãodoprocessodocapitalfinanceirocomavisãodoblocode poder, e mostrar como uma exploração do primeiro, com particular ênfase em suas contradiçõesinternas, ajuda a identificar as forças contrárias que simultaneamente criam e corroem a formação deblocos de poder coerentes no interior da burguesia.Aomesmo tempo, vou também argumentar que oentendimentoapropriadodosprocessostemcertaprioridadenateoriamarxiana,porqueproduzemnósinsights muito mais profundos na dinâmica da acumulação e na formação de crises do que qualqueraprofundamento nas complexidades mecânicas da formação do bloco de poder é capaz. Por isso, ocapítulo termina com um “segundo recorte” na teoria das crises que se esforça para integrar umentendimentodascontradiçõesinerentesnocapitalfinanceirocomoumprocessocomacompreensãodosproblemasdedesequilíbrionaproduçãoexpostosnoscapítulos6e7.

Page 270: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

I.OSISTEMADECRÉDITOSEGUNDOMARXNocapítulo9consideramosemdetalhesasváriasfunçõesebenefíciostécnicosqueosistemadecréditoconfere à circulação do capital. Entendido como um todo integrado, o sistema de crédito pode serencaradocomoumaespéciedesistemanervosocentralpormeiodoqualacirculaçãototaldocapitalécoordenada.Elepermitearealocaçãodocapitalmonetárioentreasatividades,firmas,setores,regiõesepaíses.Promoveaarticulaçãodediversasatividades,umadivisãoincipientedotrabalhoeumareduçãonostemposderotação.Facilitaaequalizaçãodataxadelucroearbitraentreasforçasquecontribuempara a centralização e descentralização do capital. Ajuda a coordenar as relações entre os fluxos decapital fixo e capital circulante.A taxa de juros reduz os usos atuais em contraposição às exigênciasfuturas, enquanto formas de capital fictício vinculam os fluxos do capital monetário atual com aantecipaçãodosfrutosfuturosdotrabalho.

O capital que rende juros pode desempenhar todos esses papéis porque o dinheiro representa umpodersocialgeral.Porisso,quandoestáconcentradonasmãosdoscapitalistas–umaconcentraçãoquerefleteaapropriaçãodomais-valor–odinheiropassaaexpressaropoderdapropriedadecapitalistafora de e externo a qualquer processo específico de produção de mercadoria. O capital monetário,quando mobilizado mediante o sistema de crédito, pode operar como o capital comum da classecapitalista[2].

Adequadamenteorganizadoegerenciado,ocapitalmonetárioreunidomedianteosistemadecréditotem o potencial de aprimorar o mecanismo da acumulação através da coordenação sofisticada dasdecisões de investimento em uma economia. Indiferente a qualquer emprego específico, esse capitalmonetáriopode serusadopara imporavontadedaclassecapitalistacomoumacoletividade sobreoscapitalistas individuais.Namedida em que os capitalistas individuais, agindo em interesse próprio ebuscandomaximizarseuslucrosemumambientecompetitivo,adotamtecnologiasetomamdecisõesquesãoinconsistentescomaacumulaçãoequilibrada,osistemadecréditoofereceaesperançadecontrolaresse comportamento errôneo. A profunda contradição entre os comportamentos individuais e asexigênciasdeclasseque,comovistonocapítulo7,exerceumainfluênciadesestabilizadoratãopoderosasobre o caminhoda acumulação, parece controlável, talvez até reconciliável.A estabilidadepode serimposta sobre um capitalismo do contrário anarquista e não coordenadomediante a organização e ogerenciamentoapropriadosdosistemadecrédito.Ouassimparece.

Oimensopoderpotencialqueresidenointeriordosistemadecréditomerecemaisatenção.Deve-seconsiderar, em primeiro lugar, a relação entre a produção e o consumo (ver capítulos 3 e 6). Umaalocação apropriada do crédito pode assegurar um equilíbrio quantitativo entre eles. A lacuna entrecompraevenda–abaseparaarejeiçãodeMarxdaLeideSay–podesertransposta,eaproduçãopodeserharmonizadacomoconsumoparaassegurarumaacumulaçãoequilibrada.Qualqueraumentonofluxodocréditoparaaconstruçãodemoradias,porexemplo,éatualmentedepoucoproveitosemumaumentoparalelo no fluxo das finanças hipotecárias para facilitar a aquisição demoradia.O crédito pode serusado para acelerar simultaneamente a produção e o consumo.Os fluxos de capital fixo e de capitalcirculantepodemtambémsercoordenadosnotempoviaajustesaparentementesimplesdentrodosistemadecrédito.Todososvínculosnoprocessoderealização,excetoum,podemsercolocadossobocontroledo sistema de crédito. A única exceção é da maior importância. Embora os insumos possam seradquiridoseosprodutosdescartadoscomaajudadocrédito,nãohásubstitutoparaatransformaçãorealda naturezamediante a produção concreta dos valores de uso.Os últimos só podem ficar sujeitos ao

Page 271: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

controletotaldaclassenamedidaemqueofinancistaeoindustrialsetornamumsó(umaideiaquetantoLeninquantoHilferdingmaistarderetomaram).

Emsegundolugar,devemserconsideradasaquelasrelaçõesdedistribuição“antagônicas”queatuamcomo uma barreira à produção e à realização do mais-valor como um processo contínuo. As quotasdistribucionaisdossalários,dasrendas,dosjuros,dosimpostosedolucrodaempresanãopodemsermodificadaspormeiodosistemadecrédito?Ossalárioscertamentepodemserreduzidospelainflaçãoestimuladapelocréditoe,domesmomodo,aspoupançasdostrabalhadorespodemsermobilizadascomocapitalatravésdosistemadecrédito,talvezparaseremdesvalorizadasemtemposdecrise[3].Edepoishá,porexemplo,asvárias“formassecundáriasdeexploração”–hipotecasecréditoaoconsumidor–,emqueas rendasreaisdos trabalhadorespodemsermodificadas[4].Alémdisso,acompraevendadetítulosparareceitasfuturasdequalquertipointegramoutrosaspectosdadistribuição(aapropriaçãodasrendas, dos impostos e do lucro da empresa) no sistema geral de circulação do capitalmonetário.Osistema de crédito também facilita a centralização do capital e permite que o capital se liberte dosgrilhõesdafirmafamiliareoperecomocapitalcorporativo;porisso,osarranjosdistribucionaisdentrodaclassecapitalistapodemseralteradoseograudecentralizaçãoedescentralização(vercapítulo5)administrado. Se há um conjunto perfeito de arranjos distribucionais para assegurar a acumulaçãoequilibrada,asoperaçõesbancáriaseocréditoproporcionamosmeiospotenciaisparaaconvergênciaparaessepontodeequilíbrio.

Aparentemente, aomenos, o sistema de crédito contém o potencial para superar os antagonismosentre a produção e o consumo, entre a produção e a realização, entre os usos presentes e o trabalhofuturo, entre a produção e a distribuição. Ele também proporciona os meios para arbitrar entre osinteressesindividuaiseosinteressesdeclassee,dessemodo,conterasforçasquecontribuemparaascrises.Munidadeumaarmapotencialmentepoderosa,aclassecapitalistatemtodososincentivosparaaperfeiçoá-la. E, na verdade, há abundantes evidências de que cada crise sucessiva do capitalismoimpulsionouosistemadecréditoparanovasconfiguraçõesnocursodesuaresolução(atransformaçãoradical da estrutura financeira nos Estados Unidos na década de 1930 proporciona um exemploesplêndido). Tudo isso confirma amensagembásica transmitida no capítulo 9: que o capitalismo nãopoderia sobrevivermuito tempo na ausência de um sistema de crédito, que diariamente se tornamaissofisticadonascoordenaçõesquepermite.

Então,comoascrisesaindaocorrem?ArespostadeMarxéqueocrédito“sósuperaesseslimitesdavalorizaçãodocapitalnamedidaemqueoselevaàsuaformamaisgeral”[5].Oqueelequerdizeréqueousodocréditotendeapiorarascoisasnolongoprazoporquesópodelidarcomproblemasquesurgemnatrocaenuncacomaquelesquesurgemnaprodução.Alémdisso,háumasériedecircunstânciasemqueocréditopodegerarsinaiserrôneosdepreçoaosprodutorese,dessemodo,agravarastendênciasdedesproporcionalidadeesuperacumulação.Vamosexaminaralgumasdessascircunstâncias.

Em primeiro lugar, a equalização da taxa de lucro que o sistema de crédito facilita aperfeiçoa acompetição e acelera, em vez de diminuir, o esforço para o ganho demais-valor relativomediante amudançatecnológica.Elatambémasseguraqueasmercadoriassejamnegociadasconformeospreçosdeproduçãoemvezdesegundoosvalores.Comoopassoaceleradodamudança tecnológicaeos sinaiserrôneosdaproduçãodadospelospreçosdeproduçãoestão,antesdetudo,portrásdatendênciaparaasuperacumulação,nesseaspectoocréditoexacerba,emvezdediminuir,atendênciaparaodesequilíbrio.

Emsegundolugar,osistemadecréditoconferecertopoderindependenteaosfinancistaseoscolocaàparte,comorepresentantesdo“capitalemgeral”.Uma“classe”debanqueiroseoutrosintermediários

Page 272: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

seinsereentreospoupadores(muitosdosquaispertencemauma“classe”decapitalistasendinheirados)e a “classe de capitalistas industriais”[6]. Os administradores das sociedades anônimas também secristalizamemumaclasseseparadadeadministradoresdodinheiroalheio[7].Ocrescimentodosistemadecréditogeranovasfacçõesou“classes”(Marxusaessetermocomfrequênciaparadescrevê-las)nointeriordaburguesia.Asdiferentesclassesdecapitalistasendinheirados,financistaseadministradoressão supostamente responsáveis pelo desdobramento do capital que rende juros no capital comum daclassecapitalistacomoumtodo.Elesdevem,presumivelmente,alocarcapitalmonetárioparafacilitaraacumulaçãoemgeral.Entretanto,comoindivíduos,sãoobrigadospelacompetiçãoaagiremseuprópriointeresseimediatoounointeressefaccionário.

Naposiçãovantajosaemqueestão,osbanqueiroseoutros“cavalheirosdasaltasfinanças”podemcomeçar a explorar o sistemade crédito “como se fosse seu próprio capital privado” e, dessemodo,podem se apropriar de “boa parte da acumulação real” à custa do capital industrial[8]. A “enormecentralização”possívelviasistemadecréditoproporcionaa“essaclassedeparasitasopoderfabuloso,nãoapenasdeperiodicamentesaquearoscapitalistasindustriais,mastambémdeinterferirnaproduçãorealdeumamaneiramaisperigosa”[9].Aconcentraçãodopodersocialexternododinheironasmãosdeumaoligarquiafinanceiranãoé,aparentemente,umapurabênção.

Comoo poder estabelecido no capital comumda classe está aberto à apropriação e à exploraçãoindividuais,osistemadecréditosetransformanopalcodeintensaslutasfaccionáriaseopoderpessoalatuadentrodaburguesia.Oresultadodessaslutasdepoderéevidentementeimportante.MasMarxprestaumaatençãosingularmentepequenaaesseaspectodascoisas.Équasecomoseeleoencarassecomoumconflito óbvio na superfície da sociedade burguesa, um conflito que oculta um conjunto muito maisprofundo de relações dissimuladas entre a circulação do dinheiro que rende juros como capital e osprocessosdeproduçãodemais-valor.Nestecapítuloesperomostrarqueateoriadocapitalfinanceiro,comoumprocesso,emoposiçãoaumconjuntoparticulardearranjosinstitucionaisouaumcatálogodequem está dominando quem dentro da burguesia, revela muito sobre a dinâmica contraditória daacumulaçãoque,docontrário,permaneceriaoculta.

A terceira barreira que impede o funcionamento do sistema de crédito como aperfeiçoador daacumulaçãosurgeporqueocapitalmonetárionãoéparticularmentediscriminadoremrelaçãoadeondeelevemouparaondeeleflui.Porexemplo,aspoupançasdetodasasclassessociaissãoreunidasparaque todosassumamopapeldepoupadores,não importaqualsejaasuaposiçãosocial.Aspoupançasdostrabalhadoressefundemcomaquelasdoscapitalistasendinheiradosdetalmodoquecomfrequênciase tornam indistinguíveis. O poder monetário reunido via o sistema de crédito tem uma base socialextraordinariamenteampla.Qualquermudançanapropensãoparapouparporpartedequalquerclassedasociedadepodealteraroequilíbriodepoderentreosfinancistaseasoutrasclasses,particularmenteoscapitalistasindustriais.

Ocapitalmonetárioéigualmenteindiscriminadoemrelaçãoaosseususos,poiseletipicamentefluiparaasreceitasapropriadas,nãoimportadequetipoelassejam.Emboraissopermitaqueacirculaçãodocapitalque rende juros se integree talvezatédisciplineadívidadogoverno,doconsumidoredoprodutor,aespeculaçãonasaçõesenasquotas,osfuturosdemercadoriaearendadaterra,nãohánadaque impeça que o investimento especulativo na apropriação das receitas fique inteiramente fora dealcance. Pior ainda, uma acumulação de ativos financeiros pode aparecer como uma acumulação decapitalmonetárioetaisativospodemcontinuaracircularmesmoquenãotenhambasenaproduçãoreal.Aespeculaçãoemtítulosdeterrastotalmenteimprodutivas,porexemplo,podedesencadearumprocesso

Page 273: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

deacumulaçãofictícioseessestítulospuderemserusadoscomocolateraisparaefetuaroutrasvendaseaquisições.UmexemploespetacularocorreunosEstadosUnidosnadécadade1830,quandoostítulosdeterranasmãosdeindivíduosedebancosefetivamenteatuaramcomodinheiro–aexplosãodepapéisfoisubitamenteinterrompidaquandoopresidenteJacksondeterminouquetodosospagamentosdeaquisiçãodeterrasfederaisfossemfeitosemespécie.Então,frequentementesurgemcircunstânciasemque“todocapitalparecedobrar,eàsvezestriplicar,pelosváriosmodosemqueomesmocapital,outalvezatéomesmotítulodeumadívidaapareceemdiferentesformaseemdiferentesmãos”[10].

Oquecomeçouaparecendocomoumdispositivosaudávelparaexpressarosinteressescoletivosdaclassecapitalista,comoummeioparasuperar“osgrilhõesebarreirasimanentesàprodução”,elevandoassimas“basesmateriais”docapitalismoanovosníveisdeperfeição,“torna-seaprincipalalavancapara a superprodução e a superespeculação”. As “formas insanas” do capital fictício vêm à tona epermitemqueumalto“níveldedistorção”ocorranointeriordosistemadecrédito.Oqueaprincípiopareciaumasoluçãoperfeitaparaascontradiçõesdocapitalismotornou-se,emvezdisso,ocentrodeumproblemaasersuperado.

Marxconcluiqueosistemadecréditopermite“umaenormeexpansãodaescaladaproduçãoe/oudasempresas”, a substituiçãodocapitalista individualpelas formas“social”e“associada”docapital(sociedades anônimas, corporações etc.), a separação da administração da posse, a criação demonopóliosqueprovocamainterferênciadoEstadoeaascensãodeuma“novaaristocraciafinanceira”.Ecomisso“aceleraodesenvolvimentomaterialdasforçasprodutivas”eestabeleceomercadomundial.Mastambémaceleraaformaçãodecrisesetrazàtonaos“elementosdedesintegração”docapitalismo.Marxchama issode“aboliçãodomododeproduçãocapitalistadentrodoprópriomododeproduçãocapitalistae,portanto,umacontradiçãoautodissolutora”[11].

Marx não elaborou muito essas ideias, mas a história sim, tal como muitos analistas marxistassubsequentes.Então,precisamosconsiderarcomoasideiasdeMarxtêmsidointerpretadas,completadaseadaptadasparaseajustaràsrealidadesdasoperaçõesfinanceirasdonossoséculo.Entretanto,aofazê-lo,devemosteremmentequeMarxempartealgumexplicaexatamenteoqueelequerdizercom“umacontradição autodissolutora”, umaexpressãopomposa,muito abstrata eum tanto ambígua.Oobjetivo,então,ésugerirumainterpretaçãodessaexpressãoeveratéquepontoelarefleteosdilemasdousodocréditonocapitalismo.

II.OCAPITALFINANCEIROSEGUNDOLENINEHILFERDING“O século XX”, escreveu Lenin, “marca o ponto de virada do velho capitalismo para o novo, dadominação do capital em geral para a dominação do capital financeiro”. Os bancos, declarou ele,poderiam concentrar o poder social do dinheiro em suas mãos, operar como “um único capitalistacoletivo”e,assim,“subordinaràsuavontade”nãoapenastodasasoperaçõescomerciaiseindustriais,masatétodososgovernos.Namedidaemqueosindustriaisbuscamopoderdomonopólio–emgrandepartepormeiodacentralizaçãodoscapitais–ocapitalindustrialeobancáriotendemaseunir.Então,o“capitalfinanceiro”édefinidocomo“ocapitalbancáriodealgunsbancosmonopolistasmuitograndes,fundidoscomocapitaldasassociaçõesmonopolistasdosindustriais”[12].

Uma“oligarquiafinanceira”controladorasurgenabasedocapitalfinanceiro.Elasistematicamentetransformaomododeproduçãocapitalistaeprojetadeumanovamaneiraascontradições internasdo

Page 274: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capitalismono cenáriomundial. “Sem sombrade dúvida”, escreveLenin, “a transiçãodo capitalismoparaoestágiodecapitalismomonopolista,paracapitalfinanceiro,estáconectadacomaintensificaçãodalutapeladivisãodomundo”.Oimperialismo,continuaele,

éocapitalismonaqueleestágiodedesenvolvimentoemqueéestabelecidoodomíniodosmonopóliosedocapital financeiro;emqueaexportaçãodocapital adquiriu importânciadestacada; emque teve início adivisãodomundoentreos trustes internacionais; emqueadivisãodetodososterritóriosdogloboentreasmaiorespotênciascapitalistasfoicompletada.

As contradições inerentes do capitalista são agora expressadas em termos de umdesenvolvimentodesigual aindamaisdramáticodo capitalismoedeuma reestruturação radical das relaçõesde classe.Umaoligarquiafinanceiradominanteapoiadapelos“Estadosfinanceiramentepoderosos”compraapazdos trabalhadoresnos“principais”países, encorajandoa formaçãodeuma“aristocraciado trabalho”,enquanto o resto do mundo é conduzido de um modo cada vez mais profundo para estados dedependência,subserviênciaerebelião.AcompetiçãodentrodaoligarquiafinanceiraeentreosEstadosfinanceiramentepoderososaumenta,emvezdediminuir.Oresultadofinaldissosãorivalidadeseguerrasinterimperialistas.Assim, Lenin, iniciando com o conceito de capital financeiro, chega a uma análiseimpressionantedoimperialismodoséculoXX.

Noentanto,oconteúdo teóricodoargumentodeLeninnãoéclaro.Empartealgumaeleelaboraoconceito de capital financeiro, e amaneira exata em que este transforma as contradições internas docapitalismoemrivalidadesinterimperialistaspermaneceobscura.Eleesboçaalgumasdesuasideias,demaneira um tanto eclética, a partir das estruturas de pensamento muito discrepantes propostas porHobson,BukharineHilferding[13].Somenteoúltimoapresentaumafundamentaçãoteóricafirmeparaoconceito de capital financeiro dentro de uma estruturamarxiana.EmboraLenin criticasse duramente alinha política deHilferding, parece aceitar, com apenas uma ressalva, a concepção básica de capitalfinanceiro apresentada porHilferding.A única ressalva diz respeito às concepções “equivocadas” deHilferdingsobreodinheiro[14].Leninnosdeixanoescurocomrelaçãoànaturezadesseequívoco.Vamosverbrevementeatéquepontoumerrofoicrucial.MasprimeiroprecisamosconsideraracontribuiçãodeHilferding.

Hilferding repeteMarx fielmente no formato geral do seu argumento. Ele começa examinando asvárias formas de dinheiro antes de prosseguirmostrando – domesmomodo que fizemos no capítuloanterior–comoeporqueocréditoéessencialparaaperpetuaçãodaacumulaçãodocapital.Deinício,os bancos simplesmente mediam os fluxos de dinheiro, mas o progresso da acumulação colocaquantidadescadavezmaioresdecapitalmonetárionasmãosdosbancos,queentãonãotêmoutraescolhasenão“aplicarumapartesemprecrescentedeseuscapitaisnaindústria”eintegrarsuasatividadescomaquelasdocapitalindustrial.Comoosindustriaisextraemvantagenscompetitivas(particularmentecomrespeitoàescaladeoperação)doacessoaocapitalbancário,elesdevemcadavezmaisbuscarfontesexternasdecapitaldeempréstimo.Ocapitalfinanceiro,dizHilferding(comaaprovaçãodeLenin),

significaaunificaçãodocapital.Asesferasanteriormenteseparadasdocapitalindustrial,comercialebancárioestãoagorajuntassobocomandodasaltasfinanças,emqueoscapitãesdaindústriaeosbancosestãounidosemumauniãoíntimaepessoal.Essaassociaçãotem como sua base a abolição da competição livre dos capitalistas individuais por parte das grandes associações monopolistas. IssonaturalmentetemcomoconsequênciaumamudançanorelacionamentodaclassecapitalistacomopoderdoEstado.[15]

Hilferding se estende bastante, mais uma vez com a aprovação de Lenin, nas manifestaçõesinstitucionaisdessaunidade–acriaçãodemonopólios, trustes,cartéis,operaçõesnabolsadevalores

Page 275: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

etc.Eleapontaqueaespeculaçãoemtítulosdepropriedade–formasfictíciasdecapital–desempenhanecessariamente um papel crucial. A ascensão de uma oligarquia financeira muda de importantesmaneirasasdimensõesdalutadeclasses.HilferdingassumequeoEstadosetornaumagentedocapitalfinanceiroequeocapitalfinanceirooperacomocapitalnacionalnocenáriomundial.Eentãodesenvolveumainterpretaçãoparticulardoimperialismoedesuascontradições.Oencadeamentodaargumentaçãoéapresentadoaseguir.

Aascensãodocapitalfinanceiro(emsiumpassonecessárioparaperpetuarocapitalismo)requerainterferênciadoEstado,exatamentecomoMarximaginou.Aspolíticasestatais,forjadasemrespostaàsexigências do capital financeiro, fazem da exportação do capital, mais que das mercadorias, umapreocupação fundamental. As relações entre os Estados (competição, proteção, dominação edependência) transformam as contradições internas do capitalismo emumdesenvolvimento desigual einfestado de conflitos no cenário mundial. As contradições são agora expressas em termos de umdesequilíbriodeforçasentreossetoresmonopolistasenãomonopolistas,entreaoligarquiafinanceirae“o resto”, assim como entre os Estados-nação. Elas se originam nos processos básicos dodesenvolvimentocapitalista.

AquiHilferding[16]apelaparaumaversãoparticulardateoriadacrisedeMarx.Eledeclaraqueasvariações na composição de valor do capital distorcem as sinalizações dos preços e geramdesequilíbriosentreossetores (produzindomeiosdeproduçãoebenssalariais),entreaproduçãoeoconsumo,entreocapital fixoeocapitalcirculanteetc.Oscartéiseosmonopóliospodemcontrolaroritmo damudança tecnológica e também os preços,mas isso simplesmente exacerba as distorções depreço entre os setores monopolistas e os não monopolistas – “as desarticulações na regulação dospreços,queporfimconduzemadesproporcionalidadesecontradiçõesentreascondiçõesdeproduçãoerealizaçãodemais-valor,nãosãomodificadaspeloscartéis,masapenastornadasmaisagudas”[17].Emresumo,oscartéisnãoconseguemabolirascrises.Osistemadecrédito,emborasobototaldomíniodeumaoligarquiafinanceira,tambémfalhaporqueataxadejurosdeve,naanálisefinal,serexplicadapeladinâmicadaproduçãodemais-valor,emvezdeocontrário.Qualquertentativademoldarosdinheiroscreditícios para estabilizar esse sistema inerentemente instável acabarão resultando em uma crisefinanceira.Hilferdingentãoinvoca,semoutraexplicação,aconcepçãodeMarxdeque,nodecorrerdeumacrise,osistemanecessariamenteretornaàsua“basemonetária”,abandonandoosnumerososcapitaisfictíciosadquiridosdurantea fasedeprosperidade[18].Oprotecionismo,o imperialismoeas relaçõesentre os Estados, assim como entre os setores monopolistas e não monopolistas, são tratados comoexpressões particulares, modificadas pelo caráter oligárquico do capital financeiro, das tendênciasbásicasparaaformaçãodecrise.

Lenin difere de Hilferding em dois aspectos. Em primeiro lugar, embora ele pareça aceitar aidentificaçãodocapitalfinanceirocomocapitalnacionalnocasodasprincipaispotênciasimperialistas,comfrequênciasedesviaparaumaconcepçãosupranacionaldocapitalfinanceiro–posiçãosemelhanteàqueladeHobson–quandosetratadeanalisaracondiçãogeraldocapitalismomundial.AformulaçãodeLeniné,nesseaspecto,maisambíguaqueadeHilferding[19].Emsegundolugar,eleserefereaoerrodeHilferdingcomrespeitoàteoriadodinheiro.Leninnãonosesclarecenadacomrelaçãoànaturezaouàs implicaçõesdesseerro.DeBrunhoff recentementeconfrontoudiretamenteessaquestão.Elaémuitoimportanteejustificaumadiscussão.

DeBrunhoffdeclara[20]queHilferdingacompanhaMarxapenasnoformato.Suaconcepçãodocapitalfinanceirocomoumaunidadedecapitalbancárioeindustrialoconduzaconstruiruma“teoriafinanceira

Page 276: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

do fenômeno monetário” onde Marx construiu uma “teoria monetária das finanças”. A diferença éimportante.Marx construiu sua teoria do dinheiro a partir de uma análise da produção e da troca demercadorias,semreferênciaàcirculaçãodocapital.Assim,eleprimeiroidentificouacontradiçãoentreodinheirocomoumamedidadevaloreodinheirocomoummeiodecirculaçãoparalançarabaseparaoentendimento de como essa contradição aumenta quando o dinheiro circula como capital. Essacontradição desaparece quase inteiramente da obra de Hilferding. Os fenômenos monetários sãoreduzidosa“merosórgãosdofinanciamentocapitalista”,sobocontroleabsolutodocapitalfinanceiro.Hilferdingdescreveocapitalfinanceirocomohegemônicoecontrolador,enquantoMarxoretratacomonecessariamente capturado em sua própria rede de contradições internas. Para Marx, a contradiçãofundamental está entre o que ele chamou de sistema financeiro (crédito) e sua base monetária.HilferdingcitaaopiniãodeMarxdequeumretornoàbasemonetáriaéessencialduranteascrises,masdeixadeexplicarporqueecomo.Esteéotópicoquevamosabordaragora.

III.ACONTRADIÇÃOENTREOSISTEMAFINANCEIROESUABASEMONETÁRIAMarx frequentemente afirma que, no decorrer de uma crise, o capitalismo é obrigado a abandonar asficções das finanças e recorrer ao mundo do dinheiro vivo, às eternas verdades da base monetária.Brincando, ele caracteriza o sistema monetário como “uma instituição essencialmente católica e osistema de crédito como essencialmente protestante”, porque este último é impulsionado pela fé no“valordodinheirocomooespíritoimanentedasmercadorias,fénomododeproduçãoeemsuaordempredestinada, fé nos agentes individuais da produção como meras personificações do capitalautoexpandido”. Mas prossegue declarando que “o sistema de crédito não se emancipa da base dosistemamonetáriomaisdoqueoprotestantismoseemancipoudasbasesdocatolicismo”[21].Emboraocrédito frequentemente “sobrepuje o dinheiro e usurpe o seu lugar”, o banco central sempre continuasendo “o eixo do sistemade crédito” e “a reserva demetal, por sua vez, é o eixo do banco”[22]. Emoutraspalavras,“odinheiro–naformademetalprecioso–continuasendoabasedaqualosistemadecrédito,porsuanatureza,jamaispodesedesligar”[23].

ÉvitalentenderoqueMarxquerdizercomtudoisso.Àprimeiravistasuasideiasparecemumtantodatadas,porqueeleapelaexplicitamenteparaosmetaispreciososcomoo“eixo”dosistemamonetário–umaconcepçãopeculiardoséculoXIX.MasseinvestigarmosalógicadoargumentodeMarxpoderemosidentificarumprincípiomuitoimportantequeseaplicaaocapitalismoemgeral.

Ainevitabilidadedacontradiçãoentreosistemafinanceiroesuabasemonetáriapodeserremontadadiretamente às funções duais do dinheiro como umamedida de valor e como ummeio de circulação.Quandoodinheirofuncionacomoumamedidadevalor,eledeverealmenterepresentarosvaloresqueajudaacircular.Odinheiroaqui“naverdadenãoénadaalémdeumaexpressãoparticulardocarátersocialdotrabalhoedeseusprodutos”–umamedidaexternaesocialmenteaceitadovalorincorporadonasmercadorias.Arazãoparaconfinaressamedidaaummetalespecífico–comooouro–égarantirqueocritério,quandoeleassumeaformamaterial,sejatãoprecisoeclaroquantopossível.Éevidentequeacontradiçãoaofazerissoéqueoprodutodeumprocessodetrabalhoconcretoeespecífico–oouro,porexemplo – é tratado como a representação material do trabalho abstrato. Por outro lado, quando odinheirofuncionacomoummeiodecirculação,eledevesedivorciarda“real”representaçãodovalore

Page 277: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

permitirqueospreçosdomercadosedesviemdosvaloresesecomprovemcomoolubrificanteflexíveldeumprocessode trocaqueé imprevisíveleestáeternamentesemodificando.Ospapéis-moedaeosdinheiroscreditíciospodemoperardemaneirairrestritaecriativanesseaspecto.

Na produção e na troca damercadoria simples, esses dois aspectos do dinheiro existem em umarelaçãodesconfortáveleantagônicaemrelaçãoumaooutro.Naverdade,acirculaçãodocapital,comovimosnocapítulo1,surgeemparteparapreencheralacunaentreovalor“inerente”doouroeovalor“refletido”dodinheiromedidoemcontraposiçãoaovalordasmercadoriasqueessedinheirocircula.

Entretanto, um estudo dos processos da circulação do capital indica que o capitalismo, parasobreviver,devedesenvolverumsistemadecrédito sofisticadoecriar formas fictíciasdecapital.Osaspectos“fictícios”dodinheiro–“dinheiros”creditíciosedepapel–são levadosaextremos,eseusvínculoscomasrealidadesdotrabalhosocialtornam-seaindamaisfrágeis.Seotrabalhosocialestiverfirmementerepresentadopelamercadoriamonetária(ouro),entãopodemosdizerqueaseparaçãoentreodinheiroemseuúltimosentidoeasfinançaséexacerbadapelacirculaçãodocapital.ÉissoqueMarxquer dizer com o conceito de uma contradição entre o sistema financeiro e sua base monetária.Exploremosumpoucomaisexplicitamenteanaturezadessacontradição.

Considere-se, por exemplo, o que acontece quando o dinheiro creditício e as “formas fictícias devalor”usurpamolugardamercadoriamonetária.Seoritmodacriaçãodecréditoacompanharoritmodotrabalhosocialmentenecessáriorealizadonasociedade,entãoosefeitosdocréditosãomaisbenéficosdoqueprejudiciais com respeito à circulaçãodo capital.Mashá poucopara evitar que a criaçãodocrédito fique inteiramente fora de controle, embora, por outro lado, o problema da superacumulaçãoestejaeternamenteespreitandonosbastidores.Seosvaloresfictíciospassaremanãoserapoiadospelosprodutosdotrabalhosocialouse,porqualquerrazão,afénosistemadecréditoficarabalada,entãoocapital precisa encontrar algumamaneira de restabelecer sua base nomundo do trabalho socialmentenecessário. Há duas maneiras pelas quais ele pode fazer isso: vincular firmemente todas as suasoperaçõesàmercadoriamonetária(ouro)comoamedidadevalorfundamentalouprocuraroutramaneiradeestabelecerumvínculodiretocomosprocessosmateriaisdaproduçãorealdemercadoria.Asduassoluçõestêmfalhas.

Noprimeirocaso,todososvaloresdevemserconvertidosemmercadoriamonetáriacomoumtestedovalorquerepresentam.EstaeraasituaçãogeralcomaqualMarxestavafamiliarizado–“assimqueocrédito ficaabalado […] todaa riqueza realdeve ser realmente transformadaemdinheiro, emouroeprata–umademandaloucaque,noentanto,necessariamenteégeradapeloprópriosistema”.Arepentinaonda de demanda por liquidez e convertibilidade para ouro excede em muito o ouro e a pratadisponíveis,que“equivalemaapenasalgunsmilhõesnoscofresdobanco”[24].Resultado:

É um princípio básico da produção capitalista que o dinheiro, como uma forma independente de valor, se situa em oposição àsmercadorias.[…]Emépocasdeaperto,quandoocréditosecontraioucessatotalmente,odinheiroderepentesedestacacomooúnicomeiodepagamentoerealexistênciadevaloremoposiçãoabsolutaatodasasoutrasmercadorias.[…]Porisso,ovalordasmercadoriasésacrificadocomopropósitodesalvaguardaraexistênciafantásticaeindependentedessevaloremdinheiro.[…]Porpoucosmilhõesemdinheiro,muitosmilhõesemmercadoriasdevem,portanto, ser sacrificados. Issoé inevitávelnaproduçãocapitalista e constituiumadesuasbelezas.[25]

No entanto, tudo isso pressupõe que os papéis-moeda são irrestritamente conversíveis emmetaispreciosos.Marxnãoconsiderouocasodeospapéis-moedanãoconversíveisseremapoiadospelopoderdoEstado.Em taiscircunstâncias–que se tornarama regranoséculoXX–ascoisasparecemmuito

Page 278: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

diferentes.Temosdedeterminarseestamoslidandocomdiferençasfundamentaisousimplesmentecomumamudançanaformadaaparênciadoconflitoentreossistemasfinanceiroemonetário.Podemosnosaproximarpassoapassodeumarespostaparaessaquestão.

Emcondiçõesdenãoconvertibilidadeparaoouro,oônusdedisciplinaro sistemadecréditoeocapital fictício recaisobreobancocentral.Elevandoa taxade juros,obancocentralpode“apertarocinto, como se diz na gíria”, aumentar o custo da conversão de dinheiros creditícios em dinheiro dobanco central e, assim, esfriar as febres especulativas e manter em cheque a criação de capitalfictício[26].Pormeiodeumcontrolecriteriosoedemanipulaçãoda taxade jurosedasexigênciasdereserva,umaautoridademonetáriapoderosapodeesperarevitaradesvalorizaçãodasmercadoriaseaomesmotempopreservaraqualidadedoseuprópriodinheirocomoumreflexo“verdadeiro”dovalordotrabalhosocial.Issoimplicaqueaofertadedinheirodobancocentraldevecorresponderaocrescimentonaprodutividadedovalornaeconomiacomoumtodo.Essaposturapolíticaporpartedeumaautoridademonetáriacentraltornou-searegradesdeadécadade1930,quandoadefesacegadodinheirocomoumamedidadevalorenvolveuumadesvalorizaçãotãomaciçadasmercadoriasqueaprópriasobrevivênciadocapitalismofoipostaemrisco.

Marxdiriaquetalposturapolíticasebaseiaemumailusão.Emprimeirolugar,obancocentralnãopode se isolar totalmente do comércio mundial e cortar seus vínculos com algum tipo de sistemamonetário internacional: sua autonomia é limitada por sua posição na política cambial. O dinheironacionalpode terminar sendodesvalorizado em relação aoutrasmoedasnacionais seobanco centraldesprezar ativamente as regras do sistema monetário internacional. E no âmbito internacional, nahierarquiadosdinheiros,a“ideiadodinheirocomoumamedidadevalor se recusaamorrer” (verp.334).Arelaçãoentreasmoedasnacionaiseinternacionaislimitaopoderdequalquerbancocentral.Senãohouverumadefiniçãoclaradodinheiromundial– como temsidoocasodesde1973–oprópriosistemamonetáriointernacionalentraemcrise.

A segunda objeção de Marx é que, mesmo na ausência de quaisquer restrições monetáriasinternacionais,opoderdobancocentral,sendoestritamentecircunscrito,é totalmenteinsuficienteparaprotegercontraaformaçãodecrise.Nósjádeclaramos(capítulo7)queháumatendênciacrônicaparaproduzirexcedentesdecapital–estadosdesuperacumulação.Agoratemosdeconsideraracircunstânciaadicionaldequeoscapitais fictíciosdevemnecessariamente ser criadosantesdaacumulação real,oque significa que “a acumulação de capitalmonetário deve sempre refletir umamaior acumulação decapitaldoquenaverdadeexiste”[27].Issonãoédemaneiraalgumaproblemáticotodootempoemqueareal expansão dos valores das mercadorias acompanha a criação anterior de capital fictício. Porém,assim que a superacumulação se torna evidente, a realização dos valores fictícios, e também a dosvalores na formademercadorias, fica ameaçada.Nesseponto, a demandapor dinheiro é estritamenteumademandaporliquidez.Umretornoàbasemonetárianessemomentocertamentedestruiráoscapitaisfictíciosedesvalorizaráasmercadorias.AúnicadefesafactívelporpartedeumbancocentralcontratalcondiçãoéimprimirdinheirogarantidopeloEstadoparacomprarosexcedenteserealizarosvaloresdoscapitais fictícios.Marxdescartaexplicitamente tal solução[28] porquepressupõeumsistemamonetáriogarantido pelo ouro – as reservas limitadas de ouro impedem o banco central de intervir e comprar“todasasmercadoriasdepreciadasaosseusantigosvaloresnominais”.

Masseodinheironacionalnãoforconversívelemouro,entãoumbancocentralpoderianaverdadeimprimirdinheiroparasedefenderdasuperacumulaçãoedadesvalorização.Entretanto,assimfazendoeledesvalorizaseuprópriodinheiro.Emsuma,atendênciaparaasuperacumulaçãoéconvertidaemuma

Page 279: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

tendência para a inflação desenfreada. Marx não considerou tal possibilidade nem examinou suasimplicações. Mas sua falha em fazê-lo não prejudica de maneira alguma a estrutura geral do seuargumento.Defenderovalornominaldasmercadoriasqueincorporamumtempodetrabalhosocialmentedesnecessárioé tão irracionalquantodefenderodinheirocomoumapuramedidadevalormedianteaadesão cega a um padrão ouro. É tão difícil conviver com a inflação desenfreada quanto com adesvalorizaçãodasmercadorias.

Entretanto,oqueateoriadeMarxnosdizéqueacontradiçãoentreosistemafinanceiroesuabasemonetária se reduz fundamentalmente a uma contradição entre “o capital em sua formamonetária e ocapitalemsuaformademercadoria”[29].Emcondiçõesdesuperacumulação,aclassecapitalistapareceterumaescolhaentredesvalorizarodinheiroouasmercadorias,entreainflaçãoouadepressão.Nocasode a políticamonetária estar dedicada a evitar ambos, ela simplesmente acaba incorrendo em ambas(comoilustraasituaçãoatualdocapitalismo).

O poder do capital financeiro é evidentemente muito limitado. Por exemplo, Marx declarouexplicitamente que “nenhum tipo de legislação bancária consegue eliminar uma crise”, embora “umalegislação bancária errônea […] possa intensificá-la”[30]. Essa conclusão se aplica a toda série depolíticas monetárias possíveis. “Enquanto o caráter social do trabalho aparecer como a existênciamonetáriadasmercadoriase,portanto,comoumacoisaexternaàproduçãoreal,ascrisesfinanceiras–independentesdascrisesreaisoucomoumaintensificaçãodelas–serãoinevitáveis.”[31]

Ascontradiçõesentreo sistema financeiroe suabasemonetáriaaumentame se tornamaindamaisterríveis àmedida que o capitalismo avança. Estas são as contradições queHilferding deixa escapartotalmentedevidoàsua interpretaçãoequivocadada teoriadodinheirodeMarx.Oerroéoneroso.E,emboraLeninoreconheça,nãoocorrige,preferindousaradefiniçãodeHilferdingdecapitalfinanceirocomo um veículo para mostrar como as contradições internas do capitalismo são projetadas para ocenáriomundial.

Entretanto,enterradadentrodessestorturadoscapítulossobrebancosefinançasnoterceirolivrodeO capital está uma interpretação poderosa das contradições internas da forma financeira do própriocapitalismo.Quando conectados com a teoria básica do dinheiro apresentada no primeiro livro deOcapital,podemoscomeçaracompreendercomoaacumulaçãopelaacumulaçãoeacirculaçãodocapitalfragmentamasfunçõesdodinheirocomoummeiodecirculaçãoeumamedidadevalor,eerigemnessabaseumarelaçãoprofundamenteantagônicaentreomundododinheirocomoumamedidadovalordotrabalhosocialeomundointrincadoecomplexodasoperaçõesfinanceirasbaseadasnocrédito.Marxnão analisou completamente todas as possíveis dimensões desse antagonismo – a potencialidade paradesvalorizaçãopormeiodainflaçãoouamaneiraemqueoantagonismopodeserexpresso,porexemplo,comorivalidadesinterimperialistasecompetiçãointernacional.Seus insights,porém,aindatêmdeserapreciadospeloquesão,eateoriamarxianaseestendeusobreessabase.

IV.ATAXADEJUROSEAACUMULAÇÃOAtaxadejurossobreodinheirodealtaqualidade(bancocentral)desempenhaumpapelfundamentalnaregulaçãodasrelaçõesentreosistemafinanceiroesuabasemonetária.Issoressuscitaaquestão:oquedeterminaataxadejurosemgeral?Arespostaaquesechegounocapítulo9foiquesãoasforçasquedeterminam a oferta e a demanda para o capital que rende juros. As forças precisam agora ser

Page 280: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

identificadas.Doladodademanda,emprimeirolugardeveserfeitaumadistinçãoentreademandapordinheiro

comoummeiodepagamentoecomoummeiodecompra.Ambosserelacionamàcirculaçãodocapitalcomoum todo,mas ocupammomentosmuito diferentes desse processo.Ademandapor dinheiro paralançarumaproduçãonovaémuitodiferenteemseusignificadodademandapordinheiropara realizarvaloresjáproduzidos.Estaúltimaéparticularmenteprevalenteemépocasdesuperacumulação,enquantoa primeira é típica de uma situação de competição aumentada pelo mais-valor relativo. As duasdemandasnão são independentes umadaoutra, é claro, e existe entre elas um tipode relacionamentoretardado pelo tempo. Uma demanda por crédito de investimento hoje provavelmente conduzirámaistardeaumademandaporcréditodemarketing.

Os capitalistas não são os únicos agentes econômicos que demandam dinheiro como meio deaquisição ou meio de pagamento. Todas as formas de demandas emanam da circulação das receitas.Tantoostrabalhadoresquantoaburguesiabuscamocréditoaoconsumidoreofinanciamentohipotecário(meiosdeaquisição),e tambémbuscammonetizaralgunsbensquepossuíamantesparaqualquer trocareal(meiosdepagamento).Ademandaagregadapordinheiroquerendejurosvemtantodacirculaçãodocapitalquantodacirculaçãodasreceitas.Masasduasformasdecirculaçãonãosãoindependentesumada outra.Uma expansão do crédito ao consumidor pode desempenhar amesma função (mediada pelomercado),porexemplo,dandocréditoaoscapitalistasparaestoquesdisponíveisdebensnãovendidos.Ocréditoénecessárioparalubrificaracirculaçãodocapitaledasreceitaseparaequilibrararelaçãoentre eles. O capital gera receitas que devem fundamentalmente circular de volta ao capital para osistema ser reproduzido com fluidez. A unidade básica entre a realização mediante a produção e arealizaçãonatrocadeveserpreservada.

Por isso, ademandapordinheironão éoúnicodeterminanteda taxade juros,mas épartedeumpacote de demandas muito mais complexas feitas ao sistema de crédito e à sua base monetária. Asdesagregações são importantes. Elas indicam os diferentes pontos de origem da demanda e também adiversidade de usos para os quais o dinheiro pode ser colocado. Elas destacam a dificuldade de seestimar a alocação “correta” (do ponto de vista da acumulação) do dinheiro que rende juros para asvárias atividadesdeprodução, circulação, troca, possede terras arrendáveis, administração, consumoetc.Elasindicamapossibilidade–masapenasapossibilidades–defracassosemanandodelacunasnoprocesso total de circulação do capital. Elas demonstram mais concretamente como a “altura dadistorção” e todas as maneiras de “formas insanas” podem surgir dentro do sistema de crédito paradestruirodelicadoequilíbrioquedevesempreprevalecerentreaproduçãoea realizaçãomedianteatroca.Acimadetudo,elasnossensibilizamparaofatodequeumademandaporcréditopodesignificardiferentessituaçõesdentrodadinâmicadaacumulação,variandootempotododasuperacumulaçãoparabloqueiosinconvenientesnacirculaçãodasreceitas.

Aofertadedinheiroquerendejurosestásujeitaadeterminaçõesigualmentecomplexas.Essaoferta,segundo Marx, é em parte o produto da acumulação, em parte o resultado de “circunstâncias queacompanham [a acumulação], mas são muito diferentes dela”, e em parte o resultado de eventosaparentementebastanteindependentes[32]:(1) Parte do mais-valor produzido por meio da acumulação pode ser mantida como excedentes de

dinheiropelosindustriais,comerciantes,financistas,proprietáriosdeterrasarrendáveiseoEstado,enquantoostrabalhadorestambémpodempouparcapitalvariável.Emvezdedeixaressesexcedentesociosos, os agentes econômicos podem se esforçar para lançá-los na circulação como capital que

Page 281: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

rendejuros.(2)Asuperacumulaçãoproduzexcedentesdedinheiroocioso(eporissoumataxadejurosbaixa)devido

àfaltadeoportunidadeparaempregarodinheirocomocapitalemgeral.(3) A capacidade do sistema bancário para mobilizar dinheiro através da variedade de técnicas já

descritasnocapítulo9podeestimularumaacumulaçãodecapitaldeempréstimo“independentementedaacumulaçãoreal”[33].

(4)Asdívidaseocapitalfictíciopodemcomeçaracircularcomocapitaldeempréstimonamedidaemque todos confiem na saúde da economia – estados psicológicos de expectativa são, aomenos nocurtoprazo,importantesparaesseprocessoqueconvertedívidasprivadamentecontraídasnaformasocialdodinheiro.

(5) Arranjos distribucionais e o poder relativo das facções envolvidas também podem ter um efeitodramáticosobreaquantidadededinheiroacumuladoemumaformaprontaparaousocomodinheiroque rende juros: os proprietários de terras arrendadas podem pressionar o campesinato; o Estadopode se apropriarde todas as classesmediante a cobrançade impostos;umaoligarquia financeirafortepodeusaroseupoderparareunirvastosrecursosmonetáriossoboseucomando;eassimpordiante.

(6) Uma flutuação não usual na oferta de dinheiro (expansão ou contração do fluxo de ouro ou deimpressãodedinheirosdoEstado)pode,emcurtoprazo,aumentaroudiminuiraquantidadetotaldedinheirodisponívelparaaconversãoemdinheiroquerendejurosatéqueosefeitossejamabsorvidospelosajustesdepreço.

Aheterogeneidadeconfusadasforçasqueafetamaofertaeademandapordinheiroquerendejurosgaranteumaconsiderávelinstabilidadenataxadejuros.Asflutuaçõesdecurtoprazonãoprecisamnospreocupar–comoopreçodequalquermercadoria,a taxade jurososciladiariamenteàmedidaqueaofertaeademandaseequilibramnomercado.Oqueimportaéataxadejurosbásicanolongoprazo.Ehá dois mecanismos possíveis, que podem dar alguma aparência de ordem e coerência às forças docontrárioconfusasqueafetamaofertaeademanda.

Considere-se, emprimeiro lugar, a possibilidade de que a taxa de juros seja dominada pela “lutaentrecapitalistasendinheiradosecapitalistasindustriais”sobreadivisãodomais-valoreo“preço”docapitalantesqueele“entrenoprocessodeprodução”[34].Sinaisdessalutasãorecorrentesnasociedadecapitalista.Marxnãonegademodoalgumsuaimportância:aquestãoéestabelecerexatamenteoqueissosignifica. Será que a taxa de juros básica é fundamentalmente um reflexo da relação de poder entreindustriaisefinancistas?Suporissoseriarelegartodasasoutrasfacetasdadeterminaçãodataxadejuros(emtornodacirculaçãodasreceitas,porexemplo)aumpapelperiféricoemeramentesecundário.Marx,emgeral,nãoeraavessoacolocarasrelaçõesdiretasdaproduçãonalinhadefrentedosnegócios.Vouargumentar,noentanto,queaguerradeguerrilhaconstanteentreindustriaisefinancistasdesempenhaumtipodepapel similar aoda luta entreo capital e o trabalho sobre a taxa salarial (ver capítulo2): naanálisefinal,issoéapenasumapartedetodoumcomplexodeprocessossociaisquedevemservirparamanterataxadejurospróximaaumaposiçãodeequilíbriodefinidaemrelaçãoàacumulaçãosustentada.Umdesequilíbrionarelaçãodepoderentreaindústriaeasfinançasobrigarásairdoequilíbrioe,dessemodo, ameaçará a acumulação. Daí se conclui que a sobrevivência do capitalismo depende de seconseguiralgumtipodeequilíbriodepoderapropriadoentreosinteressesindustriaisefinanceiros.Estaéumaconclusãoimportante,porquesugerequeopoderdocapitalfinanceiro(contantoqueesseblocode

Page 282: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

poder seja institucionalizado e definido) é necessariamente um poder limitado, e jamais poderá serilimitadooutotalmentehegemônico.

Issoaindanosdeixanoescuroemrelaçãoaoquedeterminaataxadejurosbásica.Aúnicaopçãoéconceberumataxadejurosequilibradaemrelaçãoàacumulação.Esseequilíbriopodeserdefinido,porum lado, em termos da relação entre a circulação do dinheiro que rende juros e, por outro, pelasatividadesdeproduçãoeconsumo(realização).Issooperanopontoemqueacirculaçãodasreceitasedo capital necessariamente se cruzam. Justamente porque o sistema de crédito é um coordenadorcentralizado,ataxadejurostemdesemoverdemaneiraqueajudeamantertantoaproduçãoquantoarealizaçãodomais-valoremumabasesustentada.

Então, por que nos incomodarmos com uma enumeração tão elaborada das forças que afetam ademandaeaofertadedinheiroquerendejuros?Arespostaébastantesimples.Asatividadesmateriaisqueestruturamademandaeaoferta–eque,portanto,determinamataxadejurosreal–,sãotãodiversasqueataxadejurosequilibradasóseráatingidaporacaso.Opotencialparaodesequilíbrioestásemprepresente. E se examinarmos as forças que regulam a oferta e a demanda de dinheiro que rende jurospoderemos ver como a lógica interna do capitalismo é perturbadora do equilíbrio na taxa de juros e,assim, distancia a economia do crescimento equilibrado e estável, conduzindo-a para o caminho daformaçãodecrise.Esteé,acredito,opontoparaoqualMarxqueriachamarnossaatenção.Parailustraressa ideia, vou tentar reconstruir sua representação do ciclo da acumulação e mostrar como osmovimentosdataxadejurosdesempenhamumpapelfundamentalnaconversãodadinâmicacontraditóriadaacumulaçãoemformasespecíficasdecrisesmonetáriasefinanceiras.

V.OCICLODAACUMULAÇÃODiz-se com frequência que Marx não tinha uma teoria do ciclo dos negócios[35], o que é apenasparcialmenteverdadeiro.Eleinvestigouosimpulsoscíclicosnarelaçãoentreaacumulação,aformaçãodo exército industrial de reserva e a taxa salarial; lançou as bases para a análise das oscilaçõesexplosivasnoprodutoenastrocasentreosváriossetoresdaprodução;econstruiuummodelosintéticodoritmotemporalgeraldasuperacumulaçãoedadesvalorização(vercapítulos6e7).Seusestudosdacirculação do capital fixo (capítulo 8) também revelam ciclos de inovação, expansão, renovação edesvalorização.Oproblemaéfundiressesinsightsparciaisemumarepresentaçãounificadadadinâmicatemporal. Do contrário, parece que o capitalismo está cercado de impulsos cíclicos potencialmentedivergentesquetransitampelaeconomiademaneiraconfusa.

Asflutuaçõesdataxadejurosestãonocernedosmovimentoscíclicoseimpõemalgumaaparênciadeordemaestesúltimos.Marxnegaqueelessejamumprimumagens.Elessãoumvínculodemediaçãocentral pormeio do qual as contradições internas do capitalismo são expressas. Sua investigaçãodasforçasquedeterminamataxadejurosestabeleceexatamenteesseponto.Mastambémtemosvistocomoataxadejurospodeserafetadaportodosostiposdeaspectosarbitráriosecaprichosos.Poressarazão,Marxtentaseabstrairdadinâmicacotidianadocicloindustrialedeseusacompanhamentosmonetáriosefinanceiros[36], passandoa construiruma representaçãoextremamente simplificadadocursocíclicodaacumulaçãoemgeral.Suaintençãoécaptarasinteraçõesentreaacumulação,amudançatecnológica,aformaçãodecapitalfixo,oempregoeodesemprego,comastaxassalariais,ademandadoconsumidor,aformação de capital fictício, a onda de dinheiros creditícios e o retorno à basemonetária durante ascrisesdesuperacumulaçãoedesvalorização.ArepresentaçãodeMarxpodeserreconstruídaapartirde

Page 283: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

umaleituraatentadoterceirolivrodeOcapital (capítulos26a35).Oprocessodeacumulaçãopassaporváriasfasesdeestagnação,recuperação,expansãobaseadanocrédito,febreespeculativaecrash.

1.Estagnação

Afasedeestagnaçãonaesteiradeumcrashécaracterizadaporumareduçãoseveradaproduçãoebaixastaxasdelucro.Ospreçossãoderrubadosquandoosprodutoresdispõemdeestoquesexcedentesinferiores aos seus preços de produção. O desemprego se espalha e os salários são tipicamentereajustadosparabaixo.Ademandaefetivaéfracadevidoàsrendasdisponíveisdiminuídas(ossaláriosetambém as receitas da burguesia). A demanda por dinheiro como um meio de circulação declina (ovolume das trocas demercadorias é diminuído).A fé no sistema de crédito foi severamente abalada,enquanto a demanda por capital de empréstimo é reduzida devido às expectativas pessimistas comrelaçãoàs receitas futuras.Odinheiroéusadoprincipalmenteparamedirvalorese removerocapitalfictícioirrelevantedaeconomia.Otempoderotaçãorealdasmercadoriasédrasticamentereduzido,poisocréditonãoestádisponívelpara estendê-lo.Entretanto, a taxade juros ébaixa; apletorade capitalmonetário financiável produzido pela superacumulação está agora em evidência. Esse excedente decapital monetário está relacionado às oportunidades de empregar esse dinheiro de maneira segura esólida.

Afasedeestagnaçãoétipicamenteumafasedeajustetecnológico“tranquilo”(nosentidomarxianoamplo, que inclui a mudança organizacional e institucional), em oposição ao abalo violento queacompanha as crises. Os ajustes gradualmente colocam as tecnologias da produção e o preço dasproporçõesdaproduçãoalinhadascomaquelesconsistentescomaacumulaçãoequilibrada.Ocenárioestáentãomontadoparaumasubsequenteexpansão.

2.Recuperação

Váriasoportunidadessurgemduranteafasedeestagnação.Ossalárioseastaxasdejurosemquedadeixamumaparcelamaiordomais-valorparao lucrodaempresa,oquepodecompensaremparteospreços mais baixos. O capital desvalorizado (mercadorias, capital fixo, construções etc.) pode sercompradobarato,reduzindoassimosgastoscomcapitalconstanteebaixandoacomposiçãodevalordocapital. Os produtores que resistiram à tempestade são em geral abençoados com uma posição deliquidez forte – eles conseguem pagar suas contas com dinheiro vivo. As taxas de juros baixas e osexcedentesdaforçadetrabalhotornamascondiçõesideaisparaofinanciamentodaformaçãodecapitalfixoemlongoprazo.

A expansãomodesta tem início quando amaior parte dos estoques excedentes foi liquidada. Issopermitequeospreçossubame,comossaláriospermanecendobaixos,amaiorparceladomais-valorvaiparaolucrodaempresaagoraconsolidada.Ataxadelucrosreviveeestimulaoretornodaconfiançanosnegócios. Uma expansão cautelosa da produção pode ser iniciada tendo por base a forte posição deliquidezdasempresasquesobreviveram–elasusamseusprópriosrecursosparafinanciaraexpansão.

Ataxadejurosbaixapode,comarecuperaçãodealgumafénosistema,conduziraofinanciamentodecertos investimentos de capital fixo em longo prazo (talvez através da ação do Estado). Umaconcentraçãonesse tipode investimentoexpandeoempregonosetor1e,devidoao longoperíododeprodução envolvido, cria uma demanda efetiva sem inicialmente “fornecer nenhum elemento deoferta”[37]. Essa demanda efetiva é sentida no setor dos bens de consumo (setor 2).A tendência para

Page 284: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

oscilaçõesexplosivasentreosdoissetoressutilmenteentraemação.O poder econômico dos capitalistas industriais tende a ser forte em relação aos banqueiros e

financistas porque os primeiros têm reservas de dinheiro vivo suficientes para financiar sua própriaexpansãoeparaestenderocréditocomercialumaooutro,afimdegarantiracontinuidadedaproduçãodiantedostemposderotaçãodiscrepantesetc.Ocapitaldeempréstimodosbancosnãoérequeridoparatalpropósito.Aabsorçãodessecapitaldeempréstimomediantequalquer formaçãodecapital fixoemlargaescalaémaisdoquecorrespondidaporumaexpansãogradualnaofertadedinheiroisentodejurospor meio de poupanças aumentadas por todas as classes –, fluxos de dinheiro acrescidos a seremconvertidosemcapitaldeempréstimopelosbancosetc.Porisso,ataxadejuroscontinuabaixa.

A quantidade de capital fictício aumenta,mas, nesse estágio, as novas promoções estão em geralassociadas ao investimento direto nos meios de produção, e o crédito comercial estendido estáintimamenteligadoàsmercadoriasreaisemcirculação.Esseéotipodecriaçãodecapitalfictícioqueéaomesmotemponecessárioenãoproblemático,porqueemgeraléacompanhadoporumasubsequenteexpansãonaacumulação.Porissoelenãoconstituinenhumaameaçaàpreservaçãodeumasólidabasemonetária.

A competição fica relativamente relaxada durante essa fase. O autofinanciamento por parte dasempresasgeraumaconcentraçãogradualeirregular,eamplasvariaçõesnastaxasdelucroreaispodemcoexistir, porque o que conta é o circuito do capital produtivo. O poder do sistema de crédito paraobrigarumaequalizaçãodataxadelucronãoestáemevidêncianessaocasião.

Acirculaçãodasreceitasaumenta,assimcomoademandapordinheirocomoummeiodecirculação.Ademandaefetivaporbensdeconsumo finaisé fortalecidaeo setordosbensdeconsumocomeçaaassumirumpapeldedestaquenadinâmicadaacumulação.

3.Expansãobaseadanocrédito

Afénosistemaeconômicofoiagorarecuperada.Aexpansãodoempregoeoaumentodossaláriosedasreceitasparaaburguesiapressagiamumademandaefetivacrescenteparaosbensdeconsumofinais.Ocrescimentodacirculaçãodasreceitascriaexpectativasotimistascomrespeitoàsreceitasfuturasdetodosostipos(arrendamentosdeterra,impostos,hipotecasetc.,assimcomoolucrodaempresa).

Mas a expansão fragmentada da fase precedente revela agora uma série de desequilíbrios nacapacidadeprodutivaeseusconsequentesobstáculosaosinsumoseprodutosdoaparatoprodutivocomoum todo. Todo vestígio de capacidade produtiva excedente então desaparece, particularmente doselementos de capital constante – matérias-primas, insumos e máquinas parcialmente fabricados. Aatençãosevoltaparaoinvestimentonosetor1quandoospreçosdocapitalconstantesobememrespostaàescassezemsuaoferta.

Aomesmotempo,acapacidadedoscapitalistasindustriaisdefinanciarseusprópriosinvestimentoseestender o crédito uns aos outros fica esgotado quando eles atingem os limites de suas reservas dedinheirovivo.Sãoobrigadosarecorreraosbancose,comoconsequência,aosfinancistasquefortalecemoseupodervis-à-visocapitalindustrial.Osistemadecréditorecebeuorespeitocomoocoordenadorgeraldaproduçãoetrocademercadorias.Ademandaporcapitalmonetárioepormeiodacirculaçãoseexpande.Essademandatrazàtonasuaprópriaoferta,poisafénosistemaéagorasuficientementefortepara permitir que até mesmo a dívida reivindique circular como uma forma de capital monetário. Aquantidadedecapitalfictíciosemoveconsistentementeàfrentedaacumulaçãoreal,ealacunaentreabasemonetária,comoumamedidarealdosvalores,easváriasformasdepapéis-moedasemcirculação

Page 285: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

começaaseampliar.Mas o poder crescente do sistema de crédito em relação à indústria também tende a forçar uma

equalizaçãonataxadelucro(aconexãoentreolucrodaempresaea taxadelucroéatualmentemuitoforte).Acompetiçãoporfundosdeempréstimotorna-semaisagudaeataxadejuroscomeçaasubir.Osindustriaissãopressionadosparaumalutaconcorrencialpelomais-valorrelativoemumaépocaemqueemergeaescassezdetrabalho.Ossaláriostendemasemoveracimadovalordaforçadetrabalho.Sãorequeridosfortesajustestecnológicos.Testemunhamos“umagrandeexpansãodocapitalfixoemtodasasformaseaaberturadenovasempresasemumaescalavastaedelongoalcance”.Issorequeraindamaiscapitaldeempréstimoecolocaaindústriaaindamaisfirmementeaserviçodocapitalmonetário.Masolucro da empresa é apenas uma forma de a receita futura atrair capital de empréstimo: os industriaisdevemcompetirporfundoscomosespeculadoresimobiliários,oscorretoresdeações,osnegociantesdadívidadogovernoetc.“Aquelescavaleiroserrantesdocréditoque trabalhamemumabasedecréditomonetáriosurgempelaprimeiravezemnúmerosconsideráveis”[38].

4.Febreespeculativa

A expansão baseada no crédito só gera aumentos nos preços se a quantidade total de meio decirculaçãosuperarmuitooprodutodotrabalhosocial.Alémdisso,odesempregoquasedesapareceeastaxassalariaiscomeçamasubirvertiginosamente–acondiçãodotrabalho,observaMarx,estásempreemseumáximonasvésperasdeumacrise.Ademandaefetivaporbenssalariaispermaneceforte,masosaltos salários estão agora começando a interferir na acumulação, aomesmo tempoque o aumento nastaxas de juros tambémafeta o lucro da empresa. Presos a um “esmagamento do lucro”, os industriaisprocuramdesesperadamentemaneirasdeinovarsuasaídadasdificuldades.Nissoelessãoauxiliadoseapoiados por um sistema de crédito que nesse momento está estimulando tanto a produção quanto arealização.Masissosópodeserfeitoàcustadacriaçãodevastasquantidadesdecapitalfictício,oudeseabrirespaçopara“aformamaiscolossaldeenvolvimentoemempreendimentosderiscoeburla”.

Sob essa febre especulativa, profundas perturbações do equilíbrio ficam evidentes. Asdesproporcionalidades entre os setores, entre a produção e a distribuição e entre a quantidade dedinheirocreditícioemcirculaçãoeorealprodutodosvaloresestãocrescendo.Acomposiçãodevalordo capital está aumentando rapidamente. A força de trabalho não está aí para permitir a expansãocontinuadadaacumulaçãomedianteaproduçãodemais-valor,aopassoquea taxarealdeexploraçãoestá caindo.Só a acumulaçãode capital fictício podedisfarçar oscrashes. É apenas uma questão detempoantesqueabolhaespeculativaestoure.

5.Ocrash

Oiníciodeumacriseemgeralédesencadeadoporumenormefracassoqueabalaaconfiançanasformasfictíciasdocapital.Opânicoquesesegueimediatamenteconcentraaatençãonaqualidadedosvários dinheiros creditícios. O retorno ao “catolicismo” da base monetária se estabelece com umavingança. Uma escassez crônica de dinheiro do tipo certo – intimamente vinculado à mercadoriamonetária–emergenoexatomomentoemqueprodutoresecomerciantesestãolutandoparacumprirsuasobrigações.Ataxadejurossobea“umpontodeusuraextrema”[39].Acadeiadepagamentosestendidaserompeeacirculaçãodecapitalficamomentaneamentefragmentadaemmilharesdepeçasdesconexas.Àprimeiravistaacrisepareceser“simplesmenteumacrisedecréditoedinheiro”,porqueéapenasuma

Page 286: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

questão da “convertibilidade das letras de câmbio em dinheiro”[40]. A demanda por liquidez aumentarapidamente:

Aindahápouco,oburguês,coma típicaarrogânciapseudoesclarecidadeumaprosperidade inebriante,declaravaodinheirocomoumaloucuravã.Apenasamercadoriaédinheiro.Masagoraseclamapor todapartenomercadomundial:apenasodinheiroémercadoria!Assimcomoocervobramaporáguafresca,tambémsuaalmabramapordinheiro,aúnicariqueza.[41]

Ainterrupçãonacirculaçãodecapitaldemercadoriafazdodinheiro,enquantomedidadevalor,aúnicaformaseguraderiqueza.Abuscadeestabelecerabaserealdosvaloresdestróiocapitalnaformademercadoria:

Assim que ocorre uma paralisação, como resultado de rendimentos adiados, mercados saturados ou preços em queda, umasuperabundânciadecapital industrial torna-sedisponível,masdeumaformaemqueelenãopodedesempenharsuasfunções.Enormesquantidadesdecapitalnaformademercadoria,masinvendáveis.Enormesquantidadesdecapitalfixo,masemgrandeparteociosodevidoàreproduçãoestagnada.[…]Fábricassãofechadas,matérias-primasseacumulam,produtosacabadosinundamomercadonaformademercadorias.[42]

Massasdetrabalhadoresficamdesempregadas,ataxasalarialcaivertiginosamente,eocálculodosrendimentossofreumtranstornocrônicoemreaçãoàsparalisaçõesnacirculaçãodecapital.Ademandaefetivaporbensde consumoafunda eospreçosdespencam. “Por algunsmilhões emdinheiro,muitosmilhõesemmercadoriasdevementãosersacrificados.”

Adesvalorizaçãodocapital–edo trabalhador–prosseguerapidamente.Oscapitalistasprocurampermanecer vivos devorando uns aos outros. O trabalhador também é sacrificado no altar dairracionalidadequeestánabasedocapitalismo.Acrise, comoo racionalizador irracionaldo sistemaeconômico,abreumcaminhoamargonopanoramaeconômicodasociedadecapitalista.

VI.APOLÍTICADAADMINISTRAÇÃODODINHEIROEsse relato “sucinto” do ciclo da acumulação revela uma trama de interações interligadas entre oemprego e a acumulação, entre a mudança tecnológica, a taxa de reinvestimento e o estado dacompetição, entre a produção e a realização nos diferentes setores, entre a circulação do capital e acirculaçãodasreceitas,entreaofertaeademandadedinheiroquerendejuros,entreopoderrelativodoscapitalistasindividuaisedosfinancistas,entreocapitaleotrabalho,entreodinheirocomoummeiodecirculação e uma medida do trabalho social e, finalmente, entre o dinheiro e as mercadorias comoexpressõesdocapital[43].Aintençãoaquiémostrarcomoasváriascontradiçõesdocapitalismoseunemeseconstroemumassobreasoutrasemumasequênciadinâmicaparaproduziraondadaacumulaçãoinicialeoseudesfecho:aselvagemdesvalorizaçãotantodocapitalcomodotrabalho.

Noentanto,ocursohistóricorealdaacumulaçãoéalgomuitomaiscomplicado.Eleéafetado,emumprimeiromomento,portodaumagamadecircunstânciasaparentementeestranhas–guerras,revoluções,perdasdecolheitas,secasetc.Emumsegundomomento,apareceminúmerasnuancesdentrodaestruturadas próprias contradições internas. O grau de organização da classe trabalhadora pode modificarsubstancialmenteosajustesdataxasalarialeoritmoeadireçãodamudançatecnológicanodecorrerdociclo.Aunificaçãodocapital industrialebancáriomodificaarelaçãodepoderentreeles,enquantoacentralização ou descentralização excessiva do capital também comunica distorções especiais ao

Page 287: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

processo de acumulação. Complicações desse tipo tornam cada ciclo singular. Marx evidentementeprocuraabstrairessascaracterísticasconjunturais,enissovamosacompanhá-lo.

Há,contudo,umaquestãoquemerececonsideraçãoespecial:opapeldapolíticamonetáriaefiscalemrelaçãoaociclo.ÉdifícilabordaraquestãosemumaanálisecompletadoEstadocapitalista[44].Masumainvestigaçãosucintadoproblemaaquivainosajudaraentenderporquealgunsaspectosdoaparatoestatal,comoobancocentral,estãonecessariamenteforadocontroledemocrático.Issotambémvainosajudar a entender, embora de uma maneira muito geral, as circunstâncias que permitem que adesvalorizaçãodocapitalsejatransformadanadestruiçãododinheiromedianteainflação.

A maneira mais simples de regular a qualidade do dinheiro na sociedade é vinculá-lo a algumamercadoria monetária universalmente aceita, como o ouro. A desvantagem disso é que o valor dotrabalhosocialestáligadoàcondiçãodotrabalhoconcretonaproduçãodoouro.Seestaúltimamuda,muda também a expressão geral do trabalho social como um preço. Marx não se incomodouexcessivamentecomesseproblema.Eleconsiderouqueasocasionaisoscilaçõesnaofertadeouro(apósa “corrida do ouro” de 1849, por exemplo) administrariam um choque temporário e depois seriamabsorvidasporajustesnopreço[45].

O Estado envolve-se na regulação do dinheiro assim que as moedas, as fichas, as cédulas e osdinheiroscreditíciossãointroduzidoscomomeiosparafazercircularemasmercadorias.OEstadosevêa contragosto atraído para a política da administração do dinheiro e pode até assumir algum tipo depostura mais ativa[46]. No século XVIII, por exemplo, as principais nações engajadas no comérciocapitalista buscaram conscientemente estratégias de desvalorização e reavaliação de suas respectivasmoedas em suas eternas manobras para a obtenção de vantagem comercial e política. Doutrinasmercantilistas refletiramessaspráticas.Aascensãodeumsistemadecréditocompletoeacriaçãodeformas fictícias de capital comapoio legal colocaramoEstado capitalista diante de problemas aindamaiores.

Finalmente,comovimosnocapítulo9,a tarefadegarantirdinheirodealtaqualidadeé transferidaparaalgumtipodebancocentral.Comoobancocentraltempoderparadeterminarascondiçõessobasquais outros dinheiros são conversíveis em seu próprio dinheiro, ele pode, dentro de certos limites,regularataxadejurosdomercado[47].Masnãopodesecomportararbitrariamente.Érestringidoporsuaposiçãocambial,porreservasdeouroeporoutrosvínculoscomalgumtipodedinheirosupranacionalnocenáriomundial.Devemos também invocar a regra deMarx de que “o poder dos banqueiros centraiscomeçaondeterminaaqueledosagiotasprivados”.Issosignificaqueobancocentralsópodereagiràspressõesdomercadomonetárioqueemanamdedentrodocernedosistemadeproduçãoerealizaçãodomais-valor. Não obstante, amaneira como ele reage a essas pressões é importante, pois as decisõestomadas pelo banco central (ou impostas a ele pela legislação) têm um papel muito importante namoderação ou exacerbação das oscilações. Políticas monetárias rigorosas em épocas desuperacumulação podem intensificar a desvalorização.A crise com frequência aparece, num primeiromomento,comoumacrisemonetária,impostaàsociedadeporumbancocentralinflexíveleinsensível.

Quandoobancocentralvincularigidamenteoseudinheiroaumpadrãoouro,ele temmuitopoucoespaçodemanobra.Umareservadeourolimitadaoobrigaaaumentarastaxasdejurosaumpontodeusuraextremaemumaépocaemquetodososcapitalistasbuscamrefúgioemdinheirodealtaqualidade.Quandoaconvertibilidadeparaoouroestápermanentemente(emoposiçãoatemporariamente)suspensa,a quantidade de dinheiro do banco central e a taxa de juros sobre esse dinheiro podem se tornarinstrumentospolíticos.A“arte”dobancocentralestáemutilizaressesinstrumentospolíticosparatentar

Page 288: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

estabilizarocursoinerentementeinstáveldaacumulação.Aomesmotempo,aseparaçãoentredinheiroeouro por parte do banco central dá origem à possibilidade formal de uma inflação sustentada.Agoravamosabordarmaisdetalhadamenteessapossibilidade.

VII.AINFLAÇÃOCOMOUMAFORMADEDESVALORIZAÇÃOAsfaseseasocorrênciasdeinflaçãosãoabundantesnahistóriadocapitalismo.Qualquerinterpretaçãogeraldessefenômenotemdeserincorporadaemumacompletateoriadadeterminaçãodopreço.Eestáclaroqueospreçospodemsubiroucairpordiferentesrazões[48].Senosabstraímosdosvárioschoquesaleatóriosdosquaisqualquersistemaeconômicoéherdeiro–asmáscolheitas,asguerraseseusrumoresetc. –, assim como das eternas oscilações de preço do mercado que acompanham o equilíbrio entredemandaeoferta, podemos identificarvárias forçasqueafetamosmovimentosnospreçosbásicosdaproduçãodediversasmercadorias.

A luta concorrencial para adquirir mais-valor relativo deve aumentar a produtividade física e devalordotrabalhoe,dessemodo,baratearocustodasmercadorias[49].Aexpansãodaproduçãoemterrasmaisférteis,aaberturadenovasfontesdematérias-primas,abuscadeforçadetrabalhomaisbarataemais flexível e a redução nos custos de circulação (particularmente do transporte) se somam a umabateriade forçasque tendeaderrubarospreços.Emoposiçãoaestesdevemsercolocadososcustoselevadosassociadosàexaustãodosrecursosnaturais,àcongestãoeaoutrosobstáculosnoaparatodaprodução,à lutadeclassesporpartedo trabalhador,àmonopolizaçãocrescenteetc.Asoscilaçõesdepreçosão,naanálisefinal,ditadaspeloequilíbriodeforçasincrivelmentedivergenteseespecíficas.

Entretanto, a circunstância que estamos considerando aqui tem uma lógica mais simples[50]. ArepresentaçãodeMarxdociclodaacumulaçãomostraqueospreçosdiminuemnafasedeestagnação,aumentam gradualmente e depois aceleram com rapidez durante a alta. O retorno à base monetáriaduranteocrashobrigaumaquedaagudanospreços.Seforconstruídaumabasemonetáriamaisflexívelque,emvezdeestarvinculadaàmercadoriamonetária,permitaaimpressãodedinheironãoconversívelgarantido pelo Estado, então eventuais quedas nos preços naquela ocasião podem provavelmente sermantidassobcontrole.

Aparentemente, tal política parece ser bastante sensível em comparação com o seu oposto,permitindoqueosvaloresdasmercadoriassejampressionadosparapreservaraintegridadedodinheirodealtaqualidade.MasissoviolaaregradeMarxsegundoaqualarealizaçãodosvaloresnãopodeseralcançadamedianteumsimplesaumentonaofertadedinheiro(vercapítulo3).Issotambémsignificaqueodinheiro deve abandonar o seupapel comoumamedidadovalor do trabalho social.Alémdisso, aideiadequeastendênciasdecrisesgravesdocapitalismo,comoasdescritasnocapítulo7,podemdealgummodo ser contidas por tal política parece um tanto absurda.Omáximoque pode acontecer é aformaassumidapelacrisemudar.Vamosverdequemaneira.

Lembremo-nos, antes de tudo, do que a teoria da superacumulação nos diz. Demasiado capital éproduzidoemrelaçãoàsoportunidadesdeusaressecapitalporqueoscapitalistasindividuais,levadospelacompetiçãoeseesforçandoparamaximizarseuslucrosmedianteaexploraçãodaforçadetrabalho,adotam tecnologias que distanciam a economia de um caminho de acumulação equilibrado. Odesequilíbrioéagravadoporqueospreçosdaprodução,estabelecidospelaequalizaçãonataxadelucro,dão indicadoreserradosemrelaçãoaopotencialparaaproduçãosocialdemais-valor.Alémdisso,o

Page 289: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

desequilíbrio básico tende a ser obscurecido pela criação necessária de capitais fictícios diante daacumulaçãoreal.

Oscapitaisfictícioseocapitalquerendejurosnelesinvestidopodemserdestruídosnodecorrerdeuma crise, enquanto a desvalorização pode atingir o capital em qualquer das situações dentro doprocessodecirculação.

Vamosconsiderar, agora, comoumaexpansãododinheirodobanco central se relaciona com tudoisso.

Do ponto de vista do capitalista individual, o primeiro sinal de superacumulação ocorre com acrescentedificuldadedeseconverteremasmercadoriasouostítulosdepropriedade(capitaisfictícios)emdinheiroaumpreçoquepermitaqueataxadelucromédiosejarealizada.AtransiçãoM-Désempredifícilporqueenvolveomovimentodeumvalordeuso(outítulodepropriedade)concretoeespecíficonaformamaisgeraldepodersocialqueexiste–odinheiro.Essatransiçãopareceserimpedidaporumaausênciadedemandaefetivaou,oquevema significar amesmacoisa,porumaescassezdedinheirodisponível. Os capitalistas individuais e outros agentes financeiros (bancos privados) podem superaressa dificuldade estendendo o crédito.Os capitalistas recebemo dinheiro equivalente àsmercadoriasvendidas(incluindoaíataxadelucromédia).Aquantidadededinheiroscreditíciosdeordeminferiorseexpande rapidamente.Apressão recai então sobreobanco central, para que este expanda a oferta dedinheirodealtaqualidade.Seobancocentral cedea isso, entãopareceque todaa liquidezpode sermantida,aomesmotempoquetodasasbarreirasàrealizaçãodevaloresmedianteatrocasãoremovidas.

Infelizmente,aquestãonãoétãosimples.Odinheiroemitidopelobancocentralpodeserutilizadodevárias maneiras. Ele poderia alimentar a circulação do capital fictício e assim aumentar as febresespeculativas,ouserconvertidoemumademandaefetivapormercadorias(emoposiçãoaostítulosdepropriedade).Keynesinsistiaqueaúltimaeramaisimportanteparaaestabilidadeeconômicadoqueaprimeira e reivindicavapolíticas fiscais específicas (emoposição às puras políticasmonetárias) paracanalizarademandaefetivadetalmodoquepudessecontribuirparaaestabilidade,emvezdeexacerbara tendência para o desequilíbrio. Uma versão simplificada dessa ideia é a seguinte: em termos dedepressão,oEstadopodecriarumademandaefetivapormercadoriasmanejandoumdéficitorçamentárioquepoderiasercobertoporempréstimosdomercadodecapitais.Emboraademandaefetivaaumentadaresolvaoproblemadarealizaçãonaesferadatroca,oaumentonademandaporfundosdeempréstimo,naausênciadequalqueraumentocorrespondentenaoferta,vaiforçarparacimaastaxasdejuros,talvezaoponto da “usura extrema”. Isso causa um impacto desastroso nas operações industriais e comerciais(emboranãoobviamenteno capital bancário) epode forçar aprópriadesvalorizaçãoque aspolíticasestataisestavaminicialmentedestinadasaevitar.Há,então,umafortepressãoparaaumentarodinheirodealtaqualidadeparabaixarastaxasdejuros.Obancocentral,engajando-senessaação,podeajudaraevitaradesvalorizaçãodasmercadorias[51].

Infelizmente,essaestratégiatambémcontribuiaomesmotempoparaarealizaçãodocapitalfictício.Porexemplo, seocorreumaatividadeespeculativaconsiderávelnos títulosde terra, entãoademandaefetiva em expansão por moradia mantém essa especulação muito mais viva, ao mesmo tempo que

Page 290: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

aumenta a demanda por mercadorias como tijolos, madeira etc. Na verdade, o apoio a esse tipo decapital fictício implica que oEstado substitua seu próprio capital fictício (umaumento no estoque dedinheirogarantidopeloEstado)pelamassadecapitalfictíciodepropriedadeprivadaqueflutuaemtornodosistemadecrédito.Seissoéounãoumacoisaboavaidependerinteiramentedeosvaloresfictíciosassimcriadospoderemserrealizadosnasfasessubsequentesdacirculaçãodocapital.

Comanegociaçãobem-sucedida,emboraproblemática,dovínculoM-D,acargaagorasedeslocapara o dinheiro, que sofrerá desvalorização se não voltar a circular dentro da sua duração de tempo“normal”.Hátrêspossíveisusosparaessedinheiro:(1)Odinheiroreinvestidonaproduçãodevetransporadivisão

O crescimento em D aumenta a demanda por força de trabalho e meios de produção e eliminaquaisquerexcedentesnaofertadeambos.Issoforçaospreçosasubirem,oque,nocontextodeumacrise,significaqueoscustosdaproduçãoempartealgumadeclinamtantoquantodocontráriodeclinariam.O“impacto tecnológico” em parte alguma é tão vigoroso quanto normalmente seria, e pode haver aindamaispressãosobreosprodutoresparacontinuaremsegundoumpadrãodeajustemaiscaracterísticodafasede expansãodoqueda retração.Os salários, por exemplo, podemnãodeclinaro suficienteparaestimular o retorno às atividades de trabalho intensivo. É improvável que, nessas condições, acomposiçãodevalordocapitalretorneàsuaposiçãodeequilíbrio.(2)O dinheiro pode ser investido na apropriação, na aquisição de títulos para receitas futuras (terra,

ações e quotas, dívida do governo etc.). Os valores fictícios criados pelo Estado simplesmenteacabamaumentandoaquantidadedecapitalfictíciodepropriedadedeparticularesnaeconomia.Oproblemadarealizaçãodessescapitaisfictíciosmedianteaproduçãoéentãorenovado.

(3)Aburguesiadesviaumapartedodinheiroextraparaseupróprioconsumo.Issoaumentaademandadeprodutosdeluxoque,porsuavez,aumentaademandadeforçadetrabalhoedemeiosdeprodução.

Porisso,odinheiroextraqueoEstadolançaemcirculaçãotem,emalgummomento,desercolocadonaprodução.IssoconfirmaoachadofundamentaldeMarxemsuainvestigaçãodacirculaçãodomais-valor[52]:arealizaçãonaesferadatrocaé,nofim,contingentedemaisrealizaçãonoreinodaprodução.

Daí o argumento básico de Marx que a superacumulação surge porque a inovação tecnológica(incluindoograudecentralização,aintegraçãoverticaletc.)naproduçãoérealizadaporprocessosquegarantem que ela seja inconsistente com uma acumulação equilibrada adicional.Nada é alterado comrespeitoaessesprocessospelacriaçãodedinheiroextranaesferadatroca.Aimpressãodedinheironãopoderesolveroproblema.Naverdade,adistorçãodossinaisdopreçoagravaodesequilíbrio.Todaaforçadoimpacto,quefariaosistemaretornaraumaposiçãodeequilíbriomedidapelacomposiçãodevalordocapital,écontida.Outrasinovaçõestecnológicasquedesestabilizamosistemasãoencorajadas.Atendênciaparaasuperacumulaçãoprovavelmenteseráacelerada,emvezderefreada.

Seoscapitalistasindividuaiseoutrosagentesprivadoscontinuaremaestenderocréditoumparaooutro diante da superacumulação desenvolvida e das quantidades vertiginosas de capital fictício, e secontinuaremaserapoiadospelaimpressãodedinheiroporpartedobancocentral,osaspectosjáinsanos

Page 291: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

dosistemadecréditopodemenlouquecerporcompleto.OdinheirogarantidopeloEstadoirrompesemqualquerpretensãodeatuarcomoumamedidafirmedetrabalhosocialmentenecessário.Seodinheiroexercepoucadisciplinasobreoscapitalistas,nãohánada,excetoacompetição,queosimpeçadeelevarseuspreçosarbitrariamente.Elesconseguemlucrosnatrocaapesardaquedanaproduçãodemais-valorreal. Essa situação é evidentemente insustentável. Resulta então uma inflação generalizada, e astendências subjacentes para o desequilíbrio pioram – a menos que forças opostas (como a posiçãocambialdobancocentralouoreconhecimentoconscienteporpartedobancocentraldequeadisciplinamonetáriadeveserrestaurada)entrememação.

O resultado, no entanto, é que a desvalorização das mercadorias pode ser convertida nadesvalorização do dinheiro pormeio da inflação. Devemos reiterar que esta não é a única forma deinflaçãoquepodeexistir,equalquerinterlúdiohistóricorealdeforteinflaçãopodeseraconsequênciade várias forças diferentes. A inflação do tipo que estamos considerando aqui tem uma interpretaçãomuitoespecífica.

A transformação da desvalorização em inflação ao mesmo tempo envolve a centralização e asocializaçãodoprocessodedesvalorizaçãoque acompanha a superacumulação.Devemosnotar que adesvalorização se inicia como um negócio privado (firmas individuais vão à falência; determinadasmercadorias não são mais vendidas) e termina tendo ramificações sociais (desemprego, circulaçãodiminuída das receitas etc.). A inflação é desde o início um negócio social, mas tem consequênciasprivadas e específicas. Por isso, a transformação da desvalorização em inflação tem algumasimplicaçõestécnicas,econômicasepolíticasquemerecemserexploradas.

Emprimeiro lugar, a socialização da desvalorização reduz o impacto de determinados eventos noritmo básico do ciclo da acumulação. As falências potencialmente prejudiciais das corporaçõesindividuaispodemserevitadasouabsorvidas(pormeiode“resgates”dogoverno,porexemplo),eseuscustos sãodisseminados sobre a sociedadecomoum todo.Apossibilidadedeque eventosdesse tipoconduzamaocrashdetodoosistemaémuitopequena.Emsegundolugar,a“desvalorizaçãoconstante”queestáligadaàmudançatecnológica(vercapítulo7)podeserconvertidaemumainflação“moderada”constanteque,segundoalgunskeynesianos,ajudaapreservarocrescimentoequilibrado–amudançadasestruturasdepreçoproporcionasinaisdeobsolescênciaprogramadaenovosinvestimentos.Emterceirolugar,oscilaçõesmenoresnoprocessodeacumulaçãopodemsercontroladaseàsvezesatémanipuladasparafinspolíticosdecurtoprazo(umcasodestasúltimaséochamado“ciclodenegóciospolíticos”,emque a política monetária é usada para criar uma explosão artificial na economia pouco antes daseleições)[53].Oscustosdossurtosmoderadosdedesvalorização,queàsvezesgolpeiamexcessivamenteduranteobreveespasmodacrise,podem,noentanto,seratenuadosedisseminadoscomoumaondalevedeinflaçãoduranteváriosanos.

A socialização da desvalorização por meio da inflação também espalha o impacto dasuperacumulação instantaneamente sobre todas as classes sociais.Mas seus efeitos não são demodoalgum igualmente sentidos. As consequências distributivas variam segundo as circunstâncias. Marxapontou,porexemplo,queadepreciaçãodoouroedapratanosséculosXVIeXVII“depreciouaclassetrabalhadora”,assimcomoosproprietáriosdeterras,emcomparaçãocomoscapitalistas,edessemodoajudouaconcentraropodermonetárionasmãosdosúltimos[54].Asrendasdas“classesnãoprodutivasedaquelasquevivemderendasfixas”tendemapermanecer“estacionáriasduranteainflaçãodospreços,queanda ladoa ladocoma superproduçãoea superespeculação”, e isso“diminui relativamente” seupoderdecompranessesperíodos[55].Aquelesquevivemderendasfixascontinuamganhandodurantea

Page 292: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

deflação dos preços que ocorre com o retorno da base monetária, mas são atingidos quando adesvalorizaçãosetransformaeminflaçãopermanente.

Ainflaçãotambémtendearedistribuirpodermonetáriodospoupadoresparaosdevedores,porqueestes últimospagam suasdívidas emmoedadepreciada.Entretanto, isto acontecer ounãodependedataxadejuros,quesetornanegativaemtermosreaisquandoataxadeinflaçãoémaisaltaqueataxadejuros nominal. Uma taxa de juros real negativa sinaliza a desvalorização geral das poupanças dedinheiro.Seataxadejurosnominalvariardeacordocomosrecursosmonetários,aspoupançasdaaltaburguesiapodemserpreservadasdasdestruiçõesda inflação,enquantoaquelasdaclasse trabalhadorapodemserdesvalorizadas[56].

Maisimportante,atransformaçãoparaainflaçãopermanentepermitequeoscapitalistasatinjamumobjetivohámuitoacalentado.“Aclassecapitalista”,observaMarx,“jamaisresistiriaaossindicatossepudesse sempre e em todas as circunstâncias fazer o que está fazendo agora como uma exceção […]testemunhar, beneficiar-se de todo aumento nos salários para elevar ainda muito mais os preços dasmercadoriase,dessemodo,embolsarlucrosmaiores”[57].Essapossibilidadesósetornarealquandoadisciplina rígida da mercadoria monetária dá lugar às práticas mais livres e flexíveis da criação depapel-moedanãoconversívelporpartedoEstado.SeoEstadocuidardoproblemadademandaefetivaeexpandiraofertadedinheiroparamanteroseuritmo,entãooscapitalistasindividuaispodemestabilizarsuas taxasde lucrodiantedaquedanaproduçãodemais-valor simplesmente ajustandoospreçosdasmercadoriasqueproduzem.Aúnicalimitaçãoemcurtoprazodomercadoéacompetiçãopelopreço.Namedidaemqueomonopólio,ooligopólioeoscomportamentosde“liderançadopreço”sedesenvolvem,acompetiçãopelopreçoseenfraquece.Poressarazão,ainflaçãoéfrequentementeatribuídaapráticascorporativasno“capitalismomonopolista”.Essaspráticastêmimportantesimpactossecundários,masainflaçãodotipoqueestamosconsiderandoaquitemraízesmuitomaisprofundasnatransformaçãogeraldadesvalorizaçãodasmercadoriasemdesvalorizaçãododinheiro.

A luta de classesmuda demaneira dramática com a inflação. Os cortes salariais são difíceis deseremimpostosdiretamentee,caracteristicamente,provocamumareaçãodiretaeconcretaporpartedaclasse trabalhadora. Com a inflação generalizada, os empregadores podem conceder aumentos aossaláriosmonetáriosnominaise,dessemodo,reduziraintensidadedaoposiçãodiretadotrabalhador.Oque acontece com os salários reais depende inteiramente da taxa de inflação, que os capitalistasindividuais podem declarar não ser de sua responsabilidade pessoal. A desvalorização da força detrabalhoéentãoatingidapormeiodainflação.Seessaestratégiaforbem-sucedida,elavaipermitirqueosproblemasdasuperacumulaçãosejamenfrentadosmedianteumataxadeexploraçãocrescenteatingidaatravésdeumadiminuiçãodossaláriosreais.OsmecanismosdoajustesalarialqueMarxdescrevena“lei geral da acumulação capitalista” (ver capítulo 6) são fundamentalmente alterados. Pode até serpossíveladministrarosajustessalariaispormeiodainflação,semaajudadeumexércitoindustrialdereservamaciço.A importância da chamada “Curva dePhillips” – que descrevia uma permuta entre ainflação e o desemprego – era o fato de ela parecer oferecer aos formuladores de políticas um alvoimediatoparaapolíticafiscalemonetária[58].

Alutacomrelaçãoaosalárionominalé,comoresultado,gradualmenteconvertidaemumalutacomrelaçãoaosalárioreal.Ostrabalhadoresentãoseveemlutandoemduasfrentes.Elesbuscamcláusulasrígidasdocustodevidanoscontratossalariaisparaimpedirqueoscustosdadesvalorizaçãolhessejamimpostosviainflação.Daíderivaumateoriadainflaçãoimpulsionadapelosalário,queresponsabilizaos sindicatos insaciáveis pela elevação dos preços. Essa teoria é correta, no contexto teórico que

Page 293: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

estamosaquiconsiderando,apenasnosentidodequeostrabalhadoresimpedemqueasuperacumulaçãoseja curada mediante uma desvalorização maciça da força de trabalho devida à inflação. Mas ostrabalhadorestambémtêmdeenfrentaraspolíticasfiscaisemonetáriasquepermitem,emprimeirolugar,queadesvalorizaçãoseja transformadaeminflação.Aatençãoda lutadeclassespodesedeslocardaconfrontaçãodiretaentreocapitaleo trabalhoparaaconfrontaçãoentreos trabalhadoreseoEstado.Esteúltimo torna-seumescudodeproteçãoparaos interessesdaclassecapitalista.Podeatéparecer,com uma ajuda não tão sutil da propaganda burguesa, que a inflação tem suas origens no governoineficiente e ineficaz, em políticas fiscais e monetárias equivocadas. Essa atribuição é correta comrespeitoàcausaimediata.Oqueelaignoraéaestruturafundamentaldasrelaçõesdeclassequegeram,antesdequalquercoisa,crisesdesuperacumulaçãoedesvalorização.

A conversão da desvalorização em inflação parece ter efeitos tanto positivos quanto negativos dopontodevistadocapital.Porum lado,elapode facilitarapressãode formasdiretasdeconflitocomrelaçãoaossalárioseatéreduzirotamanhodoexércitoindustrialdereservanecessárioparaequilibrarataxasalarial.TambémsocializaoscustosdadesvalorizaçãoparatodasasclassesportrásdoescudodapolíticafiscalemonetáriarealizadapeloEstado.Poroutrolado,elaestimulaaformaçãodealiançasdeclasse direcionadas para assumir o poder estatal. A inflação neutraliza o conflito ampliando-o ereconcentrando-onoEstado.

Mas a inflação não pode curar a tendência de superacumulação. Ela até exacerba o problema,atenuandoeadiandoosimpactos.Aspolíticasestataispermitemqueumaenormepressãoinflacionáriaseja exercida, a ponto de se tornar potencialmente explosiva. O peso morto do capital fictícioimprodutivoécadavezmaissentido,aposiçãocambialdobancocentralprogressivamenteseenfraquece(provocando a desvalorização damoeda nacional em relação ao dinheiromundial) e as estruturas depreçotornam-setãoinstáveisqueperdemsuacoerênciacomoumpodercoordenador.Aracionalizaçãodaprodução,queéaúnicasoluçãoparaasuperacumulação,nãopodeseradequadamenteacionada.Emresumo,oproblemadasuperacumulaçãonãopodesereliminadopelasocializaçãodadesvalorizaçãopormeiodainflação.

Nessavisão,éinteressanteexaminarasériedecuraspropostasparaainflação,asquaisapelamparaalgumtipodemudançabásicanoenvolvimentodoEstado.

Emprimeirolugar,oEstadopodereconstituirumabasemonetáriarígidaparaaeconomia.Emboraessanecessidadenãoestejaligadaaumamercadoriamonetária,elaimplicapolíticasmonetáriasmuitorestritivas(queforçamaelevaçãodastaxasdejuros),intervendonaestimulaçãodademandaefetivaporparte dogoverno e permitindoque as forças brutas domercadoquedesvalorizamasmercadorias e aforça de trabalho tomem conta da situação. Uma depressão convencional, administrada pelo Estado,realiza o seu trabalho de reestruturação do aparato produtivo, de eliminação dos capitais fictíciosexcessivos,dedisciplinadamãodeobraeassimpordiante.

Em segundo lugar, o Estado pode ou impor controles salariais e dos preços ou buscar amainar ainflaçãomediantealgumtipodepolíticaderendas,um“contratosocial”comotrabalhador(queemgeralsignificaalgumtipodedesvalorizaçãonegociadadaforçadetrabalho)eumaestratégiadeinvestimentoparaaindústria.Asintervençõesdessetipo,parateremchancesdefuncionar,devemseracompanhadasderestriçãomonetáriaefiscal.Osmonetaristasargumentamquepolíticascomoestaapenasdistorcemossinaisdepreçoe,assim,destroemqualquerbaseapropriadaparaa retomadadaacumulação.A teoriamarxianaconcordacomessejulgamento,excetonaimprovávelcircunstânciadequeaestruturadepreçoseja imperativa e que as estratégias de investimento criadas estabilizem a composição de valor do

Page 294: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capital. Isso envolveria uma desvalorização paulatina e organizada do capital e da força de trabalhoatravésdaaçãodaspolíticasestatais.

Emterceirolugar,oEstado,unidoaocapital,podeprocuraracelerarodesenvolvimentodasforçasprodutivas e, desse modo, esperar baixar os preços para compensar a onda inflacionária. Às vezesargumenta-sequeofracassoemaumentaraprodutividadeestánaraizdainflação.Ateoriaqueadotamosaqui indica que, antes de tudo, é o desenvolvimento descontrolado e desequilibrado das forçasprodutivas no contexto das relações de classe do capitalismo que provoca a superacumulação. Namedida em que a inflação é uma transformação da desvalorização, ela não pode ser sanada por umprograma indiscriminado de aumento da produtividade. O Estado pode tentar mudar a combinaçãotecnológica (fusões compulsórias, incentivos de impostos especiais para alguns setores, patrocínios àpesquisaeaodesenvolvimento).Mas,parasanaroproblemadasuperacumulação,elenãopodeescaparde investigar os custos da desvalorizaçãopara alguns segmentos do capital e do trabalho.E soluçõesdessetipo,namedidaemqueenvolvemaadministraçãodiretaouindiretadoaparatoprodutivoporpartedo Estado, embora não sejam socialistas, também dificilmente pressagiam um bom futuro para ocapitalismo.

Aindaquesejaverdadequeadesvalorizaçãodasmercadorias(incluindoaforçadotrabalho)possaser evitada pela inflação no curto prazo, é igualmente verdade que seus problemas não podem sersanados sem a desvalorização das mercadorias. A teoria marxiana nos diz que, em resposta àsuperacumulação,ocapitalpodedesvalorizarodinheiroouasmercadorias(oualgumacombinaçãodeambos). Mas só a desvalorização das mercadorias, incluindo a força de trabalho, pode forçar areestruturaçãoquevaipermitiraretomadadaacumulaçãoequilibrada.

Talveznãohajamelhor testemunhopara a irracionalidadebásica e fundamental do capitalismodoque aquele de que as escolhas econômicas existentes dentro dos confins de suas relações de classedominantes são de uma variedademuito restrita e deplorável. Amaior emais ampla escolha é entrepreservaressasrelaçõesdeclassesoueliminá-las,comascontradiçõesàsquaiselasdãoorigem.

VIII.OCAPITALFINANCEIROESUASCONTRADIÇÕESHáduasconcepçõesdecapitalfinanceiroemaçãonestecapítulo.Aprimeiraéaqueladeumprocessodecirculaçãodocapitalque rende juros;a segunda,adeumblocodepoder institucionalizadodentrodaburguesia.Nenhumaconcepçãoé,emsi, totalmenteadequada.Devemosagoranosesforçarparareuni-las.

Encarado de maneira superficial, o poder organizado das finanças é impressivo, aparentementeimpenetrável e assustador. O sistema financeiro está envolto em um mistério que se origina da suaabsolutacomplexidade.Eleabrangeomundointrincadodobancocentral,dasinstituiçõesinternacionaisremotas (o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional), de todo um complexo de mercadosfinanceiros interligados (bolsas de valores, mercados futuros de mercadorias, mercados hipotecáriosetc.),deagentes(corretoresdevalores,banqueiros,atacadistasetc.)edeinstituições(fundosdepensãoe seguros, bancosmercantis, associações de crédito, bancos de poupança etc.). E, acima de tudo, eleincluiumasériedebancosprivadosextremamentepoderosos(oBankofAmerica,oCréditAgricoledaFrança,oBarclaysdaGrã-Bretanha).OsbanqueirosesuascortestransitamdeumladoparaooutroentreaBasileia,Zurique,Londres,NovaYorkeTóquio.Decisõesqueclaramenteafetamodestinodemilhõessão tomadas em reuniões internacionais, sugerindo que os banqueiros domundo estão na verdade no

Page 295: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

controlenãoapenasdavidadosindivíduos(tantocapitalistasquantotrabalhadores),mastambématédasmaiores corporações e dos governos mais poderosos. Essa imagem é mais verossímil ainda quandoobservamosqueatémesmoesseaspectodoEstadodedicadoàproteçãodasoperaçõesmonetárias–obancocentral–sempreseesquivadocontroledemocrático.

Ocidadãomédiopodeserperdoadoporcairemumestadodetotalterrorquandoconfrontadocomaextremagrandezadopodermonetárioqueresidedentrodessasinstituiçõesedasofisticaçãodaelitequeascomanda.Omistériodosistemafinanceiroeapotênciadas forçasqueoperamatravésdasuaaçãogeraumamística.Essamísticaéumcampofértilparateoriasdaconspiração–conspiraçõesquedivideme governam omundo, think-tanks[a] (como a famosa Comissão Trilateral) que buscam estratégias dedominaçãoglobal,pormeiodeplanosaseremexecutadosporumaaliançapoderosadebancos,gigantescorporativoseseusrepresentantespolíticos.

É tarefa da ciência desmistificar tudo isso, revelar a lógica tentadora que corre pelas veias dosistema financeiro, expor a vulnerabilidade interna que está por trás do que, na superfície, é o podercontrolador totalmentehegemônico.Essa tarefarequer,paraoseuadequadocumprimento,umamisturasutildeteoriaeinvestigaçãomaterialista.

Estudos empíricos sérios geralmente chegam a impasses, afundam em enigmas aparentementeinsolúveis.Porexemplo,seumaelitetãointeligenteéconspiratoriamentetãopoderosaetemaoalcancedasmãosmúltiplos e delicados instrumentos com os quais aprimorar a acumulação, como podem serexplicadososdeslizesqueocorremperiodicamente?Ou,assumindooutroenfoque,comoosfinancistaspodem simultaneamente aparecer como os lúcidos guardiões de um processo de acumulação ordeiro,realizado nos interesses da burguesia como um todo e operando com o capital comum da classe, aomesmotempoqueclaramenteseenvolvememapropriaçõesvenaiseexcessivas,especulaçõesinsanasetodos os tipos de outras práticas parasíticas que servem apenas para mergulhar a sociedade emparoxismosdecaosedesordem?

Aconcepçãodocapital financeiro comoumacontradiçãocarregadade fluxo de capital que rendejuros–umaconcepção,devemosnotar,queé inteiramenteconsistentecomavisãogeraldocapitaldeMarxmaiscomoumprocessodoquecomoumacoisa–ajudaapenetrarnosimpassesesolucionarasquestões. Ajuda-nos a entender a instabilidade das configurações que surgem quando o “capitalfinanceiro”éconsideradoumblocodepodernointeriordaburguesiaou,oquevemaseramesmacoisa,a dificuldade experimentada pelos pesquisadores quando buscam, antes de tudo, uma definiçãoconsistentede“capitalfinanceiro”.Tambémesclarecemaisumtópicoinicialmenteabordadonocapítulo5:adinâmicadatransformaçãoorganizacionaldocapitalismo.Agoravamosnosaprofundarmaisnessasquestões.

1.Ocapitalfinanceirocomouma“classe”definancistasecapitalistasmonetários

Aquelesquecontrolamofluxododinheirocomoumpoderexternoàproduçãoocupamumaposiçãoestratégicanasociedadecapitalista.Paraessaposiçãoestratégicaserconvertidaemumabasedepoderreal, que é uma exigência fundamental capital monetário esteja centralizado em algumas mãos. Essacentralização pode ocorrer de duas maneiras. Primeiro, alguns indivíduos ou famíliasextraordinariamentericospodemacumularamassadopodermonetáriodasociedade.Segundo,algumasinstituiçõespoderosaspodemcontrolaropodermonetáriodispersodeinúmerosindivíduosdesprovidosdepoder.Quandoalgumasfamíliasricas,comoosMellonsouosRockefellers,possuemgrandepartedariquezamonetáriaeparticipam intensamentedocontroledo restante,umaunidadedeposseecontrole

Page 296: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

prevalece dentro do centro estratégico da circulação do capital que rende juros. Isso proporciona aprimeiradefiniçãopráticadocapitalfinanceiro[59].

Entretanto,aexcessivacentralizaçãodopoderdentrodessecentroestratégicoéinconsistentecomoexercícioapropriadodesuasfunçõesdecoordenação.Acompetiçãodentrodosetorfinanceiro temdesermantidaparaataxadejurosseajustardemodoareagiràacumulação,paraocapitalmonetáriofluirlivrementeeevitaroviéstípicoimpostopelaspráticasmonopolistas.Contudo,aformadecompetiçãodentro do setor financeiro varia. Às vezes é manifestada como intensa rivalidade entre os impériosfinanceiros; às vezes surge dosmecanismos sociais quemantêm ampla dispersão do poder financeirodentrodaburguesia;emoutroscasos,éaindagarantidapelasexigênciaslegaisquerestringemalgumasinstituições a alguns tipos de atividade (financiamento de moradias, por exemplo), delimitam a áreageográficadaoperação(restriçõesàsfiliaisinterestaduaisdosbancosnosEstadosUnidos,porexemplo)oumesmoditamascondiçõesbásicasdaadministraçãodoportfóliodebensqueumtipoespecíficodeinstituiçãofinanceirapodemanter(osfundosdepensãoesegurosemgeraloperamcomtaisrestrições).Hácomfrequênciacertaambiguidadeemrelaçãoaolocalondeopodermonetáriorealmenteresideemumsistematãofragmentado.Porexemplo,aconcentraçãodemoedadegrandepartedariquezamonetárianaformadefundosdepensãotemdadoorigemaumdebatenãomuitointeressantesobreo“socialismodos fundos de pensão” (a ideia de que amassa das pessoas possui uma grande proporção do capitalfictício da sociedade através das poupanças das pensões) e a uma batalha real e muito intensa pelocontroledopodermonetárioqueosfundosdepensãorepresentam.Domesmomodo,aacumulaçãodegrandeparteda riquezamonetárianasmãosdealgunsnãosignificanecessariamentequeessespoucoscontrolemativamenteousodessedinheiro.Elespodemevitar se arriscardispersando sua riqueza emumaextensavariedadedeinstituiçõesqueoperamindependentementedeles.

Poroutrolado,atotalfragmentaçãoedescentralizaçãodosistemafinanceiroétambémprejudicial.Aqualidade do papel-moeda émais bem garantida por um banco central com poderesmonopolistas.Ofracassoemcentralizaropoderfinanceirotambématuacomoumabarreiraàconversãodedinheiroemcapital, assim como à subsequente acumulação, na medida em que esta depende da centralização docapital.A rápida reorganizaçãodocapitalismoemsua formacorporativaedeconglomerado–passosque,nocapítulo5,vimosseremnecessáriosparaaperpetuaçãodocapitalismo–poderianão tersidoviabilizadasemumasimultâneamudançanasuacapacidadedecentralizaropodermonetário.

Porisso,atensãoentreacentralizaçãoeadescentralizaçãoétãoevidentedentrodoblocodopoderfinanceiro quanto o é em outros lugares (ver capítulo 5). Isso é evidenciado de váriasmaneiras. Porexemplo, ajuda a explicar por que os Estados Unidos exibem um sistema financeiro extremamentedescentralizado e aparentemente caótico (preservado por uma estranha miscelânea de legislaçãofragmentada,promulgadaporumaburguesiaquetemespasmodicamentebuscadosecontraporàameaçadaexcessivacentralização),aomesmotempoqueécaracterizadoporimensasconcentraçõesderiquezamonetária entre algumas famílias que operam através de algumas instituições financeiras de largaescala[60]. Issoajudaaexplicar tambémporqueosbancossimultaneamentecompetemumcomooutroemalgumasáreas,aopassoqueemoutrasformamalianças,consórciose,detemposemtempos,tramasconspiratóriasparareunirumaconcentraçãosuficientedepodermonetárioparalidarcomosaspectosdelargaescalaede longoprazodofinanciamentodaacumulação.Osrealinhamentosemeternamudança,tanto das estruturas institucionais quanto das práticas financeiras, criammuita confusão. Vistas comoexpressãomaterialdatensãosubjacentenacirculaçãodoprópriocapitalquerendejuros,asconfusõesecontradiçõestêmmaissentido.Elassãosimplesmenteaparênciassuperficiaisdaexigênciafundamental

Page 297: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

deseequilibraracentralizaçãoeadescentralizaçãodentrodosistemafinanceiro.

2.Ocapitalfinanceirocomoaunidadedocapitalbancárioeindustrial

AconcepçãodecapitalfinanceiroadiantadaporHilferdingeemgeralaceitaporLeninéaqueladaunidadedocapitalbancárioedocapitalindustrial.Aunidadeéseletivanosentidodequesãoapenasosgrandesbancoseasgrandesempresas industriaisqueconstituemabaseparaadelimitaçãodocapitalfinanceiro como um bloco de poder distinto. Por essa razão, o conceito de capital financeiro, emparticularnaopiniãodeLenin,acertaaltura se fundedemaneira imperceptívele indiscriminadacomaqueledocapitalismomonopolistaemgeral.

Aunidadedocapitalbancário e industrial, se équeela existe, é certamenteumaunidade tensa.Éóbvio, evidentemente, que as grandes corporações não podem conduzir seus negócios sem o usoextensivodos serviçosbancários equeosbancos estãodesesperadamente ansiosospara comandarosvastos fluxos de dinheiro gerados pelas grandes corporações. Nesse sentido, o capital bancário e ocapitalcorporativoemlargaescalasãonecessáriosumaooutroeexistememumarelaçãosimbióticaumcomooutro.Seissoétudooquesignificaaunidadedocapitalbancárioedocapitalindustrial,entãonão há problema. Mas tanto Hilferding quanto Lenin querem dizer algo mais: ambos afirmam que aunidadeéumaunidadeprática,quedominaoprocessodeacumulaçãoesubdivideomundoemregiõesdesubordinaçãoaopodercoletivodealgunspoucosgrandesbancosecorporações.

Aanálisedocapitalfinanceirocomoumfluxorevelaaunidadeeoantagonismosubjacentesentreasoperaçõesfinanceirasedeproduçãodemais-valor.Ociclodaacumulação–assumindo-sequenãohajaintervençõesativasdoEstado–sugereumequilíbriodepodercambianteentreocapital industrialeocapitalbancárionodecorrerdociclo.Oequilíbriocambianterefleteopesorelativodasexpressõesdevalordamercadoriaversusodinheirodentrodoprocessodeacumulação.Nasfasesiniciaisdaexpansãoindustrial,ocapitalestánocomandoporqueoquecontasãoasmercadorias.Duranteasfasesposterioresàexplosão,osinteressesindustriaisefinanceirosseunemparapromoverumaexpansãodosvaloresdasmercadorias baseada no crédito. Na crise, o dinheiro é tudo, e os bancos aparecem para controlarinteiramenteosdestinosdoscapitalistasemsuasmãos,poisasmercadoriasemexcessonãopodemserconvertidasemdinheiro.Masosprópriosbancospodemtambémnaufragarseademandapordinheirodealta qualidade (ouro ou dinheiro do banco central) exceder emmuito a oferta. Nas profundidades dacrise,opoderestánasmãosdaquelesquedetêmodinheirodeúltimorecurso.

O ciclo da acumulação émuitomodificadopor eventos contingentes e intervenções externas – emparticularaquelasdogoverno.Masospadrõescambiantesdaunidadeedoantagonismoentreocapitalna forma de mercadoria e de dinheiro não são eliminados. Eles são simplesmente transformados emnovas configurações.Continuama constituir a basepara a relaçãodepoder cambiante entreo capitalindustrial e o capital bancário. Em outras palavras, os arranjos organizacionais e institucionais,juntamente às práticas dos agentes econômicos, têm de ser vistos como um produto do processo deacumulaçãoquenãopodeprocederdeoutramaneira,excetomedianteaoposiçãoeternaentreodinheiroe asmercadorias dentro da unidade do capital como “valor emmovimento”.A concepção do capitalfinanceirocomoumaunidadedocapitalindustrialedocapitalbancárionãoéemprincípiocondenável,contantoqueaunidadesejavistacomoumaunidadequeinternalizatensão,antagonismoecontradição.

Isso deixa aberta a questão da maneira pela qual as contradições são internalizadas dentro deestruturasorganizacionaisparticulares.Considere,porexemplo,umconglomeradocorporativodelargaescala.Muitasoperaçõesfinanceirassãointernalizadasdentrodaempresaeaparentementeunidascoma

Page 298: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produção em um todo integrado. Essa aparência de unidade é enganosa. Da mesma maneira que asgrandes corporações são obrigadas a internalizar osmecanismos de competição para sobreviver (vercapítulo 5), elas são também obrigadas a manter as finanças separadas da produção. Isso abre aperspectiva de conflitos dentro da corporação – conflitos que se relacionam diretamente com oantagonismoentreocapitalnaformadedinheirooudemercadorias.Entretanto,aunificaçãodocontroleproporcionaàempresaestratégiasalternativasparasobreviveremépocasdecriseouparaexpandiremépocas de crescimento acentuado. As manobras financeiras – aquisições, fusões, alienação dos benspatrimoniaisetc.–sãotãoimportantesquantoocompromissocomasoperaçõesdeprodução.Porisso,aluta pela sobrevivência entre as corporações assume uma dimensão totalmente nova.Mas o problemasubjacente não é desse modo alterado. Se todas as corporações procurarem sobreviver por meio demanobraspuramentefinanceiras,semaumentaroureestruturaraprodução,entãoocapitalismonãovaidurar muito neste mundo. A aparência da luta se modifica, assim como as estruturas institucionais eorganizacionais,masofundamentalnãomuda.

O debate um tanto acrimonioso sobre se os bancos controlam as corporações ou as corporaçõescontrolamosbancosdeveserencaradosobumaluzparecida[61].Oquerealmenteconstituicontrolenãoestá demodo algum claro.As definições formais (determinada porcentagem das ações, por exemplo)raramente captam as práticas que estão constantementemudando.E, namedida emque o processo deacumulaçãoinvariavelmenteproduzfasesquesãolongasemrelaçãoàsmercadoriasecurtasemrelaçãoaodinheiro e viceversa, temosde antecipar as eternasmudançasna relaçãodepoder entre o capitalindustrialeocapitalbancário.Dessepontodevista,colocaroslíderescorporativosnosconselhosdosprincipais bancos e indicar presidentes de banco para diretores de corporações parece uma tentativainútildeestabelecerumaunidadeorganizacionaldiantedeumprocessorepletodecontradições.

Masestaríamoserradosemencerrarasquestõesnesteponto.Ospadrõesdecontrolecambiantesdascorporaçõesporpartedosbancos,oudosbancosporpartedascorporações,têmtambémdeservistoscomopartedeumeternoprocessodesondagemdeumaformaorganizacionalqueaumenteacapacidadede sobrevivência do capitalismo diante de suas próprias contradições internas. Exatamente damesmamaneiraqueaseternasoscilaçõesnospreçosdomercadosão fundamentaisparaoestabelecimentodevaloresdeequilíbrio, tambémaseternasoscilaçõesnoequilíbriodocontroleentreosbanqueiroseascorporaçõessãoessenciaisparaseconseguiressarelaçãodeequilíbrioentreasfinançaseaproduçãode mais-valor que é mais apropriada em um determinado momento do processo de acumulação. A“classe”queocupaocentroestratégicoqueuneasfinançaseaproduçãopodeserclaramentedefinidaem uma dada situação, mas esta seria certamente uma configuração instável devido às pressões e àsexigênciascontraditóriasqueaíoperam[62].

Porisso,aconcepçãounitáriadecapitalfinanceirosugeridaporHilferdingtemdeserjulgadacomodemasiadounilateralesimplista,porqueelenãotratadamaneiraespecíficaqueaunificaçãodocapitalbancário e do capital industrial internaliza uma contradição insuperável.Omáximo que ele conseguefazer é afirmar em termosmuitogerais, não específicos, queo capital financeironãopode superar ascontradições do capitalismo, servindo apenas para aumentá-las. O que ele não consegue explicar éexatamentecomoeporqueissoénecessariamenteassim.

3.OcapitalfinanceiroeoEstado

Noâmbitodobancocentral,ocapitalfinanceiro,emboradefinido,seintegradiretamentecomumapartedoaparatoestatal.MasoEstadotipicamenteafetaeserelacionacomacirculaçãodocapitalque

Page 299: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

rendejurosemumespectrodeatividadesbemmaisamplodoqueeste.Eleestabeleceaestruturalegaleinstitucionalecomfrequênciadesignaoscanaisextremamentediferenciadosatravésdosquaisocapitalque rende juroscirculanasdiferentesatividades, comonadívidadoconsumidor,no financiamentodemoradias,nodesenvolvimentoindustrialeemcoisassemelhantes.Comfrequênciaregulaosfluxospelosdiferentes canais,determinandoosdiferenciaisda taxade jurosouas alocaçõesdiretasdocrédito.Ograu de centralização ou descentralização da riqueza e do controlemonetário tambémé extremamentesensívelàspolíticasdetaxaçãofiscaiseredistributivasdoEstado,assimcomoàsestratégiasmonetáriasqueafetamainflação.OpróprioEstadoabsorveumaporçãodofluxodocapitalquerendejurosnaformadedívida estatal, enoprocessocria capital fictício comalgumasqualidades (quepodemsermaisoumenosdiferenciadassegundoaunidadeouaçãogovernamentalqueestárealizandooempréstimo–porexemplo,adívidadogovernodosEstadosUnidoséqualitativamentediferentedadívidadacidadedeNovaYork).Enocentrodessesistema intrincadoestáobancocentral,comtodososseuspoderesemrelaçãoàqualidadedodinheironacional.

Uma parte do aparato doEstado é inteiramente captada no processo de circulação do capital querende juros. Há um aspecto, e somente um aspecto, do Estado que não pode ser considerado sequerrelativamente autônomo do capital, porque é necessariamente construído à imagem do própriomovimentodocapital.OsadministradoresdesseaspectodoaparatodoEstadoadministramacirculaçãodocapitalquerendejurosefuncionamcomo“ocomitêexecutivodaburguesia”,nãoimportaqualsejaasua afiliação política. Assim, uma necessária unidade é estabelecida entre uma parte do aparato doEstado e os capitalistas, industriais e financistas monetários que do mesmo modo participam dacirculação do capital que rende juros. Vista de fora, parece que uma parte do Estado conspiradiretamentecomosinteressesindustriaisefinanceiros.Umanovadefiniçãodocapitalfinanceirovemàtona:umadefiniçãoemqueostrêsinteressesestãounificados[63].

Essaunidadecontémumacontradição,alémdapotencialidadeparatransformação.Marxdeclaraqueo sistema de crédito “requer a interferência do Estado” ao mesmo tempo que socializa o capital ecentralizaocontrolenotrabalhosocial.Ocapitalsocializado,submetidoàregulaçãoeaocontroledoEstado,éoprodutoinevitáveldocrescimentodocapitalismo.Porisso,osistemadecréditoconstitui“aformadetransiçãoparaumnovomododeprodução”[64].

Nossa atenção fica imediatamente concentrada no antagonismo existente no interior da unidade dacirculação geral do capital que rende juros. Afinal, o banco central tem a tarefa nada invejável dedisciplinarosindustriaiseosbanqueiroserrantesepenalizá-losporseusinevitáveisexcessosnacorridapara acumular e captar os benefícios da acumulação. Com frequência emerge o conflito aberto,particularmente em tempos de crise, entre o aparato do Estado, necessariamente exercendo poderesdisciplinadores,etodasasoutrasfacçõesdocapital.EsseconflitoexisteatémesmoemEstadosemqueopoderpolíticoestáclaramentenasmãosdaburguesia.Acapacidadeparaa regulaçãoeocontroledocapital,emboranosinteressesdaclassecapitalistacomoumtodo,residenecessariamentenointeriordoaparatodoEstado.Pareceentãoqueummovimentodaclassetrabalhadorapodedominarocapitalcasoeleconsigaobterocontroledocentroestratégiconointeriordoaparatoestatal.Masentãoooutroladodamoedaimediatamentesetornaevidente.NamedidaemqueumapartedoaparatodoEstadoémeroreflexodoprópriocapital,atémesmoumgovernosocialista(comomuitosdescobriramporsuaprópriaconta) não pode fazermais do que se esforçar para realizar uma administraçãomais eficaz do fluxocarregadodecontradiçõesdocapitalquerendejuros.Certamente,ajustesaquieali,tantonasestruturasinstitucionaisquantonadireçãoenaquantidadedosfluxos,podemtrazerbenefíciosaostrabalhadores.

Page 300: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Mas os limites dessas redistribuições estão estritamente circunscritos pela necessária unidade quetambémprevalecenacirculaçãodocapitalquerende juros.ParaoEstadoescapardeumaposiçãodeconluiocomocapital,bastaráatotalaboliçãodessaformadecirculação.Issofalhando,alutadeclasseséinternalizadadentrodoEstadodevidoàobrigaçãodupladeserviraofluxodocapitalquerendejuroseaomesmotemposeesforçarparasatisfazerasnecessidadesdostrabalhadores.

Independentemente de quais sejam as circunstâncias, o Estado nunca pode ser encarado como umparceiro não problemático do capital industrial e do capital bancário dentro de um bloco de poderdominante. As contradições inerentes que infestam a circulação do capital que rende juros sãofrequentemente externalizadas comoumaoposição entre oEstado (particularmente o banco central), ocapitalindustrialeocapitalbancário.Porisso,opapeldoEstadoésempreenigmáticoeambivalente.NemmesmoumEstadopuramentecapitalista,governadoporeparaaburguesia,podeseesquivardessascontradições.

Tudoissosetornaaindamaisproblemáticoquandoprojetadoparaocenáriointernacional.Obancocentral,comoguardiãodaqualidadedodinheironacional,entraemrelaçõescomoutrosbancoscentraispara constituir obásicodo sistemamonetário internacional,mesmoquando esse sistemaé firmementebaseado emumamercadoriamonetária comoo ouro.Então, as reservas de ouro e a posição cambialinternacional do Estado-nação afetam materialmente a capacidade do banco central de reagir àsdificuldadesinternasdaacumulaçãodocapitaldentrodesuasfronteiras.MasoEstadotambémassumealgunspoderespararegularosfluxosdecapital–nasmercadorias,nodinheiroeatédeformavariávelmediante tarifas protecionistas, controles do câmbio e políticas de imigração. E as relações entre osEstados certamente não podem ser discutidas independentemente da competição econômica, política,culturalemilitarentreeles.

OqueintrigavaHilferdingeLenin,éclaro,eraaconexãoentreocapitalfinanceiro,oEstadoeasrivalidades interimperialistas.Hilferding se concentranaunidade entreo capital industrial eo capitalbancáriodentrodaestruturadepoderdoEstado–ascontradiçõesinternasdesaparecem.Osblocosdepoder unificados concentrados nos Estados nacionais lutam entre si pela dominação mundial. LeninassumealinhadeanálisedeHilferdingdospoderesimperialistas“básicos”.MastambémsebaseiaemHobson,queencaravaasoperaçõesfinanceirascomoummeioindependenteparacontrolarosgovernosdo mundo. O capital financeiro, escreveu Lenin, é uma força tão “decisiva em todas as relaçõeseconômicas e em todas as relações internacionais, que é capaz de sujeitar, e na verdade sujeita, a simesmoatéosEstadosquedesfrutamdamaisplenaindependênciapolítica”.Issosópodeocorrerseofluxodocapitalquerendejurosalcançarumaspectosupranacional,acimadasmerasrelaçõesdepoderentreosEstados.Osgovernoscontraemdívidasforadesuasfronteirase,porisso,sãosujeitosacertadisciplina fiscal emonetária, não importa se esta é exercida por poderosos banqueiros internacionais(como os Rothschild e os Baring no século XIX, ou consórcios de bancos privados e agênciassupranacionais como o Fundo Monetário Internacional atualmente). O comportamento das economiasnacionais pode também estar sujeito à disciplina dos fluxos internacionais, particularmente de capitalmonetário.Ocapital financeiro,afirmouLenin,éaqueleestágioemqueocapital“expandeasua redesobretodosospaísesdomundo”atravésdaexportaçãodecapitalfinanceiro,emvezdeprodutos.

Aqualidadeenigmáticada relaçãoentreocapital financeiroeoEstado torna-seaquiprontamenteaparente.Emboraoaparelhoestatalconstituaabasedocentrodecontroleestratégicoparaacirculaçãodocapitalquerendejuros,esteúltimoéaomesmotempolivreparacirculardemaneiraadisciplinarosdistintosEstados-naçãoparaoseupropósito.OEstadoécontroladoecontroladoremsuarelaçãocoma

Page 301: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

circulaçãodocapital[65].Qualforçadominadependedacircunstância.Masali,comoemtodaparte,osdesequilíbriostêmdeserconcebidoscomooscilaçõeseternasemtornodeumpontodeequilíbrioquesemoveentre forçasopostas.Oequilíbrioéaquelaconfiguraçãona relaçãoentreospodereseocapitalfinanceirodoEstadoquepodemanterosistemacapitalistaemseucaminhoprecariamenteevolucionário.A não preservação desse equilíbrio, diante de forças incrivelmente poderosas que eternamente operturbam, só pode impelir o sistema capitalista para uma crise global que necessariamente invoca aforçadosEstadoscapitalistaseconômicos,políticosemilitaresquecompetementresi.Aguerraaparececomoummeiopararesolverascontradiçõesinternasdocapitalismo(verp.552-9).

Algumasquestõesessenciaisdeseremcolocadasaquiestão,infelizmente,alémdoescopoimediatoda análise: entretanto, o ponto que eu quero ressaltar é que a relação entre o capital financeiro (nãoimporta como concebido) e o Estado está assentada sobre uma contradição dentro de uma unidade.QualqueranálisedoEstadoedasrelaçõesdepoderentreosEstadosdevecompreenderanaturezaeaorigemdascontradiçõesecolocaresseentendimentonocentrodoseuinteresse.

IX.O“SEGUNDORECORTE”NATEORIADACRISE:ARELAÇÃOENTREAPRODUÇÃO,ODINHEIROEASFINANÇASO “primeiro recorte” na teoria da crise (capítulo 7) revelou sua origem dentro da produção.Dada aunidade contraditória que necessariamente prevalece entre a produção e a troca, as crisesinevitavelmenteencontramexpressãonatroca.Ocapitalpodeapareceraquicomomercadoriaoucomodinheiro.Comoo dinheiro é a forma independente pormeio da qual a identidade do valor pode “serconstatada”[66],ascrisesdevemterumaexpressãomonetária.Asanálisesdocréditoedacirculaçãodocapitalquerendejuros,daformaçãodoscapitaisfictíciosedetodasasoutrascomplicaçõesfinanceirasemonetáriasque têmsido temadosdoisúltimoscapítulosadicionamumadimensão totalmentenovaàteoriadaformaçãoedaexpressãodacrisenocapitalismo.Estamosagoraemumaposiçãodeassumirum“segundorecorte”nateoriadacrise–umaposiçãoqueseesforçaparaintegrarosaspectosfinanceirosemonetários das coisas com a análise anterior das forças que contribuem para o desequilíbrio naprodução.

Nomomento,limitaremosnossaatençãoaocapitalismonointeriordeumpaísou,oquevezaseramesma coisa, de uma economia capitalista mundial caracterizada por um único sistema monetárioindiferenciado.Ofatomaissingularcomoqualtemosdelidaréamaneirapelaqualosistemadecréditoarticula o capital como o capital comum da classe, com a potencialidade de se contrapor a essescomportamentoserrantesdoscapitalistasindividuaisquesãoumafontefundamentaldodesequilíbrionaprodução.Aissopodemosentãoacrescentartodosaquelespoderesvitaisquepermitemacoordenaçãodaproduçãocomarealizaçãoeoconsumoeadistribuição.Osistemadecréditoaparentementedetémpoder suficiente para se opor à tendência de desequilíbrio na produção. Esse poder não pode seraplicadodiretamente,masdevesertransmitidoviapreçoeoutrossinaisnaesferadatroca.

A existência desses poderes não garante que eles serão usados.Na verdade, nos anos iniciais docapitalismoaapropriaçãoprivadadosbenefíciosaseremadvindosdousodocapitalcomumdaclasseforamtãopredominantesqueosistemadecréditofoiofocodecrisesespeculativasqueirromperamdeum modo relativamente independente do desequilíbrio na produção. Essas crises especulativas têm

Page 302: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

efeitossubstanciais;elaspodemimporumapressãosobreaproduçãodemais-valoreperturbarocursodaacumulação.Entãoparecequeaúnicaorigemdascrisesestánasmanipulaçõesfinanceiras.Marxtemboasrazõespararejeitaressainterpretação.Nãoobstante,ateoriado“segundorecorte”dacrisedevesempre permitir explosões especulativas relativamente autônomas na formação de capital fixo e defundosdeconsumo,nasvendasdeterra,nospreçosdasmercadoriasefuturosdemercadorias(incluindoaquelesdemercadoriasmonetáriascomooouroeaprata)eemativosdepapeldetodosostipos.Essasfebres especulativas não devem ser necessariamente interpretadas como manifestações diretas dedesequilíbrionaprodução:elasnãosópodemcomoocorremporsuaprópriaconta.MasMarxdemonstraque elas efervescem na superfície de processos muito mais profundos que contribuem para odesequilíbrio.Eletambémnosmostraqueasuperacumulaçãocriacondiçõesmadurasparaessasfebresespeculativas, de tal modo que uma concatenação dessas últimas quase invariavelmente assinala aexistênciadaprimeira.Adificuldadeaquiélibertarasuperfícieefervescentedaeternaespeculaçãodosritmosmaisprofundosdaformaçãodecrisenaprodução.

Aanálisedociclodeacumulaçãopavimentaocaminhoparaumavisãomais integradada relaçãoentre os fenômenos financeiros e a dinâmica da produção. Elamostra como as contradições internasdentro da produção se manifestam na troca como uma oposição entre as formas de dinheiro e demercadoriadovalorqueelasentãosetornam,viaaaçãodosistemadecrédito,umantagonismodiretoentreo sistema financeiroe suabasemonetária.Esseúltimoantagonismo formaentãoa rochasobreaqualaacumulaçãofinalmentesesustenta.Aanáliseapareceparadescreverumciclodeacumulaçãoqueoperanaausênciadeatividadeespeculativaestranha.Nãoéesseocaso.Aformaçãodocapitalfictícioéessencialparatodaadinâmica,eoquantoouoquedeleéestranhosópodeserdeterminadodepoisqueacriserealizouoseutrabalhoderacionalização.Constata-seentãoqueasuperfíciedaespeculaçãoétãoessencialparaadinâmicadaacumulaçãoquantoosmovimentosdepreçosãoessenciaisparaaformaçãodosvalores.

Issoconcentraaatençãonodefeitomaisimportantenaideiadeumciclodeacumulação–defeitoesteque levouMarx a enterrar anoçãonumconjuntode formulações tão tentativas e fragmentáriasque eupossocomjustiçaseracusadode lhe impingiruma ideiaqueelenãodefendiade fato.Eumerefiroàmaneiraa-históricaemqueocicloéespecificado.Cadacicloseparececomqualqueroutro(veraseçãoV)e,porisso,pareceretornarosistemacapitalistaaoseustatusquoantedepoisqueacrisecumpriuoseucurso.IssodificilmenteseajustaàpreocupaçãodeMarxcomasleisdemovimentoquegovernamaevoluçãohistóricadocapitalismo,amenosqueestejamospreparadosparaveresteúltimorealizadonodecorrer de sucessivos ciclos de acumulação. E, nesse caso, nossa interpretação de como funciona ociclodaacumulaçãodeveserdevidamenteajustada.

Dopontodevistadalongaevoluçãodocapitalismo,ociclodaacumulaçãooperaentãocomoomeioemqueprocessosde transformaçãosocialmuitomaisprofundossãoatingidos.Paraqueocapitalismosobreviva,essesprocessosdevem,aomenostemporariamente,aliviaratensãosubjacenteentreasforçasprodutivas e as relações sociais. No entanto, se a relação de classe básica permanece inalterada, ascontradições são meramente deslocadas e recriadas em um plano diferente. O ciclo da acumulaçãoproporcionao“espaçoaberto”dentrodoqualasforçasprodutivaseasrelaçõessociaispodemseajustarentre si. A atividade especulativa associada à expansão permite a experimentação individualizada eprivadadenovosprodutos,novas tecnologias(incluindoformasorganizacionais),novas infraestruturasfísicas e sociais, e até culturas, configurações de classe e formas de organização e luta de classestotalmentenovas.Essaagitaçãoatomísticadaexperimentaçãocriamuitacoisasupérfluaeefêmera,mas

Page 303: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

ao mesmo tempo assenta a base material para fases posteriores de acumulação. É esse aspecto daespeculação que Marx ignora. O crash racionaliza e reestrutura a produção de modo a eliminarelementosestranhos– tantovelhosquantonovos.Tambémdisciplina todososoutrosaspectosdavidasocialparaasexigênciasdaclassecapitalistae,portanto, tipicamenteestimulaalgumtipoderespostaorganizadaounãoorganizada,nãosomenteporpartedo trabalhador(oqueéóbvio),mas tambémporpartedevárias facçõesafetadasdentrodaburguesia.Esteéomomentoparaa inovação imposta pelaclasse,maisdoque individualmentealcançada,apoiadasenecessáriopela repressão.ONewDealdeRoosevelt se ajusta com exatidão a essa interpretação. O efeito final deve ser retornar às forçasprodutivas e às relações sociais para alguma posição de equilíbrio a partir da qual o processo daacumulaçãopodeserrenovado.

Marx descreve um processo análogo em sua representação esquemática de como um modo deproduçãosetransformaemoutro:

Nenhuma ordem social é jamais destruída antes que todas as forças produtivas para as quais ela seja suficiente tenham sidodesenvolvidas, e novas relações de produção superiores nunca substituem as antigas antes que as condições materiais para a suaexistênciatenhamamadurecidodentrodaestruturadaantigasociedade.Porisso,ahumanidadesóseimpõeastarefasqueécapazderesolver, pois o examemais detalhado vai sempremostrar que o próprio problema só surge quando as condiçõesmateriais para suasoluçãojáseencontrampresentesoupelomenosemformação.[67]

Acapacidadeparasetransformarapartirdedentrotornaocapitalismoumanimalumtantopeculiar– comouma espécie de camaleão, eternamentemudando suas cores; comouma cobra, periodicamentetrocandoasuapele.Oestudodacirculaçãodocapitalquerendejuroslançaluzsobreosmeiosmateriaisconcretosemqueessastransformaçõesinternassãolavradas.Vemosqueacirculaçãodocapitalemgeraldevenecessariamenteassumir,acertaaltura,umanovaaparência:aqueladacirculaçãodocapitalquerende juros. Esta é a crisálida da qual o capital financeiro emerge como uma força controladoraorganizada,repletadecontradiçõesinternasecaracterizadaporumainstabilidadecrônica.Aemergêncianão é um negócio abstrato, mas envolve a criação de novas instrumentalidades e instituições, novasfacções,configuraçõesealiançasdeclasse,enovoscanaisparaacirculaçãodoprópriocapital.Tudoissoéparteeparceladanecessáriaevoluçãodocapitalismo.

Mas para o poder do sistema de crédito ser mobilizado como uma força para neutralizar odesequilíbrionaprodução,eletambémdevesertransformadoemuminstrumentoinequívocodopoderdeclasse,nãonosentidodequeelecaianasmãosdestaoudaquelafacçãodecapitalistas,masdequeeledeve ser exercido de talmaneira que garanta a reprodução do capital frente à acumulação.OEstadoentão assume o encargo de garantir a reprodução do capital mediante políticas fiscais e monetárias,executadaspelobancocentraleporváriosoutrosramosdoaparatodoEstado.Avantagemdeinvocaroutros aspectos do aparato estatal, em vez de depender apenas do banco central para defender aqualidade do dinheiro nacional, é que acaba por proporcionar a capacidade de responder aodesequilíbrionaproduçãoestruturandoumasériedesinaisepoderesdomercadodentrodosistemadecréditocomoumaforçamitigadora.VimosnaseçãoVIcomoissopodetransformaraexpressãoimediatada crise de desvalorização das mercadorias em desvalorização do dinheiro. O “segundo recorte” dateoriadacrisedeveabraçarativamenteessapossibilidade.

MasenquantooalvodapolíticadoEstadopodeserinequívoco,osmeiosparaatingi-losãodeumaqualidadebastantediferente.Ainflaçãonãoatingeareestruturaçãorequeridanaproduçãoemanipulaoresultadodo cicloda acumulaçãodemaneiras importantesquepoucoprovavelmente compensarão em

Page 304: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

longo prazo o desequilíbrio na produção.O alvo da política do Estado tem de ser então organizar areestruturação, organizar o que se espera ser uma crise controlada. Essa estratégia encontra duasbarreiras.Emprimeirolugar,alutadeclasses(nãoapenasentreocapitaleotrabalho,mastambémentreas várias facções do capital industrial, comercial, bancário etc.) torna-se internalizada dentro doaparelhodoEstadocomtodasasformasdeefeitosimprevisíveis.Emsegundolugar,aexperiênciasugereque o grau de controle é inversamente proporcional ao sucesso da empresa. A inovação e areestruturaçãoburocratizadassãoumprocessomenosvigorosoemenosviávelparadesenvolvernovasformasdecapitalismodoqueaversãodo“mercadolivre”(esboçadanaseçãoV).Suaúnicavirtude,éclaro,éofatodeissopermitirqueospioresaspectosdocrashsejamcontrolados.

Existeumconsideráveldebatenoscírculosmarxistassobreseascrisesdevemserencaradascomoquestões cíclicas temporárias, culminando talvez no desenlace da catástrofe capitalista, ou comodeclínios seculares de longo prazo, caracterizados pela degeneração gradual e a fraqueza diante dasexplosivas contradições internas. O “segundo recorte” da teoria da crise diferencia entre crashesperiódicos, que são sempre o catalisador para a transformação interna do capitalismo (e talvez,finalmente, para a transição para o socialismo), e os problemas de longo prazo que surgem com atransformaçãoirreversíveldasconfiguraçõesnacirculaçãodocapital,naformaçãodeclasse,nasforçasprodutivas, nas instituições etc. Estas últimas, como observou Marx, são fortemente afetadas pelacrescente socialização do próprio capital, primeiro via a ação do sistema de crédito e, finalmente,atravésdeintervençõessocialmentenecessáriasporpartedoEstado.Ocaráterdoscrashesperiódicosétambém transformado. Em vez de serem o efeito social agregado de um processo essencialmenteatomístico,individualizado,desdeoiníciosetornamumaquestãosocial.OEstado,tendoemvistasuaspolíticas,torna-seresponsávelpelacriaçãodoqueesperaquesejauma“recessãocontrolada”queteráumefeitodelongoprazodecolocaraacumulaçãodevoltanoseixos.

As opções para a transformação interna do capitalismo tornam-se cada vez mais limitadas,confinadasainovaçõesdentrodopróprioaparatodoEstado.EquandoolimitedacapacidadedoEstadoparaadministrardeformacriativaaeconomiaéalcançado,ousocrescentementeautoritáriodopoderdoEstado – tanto sobre o capital quanto sobre o trabalho (embora em geral com efeitos bem maisdevastadores sobre o último) – parece ser a única resposta. As crises abrangem a estrutura leal,institucional e política da sociedade capitalista e sua resolução depende cada vez mais dodesdobramentodopodermilitare repressivo.Todaaproblemáticada transformaçãodocapitalismo–sejapormeiosevolucionáriosourevolucionários–éalterada.Osproblemaseasperspectivasparaatransiçãoparaosocialismomudamdramaticamente.

Essasmudançasassumemumsignificadoaindamaisextremoquandoabandonamosaconcepçãodeum sistema fechado e consideramos os aspectos internacionais da formação da crise. O poderdisciplinadordo“dinheiromundial”–aindaqueeleestejaconstituído–easrelaçõescomplexasentreosdiferentessistemasmonetáriostornam-seopanodefundoparaamobilidadedocapitaledotrabalhonocenáriomundial.Ascrisesdesemaranham-sequandoEstadosrivais,controladospordiferentessistemasmonetários,competemunscomosoutrossobrequemvaisuportaropesodadesvalorização.Alutaparaexportarainflação,odesemprego,acapacidadeprodutivaociosa,asmercadoriasemexcessoetc.torna-seocentrodapolíticanacional.Oscustosdascrisessãodisseminadosdiferentementesegundoopoderfinanceiro,econômico,políticoe financeirodosEstados rivais.Aguerra,comoLenin insiste, torna-seumadaspotenciaissoluçõesparaacrisecapitalista(ummeiodedesvalorizaçãoesplêndidoeimediatomediante a destruição). O imperialismo e o neocolonialismo, assim como a dominação financeira,

Page 305: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

tornam-se uma questão central na economia global do capitalismo. Abordaremos tais questões nocapítulo13.

[1]VerodebateentreRobertFitcheMaryOpenheimer(“WhoRulestheCorporations?”,emSocialistRevolution,v.1,n.4,p.73-107;n.5,p.61-144;n.6,p.33-94),alémdePaulSweezy(“TheResurgenceofFinancialControl:FactorFancy?”,emMonthlyReview,1971,v.23,n.6,p.1-33)eseusváriosecosemEdwardHerman(“DoBankersControlCorporations?”,emMonthlyReview,1973,v.25,n.1,p.12-29;“KotzonBankerControl”, emMonthlyReview, 1979, v. 31, n. 4, p. 46-57) eDavidKotz (BankControl of LargeCorporations in theUnitedStates,Berkeley,UniversityofCaliforniaPress,1978).

[2]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.368.

[3]Ibidem,p.508.

[4]Ibidem,p.609.

[5]Idem,Grundrisse,cit.,p.521.

[6]Ibidem,p.726.

[7]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.386-90.

[8]Ibidem,p.478.

[9]Ibidem,p.545.

[10]Ibidem,p.470.

[11]Ibidem,p.348-41.

[12] Vladimir I. Lenin, Selected Works, cit., v. 1, p. 703. As citações subsequentes são todas de Imperialism, the Highest Stage ofCapitalism.

[13] JohnHobson, Imperialism (AnnArbor, University ofMichigan Press, 1965); Rudolf Hilferding,Le capital financier, cit.; e NicolaiBukharin, “Imperialism and the Accumulation of Capital”, cit. A obra de Nicolai Bukharin foi publicada depois da de Lenin, mas foipresumivelmenteinfluente,poisLeninescreveuumprefácioparaelacercadeumanoantesdepublicarsuaprópriaobrasobreoassunto.Aextensiva leitura de consulta de Lenin, patente em seus cadernos de anotação, está documentada por Lloyd Churchward, “Towards theUnderstanding of Lenin’s Imperialism”, Australian Jornal of Politics and History, 1959, e a contribuição de Hobson foi criticamenteexaminadaporGiovanniArrighi,TheGeometryofImperialism(Londres,NLB,1978).

[14]Vladimir.I.Lenin,SelectedWorks,cit.,v.1,p.678.AsconcepçõesdeLeninsobreasdeficiênciasdaobradeRudolfHilferdingestãoapresentadasemLloydChurchward,“TowardstheUnderstandingofLenin’sImperialism”,cit.,p.79.

[15]RudolfHilferding,Lecapitalfinancier,cit.,p.409.

[16]Ibidem,cap.17.

[17]Ibidem,p.401.

[18]Ibidem,p.372.

[19]LloydChurchward(“TowardstheUnderstandingofLenin’sImperialism”,cit.,p.78)indicaqueLeninatéquestionouoconceitobásicodecapitalfinanceirodeRudolfHilferding,escrevendoemseuscadernosdeanotações“Capitalfinanceiro=capitalbancárionãoésuficiente?”.AdiferençaentreJohnHobsoneRudolfHilferdingéenfatizadaporGiovanniArrighi,TheGeometryofImperialism,cit.

[20]SuzanneDeBrunhoff,L’offredemonnaie,cit.,p.81-93.

[21]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.592.

[22]Ibidem,p.572-3.

[23]Ibidem,p.606.

[24]Ibidem,p.574.

[25]Ibidem,p.516.

[26]Ibidem,p.543.

[27]Ibidem,p.505.

[28]Ibidem,p.490.

Page 306: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[29]Ibidem,p.460.

[30]Ibidem,p.490.

[31]Ibidem,p.517.

[32]Ibidem,p.507.

[33]Ibidem,p.495.

[34]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.509.

[35]VerAdamSmith,AnInquiryintotheNatureandCausesoftheWealthofNations(NovaYork,TheModernLibrary,1937[ed.bras.:Investigaçãosobreanaturezaeascausasdariquezadasnações,SãoPaulo,AbrilCultural,1974]),JohnWilson,“ANoteonMarxandtheTradeCycle”,ReviewofEconomicStudies,1938,eHowardSherman,“MarxandtheBusinessCycle”,ScienceandSociety,1967.

[36]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.358.

[37]Ibidem,p.315.

[38]Ibidem,p.488.

[39]Ibidem,p.360.

[40]Ibidem,p.490.

[41]Ibidem,LivroI,p.211.

[42]Ibidem,LivroIII,p.483.

[43]OsprimeirosescritosdeMichalKalecki(SelectedEssaysontheDynamicsoftheCapitalistEconomy,cit.)sobreociclodosnegóciosdurante a década de 1930 inspiraram fortemente Marx quando este chegava a resultados próximos aos de Keynes. Toda a questão damoldagemdadinâmicadosagregadosmarxianosfoirenovadanadécadade1960edesdeentãotemsidoumpontodeinteresseparaaquelesinclinados àmatemática. Ver Howard Sherman, “Marx and the Business Cycle”, cit., TomWeisskopf, “Marxist Perspectives on CyclicalCrises”,U.S.CapitalisminCrisis,NovaYork,UnionofRadicalPoliticalEconomics,1978,easapresentaçõesaltamentematemáticasdeMichioMorishima,Marx’sEconomics,cit.

[44]SuzanneDeBrunhoff,emseucitadoTheState,CapitalandEconomicPolicy, fazumadasmelhores apresentaçõescom respeito àinteraçãodasquestõesdodinheiroedasfinançascomofuncionamentodoEstadocapitalista.

[45]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.98.

[46] Algumas informações são apresentadas por Suzanne De Brunhoff, The State, Capital and Economic Policy, cit., e Les rapportsd’argent,cit.,enquantoPierreVilarconstróiumahistóriafascinanteemseuAHistoryofGoldandMoney,cit.

[47]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.542.

[48]MarxésurpreendentementerespeitosocomrelaçãoaoestudopioneirodeTookesobreosmovimentosdopreço–umtemaquedesdeentãocontinuasendoobjetodeinteressedahistóriaeconômicaburguesa.

[49]Ibidem,LivroI,cap.13.

[50] As teorias da inflaçãomarxistas explícitas são surpreendentemente escassas sobre essa questão. J. Harvey, “Theories of Inflation”,Marxism Today, jan. 1977, e Robert Rowthorn,Capitalism, Conflict and Inflation, cit., são leituras básicas, enquanto O. Jacobi et al.(“Problems inMarxist Theories of Inflation”,Kapitalistate, 1975) examinam alguns dos problemas que estão ligados a várias abordagensmarxistas sobre o assunto. Para análises a partir de ângulos bem diferentes, ver Howard Sherman, Stagflation: a Radical Theory ofUnemploymentandInflation(NovaYork,Harper&Row,1976);PaulSweezyeHarryMagdoff,TheDynamicsofU.S.Capitalism(NovaYork,MonthlyReviewPress,1972);SuzanneDeBrunhoff,Lesrapportsd’argent,cit.;BenFine,“WorldEconomicCrisisandInflation”,emF. Green e P. Nore (orgs.), Issues in Political Economy: A Critical Approach (Londres, Macmillan, 1979); Paul Mattick, Economics,PoliticsandtheAgeofInflation(WhitePlains,M.E.Sharpe,1980)eErnestMandel,TheSecondSlump(Londres,NLB,1978).

[51]Como indicaLaurenceHarris em“TheRoleofMoney in theEconomy”, cit., tantoosmonetaristasquantooskeynesianos aceitamamesma teoria básica do dinheiro, que é essencialmente uma teoria da quantidade. As políticas keynesianas sempre contêm uma forteperspectivamonetaristaporqueobancocentraltemdedesempenharoseupapelapropriadoparaaspolíticasteremqualquerchancedeobtersucessoemcurtoprazo.OquedivideosmonetaristaseoskeynesianoséograudeliberdadedeaçãopermitidoaoEstadonadeterminaçãodosalvosfiscaisemonetários.

[52]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,cap.17.Cf.nestevolumep.154.

[53]MichalKalecki,emseuSelectedEssaysontheDynamicsoftheCapitalistEconomy,cit.,foiprovavelmenteoprimeiroaidentificaraprobabilidadedemanipulaçãopolíticadociclodosnegócios.RafordBoddyeJamesCrotty,nocitado“ClassConflictandMacro-Policy: thePoliticalBusinessCycle”,retomamessaideianocontextodeumateoriado“esmagamentodolucro”,querejeitamosanteriormente(p.104-7).

[54]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.680.

Page 307: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[55]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.491.

[56]Ibidem,p.508.

[57]Ibidem,LivroII,p.340.

[58]A“CurvadePhillips”serefereàobservaçãoempíricadeque,durantepelomenosalgunsanos,existiuumrelacionamentoinversoentreosaumentosdataxasalarialeoníveldedesemprego.Estefoientãoexploradonaproposiçãoteóricageraldequeháumacordoentreoníveldedesempregoeainflação.Ascircunstânciasdadécadade1970,quandoodesempregoeainflaçãoaumentaramjuntos,questionaramtodooargumento,verBenFine,“WorldEconomicCrisisandInflation”,cit.

[a]Grupodepensadoresespecialistasquesereúnemparadebaterumdeterminadoassunto.(N.T.)

[59]Leninponderouseessadefiniçãoseriasuficienteemumdeterminadomomento;verLloydChurchward,“TowardstheUnderstandingofLenin’s Imperialism”, cit. Essa definição prática está por trás da perspectiva de Robert Fitch e Mary Openheimer em “Who Rules theCorporations?”,cit.

[60]G.WilliamDomhoff,ThePowersThatBe:ProcessesofRuling-ClassDominationinAmerica(NovaYork,RandomHouse,1978),eJonathan Zeitlin, “Craft Control and the Division of Labour: Engineers and Compositors in Britain, 1890-1930”, Cambridge Journal ofEconomics,1974,proporcionaminformaçõesdetalhadassobreesseponto.

[61]Ver o intercâmbio entreRobert Fitch eMaryOpenheimer, “WhoRules theCorporations?”, cit., e Paul Sweezy, “TheResurgence ofFinancialControl:FactorFancy?”,cit.

[62]PorissosouextremamentefavorávelàdefiniçãodecapitalfinanceiroapresentadaporG.Thompsonem“TheRelationshipBetweentheFinancialandIndustrialSectorintheUnitedKingdomEconomy”,EconomyandSociety,1977,p.247,como“umacombinaçãoarticuladadecapitalcomercial,capitalindustrialecapitalbancário”dentrodaqualocapitalbancárioédominante,masnãodeterminante.

[63]RudolfHilferding,naprática,tendeaincluiroEstadoemsuateoriadocapitalfinanceiro,poisaunidadedocapitalbancárioedocapitalindustrial é conseguida dentro do Estado-nação. Tal formulação cria problemas, porque as finanças internacionais são às vezes de basenacionaleàsvezessupranacionalemsuaformadeorganização.AconexãoentreasfinançaseoEstadotemevidentementeumanaturezamuito complexa – verSuzanneDeBrunhoff,The State,Capital andEconomicPolicy, cit., e JohnHolloway e Sol Picciotto,State andCapital:aMarxistDebate,cit.

[64]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.438-41.

[65]OestudodeNicolaiBukharin,“ImperialismandtheAccumulationofCapital”,cit.,sobreImperialismandtheWorldEconomyexploramuitoessepontoemereceumestudocuidadoso.

[66]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.230.

[67]Idem,AContributiontotheCritiqueofPoliticalEconomy,cit.,p.21.

Page 308: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

11.Ateoriadarenda

A teoria da renda, é justo dizer, perturbou profundamente Marx. Ele procurou realizar “uma análisecientíficadarendafundiáriaedaformaeconômicaespecíficadapropriedadedaterratendoporbaseomodo de produção capitalista” em sua “forma pura, isenta de todas as irrelevâncias distorcidas econfusas”[1].Mas seus escritos sobre o assunto, todos publicados postumamente, são em suamaioriapensamentos incipientes escritos no processo da descoberta. Como tais, eles frequentemente parecemcontraditórios. As formulações nas Teorias do mais-valor diferem substancialmente das poucaspassagensaprimoradasn’Ocapital,aopassoquesuaanálisenestaúltimaobra,emboraextensivaecomfrequênciapenetrante,éprejudicadaporalgumasdificuldadesquenãocedemfacilmenteàmágicadoseutoque. O resultado é uma boa quantidade de confusão e uma controvérsia imensa e continuada entreaquelaspoucasalmasaudazesquetentaramabrircaminhopelocampominadodeseusescritossobreoassunto[2].

Arenda,naanálisefinal,ésimplesmenteumpagamentofeitoaosproprietáriospelodireitodeusaraterra e seus pertences (os recursos nela incorporados, os prédios nela construídos etc.). A terra,concebidanessesentidomuitoamplo,evidentementetemtantovalordeusoquantovalordetroca.Então,seráqueelatemtambémumvalor?Setem,comoaexistênciadessevalorpodeserconciliadocomasteoriasdovalorquesebaseiamnotempodetrabalhoincorporado(comoadeRicardo)ou,nocasodeMarx,notempodetrabalhosocialmentenecessário?

As melhoras incorporadas na terra são, certamente, resultado do trabalho humano. Casas, lojas,fábricas,estradaseassimpordiantepodemserproduzidascomomercadoriase,porisso,tratadascomovaloresnocursodacirculaçãomedianteoambienteconstruído(vercapítulo8).Umcomponentedarendapodeentãosertratadocomoumcasoespecialdejurossobreocapitalfixoousobreofundodeconsumo.Apartedarendaquegeraoproblemaéosimplespagamentodaterrabruta,independentedasmelhoriasaela incorporadas.Marx se refere a essecomponente como renda fundiária.A seguir, amenos que deoutromodoespecificado, trataremosa renda fundiáriacomo rendaeassumiremosqueo juro sobreasmelhoriaséexplicadodeoutraforma.

Evidentemente,Marxinsistequeospagamentosdealuguelnãosãofeitosàterraequeasrendasnãocrescemdosolo.Pagamentosdesse tiposãofeitosaosproprietárioseseriamimpossíveissema trocageral de mercadorias, a plena monetização da economia e todas as armadilhas legais e jurídicas da

Page 309: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

propriedadeprivadanaterra.Maseletambémestáconscientedequeessabaselegalnadadecideequetodaaexplicaçãodarendatemdetornarcompatívelumpagamentofeitoostensivamenteàterracomumateoriadovalorqueseconcentranotrabalho.

Marxconseguiuvermuito claramenteondeRicardohavia se equivocadoaobuscar respostasparaessaquestão.Masnãoconseguiudescobrircompletamentecomosuperaramesmadificuldade.Eletinhaum forte preconceito em admitir os fatos da distribuição no cerne da sua teorização e era fortementeinclinadoatratararendacomoumasimplesrelaçãodedistribuiçãoenãodeprodução.Masasrelaçõesdedistribuiçãopodem,comodemonstraocasodojuro,ocuparpapéisdecoordenaçãoestratégicadentrodomododeproduçãocapitalista.Acirculaçãodocapitalquerendejurosnãoproduzvalordiretamente,masajudaacoordenaraproduçãodevalorexcedente(repleto,éclaro,detodasassuascontradições).Então, será que a circulação do capital em busca da renda poderia desempenhar um papel decoordenação análogo?Vou tentarmostrarmais adiante que uma resposta positiva a essa questão estáprofundamenteenraizadanosescritosdeMarx,queacirculação“adequada”docapitalmedianteousodaterrae,porisso,todooprocessodemoldagemdeumaorganizaçãoespacial“apropriada”dasatividades(repletadecontradições)estãoajustadosaofuncionamentodosmercadosfundiários,queporsuavezsebaseiamnacapacidadedeseapropriardarenda.Comoocapitalquerendejuros,aapropriaçãodarendatempapéispositivosenegativosadesempenharemrelaçãoàacumulação.Suasfunçõesdecoordenaçãosão adquiridas à custa de permitir formas insanas de especulação da terra. Mas tal argumento édificilmente perceptível nos textos deMarx, e ele parece extremamente relutante em admitir qualquerpapelpositivoparaoproprietáriodeterranocapitalismo.

Seusdilemasaquipodememparteremontaràsualutaeternacomaeconomiapolíticaclássica.Osricardianosdescreviamossenhoresdeterracomoparasitas,comoremanescentesinúteisesupérfluosdaera feudal.Malthus concedeu-lhesumpapelmaispositivo, comoconsumidores e, portanto, comoumafontededemandaefetiva.OndeMarxsecolocariaemtudoisso?Eleobviamentenãoqueriasecolocarno campodeMalthus.Comopoderia se distanciar deRicardo semparecer apoiarMalthus?Por isso,coloca-seabertamentedoladodeRicardo.Masissoentãolheapresentaumdilema.Porumlado,elenãopode tratar o senhor de terra comoumagente parasítico, puramentepassivo, apropriando-sedomais-valor semdarnadaem troca;poroutro, apresentaumabase teóricaparaa apropriaçãocontinuadadarenda no capitalismo e para a reprodução social de uma classe distinta de proprietários.Quando eleconsidera a propriedade da terra nesse último aspecto, é difícil evitar a conclusão de que a rendaenvolve algo mais que uma simples relação de distribuição e que existe algum tipo de relação deproduçãodentroouportrásdela.

Éclaroqueelesabiamuitobemqueapropriedadeda terradesempenhavaumpapelvitalnaquelainicial“distribuiçãoquedeterminaaprodução”queseparavaotrabalhodosmeiosdeproduçãonaterra.Mastambémocultaasuspeitadeque“apropriedadedaterradiferedeoutrostiposdepropriedade,poisparecesupérfluaeprejudicialemdeterminadoestágiododesenvolvimento,atémesmodopontodevistadomododeproduçãocapitalista”[3].Portrásdoambíguoverbo“parece”estáaideiamaisassertivadeque isso na verdade poderia acontecer. E essa visão adquire alguma força quando ele constrói suajustificativa. Se a relação de classe dominante é aquela entre o capital e o trabalho, então “ascircunstânciassobasquaisocapitalistaporsuavezcompartilhaumapartedo[…]mais-valorqueelecaptoucomumaterceirapessoa,nãotrabalhadora,sãoapenasdeimportânciasecundária”[4].E,seissonão for suficientemente explícito, elemais adiante fala da “reduçãoad absurdum da propriedade emterra” e da total separação do proprietário de terra do controle da terra como uma das “grandes

Page 310: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

realizaçõesdomododeproduçãocapitalista”[5].Poderíamosmuitobemimaginar,éclaro,oqueimpeleocapitalacompartilharseusfrutoscomum

grupo social tão reduzido.Entretanto,maisperturbador ainda, lemosnamesmapáginaquea rendadosoloéaquela“formaemqueapropriedadenaterra[…]produzvalor”e,aindamaissurpreendentemente,que“temosaqui,então,todasastrêsclasses–ostrabalhadoresassalariados,oscapitalistasindustriaiseossenhoresdeterraconstituindojuntos,eemsuaoposiçãomútua,aestruturadasociedademoderna”.Eesteúltimopensamentoécomentadonocapítulosobre“classes”,queEngelscolocanofimd’Ocapital.Parecemuito estranho de ser dito, no término de um trabalho que desenvolveu uma interpretação dadinâmicadocapitalismotendoporbasearelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalho,quenaverdadetrêsclassesconstituama“estruturadasociedademoderna”.

Emquesentido,então,apropriedadedaterra“produzvalor”quandoaprópriaterra,pordefinição,nãoéumafontedevalor?Equaléaexataposiçãodeclassedosproprietáriosde terradentrodeummododeproduçãocapitalistadesprovidode todas as “irrelevânciasdistorcidas e confusas”?A rendaopõeapropriedadedaterraaoscapitalistas,aostrabalhadoresouaambos?Aapropriaçãodarenda,emsuma,envolveaexploraçãodequem,eporquem[6]?

Asrespostasaessasperguntassãomuitodifíceisdelocalizardevidoaummundodeaparênciasquefazparecerquevários fatoresdeprodução–a terra,o trabalhoeocapital– sãodotadosdepoderesmágicosqueostransformamemfontedevalor.Marx,comosepoderiaesperar,éomaismordazpossívelaotratardessasnoçõesfetichistas[7].Entretanto,ele tambémadmitequeé“natural”paraosprodutores“se sentirem completamente à vontade nas formas alienadas e irracionais do juro sobre o capital, doarrendamentodaterra,dossaláriosdotrabalhador,poisestassãoexatamenteasformasdeilusãoemqueelessemovemeencontramsuaocupaçãodiária”.Osprodutores individuaispodemsepermitircuidarapenasdolucroqueobtêmsobreeacimadoquepagamemsalários,juros,rendaecapitalconstante[8].Arendaquepagamésuficientementereal,esuareaçãoaoquenaverdadepodeserumacategoriafetichistatemefeitosbastante reaisque têmdeserconsiderados.Munidoda teoriadovalor, é fácil removerosfetichismosnecessáriosquecaracterizamaexperiênciadiária,masasquestõesnãoparampor aí.Eodesafioteóricoédefinirumateoriadarendadaterracoerentecomaestruturadaprópriateoriadovalor.Essaéatarefaimediataquesetemàmão.

Abordareioproblemaemestágios.Começareipelovalordeusodaterra.Estepodeserconsideradocomoumpontodepartidaumpoucoincongruente,masnãoconstituiriscoseforbementendidoqueasqualidadesmateriaisestãosendoaquiexaminadasemseuaspectosocial.Voudepoisexaminaropapeldapropriedadeda terranahistóriadocapitalismopara tentar identificara formarealmentecapitalistadapossedaterra.Asduasprimeirasseçõeslançamasbaseseonecessáriopanodefundoparaadissecaçãodasformasderenda,opapelcontraditóriodapropriedadedaterranomododeproduçãocapitalistaeasconsequenteslutasdistribucionaisquesurgementreocapitalistaeoproprietáriodeterra.Aúltimaseçãoconsideraapropriedadedaterracomoumaformade“capitalfictício”queoperaemmercadosdeterraetenta, tendo isso por base, uma plena justificativa para a existência da renda do solo em virtude dasfunçõesdecoordenaçãoqueeleexercenaalocaçãoda terraparausosenamoldagemdaorganizaçãogeográficademodosquerefletemacompetiçãoesãoreceptíveisàacumulação.Essespapéispositivosdapropriedadeda terra têmconsequênciasnegativas.Masabasesocialparaosproprietáriosde terracomoumafacçãodocapitalemgeralficacomissodefinida.

Page 311: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

I.OVALORDEUSODATERRAAterraeotrabalhadorconstituem“osmananciaisdetodaariqueza”[9].Emseuestadovirgem,aterraéo“objetouniversaldotrabalhohumano”,a“condiçãooriginal”detodaproduçãoeorepositóriodeumavariedadeaparentemente infinitadospotenciaisvaloresdeuso“espontaneamenteproporcionadospelanatureza”[10].Entretanto,essaconcepçãouniversalsóéútilnamedidaemqueindicaascondiçõesqueocapitaldeveenfrentaroumodificar.Ovalordeusodaterraedeseuspertencestemdeserconsideradoemrelaçãoaomododeproduçãocapitalista.

Aspessoasprivadaspodem,segundoasleisdapropriedadeprivada,adquirirpoderesdemonopólio“sobreporçõesdefinidasdoglobo,comoesferasexclusivasdesuavontadeprivadacomaexclusãodetodasasoutras”[11].Comoaterraémonopolizávelealienável,elapodeserarrendadaouvendidacomoumamercadoria.Surgemalgumascircunstânciasemqueosdireitosclarosdapropriedadeprivadasãodifíceis de estabelecer – o ar,movendo a água e os peixes que ali nadam, por exemplo.Não vamosconsideraressesproblemasaqui.

Aprópria terra tambémnãoéumbemnãoreprodutível.Aocontrário,algunsvaloresdeusos(masnemtodos)nelaincorporadossãonãoapenasreproduzíveis,maspodemsercriadosmedianteaproduçãodemercadorias (fábricas, aterros, casas, lojas etc.). A quantidade de terra de umEstado adequada adeterminados tipos de atividade humana pode ser alterada mediante a criação de valores de uso noambiente construído. Mas a quantidade total de terra na superfície da terra não pode sersignificativamenteaumentadaoudiminuídamedianteaaçãohumana(emboraarecuperaçãodomarpossaserimportantenoâmbitolocal).

Quando vamos alémdesses pontosmuito genéricos, uma série de distinções sutis surge entre, porexemplo, valores de uso totalmente “naturais” e aqueles criados pela ação humana, ou o uso da terraativamenteparaaproduçãoeaextraçãoversusa terrausadasimplesmentecomoumespaço[12].Marxdeclaraqueapropriedadeda terra“exigeoseu tributo”emtodosessessentidos.Entretanto, temosdepartirdealgumlugar,eentãovamoscomeçarcomaúltimadessasdistinções.

1.Aterracomoabaseparaareproduçãoeaextração

Os valores de uso que a terra contém podem ser extraídos (como acontece com os minerais),mobilizados na produção como “forças da natureza” (a energia eólica e hidráulica, por exemplo) ouutilizados como a base para reprodução contínua (como na agricultura e na silvicultura). Nos doisprimeiros casos podemos designar os valores de uso como condições ou elementos da produção. Aagriculturaédealgumaformaespecial.Aterraaquinãoapenassupreumestoquedenutrientesaseremconvertidos pelo cultivo das plantas e pela pecuária em alimentos e diversas matérias-primas, mastambémfuncionacomouminstrumentooumeiodeprodução.Oprocessodaproduçãoestáparcialmenteincorporadodentrodoprópriosolo[13].

Acondiçãomaterialnãoéabaseparaaapropriaçãodarenda.GrandepartedaanálisedeMarxdarenda agrícola está dedicada a atacar essa concepção equivocada e explicar como ela pode surgir.Adistinção entre osmeios de produçãoproduzidos e nãoproduzidos sugere uma base válida para umadistinçãoentreolucrosobreocapital(encaradocomomeiodeproduçãoproduzido)earendadaterra(considerada como ummeio de produção não produtivo). Esta é, como declaraMarx, uma dasmaisdifundidas de todas as ilusões dentro da economia política burguesa[14]. Ela implica que “as rendas

Page 312: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

crescem do solo” e que a terra tem valor mesmo que não seja o produto de trabalho humano –proposiçõesquesãotãoinconsistentescomateoriadovalordeRicardoquantosãocomaqueladeMarx.Mas observamos como tal ilusão pode surgir. Marx declara, em contraste, que o principal traço dapropriedadedaterranocapitalismoéatotalseparaçãoda“terracomouminstrumentodeproduçãonapropriedade em relação ao proprietário”[15]. Somente o capital comanda os meios de produção, nãoimportandoseessesmeiosestãoincorporadosnosoloounafábrica.Issopresume,éclaro,queasformasintermediáriasdapropriedade(comoodireitodepropriedadedocamponês)deramlugaraummododeproduçãopuramentecapitalistasobreaterra(veraseçãoII,maisadiante).

Osvaloresdeusonaterraesobreaterrasão“donsgratuitosdanatureza”evariamemgrandeparteem sua quantidade e qualidade. Por isso, a produtividade física da força de trabalho varia segundocircunstâncias naturais, que são monopolizáveis e não reprodutíveis. O mais-valor relativo (lucrosexcedentes)podeseracumuladopeloscapitalistascomacessoaosvaloresdeusodequalidadesuperior–recursosmineraisfacilmenteextraídos,poderosas“forçasdanatureza”outerradotadadefertilidadenaturalsuperior.Entretanto,omais-valorrelativoéumdispositivopermanente,emcomparaçãocomocasonormalemque sóéatingido transitoriamentepormeiodeumavantagem tecnológicaefêmera[16].Essadistinçãoéimportantenoentendimentodabaseparaarenda.

A ilustraçãoqueMarx apresenta é instrutiva.Umcapitalista usaumaquedad’água (quenão é umproduto do trabalho humano), enquanto outro usa o carvão (um produto do trabalho humano) parafornecer energia às máquinas. Qualquer capitalista pode se dirigir ao mercado e adquirir carvão emáquinas. Mas a queda d’água “é uma força da natureza monopolizável que […] está apenas sob ocomando daqueles que têm à sua disposição determinadas porções da terra e seus pertences”. Alémdisso, os fabricantes que possuem quedas d’água estão em posição de “excluir aqueles que não aspossuem de utilizar essa força natural, porque a terra, e particularmente a terra dotada de energiahidráulica,éescassa”[17].Esses fabricantesestãoemposiçãode receber lucrosextraseternamenteemvirtudedasvantagensnaturaisdasquaisdesfrutam.Osproprietáriosdeterrapodemseapropriardesseslucrosexcedenteseconvertê-losemrendasfundiáriassemdemodoalgumdiminuirolucromédio.

O nível do lucro excedente (e, em consequência, da renda) é fixado pela diferença entre aprodutividade individual e a produtividade e o preço da produçãomédios prevalecentes na indústria.Deveserenfatizadoqueaforçanatural“nãoéafontedo lucroexcedente,massuabasenatural”,eoslucrosexcedentesexistiriammesmosemsuaconversãoem renda fundiária.Acirculaçãodocapital, enãoapropriedadedaterra,éofatorativonesseprocesso.Entretanto,seopreçomédiodaproduçãocairabaixo desse alcançável, mesmo com a ajuda dos “dons gratuitos” da Natureza, então este último setornará inútil (da maneira em que os motores a vapor eliminaram a roda hidráulica). Por isso, a“permanência” dos lucros excedentes deve ser julgada em relação aos processos gerais da mudançatecnológica.

Isso nos evoca a questão geral damodificação das “forças naturais” pela ação humana.O solo écapaz de modificação de maneiras muito importantes para a produtividade agrícola. Essa forma demudançatecnológicanosolocomomeiodeproduçãotemalgumascaracterísticasmuitopeculiares.Elaemgeralsópodeserrealizadalentamente–umfatoquenavisãodosrelatosdeMarxéresponsávelpelomenos emparte pelo ritmo relativamente lento damudança tecnológica na agricultura em comparaçãocomaindústria[18].Nãoobstante,ocapital“podeserfixadonaterra,nelaincorporadodeumamaneiratransitória,sejamediantemelhoriasnanaturezaquímica,nafertilizaçãoetc.,ou,maispermanente,comonoscanaisdedrenagem,nostrabalhosdeirrigação,nivelação,construçõesruraisetc.”[19].Essecapitalé

Page 313: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

chamadodecapitalfundiário,umaformaparticulardecapitalfixoquecirculaeésupostamenteutilizadadamaneiranormal(vercapítulo8).Essecapitalfixodeveacumularojuromínimo.

Considere, agora, as implicações desses investimentos para a fertilidade do solo. A fertilidade,devemos começar observando, “sempre implica uma relação econômica, uma relação com o nível dedesenvolvimentoquímicoemecâniconaagriculturae,porisso,mudacomoníveldedesenvolvimento”.Afertilidadepodeserotimizada“porumamelhoriacriadaartificialmentenacomposiçãodosoloouporumameramudançanosmétodosagrícolas”[20].Considereaprimeiradessasduaspossibilidades.Duaspeculiaridades imediatamentesedestacam.Investimentosbem-sucedidos têmacapacidadedecriarumaooutro e degerarmelhorias permanentes. Investimentos bem-sucedidosnomaquinário, ao contrário,não têm esse efeito.Na verdade, as revoluções tecnológicas na indústria com frequência envolvem adesvalorização de equipamentos antigos. As melhorias do solo não são sujeitas a desvalorização damesma maneira. O solo, “se adequadamente tratado, melhora o tempo todo”[21]. Por isso, ascircunstânciasquedestroemascapacidadesprodutivasdaterranãosãocomparáveisàquelasquereinamnaindústria[22].

A segunda peculiaridade surge porque a melhoria permanente em um pedaço de terra em geralsignificacriar“taispropriedadescomosepertencessemnaturalmenteaalgunsoutrospedaçosdeterraemoutros lugares”[23]. O capital cria em um lugar condições de produção que são dádivas gratuitas danaturezaemoutros.Olimiteentreojurosobreocapitalearendasobreaterrapareceumtantoindistintoaté o investimento ser amortizado, quando qualquer melhoria permanente se torna um bem livre e,portanto,emprincípionãodiferentededádivasgratuitasdanatureza.“Porisso,aprodutividadedaterraproduzidapelocapitalmaistardecoincidecomsuaprodutividade‘natural’,eporissoaumentaarenda.”Nessaárea,MarxseopõeàvisãodeRicardodequearendaéumpagamentopelos“poderesoriginaiseindestrutíveisdosolo”,porqueessespoderessãotantooprodutodahistóriaquantodanatureza.

2.Espaço,lugarelocalização

Arendaéaqueleconceito teóricomedianteoqualaeconomia (dequalquer tipo) tradicionalmenteenfrentaoproblemadaorganizaçãoespacial.Mostraremosmais adiantequea rendaproporcionaumabase para várias formas de controle social sobre a organização social e o desenvolvimento docapitalismo. Isso pode acontecer porque a terra serve não apenas como um meio de produção, mastambémcomouma“fundação,comoumlugareumespaçoqueproporcionaumabasedeoperações”–oespaçoérequeridocomoumelementodetodaproduçãoeatividadehumana[24].

Marx não cuidou sistematicamente do valor de uso do espaço, mas há várias referências a eleespalhadasportodaasuaobra.Seutratamentodelen’Ocapital,porexemplo,ébaseadonopurobomsenso,semapeloanenhumateoriaparticulardoespaço.Masalgunsprincípiosteóricosestãoindicados:exatamente quais é umaquestão que tem confundido e dividido aqueles preocupados como problemadesde então[25]. As dificuldades são mais aparentes que reais. Sua solução está prontamente à mãoquandovoltamosaosconceitosbásicosdevalordeuso,valordetrocaevalor.

Lembre-sedequeumvalordeuso“nãoéumacoisafeitadear”,maslimitadapelas“propriedadesfísicasdasmercadorias”.Aspropriedadesespaciaisdelocalização,situação,forma,tamanho,dimensãoetc.devemserrevistas,primeiramente,comoatributosmateriaisdetodososvaloresdeusosemexceção.Epoderíamos,sequiséssemos,igualartodososobjetos“soboaspectodoespaço”,distingui-los“comopontos diferentes no espaço” e examinar as relações espaciais entre eles[26]. Mas as propriedades

Page 314: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

materiaisdosvaloresdeuso“sóchamamanossaatençãonamedidaemqueafetamautilidade[…]dasmercadorias”.Nofim,oquecontaéoaspectosocialdosvaloresdeuso.Masnãoconseguimosentenderesse aspecto social dosvaloresdeusonocapitalismo independentementeda troca eda formaçãodosvalores.

Observamos, então, que asmercadorias “têmde ser levadas aomercado” para a troca (embora acomercializaçãodostítulospossaocorreremumlocal),eisso,afinal,envolveummovimentofísiconoespaço.Esteúltimoéessencialparaaformaçãodospreços.Namedidaemqueatrocasetornageraleéaperfeiçoada,acirculaçãodasmercadorias“explodemediantetodasasrestriçõesemrelaçãoaotempo,ao local e aos indivíduos”. Os preços formam o que reflete as condições da produção em diversoslugaresemcondiçõesvariadasdetrabalhoconcreto.Oprocessodatrocaestá,emsuma,eternamenteseabstraindodasespecificidadesdolugarpormeiodaformaçãodopreço.Issopavimentaocaminhoparaaconceituaçãodosvaloresindependemdolugar.Otrabalhoabstratoincorporadoemlugaresparticularessobcondiçõesconcretasespecíficaséumamédiasocialextraídadetodasaslocalizaçõesecondições.

A acumulação do capital envolve a expansão do valor no decorrer do tempo. À primeira vistapareceria que o espaço pode ser seguramente deixado de lado emuma análise desse tipo.Entretanto,desprovida do seu ponto de referência material tanto nos valores de uso quanto no dinheiro, aacumulaçãosópoderiaserrepresentadaidealmente,emvezdematerialmente.Oeixoemtornodoqualgirasempreaanálise,comovimosnocapítulo1,éarelaçãoentreovalordeuso,ovalordetrocaeovalor.Otruque,então,écolocaronossoentendimentodaspropriedadesespaciaismateriaisdosvaloresde uso emmovimento, juntamente com os conceitos do valor de troca e do valor. O significado daspropriedades espaciais dos valores de uso em seu aspecto social pode ser então ser desvendado. Aseguir,daremosalgunspassostentativosnessecaminho.

Apossedapropriedadeprivadanaterraconferepoderexclusivoapessoasprivadassobrealgumasporções do globo. Isso envolve uma concepção absoluta do espaço, uma das propriedades maisimportantesdoqueéumprincípiodeindividuaçãoestabelecidamedianteaexclusividadedaocupaçãodeumadeterminadaporçãodeespaço–duaspessoasnãopodemocuparexatamenteomesmolugarnesseespaço e seremconsideradasduaspessoasdiferentes[27].A exclusividade do controle sobre o espaçoabsolutonãoestáconfinadaapessoasprivadas,masseestendeaosEstados,àsdivisõesadministrativase a qualquer outro tipo de indivíduo jurídico. A propriedade privada na terra, na prática em geralregistradamediantelevantamentocadastralemapeamento,estabelececlaramenteaporçãodasuperfíciedaterrasobreaqualindivíduosprivadostêmpoderesmonopolistasexclusivos.

Quandoosprodutoresdemercadoriaslevamseusprodutosparaomercado,elesosmovemporumespaçoquepodesermaisbemdefinidocomorelativo[28].Nessaconcepçãodoespaço,oprincípiodaindividuaçãosefragmentaporquemuitosindivíduospodemocuparamesmaposiçãoemrelaçãoaalgumoutro ponto –mais que um produtor pode estar exatamente a dezmilhas domercado, por exemplo –enquanto a métrica que prevalece dentro do espaço pode também ser alterada dependendo dacircunstância;asdistânciasmedidasemcustooutemponãosãoiguaisumaàoutra,eambassãomuitodiferentesdasdistânciasfísicas(vercapítulo12).

Os produtores em localizações mais favorecidas (“mais favorecidas”, nesse caso, diz respeito acustosdetransportemaisbaixos)podemganharumexcedentedelucro.Esseexcessodelucro,comoasdiferençasnafertilidadenatural,deveserencaradonumprimeiromomentocomopermanentementefixoemcomparaçãocomaformatransitóriausualdomais-valorrelativoassociadaàvantagemtecnológicaefêmera. Por isso aqueles que possuem terra em locais favorecidos podem converter os excessos de

Page 315: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

lucrosemrendafundiáriasemafetarataxadelucromédia.Mas como o espaço é usado por todos – não apenas pelos produtores – temos de considerar as

implicaçõesdoslugares“maisfavorecidos”dopontodevistadetodasasformasdeatividadehumana,incluindoaquelasdoconsumo.Quandodeixamosoreinodaestritaproduçãodemercadorias,podeentrarem jogo uma ampla série de circunstâncias sociais e fortuitas.Afinal, as preferências de consumo daburguesianãosãointeiramenteprevisíveis,poiselassãomoldadasporgostosmutáveis,peloscaprichosdamoda,pornoçõesdeprestígioetc.Entretanto,aaparenteincoerênciapodeserumpoucoreduzidaseas implicações para amercadoria força de trabalho forem rapidamente esclarecidas. Segundo a regrageral deMarx sobre os custos de transporte, o custo da reprodução e, portanto, o valor da força detrabalho, é sensível ao custo de ir e voltar do trabalho. Se todos os trabalhadores recebem uma taxasalarialfixa,aquelesquevivemem“locaisfavorecidos”têmumarelativavantagemsobreaquelesquevivemmaisdistante.Seosalárioéestabelecidoemumnívelnecessárioparagarantirareproduçãodotrabalhadorquevivemais longe (comopodeàsvezesaconteceremcondiçõesdeescassezdemãodeobra), todos os outros trabalhadores recebemum salário um pouco acima do valor. Em consequênciadisso,aquelesquesãoproprietáriosdeterrapodemconverteroexcessodosalárioemrendafundiáriasemdemodoalgumperturbarovalordaforçadetrabalho.Éimportantedistinguircasosdessetipoderendaexorbitanteeoutrasformassecundáriasdeexploraçãoexercidasporpartedossenhoresde terrasobre os trabalhadores que ocupam suas propriedades. No último caso, é claro, a renda fundiária ésuplementada por uma dedução do valor da força de trabalho exatamente da mesma maneira que osinteresses fundiários poderosos podem, em certas circunstâncias, ganhar rendas excessivas à custa dolucrodocapitalista.

Ocasodaforçadetrabalhoilustraquenóspodemos,pelomenosemprincípio,investigarcadaumadasmúltiplasatividadesdiferentesnocapitalismo,descobrirabaseracionaldecadaumaeosprincípiosdelocalizaçãoqueasguia,eassimestabelecerabaseparaospagamentosdearrendamentoemdiferenteslinhasdeatividade.Algumas–comoavendaporatacado,avendaavarejoeasfunçõesmonetáriasefinanceiras–sãomaispropensasdoqueoutrasaotratamentonessabase–porexemplo,alocalizaçãodefunções administrativas, religiosas, “ideológicas” e científicas.Entretanto, na análise final, o valor deusodeumadeterminadalocalizaçãonãopodeserentendidoindependentedasvariadasnecessidadesdetodaumasériedeatividadescomasquaisMarxestavaapenasperifericamente interessadoeque,porisso,eleexcluiudasuaanálise[29].

Aapropriaçãode renda tendoporbasea localização torna-seumaquestãomuitomaiscomplicadaassim que permitimos que as vantagens relativas, embora uma característica permanente de qualquercenário, estejam eternamente mudando com respeito a determinados lotes de terra. Elas mudam“historicamente, de acordo com o desenvolvimento econômico, […] a instalação de meios decomunicação,aconstruçãodecidadesetc.,eocrescimentodapopulação”[30].Acapacidadedemudardaindústriado transporteéparticularmente importante,pois“asdiferenças relativaspodemseralteradas[…]deumamaneiraquenãocorrespondeàsdistânciasgeográficas”[31].Oefeitolíquidoemalgunscasospodesernivelarasdiferençasquesurgemdalocalização,masemoutrospodeseralcançadooresultadoexatamenteoposto[32].Osdetalhesdecomoeporqueissodevenecessariamenteocorrernocapitalismoserão abordados no capítulo 12. No momento, tudo o que precisamos saber é que as vantagens delocalizaçãoparadeterminadoslotesdeterrapodemseralteradaspelaaçãohumana.Issosignificaqueaaçãodoprópriocapital(particularmentemedianteoinvestimentoemtransportesecomunicações)podecriarrelaçõesespaciais.Osatributosespaciaisdosvaloresdeusopodementãoserlevadosdevoltaao

Page 316: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

reinodaanálisecomoqualidadessocialmentecriadase,porisso,comoumtemaajustadoeapropriadoparaumainvestigaçãoplenaemrelaçãoàoperaçãodaleidovalor.

3.Localização,fertilidadeepreçosdaprodução

Os efeitos da localização e os diferenciais na “produtividade natural” se misturam de maneirasnumerosaseconfusas,oqueàsvezesreforçaeàsvezesopõeunsaosoutros.Aterrafértil,porémmásituada,podeserabandonadaporumaterramenosfértil,mascomumalocalizaçãomaisfavorável.

Asinfluênciascontraditóriasdalocalizaçãoedafertilidade,eavariabilidadedofatordalocalização,queécontinuamentecontrabalançadaepassaeternamentepormudançasprogressivasquetendemparaaequalização,alternativamentecolocamáreasdeterraigualmenteboa,melhoroupioremumanovacompetiçãocomasterrasmaisvelhasjácultivadas.[33]

Mas, inversamente, umamassa de solo fértil pode ter uma “vizinhança” ou um efeito “colateral”sobreosolomaispobresituadonasproximidades:“seumsoloinferiorestácercadoporsolosuperior,entãoesteúltimolheproporcionaavantagemdalocalizaçãoemcomparaçãoaosolomaisfértilqueaindanãoéparte,ouestáprestesasetornarparte,daáreacultivada”[34].

Atividades diferentes tambémexibemgraus diferentes de sensibilidade à localização emoposiçãoaosoutrosatributosqualitativosdedeterminadoslocais.Demodogeral,aagriculturaésensíveltantoàfertilidade quanto à localização, enquanto fábricas, casas, lojas etc. são sensíveis à localização. Asqualidades do terreno – drenagem, inclinação, aspecto, salubridade etc. – não são irrelevantes aoassentamento das últimas, embora alguns tipos de agricultura industrializada quase não dependam daprodutividadenaturalda terraqueocupam.“Quantomaisaagriculturasedesenvolve”,comentaMarx,“mais todos os seus elementos entram nela comomercadorias” de fora e, por implicação,mais ela élibertadadasqualidadesespecíficasdosolo[35].

Diferentesatividadescompetemumacomaoutrapelousodoespaço.Marxseabstraiexplicitamentedesse processo[36], embora ele um tanto insensatamente arrisque a opinião (mais oumenos como umaparte) de que a renda de toda terra não agrícola “é regulada pela própria renda agrícola”[37]. Eledeveriaterencaradoasrendascomosimultaneamentedeterminadaspormuitasatividadesconcorrentes.Portrásdessaconcepçãoestáaideiadequeosproprietáriosdeterrasãoindiferentesemrelaçãoasearendaquerecebeméumadeduçãodossaláriosdostrabalhadores,doexcessooumesmodolucromédiodocapital,oudequalqueroutraformadereceita.EopróprioMarxcertamenteestábemconscientedeque“apobrezaémaislucrativaparaoalugueldecasasdoqueasminasdePotosijamaisforamparaaEspanha”, e se queixa amargamente de comoo “podermonstruoso”da propriedadeda terra é “usadocontra os trabalhadores […] como um meio de praticamente expulsá-los da terra como um local demoradia”[38].

Dificuldadesmaissériassurgemquandoconsideramosamaneiraemqueo investimentodocapitalmodifica tanto as relações espaciais quanto as qualidades da terra em determinados lugares.Nisso ocapitaltemcertaquantidadedeescolha.Odinheiropodeserinvestidoparamelhorarotransporteeassimdisponibilizar mais terras férteis para a exploração, ou pode ser investido para melhorar as terrasinferioresquejáestãosendocultivadas.Aprimeiraestratégia,porlidarcomarelatividadedoespaço,provavelmentebeneficiarámuitossenhoresdeterra,enquantoasegundaestáexclusivamenteconfinadaaproprietáriosindividuais.Deixandodeladoosproblemassociaisóbviosquesurgemdessadiferença,osefeitos de interação complexos dos investimentos em dois aspectos do valor de uso que às vezes

Page 317: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

reforçameàsvezescontradizemumaooutropermanecemaserestudados.EseMarxtivessesedadoaotrabalhodefazer issocomalgumdetalhamento teriaabordadoalgunsaspectosdarendaquefaltamemsuaanálise.

Assim, Marx contorna todas essas dificuldades eliminando a questão da localização e seconcentrandoapenasnosdiferenciaisde fertilidade, enquantoestes afetamsomentea agricultura.Essasimplificaçãolhepermitederivarumprincípiomuitoimportante.Opreçodaproduçãodasmercadoriasagrícolaséemgeralfixadopelocustodaproduçãonopiorsolomaisataxamédiadolucro.Esteéumafastamentoradicaldadeterminaçãodopreçonaindústria,ondeamédiasocialprevalece.Oafastamentopode ser justificado por dois motivos. Primeiro, os diferenciais “naturalmente fundados” naprodutividadenãopodemsereliminadospelamudançatecnológicadamesmamaneiraquenaindústria(oslucrosexcedentessãoumdispositivopermanenteparaaquelesabençoadoscomsolosmaisférteis).Segundo,umaexpansãonaproduçãoagrícola envolveatrairmais terras inferioresparao cultivoe sóintensificaraproduçãoemsolossuperioresquandoissoformaislucrativo.Sejaqualforocaso,osolopiordevesemprerealizarataxamédiadelucroparapodercontinuarsendocultivado.EsteéoprincípioqueMarxestáansiosoparaestabelecer.Eleconstituiabaseparagrandepartedasuateoriadarenda.

Evidentemente, ele reconhece que as circunstâncias não são de modo algum simples assim. Porexemplo,elepresumeumequilíbrionademandaenaofertadasmercadoriasagrícolas.Naanálisefinal,assumetambémqueosefeitosdeinteraçãoentreafertilidadeealocalização,eospadrõesdiferenciaisdo investimento de capital em ambas, assim como a competição entre linhas e ramos diferentes daprodução da terra não têm nenhum efeito sobre a coerência teórica do princípio.Na seção III vamosvoltaraconsideraravalidadedessassuposições.Masprimeiroprecisamosconsideraraposiçãosocialdossenhoresfeudais,comseusdireitosexclusivosaalgumasporçõesdoglobo,nasrelaçõessociaisdocapitalismo.

II.PROPRIEDADEDATERRA“Emcadaépocahistórica”,escreveMarx,“apropriedadesedesenvolveudeummododiferenteesobum conjunto de relações sociais inteiramente diferentes”[39]. A ascensão do capitalismo envolveu a“dissoluçãodasantigas relaçõeseconômicasdapropriedadeda terra”e suaconversãoemuma formacompatível coma acumulação sustentada.Dessepontodevista, o capital pode ser encarado como“ocriadordapropriedadedaterramoderna,darendafundiária”.Estaúltimatemdeserentendidacomoa“expressãoteóricadomododeproduçãocapitalista”[40].Marxdeclaraqueaprincipalcaracterísticadapropriedade da terra no capitalismo é a dissolução completa da “conexão entre a posse da terra e aterra”,atalpontoqueoproprietáriodestaúltima,emtrocadeumpagamentomonetáriodireto,conferetodososdireitos à terra como instrumentoe condiçãodaprodução sobreo capital.Oproprietáriodaterra assumeassimumpapelpassivoem relaçãoàdominaçãodos trabalhadores (oqueocontroledaterra permite) e ao progresso subsequente da acumulação[41]. Em consequência disso, embora “orendimentodoproprietáriodaterrapossaserchamadoderenda,mesmoemoutrasformasdesociedade”,osignificadodessepagamento“difereessencialmentedarendacomoelaaparecenomododeprodução[capitalista]”[42]. A apropriação da renda pode então ser simplesmente definida como “aquela formaeconômicaemqueapropriedadedaterraérealizadanocapitalismo”[43].

A história real da transformação da renda feudal em renda fundiária capitalista, da sujeição da

Page 318: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

propriedade feudal aomododeproduçãocapitalista, está repletadecomplexidadesgeradasparaumagrande extensão das contracorrentes da luta de classes e do conflito social[44]. Também surgemdificuldades porque a “produção capitalista inicia a sua carreira na pressuposição da propriedade daterra, que não é criação sua,mas já existia antes dela”[45]. As condições originais da posse da terravariavammuito, e algumas, como aquelas na Inglaterra, parecerammais fáceis de transformar do queoutras[46]. Como a separação do trabalho da terra como um meio de produção foi (e ainda é) umaprecondiçãoessencialparaaformaçãodotrabalhoassalariado,aformadapossedeterrapré-capitalistadesempenhouumpapeltãoimportantenaacumulaçãoprimitivaquantoocapitaldesempenhounacriaçãodaformamodernadapropriedadefundiária.Apropriedadeprivadanaterra,comoocapitaleausuradocomerciante,étantoumpré-requisitocomoumprodutodomododeproduçãocapitalista:

Ahistória da propriedade fundiária quemostrasse a transformação progressiva do senhor feudal em rentista fundiário, do arrendatáriovitalícioporherança,semitributárioefrequentementeprivadodeliberdadenomodernofazendeiro,edosservosdaglebaedocamponêssujeitoaprestaçãodeserviçosnoassalariadorural,seriadefatoahistóriadaformaçãodocapitalmoderno.[47]

AversãogeraldeMarxdessahistóriapodeserdivididaemduasfases.Naprimeira,asrendasdotrabalho feudal são transformadas em renda em espécie e finalmente em rendas monetárias. Essatransformação pressupõe “um desenvolvimento considerável do comércio, da indústria urbana, daprodução demercadorias em geral e, assim, da circulação do dinheiro”[48]. A lei do valor começa aregular os preços mediante o intercâmbio no mercado. A monetização das rendas feudais abre apossibilidadeparao arrendamentoda terra em trocadepagamentos emdinheiro e, finalmente, para acompraevendadaterracomoumamercadoria.Ocapitaldebaseurbanapodepenetrarnazonaruraletransformar as relações sociais ali. Aos processos de monetização mais moderados podem seradicionadas as práticas mais ávidas do usurário (que contribuem muito para afrouxar a pressão dosproprietáriosdeterratradicionaissobresuasterras)e,finalmente,aexpropriação(comousemasançãodoEstado):

OroubodosbensdaIgreja,aalienaçãofraudulentadosdomíniosestatais,ofurtodapropriedadecomunal,atransformaçãousurpatória,realizadacom inescrupuloso terrorismo,dapropriedade feudaleclânicaempropriedadeprivadamoderna, foramoutros tantosmétodosidílicosdaacumulaçãoprimitiva.[49]

Masaprivatizaçãodaposseda terraea sujeição formaldoprodutoraumsistemadeproduçãoetrocademercadoriasnãoatingemnecessariamenteessa formadepropriedadeda terra,queéumpuroreflexodasrelaçõesdeproduçãocapitalista.Todosostiposdeformasintermediáriaspodemsurgiresãotalvezmaisbeminterpretadas,àmaneiradeRey,como“articulaçõescomplexas”dediferentesmodosdeprodução,umsobreooutro.IssonãoimplicaaaceitaçãodaconclusãobásicadeReydequearendanocapitalismo só pode ser entendida como uma relação de distribuição, o que reflete uma relação deprodução de outro modo de produção (por exemplo, o feudalismo) com o qual o capitalismo estáarticulado[50].Entretanto,surgemsituaçõesnatransiçãoparaocapitalismoemqueaconcepçãodeReyéextremamenteapropriada.

Osproprietáriosdeterrafrequentementeexploramdiretamenteosprodutoresdotrabalho.Issoétãoverdadeiroparaaseconomiasescravas(asdoSuldosEstadosUnidosantesdaGuerraCivil)quantooépara os sistemas de produção camponesa que sobreviveram até a época atual. No último caso, oproprietário da terra tem todos os incentivos para extrair a renda máxima, não somente porque isso

Page 319: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

maximizaassuasreceitas,mastambémporqueobrigaocamponêsatrabalharcadavezmaisarduamenteeproduzircadavezmaismercadoriasparaomercadoapreçossempremaisbaixos(dadooaumentonaoferta).Aexploraçãomaciçadocampesinatoruralporpartedaclassedeproprietáriosdeterraé,desseponto de vista, inteiramente consistente como capitalismo industrial quando este proporciona comidabarataparaostrabalhadoresurbanoseumaofertabaratadematérias-primasparaaindústria.Nessabasepodesercriadaumaaliançapoderosaentreointeressefundiárioeumaburguesia.

Mastalformadeexploraçãorural,comoomais-valorabsolutoemgeral,temseuslimites.Asformasintermediárias de produção tendem a inibir “o desenvolvimento das forças produtivas sociais dotrabalho, das formas sociais do trabalho, da concentração social do capital […] e da progressivaaplicaçãodaciência”[51].Poressarazão,asformasintermediáriasfinalmentedãolugaraumsistemadeproduçãoqueatingea sujeição realdo trabalhoaocapital (emvezdeaoproprietárioda terra) equeliberaaterradasbarreirasqueinibemodesenvolvimentodasforçasprodutivas.Eaúnicamaneiradeisso poder ocorrer émediante a remoção completa do proprietário da terra de qualquer poder diretosobreousodaterra,sobreaforçadetrabalhoempregadanisso,esobreocapitaladiantado,emtrocadeumpagamentoemdinheiro.

Marxevidentementenãosesentiumuitoseguroemsuainterpretaçãodecomoaformadapropriedadedaterracapitalistaveioaocorrer.Elemaistardedeclarariaquehaviasimplesmentebuscado“traçarocaminhopeloqual,naEuropaOcidental,o sistemaeconômicocapitalistaemergiudoúterodosistemaeconômicofeudal”.Eleatacouaquelesquetransformaram“oesboçohistóricodagênesedocapitalismoemumateoriahistórico-filosóficadocaminhogeraldodesenvolvimentoprescritopordestinoatodasasnações, fossem quais fossem as circunstâncias históricas em que eles se encontrassem”, e admitiulivremente que “eventos incrivelmente análogos, mas ocorrendo em ambientes históricos diferentes,conduzemaresultadostotalmentediferentes”[52].

Porexemplo,eleestavaumpoucopreocupadocomoproblemadaformaqueapropriedadedaterraassumiu nesses países, como os Estados Unidos, onde não havia feudalismo a ser substituído. Seuargumentonessecasoéque,ondeocapitalnãoencontraapropriedadefundiáriacomoumaprecondição,“elemesmoacria”,pelasmuitosimplesrazãodeque“aseparaçãodotrabalhadordosoloedapossedaterra é uma condição fundamental para a produção capitalista e para a produção do capital”[53]. Ocapítulosobreateoriadacolonizaçãonoprimeirolivrod’Ocapitalapresentaamesmaideia.MashásugestõesocasionaisdequeaformaqueapropriedadedaterraestavaassumindonosEstadosUnidoseraum pouco especial[54]. É uma pena que ele não tenha examinado essa forma em maior profundidadeporqueosEstadosUnidos,comoveremos,sãooúnicopaísemqueaterra,desdeoinício,foitratadadeumamaneiraqueseaproximavamaisdaqueladitadaporconsideraçõespuramentecapitalistas(emboramesmoaíacorrespondênciaestivesselongedeserexata).

Emvezdisso,emseusúltimosanosMarxgastoumuitaenergiatraçandoahistóriadapropriedadedaterra na Rússia. Ele estava fascinado pela possibilidade de que a comuna da aldeia russa pudesseproporcionar a basepara umapassagemdireta para “a forma comunistamais elevadadepropriedadefundiária” sem passar pelo “mesmo processo de desintegração que aquele que determinou odesenvolvimentohistóricodoOcidente”.Emsuaopinião,apossibilidadedeissoacontecerdependiadaeliminaçãopréviadaquelas“influênciasdeletérias”–principalmenteaquelasdocapitalmonetárioedocapitalmercantil–quenormalmenteassaltavadetodososladosessasformasdepropriedadecomunal.Nas condições da revolução socialista em geral, as formas tradicionais de propriedade comunalpoderiamnaverdadeser“amolamestradaregeneraçãosocialdaRússia”[55].

Page 320: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Mas,mesmonoOcidente,Marxprecisavaadmitirquehaviamuitavariaçãohistóricadiferenciandoaexperiênciadeumanaçãoparaoutraeatémesmodeumaregiãoparaoutra.Issopodiaseratribuídoemparte a características residuais “arrastadasparaos temposmodernospela economianatural da IdadeMédia”,mas tambémà penetração irregular das relações capitalistas em circunstâncias históricas quemostravam “infinitas variações e graduações na sua aparência”, o que demanda um estudo empíricocuidadoso[56].Ahistóriarealdapropriedadedaterranocapitalismoeraumaquestãoobscuraeconfusa.Édifícil localizarnessahistóriaa lógicadeumatransformaçãonecessáriadapropriedadedaterraemsuaformacapitalista.

Essas confusões ainda permanecem conosco. Elas são o enfoque de grandes controvérsias nassociedadesemqueelementospré-capitalistasestãofortementeentrincheirados,apropriedadefundiáriaexerceuma influência independentepoderosaeainda reinaaaliançaentreumaoligarquia ruraleumaburguesiaindustrial.Nessassociedades,atesedeReyaindaéválida,indicandoqueasrelaçõesnaterraforam extraordinariamente lentas em sua adaptação aos ditames das relações de produção puramentecapitalistasemmuitasáreasdomundo[57].

Masasconfusõesestãoigualmenteemevidêncianospaísescapitalistasavançados.NaGrã-Bretanha,comorecentementemostraramMasseyeCatalano[58],apropriedadedaterranãomaisexiste(seéqueumdiaexistiu)comouminteressedeclasseunificadoerelativamentehomogêneo,mascompreendegruposdiversificadoseheterogêneosqueseestendemdesdeasinstituiçõesantigas(aIgreja,aCoroa,osgrandesEstados fundiários), passando pelas instituições financeiras (bancos, fundos de seguro e pensão), atéatingir uma ampla série de proprietários individuais e corporativos (incluindo os trabalhadores quepossuem casa própria) e as agências governamentais. É difícil conciliar essa heterogeneidade com aideiadequeosproprietáriosdeterraconstituem“umadastrêsgrandesclassesnasociedadecapitalista”.Mas se penetrarmosmais fundo nessa diversidade poderemos começar a localizar uma característicadirecionadoraprincipalnocomportamentodetodososagenteseconômicos,independentedeexatamentequemelessãoeoqueditamseusinteressesimediatos:essaéatendênciacrescenteparasetrataraterracomoummerobemfinanceiro.Aquiestáachaveparaaformaeamecânicadatransiçãoparaaformapuramentecapitalistadapropriedadeprivadanaterra.

Se a terra for livremente comercializada, então ela se torna uma mercadoria de um tipo muitoespecial. Como a terra não é produto do trabalho, ela não pode ter um valor. A aquisição da terra“simplesmente assegura ao comprador um direito de receber uma renda anual”[59]. Qualquer fluxo derenda(comoumarendaanual)podeserconsideradocomoojurosobrealgumcapitalfictício,imaginário.Para o comprador, a renda aparece em sua contabilidade como o juro sobre o dinheiro investido naaquisiçãodaterra,eemprincípionãoédiferentedeinvestimentossemelhantesnadívidadogoverno,nasaçõesenasquotasdasempresas,nadívidadoconsumidoreassimpordiante.Odinheiroinvestidoé,emtodos os casos, capital que rende juros. A terra se torna uma forma de capital fictício e o mercadoimobiliário funciona simplesmente como um ramo particular – embora com algumas característicasespeciais – da circulação do capital que rende juros. Nessas condições, a terra é tratada como umsimplesbemfinanceiroqueécompradoevendidosegundoa rendaqueeleproduz.Como todasessasformasdecapital fictício,oqueénegociadoéumdireitosobreasreceitasfuturas,oquesignificaumdireitosobreoslucrosfuturosdousodaterraou,maisdiretamente,umdireitosobreotrabalhofuturo.

Então,quandoocomércionaterraéreduzidoaumramoespecialdacirculaçãodocapitalquerendejuros,devoargumentarqueapossedaterraatingiusuaverdadeiraformacapitalista.Marxnãochegaaessa conclusão diretamente, embora haja várias sugestões espalhadas no seu texto para sugerir que o

Page 321: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

comérciodaterrapodenaverdadesertratadocomoumaformadecapitalfictício[60].Umavezqueessacondiçãose tornageneralizada, todososproprietáriosde terrasãocapturadosemumsistemageraldecirculaçãodo capital que rende juros e ignoram seus imperativos diante do seu risco.Osprodutores-proprietários, por exemplo, ficamdiante de uma escolha clara entre adquirir a terra ou arrendá-la deoutrem.Comoessaescolhaéexercida,nascondiçõespurasdapropriedadedaterracapitalista,nãofazdiferença.Damesmamaneiraqueoscapitalistaspodemreunirjuroselucrosobreoseucapitalquandousamseusprópriosrecursosnaprodução,elestambémpodemreunirjuroselucrosobreocapitalsetêmapossedaterraqueusam.Masospapéissãototalmenteseparados.Umprodutor,comoproprietáriodaterra,podetãofacilmentevenderaterraearrendá-ladevoltaaoutroproprietário,ouhipotecá-laaumbanco.Arendadeveserpagadiretamenteaooutroou indiretamentena formadeumarendaabdicada,porqueoprodutorfalhaemmobilizarocapitalfictícioqueaterrarepresentaecolocaessedinheiroemmovimentopararealizaromais-valormedianteaprodução.Masissotambémpressupõeumaformadeproduçãocapitalistasobreaprópriaterra(apropriedadedocamponêsfoieliminadaetc.).Alémdisso,estáclaroqueaformacapitalistadapropriedadeprivadaseriaimpensávelnaausênciadeumsistemadecréditosofisticadoetotalmenteabrangente.Marxexplorapoucoessaideia.RetornaremosaelanaseçãoVI.

Émuitoconveniente,esemdúvidaútil,especificarascaracterísticasdapropriedadedaterracomoestasdevemexistirnoEstadocapitalistapuro.Masdevemostambémespecificaroprocessohistóricoemqueapropriedadeda terra é conduzidaa essacondição.Acapacidadeparaalienar e comercializar aterranãogarantedemaneiraalgumaqueelaserácomercializadacomoummerobemfinanceiro,eemgrandepartedahistóriadocapitalismoaterranãofoilivrementecomercializadasegundoumprincípiotãosimples.Oaumentodatrocademercadorias,adifusãodasrelaçõesmonetáriaseocrescimentodosistemadecréditoconstituemcondiçõescontextuaisfavoráveisaotratamentocrescentedaterracomoumbem financeiro. O atrativo da terra como um investimento (sua segurança e também o prestígiotradicionalmentevinculadoàsuaposse)semprea tornouvulnerávelaocapitalexcedente.Quantomaiscapital excedente existir (tanto em curto prazo,mediante a superacumulação, quanto em longo prazo),maior seráaprobabilidadedea terra ser absorvidanaestruturadacirculaçãodocapital emgeral.Ocrescimentodosmercadoshipotecários,ataxaçãodaterracomoumbemfinanceiroporpartedoEstado(oquepressionaamonetização)e todaahistóriacomplexadaacumulaçãoprimitivaedamonetizaçãodasrelaçõesdapropriedadedaterra(daqualMarxapresentaumrelatoparcialnosGrundrisse)tambémdesempenham seus respectivos papéis. Mas na análise final é provavelmente a necessidade derevolucionarasforçasprodutivassobreaterra,deabrira terraaofluxolivredocapital,queobrigaaredução da propriedade da terra à condição de ummero bem financeiro. Isso implica que as formastradicionais da exploração rural (o mais-valor absoluto extraído do campesinato) não pode maissatisfazerasnecessidadesdocapitalemgeral(aofertadealimentosematérias-primas).Aaliançaentreossenhoresdeterraeosindustriaistorna-seumantagonismodotipoquecaracterizavaaprimeirametadedoséculoXIXnaGrã-Bretanha.

Otratamentodaterracomoumbemfinanceiropuroeareduçãodosproprietáriosdeterraparaumafacçãodoscapitalistasmonetáriosque simplesmenteescolheram,porqualquer razãoque seja,possuirumdireitosobrearendaemvezdesobrealgumaoutraformadereceitafutura,nãoestáisentodeseusaspectoscontraditórios[61].Acondiçãonormaldapossedeummeiodeproduçãoenvolve,nocasodaterra,apossedeumdireitosobrearendaqueestáligadaaumvalordeusocomqualidadespeculiares(veraseçãoI).Opoderdomonopóliosobreousodaterra–implicadopelaprópriacondiçãodaposse

Page 322: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

da terra– jamaispoderá ser inteiramentedespojadodos seusaspectosmonopolistas,porquea terra évariada em termos de suas qualidades de fertilidade, localização etc. Esse poder domonopólio criatodosostiposdeoportunidadesparaaapropriaçãodarendaquenãosurgemnocasodeoutrostiposdebemfinanceiro,excetoemcircunstânciasespeciais.Ocontroledomonopóliopodesurgiremqualquersetor,éclaro,maséumaspectocrônicoeincontornávelqueinevitavelmentecontaminaacirculaçãodocapitalquerendejurosmedianteaaquisiçãodeterra.As“formasinsanas”daespeculaçãoea“alturadadistorção” atingida dentro do sistema de crédito (ver capítulo 10) estão propícias, por isso, a seremgrandementeampliadasnocasodaespeculaçãoemrendasfuturas.Aintegraçãodapossedaterradentrodacirculaçãodocapitalquerendejurospodeabriraterraparaofluxolivredocapital,mastambémaabre para o pleno jogo das contradições do capitalismo. O fato de ela fazer isso em um contextocaracterizadopelaapropriaçãoepelocontroledomonopóliogarantequeoproblemadaespeculaçãodaterraadquiraumaprofundaimportânciadentrodadinâmicainstávelgeraldocapitalismo.Retornaremosaessetemaaseguir.

III.ASFORMASDERENDAMarxachavaquearenda,nocapitalismo,podiaassumirquatroformasdiferentes:monopolista,absolutaedoistiposderendadiferencial.Essascategoriassãoadaptadasdaeconomiapolíticaclássica.Bemnoinício de suas investigações, Marx declarou: “A única coisa que consegui provar teoricamente é apossibilidade da renda absoluta, sem violar a lei do valor. Este é o ponto em torno do qual girou acontrovérsia teórica desde a época dos Fisiocratas até agora. Ricardo nega essa possibilidade. Eusustentoqueelaexiste”[62].

Oestranho,noentanto,équearendadiferencialocupacentenasdepáginasn’OcapitalenasTeoriasdomais-valor, enquanto a renda absoluta é tratadamais resumidamente.Vou declarar que o interesseinicial deMarx pela renda absoluta foi ditadomais por seu fascínio pelas contradições da economiapolítica burguesa do que por profundas considerações teóricas, e que a sua contribuição real está emempurrarateoriadarendadiferencialparaumterrenointeiramentenovo.

1.Rendamonopolista

Todarendaébaseadanopodermonopolistadeproprietáriosprivadosdealgumasporçõesdoglobo.Maspodemostambémassumir,semcontradição,queosusuárioscompetemlivrementeporpedaçosdeterradequalidadediferenteemdiferenteslocalizações,equeosproprietáriosdeterratambémcompetemum com o outro pela renda que podem controlar. Entretanto, por vezes surgem circunstâncias em queessascondiçõescompetitivasnãoprevalecem.Asrendasmonopolistaspodementãoserrealizadas.Duassituaçõesdiferentesparecemrelevantes[63].Emprimeirolugar,osdonosdepropriedadequecontrolamuma terra de qualidade ou localização tão especial em relação a algum tipo de atividade podem sercapazes de extrair rendas monopolistas daqueles que desejam usar a terra. No reino da produção, oexemplomaisóbvioéovinhedoqueproduzvinhodeextraordináriaqualidade,quepodeserfacilmentevendido a um preço de monopólio. Nessa circunstância, “o preço de monopólio cria a renda”.Evidentemente, Marx não achava que esse tipo de renda monopolista iria ser muito disseminado naagricultura, mas sugere que em áreas densamente povoadas as rendas advindas de casas e terras sópodemserexplicáveisnessestermos[64].Porexemplo,aslocalizaçõesdeprestígioestatuscriamtodos

Page 323: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

os tipos de possibilidades para realizar as rendas monopolistas de outras facções da burguesia. Emsegundo lugar, os proprietários de terra podem se recusar a liberar a terra improdutiva sob o seucontrole, a menos que lhes seja pago um aluguel alto que os preços do mercado das mercadoriasproduziram sobre aquela terra e estão pressionados acima do valor.Nessemomento, que depende daescassez de terra e do poder e da posição coletivos do interesse fundiário, o aluguel cobrado cria opreçodemonopólio.Issoformaumarendamonopolistaquepodeserimportanteemtodosossetoreseafetaocustodosgrãoscomestíveisetambémtodoocustohabitacionaldaclassetrabalhadora.

Evidentemente,emambososcasosarendamonopolistadependedacapacidadederealizarumpreçode monopólio para o produto (vinho, grãos ou moradia). Além disso, em ambos os casos, a rendamonopolista é uma dedução do valor excedente produzido na sociedade como um todo, umaredistribuição,mediante a troca, domais-valor agregado[65]. O primeiro caso pode ser eliminado deconsideraçãoporque,comoocomérciodeantiguidadeseobrasdearte,eleédeinteresseperiféricoparaqualquerestudodaproduçãogeraldemercadoria.Osegundocasocolocaalgunsproblemasmaisgerais,quepodemserconsideradosmaisadequadamenteemrelaçãoàrendaabsoluta.

2.Rendaabsoluta

As condições para a existência da renda absoluta não são difíceis de extrair considerando osinstrumentosquetemosàmão.Começamosporobservaradificuldadegeraldamudançatecnológicaemsetoresqueusamaterracomoummeiodeprodução(verp.336).Aagriculturaéoexemplomaisóbvio.Há,portanto,umaforteprobabilidadedequeacomposiçãodevalordocapitalnaagriculturaserámenordoqueamédiasocial.Seforassumidaumaequalizaçãocompletadataxadelucroemtodosossetores,os preços da produção na agricultura estarão bem abaixo dos valores (ver capítulo 2, seção III). Emoutras palavras, um capital de determinado tamanho na agricultura produz mais-valor maior do querecebesobaformadelucro,porqueossetorescontribuemparaovalorsocialexcedentesegundoaforçade trabalho que empregam, mas recebemmais-valor segundo o capital total que adiantam.Mas essasuposiçãosebaseia“nadistribuiçãoproporcionalemconstantemutaçãodocapitalsocialtotalentreasváriasesferasdaprodução,naentradae saídacontínuasdoscapitais”, eassumequenãohábarreirasparaaequalizaçãodataxadelucro.Arendaabsolutapodesurgirquandoapropriedadedaterraergueumabarreirasistemáticaaessefluxolivredocapital.

Se o capital encontra uma força estranha que ele só pode superar parcialmente, ou não superar, e que limita o seu investimento emalgumasesferas, admitindo-oapenas emcondiçõesqueexcluem totalouparcialmente aquela equalizaçãogeraldomais-valorparaumlucromédio,entãoéevidentequeoexcessodovalordasmercadoriasnessasesferasdaproduçãocomrelaçãoaoseupreçodeproduçãodariaorigemaumlucroexcedente,quepoderiaserconvertidoemrendae,comotal,setornariaindependenteemrelaçãoaolucro.Talforçaebarreiraestranhasestãoapresentadaspelapropriedadeprivada,quandoconfrontaocapitalemseuesforçoparainvestirnaterra:talforçaéoproprietáriodaterravis-à-visocapitalista.[66]

Emconsequênciadisso,osprodutosagrícolaspodemsercomercializadosacimadosseuspreçosdeprodução e podem produzir renda absoluta, embora vendendo abaixo ou mesmo no nível dos seusvalores.Umarendaabsolutapodeexistirseminfringirdemodoalgumaleidovalor.OaparentedilemaquelevouRicardoanegarapossibilidadedarendaabsolutaéimpecavelmentesuperado.Partedomais-valorexcedenteproduzidonaagriculturaemvirtudedasuaintensidadedetrabalho(composiçãodevalorinferior) é “roubada” (como diz Marx) pelo proprietário da terra, de forma que ela não entra naequalização da taxa de lucro.Certamente, amercadoria é vendida a umpreçomonopolista.Mas isso

Page 324: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

representaumfracassonaredistribuiçãodomais-valordaagriculturaparasetorescomcomposiçõesdevaloresalémdamédia,emvezdaredistribuiçãodemais-valorparaaagricultura,comoseriaocasonarendamonopolista.Onívelderendaabsolutadependedascondiçõesdeofertaeprocurae tambémdaáreadeterranovaconduzidaaocultivo.Oaumentonopreçodoprodutonãoéacausadarenda,“masessa renda é a causa do aumento no preço do produto”, mesmo que a mercadoria ainda sejacomercializadaabaixoounoníveldoseuvalor[67].

Vários comentários sobre essa concepção de renda absoluta estão corretos. Antes de tudo, suavalidade tem sido frequentemente associada à resolução bem-sucedida do chamado “problema datransformação”(capítulo2,seçãoIII).Àsvezesédeclaradoqueos“erros”deMarxcomrespeitoaesseúltimodestroem totalmente a sua concepção de renda absoluta.Certamente, o nível da renda absolutadependeriadoexcessodelucrodisponívelapóstodasasinteraçõeseosefeitosderealimentaçãoteremsido considerados. Em vez de perturbar a concepção da renda absoluta deMarx, eu acredito que asinterações e os efeitos retroativos foram considerados. Em vez de perturbar a concepção da rendaabsolutadeMarx,acreditoqueasuaabordagemdestaúltimaesclarecea interpretaçãoadequadaaserdadaaoprocessodetransformação[68].OqueMarxpretendiaeraidentificarasregrasdedistribuiçãodomais-valor como elas são atingidasmediante os processos sociais (a trocamercantil emparticular) emostrarqueessasregraseraminteiramentedistintasdosprocessosdeproduçãodemais-valor,eporissoestavam em potencial conflito com eles. Sem essa separação e oposição entre a produção e adistribuição, toda a interpretação marxiana das crises desmoronaria. Agora encontramos uma versãoespecífica dessa oposição. A necessidade social de posse privada da terra no capitalismo envolvedispositivosdistribucionais–acapacidadeparaseapropriardarenda–queestãoempotencialconflitocom a acumulação sustentada. O queMarx procurará finalmente nos mostrar é que uma organização“racional” da agricultura é impossível de conseguir.O uso da terra é necessariamente irracional, nãoapenasdopontodevistadasatisfaçãodosdesejosenecessidadeshumanas(pois issoéquaseóbvio),mastambémdopontodevistadaacumulaçãosustentadamedianteareproduçãoexpandida.Estaéumacontradiçãofundamental,àqualvamosretornarnodevidomomento.

Osegundopontoéquearendaabsolutadependedopoderdosproprietáriosdeterraparacriarumabarreiraàequalizaçãodataxadelucroeàpersistênciadeumacomposiçãodevalorbaixodocapitalnaagricultura.Seacomposiçãodevalorsetornarigualoumaisaltaqueamédiasocial,arendaabsolutadesaparece[69].Emquemedida,então,abarreiracolocadapelapropriedadeda terraaofluxo livredoinvestimento desencoraja a melhoria agrícola e, desse modo, assegura a base para a perpetuação darendaabsoluta?Marxlevementeinsinuatalpossibilidadeemumaocasião[70],eestenãopareceserseuprincipal interesse.Certamente, as estruturas sociais anacrônicasda terra–direitodepropriedadedocamponês,porexemplo–estãoassociadasaumretardamentodasforçasprodutivasnaagricultura,masMarxnãovincula a renda absoluta àpersistênciadessas estruturas.Emvezdisso, ele a considera emrelação à posse de terras aberta à agricultura capitalista.A baixa composição de valor do capital naagriculturaémaisatribuídaàlentidãotecnológicaecientíficanessesetordoqueaqualqueroutracoisa.Umavezqueaagriculturaconsigaseatualizar,oqueemalgummomentodeveacontecer,entãoarendaabsoluta desaparece, deixando os proprietários de terra assumirem as rendas monopolistas, sepuderem[71].

Masseosproprietáriosdeterrasãosuficientementepoderososparaextrairarendaabsoluta,porqueelesnãoadotamarendamonopolistatambémcolocandoopreçodasmercadoriasacimadovalor,aumpreçodemonopólioarbitrário?Elespodemretirarartificialmenteaterradaprodução,efrequentemente

Page 325: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

ofazem,eassimelevarasrendassobreorestante[72].Arespostaéqueosproprietáriosdeterrapodemnaverdade fazê-lo, emcertas condições.Masas implicações são fundamentalmentediferentes.Comarenda absoluta, os proprietários de terra não interferem diretamente na produção demais-valor. Elessimplesmenteintervêmcomrespeitoàdistribuiçãodomais-valorproduzido.Arendamonopolistareduzativamente a produção de mais-valor (embora não o faça, é claro, quando cobra impostos sobre oconsumo)eobrigaumaredistribuiçãodomais-valorporpartedeoutrossetoresnãoparaagricultura,masparaasmãosdosproprietáriosdeterra.Osefeitosdissosobreaacumulaçãoprovavelmentesãomuitodiferentes.

Entretanto,osdois tiposde rendadependemdacapacidadedosprodutores capitalistasde realizarpreçosdemonopólio.Porisso,acompetiçãoentreosprodutoreslimitaacapacidadedosproprietáriosde terradeseapropriaremda rendaabsolutaoumonopolista (osaspectosespaciaisdessacompetiçãosão tratados no capítulo 12). A capacidade de a propriedade da terra, em virtude da posse da terra,erguerumabarreiraaoinvestimentonãopresumeautomaticamentequeosusuáriosdessaterraestejamemposição de cobrar um preço de monopólio pelas mercadorias que produzem, ou que os produtorescapitalistas estejam dispostos a pagar os arrendamentos exorbitantes cobrados. Por essa razão,Marxdeclara que “em condições normais” até a renda absoluta cobrada na agricultura seria pequena, nãoimportaquediferençahouvesseentreopreçodaproduçãoeovalor[73].Nessabase,podemosinterpretarmelhorotratamentomaisresumidodeMarxdeumproblemaqueinicialmentelhepareciatãoimportante.Arendaabsolutanãoéacategoriaimportante.EledescobriuqueosproblemasteóricosreaisnãoestãotantonofracassodeRicardoemadmitirarendaabsoluta,masnainterpretaçãoequivocadadeRicardodarendadiferencial.Esteéotópicoquevamostrataragora.

3.Rendadiferencial

Emsuasprimeirasobras,MarxevidentementeencaravaaformulaçãodarendadiferencialdeRicardocomo de certa forma não problemática. N’O capital, começa a descobrir problemas e artifícios naformulação ricardianaegeraosesboçosdeuma teoria totalmentediferente–uma teoriaqueapenasésugerida nas Teorias do mais-valor e de modo algum está completamente elaborada n’O capital.Entretanto,obrasrecentesdeBalleFinecomeçaramadeslindarparaondeMarxestavasedirecionandoemcapítulosrepletosdeargumentosaparentementeintrincadosecálculosaritméticoselaborados[74].

Ascondiçõesnecessáriasparaderivarrendadiferencialdoprimeirotipo(RD-1)jáforamdescritas.Ovalordemercadodosprodutosemqueaterraéutilizadacomoummeiodeproduçãobásicoéfixadopelopreçodaproduçãonaterrapior–aquelaterraquetemopreçodeproduçãomaiselevadodevidoàsuacombinaçãoparticulardefertilidadeelocalização.Porisso,osprodutoresdaterramelhorrecebemlucrosexcedentes.Seassumirmosiguaisaplicaçõesdocapitalparaterrasdediferentesqualidades,entãoo excesso de lucro pode ser consideradouma característicapermanente. Ele pode ser convertido emRD-1semafetarosvaloresdomercado.Emoutraspalavras, aRD-1é fixadapeladiferençaentreospreçosindividuaisdaproduçãoeovalordemercadodeterminadopelascondiçõesdaproduçãonaterrapior.Essaconcepção,emprincípio,nãoédiferentedaquelaqueRicardoadiantou.

Na verdade, Marx modifica Ricardo na medida em que mostra que, quando os efeitos duais dalocalizaçãoedafertilidadesãolevadosemconta,aagriculturapodemuitofacilmenteseexpandirtantoparasolosmaisférteisquantoparamenosférteis(dependendodeondeelesestãolocalizados)equeasuposiçãoricardianageralderetornosreduzidosnaagriculturanãoeraporissojustificada.Mas–oque

Page 326: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

é bastante interessante – na formulação do seu argumento, o próprio Marx deixa de considerar alocalizaçãoeseconcentraapenasnafertilidade[75].Aexclusãonãoéinteiramenteinocente.Asvantagensdalocalizaçãosãotãoimportantesparaalgunsramosdaindústriaquantoosãoparaaagricultura,eissosolapaasingularidadedocasoagrícola.Tambémocorredea“permanência”davantagemdalocalizaçãoser eternamente dependente de alteração mediante o investimento nos transportes e na distribuiçãogeográficacambiantedaatividadeeconômicaedapopulação.Porisso,asvantagensdalocalizaçãosealterampor razõesquepodemnão ternadaavercomaagriculturaperse equeestão, em todocaso,geralmente fora do controle dos produtores individuais. As mudanças ocorrem como o resultado deprocessos sociais de grande complexidade e generalidade, embora devamos notar o importante papeldesempenhadopelaespeculaçãonasrendasdaterra(detodosostipos).MasMarxeliminadoquadroaespeculação[76],etambémalocalizaçãoeacompetiçãodediferentesusos.VamosabordarestasquestõesnaseçãoVI.

A RD-1 é fácil de interpretar em virtude das suposições simplificadas. Ela reflete as condiçõesmateriais que tornam os diferenciais da fertilidade características permanentes para a produção. Apropriedadedaterra,queseapropriadaRD-1,assumeumaposiçãoneutracomrespeitoàdeterminaçãodovalordemercadoe,porisso,podeserisentadadequalquerresponsabilidadepelaacumulaçãolentaouquaisqueroutrosmalessociais.

Essa interpretação sofre uma modificação substancial quando introduzimos no quadro a segundaformadarendadiferencial(RD-2).ÉbemmaisfácilapresentarumaversãodaRD-2separadadaRD-1.Elasimplesmenteexpressaosefeitosdasaplicaçõesdiferenciaisdocapitalaterrasdeigualfertilidade.MasMarx insiste que a RD-1 deve sempre ser encarada como a base para a RD-2, embora todo opropósito de suas investigações seja descobrir exatamente como as duas formas de renda “servemsimultaneamentedelimitesumaparaaoutra”[77].Nofimoquecontasãoasrelaçõesentreasduasformasderenda.Eestasrelaçõesnãosãotãofáceisdedesenredar.ÉaquiqueMarxseseparamaisradicalmentedeRicardoedásuacontribuiçãooriginalàteoriadarendaemgeral.

Entretanto,vamoscomeçarcomocasomais simples.Sea terra fossede igual fertilidadeem todaparte (e a localização não tivesse efeito), a RD-1 não existiria. Se todos os produtores investissemexatamente amesmaquantidadede capital em sua terra – chame issode capital investido “normal”–tambémnãoexistiriaRD-2.Massealgunsprodutoresinvestiremmaisqueocapital“normal”eganharemretornosemescalasobreocapitalqueinvestem,seupreçodeproduçãoindividualseráinferioraovalordemercado fixado pela aplicação do capital “normal”.Toda ou parte dessa diferença pode então serapropriadacomoRD-2.

Estamoslidandoaquicomofluxodocapitalorganizadoporprodutoresqueusama terracomoummeiodeprodução.Assumimosqueaagriculturaestácompletamenteorganizadaemumabasecapitalista,eque“nenhumsoloproduzqualquerprodutosemum investimentodecapital”[78].Oproblemaentãoéentender a lógica que orienta o fluxo do capital para a agricultura dadas as condições peculiares queestãoligadasàterracomoummeiodeproduçãoedadoofenômenodaposseprivadadaterra.Estaé,evidentemente,amais importantede todasas tarefasqueenfrentamosnaconstruçãoda teoriadarendafundiáriaemsuaformadistintamentecapitalista.Aquiocapital,concebidocomoumfluxodevalor,estáconfrontadocomacircunstânciapeculiardequeeledevefluirativamentemedianteoprópriosolo(queédepropriedadedeoutro)paraserrealizadocomomais-valor.

Podemosimediatamenteinseriralgumasobservações.Ofluxodocapitalseráempartedependentedoritmodaacumulaçãoedaconcentraçãodocapitalnaagricultura,mastambémseráextremamentesensível

Page 327: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

àexistênciadeumsistemadecréditoeàscondiçõesgeraisqueprevalecemnosmercadosdecapitais–“emperíodos de escassez nãobastará ao solo não cultivado render ao arrendatário um lucromédio”,enquanto“emoutrosperíodos,quandoháumapletoradecapital,eletransbordaránaagriculturamesmocom uma elevação no preço de mercado”[79]. Em prol da simplicidade, manteremos estas condiçõesexternasconstantes,emboraaconexãoentreatendênciaparaasuperacumulação(capítulo7)eacriaçãodemelhorias de capital fixo na agricultura (capítulo 8) deva ser notada como de grande importânciapotencial.Devemos também ressaltar apossibilidadede algumas formasde circulaçãopeculiaresquesurgem quando, como às vezes acontece, os proprietários de terra são também os financistas.Nessescasos, as rendasmonetáriasqueoproprietárioda terra apropriapodemser circuladasdiretamentedevoltaàagriculturacomocrédito.Oproprietáriodaterraentãorecebetantorendaquantojuros,enquantooprodutorficaconfinadoaolucrodoempreendimento,que,emcondiçõesparticularmenterepressivas,podeterminarpróximoaosaláriodesubsistência.

Contudo, mais importante para o nosso presente propósito é considerar as implicações dosdeslocamentosnofluxo“normal”docapital.Este,segundoMarx,podesealterar“gradualmente”comooresultadodesucessivos investimentos–“assimqueonovométododecultivo torna-sesuficientementegeralparaseronormal,opreçodaproduçãocai”[80].Porisso,éprovávelqueabaseparaaRD-2sedesgastecomopassardotempo.ComoaRD-2éoprodutodefluxosdecapitaldeslocadosparaaterra,ela deve também ser encarada, pelo menos em primeira instância, como um efeito transitório, emoposiçãoapermanente.Então,comoessesproprietáriosdeterraestãoemposiçãodeseapropriaremdaRD-2? O caso mais óbvio, mas menos interessante, surge quando os investimentos criam melhoriaspermanentes(porqueossucessivosinvestimentos,comojávimos,podemcomfrequênciaampliar,emvezdedesvalorizar,umaooutro).“Essasmelhorias,emboraprodutosdocapital,têmomesmoefeitoqueasdiferenças naturais na qualidade da terra.”[81] Mas o que acontece é que o investimento destrói asuposiçãode“igual fertilidade”e, assim, criaumabaseparaa apropriaçãodaRD-1.A fertilidadeé,afinal,umprodutosocial.ARD-2éconvertidadiretamenteemRD-1.

Os casosmais interessantes surgem porque a RD-2 “em qualquer dadomomento só ocorre numaesferaqueéemsiabasediversificadadarendadiferencial1”[82].EaquidescobrimosqueaRD-2sópode ser apropriada tendo comobase aRD-1.É esta última que converte as qualidades do contráriotransitórias da primeira em efeitos suficientemente permanentes para permitir a ocorrência de umaapropriaçãodarenda.Vejamoscomoissopodeacontecer.

Como a fertilidade sempre implica “uma relação econômica”, ela muda segundo o “nível dedesenvolvimento”[83]. Por isso, o solo pior não pode ser identificado, independente da aplicação docapital “normal” (e da tecnologia e dos métodos que o acompanham).Mas o capital “normal” devetambémvariarsegundoanaturezadosolo(oqueé“normal”parasolosargilosospesadosnãoseriaparagredas leves, supondo-se que a mesma mercadoria seja produzida). O conceito de capital “normal”torna-setãodiversificadoquantoasfertilidadesdiversificadasàsquaisocapitaléaplicado.Porisso,ocaso“normal”éaaplicaçãodesigualdecapitalasolosdefertilidadedesigual.Marxentãoponderaoqueacontecequandoé feitoum investimentoextradecapital.Eleconsideranovecasos,em tabulaçãocruzada, dependendo de se o preço demercado é constante, aumenta ou cai, e se a produtividade dosegundoinvestimentoemrelaçãoaoprimeiroaumenta,diminuioupermanececonstante.Dependendodacombinaçãoparticular,Marxconseguedemonstrarsituaçõesemqueo“solopior”paradesercultivado,permaneceoreguladorouésubstituídoporumsoloaindamaisinferior.ARD-1,quefoioriginalmenteconcebida para ser o reflexo de diferenciais permanentes, agora se torna variável dependendo da

Page 328: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

condição da oferta e da demanda (como está refletido nos movimentos do preço de mercado), e daprodutividadedocapital fluindoparaaagricultura.Alémdisso,podemosagoraverqueatémesmoosinvestimentos da produtividade reduzida só conduziriam a um aumento no preço de mercado quandoesses investimentos fossem feitos na terra pior[84]. Como os investimentos crescentes serão feitosnormalmentenasterrasmelhores,éinteiramentepossívelqueacrescenteconcentraçãodaproduçãonasterrasmelhores,mesmoemcondiçõesemqueosinvestimentosenvolvemretornosdiminuídos,conduzaaumaquedanospreçosdemercado e a umadiminuiçãodaRD-1, porque aproduçãonos solospiorescessatotalmente(oreguladordospreçosdemercadosedeslocaparaossolosmelhores).

Há duas implicações imediatas de tudo isso. Em primeiro lugar, como declara Fine[85], “não hápresunçãodequea interaçãodaRD-1edaRD-2seja simplesmenteaditiva”.Vemosmaisclaramentecomo as duas formas de renda na verdade “servem simultaneamente como limites uma para a outra”.Mas,alémdisso,tambémsetornaimpossívelparaoproprietáriodaterraouocapitalistasepararasduasformasderenda,distinguirqualsedeveaofluxodocapitalequalsedeveaosefeitos“permanentes”dasdiferençasnaturaisnafertilidade.Averdadeirabaseparaaapropriaçãodarendasetornaopaca.Nofim,oproprietáriodaterraseapropriadarendadiferencialsemsabersuaorigem.Masaexatamaneiraemqueoproprietárioda terradelaseaproprianaverdade temimplicaçõesparaospreçosdemercadoepara a acumulação do capital. E é aqui que a segunda implicação do argumento deMarx, aindamaisinteressante,setornaaparente.

Considereocasodaproduçãodiminuídadecapitaladicionalaplicadaaosolopior.“Seopreçodaproduçãoéigualadoaopreçomédioouseopreçoindividualdaproduçãodosegundoinvestimentosetornaregulado”dependeinteiramentedeseo“proprietáriodaterratemtemposuficienteatéademandaser satisfeita para fixar como renda o lucro excedente derivado” ao preço ditado pelo segundoinvestimento[86].Aintervençãodapropriedadedaterraaquiafetaovalordemercado,eaposturaneutradoproprietáriodaterracomrespeitoàacumulaçãoficadesgastada.

Considere, como contraste, o caso do capital adicional da produtividade diminuída, até mesmonegativa, movendo-se para solos superiores quando o valor de mercado permanece constante em umnívelfixadopelascondiçõesdaproduçãonosolopior.Naausênciadaapropriaçãodarenda,“ocapitaladicionalcomsubprodutividade,oumesmoaumentandoasubprodutividade,podeserinvestidoatéqueopreçomédio individual por trimestre dos solosmelhores se torne igual ao preço geral da produção”,eliminandoassimolucroexcedenteearendadiferencialsobreosolosuperior.Entretanto,

sobaleidapropriedadedaterra,ocasoemqueocapitaladicionalproduzapenasaopreçogeraldaproduçãoteriaconstituídoolimite.Alémdesseponto,oinvestimentoadicionaldecapitalnamesmaterrateriatidodecessar.[…]Aequalizaçãodopreçomédioindividual,nocasodasubprodutividade,éassimimpedida.[87]

Nessecaso,então,parecequeaintervençãodapropriedadedaterraeaapropriaçãodarendatêmumefeitobenéficoemrelaçãoàacumulação.Elasevitamo fluxodocapitalporcanaisque,docontrário,seriamimprodutivosdemais-valor(emboranãodelucro).

Finalmente,contrastamosoimpactodasrelaçõesdepropriedadeem“paísescomcivilizaçõesmaismaduras”,emquealgumtipode“preçodereserva”existeemterrasnãocultivadas,compaísesemqueocapitalpodefluirapenascomoobstáculodecustosdecompensaçãoparaanovaterra.Ofatodeoúltimoconduziraformasdeinvestimentoextensivaseoprimeiroaformasintensivaséóbvio[88].Entretanto,“aconcentração do capital – em uma área de terra menor – aumenta a quantidade de renda por acre,

Page 329: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

enquantonasmesmascondições,suadispersãosobreumaáreamaior[…]nãoofaz”.Consequentemente,

dadosdoispaísesemqueospreçosdaproduçãosãoidênticos,asdiferençasnotipodesolosãoidênticaseamesmaquantidadedecapitaléinvestido–masemumdospaísesmaisnaformadegastossucessivosemumaáreadeterralimitada,enquantonooutromaisnaformadegastoscoordenadosemumaáreamaior–arendaporacre,eassimopreçodaterra,seriamaiornoprimeiropaísemenornosegundo,emboraarendatotalfosseamesmaparaosdoispaíses.[89]

A propriedade pode ter efeitos positivos, negativos ou neutros sobre os preços de mercado, aacumulaçãodecapital,ograudedispersãodaproduçãoetc.Umaconclusãosubsidiáriaéquearendadiferencialpode,emdeterminadascondições,ocorreratémesmonosolopior[90].Marxchegouaessasconclusõesgerais,semqualquerevidênciaqueasapoiasse,muitomaiscedo.

A renda pode não determinar o preço do produto diretamente,mas determina ométodo de produção, quer uma grande quantidade decapitalsejaconcentradaemumaáreapequenadeterra,ouumapequenaquantidadedecapitalsejadisseminadasobreumaáreagrandedeterra,equeresteouaqueletipodeprodutosejaproduzido.[91]

Aapropriaçãodarendapodeserencaradaalternadamentecomosocialmentenecessária, totalmentedeletéria ou um aspecto indiferente em relação à acumulação do capital. Essa conclusão nos ajuda aentenderopapelcontraditóriodapropriedadedaterraedaapropriaçãodarendanocapitalismo.

IV.OPAPELCONTRADITÓRIODARENDAFUNDIÁRIAEDOFEUDALISMONOMODODEPRODUÇÃOCAPITALISTAO monopólio da propriedade da terra, além de ser uma “premissa histórica”, é também uma “basecontínua”paraomododeproduçãocapitalista[92].Osignificadodissoéqueaapropriaçãodarendaeaexistênciadepropriedadeprivadanaterrasãocondiçõessocialmentenecessáriasparaaperpetuaçãodocapitalismo. A base dessa necessidade social tem de ser firmemente estabelecida. Podemos entãoexplorar por que a força revolucionária do capitalismo, que é tão frequentemente destrutiva de outrasbarreirassociaisqueestãoemseucaminho,deixouapropriedadedaterraintacta(emboraemumestadotransformado)epermitiuaapropriaçãodarenda(umapartedomais-valorquedocontrárioseacumulaao capital) por “uma classe que nem trabalha nem explora diretamente o trabalho, nem consegueencontrarracionalizaçõesmoralmenteedificantes”parasuaexistênciacontinuada[93].Qual,emresumo,éabasesocialrealparaareproduçãodapropriedadedaterranocapitalismo?

ArespostadeMarxébastanteclara.

Apropriedadedaterranãotemnadaavercomoprocessodeproduçãoreal.Seupapelestáconfinadoatransferirumaporçãodomais-valor produzido dos bolsos do capital para o seu próprio bolso. Entretanto, o senhor de terra desempenha um papel no processo deproduçãocapitalistanãoapenaspormeiodapressãoqueeleexercesobreocapital,nãoapenasporqueumapropriedadedaterragrandeéumpré-requisito e uma condiçãoda produção capitalista por ser umpré-requisito e uma condiçãoda expropriação do trabalhador dosmeiosdeprodução,masparticularmenteporqueeleaparececomoapersonificaçãodeumadascondiçõesmaisessenciaisdaprodução.[94]

Consideremosatentamenteessestrêspapéis.

1.Aseparaçãodotrabalhadorbraçaldaterracomomeiodeprodução

Page 330: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

“Seaterraestivesse[…]àlivredisposiçãodetodos,entãoestariafaltandoumelementoprincipalpara a formaçãodocapital. […]Assim, a ‘produção’do trabalhonão remuneradodeoutrapessoa setornariaimpossíveleissoporiaumfimdefinitivoàproduçãocapitalista.”[95]Dadoocaráterfundamentaldaterracomoumacondiçãooriginaldaprodução,aquelesquenelatrabalhamdevemdealgumaformaseratraídosoupressionadosparaatrocademercadoria.Aextraçãodarendadoscamponesesporpartedossenhoresdeterradesempenhaumpapelvitalnopressionamentodoscamponesesparasepararpelomenosumapartedoseuprodutoemvezdeelesprópriosoconsumirem.Masparaatotaldominaçãodocapitalsobreotrabalhoserconseguida,antesdetudodevesercriadaumaforçadetrabalhoassalariada,umproletariadosemterra.Aacumulaçãoprimitivaforadaterraproduztrabalhadoresassalariados.Umaformadefinidadepropriedadedaterrapreencheessepapelhistóricoecontinuaapreenchê-lo,namedidaem que a ampliação e o aprofundamento do capitalismo no cenário mundial o requeiram. Quando ocapitalencontrasituaçõesemqueapropriedadeprivadanaterranãoexiste,eledevedarpassosativospara criá-la e desse modo garantir a produção do trabalho assalariado. E a necessidade de negar oacesso do trabalhador à terra comomeio de produção não diminui demodo algum com o avanço docapitalismo.Na verdade, isso continua sendo uma necessidade permanente para que a reprodução darelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalhosejaassegurada.

Abarreiraqueapropriedadedaterracolocaentreotrabalhoeaterraésocialmentenecessáriaparaa perpetuação do capitalismo.Mas ao criar a propriedade da terra comouma barreira ao trabalho, ocapital tambémcria barreiras para simesmo.Aopossibilitar a reproduçãodo trabalho assalariado, aapropriaçãodarendatambémsetornapossível.Esseéumaspectodaposiçãocontraditóriadapropriedadedaterranocapitalismo.

2.Apossedeterraeoprincípiodapropriedadeprivada

Oscapitalistaspoderiamorganizaraseparaçãodotrabalhodaterrasimplesmenteassegurandoquea“terranãodeveriaserumapropriedadecomum,queeladeveriaconfrontaraclassetrabalhadoracomoumacondiçãodeproduçãonãopertencenteaela,eessepropósitoétotalmentesatisfeitoseelasetornarpropriedadedoEstado[…]apropriedadecomumdaclasseburguesa,docapital”[96].Essapossedaterrapor parte do Estado não deveria ser confundida com “propriedade das pessoas”, o que aboliriaefetivamentetodaabasedaproduçãocapitalista[97].MasháumabarreirasériaàpossedaterraporpartedoEstado e à aboliçãoda renda.Tendo emvista o fatopráticodequemuitosmembrosdaburguesia(incluindo os capitalistas) são proprietários de terra, “um ataque a uma forma de propriedade […]poderialançarumadúvidaconsiderávelsobreaoutraforma”[98].Eaoutraformaéapossedosmeiosdeprodução,dosquaisocapitalderivaasuaprópriaposiçãoelegitimaçãolegais.Porisso,apreservação,eatéamelhoria,dapropriedadeprivadanaterradesempenhaumafunçãoideológicaelegitimadoraparatodasasformasdepropriedadeprivada;daí,argumentariamalguns,aimportânciadeconferirprivilégiosdepossedamoradia(possessãodeummeiodeconsumo)àclassetrabalhadora.Dessepontodevista,podemos encarar a renda como um pagamento suplementar permitido aos proprietários de terra parapreservara santidadeea inviolabilidadedapropriedadeprivadaemgeral.Esseaspecto ideológicoejurídicodapropriedadedaterratemimportantesimplicações,masnãoéemsisuficienteparaexplicaraforma capitalista da renda ou as contradições às quais a forma capitalista da propriedade da terra dáorigem.

3.Ofeudalismoeofluxodecapital

Page 331: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

O fluxo do capital para emediante a terra como condição emeio de produção émodificado emimportantesaspectospelapropriedadedaterraepelaapropriaçãodarenda.Emboraocapitalfundiárioimponha uma “barreira” ao fluxo de capital e haja impactos negativos das apropriações da renda naacumulação,verifica-sequeapropriedadedaterratemtambémumpapeladesempenharnapressãoparaa alocação adequada do capital à terra. A dificuldade é garantir a melhoria desse papel positivoenquantoserestringeonegativo.

Tantonocasodomonopólioquantodarendaabsoluta,apropriedadedaterracolocabarreirasquesãodifíceisdejustificaremrelaçãoàsexigênciasbásicasdocapitalismo.Porisso,aapropriaçãodessasformasderendadeveserencaradacomoumainfluênciatotalmentenegativasobreaalocaçãoadequadadocapitalàterrae,daí,àformulaçãodepreçosdemercadoválidoseàsustentaçãodaacumulação.Poressa razão é claramente do interesse do capital em geral manter as rendas absolutas e monopolistasdentrode limitesestritos,paraassegurarqueelaspermaneçampequenas (comoMarx insistiuqueelasdevamser)edeocorrênciaesporádica.

Oproblemamais interessante surgeno casoda interação complexa entre as duas formasde rendadiferencialque (ver seção III)podem terefeitospositivos,negativosouneutros sobrea formaçãodospreçosdemercado,aconcentraçãoedispersãodocapital,eaacumulação.Infelizmente,grandepartedapolêmicadirecionadacontraasformasderendamonopolistaeabsolutaeopapelparasíticoesupérfluodosenhordeterranessassituaçõesforamtransferidosparaadiscussãodarendadiferencial.Porisso,osaspectos negativos das intervenções da propriedade da terra foram enfatizados, enquantomuito poucaatençãofoidadaaopapelpositivodecoordenaçãodofluxodocapitalsobreaterraemedianteaterra,demaneiraaapoiaramplamentemaisacumulação.Consideremosapropriedadedaterraemseuaspectopositivo.

Uma das “grandes conquistas do modo de produção capitalista”, escreveu Marx, foi a“racionalizaçãodaagricultura”paraqueelapudesseoperaremuma“escalasocial”coma“aplicaçãocientífica consciente da agronomia”, capaz de gerar o produto agrícola excedente tão vital para aacumulaçãodocapitalmedianteaproduçãoindustrial.Aconquistadeumequilíbrioadequadonadivisãodo trabalho entre a indústria e a agricultura, e de uma alocação adequada do trabalho social total nasociedadeparadiferentes linhasdeproduçãonaagricultura,depende fundamentalmentedacapacidadedo capital de fluir livremente para a terra emediante a terra[99].A forma que a propriedade da terraassume no capitalismo, em contraste com todos osmodos precedentes ou alternativos de controle daterra, aparece como um conjunto de dispositivos superlativos totalmente adaptados às exigências docapital.O fato de tais dispositivos envolverema apropriaçãoda renda fundiária não faz diferença.Aterraé liberadae transformadaemumcampoabertoparaaoperaçãodocapital.Marxcoloca issodemaneira muito sucinta em A miséria da filosofia: “a renda, em vez de ligar o homem à Natureza,simplesmentevinculaaexploraçãodaterraàcompetição”[100]–e,podemosacrescentar,àacumulaçãodecapital.

Háumsentidoemqueaapropriaçãodarendadiferencialmelhoraacompetição,emvezdelimitá-la.Emvezdetributaroslucrosexcedentesquesãorelativamentepermanentes,oproprietáriodaterraoperapara igualar as taxas de lucro entre os produtores concorrentes. Na medida em que os produtorescompetem,elesprecisamfazê-lotendoporbasenovosmétodos(que,comoaquelesdaindústria,podemrapidamentesetornargerais),emvezdesebasearemnasvantagens“injustas”quesedevema“dádivasgratuitasdanatureza”oua resultadosherdadosdeesforçoshumanosque remontamhámuitos séculos.Quandoasvantagensinjustassãoeliminadas,acompetiçãoobrigaosprodutoresadesenvolvermaisas

Page 332: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

forçasprodutivasearacionalizarmaisaprodução.Esseprincípioétransferido,comoveremosnaseçãoVI,paraaracionalizaçãodaorganizaçãoespacialdocapitalismopormeiodacompetição.

Adificuldadeéquenãohácomoassegurarqueaquelesqueseapropriamdarendarecolhamoquelhesédevidoeapenasoquelhesédevido.ObrilhantismodaanálisedeMarxdarendadiferencialagorasetornaaparente.AsinteraçõescompletasdaRD-1(devendo-seclaramenteaoproprietáriodaterra)edaRD-2(pelomenosparcialmentedevidasaocapital)impossibilitamdistinguirquemdeveobteroquê:as relações reais tornam-se opacas. A existência da renda da terra não só vincula o uso da terra àcompetição e a todas as contradições que daí partem, mas também introduz um tipo de dificuldadetotalmente novo aos processos de reprodução do capitalismo. O que de início parece ser um clarodispositivoderacionalizaçãoparacoordenaroinvestimentonaterratorna-seumafontedecontradição,confusãoeirracionalidade[101].Écontraessepanodefundoquetemosdeinterpretaralutaativaentreosproprietáriosdeterraeoscapitalistas.Umprocessosocialdealgumtipotemdeestabelecer,demaneiraabertaeclara,oquesetornaopacodopontodevistadasrelaçõessociaisreaisdaprodução.

V.RELAÇÕESDEDISTRIBUIÇÃOELUTADECLASSESENTREOPROPRIETÁRIODATERRAEOCAPITALISTAOvaloranualtotalproduzidonasociedadecapitalistaédistribuídonasformasdesalários,rendas,juros,lucroseimpostos.Qualéaparceladeequilíbriodarendanessevaloranualtotal,ecomoessaparceladeequilíbrioédeterminada?Arespostamaisóbviaéapelarparaopoderrelativodasdiferentesclasseseenxergar as relações de distribuição como um resultado da luta de classes. Do ponto de vista dapropriedadedaterra,essalutaémultidimensionalporqueoproprietáriodaterraécolocadoemoposiçãoa todososusuáriosda terra–capitalistas (queusama terracomomeiodeproduçãoousimplesmentecomoespaço),camponeses,trabalhadores,financistas,oEstadoeváriasoutrasfacçõesdaburguesia.Arendapodeserapropriadadasreceitas(assimdandoorigemamuitasformassecundáriasdeexploração)e também domais-valor diretamente produzido de acordo com a produção.O proprietário da terra ésupostamenteindiferenteàfonteespecífica,contantoquearendacontinueseacumulando.

AinvestigaçãoteóricadeMarxdarendafundiáriatrataapenasdaspartesrelativasdoproprietáriodaterraedocapitalistanomais-valorproduzidosobreaterra.Masnosconvidaaobservaralutaevidentesobre as partes distributivas como uma expressão de forças mais profundas que circunscrevem ospoderesrelativosdasclassesenvolvidas.

Considere, por exemplo, a relação entreosproprietáriosde terra eosprodutores camponeses.Seestesúltimosforemencaradoscomotrabalhadoresindependentesnocontroledoseupróprioprocessodeprodução,entãoosproprietáriosdeterraexistememumarelaçãodiretadeexploraçãocomelesetêmtodososincentivosparaextorquiromáximo de renda possível para pressionar o trabalho do camponês e para pressionar a expansão daproduçãodemercadorias.Alutaentreoproprietáriodaterraeocamponêsestádiretamenteengajada.Aforçadecideoresultado[102].Ointeressedocapital,otempotodoemqueumsuprimentodealimentoematérias-primas baratos é conseguido, é se aliar aos proprietários de terra e encorajar níveis sempremaiselevadosdeexploraçãodaterra.

A situação é muito diferente quando os proprietários da terra se apropriam das rendas doscapitalistas usando a terra como um meio de produção. Os primeiros poderiam, caso fossem

Page 333: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

suficientementepoderosos,seapropriardegrandepartedolucrodocapitalista.Masaquiencontramoscircunstânciaslimitadorasquealterammaterialmenteasrelaçõesdeclasse.Osproprietáriosdeterranãopodemobrigaroscapitalistasainvestirdamesmamaneiraquepodemobrigaroscamponesesatrabalhar.E,namedidaemqueamaximizaçãodaextraçãodarendadiminuiofluxodecapitalparaarenda,estaéclaramenteumatáticaautoderrotistaporpartedoproprietáriodaterra.Naverdade,seobservarmosmaisdeperto, veremos fortes incentivospara os proprietários de terra abrirema terra ao fluxode capital.Afinal,éovalordeusodaterraparaoseuproprietárioquepermiteaapropriaçãodarenda,eéarendaporacrequeimporta.Ovalordeusodaterraparaocapitalistaécomoummeiodeproduçãodemais-valor:éa rendaemrelaçãoaocapitaladiantadoeomais-valorproduzidoque importam.Adiferençaentreasduasperspectivaspermiteaexistênciadeum“terrenodecompromisso”entreeles.Porexemplo,a taxade rendasobrea terrapodecontinuaraaumentaraomesmo tempoquea taxade rendasobreocapitaladiantadopermanececonstanteouatédiminui[103].Emdeterminadascondições,oproprietáriodaterratemumforteincentivoparapermanecerpassivoeparaminimizarasbarreirasqueapropriedadedaterraergueaofluxodecapital[104].

Assim, a relação entre o capital e a propriedade da terra não é reduzida a uma relação de eternaharmonia. Não é fácil distinguir, por exemplo, entre produtores camponeses e produtores capitalistasindependentes,eosproprietáriosdeterranãosãonecessariamentesofisticadosobastanteparaenxergaravirtudedealterarsuaestratégiademaximizararendaqueelesextraemdoscamponeseseajustarsuasvistasquandosetratadocapital.Alémdisso,odesenvolvimentodotrabalhosocial“estimulaademandapelaprópriaterra”e,assim,apropriedadedaterraadquire“acapacidadedecaptarumaporçãosemprecrescente”domais-valorproduzido[105].Abençoadocomtalcapacidade,queproprietáriodeterrapoderesistirausá-la?Oproprietáriode terraestáeternamente imprensadoentrea toliceevidentede tomarmuitopoucoeaspenalidadesresultantesdetomardemais.

A mesma tensão paira sobre as condições de contrato relacionadas às melhorias permanentes.Emboraasmelhoriaspossamserfeitaspelocapitalista,elas“setornamapropriedadedoproprietáriodeterra”assimque“otempoestipuladopelocontratoexpirou”.Ointeressenasconstruções,porexemplo,“cainasmãosdocapitalista industrial, doespeculador imobiliáriooudoarrendatário, contantoqueoarrendamentosejalongo”,masdepoisele“passaparaasmãosdoproprietáriodaterrajuntocomaterrae[portanto]inflaasuarenda”.Aí“estáumdossegredosdoenriquecimentocrescentedosproprietáriosde terra, a contínua inflação de suas rendas e o valor monetário constantemente crescente de suaspropriedades”. Mas aí está também “um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento racional daagricultura”, assim comode todas as outras formas de investimento no ambiente construído, porque oarrendatário“evitatodasasmelhoriaseosgastospelosquaiselenãopodeesperarretornoscompletosduranteotermodoseuarrendamento”[106].

Alutaemrelaçãoàextensãoeaostermosdoarrendamento,eàcompensaçãojustapeloinvestimentodecapitalemmelhoriaspermanentes,torna-seprevisivelmenteaprincipalquestãocontratualnarelaçãoentre o capital e o proprietário da terra. E, assim como o contrato sobre a jornada de trabalho (tãoimportanteparaarelaçãoentreocapitaleotrabalho),elaéfundamentalmentereguladapeloEstado,sejaporlegislaçãoouporprecedentelegal.

O resultado dessa luta tem importantes implicações para a acumulação. Se o capital adquire umdireitoeternoàsmelhoriaspermanentesqueoprópriocapitalcria,entãooslucrosexcedentestornam-seumacaracterísticamaispermanentedoquetransitóriadentrodacompetiçãopelomais-valorrelativo.Asforças que vinculam a exploração da terra à competição ficam amortecidas. A alocação do trabalho

Page 334: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

social às atividades será distorcida em comparação com a acumulação equilibrada.Quase certamenteocorreráumasuperconcentraçãodasatividadesnoespaço.Váriosdesequilíbriossériosvãosurgirdentrodoprocessodeacumulaçãocapitalista.

Ateoriadarendafundiáriailustraqueessasconsequênciassópodemserevitadasseapropriedadedaterraseapropriarbrutalmentedosexcessosdelucroaseremobtidosdequalquertipodevantagem,sejaelacriadaporaçãohumanaounão.Masseoproprietáriodaterraseapropriarmuitorapidamenteoumuito selvagemente, então o estímulo para em primeiro lugar se fazer investimentos fica tambémamortecido.Serápossível identificarumpontodeequilíbrioentreessasduasexigênciascontrárias?Opontomaisóbvioaserobservadoéaquelemomentoemqueo investimentofoi totalmenteamortizado.Masessepontoédifícil,senão impossível,de identificarporqueavidafísicadesses investimentoséexcessivamente longa,enquantoavidaeconômicasofrede todasasambiguidadesqueacirculaçãodocapitalfixoenfrentaemgeral(vercapítulo8).Namedidaemqueavidadocapitalfixoépadronizadasegundoa taxade juros,enamedidaemquea rendaéassimiladanos jurosemumaformadecapitalfictício,oconflitotambéméregulamentadoporpelomenosalgumtipodeprocessosocial(emboraataxade juros, como vimos nos capítulos 9 e 10, não seja exatamente um regulador coerente ou isento decontradições).

As tensões evidentes envolvidas em tudo isso admitem várias soluções possíveis. Talvez a maisinteressante,dopontodevistadahistória socialdocapitalismo, sejaa fazenda familiarocupadapeloproprietário. Em um sistema desse tipo, os produtores podem ser ao mesmo tempo capitalistas eproprietáriosdeterra,demodoqueoconflitoentreosdoispapéisparecedesaparecer.Marxconsideratal situação tanto excepcional quanto fortuita[107]. É difícil negar seu raciocínio. Os ocupantes-proprietáriossãoresponsáveispelopreçodeaquisiçãodaterrae,mesmoquandoaterrafoitransmitidasemônuspormuitasgerações,arendaprecedenteemvirtudedocapitalfictícioembutidono“valor”daterranãopodeserdesdenhosamentepostadelado.E,emmuitoscasos,aocupaçãonominaldoespaçofísicopeloproprietárioocultaumarelaçãohipotecária (equivalenteà renda)eumarelaçãodecrédito(equivalente aos juros sobre o capital emprestado para a produção atual), deixando o ocupante-proprietário apenas com o lucro do empreendimento. Na medida em que a posse da terra garante acirculaçãodecapitalquerendejuros,asformasmodernasdaocupaçãopeloproprietárionaagriculturasimplesmenteatingemtudooqueseriaesperadonasrelaçõessociaisdocapitalismo.Naverdade,podemsurgiraquialgumasformasdecirculaçãocuriosasquemerecemumainvestigaçãomaisprofunda.Seosprodutores cultivam sob contrato, realizam eles próprios grande parte do trabalho e estão seriamenteendividados com instituições financeiras tantoparaopagamentodehipotecaquantoparao créditodeoperações atuais, o “ocupante-proprietário” nominal é provavelmente mais bem encarado como umadministradoroumesmoumtrabalhadorquerecebeumaespéciedeparteda“empreitada”dovalortotaldo mais-valor produzido. Como sempre, é importante penetrar abaixo da aparência superficial eestabelecerasrelaçõessociaisdaproduçãoqueprevalecem.

Emboraalutaentreocapitalistaeoproprietáriodaterraocorramaisobviamentenoterrenode(1)as condições de contrato que regulam o uso da terra, (2) a magnitude da renda e (3) a duração doarrendamento e a compensação pelas melhorias, há outras considerações mais gerais que afetam osarranjos distribucionais.As receitas – rendas – do proprietário da terra constituemparte das receitasgeraisdaburguesia.Essasreceitaspodemseracumuladasoulançadasdevoltaàcirculação.Noprimeirocaso a circulação do capital em geral tende a ficar seriamente comprometida. No último, as receitaspodemcontinuaracircularmedianteaaquisiçãodeserviços,produtosdeluxoetc.,ouseremconvertidas

Page 335: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

emcapitalmonetário,quefluitantoparaaproduçãoquantoparaoconsumoviaosistemadecrédito.Amaneiracomosãousadastemimportantesimplicações.

Asreceitasquefluemparaaaquisiçãodeprodutosdeluxopodemdesempenharumpapelimportantenaestimulaçãodademandaefetiva,emboranão,comojávimosnocapítulo3,naresoluçãodoproblemade“realização”docapital.Nessecaso,osproprietáriosdaterratambémoperamcomoumadas“classesconsumidoras” da sociedade, cujas atividades estão integradas na dinâmica geral da circulação docapital. Mas, dada a sua colocação dentro desse sistema, não é difícil ver suas atividades comocomprometedorasdasproporcionalidadesnecessáriasentreaagriculturaeaindústria,entreacidadeeocampo,eentreaproduçãodebenssalariaisbásicos(osalimentosemparticular)eosprodutosdeluxo.

Ousodasreceitasdoproprietáriodaterracomocapitalmonetárioémaisinteressantedecontemplar.Ele sugere um vínculo potencial forte entre a propriedade da terra e os bancos – um vínculo que éfacilmenteobserváveledegrande importâncianahistóriacapitalista.Ele tambémindicaumpotencialpoderosoparamobilizaroprodutoexcedentedaterra(obrigandoosprodutoresàtrocademercadorias)enquanto centraliza o capital, apesar de este estar nas mãos dos proprietários de terra mediante aapropriação da renda de inúmeros pequenos produtores.Namedida em que os proprietários de terrausamocapitalquecentralizamdemaneiraspositivas,emvezdeviveremdoexcedentedaterraemumconsumoconspícuo,elesdesempenhamumpapelvitalemuitocentralnahistóriadaacumulação.

Na verdade, um dos triunfos do capitalismo foi impor aos proprietários de terra um papel muitopositivo comouma condiçãopara sua sobrevivência.Mas aí se situa uma linhamais geral da luta declasses, porque o interesse fundiário não estava de modo algum disposto a tratar a terra sob o seucomando como um simples bem financeiro, nem estava necessariamente disposto a usar o podermonetárioqueelacentralizavasimplesmentecomodinheiroaser lançadoemcirculaçãocomocapital.Nofim,opodersocialdodinheiroestavadestinadoadominaropodersocialdaterra.Ousodaterrapara adquirir dinheiro há muito vinha sendo o objetivo dos segmentos mais dinâmicos do interessefundiário, e em longoprazo isso significavamuito simplesmente a fusãoda propriedadeda terra comtodosostiposdearrendatários[108].Ointeressefundiárioperdeuoseupapelautônomoeindependenteefoi necessariamente transformado em uma facção do próprio capital. As lutas históricas entre osinteressesfundiárioseosinteressesindustriaisnaGrã-BretanhadoséculoXIX,easlutascontínuasdecarátersemelhanteemmuitasoutraspartesdomundo,têmdesersituadasemcontraposiçãoaopanodefundodessa transformaçãonecessáriaque assimila ambasdentroda estruturada circulaçãodocapitalque rende juros.Nesse processo, a parte da renda nomais-valor total produzido é cada vezmenos oprodutodeumconflitodeclasseabertoentreduasclassessociaisquaseindependentesecadavezmaisinternalizadadentrodalógicaquecolocaacirculaçãodocapitalquerendejurosentreasváriasformasdecapitalfictícioquesurgemdentrodomododeproduçãocapitalista.Issonosconduzmaisdiretamenteacomoeporqueocapitalquerendejurospassaacircularpelaprópriaterra.

VI.OMERCADOFUNDIÁRIOEOCAPITALFICTÍCIOMarxnãorealizounenhumaanálisedetalhadadosmercadosfundiários.Eledeuprioridadeàconstruçãodateoriadarendafundiáriaporqueeraaíqueeleconsideravaestaroverdadeirodesafioteórico.Mas,damesmamaneira que confinar as origens do dinheiro às diferentes formas de valor incorporadas namercadorianãodiztudoquetemaserditosobreopapeldodinheiroedocrédito,vincularaorigemdopreçoda terra auma renda fundiária capitalizadanão esgota toda a importânciadoquepode serdito

Page 336: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

sobreosmercadosfundiáriosnocapitalismo.Osmercadosfundiáriosexibemcaracterísticaspeculiaresedesempenhamimportantesfunções.Portanto,merecemumaanáliseespecífica.

Ateoriadarendafundiáriaresolveoproblemadecomoaterra,quenãoéumprodutodotrabalhohumano,podeterumpreçoesertrocadacomoumamercadoria.Arendafundiária,capitalizadacomoojurosobrealgumcapital imaginário,constituio“valor”daterra.Oqueécompradoevendidonãoéaterra, mas o direito à renda fundiária produzido por ela. O dinheiro exposto é equivalente a uminvestimentoquerendejuros.Ocompradoradquireumdireitosobreasreceitasfuturasantecipadas,umdireitosobreosfrutosfuturosdotrabalho.Odireitoàterrasetorna,emresumo,umaformadecapitalfictício (ver p. 353-7). “Se é emprestado como dinheiro, terreno, imóvel etc., o capital devémmercadoriacomocapital,ouamercadoriaqueépostaemcirculaçãoéocapitalcomocapital.”[109] Jánosreferimosagrandepartedisso[110].

As forçasbásicasque regulamopreçoda terra e seuspertences são a taxade juros e as receitasfuturasantecipadasdarenda.Osmovimentosnataxadejurosimpõemfortesritmostemporaisecolocamos movimentos de preço da terra dentro de uma estrutura geral definida pelas relações entre aacumulaçãodocapitaleaofertaeademandadecapitalmonetário(vercapítulos9e10).Astendênciasdelongoprazoparaumataxadejurosdecrescenteoupletorastemporáriasdecapitalmonetáriovãoemgeralresultaremumaumentonosvaloresdaterra(asrendaspermanecendoconstantes).

Antecipações cambiantes de rendas futuras, ligadas tanto aos fluxos de capital futuro quanto aotrabalhofuturo,afetamdomesmomodoospreçosdaterraedapropriedade.Poressarazão,atémesmoaterra ociosa pode adquirir um preço[111]. O elemento especulativo está sempre presente nacomercialização da terra. A importância disso tem de ser agora estabelecida, emboraMarx em geralexcluaaespeculaçãodoseucampodeação.Entretanto,eleapresentaumexemplointeressante.Nocasodaconstruçãodecasasemcidadesquecrescemrapidamente,eleobservaqueo lucrodaconstruçãoéextremamentepequenoe“o lucroprincipalvemdeelevara rendafundiária”,demodoqueé“a rendafundiária,enãoacasa,queéoobjetorealdaespeculaçãoimobiliária”[112].Osproprietáriosdeterranãoassumemdemodoalgumumaposturapassivanessecaso.Elesdesempenhamumpapelativonacriaçãodecondiçõesquepermitamqueasrendasfuturassejamapropriadas.Oavançodocapitaleaaplicaçãodotrabalhonopresenteasseguraumaumentonasrendasfuturas.

Essa situação tem uma importância geral maior do que Marx parece ter percebido. Buscandoativamente a apropriação de valores, os proprietários de terra podem impor novas configurações àproduçãona terraeatépressionaraproduçãodevalor emumaescalaecomuma intensidadequedocontrário não poderiam ocorrer. Assim, é claro, condenam o trabalho futuro a níveis de exploraçãosemprecrescentesemnomedaprópriaterra.Opapelativistadocapitalfictícioqueoperanaterraeascontradições que ele cria merecem um exame atento. Ele realiza algumas funções de coordenaçãoimportantese,dessemodo,legitimaejustificaaapropriaçãodarendadentrodalógicageraldomododeproduçãocapitalista.

Acirculaçãodocapitalquerendejurosnosmercadosfundiárioscoordenaousodaterraemrelaçãoàproduçãodemais-valormaisoumenosdamesmamaneiraqueajudaacoordenarasalocaçõesdaforçadetrabalhoeequalizarataxadelucroentreasdiferenteslinhasdeproduçãoemgeral.Aspeculiaridadesda terra acrescentam algumas novas peculiaridades a esse processo. Na prática, há pouca coisa queobrigue os capitalistas a renunciar às vantagens relativamente permanentes (de fertilidade ou delocalização)queelesdesfrutamemumdeterminadopedaçodeterraparapromoverumusodeproduçãoderendadiferente,porémmaiselevado,particularmenteseosbenefíciosquetiveramdeinvestiremtal

Page 337: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mudança são imediatamente extraídos sob a forma de rendas mais elevadas. A situação mudamaterialmenteseocapitalquerendejuroscircularpelosmercadosfundiárioseternamenteembuscaderendasfundiáriasfuturasaumentadasefixarospreçosdaterraemconformidadecomisso.Nessecaso,acirculação do capital que rende juros promove atividades na terra que visam seus mais elevados emelhoresusos,nãosimplesmentenopresente,mastambémprevendoaproduçãofuturademais-valor.Osproprietáriosdeterraquetratamaterracomoumsimplesbemfinanceirodesempenhamexatamenteessatarefa.Elescoagemocapital(pormeiodeaumentodasrendas,porexemplo)oucooperamcomeleparagarantiracriaçãoderendasfundiáriasmaiselevadas.Nocasodeumaaliançaativaentreoproprietáriodaterraeocapitalista,oprimeiroassumeopapeldoarrendatárioquebuscacaptarasrendasmelhoradasenquanto o capitalista busca o lucro[113]. Situações desse tipo observadas por Marx podem muitofacilmente ser criadas: as rendas aumentadas superam emmuito o lucro a ser obtido do investimentodireto.

Eternamente lutandoparacolocara terraemseu“melhoremaiselevadouso”,osproprietáriosdeterracriamumdispositivodetriagemquefiltraosusosdaterraeimpõemasalocaçõesdocapitaledotrabalhoquedocontrárionãopoderiamacontecer.Olhandoparaofuturo,elestambémpodeminjetarumafluidezeumdinamismonousodaterraquedocontrárioseriamdifíceisdeseremgerados.Quantomaisvigorosos forem os proprietários de terra nesse aspecto,mais ativo será omercado fundiário emaisajustávelsetornaráousodaterraemrelaçãoàsexigênciassociais–nopresentemomento,aacumulaçãodocapital.

Podemosagoratrazeroargumentocomrelaçãoaopapeldapropriedadedaterraeàapropriaçãodarendaparaocírculoamplodocapitalismo.Aapropriaçãodarendanãosóésocialmentenecessária,masos proprietários de terra precisam necessariamente assumir um papel ativo na busca de rendasaumentadas.Nãohánadainconsistentenessecomportamento,contanto,éclaro,queaterrasejatratadasimplesmente como um bem financeiro, uma forma de capital fictício aberto a todos os investidores.Quanto mais livremente o capital que rende juros perambular pela terra buscando títulos para osarrendatáriosdaterraapropriarem,melhoreleconseguirádesempenharoseupapeldecoordenador.

Mas,damesmamaneira,quantomaisabertoforomercadofundiário,maisimprudentementeocapitalmonetário excedente poderá criar reivindicações de pirâmides de débito e buscar realizar suasesperançasexcessivasmedianteapilhagemeadestruiçãodaproduçãonaprópriaterra.Oinvestimentonaapropriação,tãonecessárioaodesempenhodestasfunçõesdecoordenação,éaqui,comoemqualqueroutraparte,a“origemdetodotipodeformasinsanas”eafontededistorçõespotencialmentesérias.Aespeculaçãodaterrapodesernecessáriaaocapitalismo,masasorgiasespeculativasperiodicamentesetransformamemumatoleirodedestruiçãoparaoprópriocapital.

Aimportânciadessespoderesdecoordenação,comsuasconsequênciasnegativas,éparticularmenteevidente quando se trata do problema da organização espacial, um tópico queMarx também tende aexcluirdoseualcanceteórico,excetocomoumapreocupaçãoperiférica.Omercadofundiáriomoldaaalocação do capital à terra e, desse modo, molda a estrutura geográfica da produção, da troca e doconsumo,adivisãotécnicadotrabalhonoespaço,osespaçossocioeconômicosdareproduçãoeassimpordiante.Ospreçosdaterracriamsinaisaosquaisosváriosagenteseconômicospodemresponder.Omercadofundiárioéumaforçapoderosaquecontribuiparaaracionalizaçãodasestruturasgeográficasemrelaçãoàcompetição.

Além disso, os proprietários de terra desempenham um papel ativo no processo da estrutura ereestruturageográfica,contanto,éclaro,quetratematerracomoumsimplesbemfinanceiro.Considere

Page 338: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

asrelaçõesdotransporte.Oestímulopararevolucioná-lossurgedanecessidadedediminuirotempodecirculaçãodasmercadorias,deestendergeograficamenteosmercados,eassimsimultaneamentecriarapossibilidadedebaratearosinsumosdematérias-primas,expandindoabaseparaarealizaçãoaomesmotempo que acelera o tempo de rotação do capital. Se a renda depende da localização relativa, e alocalizaçãorelativadevesertransformadapelotransportemelhorado,entãooinvestimentonotransportevaiaumentarosvaloresdaterranasáreaspróximasaela.Deacordocomisso,osproprietáriosdeterrapoderãoganhar(ouperder).Eles têmumdireitoadquiridosobreondeequandoinvestirnotransporte.Podematé estar dispostos a promovê-lo comcerta perda (de preferência usandoo dinheiro de outraspessoas ou mediante a ação do Estado) para se beneficiar das rendas fundiárias aumentadas. Osproprietáriosdeterrainglesesaprenderamessetruquerelativamentecedo,eestadesdeentãocontinuousendoumafacetabásicadocapitalismo.

Os proprietários de terra são geralmente atraídos a competir por aquele padrão particular dedesenvolvimento,aquelepacotedeinvestimentoseatividades,quetemamelhorperspectivademelhoraras rendas futuras. Amoldagem do padrão geográfico do uso da terra para a competição depende dacompetiçãoentreosproprietáriosdeterraparaaumentaremasrendas.Acoordenaçãopossibilitadapelaexistência dos mercados fundiários e pelas sinalizações dos preços é, nesse aspecto, de vitalimportância.

Mas o caráter anárquico dessa competição pode ter fortes consequências negativas. Os capitaisexcedentes podem ser colocados para trabalhar de maneiras perdulárias; proprietários de terraindividuais,agindoemseupróprio interesse imediatoebuscandomaximizara renda fundiáriadaqualpodemseapropriar,podempressionaralocaçõesdocapitalàterrademodosquenãofazemsentidodopontodevistadasexigênciasgeraisdaacumulação.Aessaversãodapropriedadeda terradas forçasquecriamumdesequilíbriogeralnocapitalismo(vercapítulo7),devemser tambémacrescentadososproblemasparticularesquesurgemasinteraçõescomplexasdeRD-1eRD-2.Estasgarantemquenenhumproprietáriodeterrapodeconfinaroscustosebenefíciosdosesquemasqueelepromoveaoseuprópriopedaçodeterra.Consideradasemconjunto,asforçasquemoldamageografiadocapitalismomedianteofuncionamento dosmercados fundiários estão em risco eterno de se dissolverem em um pesadelo deincoerênciaeperiódicasorgiasdeespeculação.Otrabalhofuturoépressionadoparaconfiguraçõesquesãoinsustentáveis(dopontodevistadotrabalho,docapitaloudeambos).Oproblemaéimpediressadissolução e ao mesmo tempo preservar o mercado fundiário como um dispositivo de coordenaçãobásico.

Ocapitalsótemduaslinhasdedefesanessassituações:amonopolizaçãoouocontroleporpartedoEstado. Nenhuma solução está isenta de contradições internas. A monopolização do processo dedesenvolvimentodaterramedianteaconcentraçãoemlargaescaladapropriedadedaterrapermiteumprocesso coerente do desenvolvimento da terra emque os vários efeitos sinérgicos dos investimentospodem ser orquestrados de maneira vantajosa. Aqui, incidentalmente, está a tentação de conectar apropriedadeda terracomasaltas finanças–umaconexãoque seestendeduranteum longoperíodoetornaaversãofundiáriado“capitalismofinanceiro”historicamenteanterioràversãodocapitalindustrialquejáconsideramos(capítulo10)[114].Oproblemadessetipodemonopolizaçãoé,evidentemente,ofatodeeleabrirapossibilidadeparaaapropriaçãoderendasmonopolistas–umaformadeapropriaçãoqueem geral é desfavorável à acumulação. Os financistas podem compensar parcialmente essa tendênciaassumindo o controle da sua própria conta. O sistema de crédito estrutura o mercado fundiário parapreservar a circulação como um todo do capital que rende juros. O resultado é uma espécie de

Page 339: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

coordenação dupla conseguidamediante a integração das várias formas de circulação do capital querende juros. O problema dessa solução é que, embora os mercados fundiários possam ser mais bemcoordenados, eles se tornam mais diretamente expostos a todos os problemas inerentes ao própriosistemadecrédito.

AlinhafinaldedefesaéoEstado,quepodeassumirváriospoderesdaregulaçãodousodaterra,daexpropriação da terra, do planejamento do uso da terra e, finalmente, do investimento real, para secontraporàincoerênciaeàsperiódicasfebresespeculativasqueosmercadosfundiáriosperiodicamenteherdam. Embora o Estado possa sem dúvida colocar sua marca nas estruturas geográficas, elenecessariamentenãofazissodemodoaefetivamentevincularousodaterraàcompetiçãoouaoprocessodereestruturaçãodaacumulaçãodocapital.UmnívelmuitograndedeenvolvimentodoEstadotambémcomeçaaquestionartodaavalidadedosdireitosdepropriedadesobreosmeiosdeproduçãoemgeral,assimcomosobreaterra.

O capitalismo não pode funcionar sem ter o preço da terra e os mercados fundiários comodispositivos de coordenação básicos na alocação da terra aos usos. Ele só pode se esforçar pararestringir sua operação de modo a torná-los menos incoerentes e menos vulneráveis aos transtornosespeculativos.Duasimplicaçõesentãoderivamdessaconclusãogeral.

Emprimeirolugar,ospreçosnãopoderiamexistirsemopodermonopolistadapropriedadeprivadana terra e a capacidade de apropriação da renda que esse poder confere. Tanto a renda quanto apropriedade privada da terra são socialmente necessárias para a perpetuação do capitalismo. Anecessidade da reprodução social da propriedade fundiária e da apropriação da renda tem sidoamplamentedefinida.Asquestõescomasquaisiniciamosestecapítuloestãoefetivamenteresolvidas.

Há uma importante advertência a esse argumento. Só esse tipo de posse da terra que trata a terracomo um puro bem financeiro funcionará. Todas as outras formas de propriedade da terra devemsoçobrar.Aterradevesetornarumaformadecapitalfictícioesertratadacomoumcampoabertoparaacirculaçãodecapitalque rende juros.Somentenessascondiçõesaaparentecontradiçãoentrea leidovaloreaexistênciadarendasobreaterradesaparece.Atéquepontoasformaçõessociaiscapitalistasavançaramnessecaminhoéumaquestãoparainvestigaçãohistórica.Ofatodealeidovalornomododeproduçãocapitalistaenvolvertalprocessodetransformaçãoéindiscutível.

Emsegundolugar,opreçodaterracarregasimultaneamenteatemporalidadedaacumulação(comoestá registrada pelos movimentos na taxa de juros) e a especificidade dos valores de uso materiaisdistribuídosnoespaçoe,portanto,ligadosaconsideraçõestemporaiseespaciaisdentrodeumaestruturasingular definida pela lei do valor.Mas isso tudo não acontece de umamaneira passiva ou neutra.Opreço da terra deve ser realizadomediante a apropriação da renda futura, que se baseia no trabalhofuturo. Por isso, o pagamento do preço da terra pelo capital condena o trabalho a atividades muitoespecíficas emdeterminados locais durante um espaço de tempo determinado pela taxa de juros – ouseja,seocapitaladiantadoparaaaquisiçãodaterranãovieraserdesvalorizado.Aquivemos,umavezmais, como a operação da lei do valor restringe o trabalho ativo.Vamos abordar outras implicaçõesdesseresultadonocapítulo12.

Acirculaçãodocapitalquerendejurosemtítulosfundiáriosdesempenhaumpapelanálogoàqueledocapitalfictícioemgeral.Elaindicaoscaminhosdelocalizaçãoparaafuturaacumulaçãoeatuacomoumagente de força catalizadora que reorganiza a configuração espacial da acumulação segundo osimperativosbásicosdaacumulação.O fatode issoàsvezespressionarmuito (alémdacapacidadedeenfrentamentodocapitaloudotrabalho)ouemdireçõesequivocadas(devidoàsinevitáveisdistorções

Page 340: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

quesurgemquandoacirculaçãodocapitalmonetárioencontraefazusodosprivilégiosdomonopóliovinculados à propriedade privada da terra) simplesmente estabelece que o mercado fundiárionecessariamenteinternalizatodasascontradiçõesbásicasfundamentaisdomododeproduçãocapitalista.Por isso, impõe tais contradições aopróprio cenário físicodopróprio capitalismo.Masé, aomesmotempo,umdispositivodecoordenaçãovitalnalutaparaorganizarousodaterrademodoacontribuirparaaproduçãodemais-valoreparaaestruturaçãodasformaçõessociaiscapitalistasemgeral.

[1]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.624.

[2]V.I.LeninemTheDevelopmentofCapitalisminRussia,cit.,eKarlKautskyemLaquestionagraire(Paris,Maspero,1970[ed.bras.:Aquestãoagrária, São Paulo,NovaCultural, 1986]) (ver também o resumo em inglês de JairusBanaji, “Summary of Selected Parts ofKautsky’sTheAgrarianQuestion”,emEconomyandSociety,1976)sãoosdoisclássicospós-Marx.EstudosinteressantesmaisrecentessãoosdePierre-PhilippeRey,Lesalliancesdeclasses (Paris,Maspero,1973),GillesPostel-Vinay,Larente foncièredans lecapitalismeagricole(Paris,Maspero,1974),eKeithTribe,“EconomicPropertyandtheTheorizationofGroundRent”,EconomyandSociety, 1977, eLand,LabourandEconomicDiscourse,cit.,todososquaisassumemumalinhamuitocríticacontraoqueelesconsideramseroserrosmaisgravesdeMarx.MichaelBall, em“DifferentialRent and theRoleofLandedProperty”, International Journal ofUrban andRegionalResearch,1977,eBenFine, em“OnMarx’sTheoryofAgriculturalRent”,EconomyandSociety, 1979, apresentamquestõesmuitomaispróximas da intenção original de Marx. Matthew Edel, em “Marx’s Theory of Rent: Urban Applications”,Kapitalistate, 1976, examinaproveitosamente as tentativas recentes para encontrar aplicações urbanas para os conceitos de Marx, mas não trata das contribuiçõesfrancesas sobre esse assunto – ver Alain Lipietz, Le tribut foncier urbain (Paris, Maspero, 1974), Christian Topalov, Les promoteursimmobiliers(Paris,Mouton,1974)eM.DichervoiseB.Théret,Contributionàl’étudedelarentefoncièreurbaine(Paris,Mouton,1979).UmaboahistóriadasteoriasburguesasdarendapodeserencontradaemJosephKeiperetal.,TheoryandMeasurementofRent(Filadélfia,ChiltonCo.,BookDivision,1961).

[3]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.622.

[4]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.152.

[5]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.618.

[6]Pierre-PhilippeRey(Lesalliancesdeclasses,cit.,p.25)apresentaoproblemadessamaneira.

[7]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.453-540;Capital,LivroIII,cit.,cap.38.

[8]Ibidem,p.830-5.

[9]Ibidem,LivroI,p.574.

[10]Ibidem,p.256;TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.43-4.

[11]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.615.

[12]Ibidem,p.774.

[13]A terminologia deMarx nem sempre é consistente.Ele se refere de várias formas à terra, comouma condição de produção, umaprecondiçãoparaaprodução,umelementodaprodução,umelementodentrodoqualaproduçãoocorre,uminstrumentooumeiodeprodução(TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.43,48,54,245;Capital,LivroIII,cit.,p.774).Oqueeletinhaemmenteemrelaçãoaessasdistinçõesestámaisbemilustradopelaseguintepassagem:“Arendaagrícolareal[…]éaquelaqueépagapelapermissãodeinvestircapital […] no elemento terra. Aqui a terra é o elemento da produção”. Como tal, ela pode ser encarada como uma forma de capitalconstante (seja ele fixo ou circulante). “As forças da natureza que são pagas”, no caso do arrendamento de prédios, quedas d’água etc.,“entramnaproduçãocomoumacondição, sejacomopoderprodutivooucomosinequanon [peloqueMarx evidentemente se refere aoespaçopuroesimples],masnãosãooelementoemqueesseramoparticulardaproduçãoérealizado.Maisumavez,nosarrendamentosdeminas,minasdecarvãoetc.,aterraéoreservatório,decujasentranhasosvaloresdeusoserãodilacerados.Nessecaso,opagamentoéfeitopelaterra,nãoporqueelaéoelementoemqueaproduçãodeveocorrer,comonaagricultura,nãoporqueelaentranaproduçãocomoumadascondiçõesdaprodução,comonocasodasquedasd’águaoudolocalconstruído,masporqueéumreservatórioquecontêmosvaloresdeuso”(TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.245).

[14]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.825.

[15]Ibidem,p.618.

[16]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.95.

Page 341: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[17]Idem,Capital,LivroIII,cit.,645.

[18]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.93-66.

[19]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.619.

[20]Ibidem,p.651.

[21]Ibidem,p.781.

[22]Ibidem,p.813.

[23]Ibidem,p.746.

[24]Ibidem,p.774,781.

[25]De todososprincipais escritoresmarxistas,HenriLefebvre (p. ex.,Laproductionde l’espace, Paris,Anthropos, 1974) tem sidodelongeomaispersistenteemseuesforçopara incorporarumadimensãoespacialnopensamentomarxiano.AlainLipietz (Lecapitalet sonespace, Paris,Maspero, 1977) tenta uma “espacialização”mais convencional da teoria da acumulação, enquanto um número especial daReviewofRadicalPoliticalEconomics (v.10,n.3,1978)sobreodesenvolvimentoregionaldesigualaborda temassimilares.Temsurgidoconsiderávelcontrovérsia,particularmenteentreosgeógrafos,sobreoproblemado“fetichismoespacial”–fazendoasrelaçõessociaisentreaspessoassepareceremcomasrelaçõesentrelocaisouespaços.Emboratodososmarxistaspossamconcordaremprincípioqueasrelaçõesdeclassesãodefundamental importância,aindasurgeoproblemadecomoequandoéútilconsiderarosantagonismosentreascategoriasespeciais,comozonaurbanaezonarural,cidadeesubúrbio,paísesdesenvolvidosversus“terceiromundo”etc.,comoimportantesatributosdocapitalismo(verRichardPeet,“SpatialDialecticsandMarxistGeography”,ProgressinHumanGeography,1981,v.5,p.105-10;N.Smith,“DegeneracyinTheoryandPractice:SpatialInteractionismandRadicalEclecticism”,ProgressinHumanGeography,1981,v.5,p.111-18;EdwardSoja, “TheSocio-CapitalDialectic”,Annals of theAssociationofAmericanGeographers, 1980, v. 70, p. 207-25 [ed. bras.: “Adialéticasocioespacial”,emGeografiaspós-modernas:areafirmaçãodoespaçonateoriasocialcrítica,RiodeJaneiro,Zahar,1993,cap.3]).

[26]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.143.

[27]Espaçoabsoluto,emfísica,refere-seauma“visãodecontêiner”deumespaçoqueéimutável,intermináveleinalterável.Naprática,issosereduzapostularumconjuntodecoordenadasfixaspormeiodasquaisamatériasemove.Argumenteiemoutrotrabalho(DavidHarvey,SocialJusticeandtheCity,Londres,EdwardArnold,1973,p.13)queoespaçonãoé“emsinemabsolutonemrelativonemrelacional,maspode se tornar um e tudo simultaneamente, dependendo das circunstâncias. O problema da própria conceituação do espaço é resolvidomediante a prática humana com respeito a ele”. Ainda sustento essa opinião. No caso que está sendo aqui considerado, encaramos apropriedadeprivadaououtrasdivisõesterritoriaiscomounidadesfixaspormeiodasquaisocapitalcircula.Aconceituaçãodoespaçoabsolutofazsentidoporqueécomoapropriedadeprivadanaterraéexpressada.

[28]Avisãorelativadoespaçodominouoespaçoabsolutonewtonianodurantemaisoumenoscemanosnafísica,masosgeógrafoseoutroscientistassociaiscaptaramaideiaemumtemporelativamenterecente(DavidHarvey,ExplanationinGeography,Londres,EdwardArnold,1969, cap. 13).Marx, como sempre, esteve notavelmente à frente do seu tempo ao reconhecer claramente a relatividade do espaço comrespeitoaosprocessosdetroca.

[29]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.270.Comoqueumaabordagemgenuinamentemarxistadateoriadalocalizaçãosepareceriaéalgoqueaindaaserexplorado.Algunsaspectosdesseproblemaserãolevantadosnocapítulo12.

[30]Ibidem,p.312.

[31]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.249-50.

[32]Ibidem,LivroIII,p.650.

[33]Ibidem,p.769.

[34]Ibidem,p.669.

[35]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.54.

[36]Ibidem,p.270.

[37]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.773.

[38]Idem.

[39]Idem,ThePovertyofPhilosophy,cit.,p.154.

[40]Idem,Grundrisse,cit.,p.194;Capital,LivroIII,cit.,p.782.

[41]Ibidem,p.617-18,636.

[42]Ibidem,p.883.

[43]Ibidem,p.634.

Page 342: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[44]Pierre-PhilippeRey(Lesalliancesdeclasses,cit.)eKeithTribe(Land,LabourandEconomicDiscourse,cit.)apresentamrelatosdasorigensdofeudalismo,enquantooproblemageraldatransiçãodofeudalismoparaocapitalismoéabordadoemMauriceDobb,TheStudiesinthe Development of Capitalism, cit., e Rodney Hilton, The Transition from Feudalism to Capitalism (Londres/Atlantic Highlands,NLB/HumanitiesPress,1976).

[45]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.243.

[46]Pierre-PhilippeRey(Lesalliancesdeclasses,cit.,p.73)declaraqueapropriedadefeudal,sujeitaàinfluênciadodinheiroedaproduçãodemercadorias,foiobrigadaacriarcondiçõesparaaproduçãocapitalista(comoaexpulsãodoscamponesesdaterra)porquefoiobrigadaaaumentarsuasrendas.

[47]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.194-5.

[48]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.979.

[49]Ibidem,LivroI,p.804.

[50]Pierre-PhilippeRey,Lesalliancesdeclasses,cit.,p.60.

[51]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.807.

[52]KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence,cit.,p.312-3.

[53]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte1,p.51;parte2,p.310.

[54]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.669-72;KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence,cit.,p.226-8.

[55]PrefácioparaaediçãorussadoManifestoComunista;KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence,cit.,p.340.

[56]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.787-93.

[57]AlémdePierre-PhilippeRey(Lesalliancesdeclasses,cit.),SamirAmin(UnequalDevelopment,NovaYork,MonthlyReviewPress,1977),ErnestoLaclau(PoliticsandIdeologyinMarxistTheory:Capitalism,Fascism,Populism,cit.)eJohnTaylor(FromModernizationtoModesofProduction,Londres,MacmillanPress,1979)apresentamargumentoscaracterísticospartindodediferentespontosdevista.

[58]DoorenMasseyeAlejandrinaCatalano,CapitalandLand:LandownershipbyCapital inGreatBritain (Londres,EdwardArnold,1978).

[59]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.808.

[60]Ibidem,p.805-13.

[61]Alguns dos episódiosmais extraordinários da especulação sem controle da terra estão narrados emPaul Studenski eHermanKroos,FinancialHistoryoftheUnitedStates(NovaYork,McGraw-Hill,1952).

[62]KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence,cit.,p.134.

[63]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.775.

[64]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.30,38.

[65]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.833.

[66]Ibidem,p.761-2.

[67]Ibidem,p.762-3.

[68]Pierre-PhilippeRey(Lesalliancesdeclasses,cit.,p.40)invocaacorrespondênciadeMarxde1862comoevidênciadequeoestudodarendaconduziuMarxàconcepçãodopreçodaprodução(distinguidodosvalores),enãoocontrário.

[69]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.765;TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.244,393.

[70]Ibidem,p.112.

[71] A caracterização de Pierre-Philippe Rey (Les alliances de classes, cit.) da teoria da renda absoluta deMarx como um “fiasco” éparcialmentecorreta,nosentidodequehámuitateorizaçãoelaboradasobreoqueterminasendodemenorimportância.MasatendênciaparacensurartodaateoriadarendadeMarxtendoporbasetal“fiasco”estáseriamentedeslocada.

[72]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.332-3;Capital,LivroIII,cit.,p.757.

[73]Ibidem,p.771.

[74]Apartirdeagora,mebaseareimuitoemMichaelBall,“DifferentialRentandtheRoleofLandedProperty”,cit.,emaisparticularmenteemBenFine,“OnMarx’sTheoryofAgriculturalRent”,cit.

[75]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.651.

[76]Ibidem,p.776.

Page 343: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[77]Ibidem,p.737.

[78]Ibidem,p.704.

[79]Ibidem,p.770.Cf.p.676,690.

[80]Ibidem,p.706.

[81]Ibidem,p.707.

[82]Ibidem,p.677.

[83]Ibidem,p.651.Cf.p.434-5.

[84]Ibidem,p.680.

[85]BenFine,“OnMarx’sTheoryofAgriculturalRent”,cit.,p.254.

[86]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.744.

[87]Ibidem,p.735.

[88]Ibidem,p.672.

[89]Ibidem,p.692.

[90]Ibidem,cap.44.BenFine(“OnMarx’sTheoryofAgriculturalRent”,cit.,p.266-8)examinacomoarendapodeocorrernapiorterra.

[91]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.515.

[92]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.617.

[93]Ibidem,p.829.

[94]Ibidem,p.821.

[95]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.43-4.

[96]Ibidem,p.44.

[97]Ibidem,p.104.

[98]Ibidem,p.44.

[99]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.617-18,635.

[100]Idem,ThePovertyofPhilosophy,cit.,p.159.

[101] Isso explica um tema do contrário confuso n’O capital (Livro III, cit., p. 617-22), em que a propriedade da terra é encaradasimultaneamentecomoogranderacionalizadordaproduçãoagrícolaecomoafontedetodosostiposdeefeitosdeletérios.

[102]Osproprietáriosdeterratentamextrairoequivalentedomais-valorabsolutoemmercadoria,emvezdediretamentecomotrabalho.Aanalogiaentrealutaentreoproprietáriodeterraeocamponêsealutacomrelaçãoàjornadadetrabalhoéproveitosa.

[103]Ibidem,p.683.

[104]Segue-seimediatamenteaimplicaçãodequeosproprietáriosdeterradevemmaximizaraextraçãodarendadoscamponesesediminuiraapropriaçãodarendadoscapitalistasagrícolas.GillesPostel-Vinay(Larentefoncièredanslecapitalismeagricole,cit.)proporcionaumaenorme quantidade de evidências em apoio a essa ideia.Mas Rey interpreta mal a importância dos achados e por isso os encara comoinconsistentescomateoriadarendadeMarx.

[105]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.637-9.

[106]Ibidem,p.619-22.

[107]Ibidem,p.751-2.

[108]DavidSpring (TheEnglishLandedEstate in theNineteenthCentury,Baltimore, JohnsHopkins Press, 1963) e FrancisThompson(EnglishLandedSocietyintheNineteenthCentury,cit.)documentamaabsorçãogradualdaaristocraciafundiárianascategoriasdaburguesiacomocapitalistas,financistasetc.

[109]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.605.

[110]Osincentivossociaisàpossedaterra–prestígio,importânciasimbólica,tradiçãoetc.–sãotambémmuitoimportantesnaprática,masosexcluímosdeconsideraçãoaquiporqueelesnãotêmraízesdiretasdentrodeumapurateoriadomododeproduçãocapitalista.

[111]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.669.

[112]Ibidem,p.774-6,eLivroII,p.234.

[113]FrançoisLamarche (“PropertyDevelopmentand theEconomicFoundationsof theUrbanQuestion”,emC.Pickvance [org.],Urban

Page 344: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Sociology:CriticalEssays,Londres,TavistockPublications,1976)apresentaumadasmelhoresteorizaçõesdopapeldoarrendatárioapartirdeumaperspectivamarxista.

[114]MarxachavaqueaRevoluçãoGloriosade1688naGrã-Bretanhaforjouumaoligarquiadominantebaseadaemuma“aliançanatural”entre a “nova aristocracia fundiária” e a “nova bancocracia, das altas finanças recém-saídas do ovo e dos grandes manufatureiros” (Ocapital,LivroI,cit.,p.796).

Page 345: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

12.Aproduçãodasconfiguraçõesespaciais:asmobilidadesdocapitaledotrabalho

Ageografiahistóricadocapitalismotemsidoabsolutamentenotável.Povosdotadosdetotaldiversidadedeexperiênciashistóricas,vivendoemumaincrívelvariedadedecircunstânciasfísicas,têm-seunido,àsvezesdemodograndiosoeporconvencimento,masmais frequentementemedianteoexercíciodeumaforçabruta implacável, emumaunidadecomplexanoâmbitodadivisão internacionaldo trabalho.Asrelaçõesmonetáriastêmpenetradoemcadacantodomundoeemquasetodososaspectosdavidasocialeatémesmodavidaprivada.Essasubordinaçãoformaldaatividadehumanaaocapital,exercidapelomercado,temsidocadavezmaiscomplementadaporaquelasubordinaçãorealquerequeraconversãodo trabalho na mercadoria força de trabalho por meio da acumulação primitiva. Essa transformaçãoradicaldasrelaçõessociaisnãoocorreudemodoregular.Elasemoveumaisrápidoemalgunslugaresdo que em outros. Tem resistidomais fortemente aqui e sidomais bem-vinda ali. Tem penetrado demaneirarelativamentepacíficaemumlugarecomumaviolênciagenocidaemoutro.

Tambémtemsidoacompanhadapor transformações físicasespetacularesemseuescopoe radicaisem suas implicações. Novas forças produtivas têm sido produzidas e distribuídas em toda a face daTerra.Vastasconcentraçõesdecapitaletrabalhotêmsejuntadoemáreasmetropolitanasextremamentecomplexas,enquantoossistemasde transporteecomunicações,estendidosemamplas redes,permitemque as informações e as ideias, assim como os bens materiais e até mesmo a força de trabalho, sedesloquemcomrelativa facilidade.Fábricasecampos,escolas, igrejas,centroscomerciaiseparques,rodoviase ferroviasseespalhamporumapaisagemque temsido indelévele irreversivelmentecriadaseguindo os ditames do capitalismo.Mas essa transformação física tambémnão se produziu demodoregular.Vastasconcentraçõesde forçaprodutivacontrastamaquicomregiões relativamentevaziasali.Concentraçõesdeatividadefixasemumlugarcontrastamcomumdesenvolvimentorelativamenteflexíveledispersoemoutro.Tudoissoresultanoquechamamosde“desenvolvimentogeográficodesigual”docapitalismo.

Essa aparência superficial de extraordináriamudança histórico-geográfica clama por investigaçãoteórica.Hámuitoa fazeraquie infelizmentenãohámuitaorientação teórica sobrecomo fazê-lo[1]. Adificuldade é encontrar uma maneira de abordar a questão que seja ao mesmo tempo teoricamente

Page 346: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

fundamentada em conceitos marxianos básicos e suficientemente sólida para lidar com as evidentesconfusões,antagonismoseconflitosquecaracterizamaarticulaçãoespacialdasatividadeshumanasnocapitalismo.Alémdisso,osfenômenosaseremexaminadossãodeumavariedadeaparentementeinfinita.Elesincluemeventoseprocessostãodiversosquantoaslutasindividuaissobreosdireitosjurisdicionaisaumpedaçodeterra;políticascoloniaiseneocoloniaispostasempráticapordiferentesEstados-nação;a diferenciação residencial dentro de áreas urbanas; as lutas entre gangues de rua para disputar o“território”; a organização e o projeto do espaço para comunicar significados sociais e simbólicos; aarticulação espacial de diversos sistemas de mercado (financeiro, de mercadorias etc.); padrõesregionaisdecrescimentodentrodeumadivisãodotrabalho;concentraçõesespaciaisnadistribuiçãodoexército industrial de reserva; alianças de classe construídas em torno de conceitos territoriais comocomunidade,regiãoenação;eassimpordiante.

Diantedetaldiversidadeseriafácildemaissucumbiraesse“fetichismoespacial”queigualatodosos fenômenos sub specie spatii e trata as propriedades geométricas dos padrões espaciais comofundamentais.Operigoopostoéenxergaraorganizaçãoespacialcomoummeroreflexodosprocessosdeacumulaçãoereproduçãodeclasse.Aseguirtentareitomarumcursointermediário.Encaroalocalizaçãocomo um atributo material fundamental da atividade humana, mas reconheço que a localização ésocialmente produzida. A produção de configurações espaciais pode então ser tratada como um“momentoativo”dentrodadinâmicatemporalgeraldaacumulaçãoedareproduçãosocial.

Abaseteóricaparaissofoiestabelecidaempartenocapítulo11.Oespaço,comolámostramos,éumatributomaterialdetodososvaloresdeuso.Masaproduçãodemercadoriasconverteosvaloresdeusoemvaloresdeusosocial.Entãotemosdeconsiderarcomoosatributosespaciaismateriaisdosvaloresde uso – a localização em particular – são convertidos em espaços sociais mediante a produção demercadorias.Comoaproduçãodemercadoriasenvolveasrelaçõesentreovalordeuso,ovalordetrocae o valor, consequentemente o nosso entendimento das configurações espaciais em seu aspecto socialdeve tambémserbaseadoemumentendimentodecomoovalordeuso,ovalorde trocaeovalor seintegram um ao outro na produção e no uso da configuração espacial. A investigação do mercadofundiárionocapítulo11proporcionaumexemplodocaminhoa ser seguido.Devemosagoraconstruirumaespéciedeargumentogeral.

O trabalho útil concreto produz valores de uso em um local particular. Os diferentes trabalhosrealizadosemdiferenteslocaissãoconduzidosparaumarelaçãoumcomooutromedianteatosdetroca.Aintegraçãoespacial–ovínculodaproduçãodemercadoriasemdiferenteslocalizaçõespormeiodatroca–énecessáriaparaovalorsetornaraformasocialdotrabalhoabstrato.Provavelmentefoi issoqueMarxtinhaemmentequandoescreveu:

Ariquezaabstrata,ovalor,odinheiroe,porconseguinte,otrabalhoabstrato,sedesenvolvemnamedidaemqueotrabalhoconcretosetorna uma totalidade de diferentesmodos de trabalho abarcandoomercadomundial.Aprodução capitalista se baseia novalor ou natransformação do trabalho incorporado no produto em trabalho social.Mas isso só é possível tendo por base o comércio exterior e omercadomundial.Eé,aomesmotempo,aprecondiçãoeoresultadodaproduçãocapitalista.[2]

Consequentemente,ofracassoemconseguiraintegraçãoespacialperturbaauniversalidadedaforma

de valor. E em alguns casos pode conduzir à troca entre diferentes “sistemas de valor” ou à trocadesigualentrediferentessistemasdecomércio[3]:

Page 347: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Aqui a lei do valor passa por umamodificação essencial. As relações entre as jornadas de trabalho de diferentes países podem sersimilaresàquelasqueexistementreotrabalhoespecializado,complexo,eotrabalhosimples,nãoespecializado,dentrodeumpaís.Nessecaso,opaísmaisricoexploraomaispobre,mesmoquandoesteúltimoganhacomatroca.[4]

Então, como se consegue uma integração espacial? A troca de mercadorias é uma condição

necessária,etambémoéadisponibilidadedeum“equivalenteuniversal”(porexemplo,oouro)comoabase monetária do intercâmbio mundial. As barreiras físicas ao movimento das mercadorias e dodinheirosobreoespaçotêmdeserreduzidasaummínimo.Entretanto,ascondiçõessuficientesparaaintegração espacial são proporcionadas pelas mobilidades geográficas do capital e da força detrabalho[5].“Nocapital”,afinal,“aexistênciaindependentedovaloréelevadaaumpodermaisaltoquea do dinheiro”[6], embora “a tendência de criar o mercado mundial [esteja] imediatamente dada nopróprioconceitodocapital”[7].Omovimentogeográficododinheiroedasmercadoriascomocapitalnãoé igual ao movimento dos produtos e dos metais preciosos. Afinal, o capital é o dinheiro usado dedeterminadamaneira,enãoédemodoalgumidênticoatodososusosdodinheiro.

Sea integraçãoespacial forconseguidamedianteacirculaçãodocapitalnoespaço,entãoanossaatençãodeveseconcentraremcomoocapitaleaforçadetrabalhosemovem.Nãopodemosaquiapelarpara as noções burguesas comuns damobilidade de “fatores de produção” separados – “coisas” quepodemserdesviadasdeumpontoparaoutronoespaço.Aconcepçãomarxianaénecessariamenteumpouco mais complicada. O capital pode se mover como mercadoria, como dinheiro ou como umprocessode trabalhoqueempregacapitalconstanteevariáveldediferentes temposde rotação.Alémdisso, a relaçãoentreamobilidadedocapitalvariável e aqueladospróprios trabalhadores introduzoutra dimensão à luta de classes, embora o problema ligado à circulação do capital no ambienteconstruído tambémrequeiraumaatençãoespecial.Essadesagregaçãoocorreautomaticamente,dadaadescriçãodeMarxdacirculaçãodocapitalcom

Acapacidadedocapitalparasemoverdependedequaisdessesváriosestadoseleocupa.Aseguirvamos considerar a potencial mobilidade separada do capital em cada um desses estados, antes deintegrar os movimentos separados em um entendimento dos ritmos temporais e espaciais para acirculação e a acumulação do capital. Dessa maneira, podemos esperar deslindar como a integraçãoespacialéconseguidamedianteprocessosdecirculaçãomaterialdoprópriocapital.

I.ASRELAÇÕESDETRANSPORTEEAMOBILIDADEDOCAPITALCOMOMERCADORIAAcapacidadeparamovimentarosprodutosdefineamobilidadedocapitalsobaformademercadoria[8].Essamobilidadedependedasrelaçõesdetransportemodificadaspelosatributosdasmercadorias,como

Page 348: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

o seupeso, a fragilidadedo tamanho, aperecibilidade etc.Marxdeclaraque “a condição espacial, olevar o produto aomercado, faz parte do próprio processo de produção”[9]. Por isso, a indústria dotransporteproduzvalor,porqueéuma“esferadaproduçãomaterial”querealizaumamudançamaterialno“objetodotrabalho–umamudançaespacial,umamudançadelugar”.Aindústriadotransporte“vendeamudançadelocalização”comoseuproduto[10].

Comoqualqueroutroinsumointermediário,ovalordamercadoria“mudançadelocalização”entranopreçodecustodeoutrasmercadorias.Porisso,ovalordetodasasmercadoriasincluitodososcustossocialmente necessários de transporte, definidos como o custo médio de levar os produtos a seusdestinos.Ocustodomovimentonãoéaúnicaconsideração.Aregularidadeeaconfiabilidadedosfluxosdo transportepodemreduzir anecessidadedeestoques tantodasmatérias-primasquantodosprodutosacabadose,portanto,liberarocapital“ocioso”paraaacumulaçãoativa[11].Acontinuidadenacirculaçãodo capital só pode ser assegurada mediante a criação de um sistema de transporte eficiente eespacialmenteintegrado,organizadoemtornodealgumahierarquiadoscentrosurbanos[12].Avelocidadedo movimento também é fundamental. A “distância espacial” então se reduz ao tempo porque “nãodepende,porexemplo,dadistânciaespacialdomercado,masdavelocidade–doquantumdetempoemquesechegaaomercado”[13].

Asreduçõesnocustoenotempodomovimento, juntamentecomasmelhoriasnaregularidadeenaconfiabilidadedosserviçosdetransporte,pertencemao“desenvolvimentodasforçasprodutivas”.Marxdescreveoconsequenteimpulsopararevolucionarasrelaçõesdetransporteemtermosmuitogerais.Ocapital,escreveele,“temdeseempenharparaderrubartodabarreiralocal[…]datroca,paraconquistartodaaTerracomoseumercado”edeve“destruiroespaçopormeiodotempo”parareduzirotempoderotação do capital a umpiscar de olhos. “Quantomais a produção se baseia no valor de troca e, emconsequência,natroca,tantomaisimportantessetornamparaelaascondiçõesfísicasdatroca–meiosde comunicação e transporte.”[14] E, à medida que as revoluções tecnológicas em outros setoresexpandem o volume de mercadorias a serem trocadas, as mudanças revolucionárias nos meios decomunicaçãoedetransportesetornamumaabsolutanecessidade[15].

Osefeitossãoinúmeros.Amobilidadedocapitalnaformademercadoriaérealizadadentrodeumaestruturaemeternamodificaçãodosespaçosrelativos,pois“ocustoeasdistânciasdetempopodemseralteradas pelo desenvolvimento dos meios de transporte de uma maneira que não corresponde àsdistânciasgeográficas”[16].Oscustosmédiosdecrescentesdomovimentoreduzemdiretamenteovalor(eopreçodeprodução)dasmercadoriasmovimentadas.Osefeitos indiretosnãosãomenos importantes.Empalavrassimples,seconcebermosovalorcomoumamédiasocialqueassumiuocontroledetodasaslocalizaçõesintegradasemalgumarededetroca,aexpansãodacontraçãodessaredemediantemudançasnacapacidadedo transporte altera as relaçõesdevalor.Produtose recursospreviamente inacessíveisconduzidospara a redede trocamediantenovosdispositivosde transportepodem ter efeitosnotáveissobreosvalores(esobreospreçosdaprodução).Odomíniodaslocalizaçõesnasquaiso“valor”éamédiadepende,emsuma,doníveledograudeintegraçãoespacialconseguidanasrelaçõesdetransporteespecíficas. Consequentemente, essas magnitudes cruciais, como o valor da força de trabalho e acomposição de valor do capital, são extremamente sensíveis às forças produtivas empregadas naindústriadetransporte.

Assimcomoasrelaçõesespaciaissealteramemrespostaaoinvestimentonotransporte,tambémsealteramasrelativasfortunasdoscapitalistasemdiferenteslocalizações.Algunssofremadesvalorização

Page 349: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

da força de trabalho, do seu capital fixo e do fundo de consumo (moradia etc.), enquanto outrosdesfrutam, pelo menos temporariamente, de excessos de lucro e de uma reavaliação ascendente dosmeios de produção e consumo disponíveis. Segue-se então uma conclusão importante, quenecessariamente modifica o conceito geral da superacumulação e da desvalorização apresentado nocapítulo7:adesvalorização,ocorrendoporqualquerrazão,ésempreespecíficadeumlugar,ésempreespecíficadalocalização.

Vamosnos referirmaisadianteàs implicaçõesdesseprincípioabrangente.Agoravamosdedicaranossaatençãoaosseusefeitosdentrodaprópriaindústriadetransporte.Comoamudançadelocalizaçãoé produzida e consumida nomesmomomento, a superprodução e a desvalorização imediatas são umaimpossibilidadetécnica.Somenteocapitalfixopodeserdesvalorizado.Porém,ocapitalfixorequeridona indústriade transporteéamploegrandepartedeleestá incorporadanoambienteconstruído, comorodovias,ferrovias,terminaisetc.Essetipodecapitalfixoéparticularmentevulnerávelaosventosfriosdadesvalorização.Masadesvalorizaçãoestásempreemumarotaespecíficaouemumlugarespecífico–umterminalperdeocomércioaqui,umanovarodoviasuplantaotráficoemumalinhaferroviáriaali.Asrevoluçõesnasforçasprodutivasdentrodaindústriadetransportesempretêmefeitosdelocalizaçãoespecíficos.Porisso,acompetiçãodentrodaindústriaadquirealgumascaracterísticaspeculiares.Issoéassimemparteporquequandoocapitalfixoestáincorporadonaterra,acompetiçãoéentreoqueAdamSmithchamoude“monopóliosnaturais”noespaço.Aqualidadedesse“monopólionatural”significaquevárias linhas ferroviárias concorrentes entre duas cidades dificilmente fazem sentido, enquanto acompetição entre vários transportadores nas rotas comuns (como no frete rodoviário) tem umajustificativa mais forte. Como grandes quantidades de capital são com frequência necessárias para aconstrução de linhas ferroviárias, docas e portos, aeroportos etc., os capitalistas podem não estardispostos a investir sem proteção contra o risco da desvalorização de uma localização específicamediante a competição. Isso significa a restriçãoda competição e a criaçãodemonopólios reguladospeloEstadoouatépertencentesaoEstado.Aquiseapresentaumdilema.Oestímulocompetitivopararevolucionarasforçasprodutivasdentrodaindústriaficaembotado.Masjávimosqueocapitalismoemgeral requer reduções eternas no custo e no tempo domovimento, a eliminação de todas as barreirasespaciaisea“aniquilaçãodoespaçopelotempo”.

A tensão pode ser emparte resolvida se o capital dentro da indústria de transporte se dividir emcapital fixo de um tipo independente que circula no ambiente construído e outros tipos de capital(caminhões, navios etc.) que são livres para se mover no espaço. O local vinculado à qualidade dadesvalorizaçãoéminimizadonoúltimosetor,easbarreirasàcompetiçãoeaoinvestimentoabertossãocorrespondentementediminuídas.Osproblemasrealmentesériosdadesvalorizaçãoespecíficadolocalmediante a mudança tecnológica no transporte estão então confinados ao capital fixo que circula demaneiraindependentenoambienteconstruído.

TaldivisãosópodeocorrercomoenvolvimentodosistemadecréditoedoEstado[17].Oelementodo“monopólionatural”podeentãosercolocadosobregulaçãoecontrolecoletivos,enquantoosefeitosdadesvalorizaçãosãosocializadosnumgraucorrespondente.Alémdisso,comovimosnoscapítulos7e8,osinvestimentosdessetipopodemserorganizadosdemodoasóproduziremjuros,eassimdiminuirapressão ascendente geral sobre a composição de valor do capital. A desvantagem é que o ritmo damudança tecnológicadentrodessaparteda indústriade transporteestásujeitoaopodereconômico,àspolíticas e às vezes aos caprichos arbitrários de capitalistas associados (uma poderosa aliança definancistas, por exemplo) ou de burocratas doEstado.A coordenação das estratégias de investimento

Page 350: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

para a formação de novas infraestruturas físicas dentro da indústria de transporte torna-se entãoproblemática. Os movimentos de preço da terra (do tipo discutido no capítulo 11) entram agora nocenárioporqueaquelesqueorganizamosinvestimentosnasinfraestruturasimóveisdotransportepodemcomfrequênciaseapropriardosbenefíciosdosvaloresascendentesdaterranasáreasservidas(issoétão verdadeiro em relação ao Estado quanto para os capitalistas associados). Isso significa que ébenéfico (do ponto de vista do capital em geral) liberar a especulação da terra e a apropriação dasrendas e dos impostos territoriais como um meio de atrair, impulsionar e guiar os investimentos notransporte.Encontramosaquiumavalidaçãoadicionalparaahipóteseapresentadanocapítulo11–queaapropriaçãoda renda realiza funçõesdecoordenaçãovitaisdentrodocapitalismo.Entretanto,oefeitodisso é que a criação das infraestruturas do transporte dependemais demecanismos especulativos epolíticosdoquedemecanismosmaisusuaisdomercado.

Há algumas importantes contradições nisso. A acumulação requer que cada vez mais capital sedesloque para a produção de meios de transporte e comunicação[18]. Mas a indústria de transportetipicamente tem uma alta composição técnica e de valor do capital e poderes fracos de produção demais-valoremseusconfins.Porisso,paraqueastaxasdelucroagregadassejammantidas,essafraquezatemdesercontrabalançadapelosavançoscompensatóriosnacapacidadedeproduçãodemais-valornossetoresservidospelaindústriadetransporte.

Mas o pior de tudo é que observamos que o capitalismo procura superar as barreiras espaciaismediante a criaçãode infraestruturas físicasque são imóveisnoespaçoe extremamentevulneráveis àdesvalorizaçãoespecíficadolugar.Rodovias,ferrovias,canais,aeroportosetc.nãopodemsermovidossemqueovalornelesincorporadosejaperdido.Porisso,ovalortemdeserimobilizadonaterraemumgrau crescente, para conseguir integração espacial e eliminar as barreiras espaciais à circulação docapital.Emumpontoououtro,ovalorincorporadonoespaçoproduzidodosistemadetransportetorna-seabarreiraasersuperada.Apreservaçãodevaloresparticularesdentrodarededetransportesignificarestriçõesà expansãoadicionaldovalor emgeral.Fortesdesvalorizaçõese reestruturaçõesdentrodosistemadetransporte,comtudooqueissodirecionaparaamoldagemdeconfiguraçõesespaciaisedosníveis de integração espacial, tornam-se inevitáveis. Esta é a principal contradição que modifica ecircunscreveamobilidadedocapitalnaformademercadoria.

II.AMOBILIDADEDOCAPITALVARIÁVELEDAFORÇADETRABALHOA força de trabalho é uma mercadoria, mas as condições que governam sua mobilidade são muitoespeciais.Éaúnicamercadoriaquepodelevarasimesmaparaomercadosemaajudadeninguém.Porisso,o termo“mobilidadedo trabalho”ocupaumaposiçãoespecialnodiscursoeconômico.Na teoriaburguesa,efrequentementenolinguajarcomum,eleserefereàliberdadedotrabalhadordevenderasuaforça de trabalho quando, onde, por qualquer propósito e a quem lhe aprouver. Essa liberdade decontratoéfundamentalparaasconcepçõesburguesasdosdireitoshumanosedasliberdadescivis.Marxnãonegaaimportânciadessasliberdadespositivas,masinsisteemquesejamvistasemrelaçãoaoutroladomais obscuro das coisas.O trabalhador é “livre emdois sentidos: de ser uma pessoa livre, quedispõedesuaforçadetrabalhocomosuamercadoria,ede,poroutrolado,seralguémquenãotemoutramercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à

Page 351: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

realização de sua força de trabalho”[19]. “Livre” pelo processo da acumulação primitiva do controlesobreosmeiosdeprodução(incluindooacessoàterra),amaioriadostrabalhadoresnãotemopçãoanãoservenderasuaforçadetrabalhoaocapitalistaparapodersobreviver.

A dualidade dessa liberdade se traduz em maneiras radicalmente diferentes de encarar suamobilidade geográfica[20]. Como sujeitos criativos (ver p. 172-83), os trabalhadores perambulameternamentepelomundoeprocuramescapardasdepredaçõesdocapitalevitandoospioresaspectosdaexploração,semprelutando,comfrequênciacomalgumsucesso,paramelhoraroseudestino.Ocapitalprecisanecessariamente seajustar aesseprocessoe,namedidaemque issoocorre,os trabalhadoresmoldam tanto a história quanto a geografia do capitalismo. Entretanto, concebido como um objetoessencialmentedominadopelocapital,otrabalhadornadamaisédoquecapitalvariável,umaspectodopróprio capital. As leis que governam o movimento do capital variável estão incorporadas dentrodaquelasqueregulamamobilidadeeaacumulaçãodocapitalemgeral.

Marxenfatizaosegundodessespontosdevistan’Ocapital.Assim,eleseposicionacontraosmitosburguesesprevalecentescomoasupostaliberdadedotrabalhador.Dadasascondiçõesgeraisdotrabalhoassalariado,a liberdadedotrabalhadorparasemoveréconvertidaemseuexatooposto.Embuscadeempregoedeumsaláriopara sobreviver,o trabalhadoréobrigadoaacompanharocapitalparaondequerqueeleflua.Issoimplicaa“aboliçãodetodasasleisqueimpedemostrabalhadoresdesetransferirdeumaesferadeproduçãoparaoutraedeumcentrolocaldeproduçãoparaoutro”,eaeliminaçãode“todasasbarreiraslegaisetradicionaisqueimpediriam[oscapitalistas]decompraresteouaqueletipodeforçadetrabalho”[21].Tambémenvolveadesordemeadestruiçãodosmodosdevidaedesustentotradicionais mediante a acumulação primitiva – um processo que Marx considera detalhadamente.Estimula ainda os capitalistas a adotar processos de trabalho que não dependem das habilidadesmonopolizáveistradicionais.Asimplicaçõesdissoparaotrabalhadorsãoinúmeras.A“indiferença”docapital em relação às formas particulares do processo de trabalho é imediatamente estendida aotrabalhador, enquanto os “trabalhadores livres” precisam aceitar que “o seu trabalho sempre produz[paraeles]omesmoproduto,odinheiro”.Elesdevem“emprincípio”estarsempre“prontosedispostosaaceitartodavariaçãopossívelem[…][sua]atividadequelheprometarecompensasmaiselevadas”.Osdiferenciaisdesalárioproporcionamentãoosmeiosparacoordenarosmovimentosdotrabalhadorsegundoasexigênciasdocapital.Aversatilidadeeamobilidadegeográficadaforçadetrabalho,assimcomoa“indiferença”dostrabalhadoresemrelaçãoaoconteúdodoseutrabalho,sãoessenciaisparaa“fluidezdocapital”.“Empartealguma”,dizMarx,essascondições“aparecemmaisvivamentedoquenos Estados Unidos”[22]. Nessas condições, a “liberdade do trabalhador” é na prática reduzida à“liberdadedo capital”[23]. Quantomaismóvel é o trabalhador,mais facilmente o capital pode adotarnovosprocessosdetrabalhoetirarvantagemdelocalizaçõessuperiores.Amobilidadegeográficalivredaforçadetrabalhosurgecomoumacondiçãonecessáriaparaaacumulaçãodocapital.

Essaproposiçãonãoestáisentadecontradições.Paraamobilidadegeográficadaforçadetrabalhosatisfazerasnecessidadesdocapital,aabsolutaliberdadedotrabalhodesemoverdeveserestritamentecircunscrita. O exército de reserva de desempregados, por exemplo, sem cerimônias “livre” de seusmeios de sobrevivência pelamudança tecnológica, só pode criar condições favoráveis à acumulaçãoadicionalcasopermaneçadisponívelaocapital.Issocomfrequênciasignificaqueeledevepermanecernolugar.Asviasdeescapedevemserbloqueadasporexigênciaslegaisououtrosmecanismossociais–aposseearendadaterra,porexemplo,impedemostrabalhadoresderetornaràterraeassimescapardocontroledocapital.Oexércitoindustrialdereservatambémnãopodesepermitirmorrer,amenosqueo

Page 352: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

capital possa absorver “elementos primitivos e fisicamente não corrompidos do país” oumobilizar oexércitodereservalatente,emoposiçãoaoativo[24].Docontrário,ocapitaldeveencontrarmaneirasdemanterumexércitodereservavivoenolugarpelosbenefíciosdodesemprego,daseguridadesocial,deesquemas previdenciários e assim por diante. Os capitalistas individuais não podem assumir comfacilidadeessesencargos,quetipicamentetransferemparaoEstado.

Surgem então vários dilemas. Lutar por um sistema de apoio social, como a promulgação de leistrabalhistas e a regulamentação da jornada de trabalho, é algo que inerentemente vale a pena daperspectivadaclassetrabalhadora.Acondiçãodoexércitodereservaéumfocoparaalutadeclasses–quemvaiarcarcomocustoecomoocapitalpodemanteroacessoàsreservasdemãodeobratornam-seproblemáticos.Diferentesgovernospodembrigarpelaquestão,masomaisimportante,dopontodevistado presente argumento, é que a “livre” mobilidade da força de trabalho é suspensa pelo desejo doscapitalistas demanter suas reservas de trabalhono lugar.Esseprincípio torna-se aindamais evidentequando os trabalhadores possuem habilidades ou quando os capitalistas investem em educação,treinamento no emprego, atenção à saúde etc. As qualidades da força de trabalho tornam-se entãoimportantes. Marx observa, por exemplo, que durante a fome do algodão na década de 1860 emLancashire, os “fabricantes agiram em acordo secreto com o governo para impedir ao máximo aemigração, em parte para manter em disponibilidade o capital investido nos trabalhadores”[25]. Sãoabundantesas táticasparavincularos trabalhadorespreferidosafirmase localizaçõesespecíficas.Aspolíticas de emigração e imigração podem ser manipuladas a pedido de determinados capitalistas,enquantoasprópriasfirmaspodemconferirdireitosdetempodeserviçonãotransferíveiseacordosdepensãoqueatuamcomobarreirasaomovimento.Atémesmoamobilidadegeográficapodeserempartecontrolada dentro do mercado de trabalho interno das grandes corporações mediante esquemas depromoção e incentivo. Portanto, a mobilidade social e geográfica da força de trabalho pode serorquestrada segundo as necessidades particulares. Mas as necessidades particulares não sãonecessariamente compatíveis com as exigências gerais para a acumulação.Capitalistas individuais oufacções do capital podem, buscando seu interesse próprio, conter amobilidade agregada da força detrabalhodemodosquepodemserhostisà reproduçãodosistemacapitalistacomoumtodo.Poressasrazões, a mobilidade “livre” da força de trabalho se dissolve em uma confusão de exigênciascontraditórias,mesmoquandoencaradasapenasdopontodevistadocapital.

A mobilidade da força de trabalho também tem de ser entendida no contexto dos processos quegovernam sua produção e reprodução. Demoramuitos anos para criar um trabalhador, e habilidades,atitudesevaloresenraizadossãodifíceisdemudarumavezadquiridos.Alémdisso,aforçadetrabalhoéaúnicamercadoriaproduzidaforadasrelaçõesdeproduçãocapitalistasdiretas.Ostrabalhadorescriamsuaprópriafamília,e,nãoimportaoquãosofisticadassejamasinstituiçõesburguesasqueoscercam,areprodução da força de trabalho sempre permanece fora do controle capitalista direto. Não obstante,infraestruturas sociaise físicasduradourasecomfrequência imutáveis,difíceisdeconstruir edifíceistambém de ser desmanteladas ou transformadas, são requeridas para facilitar a produção da força detrabalhodecertaquantidadeequalidade[26].Essas infraestruturas tambémpodemabsorverquantidadesconsideráveisdecapital(principalmentesobaformadedívidadogoverno).

Aofertadeforçadetrabalhotambémexibenecessariamentediferenciaçõesinternas.Paracomeçar,aforça de trabalho como umamercadoria sempre tem um aspecto de “produto combinado” – homens,mulheres e crianças, os velhos e os jovens, os fracos e os fortes, estão todos disponíveis para aexploração.Emsegundolugar,asinfraestruturassociaisqueajudamaproduzirforçadetrabalhodeum

Page 353: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

tipo podem inibir a criação de outro. Aqui está a lógica da diferenciação residencial na metrópolecontemporânea, pois as comunidades organizadas para a reprodução de profissionais sãonecessariamentediferentesdaquelasdedicadasàreproduçãodetrabalhadoresbraçais.Quandoimpostaadiferençashistóricas,religiosas,raciaiseculturais,essatendênciaparaaespecializaçãogeográficanareproduçãosocialpodeassumirumaformaaindamaisenfática.Osprocessosdereproduçãosocialentãose cristalizam em uma colcha de retalhos relativamente permanente de especialização local, inter-regionaleatéinternacional.Essacolchaderetalhospodeentãoserassociadaadiferenciaismarcantesnovalorenaprodutividadedovalordaforçadetrabalho.

Oscapitalistaspodemdominar,erealmentedominam,essasdiferenciaçõeseasutilizamativamentepara dividir e controlar a classe trabalhadora – daí a importância do racismo, do sexismo, donacionalismo, do preconceito religioso e étnico para a circulação do capital. Entretanto, assim oscapitalistas apoiamaperpetuaçãodasbarreiras à livremobilidade individual, queé, em longoprazo,tambémvitalparaaacumulação.Porisso,oscapitalistaspodemsemoverdeumladoparaooutroentreoapoioeaoposiçãoàspolíticassociaisqueeliminamadiscriminaçãoracial,sexual,religiosaetc.nosmercadosde trabalho, dependendodas circunstâncias.Tambémdevemosnotar que a livremobilidadeindividualpodenãoserconsistentecomasustentaçãodemecanismosapropriadosdereproduçãosocial.Marxobservouqueelaé tipicamentedestrutivadosmodosdevida tradicionaisequenecessariamentefragmenta e corrói a coesão social da família eda comunidade.Algumas consequênciasnegativas, doponto de vista do capital, fluem a partir daí. Se as qualidades da força de trabalho associadas a umsistemaparticulardereproduçãosocialsãoimportantesatéparaumafacçãodoscapitalistas,entãoestesúltimos, por puro interesse próprio, podem procurar estabilizar as instituições da família e dacomunidademedianteafilantropiaprivadaoumedianteoEstado.Poressasrazõestambémumsegmentoda burguesia pode apoiar o aprimoramento cívico, a reforma educacional e urbana, a habitação e asmedidasdecuidadoàsaúde,eassimpordiante[27].Mas,assim,oscapitalistasapoiamdiferenciaçõesquenecessariamenteatuamcomobarreirasàmobilidadeindividual.

Mais uma vez podemos identificar tensões e ambivalências fundamentais por parte do capital. Amobilidadeindividuallivredotrabalhadoréumatributoimportanteaserpromovido.Masoscapitalistastambém necessitam firmar no lugar as reservas de mão de obra, manter os mercados de trabalhosegmentadoscomoummeiodecontrolesocialeapoiarosprocessosdereproduçãoadequadosparaasforçasdetrabalhocomdeterminadasqualidades.Taisimpulsoscontraditórios,quenormalmentederivamdascontradiçõesinternasdocapitalismo,geraminfluênciasmitigadorasàmobilidadegeográficadaforçadetrabalho,independentementedavontadedosprópriostrabalhadores.

Masos trabalhadoressãomaisquemerosobjetosparaocapital.Amobilidadegeográfica temumsignificadomuitodiferenteparaeles.Elarepresentaapossibilidadedeescapardatiraniaedaopressão,incluindoaquelasimpostasaostrabalhadorespelocapital.Representaaesperançaealutaporumavidamelhor,mesmoqueessalutafavoreçaocapitalquandoostrabalhadoresreagemaosincentivosmateriaisque ele oferece (saláriosmais elevados emelhores condições de trabalho). Há nisso certa ironia. Ocapitalemgeralsevaledessabuscaeternadostrabalhadoresporumavidamelhor–definidaemtermosmateriais e monetários – como um meio para organizar a mobilidade do trabalho segundo as suasexigências e disciplinar os capitalistas individuais segundo as exigências da classe. A mobilidadegeográfica“livre”dos trabalhadoresajudaaequilibrar,porexemplo,a taxasalarialparaaquelevalormédiodaforçadetrabalhoquemantémaacumulaçãoemequilíbrio(vercapítulo2).

Masamobilidadegeográficatambémimpõeencargosaotrabalhador.Adestruiçãodosmecanismos

Page 354: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

de apoio e dos modos de vida tradicionais pode ser difícil de suportar. Aqui encontramos o ladocontrário do estímulopara amobilidade comoummeiode escape.As redesde contatos pessoais, ossistemasdeapoioeoselaboradosmecanismosdeenfrentamentodentrodafamíliaedacomunidade,asproteções institucionais, sem falar nos mecanismos para a mobilização política, podem todos serconstruídos mediante os esforços criativos dos trabalhadores e de suas famílias em ilhas de força eprivilégiodentrodeummardelutadeclasses.Aproteçãodessasilhascomfrequênciaassumegrandeimportâncianasvidasdostrabalhadores.Forteslealdadesàfamília,àcomunidade,aolugareaomeioculturalatuamcomobarreirasàmobilidadegeográfica.Aexclusãodeoutrostrabalhadores–pormotivoseconômicos, sociais, religiosos, étnicos, raciais etc. – pode também ser vista como crucial para aproteção das ilhas de força já estabelecidas. Esse foi um problema que Marx encontrou quando seaventurou na complexa política dos trabalhadores ingleses e irlandeses no capitalismo britânico doséculoXIX[28].

O resultado é que o trabalho, se não consegue escapar inteiramente das pressões do capital, ficadiante de uma escolha amarga. Ele pode fugir e buscar uma vida melhor em outro lugar, ou podepermanecer no lugar e lutar. A escolha não é radical – migrações sazonais, periódicas e até mesmorelativamentedelongoprazo(comremessasdedinheiroparacuidardasfamíliasdeixadasparatrás)sãoalgumasdassoluçõesintermediárias.Aescolha,naanálisefinal,pertenceaotrabalho,nãoimportaqualsejaainfluênciadocapital.Masaironiapermanece.Qualquerquesejaocaminhotomadopelotrabalho,estetemopotencialparaserconvertidoemalgovantajosoparaocapital.DaíoargumentodeMarxdeque esse potencial está sujeito a ser realizado (embora com muitos truques e artifícios) se a únicacondiçãofundamentalquedefineaposiçãodotrabalhadornasociedadecapitalistapermanecerintacta.Se os trabalhadores precisarem vender sua força de trabalho para poder sobreviver, então não háescapatória.Esse,éclaro,foiopontopolíticoqueMarxsempreprocurouenfatizar.Aúnicasoluçãoparaascontradiçõesdocapitalismoenvolveaaboliçãodotrabalhoassalariado.

Nafaltadeumaresoluçãotãodramática,otrabalhoeocapitalsãopressionadosacuriosospadrõesde luta e compromisso com relação à mobilidade geográfica do trabalho. Tanto o capital quanto otrabalhotêmodireitodesemover,e,entreosdoisdireitos,aforçadecide.Masosresultadosnãosãotãofáceisdeinterpretar.Nalutaparaatingirseusprópriosfins–sejasemovendoousefixandoemumlugarelutandoparamelhorarascondiçõesdereproduçãosocial–,ostrabalhadorespodemajudar,seosfinspermaneceremsemprelimitados,aestabilizarocapitalismoemvezdesolapá-loouderrubá-lo.Omovimentoerráticodocapital,poroutrolado,podeatrapalharascondiçõesdareproduçãodotrabalhoe,dessemodo,ameaçaraprópriabasedaexploraçãoadicionaldaforçade trabalho.Ocapitalpodeserentãoobrigadoavoltaraospadrõesdeapoioàfamíliaeàcomunidadequepodem,porsuavez,melhorarabaseparaalutapolíticadostrabalhadores.Amobilidadegeográficatantodocapitalquantodotrabalhonãoéumaquestãoinequívocadequalquerpontodevista.Estaéacondiçãofundamentalparaseentendera mobilidade do trabalho. É a condição que vai permanecer em vigor até que os trabalhadores nãoprecisemmaisvendersuaforçadetrabalhocomoumamercadoriaparasobreviver.

III.AMOBILIDADEDOCAPITALMONETÁRIODiferentes formas de dinheiro – barras de ouro, moedas, cédulas, créditos etc. – variam segundo afacilidadeeasegurançacomquepodemsermovimentadas.Asmoedasdeouro,comaltaproporçãodevaloremrelaçãoaopeso,nãosãotãodifíceisdeseremmovidasfisicamente,masotemporequeridoeos

Page 355: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

riscosassociadoscolocamlimitaçõesdefinidas.Nascondiçõesmodernas,osdinheirosdecréditosãoosmaismóveisdetodos.Elespodemsemoverportodoomundotãorapidamentequantoasinformaçõeseas instruções relacionadas ao seu uso permitirem. A única barreira física está no sistema decomunicaçõespeloqualasmensagenspodemsertransmitidas.

As melhorias nas técnicas de transferência de informação são, por isso, tão fundamentais para aacumulação quanto as revoluções no transporte que melhoram a mobilidade das mercadorias[29].Correios, telégrafos, telefone, rádio, telex, transferênciaseletrônicasetc.– todosajudamodinheirodecréditoaatravessaroespaço“numpiscardeolhos”.Essetipodecapitalmonetáriopodeaparentementeperambularpelomundopraticamentesemfreteouobstáculo, integrandoecoordenandoaproduçãoeatroca quase sem nenhuma consideração às barreiras espaciais materiais. Como Marx declara (vercapítulo 1) que os valores só se tornamos reguladores da troca demercadoria namedida emque sedesenvolve um sistema de troca bem integrado, quanto mais livremente os dinheiros de crédito semoverem, mais perfeitamente as relações de troca refletirão as relações de valor e maissignificativamentesepassaafalardeumamercadoriamonetáriacomoumequivalenteuniversal.

Mas imediatamente encontramos alguns paradoxos e contradições que são impostos socialmente àlivremobilidadeatémesmodosdinheirosdecrédito.Estesúltimossópodemfuncionarnocontextodealgunsdispositivosinstitucionaisfirmes,dosquaisosmaisimportantessãoaquelesproporcionadospeloEstado.Marxinsistequetodasasformas“ideais”dedinheiropossuemum“caráterlocalepolítico”eoseu capítulo sobre “dinheiro” n’O capital está repleto de alusões ao Estado-nação como a unidademonetáriabásicaquandoodinheiroéusadocomopuromeiodecirculação.AsrelaçõesentreossistemasmonetáriosdediferentesEstadosnacionaiseentreosblocosmonetáriosentramentãonocenário.Surgembarreiras sociais aomovimento do dinheiro devido aos diferentes dispositivos legais, institucionais epolíticosqueapoiamosistemamonetário.Por isso,a iniciativadecriarumsistemadecréditoomaislivre possível das restrições do espaço material se baseia, paradoxalmente, em diferenciaçõesterritoriais,quepodemimpediromovimentododinheiroemcertascondições.Encontramosessetipodecontradiçãoantes.Amobilidadeespacialdasmercadoriasdependedacriaçãodeumarededetransportequeéimóvelnoespaço.Emambososcasos,asbarreirasespaciaissósãosuperadasmedianteacriaçãodeestruturas especiais específicas.Quandoasúltimas se tornaremasbarreirasque como tempoelasdevemsetornar,entãopoderemosenxergarmaisclaramentecomo“auniversalidadeparaaqualocapitaltendeirresistivelmenteencontrabarreirasemsuapróprianatureza”[30].

Evidentemente,osdinheirosdecréditospoderiamperambularlivrementepelomundoseestivessemdiretamente ligados a umamercadoriamonetária, como o ouro.Mas essa é a virtude fundamental dodinheirodecréditoqueestáliberadodesertãoimobilizado.Eledevenecessariamenteserliberadodasrestriçõesmonetáriasduranteafaseascendente,porexemplo,paranovasconfiguraçõesdaproduçãoeorganizaçãodomais-valor seremconseguidas.Alémdisso, ele deve ser desvalorizado em relação aodinheiro de “alta qualidade” durante uma crise.Então adquire importância onde esse dinheiro de altaqualidadeestálocalizado,assimcomoasuaforçacomoumamedidadetrabalhosocial.Quandooouroaindafuncionacomoaúnicamedidadevalor,asreservasdeourodosbancoscentraisconstituemabasemonetária. Quando o papel-moeda inconvertível garantido pelo Estado atua como a únicamedida devalordentrodeumpaís,aofertaeaqualidadedodinheirodobancocentralsãotudooquecontacomoumagarantiainternaparaodinheirodecrédito.Astrocasinternacionaisocorrementãosegundoastaxasdecâmbioflutuantesestabelecidasentreasdiferentesmoedasnacionais.Emqualquerdoscasos,ovalordotrabalhosocialregistradopelasreservasdeourooupelaposiçãodocâmbioexteriordoEstado-nação

Page 356: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

torna-se uma garantia fundamental para o sistema de crédito. Quantomais forte for a sua posição nocâmbio exterior e/ou suas reservas de ouro, mais dinheiro de reserva um banco central terá paraproporcionar uma base monetária firme para o sistema de crédito. Marx estava bem consciente daimportância dessas relações, como ilustram claramente seus escritos sobre a formação da crise e a“drenagemdasbarrasdeouro”[31].

Aconclusãoéaseguinte:emboraosdinheirosdecréditoconsigamsemovimentarpelomundo tãorapidamentequantoasinformações,elestambémencontrambarreirassociaiscolocadaspelaexistênciadediferentesmoedasnacionaisdequalidadevariada (dependendodaposiçãonocâmbioexterior,dasreservasdeouro,daspolíticasdobancocentralecondições semelhantes)[32].Em temposde crise, osdinheiros de crédito são obrigados a se relacionar a uma base monetária que é geograficamentediferenciada.CadaEstado-naçãoseesforçaparaprotegersuabasemonetáriaafimdequeaviabilidadedosistemadecréditopossa sergarantida. Issosignificaaumentarovaloreaproduçãodemais-valordentrodesuasfronteirasouaapropriaçãodevaloresproduzidosemoutrolugar(medianteespeculaçõescoloniais ou imperialistas). A isso se segue uma competição entre países com respeito aos fluxos decapital (de qualquer forma). Cada Estado-nação pode então julgar necessário proteger sua basemonetária restringindo omovimento do capital (mediante tarifas de proteção, subsídios da produção,controlesdocâmbioexterioretc.).Omovimentodaforçadetrabalhotambémpodesercontrolado.

Mastodaalógicaagorasevoltacontrasimesma.Paraprotegerabasemonetáriaqueconstituiabasedo dinheiro de crédito – a forma mais móvel do capital –, pode se tornar necessário restringir amobilidade espacial do capital em geral! Tal situação é inerentemente instável e contraditória. E ainstabilidadegeraincertezaemaisatitudedefensivaporpartedasautoridadesmonetáriasemdiferentesEstados-nação. Estamos então a caminho de entender como, na ausência de qualquer acordosupranacional(dotiponegociadoemBrettonWoodsem1944),osistemamonetáriointernacionalpodesedissolvernocaosquandoascrises sedesdobramgeograficamentenocenáriomundial.Vamos retomaressetemaembreve.

IV.ALOCALIZAÇÃODOSPROCESSOSDEPRODUÇÃOAorigemdomais-valorestáemumprocessodetrabalhoconcretoorganizadonasrelaçõesdeproduçãoetrocacapitalistas.Atransformaçãomaterialdanatureza,aproduçãodosvaloresdeusosociais,ocorremnecessariamenteemumlugarespecífico.Comaúnicaexceçãodaindústriadetransporte(queproduzamudançadelocalizaçãocomoseuproduto),aproduçãodemercadoriasestávinculadaaumalocalizaçãoparticular durante o processo de trabalho.As localizações só podem sermudadas sem que incorra adesvalorizaçãodocapitalempregadodepoisqueoprocessodetrabalhoseguiroseucurso.Aduraçãodecadaprocessodetrabalhoéfixadapelotempoderotaçãorealdocapitalempregado.Quantomaislongosforemostemposderotação,maisdifícilserámudaraslocalizações,amenosqueoscomponentesdessecapital – asmáquinas e os estoques – possam sermovidos a um custo nominal.Os produtores estãofirmemente imobilizados,durante longosperíodosdetempo,pelaconfiançanolongotempoderotaçãodocapitalfixoincorporadonaprópriaterra.ElespodemserliberadosatécertopontodessasrestriçõesseoEstadoououtrafacçãodocapital(donosdepropriedades,financistas)mantiveremesseselementosdocapitalfísicoeosarrendaremaosusuáriosemumabasedecurtoprazo.

A localização da produção no capitalismo é uma questão muito complicada e sujeita a múltiplasdeterminações.Avantagemdeumalocalizaçãoparaocapitalistaindividualdependedocustodocapital

Page 357: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

constanteevariável,do transporteparaosmercadoscomumademandaefetivasuficiente,docustodocapital que rende juros, do custo e da disponibilidade de uma ampla série de serviços de apoio, etambémdopreçodaterra.Essescustosvariamsegundoagenerosidadedanatureza(chamadadedoaçõesderecursosnaturais),ascondiçõeseconômicasqueafetamovalordaforçade trabalho,oscustosdosinsumos intermediários, os níveis de demanda efetiva etc. Os produtores também se envolvem nacompetiçãoespacial–ouseja,nacompetiçãoporlugareselocalizaçõesfavoráveisparaodomíniodedeterminadasáreasdemercadoetc.Essasconsideraçõessãotratadas,éclaro,nateoriadalocalizaçãoburguesa[33].Nossatarefaaquiéinterpretá-lasapartirdeumaperspectivamarxiana.

As“leiscoercivasdacompetição”desempenhamumpapel importantena teoriadeMarx.Maseletendeaignorarosaspectossociais.Fazumabrevealusãoaelesnaanálisedarenda(vercapítulo11)erecebe uma menção ocasional em outros lugares. Na verdade, Marx frequentemente afirma que osdetalhesdecomoacompetiçãorealmentefuncionapodemserrazoavelmentedeixadosparadepois.Eleestá interessadonas relaçõesbásicasqueprevalecemapósacompetição,nademandaenaoferta,nasflutuaçõesdopreçoeemtodososoutrosfenômenosaparentescaracterísticosdequeomercadofezoseutrabalho. Para esse propósito, uma suposição grosseira da competição perfeita é suficiente. O queacontece, então, quando incorporamos os aspectos espaciais da competição mais explicitamente noargumento?

Na competição, a vantagem relativa da localização se traduz em lucro excedente. Esse lucroexcedente, como aquele que acumulam os capitalistas que usam tecnologias superiores, pode serencaradocomouma formademais-valor relativo.Ele seacumulaparaoscapitalistas individuaisquevendemnamédiasocial,masproduzemaoscustoslocaisquesãoinferioresàmédiasocial.Issodeveserdistinguido da forma permanente de mais-valor relativo que afeta a classe capitalista como um todomediante o declínio no valor da força de trabalho. Para manter clara a distinção vou aderir àterminologia do excesso de lucro para indicar o mais-valor relativo que os capitalistas individuaispodemganharpela tecnologiaoupelavantagemda sua localização.Namedida emqueosprodutorespodemmudardelugaràvontade,oexcessodelucroadvindodeumalocalizaçãosuperior,comoaquelede uma tecnologia superior, será efêmero. Por outro lado, se o excesso de lucro passar a serrelativamentecontínuo,entãoserátaxadocomorendadaterra(localização)(vercapítulo11).Ataxadelucro para os produtores capitalistas tenderá a ser igualada entre as localizações, quer mediante aapropriaçãodarenda,querpelamobilidadegeográficadocapitaldaprodução.

Entretanto, o nosso foco aqui é a competição espacial e a consequentemobilidade geográfica daproduçãocapitalista.Paraobteralgumsentidodeparaondeoargumentosedirige,vamoscomeçarcomummodeloextremamentesimplificado.Suponhaquetodososcapitalistasmodifiquemtodososelementosdoseucapitalemumabaseanualequeelestenhamaliberdadedemudaralocalizaçãosemincorreremqualquerdesvalorizaçãonotérminodecadaano.Imaginetambémumplanofechadoemquecapitalistasconcorrentescomtecnologiasidênticasacumulemcapitalmedianteaproduçãoeatrocadeumprodutohomogêneo. Suponha, finalmente que todos os capitalistas têm todas as informações sobre asoportunidadesdelucronoplano.Nofimdecadaanooscapitalistaspodemmudarparaumaconfiguraçãoespacialdaslocalizaçõesdaproduçãoqueigualemataxadelucro.Mas,então,oqueelesvãofazercomseucapitalacumulado?Seumcapitalistaexpandeoprodutoemudaasualocalizaçãoparamaximizarasperspectivas dos valores realizados (tanto na produção quanto na troca), então outros capitalistas sãoobrigadosaacompanhá-loparadefendersuaposiçãocompetitiva[34].Oefeitoagregadodelongoprazoemumplanofechadoéqueabuscaporexcessosdelucroindividuaisdevidoàlocalizaçãopressionaa

Page 358: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

taxadelucromédiaparacadavezmaispróximadezero.Esteéumresultadoextraordinário.Significaque a competição pela relativa vantagem de localização em um plano fechado em condições deacumulaçãotendeaproduzirumcenáriodeproduçãoqueéumaantítesedeumaacumulaçãoadicional.Oscapitalistasindividuais,agindoeminteressepróprioeseesforçandoparamaximizarseuslucrossobas pressões coercivas da competição, tendem a expandir a produção emudar suas localizações até opontoemqueacapacidadedeproduzirmaisemais-valordesaparece.Essaé,aoqueparece,umaversãoespacialdatesedataxadelucrodecrescentedeMarx[35].

Essemodelo não é particularmente realista,mas ajuda a identificar algumas hipóteses de trabalhoúteis.Primeiro,osprocessosquecontribuemparao“equilíbrioespacial”–amplamenteexplicitadonateoriadalocalizaçãoburguesa–devem,segundoaperspectivamarxiana,servistoscomoparteeparcelados processos que conduzem a crises de acumulação. Inversamente, aquelas forças mitigadoras(incluindo aquelas desencadeadas no decorrer de crises), que pressionam a economia do espaço daproduçãoparaalgumaparenteestadodedesequilíbriocrônico,têmumpapelpotencialmenteimportanteadesempenhar na protelação, limitação ou resolução das crises espaciais agregadas da acumulação. Osignificadogeraldessashipóteseséconfirmarquea localizaçãoéummomentoativodentrodoqualacirculação e a acumulação totais do capital, que vamos posteriormente chamar de “desenvolvimentogeográfico desigual”, ao lado das reestruturações radicais da economia de espaço do capitalismodesempenhamumpapelvitalnosprocessosdaformaçãoeresoluçãodacrise,equeestespodematéserum “ajuste espacial” (como o chamamos) para as contradições internas do capitalismo. A seguir,tentaremoscomporoesqueletodessasideias.

1.Atecnologiaversusalocalizaçãocomofontesdemais-valorrelativo

Os capitalistas podem individualmente esperar adquirir mais-valor relativo para eles próprios –excessos de lucro – adotando tecnologias superiores ou buscando localizações superiores. Por isso,existeumapermutadiretaentremudaratecnologiaoualocalizaçãonabuscacompetitivaporexcessosde lucro. Os produtores em localizações desvantajosas, por exemplo, podem compensar essadesvantagem adotando uma tecnologia superior, e vice-versa. As relações entre essas duas fontespotenciaisdeexcessodelucromerecemumaconsideraçãoespecial.

Primeiroobservamosque,emambososcasos,oexcessodelucroqueseacumulaparaoscapitalistasindividuais é em princípio temporário. Ele desaparece assim que outros capitalistas adotam amesmatecnologia ou se mudam para localizações igualmente vantajosas. Em condições de realocaçãoinstantâneaesemcusto,oexcessodelucrodevidoàlocalizaçãoserianegligenciávelexcetonocasoderecursosmonopolizáveiseespeciaisdotipoquedãoorigemàapropriaçãodarenda.Namedidaemqueexistembarreiras para a realocação (mediante o custo, o tempo transcorrido para completar umdadoprocesso de trabalho etc.), ilhas de vantagem podem ser produzidas pormeio da ação do capital. Aanalogia com o caso da renda diferencial de segundo tipo (ver capítulo 11) é exata. Configuraçõesespaciaisrelativamentepermanentesdosexcessosdelucroembotariamoincentivodoscapitalistasparaseengajarememmudançatecnológicanessaslocalizaçõesfavorecidas,amenosqueoexcessodelucrofosse taxado como renda fundiária. Reafirmamos aqui a hipótese explorada no capítulo 11 de que aapropriação da renda desempenha um papel importante na equalização da taxa de lucro para osprodutoresmedianteaslocalizações,obrigandoassimoscapitalistasindividuaisavoltarparaocaminhoretoeestreitodebuscarexcessosdelucroapartirdamudançatecnológica.

Considereagoraumasituaçãoemqueamobilidadedocapitaldeproduçãoeaapropriaçãodarenda

Page 359: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

igualarama taxade lucroemtodasas localizaçõesdentrodeumplano limitadonoqualháumaofertafinitadeforçadetrabalho.Aacumulaçãoprocederásemserchecadaduranteotempotodoemquehouverexcedentesdeforçadetrabalho.Àmedidaqueosexcedentesdetrabalhoforemabsorvidos,maisemaiscapitalistas,nabuscadeexcessodelucro,serãoobrigadosaadotarnovastecnologias.Estasperturbamealteramascondiçõesnasquaisoequilíbrioespacialprecedente(definidocomoequalizaçãodataxadelucro)foialcançado.Acompetiçãoespacialéreativadadeváriasmaneiras.

Emprimeirolugar,osprodutorescomtecnologiassuperiorespodemestendersuasáreasdemercadoà custa de outros que são então obrigados a reagir mudando as localizações ou adotando a novatecnologia.Se anova tecnologiaprovocar economiasde escala e forneutra com respeito aovalordaforçadetrabalho(istoé,elanãoderorigemàformapermanentedemais-valorrelativo),entãoomais-valor produzido no plano permanecerá constante. Ela será simplesmente redistribuída. Se a novatecnologiarequererumaumentonocapitaladiantado,entãoataxadelucromédiodeclinará,emboraoscapitalistasindividuaisfavorecidosaindaestejamemposiçãodeganharexcessosdelucro.Vemosaquimais uma vez em ação o aspecto espacial da taxa de lucro decrescente. Para a taxa de lucro serestabilizada,algunsdoscompetidoresdevemsereliminadosdonegócio–eissosignificadesvalorizaçãoespecíficadolugar.

Emsegundo lugar, quandoosprodutores aumentamas composiçõesdevalordos capitaisqueelesempregam,ocorremtrêsefeitosrelacionados:

(1) A demanda por força de trabalho nas proximidades dos inovadores pode cair, desencadeando

desemprego,quedanossalárioseoportunidadesextrasparaseadquirirmais-valorrelativotendoporbaseascondiçõesdomercadodetrabalhofavoráveisàexpansão(nãopresumimos,nessemomento,mobilidadedaforçadetrabalho).

(2)Omercadoparabens salariaisnessavizinhançadeclinaeos fornecedoresdebens salariais ficampelomenostemporariamenteemdesvantagem.Comoreação,elespodeminovarouserealocar.

(3)Ademandapormeiosdeproduçãoaumentanoâmbitolocaleosfornecedoresficamtemporariamenteemvantagem.Osefeitos totaisda interaçãosão,evidentemente, inúmeroseaeconomia levaráalgum tempopara

cairemalgumtipode“equilíbrioespacial”emqueastaxasdelucrosãonovamenteigualadas.Emterceiro lugar,assubstituiçõesdentrodascategoriasdecapitalconstanteevariávelmediantea

mudança tecnológica também desempenharão um papel na alteração do cálculo da vantagem dalocalização:

(1)Amudançadotrabalhoespecializadoparaonãoespecializado(ouvice-versa),emconsequênciadas

mudançasnoprocessode trabalho,alteraráa importânciadoacessoadiferentes tiposdeofertadetrabalho (quantidade e qualidade), enquanto a separação entre o projeto e a execução pode atépermitiradivisãodasdecisõesdelocalizaçãoparadiferentesfasesdeumprocessodetrabalhodocontráriointegrado.

(2) A substituição de um tipo de matéria-prima por outro tem consequências diretas na localização,dependendodadisponibilidadedessesmateriais“nanatureza”.

(3)Amudançadastécnicasalteraasensibilidadepararestriçõesespaciaisgerais–aenergiahidráulicapermitelocalizaçõesempequenaescala,espacialmentelimitadasporémdispersas,omotoravapor

Page 360: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

liberouaproduçãodessasrestriçõesmasvinculoumaisdepertoalocalizaçãoapontosdetransporteconvenientes, enquanto a energia elétrica permite a dispersão ou a concentração relativamenteirrestritasdaproduçãosegundorequeiraocaso.[36]Em quarto lugar, amudança tecnológica e organizacional – a cooperação, a divisão detalhada do

trabalhoeoempregodemáquinas–tendeapromoveraconcentraçãoespacialaumentadadasatividadesde produção.As economias de escala reforçam uma tendência que pode também ser promovida pelacentralizaçãoaumentadadocapital(vercapítulo5).Acrescenteinterdependênciadentrodadivisãodotrabalho(emoposiçãoàcompetiçãopelocontroleemmercadosespacialmentedistintos)significaqueasmudanças tecnológicas e organizacionais podem conduzir à aglomeração das atividades dentro degrandes centros urbanos. Marx frequentemente alude a esses processos, mas também aponta que acooperação“permitequeotrabalhosejarealizadoemumespaçoestendido”,enquantoadivisãosocialdo trabalho e a abertura de novas linhas de produto estimulam a divisão territorial do trabalho e adispersão geográfica[37]. A tensão entre a concentração geográfica da produção, por um lado, e aespecialização e dispersão territorial, por outro, é muito evidente e não pode ser entendidaindependentemente do dinamismo tecnológico associado à acumulação de capital. Esses efeitosgeográficos criam então oportunidades para os capitalistas individuais adquirirem lucro excedente(temporariamente)medianteasmudançasdelocalização.

A conclusão geral a ser extraída de todos os pontos acima é que a busca por excesso de lucromediante a mudança tecnológica não é independente da busca por excesso de lucro mediante arealocação.Namedida em que as oportunidades para excesso de lucro são eliminadas (pormeio damobilidadedaproduçãooudaapropriaçãodarenda),oscapitalistasindividuaissãoobrigadosabuscarexcessos de lucro mediante mudanças tecnológicas. Estas tipicamente criam novas aberturas para aaquisiçãodeexcessosdelucroapartirdalocalização.Emoutraspalavras,quantomaisaproduçãoseaproxima de alguma condição de equilíbrio espacial (a equalização das taxas de lucro mediante aslocalizações,porexemplo),maioroincentivocompetitivoparaoscapitalistasindividuaisperturbaremabase desse equilíbrio por intermédio damudança tecnológica. E isso acontece independentemente dequaisquer outras forças – como a mobilidade do trabalho ou mudanças no transporte – que tambémalterarão a base do equilíbrio espacial. Podemos concluir então que a competição promovesimultaneamente mudanças nas configurações espaciais da produção, mudanças nas incorporaçõestecnológicas, a reestruturação das relações de valor e mudanças temporais na dinâmica geral daacumulação.Oaspectoespacialdacompetiçãoéumingredienteativonessamisturadeforçasvoláteis.Na ausência de qualquer contenção das forças contrárias, a busca individual por excessos de lucromanteriaaeconomiadeespaçodaproduçãocapitalistaemumestadoqueseassemelhaaumjogodascadeirasincoerenteefrenético[38].

Essaconclusãoémodificadanamedidaemqueassuposiçõesiniciaisdeumaofertadetrabalhofixoedeumplano limitadosão relaxadas.Emcondiçõesdeumexcedentede trabalho (eumaltoníveldeexploração), o incentivo competitivo para a mudança tecnológica ou para a realocação fica muitoreduzido, enquanto em um plano ilimitado as condições prevalecentes na fronteira geográfica docapitalismotornam-seimportantes.Há,alémdisso,outrasinfluênciasemaçãoquetendemaestabilizarospadrõesdalocalização.Vamosconsiderá-lasaseguir.

2.Otempoderotaçãodocapitalnaprodução:ainérciageográficaetemporaleoproblemada

Page 361: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

desvalorização

Osdiferenteselementosdocapitalempregadosnaproduçãogiramemvelocidadesdiferentesdentrodas diferentes indústrias. Quanto mais tempo durarem esses tempos de rotação, maior a inérciageográfica e temporal dentro da economia de espaço da produção capitalista. A inércia é impostaespecificamentepelaameaçadedesvalorização.

Os capitalistas individuais só podem se mover sem incorrer em desvalorização na circunstânciaimprováveldeumaeliminaçãosimultâneadetodosostemposderotaçãoedosperíodosdetrabalhodocapital (variável, constante, fixo etc.) que eles empregam.A ausência de simultaneidade significa quealgumgraudedesvalorizaçãoestásempre ligadoaummovimento.Aúnicaquestãoé:atéquepontoecomqueefeito?Umaregraderealocação“racional”simplesmentefariacomqueoganhonomais-valordevido à mudança superasse a desvalorização incorrida. Mas que processos sociais garantem que ocapitalismopossaseaproximardaimplementaçãodeumaregratãoracional?

A ameaça de desvalorização impõe restrições tanto ao ritmo da mudança tecnológica quanto àvelocidade do ajustamento à localização. Quanto maiores os tempos de rotação, maior a inérciageográfica e temporal na economia de espaço da produção.O efeito disso é estabilizar o cenário daprodução–umainfluênciacontrárianãototalmenteindesejávelàtendênciaparaainstabilidadefrenéticaidentificadanaseçãoprecedente.Masemergementãoproblemasdeoutrotipo.

As indústrias que empregam grandes quantidades de capital fixo não conseguem se realocarfacilmente.Emum sistemadeprodução caracterizadopela interdependência e pela competição, pelosdiferenciais nos tempos de rotação entre as indústrias, pelas estruturas específicas de aglomeração edispersão e assim por diante, os problemas de coordenação são abundantes e as barreiras àreorganizaçãoespacialdaproduçãosemultiplicamemgraucorrespondente.Oespaçoea localizaçãoentãoaparecemcomofontesativasdemais-valorparaoscapitalistasindividuais.Alémdisso,aameaçadedesvalorizaçãomedianteareorganizaçãoespacialtorna-seaindamaior.Oefeitopodeserinclinarasescalasdainstabilidadecrônicaparaaestagnaçãodalocalização.Encontramosaquiumaversãoaindamaisprofundadessacontradiçãoque infestaacirculaçãodocapital fixo.Ocapitalismodependecadavezmais do capital fixo (incluindo aquele incorporado em um cenário de produção específico) pararevolucionar a produtividade de valor do trabalho, mas acaba descobrindo que essa fixidez (adistribuição geográfica específica) se torna a barreira a ser superada. A tensão entre a instabilidadegerada pelo capital recém-formado e a estagnação associada aos investimentos passados está semprepresentedentrodageografiadaproduçãocapitalista.

Aqui se encontraumabaseparao entendimentodoprocessoda formação eda resoluçãoda crisedentro da economia de espaço da produção capitalista. Um rompimento com as incorporações datecnologiaeasconfiguraçõesespaciaisdopassadocomfrequênciaenvolveumadesvalorizaçãomaciça.Mas, para começar, o fracasso em “racionalizar” as incorporações tecnológicas e as configuraçõesespaciais está por trás das crises de superacumulação. A desvalorização geral no decorrer da crise“libera”o capital para estabelecer simultaneamentenovas tecnologias e novas estruturas espaciais[39].Masagoratemosdeacrescentarmaisumapeculiaridadeaessequadrojácomplexo.Comojávimos,adesvalorizaçãoésempreespecíficadolugar.Elanãoprecisaestardisseminadaregularmentepeloplano.Naverdade, apróprianaturezadacompetiçãoespacialgarantequeosexcessosde lucroemum lugarserãoganhosàcustadasperdaspeladesvalorizaçãoemoutro.Porisso,ascrisessedesenvolvemcomefeitosdiferenciaisnasuperfíciedoplano.

Page 362: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

V.ACONFIGURAÇÃOESPACIALDOSAMBIENTESCONSTRUÍDOSSeoscapitalistasdaproduçãopuderemadquirirosvaloresdeusoanexadosaocapitalincorporadonaterra em uma base de “remuneração por serviço” ou em uma base anual, eles poderão mudar maisfacilmente as localizações sem incorrer nos enormes ônus da desvalorização. Por isso será vantajosoparaelesseocapitalincorporadonaterrafordepropriedadedealgumaoutrapessoa.Essavantagem–que se aplica a todos os outros agentes econômicos (comerciantes, financistas e até mesmotrabalhadores)–éconseguidaquandoumapartedocapitaltotalcirculapeloambienteconstruídocomoum“capitalfixodeumtipoindependente”(vercapítulo8).Oprincípiogeralemaçãoéoseguinte:tantoocapitalquantootrabalhopodemsetornarmaisgeograficamentemóveis,contantoquesecongeleumaporçãodocapitalsocialtotalestabelecido.

Essa condição é inerentemente conflitante. Se a parte do capital livre para se mover tira toda avantagem da sua potencial mobilidade, então essa parte do capital imobilizado no local certamentesofrerátodotipodereavaliaçõesincertas(tantodeaumentoquantodedeclínio).Vamosconsideraragoraosfundamentosdisso.

As necessidades peculiares da circulação do capital nos ambientes construídos têm significado aevolução de um tipo especial de sistema de produção e realização que define novos papéis para osagentes econômicos.Osproprietários de terra recebem renda, osempresários recebemaumentos narenda baseados nas melhorias, os construtores ganham o lucro do empreendimento, os financistasproporcionamcapitalmonetário em trocados juros, aomesmo tempo que podem capitalizar qualquerforma de receita acumulada pelo uso do ambiente construído em um capital fictício (preço dapropriedade)eoEstadopodeusarosimpostos(atuaisouantecipados)comosuporteparainvestimentosqueocapitalnãopodeounãovairealizar,masquenãoobstanteexpandeabaseparaacirculaçãolocaldo capital. Esses papéis existem, não importa quem os desempenha.Quando os capitalistas compramterra, viabilizam-na e constroem sobre ela usando seu próprio dinheiro; então eles assumem papéismúltiplos.Masquantomaiscapitalelesadiantamnessetipodeatividade,menoselesterãoparainvestirdiretamente na produção. Por essa razão, a produção e amanutenção dos ambientes construídos comfrequênciasecristalizamemumsistemaextremamenteespecializado,vinculandoosagenteseconômicosquedesempenhamcadapapelseparadamenteouemcombinaçõeslimitadas[40].

Amaneiracomoessesistemafuncionanãopodeserentendidasemseinvocarosfatosdadistribuição– renda, juros e impostos.A renda (ver capítulo 11) é a base do preço da terra e opera para alocarcapital e trabalho nela, direciona a localização da produção, a troca e o consumo futuros, molda adivisãogeográficado trabalhoeaorganizaçãoespacialdareproduçãosocial. Issosóéverdadeatéoponto em que a terra se torna umamera forma de capital fictício.Os títulos de propriedade da terradevemserlivrementenegociadoscomoumsimplesbemfictício.Arendaéentãoassimiladacomoumaformade juro identificada especificamente comatributosda localização.Ocapitalmonetário, por suavez, tambémpodeserconvertidoemumvalordeusomaterialeemprestadocomo talem trocadeumpagamentodejuro(vercapítulo8).Porisso,ocapitalquerendejuroscirculadiretamentepeloambienteconstruído,easreceitasassimgeradaspodemsercapitalizadaseostítulosdepropriedade,negociados.OEstado tambémpode facilitar a circulaçãodocapitalnoambienteconstruídoemitindobônuscontrareceitasdearrecadaçãofiscal.Estespodemsercapitalizadosetambémconvertidosemformasdecapitalfictício.

Page 363: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Dentro de todo esse sistema, a circulação do capital que rende juros desempenha um papelhegemônico.Opoderdocapitalmonetárioécontinuamenteexercidosobretodasasfacetasdaproduçãoe realização, ao mesmo tempo que as alocações espaciais são trazidas para dentro da sua órbita. Osistema de crédito afeta os mercados fundiário e imobiliário e a circulação da dívida do Estado. Apressãoéassimimpostaaosproprietáriosdeterra,aosempresários,aosconstrutores,aoEstadoeaosusuários.Alémdisso,aformaçãodocapitalfictíciopermitequeocapitalquerendejurosfluaemumabasecontínuaemrelaçãoaousodiáriodosvaloresdeusode longaduraçãoedos imóveis.Os títulosdessas receitas podem até circular nomercadomundial, embora os próprios bens sejam imóveis.Asvantagens disso são inúmeras. O intervalo entre a necessidade de produção e as possibilidades derealizaçãopodesercontinuamentemonitoradomedianteasflutuaçõesnasrendas,as taxasde juroeosimpostos, enquanto os mercados fundiário, imobiliário e a dívida do governo proporcionam sinaiselaboradosparaoinvestimentoeodesinvestimentodeumlugarparaoutro.Desvalorizaçõeseventuaisimportantes podem ser evitadas permitindo-se ajustamentos de preço múltiplos e menores durante otempode existênciade algumbem fixo e imóvel.Os investidorespodemaplicar capitalmonetárioouretirá-loaqualquertempo(àsvezescomumganhoeàsvezescomumaperda).Oriscoonipresentededesvalorizaçãotambémpodeserparcialmentesocializadoporqueumaperdasériaaquipodesermaisdoquecompensadaporumganhoparticularali.Eseocorreremdesvalorizaçõesmaciçaslocalizadas,elaspodemserparcialmenteabsorvidasdentrodosistemadecréditooupeloEstado.

As mediações intrincadas dos diversos agentes econômicos que se apropriam de receitas dediferentestipossãoconduzidasparadentrodeumaestruturacomum–aqueladosistemadecréditoquedesempenhafunçõesdecoordenaçãofundamentais(vercapítulo9).Oefeitodissoéareduçãodotempoedoespaçoaumamétricasocialmentedeterminada–ataxadejuros,elaprópriaumarepresentaçãodovalor em movimento. Os horizontes temporais e geográficos do fluxo do capital são definidossimultaneamente. Os recursos são extraídos do solo e a terra, levada para a periferia, por exemplo,segundoastaxasditadaspelataxadejurosprevalecenteemvezdesegundoalgumaoutraconcepçãodobem-estarpresenteoufuturo.Ecomoastaxasdejuros–elasprópriasumprodutodaacumulaçãopelaexploraçãoda forçade trabalho (verp. 296-305)– flutuam,oshorizontes temporais egeográficosdofluxodecapitalpulsamparaforaousecontraem.

Dentro desse sistema geral uma ampla variedade de tipos especiais de dispositivos institucionaisaparecempara lidar comos problemas cotidianos de coordenação na produção, uso, transformação eabandono de elementos particulares dentro do ambiente construído[41]. Por exemplo, a “discriminaçãofinanceira” por parte das instituições financeiras e a renovação urbana com frequência envolvem oabandono organizado. O Estado também estabelece estratégias e canais de planejamento urbanos eregionais, investimentos tanto públicos quanto privados, conforme o caso. Regulamentações legais eadministrativassurgemparacontrolarepromoverbenefíciosinterativosecustosdediferentestiposdeusosdiretosdaterra.Dispositivosdessetipomodificamosmecanismosbásicosdomercadofundiárioedomercadoimobiliário,baseadosnanegociaçãodecapitaisfictícios.Oefeitodissoéacriaçãodeumahierarquiademeios–mercado,institucionaleEstado–paraaprodução,modificaçãoetransformaçãodasconfiguraçõesespaciaisdoambienteconstruído.

O propósito geral desses dispositivos intrincados é estabelecermeios independentes e formas decirculaçãoindependentesquepodemmoldarasconfiguraçõesespaciaisdoambienteconstruídosegundoasvariadasexigênciasdocapitaledotrabalhoemgeral.Aapropriaçãodarenda,porexemplo,estimulaailusãofetichistadequeaterraeatémesmoalocalizaçãosãodiretamenteprodutoresdevalor.Ilusões

Page 364: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

semelhantescercamosmercadosimobiliárioseacirculaçãodadívidadogoverno.Oscapitaisfictíciossão,afinal,fictícios.Acirculaçãodostítulosparareivindicaçõessobreotrabalhofuturoéinerentementeespeculativa.Todoosistemaderelaçõesnosquaissebaseiaaproduçãodasconfiguraçõesespaciaisnoambienteconstruídotendeafacilitare,ocasionalmente,exacerbarossurtosinsanosdeespeculaçãoaosquaisosistemadecréditoéde todomodopropenso.Aoqueparece,háalgoperversoem tentarcriarcondições físicas favoráveis à acumulação dando rédea à apropriação de mais-valor por parte dosproprietários de terra, empresários, financistas e seus semelhantes (nenhum deles, com exceção dosconstrutores,organizaaproduçãorealdemais-valor).Maisespecificamente,issotrazaquestão:quantaapropriaçãoéapropriada?Nãohárespostaclaraparaissoe,mesmoquehouvesse,nãoexistiriagarantiade que as forças em vigor no capitalismo pudessem chegar a alcançá-la. Surge daí a preocupaçãopersistente de que demasiado capital pode circular na especulação de terra e na propriedade“improdutiva”,ounadívidadoEstado,àcustadaproduçãorealdemais-valor.

Então,porquetoleraraexistênciadesseexércitodeespeculadoresimobiliários,agentesfundiárioseseussemelhantes?Arespostaagoradeveserclara:aespeculaçãonosmercadosfundiárioeimobiliárioenadívidadogovernosãomalesnecessários.Certamente,aespeculaçãodemasiadadesviaocapitaldaproduçãoreale,comoconsequência,encontraoseudestinodedesvalorização.Masareduçãoexcessivadaespeculaçãotambémtemresultadosexeciáveisdopontodevistadocapitalismo.Atransformaçãodasconfiguraçõesespaciaisnoambienteconstruídoseriapostaemchequeeocenáriofísiconecessárioparaa acumulação futura poderia não esperar ser materializado. Seria bom se houvesse algum caminhointermediário entre esses dois extremos.Mas não existe. A especulação desenfreada e a apropriaçãoincontrolada,pormaiorquesejaoseucustoparaocapitalepormaisdestruidorasquepossamserparaotrabalho, geram a excitação caótica da qual podem se desenvolver novas configurações espaciais.Asreestruturaçõesespeculativasatingidasemfasesdecréditoeexpansãofáceispodemserracionalizadasnodecorrerdascrisessubsequentes.Ondasdeespeculaçãonacriaçãodenovasconfiguraçõesespaciaissãotãovitaisparaasobrevivênciadocapitalismoquantooutrasformasdeespeculação.E,dadaasuaforma,nãopodehaverdúvidadequeosprocessosqueaquiconsideramospodemtodosmuitofacilmenteadicionarsuacontribuiçãoparaoapogeudeinsanidadeperiodicamentemanifestadodentrodosistemadecrédito. A criação de configurações espaciais e da circulação do capital no ambiente construído é,podemosconcluir,comsegurança,ummomentoextremamenteativonosprocessosgeraisdaformaçãoeresoluçãodacrise.

VI.ATERRITORIALIDADEDASINFRAESTRUTURASSOCIAISAsinfraestruturassociaisquesustentamavidaeo trabalhonocapitalismonãoforamcriadasdanoitepara o dia e requerem certa profundidade e estabilidade para serem eficazes. São tambémgeograficamente diferenciadas. Como e por que elas seguiram esse caminho é um problema para ahistória.Masháforçaspoderosasemaçãodentrodalógicadocapitalismoqueasmantêmnessecaminho.Essasforçasmerecemelucidação.

Asinfraestruturaseasinstituiçõessociaisdocapitalismosãoincrivelmentediversasedesempenhamumaenormevariedadede funções.Elas regulamoscontratos,ocâmbio,odinheiroeocrédito, assimcomo a competição intercapitalista, a centralização dos capitais, as condições de trabalho (como ajornada de trabalho) e vários outros aspectos da relação capital-trabalho. Com frequência definemestruturas particulares para a luta de classes. Proporcionammeios para a produção de conhecimento

Page 365: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

científico e técnico, novas técnicas de gerenciamento e novos meios para facilitar a coleta, oarmazenamento e a comunicação das informações. Elas também abarcam a ampla variedade deinstituiçõesquecontribuemparaa reproduçãoda forçade trabalho (saúde,educação, serviçossociaisetc.)edavidaculturalemtodososseusvariadosaspectos (incluindoaqueledaburguesia).Oferecemmeiosdecontroleideológicoetambémfórunsparaodebateideológico.Maissinistrossãoosmeiosdevigilância e repressão, sempre o último recurso quando a sociedade mergulha no caldeirão do ferozconflitodeclasse.

Umenormeexércitodepessoasestáempregadonapreservaçãoenamelhoriadessasinfraestruturaseinstituiçõessociais,queseunem,àsvezesfirmementeeàsvezesfrouxamente,emumsistemaderelaçõessociais de um tipo particular em um tempo e lugar particulares. Uma dissecação apropriada dessasrelações sociais (e de suas contradições internas) requer muito mais consideração do que podemosproporcionar aqui. Mas algo deve ser especulado para que as principais forças que dominam suaevoluçãoespacialsejamidentificadas.Emboranãosejamtãofáceisde localizar,edevidoa issomaisnebulosos,asinfraestruturassociaiseosambientesconstruídosexibemalgunsparalelosnasrelaçõesquemantêmcomacirculaçãodocapital.Essaideiaseráelaboradaaseguir.

Osdiferenteselementosdainfraestruturasocialsefundiramparaformarumaespéciede“complexode recursoshumanos”,maiorqueamera somadesuaspartes.Essecomplexode recursosédifícildemudarporcausadaforteuniãodeelementosaparentementediferentesemseuinterior–osfortesvínculosentreareligiãoeaeducaçãoconstituemumbomexemplo.Sóporcontadisso,o“complexoderecursoshumanos” não é demodo algum instantaneamente ajustável às exigências do capital. Ele faz parte doambiente geográfico humano ao qual o capital deve até certo ponto se adaptar. Além disso, ele éprofundamente sensível a toda nuance na história cultural, racial, étnica, religiosa e linguística. Asrelaçõessociaisdocapitalismo,porexemplo,ouestavamincubadasdentrodoúterodealgumasociedadepreexistenteouforamfortementeimpostasdeforaparadentronosúltimosanos.Asinfraestruturassociaisjá diferenciadas eram as “matérias-primas” a partir das quais novos complexos de recursos humanostinhamdesermoldados.Aqualidadedasmatérias-primaséprontamentediscernívelnosresultados.Eaformaorganizacionaleahistóriadoselementosdainfraestruturasocialasseguramaexistênciadecentrosdepoderpolíticoeosarranjosterritoriaisquenãosãodemodoalgumexpressõesdiretasdasrelaçõessociais do capitalismo. Isso se confirma particularmente no caso do aparato, da administração, daorganizaçãoreligiosaetc.doEstado.

Entretanto, a nossa tese é que a circulação do capital transforma, cria, sustenta e até ressuscitaalgumasinfraestruturassociaisàcustadeoutras.Édifícil identificarexatamentecomo.Masa linhadeinterconexãogeralébastanteclara.Asinfraestruturastêmdesersustentadasapartirdosexcedentese,nocapitalismo, isso significa a produção de mais-valor. Desse ponto de vista elas não podem serinterpretadasdeoutramaneiraanão ser comosuperestruturas erguidas sobreumabaseeconômica[42].Por isso, a circulação do valor para a sustentação das infraestruturas sociais e das pessoas nelasempregadas integra os processos materiais da produção de mais-valor no local de trabalho com aperpetuaçãodasinfraestruturassociais.

Como conceituar tal relação é umproblema.Emum extremo estão aqueles que insistemno poderindependente e na autonomia relativa da organização da infraestrutura social em relação à baseeconômica(queimplicaopoderdetributarsemrestriçõesaomais-valor).Nooutro,estãoaquelesqueencaram as infraestruturas sociais como meros reflexos das exigências da acumulação (que nega asintegraçõesintrincadaseaimportânciadahistóriaedatradição)[43].Segundoestaúltimaconcepção,o

Page 366: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

problema da organização geográfica se tornaria em grande parte irrelevante – a territorialidade dasinfraestruturas sociais simplesmente refletiria as necessidades da divisão geográfica do trabalho e deoutras facetasdaorganizaçãoespacial requeridapelo capital.Nenhumadas concepções é satisfatória.Precisamosdealgummodopôrfimaoimpasse.

Temosdeclaradonodecorrerdetodoestelivroqueacirculaçãodocapitaltemdeserconsideradacomoumprocessocontínuodeexpansãodovalor.Acirculaçãodevalorespelasinfraestruturassociaiséapenas um momento nesse processo total. Vamos agora descobrir a importância desse momento emrelaçãoaoprocessogeral.

Osvalorestributadosdocapitalquefluiparasustentarasinfraestruturassociaisretornamaocapitalnaformadeumademandaefetivaparaasmercadoriasqueoscapitalistasproduzem.Nissonãoháperdaparao capital.Aqueles empregadosparecementãomeras “classes consumidoras” e, como tal, podemocasionalmente desempenhar um papel na reação aos problemas de desproporcionalidade etc. (vercapítulo3).Masotempoabsorvidopelacirculaçãodovalornasinfraestruturassociaisétempoperdidoparaaproduçãodevalor.Otempoderotaçãodocapitalagregadoéestendidomedianteaexpansãodessaesferadecirculaçãoemdetrimentodaexpansãodosvalores.Alémdisso,todosostiposderedistribuiçãogeográficasãopossíveis.O“imposto”sobreomais-valorproduzidoemumlugarpodereemergircomouma demanda efetiva do outro lado do mundo – é o que acontece com organizações como a IgrejaCatólica Romana e o Bank of America. Podem surgir centros de consumo que não tenham base naprodução local de mais-valor. Frequentados predominantemente pelas “classes consumidoras”, essescentros podem se tornar identificados principalmente com funções ideológicas, administrativas, depesquisa e com outras funções das infraestruturas sociais. Os princípios que governam essasredistribuiçõesgeográficasdovalorquefluientreasinfraestruturassociaissãodifíceisdeestabelecer.Aparte a restrição geral do tempo de rotação (ele próprio maleável como a facilidade com que omovimento geográfico melhora), as redistribuições geográficas parecem, na pior das hipóteses,arbitráriaseacidentaise,namelhordashipóteses,comooresultadodaslutasdepoderentrefacçõesdaburguesia (incluindo as “classes consumidoras” que têm interesses próprios específicos), algumasdasquais podem também se definir geograficamente no nome de uma cidade, região ou Estado-nação.Retornaremosaessaquestãonopróximocapítulo.

A circulação do valor pelas infraestruturas sociais também pode ter impactos diretos e indiretossobre a produção de mais-valor. Embora seja difícil localizar com precisão, o conceito da“produtividade”dosfluxosdevalornasinfraestruturassociaisnãoédemodoalgumredundante(vemàmente imediatamente o seu paralelo com os investimentos públicos em infraestruturas físicas). Asmelhoriasnascondiçõessociaisparaaproduçãodemais-valorpodemterimportantesefeitosdelongoprazo.Asmelhoriasnaqualidadedaquantidadedaforçade trabalhopormeiodaatençãoàsaúdeeàeducação, assim como uma série demeios intangíveis que afetam a disciplina, a ética no trabalho, orespeitopelasautoridades,aconsciênciaeassimpordiantepodemterumefeitosalutarsobreaproduçãodemais-valor.Eseostrabalhadoresestiveremrecalcitranteseindisciplinados,entãoporquenãopregarparaelesatravésdaimprensaoudopúlpito,ouintimidá-lospormeiodaaplicaçãodesançõesmoraisoudeforçalegalourepressiva?Porisso,algunsdosfluxosparaainfraestruturasocialpodemserencaradoscomoinvestimentosdestinadosamelhorarascondiçõessociaisparaaproduçãodemais-valor.Omesmoprincípioseaplicaquandofluxosparaaadministraçãoearegulaçãoajudamamanterasegurançaeatranquilidadedeumprocessoaceleradoderotaçãodocapital.Osfluxosparaapoiarapesquisacientíficaetécnica,paracitarmaisumainstância,podemtambémretornardiretamenteparaaesferadaprodução

Page 367: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

como uma força material (novas tecnologias). A enorme importância do “momento” de infraestruturasocialnoprocessototaldecirculaçãodocapitalnãopodesernegada.

Os fluxos de valor desse tipo não produzem em si mais-valor. Eles simplesmente melhoram ascondiçõesdaproduçãodemais-valor.Oproblema–que incomodaoscapitalistase tambémanós–éidentificar as condições, os meios e as circunstâncias que permitem que essa potencialidade sejarealizada.Namedidaemqueoscapitalistasindividuaislucramcomobenefício,elespodemtentarfazeruminvestimentolimitadonasinfraestruturassociaiseassimpromoverapesquisaeodesenvolvimento,amelhorianasqualidadesdaforçadetrabalho(atençãoàsaúde,treinamentonoempregoetc.).Mascomomuitos dos benefícios são tão incertos quanto difusos, os capitalistas têm de se constituir como umaclasse–emgeralpormeiodaaçãodoEstado–eassimencontrarmeioscoletivosparasatisfazersuasnecessidades.ComooEstadoéumcampogeraldelutadeclasses,ficaimpossíveldiscernirdiretamentequaisfluxosdevalorsobsuaégiderepresentamasnecessidades imediatasdocapitalequaisresultamdas pressões exercidas por outras classes.Muitos dos fluxos para as infraestruturas sociais não têmrelaçãocomoaumentodaprodutividadedevalor e têm tudoaver comacirculaçãodas receitas.Oscapitalistaspodemserobrigadospelas“classesconsumidoras”quedealgummodoadquiriramopoderpolíticoparatributaracontribuircomomais-valor.Asclassestrabalhadorastambémpodemobrigá-losaisso.Oinvestimentonocontroleenarepressãoideológica,porexemplo,estárelacionadoàameaçaderesistência da classe trabalhadora organizada, enquanto a necessidade de integrar e cooptar ostrabalhadores por meio dos gastos sociais surge apenas quando os trabalhadores acumularam podersuficientepararequereracooptação.

Noentanto,encaradodopontodevistadaacumulação,oinvestimentonasinfraestruturassociaisnãoéperdaparaocapitaldesdequeoaumentonaproduçãodemais-valoremconsequênciademelhoriasnascondiçõessociaiscompensemuitooaumentonotempoderotaçãodocapital.Issoproporcionaumaregraútilsobreaqualbasearalgumasavaliaçõesdopapeldesse“momento”particularnacirculaçãogeraldovalor.

Asmelhoriasnascondiçõessociaisemgeraldemoramumlongotempoparaseremrealizadas.Elasabsorvemvalorduranteumperíododetempoecomfrequênciagerambenefíciosmuitomaistardeeporperíodos estendidos (por exemplo,demoramuitos anospara socializar e educarum trabalhador). Issotornao investimentoem infraestruturassociaisumcampo idealparaaabsorçãodemais-valor,capitalsuperacumulado,evitandoadesvalorização,poisduranteoperíododeinvestimentonãohádiminuiçãodademandaefetiva.Comodiferentestiposdeinvestimentosocialtêmdiferentestemposdecompensação,omanejofiscalapropriadoporpartedoEstadoresistediantedaperspectivadeestabilizaçãodoprocessodeacumulaçãoduranteperíodoslongos.

Mas na análise final exatamente osmesmos dilemas surgem aqui com relação ao investimento noambienteconstruído.Namedidaemqueascondições sociaismelhoradasdãoorigemaumaproduçãoaumentadademais-valor, oproblemabásicoda superacumulação é exacerbado.Poroutro lado, se ascondições sociais melhoradas não conduzem a tal aumento, então o investimento deve ser julgadoimprodutivoeovalorneleabsorvido ficaefetivamenteperdido.Por isso,adesvalorizaçãodocapitalmediante a circulação improdutiva pelas infraestruturas sociais se torna uma perspectiva muito real.Entretanto,ofatodeosinvestimentosseremounãoprodutivosnãodependedesuasqualidadesinerentes,mas da capacidade dos capitalistas de tirar proveito deles – a educação de uma força de trabalhoespecializadaéreduzidaazeroseoprocessodetrabalhosealteraparaademandadeforçadetrabalhonãoespecializada.Poressarazão,oquedeiníciopareceserumdispositivofácilparaaestabilizaçãose

Page 368: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

transforma emumatoleiro de incerteza, tornado suficientemente real por crises fiscais periódicas nosgastossociaisdoEstado[44].

Investimentosdessetipoexibemumapeculiaridadeadicional.Elesnãosedesgastampelouso(comoasmáquinas),mas,comoasmelhoriasnafertilidadedosolo,podemser intensificadosnodecorrerdotempomaiscomobensrenováveisdoquecomobensesgotáveis.Osganhosemconhecimentocientíficonãosedesgastam,tampoucoosganhosemsofisticaçãolegal,táticaseducacionais,expertisetécnicaemgerenciamentoeadministraçãoetc.Asatitudesnaforçadetrabalhotambémpodemevoluirdemaneirasmais favoráveis à acumulação. A circulação do valor pelas infraestruturas sociais pode produzirconcentração geográfica de condições de alta qualidade. Essas regiões então parecem “naturalmente”favoráveisàacumulaçãoemvirtudedos“recursoshumanosesociais”queforamaíincorporados.Combasenisso,ocapitaldaproduçãoprovavelmenteseráatraídoparaessasregiões.

Mas as tendências contrárias estão também em ação. Benefícios às infraestruturas sociaisrelativamentepermanentespodemconstituirumabaseparaaextraçãoderendaslocais.Maisimportante,a manutenção das infraestruturas sociais impõem custos – quer direta ou indiretamente porque a suapreservação depende das formas de uso “restritas” pelo capital (o paralelo com a manutenção dafertilidadedosoloéevidente).Seoscustosdemanutençãosobem(emrelaçãoàsregiõesconcorrentes),entãoavantagemdalocalizaçãoparaoscapitalistasvaidiminuir.Cansadosdepagaraltostributosoudecontersuasededeexploração,oscapitalistaspodemsemover(comfrequênciacomaajudadenovosprocessosdetrabalhoadaptadosàmãodeobranãoespecializada)paranovosambientessociaisemqueos“recursoshumanos”sãomaispobres,masmuitomenosdispendiososdemanter.Osbensacumuladosnasregiõespreviamenteprivilegiadassãoassimdestruídoseovalorabsorvidonasuacriaçãoficadessemodoperdido.

Isso nos conduz mais diretamente aos aspectos geográficos do problema. O desenvolvimentogeográficodesigualdasinfraestruturassociaisé,naanálisefinal,reproduzidomedianteacirculaçãodocapital.Ocapitalproduzereproduz,emboraatravésde todosos tiposdemediaçõese transformaçõessutis, o seu ambiente social e também o seu ambiente físico. No fim, até mesmo os elementos pré-capitalistas que persistemdevem ser reproduzidos pela produçãodemais-valor.Contudo, a geografiasocialquesedesenvolvenãoéumsimplesreflexonoespelhodasnecessidadesdocapital,masolocaldecontradiçõespoderosasepotencialmentedestrutivas.Ageografiasocialmoldadaàsnecessidadesdocapitalemummomentodahistórianãoénecessariamenteconsistentecomexigênciasposteriores.Comoessageografiaédifícildemudarecomfrequênciao focodepesado investimentode longoprazo,elaentão se torna a barreira a ser transposta. Novas geografias sociais têm de ser produzidas, comfrequência a um alto custo para o capital e em geral acompanhadas por um sofrimento humanoconsiderável.Poressarazão,areestruturaçãoperiódicadageografiadasinfraestruturassociaisemgeralérealizadanodecorrerdeumacrise.Adesvalorizaçãoespecíficadolugardocapital incorporadonasinfraestruturassociais,semfalarnadestruiçãodosmodosdevidatradicionaisedetodasasformasdelocalismo construído em torno das instituições sociais e humanas, torna-se assim um dos elementoscentraisdaformaçãoeresoluçãodacrisenocapitalismo[45].

Essequadrogeral deve sermodificadonamedida emquevários aspectosda infraestrutura, ou asvantagens que elas geram para a acumulação, sejam em si geograficamente móveis. Por exemplo, astransferênciasdevalordotipojácomentadopodemcolocarasfunçõesdepesquisaedesenvolvimentoemlocaisbemdistantesdaprodução.Asvantagensdaaglomeraçãoedoacessoaumaforçadetrabalhoaltamenteespecializadarequeridacomfrequênciapressionamuitasdessasfunçõesaseunirememalguns

Page 369: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

centros importantesque,porsuavez, se tornamoscampospropíciosparase iniciar linhasdeprodutototalmente novas (a indústria de chips de silicone nos arredores de Palo Alto é um exemplo recentedisso). Os “produtos” desse investimento de infraestrutura social também podem ser movidos. Oconhecimento e a mão de obra altamente especializada, ambos conseguidos a um alto custo, sãogeograficamentemóveis,deformaquea“transferênciadetecnologia”ea“drenagemcerebral”sãodoisaspectosmuitoimportantesdentrodoprocessogeralderedistribuiçãogeográfica.Ascontracorrentesdomovimento são demasiado complicadas para produzir facilmente uma análise teórica. E o significadodesses movimentos para diferentes indústrias com diferentes processos de trabalho varia muito.Entretanto, sua importância tem de ser reconhecida em qualquer consideração da evolução dasconfiguraçõesespaciaisnocapitalismo.

Umacaracterísticaimpressionanteclamaporatençãoespecial.OEstadoproporcionaocanalisoladomaisimportanteparaosfluxosdevalorentraremnasinfraestruturassociais.Nissoestáaimportânciadosimpostoscomoumaformadereceitaalocadaàmanutençãoeàmelhoriadasinfraestruturassociais.E,namedidaemqueadívidadoEstadoéoveículoparaoinvestimentoeminfraestruturassociais,ospoderesde coordenação e monitoramento dos mercados de capital e da taxa de juros são aplicados. OenvolvimentodoEstadosurgeemparteporquetêmdeserencontradososmeioscoletivosparafazeroque os capitalistas individuais não podem razoavelmente fazer e, em parte, porque a luta de classesrequer as mediações do aparato do Estado para qualquer tipo de investimento ser feito em áreassocialmente sensíveis. O envolvimento assume uma nova forma quando é reconhecido que essesinvestimentospodemsertantoprodutivos(nosentidodemelhoraremascondiçõessociaisparaacriaçãode mais-valor) quanto estabilizadores (no sentido do manejo da demanda efetiva durante um longoperíodo).Dessemodo,apolíticafiscaldoEstadotorna-seumaferramentavitalnoarsenaldaburguesiaparagerenciaroprocessodeacumulação(ousodosgastosmilitaresdessamaneiraéumbomexemplo).Oslimitesparaessaspráticasdegerenciamentosãoaessaalturaóbvios(vertambémcapítulo10).

A importânciadoenvolvimentodoEstadodopontodevistadonossopresente tópicomereceumabreveelucidação.NamedidaemqueoEstadoassumeopapeldegerentegeraldaproduçãoereproduçãodas infraestruturas sociais (incluindo ele próprio), a forma de organização hierárquica do Estado éposicionadaparadiscriminarentreosaspectos local, regional,nacionale supranacionaldos fluxosdevalor. A organização territorial do Estado – e os limites do Estado-nação são de longe os maisimportantes – torna-se então a configuração geográfica dentro da qual a dinâmica do processo doinvestimentoéelaborada.Éclaroqueessaorganizaçãoterritorialnãoéimutáveledetemposemtemposreorganizaçõesradicaissãorequeridasemproldamelhoriadaeficiênciadaadministraçãoetc.[46].Nãoobstante, em qualquermomento particular a organização territorial dos poderes do Estado constitui oambiente geográfico fixo dentro do qual os processos de investimento operam.Os Estados são entãoobrigados a competir um com o outro pela provisão de condições às infraestruturas sociais, que sãoatrativasparaocapital.Tambémsãoobrigadosacompetirporcapitalfinanceiroparaconsolidarasuadívida.Emconsequência disso, oEstadoperde o seu poder para dominar politicamente o capital e épressionadoparaassumirumaposturasubserviente,competitiva.E,namedidaemqueadesvalorizaçãoea destruição dos complexos recursos humanos se tornam necessárias no decorrer de uma crise, osEstadossãocolocadosunscontraosoutrosemumavigorosacompetiçãoemrelaçãoaqualdelesdevearcarcomocustodessadesvalorizaçãoedessadestruiçãosocial.Oprincípiogeraldadesvalorizaçãoespecífica do lugar é então convertido, pelo menos nessa esfera particular, na questão dasdesvalorizaçõesedadestruiçãosocialespecíficasdoEstado.Amaneiracomoissofuncionanosníveis

Page 370: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

local,regionalenacionalseráretomadanocapítulo13.

VII.ASMOBILIDADESDOCAPITALEDOTRABALHOCONSIDERADASCOMOUMTODOAgeografiahistóricadomododeproduçãocapitalistaéconstruída,comovimosatéagora,apartirdosmovimentosdeinterseçãodosdiferentestiposdecapitaleforçadetrabalho.Devemosagoraverseháalgumaunidadebásicaparamovimentosaparentementediversoseincoerentese,casohaja,descobrirascontradiçõesalicontidas.

Abasenecessáriaparaexploraressasquestõeséapresentadanoconceitodeunidadeecontradiçãodentrodacirculaçãodocapital(vercapítulo3).Ocapitalemcadaumdosestadoscontidosnoprocesso

tem uma capacidade especial e singularmente definida para omovimento geográfico. Uma vez que ocapitalédefinidocomovaloremmovimento,eledevenecessariamentepassardeumestadoparaooutro,oquesignificaqueduasoumaisformasdecapital(edeforçadetrabalho)devemobrigatoriamenteestarno mesmo lugar ao mesmo tempo no momento da transição. Por isso, cada transição constitui umainterseçãomutuamente restritivadediferentes capacidadesparaomovimento espacial.Oprocessodecirculaçãocomoumtodocompreendeváriasdessassituaçõesmutuamenterestritivas,cadaumacomseusprópriosproblemaspeculiares.Comoregrageral,émuitomaisfácil,porexemplo,irdeD-MdoquedeM-D,nãosomenteporqueodinheiroéopodersocialencarnado,mastambémporqueémaisfácildeelesemovergeograficamente.Podemosentãoconcluirqueasrestriçõesmútuasnecessariamentelimitamamobilidadegeográficatotaltantodocapitalquantodaforçadetrabalho.

Asrestrições ficamaindamais rígidasquando lembramosqueaacumulação isentadecrise requerque a circulação do capital seja realizada dentro de umdeterminado período de tempo – o tempo derotaçãosocialmentenecessárioconsideradonocapítulo4.Ocapitalquenãocirculanesseperíododetempo é desvalorizado. Mas o movimento espacial requer que o capital seja mantido em um estadoparticular–comodinheirooumercadorias,porexemplo–enquantoelesemove.Issoaumentaotempoderotação.AimportânciadaexpressãodeMarx“aaniquilaçãodoespaçopelotempo”agoraressurgecomforçaredobrada.Asexigênciastemporaisdacirculaçãodocapitallimitamotempodisponívelparao movimento espacial em cada estado. A unidade de produção e realização dos valores mantém omovimentogeográficodocapitaldentrodelimitesestritamentecircunscritos.

Essaconclusãoémodificadaporduasconsiderações importantes.Emprimeiro lugar,elaseaplicaem sentido estrito a um capital individual que passa por seu processo padrão de autoexpansão. Acirculaçãoagregadanasociedadeécompostadeinúmerosprocessosindividuaisdessetipo,cadaumseiniciandoeterminandoemdiferentespontosnotempo.Porisso,surgeaoportunidadedeumamiríadedesubstituiçõesespaciaisentrediferentesprocessostemporais.Oscapitalistasindividuaispodemreceberdinheiro como pagamento parcial por processos de produção ainda não completados, por umamercadoriaaindanãovendida.Oscapitalistasemumaregiãoindustrialpodememprestarodinheiroqueganham na primeira parte do ano para os fazendeiros de outra região que vão lhes pagar depois da

Page 371: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

colheita.Oqueaparececomorestriçõesmuitorígidasaomovimentoespacialnonívelindividualémuitoreduzidoquandooprocessodecirculaçãoévistocomoum todo.Osistemadecrédito, emparticular,facilita as transferênciasde longadistância e as substituições entreprocessos temporais extremamentedivergentes. Mas a importância das substituições também ajuda a explicar a aglomeração. Aprobabilidadedeencontrarotipocertodeforçadetrabalho,matérias-primas,componentesdereposiçãoetc.melhora àmedida que os capitalistas individuais e os trabalhadores se juntam – as substituiçõesminimizamapossibilidadedetranstornosnosprocessosdecirculaçãodoscapitalistasindividuais.Aquihá uma tensão entre a dispersão possibilitada pelo sistema de crédito e a aglomeração que parecedesejadaemoutrospontosdatransição.

Entretanto, a disciplina temporal do movimento espacial é ainda mais profundamente perturbadaquando consideramos a circulação do capital (ou simplesmente a dos valores) entre as infraestruturasfísicasesociais.Essasformasdecirculaçãotêmumefeitoduplo.Emprimeirolugar,namedidaemquemuitos aspectos da infraestrutura física e social estão fixados no espaço, o problema da mobilidadegeográficaéconvertidoemumproblemadetransformaçãodoambientesocialefísicoemquecirculamoutrasformasdecapital.Dadootempoderotaçãoprolongadoeacomplexidadedatarefa,esseprocessode transformação é necessariamente lento. Em segundo lugar, a duração dos tempos de rotaçãoenvolvidospermitesubstituiçõesduranteperíodosdetempomuitomaislongos.Considereaquestãodopontodevistadocapitalmonetário.Existemvárioscaminhospotenciaisparaacirculação.Nocaminhopadrão, o capital é colocado emumprocessodeprodução, convertido emumamercadoria e vendidoparaomercadonadisciplinarígidadotempoderotaçãosocialmentenecessário.Masodinheirotambémpodefluirparaaformaçãodecapitalfixoefundodeconsumo,incluindoaformaçãodeinfraestruturasfísicas.Eletambémpodefluirparaaciênciaeatecnologia,paraumgerenciamentoaprimoradoouparaacriaçãoemanutençãodevárias infraestruturassociaisquemelhoramascondiçõesparaaproduçãodemais-valor.Adisciplina temporal nesses caminhos émuito relaxadaporqueos temposde rotação sãomuitomaislongos.Issoexplicacomoaprovisãodasinfraestruturasfísicaesocialpodesemovermuitoàfrente das outrasmobilidades caso seja necessário –muito tempo é disponível para outras formas decapitale forçade trabalhoaalcançarem.Entretanto,em longoprazo, todasessas formasdiferentesdecirculação têmdeestar relacionadasumasàsoutras.Relações ficcionaispodemser estabelecidaspormeiodosistemadecréditoedapadronizaçãodetodosostemposderotaçãocontraataxadejuros(vercapítulo9).Issoéoprópriodinheiroprocurandoimporumadisciplinacomumaosdiferentescaminhosqueelepodeseguir.Masacriaçãorealdevalor,emoposiçãoaosmovimentosdovalorfictício,dependedacontinuidadede todosos fluxosemrelaçãoàproduçãoreal.Osdiferentesprocessosdecirculaçãodevemporissofluirdiretamenteumparaooutro,damaneiraretratadanaFigura12.1.Cadacaminhotemexigênciastemporaisdiferentese,porinferência,explicitaoportunidadesradicalmentediferentesparaomovimento espacial. Mas a unidade básica da produção e da realização deve ser preservada, porimposiçãodecrisessenecessário.Podemosconcluirqueéessaunidadeque,naanálisefinal,sujeitaasmobilidadesgeográficasdivergentesdentrodeumsistemadefluxostãotemporalmentedesconexoaumadisciplinacomum.

Page 372: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Figura12.1–Oscaminhosdofluxodocapital

1.Complementaridade

A desagregação do processo de circulação em muitos sistemas aparentemente independentes criatensões dentro da unidade da produção e da realização. Mas isso também adapta admiravelmente ocapitalismoàtarefademoldaraorganizaçãoespacialefluirparaexigênciasagregadorasdelongoprazo.Diferentes tiposdecapitalpodemsemoverdemaneiraacomplementarumaooutronabuscadeumanovaordemespacial.Seocapitalnãopuderpenetrarnasbarreirasespaciaisdeumamaneira,podedeimediatopenetrardeoutra.Aquiomovimentodocapitalmonetáriopodeabrirocaminho,lápodemsercomerciantesproduzindomercadorias.Atéostrabalhadores,buscandoaliberdadeemalgumafronteira,podemdesempenharumpapel.A transformaçãodasconfiguraçõesespaciaisocorremedianteossaltoscontínuosdediferentestiposdecapitaleforçadetrabalhoagraciadoscompoderesdemobilidademuitodiferentes.Enissonãohánenhumperigocontantoqueacomplementaridadesejaatingidadentrodeumdeterminadoespaçodetempo.

Entretanto,namedidaemqueascondiçõesmudam,tiposdecapitalmuitodiferentestendemaassumirum papel preponderante. O movimento das mercadorias e do ouro, que já foi a última palavra dainternacionalização do capital, foi consistentemente suplantado durante o final do século XIX pelomovimentodocapitalmonetáriocomocrédito–umamudançaquetestemunhouasofisticaçãocrescentedosdispositivosdecréditoetambémaascensãodo“capitalfinanceiro”(dequalquertipo)comooanjodaguardadoimperialismoeconômico.AsintervençõesdocapitalfictícioedoEstadotambémtenderamcada vez mais a libertar o capital da produção das rígidas constrições que ele havia anteriormenteexperimentado–oinvestimentodiretotornou-semaisfactível,acompanhado,éclaro,pelaascensãodenovasformasorganizacionaiscomoacorporaçãomultinacionalparaasseguraracomplementaridadedodinheiro, das mercadorias, da produção e dos movimentos do trabalho. A importância relativa doscomerciantes, financistas, industriais e trabalhadores na transformação das configurações espaciais

Page 373: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

variounodecorrerdahistóriadocapitalismo.O investimento em infraestruturas físicas e sociais requer algumas considerações especiais.

Libertadas das restrições rígidas do tempo de rotação socialmente necessário, medidas de avanço elatência muito mais longas são possíveis aqui. Se essas possibilidades serão realizadas, e com queefeitos,dependedealgumascondições.Éprecisohavercapitalexcedenteeumaformadeorganização–emgeraloEstado,masàsvezesumgrupode financistaspoderosos–capazesdecentralizarocapitalexcedente, colocando-o na criação de alguns valores de uso e esperando vários anos antes de captaralguma recompensa. Isso também implica um reconhecimento consciente e a antecipação dasnecessidades futurasdocapitalismo. Inversamente, é tambémpossívelver esses investimentoscomoavanguarda dos fluxos de capital futuros e, portanto, como o principal instrumento da transformaçãogeográfica, que estrutura a força de trabalho.Entretanto, é umavanguarda peculiarmente exposta, umacondição mais necessária do que suficiente para as configurações geográficas futuras dos fluxos decapital. A produção, a força de trabalho e o comércio não seguem necessariamente os caminhospercorridos pelos investimentos de infraestrutura. Nesse caso, é claro, esses investimentos sãoefetivamentedesvalorizados.

Isso nos leva às profundezas de alguns insights e controvérsias históricas muito interessantes.Emboraoscapitalistascomerciaispossamnegociarmuitoondeecomoelesquerem–atéseenvolvendona troca se for o caso –, a produção capitalista émuitomais exigente com relação às requisições deinfraestruturas.A expansão geográfica envolve o estabelecimento anterior de direitos de propriedade,leis,administraçãoeinfraestruturasfísicasbásicascomootransporte.Omaisimportanteéqueocaráterdemercadoriadaforçadetrabalhotemdeserassegurado.Emtudoisso,aaçãodoEstadoéessencial.Eeladevenecessariamentesemoveràfrentedaprodução.MasaprodutividadedosgastosdessetipoporpartedoEstadonãopodesergarantida.Acriaçãodecondiçõesfísicasesociaisfavoráveispodeatrairoutrasformasdecapitalparaconfiguraçõescomplementaresdoinvestimentoquemaisquecompensamasdespesas iniciais. Ou o Estado pode tentar obrigar outros elementos do capital e do trabalho a seadequaremparagarantiraprodutividadedeseusprópriosinvestimentos.Masoriscodadesvalorizaçãosempreseagiganta.

A história política do colonialismo e do imperialismo proporciona uma ilustração interessante doproblema.AconquistamilitarestabeleceocontroledoEstado.Avaliadoresestabelecemapropriedadeprivada na terra (o trabalhador pode então ser excluído da terra pela renda), elos de transporte ecomunicaçõessãoconstruídos,sistemaslegais(queconduzemàtroca,éclaro)sãoestabelecidos(pelaforça e pela repressão, se necessário, mas também por meio da lei, da educação, da atividademissionária e assim por diante). Tudo isso custa vastas somas de dinheiro. Por isso, sob as suasjustificativasideológicasquevêmàtona,apolíticadoimperialismocapitalistaimplicauminvestimentoespeculativovastoedelongoprazoquepodeounãocompensar.Odebatesobreoquantooscapitalistasse beneficiaramdo imperialismo é realmente umdebate sobre se esse investimento compensouou foiefetivamente desvalorizado. A destruição imposta às populações pré-capitalistas e o alto índice deexploração atingido não garante que as iniciativas coloniais tenham sido proposições compensatórias.Nem o seu fracasso prova que elas foram acionadas por uma tentativa benevolente para trazeresclarecimentoedesenvolvimentoàsregiões“atrasadas”domundo.Elasforamsimplesmenteenvolvidasnadinâmicacapitalistadaacumulaçãoedadesvalorização.Osinvestimentosforam,emsuma,condiçõesnecessárias,porémnãosuficientesparaaperpetuaçãodaacumulação[47].

Adinâmica,noentanto,nãoéisentadepadrões.Oshorizontestemporaiseespaciaisdocapitalismo

Page 374: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

são,comojámostramos,crescentementereduzidosaumamanifestaçãodataxadejuros,estaemsiumreflexo das condições da acumulação. A superacumulação em geral diminui a taxa de juros e, dessemodo,estendeoshorizontestemporaiseespaciais.Oscapitalistaspodementãosepermitir–naverdadesão impelidos – a explorar as fronteiras geográficas ou visar à produção de valores de uso quecompensemcadavezmaisnofuturo.Assim,ocapitalfinalmenteencontraessasbarreirasemsuapróprianaturezaqueprecipitacrises–crisescomfrequênciacaracterizadaspor taxasde juroascendentesquerestringemmais uma vez os horizontes temporais e espaciais.Namedida em que todas as formas decapitalsãosensíveisàtaxadejuros,elastendemaoperarsobumadisciplinacomum.Issovailongeparaexplicar os ritmos pulsantes do desenvolvimento do capitalismo no espaço[48]. As recessões econtradições nesse processo são marcadas pela ruptura da unidade da produção e da realização e,contemporaneamente, por uma perturbação da complementaridade nos movimentos extremamentediferenciadosdocapital.Vamosconsideraragoraasbasesparaessasperturbações.

2.Contradiçõeseconflito

Asformasextremamentediferenciadasdacirculaçãoedamobilidadeespacialpodempermitirqueocapitalismomoldesuageografiahistóricadeacordocomosditamesdaacumulação.Maselas tambémaumentamincomensuravelmenteaspossibilidadesdeformaçãodecrise.Lembre-sedequeaseparaçãodasvendasedasaquisiçõesnotempoenoespaçoconstituiabaseparaoataquedeMarxàLeideSay(vercapítulo3).Nósagoraencontramoscircunstânciasemqueasseparaçõesnoespaçoenotemposãonecessariamentemuitoatenuadas.Namedidaemqueacomplementaridadeentreosdiferentesprocessosdecirculaçãoémaisdifícildeassegurar,aspossibilidadesparaaformaçãodecriseproliferam.Aquibuscamos uma base puramente técnica que facilite o entendimento dos aspectos espaciais para aformaçãodecrise.

Comovimosnocapítulo3,adesvalorizaçãoéumafacetanormaldacirculação.Asperdasquenãopodemsertotalmenterecuperadasmedianteumaretomadadacirculaçãodocapitalsãooquerealmentenos preocupa.Certamente, inúmeras desvalorizações “acidentais” e individuais ocorrem simplesmenteporqueasformaseasquantidadesexigidasdecapitaleforçadetrabalhonãoestãoexatamentenolugarcerto no momento certo. Cálculo equivocado, falta de visão, informações precárias, sistemas detransporte inconfiáveis etc. estão caracteristicamente por trás dessas desvalorizações. Elas não sãonecessariamentepartedealgumprocessosocialmaiordentrodalógicadocapitalismo,massãopartedocusto normal de se realizar negócios, de explorar novas configurações e definir novas oportunidadesgeográficas. Entretanto, o esforço para minimizar esses riscos não é irrelevante em seus efeitos. Aaglomeração,asmelhoriasno transporteeoutros tiposdeorganizaçãogeográficapodemreduzirmuitoessescustosnormais.

Astensõesassociadascomperspectivasdedesvalorizaçõesatémenoresestimulamfortescorrentescompetitivasquepodemsepropagarocasionalmenteemconflitosdefacções.Antagonismospodemsergeradosquandoosdiferentestiposdecapitalsãodedonosdiferentes.Oscapitalistasmonetáriospodemestaremdesacordocomoscomerciantes,eambospodementraremconflitocomosprodutores,enquantoaqueles que apostam na preservação dos valores investidos em infraestruturas físicas e sociais sãoameaçados pelo movimento fluido do dinheiro de crédito, da reestruturação dos setores e outros. Amobilidadedocapitaldeumtipopodeconstituirumaameaçaaovalordocapitaldeoutrotipo.Equandoexplodem crises gerais de desvalorização, a luta de cada facção para impingir à outra os custos dadesvalorização com frequência significa a invocação de ameaças ao movimento, se não movimentos

Page 375: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

reais.A importância social da análise deMarx das diferenciações na unidade geral da circulação docapitaltorna-seagoramaisaparente.Elapreparaoterrenoparaadissecaçãodascontradiçõesetambémdascomplementaridadesentreosdiferentestiposdemobilidade.Vamosconsiderarnocapítulo13comotudoissopodesecristalizaremrivalidadesinterterritoriais.

Aameaçaeacontra-ameaçadomovimentotambémsetornaumaimportantearmanaguerraentreocapital e o trabalho. Dificilmente precisamos elaborar sobre a variedade de táticas e métodosempregados – eles já foram parcialmente revelados.Mas há algo interessante a ser notado sobre osresultados.Seostrabalhadoresseengajarememumamigraçãoindividualilimitadadentrodosconfinsdosistemadetrabalhoassalariado,omelhorquepodemesperarconseguiréaequalizaçãonospadrõesdevida e nas condições de trabalho de um lugar para outro, em um nível médio consistente com aperpetuaçãodaacumulação.Seelespermaneceremnolugarelutaremcoletivamentepodemfazermelhorque isso dentro desse território.Nem sempre é fácil para o capital semover em resposta. Embora amobilidadedocréditoeareestruturaçãodossetoressejamarmasformidáveis,elasnemsemprepodemser empregadas semdestruir osvaloresqueoutras facçõesdocapital incorporaramem infraestruturasfísicasesociais.

Contudo, a mobilidade irrestrita por parte do capital não produz os mesmos resultados que amobilidadeirrestritadostrabalhadores.Oscapitalistassãosensíveisaovalordaforçadetrabalhoeàprodutividadedemais-valor(representadopelastaxasdelucro).Aequalizaçãodastaxasdelucronãoproduznecessariamenteumaequalizaçãonospadrõesdevidamateriaisenascondiçõesdetrabalhoparaos trabalhadores. Na verdade, os capitalistas se preparam para ganhar, como regra geral, caso osdiferenciais novalor da força de trabalho e nas condições de trabalho sejammantidos.Amobilidadeirrestrita do capital é, portanto,mais apropriadapara a acumulaçãodoque amobilidade irrestrita dotrabalho–quepodeserresponsávelpelatendêncianoséculoXXpararestringiramobilidadedaforçadetrabalhoemrelaçãoàqueladocapital.

Aideiadeunidadeecontradiçãodentrodaproduçãoerealizaçãodosvaloreséfundamentalparaadissecação de Marx das crises na circulação do capital. Vimos, neste capítulo, como essa ideia setransfere para a análise das interseções entre formas extremamente diferenciadas de mobilidadegeográfica.Dentrodessaestruturapodemosentendermelhorcomodiferentesfacçõesdocapitalpodemtãofrequentementebarrarocaminhoumasdasoutrasquantocomplementarumasàsoutrasnabuscadeumaordemespacialmaislucrativa,comoocapitaleotrabalhopodemusaroespaçocomoumaarmanaluta de classes. Tudo isso deixa sua marca no crescimento das forças produtivas e na evolução dasrelações sociais dentrodageografia concreta dahistória do capitalismo.Por isso, é damaterialidadedessageografiaquedevemsurgirasforçasquecontribuemparaascrises.

[1] As obrasmarxistas sobre o problema da organização espacial têm sido extremamente esporádicas e assistemáticas. Há uma vasta evariada literatura sobre imperialismo e neocolonialismo repleta de conceitos espaciais. Mas os termos são mais descritivos do que bemfundamentadosteoricamente.Expressõescomo“centroeperiferia”e“primeiroeterceiromundo”sedeslocamfacilmenteparadentroeparaforadaliteraturasemmuitaponderação.Asforçasqueproduzememantêmasconfiguraçõesespaciaiscomfrequênciaficamperdidasnascomplexidadesdedescriçõeshistórico-geográficasespecíficas.Aliteraturaqueajudaaconstruçãodateoriaémuitomaislimitada.AcheiasformulaçõesdeChristianPalloix(L’internationalisationducapital,Paris,Maspero,1975e“TheInternationalizationofCapitalandCircuitofSocial Capital”, em H. Radice [org.], International Firms and Modern Imperialism, Harmondsworth, Penguin Books, 1975) e PhilippeAydalot(Dynamiquespatialeetdéveloppementinégal,Paris,Economica,1976)muitosugestivas.HenriLefebvre(Ledroitàlaville,Paris,Anthropos,1972;Laproductiondel’espace,cit.)chamouaatençãorepetidamenteparaaimportânciadaproduçãodeespaço,dapolíticado

Page 376: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

espaçoedopapeldo espaçona reprodução social (principalmenteno contextourbano).A rica literatura sobre aurbanizaçãoque emergiudesdeManuelCastells (TheUrbanQuestion, cit.), por exemplo, éútil, porémdemodoalgumdefinitiva.Estudos sobreodesenvolvimentoregionaltambémaindaprecisamdefinirtodooproblemadeumamaneirarigorosa–verAlainLipietz,Lecapitaletsonespace,cit.;aReviewofRadicalPoliticalEconomics,v.10,n.3,1978;RenaudDulong,Lesrégions,l’Étatetlasociétélocale(Paris,PUF,1978);MiltonSantos,The Shared Space: the TwoCircuits of theUrbanEconomy inUnderdevelopedCountries (Londres/NovaYork,Methuen, 1979 [ed.bras.:Oespaçodividido, SãoPaulo,Edusp, 2008]); JohnCarney,RayHudson e JimLewis,Regions inCrisis (NovaYork, St.Martin’sPress, 1980); e os interessantes trabalhosdeDoorenMassey, “Regionalism:SomeCurrent Issues”,CapitalandClass, 1978, e “InWhatSenseaRegionalProblem?”,RegionalStudies,1979.OestudodeJean-PauldeGaudemar,Mobilitédutravailetaccumulationducapital(Paris,Maspero, 1976), é uma tentativapioneirade escrever teoricamente sobre aquestão, enquantoo estudodeAnwarShaikh, “ForeignTradeandtheLawofValue”,ScienceandSociety,1979-1980,v.43,p.281-302;v.44,p.27-57,sobreocomércioexteriorealeidovaloréincisivo.OsdoispróximoscapítulossebeneficiaramincomensuravelmentedasdiscussõescomBeatrizNofaleNeilSmith,quecontribuíramcommuitasideiasoriginaisparaestesúltimoscapítulos.

[2]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.253.

[3] O tema da troca desigual é explorado por Arghiri Emmanuel (Unequal Exchange: a Study of the Imperialism of Trade, cit.) e oproblemageraldovalornointercâmbiointernacionalporAnwarShaikh(“ForeignTradeandtheLawofValue”,cit.).

[4]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.105-6.

[5]Ofracassoemfazeradistinçãoentreatrocademercadoriasededinheiroporumlado,eacirculaçãodocapitalporoutro,desfiguraotrabalhodocontráriointeressantedeImmanuelWallerstein,“TheProcessofAccumulationandthe‘Profit-squeeze’Hypothesis”,ScienceandSociety,1974.

[6]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.131.

[7]Idem,Grundrisse,cit.,p.332.

[8]YvesDelaHayereúnemuitosdostextosbásicosdosescritosdeMarxeEngelssobreessetópicoemMarxandEngelsontheMeansofCommunication(NovaYork/Bagnolet,InternationalGeneral/InternationalMassMediaResearchCenter,1979).

[9]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.440;Capital,LivroII,cit.,p.149-51.

[10]Ibidem,p.52;TheoriesofSurplusValue,cit.,parte1,p.412.

[11]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.142.

[12]ComoaquelarepresentadanateoriadalocalizaçãodeAugustLösch(TheEconomicsofLocation,NovaYork,ScienceEditions,1967)eWalterChristaller(CentralPlacesinSouthernGermany,EnglewoodCliffs,Prentice-Hall,1966).

[13]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.444;Capital,LivroII,cit.,p.249.

[14]Idem,Grundrisse,cit.,p.445,432.

[15]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.457.

[16]Ibidem,LivroII,p.249.

[17]Idem,Grundrisse,cit.,cap.3.

[18]Idem,Capital,LivroII,cit.,p.251.

[19]Ibidem,LivroI,p.244.

[20]Jean-PauldeGaudemar(Mobilitédutravailetaccumulationducapital,cit.)apresentaumaexcelentediscussãoeproporcionabonsresumosdospontosdevistadeLenineLuxemburgosobreamigraçãonocapitalismo.

[21]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.196;ResultsoftheImmediateProcessofProduction,cit.,p.1.013.

[22]Ibidem,p.1.014,1.034.

[23]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.744.

[24]Ibidem,p.718.

[25]Ibidem,LivroIII,p.134.

[26]JacquesDonzelot(ThePolicingoftheFamilies:WelfareversustheState,cit.)esuascríticasproporcionaminsightsinteressantes.

[27]OsmovimentosdereformaurbanadoséculoXIXnosdoisladosdoAtlânticoproporcionamexemplosesplêndidosdocompromissocomobem-estardasclassestrabalhadorasmedianteareformamoralematerial.

[28]“Todocentro industrialecomercialnaInglaterrapossuiagoraumaclasse trabalhadoradivididaemdoiscamposhostis: osproletáriosingleseseosproletáriosirlandeses.Otrabalhadoringlêscomumodeiaotrabalhadorirlandêscomoumcompetidorquebaixaoseupadrãodevida[…].Esseantagonismoémantidovivoeintensificado[…]portodososmeiosàdisposiçãodasclassesdominantes.[Esse]éosegredodaimpotênciadaclassetrabalhadorainglesa,apesardasuaorganização.Éosegredoquepermitequeaclassecapitalistamantenhaoseu

Page 377: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

poder”,KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence,cit.,p.236-7.

[29]KarlMarx,Grundrisse,cit.,cap.2.VerYvesDelaHaye,MarxandEngelsontheMeansofCommunication,cit.,queenfatizaosaspectosdascomunicaçõesemsuaintroduçãoaosescritosdeMarxsobreotópico.

[30]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.334.

[31]Idem,Capital,LivroIII,cit.,cap.35.

[32]AanálisedeErnestMandel,TheSecondSlump,cit.,éumestudoinstrutivosobrecomoessesprocessosseunememumaconjunturaparticular.

[33]AmelhorpesquisaaindaéarealizadaporWalterIsard,LocationandSpaceEconomy(NovaYork,TechnologyPressofMassachusettsInstituteofTechnology/Wiley,1956),masotrabalhomaisintrigantesobretodaessaquestãoaindaéodeAugustLösch,TheEconomicsofLocation,cit.

[34] A literatura burguesa sobre a teoria da localização está repleta de formas de discussões complicadas sobre os diferentes tipos decompetiçãoespacial.Parapropósitosdeargumento,vouadotaraquiumaversãoextremamentesimplificada.Oproblemanãoédescreverosprocessosdacompetição,maschegaràsrelaçõessociaisqueestãoportrásdosseusresultados.

[35]DevemosentãoconcluirqueoequilíbrioespacialestabelecidonaEconomicsofLocationdeLösch,comsuasbelasredeshexagonaisdeáreasdemercadoesuashierarquiasdelocaiscentrais,éumcenáriodeacumulaçãozero,totalmenteinconsistentecomomododeproduçãocapitalista.DificilmentesurpreendequeessescenáriosnãosejamobservadoseopróprioAugustLösch tenha tidoamaiordificuldadeparainjetardinâmicaemseuargumento.Amudançatecnológicaétratadacomoumfenômenoinexplicado,produzidoexternamente,quandooquerealmente temos de mostrar é como e por que a mudança tecnológica é induzida dentro de um sistema de localização por pressõescompetitivas.Umainvestigaçãomaisdepertodessepontosugerequeo“equilíbrioespacial”,nosentidoburguês,éumaimpossibilidadenasrelaçõessociaisdocapitalismoporrazõesestruturaisprofundas.

[36]Cf.KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.446-7.

[37]Ibidem,p.402,455.

[38]Issosecomparaàteseburguesa,primeiroapresentadaporKoopmanseBeckman,dequenãoháumconjuntodepreçosquegarantaadesignaçãomaisadequadadasatividadesàs localizaçõesemcondiçõesdemaximizaçãodolucrodescentralizadoquandoas instalaçõesqueestãosendoassentadassãodealgummodoindivisíveiseinterligadas.Nessecaso,ofracassodosistemadepreçostornaqualquerpadrãodelocalizaçãoinstável.

[39]EssetemafoiexploradonasobrasrecentesdeDorrenMassey,“InWhatSenseaRegionalProblem?”,cit.,eRichardWalkereMichaelStorper,“CapitalandIndustrialLocation”,ProgressinHumanGeography,1981.

[40]ChristianTopalov(Lespromoteursimmobiliers, cit.) eFrançoisLamarche (“PropertyDevelopmentand theEconomicFoundationsoftheUrbanQuestion”,cit.)apresentamanálisesdessesistemaparaaproduçãodeambientesconstruídos.

[41]VerMichaelDear eAllenScott,UrbanizationandUrbanPlanning inCapitalist Society (Londres/NovaYork,Methuen, 1981), eAllenScott,TheUrbanLandNexusandtheState(Londres,Pion,1980).

[42]Estimativasdemonstramqueocapitalismoreproduztodaasuariquezaacadaseteanos.

[43]Paraumaamostradeopinião,verLoiusAlthusser eÉtienneBalibar,Reading“Capital”, cit.,G.A.Cohen,KarlMarx’sTheory ofHistory:aDefence,cit.,NicosPoulantzas,ClassesinContemporaryCapitalism,cit.,eState,Power,Socialism(Londres,NLB,1978[ed.bras.:OEstado,opoder,osocialismo,SãoPaulo,Graal,1990]),eEdwardThompson,ThePovertyofTheoryandOtherEssays,cit.

[44]JamesO’Connor,TheFiscalCrisisoftheState(NovaYork,St.Martin’sPress,1973),apresentaumaanáliseestimulante.

[45]Otraumada“crisefiscal”dacidadedeNovaYorknadécadade1970éumexcelenteexemplodisso.

[46]Areorganizaçãodosgovernos locaise regionais,oesforçoparacriarmercadoscomunsetc. sãoexemplosdesse tipodeprocessoemação.

[47]O debate sobre se as ferrovias lideraram ou atrasaram o desenvolvimento do séculoXIX nos EstadosUnidos e naGrã-Bretanha étambémmuitoinstrutivonesseaspecto.

[48]O estudodeBrinleyThomas,MigrationandEconomicGrowth (Londres,CambridgeUniversityPress, 1973), sobre a economiadoAtlânticonoséculoXIXdescrevebemofenômeno,assimcomooestudodeRichardWalker,TheSuburbanSolution:UrbanReformandUrbanGeographyintheCapitalistDevelopmentoftheUnitedStates,tesededoutorado,Baltimore,TheJohnsHopkinsUniversity,1977,sobreasuburbanização.

Page 378: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

13.Crisenaeconomiaespacialdocapitalismo:adialéticadoimperialismo

Oúltimocapítulodoprimeirolivrod’Ocapitaltratade“Amodernateoriadacolonização”.Àprimeiravista, sua colocação é um tanto estranha.Durante amaior parte do livro,Marx exclui explicitamentequestõesdocomérciointernacionalecolonialporqueservemapenas“paraconfundirsemcontribuircomqualquer elementonovoparaoproblema [da acumulação]oupara sua solução”.Ele emgeral teorizasobreocapitalismocomoumsistemaeconômico“fechado”[1].Então,porqueabordaressasquestõesnofinaldeumaobraquepareciaatingirsuaculminaçãonaturalnocapítuloanterior,emqueMarxanuncia,com um grande floreado retórico, a morte da propriedade privada capitalista e a inevitável“expropriaçãodealgunsusurpadorespelamassadaspessoas”?

O propósito de Marx no capítulo é expor as contradições no relato burguês da “acumulaçãoprimitiva”edessemodoreafirmaracoerênciadasuaprópriaanálise.Segundoosrelatosburgueses,ocapitaltevesuasorigenshistoricamentenoexercícioproveitosodacapacidadedopróprioprodutorparaotrabalho,enquantoaforçadetrabalhoseoriginoucomoumcontratosocial,livrementeacordado,entreaquelesqueacumulavamriquezamedianteadiligênciaea frugalidadeeaquelesqueoptavampornãofazê-lo.“Essabela fantasia”,comoMarxachama,“se fazempedaços”nascolônias.Láos ideólogosburgueses sãoobrigadosadescobrir “averdadeemrelaçãoàscondiçõesdaproduçãonametrópole”.Enquanto o trabalhador “pode acumular para si mesmo – o que ele pode fazer na medida em quepermanececomoproprietáriodeseusmeiosdeprodução–,aacumulaçãocapitalistaeomodocapitalistadeproduçãosãoimpossíveis”.Ocapitalnãoéumprodutofísico,masumarelaçãosocialquesebaseiano “aniquilamento da propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a expropriação dotrabalhador”[2].

Ocapítuloéumaconclusãoperfeitaparaotemaabordadoanteriormente:aquelaacumulaçãooriginaleraapenas“idílica”efoi“gravadanosanaisdahumanidadecomtraçosdesangueefogo”[3].Ofatodeaburguesiachegaraopoderepreservaroseupodermedianteaapropriaçãodotrabalhodeoutrostambémlegitima convenientemente a luta da massa das pessoas para virar as mesas e “expropriar osexpropriadores”.MasacolocaçãodocapítulosugerequeMarxtinhaalgomaisamploemmente.

UmindíciodaintençãodeMarxtalvezestejaemumcuriosoparaleloentresuaapresentaçãoeuma

Page 379: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

problemáticaidentificadanosPrincípiosdaFilosofiadoDireitodeHegel[4].Hegelexaminaaexpansãointernadapopulaçãoeda indústriadentroda sociedadecivil e, comoMarx, identificauma“dialéticainterna”queproduzumaacumulaçãocrescenteda riquezaemumpoloeumaacumulaçãocrescentedamiséria no outro. A sociedade burguesa parece incapaz de deter essa polarização crescente e suaconcomitantecriaçãodeumamultidãomiserávelmediantequalquertransformaçãointernadesimesma.Porissoelaéobrigadaabuscaralívioexterno.“Essadialéticainternadasociedadecivilentãoaconduz[…]aempurrarseuspróprioslimitesebuscarmercados,eassimseusmeiosdesubsistêncianecessários,emoutras terrasque,ou sãodeficientesnosprodutosqueela superproduzia,ouemgeral atrasadasnaindústria.”Maisparticularmente,umasociedadecivil“madura”élevadaaencontrarcolôniasparasuprirsuapopulaçãocomnovasoportunidadeseparasuprir“asimesmacomumanovademandaecampoparaaindústria”.Hegelpropõe,emresumo,soluçõesimperialistasecoloniaisparaascontradiçõesinternasdeumasociedadecivilfundamentadanaacumulaçãodocapital.

De uma maneira um tanto não característica, Hegel deixa em aberto a relação exata entre osprocessos de transformação interna e externa e falha em indicar se a sociedade civil pode ou nãoresolverpermanentementeseusproblemasinternosmedianteaexpansãoespacial[5].Intencionalounão,édessaquestãoabertaquevaitrataressecapítulodeMarxsobreacolonização.A“transformaçãoexterna”sópodesuprirnovosmercadosecamposparaaindústriaàcustaderecriarasrelaçõescapitalistasdapropriedadeprivadaeumacapacidadepara seapropriardo trabalhoexcedentedeoutraspessoas.Ascondições que inicialmente deram origem aos problemas são simplesmente de novo replicadas.Marxchegaàmesmaconclusãocomrespeitoàexpansãodocomérciointernacional.Seuaumentosimplesmente“transfereascontradiçõesparaumaesferamaisamplae lhesproporcionamaior latitude”[6].Emlongoprazo não há solução externa para as contradições internas do capitalismo. A única solução é uma“transformação interna”, que obrigatoriamente prive a sociedade da acumulação pela acumulação eprocuremobilizarascapacidadesnaturaisehumanasnabuscadaliberdadequesóseiniciaquando“oreinodanecessidade”édeixadoparatrás[7].

DadaainclinaçãodeMarxparalutarcomofantasmadeHegel,édifícilacreditarqueelenãotivessenadadissoemmenteaoconcluirassimsuamaisimportanteobrapublicada[8].Masocapítulonãoresolveinteiramenteaquestão.Elesimplesmenteafirmaqueas“transformaçõesinternas”envolvemprimeiroasubjugaçãoformal,depoisasubjugaçãorealdotrabalhoaocapitalparaondequerqueocapitalsemova.O limite externo a esse processo está no ponto em que toda pessoa em todo canto do mundo ficaespremidadentrodaórbitadocapital.Atéqueesselimitesejaalcançado,asresoluções“externas”paraas contradições internasdocapitalismoparecem inteiramente factíveis.Marxchegapróximoaadmitirissoemsuasbrevesobservaçõessobreopapeldocomérciointernacionalnaneutralizaçãodasupostaleidoslucrosdecrescentes.Ocomérciointernacional(eaexportaçãodecapital)podecertamenteaumentara taxadelucrodeváriasmaneiras.Mas,namedidaemqueissosignifica“umaexpansãodaescaladeprodução” em casa, o que por sua vez “apressa o processo da acumulação”, só termina exacerbandoessesprocessosquedãoorigememprimeirolugaràquedanataxadejuros.Oquepareceumasoluçãosetransformaemseuopostonolongoprazo.Entretanto,Marxtambéméobrigadoaconcluirquealeidoslucrosdecrescente“atuaapenascomouma tendência”,eque“sósobdeterminadascircunstânciasesódepois de longos períodos seus efeitos se tornam extremamente pronunciados”[9]. Então, quais são as“circunstâncias”equãolongoéesseprazo?OcapítulofinaldeMarx,evidentementedestinadoaserumasutilrespostaaHegel,terminacolocandoaquestãooutravez.

Opapeldo imperialismoedocolonialismo,daexpansãogeográficaedadominação territorial,na

Page 380: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

estabilizaçãogeraldocapitalismonãoestáresolvidonateoriamarxiana.Naverdade,elecontinuasendoobjeto de intensa controvérsia e com frequência de debates amargos[10]. Uma resposta abrangente eirrefutávelaoproblemaqueHegelcolocoutãoclaramentemuitosanosatrásaindatemdeserconstruída.Será que existe um “conserto espacial” para os problemas do capital? Se não existe, que papeldesempenhaageografianosprocessosdeformaçãoeresoluçãodacrise?

I.DESENVOLVIMENTOGEOGRÁFICODESIGUALOcapitalismo não se desenvolve sobre uma superfície plana dotada dematérias-primas abundantes eofertadetrabalhohomogêneacomigualfacilidadedetransporteemtodasasdireções.Eleestáinserido,cresceesedifundeemumambientegeográficovariadoqueabarcagrandediversidadenaliberalidadedanatureza e na produtividade do trabalho, que “não é umadádiva da natureza,mas o resultado de umahistória que compreende milhares de séculos”[11]. As forças liberadas sob o ataque do capitalismocorroem,dissolvemetransformamgrandepartedaeconomiaedaculturapré-capitalistas.Astrocasdemercadoria e de dinheiro, a formação do trabalho assalariado por meio da acumulação primitiva,migraçõesmaciçasdemãodeobra,aascensãodeumaformadistintamentecapitalistadoprocessodetrabalhoe,finalmente,omovimentointegradodacirculaçãodocapitalcomoumtodo,conduzem“alémtanto das fronteiras e dos preconceitos nacionais quanto da divinização da natureza, bem como dasatisfação tradicionaldasnecessidadescorrentes, complacentementecircunscrita acertos limites, edareprodução do modo de vida anterior”. O capitalismo “é destrutivo disso tudo e revolucionaconstantemente, derruba todas as barreiras que impedem o desenvolvimento das forças produtivas, aampliaçãodasnecessidades,adiversidadedaproduçãoeaexploraçãoea trocadasforçasnaturaiseespirituais”[12].

Mas o capitalismo também “encontra barreiras dentro da sua própria natureza”, que o obriga aproduzir novas formas de diferenciação geográfica. As diferentes formas de mobilidade geográficadescritasnocapítulo12 interagemnocontextodaacumulaçãoe assimconstroem, fragmentamecriamconfigurações espaciais na distribuição das forças produtivas e geram diferenciações similares nasrelações sociais, nos arranjos institucionais e assim por diante.Assim, o capitalismo com frequênciaapoiaacriaçãodenovasdistinçõesemvelhosmodos.Ospreconceitos,asculturaseasinstituiçõespré-capitalistassósãorevolucionadosnosentidodelhesseremdadasnovasfunçõesesignificados,emvezde destruí-los. Isso é tão verdadeiro em relação a preconceitos como racismo, sexismo e tribalismo,quanto o é em relação a instituições como a igreja e a lei. As diferenciações geográficas então comfrequência parecem ser o que elas realmente não são:meros residuais históricos em vez de aspectosativamentereconstituídosdentrodomododeproduçãocapitalista.

Portanto, é importante reconhecer que a coerência territorial e regional, pelomenos parcialmentediscerníveldentrodocapitalismo,éativamenteproduzidaemvezdepassivamenterecebidacomoumaconcessão à “natureza” ou à “história”. A coerência, como ela é, surge da conversão das restriçõestemporais para espaciais à acumulação. O mais-valor deve ser produzido e realizado dentro de umdeterminadoperíododetempo.Seénecessáriotempoparasuperaroespaço,omais-valordevetambémserproduzidoerealizadodentrodeumdeterminadodomíniogeográfico.

Sigaessaideiaporummomentoeabaseparaodesenvolvimentogeográficodesigualnocapitalismotorna-semaisprontamenteaparente.Paraomais-valorserproduzidoerealizadodentrodeumaregião

Page 381: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

“fechada”, a tecnologia da produção, as estruturas de distribuição, osmodos e formas de consumo, ovalor, as quantidades e qualidades da força de trabalho, assim como todas as infraestruturas físicas esociaisnecessárias,devemtodosserconsistentesumemrelaçãoaooutrodentrodessaregião.Paraumabase estável para a acumulação ser mantida, cada mudança no processo de trabalho teria de sercorrespondidapormudançasnadistribuição,noconsumoetc.[13]Cadaregiãotenderiaadesenvolverumaleidevalorparasimesma,associadaapadrõesdevidamateriaisparticulares,formasdeprocessodetrabalho,arranjosinstitucionaiseinfraestruturaisetc.

Tal processo de desenvolvimento é totalmente inconsistente com o universalismo ao qual ocapitalismo sempre aspira.As fronteiras regionais são invariavelmente indistintas e sujeitas a eternasmodificações porque as distâncias relativas se alteram com as melhorias no transporte e nascomunicações.Masaseconomiasregionaisnuncasãofechadas.Atentaçãoporpartedoscapitalistasdese engajarem no comércio inter-regional para alavancar os lucros derivados de trocas desiguais ecolocar capitais excedentes onde a taxa de lucro é mais alta é, em longo prazo, irresistível. E ostrabalhadores certamente serão tentados a semover para onde os padrões de vidamateriais sãomaiselevados.Alémdea tendênciaparaa superacumulaçãoeparaaameaçadedesvalorizaçãoobrigaroscapitalistasqueestãodentrodeumaregiãoaestendersuasfronteirasousimplesmentemoverseucapitalparapastosmaisverdes.

Oresultadodissoéqueodesenvolvimentodaeconomiadeespaçodocapitalismoestácercadodetendênciascontrapostasecontraditórias.Asbarreirasespaciaiseasdistinções regionaisprecisamserderrubadas. Mas os meios para atingir esse objetivo envolvem a produção de novas diferenciaçõesgeográficas que criam novas barreiras espaciais a serem superadas. A organização geográfica docapitalismo internaliza as contradiçõesdentroda formadevalor.É issoquequerdizero conceitodoinevitáveldesenvolvimentodesigualdocapitalismo.

II.CONCENTRAÇÃOEDISPERSÃOGEOGRÁFICASO desenvolvimento geográfico desigual é parcialmente expressado em termos de uma oposição entreforçascontráriasquecontribuemparaaconcentraçãooudispersãogeográficasnacirculaçãodocapital.AsconsideraçõesdeMarxsobreesseponto,emborafragmentárias,sãointeressantes.Porexemplo,n’Ocapital ele está principalmentepreocupado emexplicar a incrível concentraçãodas forças produtivasnos centros urbanos e nasmudanças correlacionadas nas relações sociais da produção e da vida.Elepercebeosefeitosdainteraçãoqueconduzemàrápidaaglomeraçãodaproduçãodentrodascidades,quese tornaram, na verdade, oficinas coletivas da produção capitalista[14]. Ele também mostra como asforçasque contribuempara a aglomeraçãopodemser cumulativamente construídasuma sobre a outra,atraindo novos investimentos no transporte e nas indústrias de bens de consumo para lugares jáestabelecidos[15].Tudoissorequerumacrescenteconcentraçãoeexpansãodoproletariadoemgrandescentrosurbanos,oquesignificaoumudançasradicaisnascondiçõesdareproduçãodaforçadetrabalhodentro dos centros urbanos ou “absorção contínua de elementos vitais naturais-espontâneos docampo”[16].Aemergênciadeumexércitoindustrialdereserva“flutuante”nosprincipaiscentrosurbanosé,alémdisso,umacondiçãonecessáriaparaaacumulaçãosustentada.Oacúmulode trabalhadoresnomeiodeuma“acumulaçãodemiséria,trabalhoárduo,escravidão,ignorância,brutalidade,degradação”,todosexacerbadosporváriasformassecundáriasdaexploração(comooalugueldamoradia),torna-sea

Page 382: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

marca registrada da forma de industrialismo capitalista. A acumulação do capital e a acumulação damisériaandamjuntas,concentradasnoespaço.

Essastendênciasparaaaglomeraçãoobviamenteencontramlimitestantofísicosquantosociais.Oscustosdecongestionamento,arigidezcrescentenousodasinfraestruturasfísicas,oaumentodosaluguéise a absoluta falta de espaço superam em muito as economias de aglomeração. As concentrações demiséria formam um campo propício para a geração de consciência de classe e agitação social. Adispersãoespacialcomeçaaparecercadavezmaisatrativa.

Invocamosaquitodasaquelasforçasqueestãoemaçãonocapitalismoequetendemaproduzir“umaesferadecirculaçãoemconstanteampliação”paraintegraromundoemumsistemaúnicocaracterizadoporumadivisãoterritorialinternacionaldotrabalho.Amobilidadedodinheirodecréditoeatendênciapara eliminar as barreiras espaciais tornam-se a chave para o entendimento da dispersão rápida dacirculação do capital na face da terra. As perspectivas de altos lucros seduzem os capitalistas parabuscaremeexplorarememtodasasdireções[17].Aacumulaçãoespalhaasuaredenomundoemcírculossempremaisamplos,finalmentecaptandotudoetodosdentrodoprocessodecirculaçãodocapital.

Masadispersãotambémencontrarestriçõeslimitantespoderosas.Asgrandesquantidadesdecapitalincorporadasnaprópria terra, as infraestruturas sociaisquedesempenhamumpapel tão importantenareprodução do capital e da força de trabalho e as restrições à mobilidade do capital vinculadas aprocessos de trabalho concretos tendem a manter o capital no lugar. E a provisão de infraestruturasfísicasesociaiscaraséextremamentesensívelàseconomiasdeescalamedianteaconcentração.

Tendênciasopostasparaaconcentraçãoedispersãogeográficacorremumacontraaoutra.Enãohágarantia de um equilíbrio estável entre elas. As forças que contribuem para a aglomeração podemfacilmente ser construídas cumulativamente uma sobre a outra e produzir uma concentração excessivadesfavorávelamaisacumulação.Asforçasquecontribuemparaadispersãotambémpodemfacilmenteficar fora do alcance. E as revoluções na tecnologia, nos meios de comunicação e no transporte, nacentralização e descentralização do capital (incluindo o grau de integração vertical), em arranjosmonetáriosedecrédito,eminfraestruturassociaisefísicas,afetammaterialmenteoequilíbriodasforçasemação.Dessemodo, o capital é impelido para fases às vezes simultâneas e às vezes sucessivas deaprofundamentoeampliaçãonasconfiguraçõesespaciaisdasforçasprodutivasedasrelaçõessociais.

É mediante essa teorização que nós podemos entender melhor o desenvolvimento acelerado dasforçasprodutivasemumlocaleoseuretardoemoutro,arápidatransformaçãodasrelaçõessociaisaquiesuarelativarigidezali.Fenômenoscomoaurbanizaçãoeodesenvolvimentoregionaleinternacionalencontramseulocalnaturaldentrodoesquemadecoisasmarxiano[18].Maselessãoentendidosmaisemtermos de oposições do que simplesmente demaneira unilateral.Os antagonismos entre a cidade e ocampo,entreocentroeaperiferia,entreodesenvolvimentoeodesenvolvimentodosubdesenvolvimentonãosãoimpostosacidentalouexogenamente.Elessãooprodutocoerentedediversasforçasinterligadasoperandodentrodaunidadegeraldoprocessodecirculaçãodocapital.

III.AREGIONALIZAÇÃODALUTADECLASSESEENTREFACÇÕESÉinegávelquea lutadeclasseseoconflitoentrefacçõesassumemumaspectoespacial,muitasvezesterritorial, no capitalismo. Fenômenos desse tipo são com frequência explicados como o produto de

Page 383: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

sentimentoshumanosprofundamentearraigados–lealdadesaolocal,à“terra”,àcomunidadeeànaçãoque geram orgulho cívico, regionalismo, nacionalismo etc. – ou de antipatias também profundamentearraigadasentregruposhumanosbaseadasna raça,na língua,na religião,nanacionalidadeetc.Masaanálise precedente nos permite explicar a regionalização da luta de classes e entre facçõesindependentementedessessentimentos.Nãopretendosugerircomissoqueossentimentoshumanosnãodesempenhamumpapelnoconflitointer-regional,ouqueosconflitosnãopossamsurgirautonomamentenessasbases;querosimplesmentedeclararqueexisteumabasematerial,dentrodopróprioprocessodecirculaçãodocapital,paraasmanifestaçõesinter-regionaisdelutadeclasseseentrefacções[19].

Abaseseapoianessacondiçãoconflitantequesurgeporqueumapartedocapitalsocialtotaltemdeser imobilizado para proporcionar ao capital restante maior flexibilidade de movimento. O valor docapital, umavezqueele está encerradodentrode infraestruturas físicas e sociais imóveis, temde serdefendido para não ser desvalorizado.Nomínimo, isso significa garantir o trabalho futuro que essesinvestimentos antecipam, confinando o processo de circulação do capital restante dentro de umdeterminadoterritóriodurantecertotempo.

Algumas facções do capital estãomais comprometidas do que outras com o investimento imóvel.Proprietáriosde terraebens imóveis,empresárioseconstrutores,oEstado localeaquelesquedetêmdívidahipotecária têmtudoaganharcomacriaçãodeumaaliança localparaprotegerepromoverosinteresseslocaiseparaimpediraameaçadadesvalorizaçãoespecíficadolocal.Ocapitaldeproduçãoquenãopodesemoverfacilmentepodeapoiaraaliançaesertentadoacomprarapazeashabilidadesdaforçadetrabalholocalmediantecompromissosrelacionadosaossalárioseàscondiçõesdetrabalho–dessemodoganhandoosbenefíciosdacooperaçãodaforçadetrabalhoeumademandaefetivacrescentede bens salariais nosmercados locais. Facções de trabalho que têm,mediante a luta ou por acidentehistórico,conseguidocriarnichosdeprivilégiodentrodeummardeexploraçãopodemtambémcorrerpara a causa da aliança. Além disso, se um compromisso entre o capital e o trabalho é útil para aacumulaçãolocal,entãoaburguesiacomoumtodopodeapoiá-lo.Abaseélançadaparaaascensãodeumaaliançadebaseterritorialentreváriasfacçõesdocapital,oEstadolocaleatétodasasclasses,emdefesa dos processos de reprodução social (tanto a acumulação quanto a reprodução da força detrabalho)dentrodeumterritórioparticular.Deveserenfatizadoqueabaseparaaaliançaseassentananecessidadedeimobilizarumapartedocapitalparadaraorestanteliberdadeparasemovimentar.

A aliança tipicamente se coloca no registro do ufanismo comunitário e da luta pela solidariedadecomunitária ou nacional como meios de defender os vários interesses faccionais e de classe. Acompetição espacial entre localidades, cidades, regiões e nações assume umnovo significado quandocadaaliançaprocuracaptarereterosbenefíciosqueobtevedosfluxosdocapitaledaforçadetrabalhoentreosterritóriossobseucontroleefetivo.Eemocasiõesdecrisemaisgeral,lutasamargasexplodemsobre que local deve suportar o peso maior da desvalorização que certamente deverá vir. Essascondiçõesmateriaiseobjetivasproporcionamestímuloabundanteparanoçõesdeharmoniacomunitáriaesolidariedadenacional.Essasnoçõessãotãosignificativasparafacçõesdaforçadetrabalhoquantoparafacçõesdocapital,eabuscadeinteressesdebaseterritorialécomfrequênciaconvenienteparaambos.Dessemodo,ocapitalpodeesperarprevalecermedianteocompromissocomumaclasse trabalhadorageograficamentefragmentada,mas,dessaforma,elesedivideeseenfraquece.Aforçadetrabalho,porsuavez,podemelhorarsuaposiçãolocal,masàcustadeabrirmãodedemandasmaisrevolucionáriasedeabrirdivisõesterritoriaisdentrodesuasfileiras.Alutadeclassesglobalentãosedissolveemváriosconflitosdebaseterritorialqueapoiam,sustentameemalgunscasosatéreconstituemtodosostiposde

Page 384: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

preconceitoslocaisetradiçõesincrustadas.Entretanto,aestabilidadeeacoerênciadecadaaliançadebaseterritorialsãoameaçadasporforças

dedestruiçãopoderosas.Algumas facçõesdo capital –os capitalistasmonetários emparticular– sãomaissuscetíveisàseduçãodelucrosaltos,eocapitaldeproduçãodificilmentepodesepermitirignoraromais-valor relativo a ser obtido pormudanças para lugares superiores. Facções do capital rompemcomaaliança local ebuscamretornosmaisaltosemoutros lugares.E, emboraocapital eo trabalhopossamsealiarcomrespeitoaalgumasquestões(comoasbarreirastarifáriasàsimportaçõesbaratas)eaocompromissocomoutras, o antagonismoentre elesnuncadesaparece.Namedida emquea lutadeclasses se agudiza, facções do capital podem ser crescentemente tentadas a fugir do território ou arevidarosataquesdaforçadetrabalhoorganizadamediantemeioscomopolíticasdeimigraçãoabertas.Acoerênciadaaliançalocalestásendosempredesafiada,tantointernaquantoexternamente.

Diferentesfacçõesdocapitaledaforçadetrabalhotêminteressesdiversosdentrodeumterritório,dependendo da natureza dos bens que eles possuem e dos privilégios que controlam. Algumas sãoparceiras mais sólidas do que outras em uma aliança local. Mas todas as facções percebem algumasensaçãodetensãoentreasvirtudesdocompromissolocaleatentaçãodesemudarem.Osproprietáriosdeterra,porexemplo,podemparecerseraespinhadorsal“natural”dequalqueraliançalocalemvirtudedo bem que possuem. Mas se a terra for tratada como um simples bem financeiro, então a açãoespeculativadassociedadesfundiáriaspodesertãoperturbadoradeumaaliançalocalquantoqualqueroutra coisa. Na outra extremidade do espectro encontramos capitalistas monetários incomodados pordilemassimilares,pormaisqueobemqueelescontrolamsejaaltamentemóvel.Seumbancopoderosodetémadívidahipotecáriadegrandepartedoinvestimentoinfraestruturaldentrodeumterritório, issocorróiaqualidadedasuaprópriadívidaseeledesviar todoocapitalmonetárioexcedenteeenviá-loparaumaáreadetaxadejurosmaiselevada.Pararealizarovalordadívidaqueelejádetém,obancopodeserobrigadoafazerinvestimentosadicionaisdentrodeumterritórioaumataxadelucromaisbaixadoqueaquepoderiaserconseguidaemoutrolugar.Oscapitalistasengajadosnaproduçãotambémtêmuma escolha. Eles podemmelhorar sua posição competitiva apoiando amelhoria infraestrutural localmedianteaparticipaçãoemumaaliançalocaloupodemsemudarparaoutrolocalondesesabequeascondições sãomelhores.Podem tambémusar a ameaçadeumamudançapara concessões chantagistas(isenções fiscais,porexemplo)deparceirosmaisvulneráveis.Ea forçade trabalho tambémnãoestáimuneaessaspressões.Elapodeevitarpressionarsuasdemandasemdireçõesrevolucionáriaspormedodeestimularafugadecapital,oquevaisolaparosprivilégiosqueelajáconseguiu.

Masissonãofazcomquealutadeclassesealutaentrefacçõessejamabolidas.Elassimplesmenteassumem um aspecto territorial que opera conjuntamente com outras formas de luta. Exatamente damesmamaneiraqueabuscapormais-valorrelativoinvocaatecnologiaeolugarconjuntamente,aslutasdeclasseseentrefacçõesnecessariamentesedesenvolvemnotempoenoespaço.Ageografiahistóricado capitalismo é umprocesso social que se baseia na evolução das forças produtivas e das relaçõessociais que existem como configurações espaciais particulares. Forças contrárias estão em ação,colocandoamobilidadeespacialdocapitaledaforçadetrabalhoemumageografiarepletadetensõesepropensaacontradições.Osconflitosdebaseterritorialtornam-seentãopartedosmeiospelosquaisalutadeclassesemtornodeumaacumulaçãoesuascontradiçõesbuscamnovasbases–oualternativas–para a acumulação. Essas novas bases simultaneamente abraçam a criação de novas configurações enovosprocessosdetrabalho.Asaliançasterritoriaiseosconflitosinterterritoriaisdevemserconstruídoscomomomentosativos,emvezdeaberrações,dentrodahistóriageraldalutadeclasses.

Page 385: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

IV.ARRANJOSHIERÁRQUICOSEAINTERNACIONALIZAÇÃODOCAPITALAstensõesentreafixidezeomovimentonacirculaçãodocapital,entreaconcentraçãoeadispersão,entre os compromissos locais e os interesses globais, impõem imensa pressão sobre as capacidadesorganizacionaisdocapitalismo.Emconsequênciadisso,ahistóriadocapitalismotemsidomarcadaporexploração emodificação contínuasquepodemaliviar e conter essas tensões.O resultado tem sido acriaçãodeestruturasdeorganizaçãohierárquicasaninhadasquepodemvincularo localeoparticularcom a conquista demão de obra abstrata no cenáriomundial.As crises são articuladas e as lutas declasses e entre facções se desenvolvem dentro dessas formas organizacionais, enquanto as própriasformascomfrequênciarequeremumatransformaçãodramáticadiantedascrisesdeacumulação.

Jáencontramosumexemplodessaestruturahierárquicaaninhada.Mostramosnocapítulo9queumahierarquiadedinheirosdediferentesqualidadesénecessáriaparaqueaacumulaçãoproceda.Somentedessamaneiraanecessidadelocaldemeiodecirculaçãopodeserrelacionadaaoequivalenteuniversalcomo umamedida de valor. Eventos locais e particulares, como a criação de dinheiromediante umatransaçãodecréditoemumdeterminadoespaçoetempo,podemserintegradosemarranjosmonetáriosmundiais através da hierarquia das instituições dentro do sistemamonetário.Tambémdeclaramos queexistem contradições dentro desse sistema hierárquico, e que o que acontece em um nível não énecessariamenteconsistentecomoquedeveaconteceremoutro.Aexpressãofundamentaldacrise,porexemplo, é como uma contradição entre o sistema financeiro e sua basemonetária.A preservação daqualidadedodinheirocomoumamedidadevaloréumatarefaquecainoterrenodaquelasinstituiçõesinternacionais que ocupam os altos comandos da hierarquia. Por isso as crises se manifestaminvariavelmentecomoconflitosentreváriosníveisdentrodessahierarquiadearranjosmonetários.

Há uma abundância de outras formas de organização que exibem tensões similares dentro de simesmas.Asfirmasmultinacionais,porexemplo,têmumaperspectivaglobal,mastêmdeseintegrarcomascircunstânciasemvárioslocais[20].Elaspodemsebasearintensamentenospadrõesdesubcontrataçãolocais e, por isso, podemapoiar, emgrau limitado,umaaliança territorial.Acentralizaçãodo capitaldentrode suaorganizaçãoé invariavelmente acompanhadapordescentralizaçãoespacial (ver capítulo5), e isso significa algum grau de compromisso e responsabilidade locais, com a capacidade paraproduzirsendoacompanhadadegrandepartedepoderlocal,pormeiodeameaçasdiretasouindiretas.Aintegraçãolocaldasempresasmultinacionaistomaadecisãodeficarquietaemseulugaroupertodeumasubsidiária em um local particular difícil. E, dentro da hierarquia da firma multinacional, o que fazsentidoemumnívelnãofaznecessariamentesentidoemoutro.Osmesmosdilemassãoenfrentadospelocapitalmercantilmultinacional.Asestratégiasglobaissuperamatensãoentreocompromissolocalealutaparaseapropriardemais-valorondequerqueeleesteja.Emborasemprepareçaqueopoderestánotopo dessas estruturas hierárquicas, é sempre a produção em locais particulares a fonte fundamentaldesse poder. As firmasmultinacionais internalizam as tensões entre a fixidez e omovimento, entre ocompromisso local e os interesses globais. Sua única vantagem é que elas conseguem organizar suaocupação do espaço e a história da sua própria geografia segundo um plano consciente. O únicoproblemaéqueessesplanossãoconcebidosemumambientedeacumulaçãoatormentadoporincertezaserepletodecontradições.

Osistemapolíticoéorganizadoao longode linhashierárquicas similarespor razões similares[21].Enquanto os Estados-nação ocupam uma posição fundamental nessa hierarquia, as organizações

Page 386: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

supranacionais refletem a necessidade de coordenações globais, e arranjos governamentais regionais,municipais e comunitários vinculam os interesses universais com aqueles puramente locais. Há umexcessodeconflitoentreosníveisdentrodessaestruturahierárquica,quezombadequalquerteoriadoEstado como sendo um fenômeno unitário emonolítico. E embora grande parte do poder possa estarlocalizadononívelnacional,oproblemadeintegrarasexigênciaslocaiscomasglobaiscontinuasendosempreumproblemacomplicadoparaqualqueradministração.Oconflitosetornaparticularmenteagudopara qualquer nação que aspire ao papel de banqueiromundial.Deve ela, em nome das perspectivasglobais de acumulação, ter acesso a – e atémesmo orquestrar – a destruição de algumas economiaslocais dentro de suas fronteiras? Ou deve procurar protegê-las e buscar políticas paroquiais e atéisolacionistas que acabam resultando empoder absoluto e no fimdos padrões de acumulaçãoglobaisabertos?

Asváriasestruturashierarquicamenteorganizadasnasesferasdasfinanças,daprodução,doEstadoetc.,comashierarquiasurbanasestruturadasparaassegurarqueomovimentoeficientedasmercadorias,seunematabalhoadamenteumascomasoutrasparadefinirváriasescalas– local, regional,nacionaleinternacional(parausarascategoriascomunsquerefletememlinhasgeraisoquequeremosdizer).Asaliançasdebaseterritorialpodemseformaremqualquerumadessasescalas.Masanaturezaeapolíticadaaliançatendemasealterar,àsvezesmuitodramaticamente,deumaescalaparaaoutra.Ospadrõesdalutadeclassesedalutaentrefacçõeseosdacompetiçãointerterritorialtambémsemodificam.Questõesqueparecemfundamentaisemumaescaladesapareceminteiramentedavistaemoutra;facçõesquesãoparticipantes ativas em uma escala podem desaparecer do cenário ou até mudar para outro. Entre oparticulareouniversalhá todaumaconfusãodearranjosorganizacionaisdesordenadosquemediamadinâmicadofluxodocapitaldentrodaeconomiadeespaçodocapitalismoeproporcionammúltiplosediversosfórunsemquealutadeclassesealutaentrefacçõespodemsedesenvolver.

A complexidade desordenada desses arranjos com frequência obscurece sua importância comodispositivos de transmissão que relacionam a ação concreta particular com os efeitos do trabalhoabstrato e, dessemodo, confirmam a economia política que integra o individual dentro da totalidadecomplexa da sociedade civil. Por exemplo, quando os trabalhadores compram uma casa em umdeterminado local e tempo, eles podem fazê-lo mediante um arranjo de hipoteca sancionado pelastradições do contrato, apoiadopelas políticas dogoverno e promovidopela ideologia burguesa.Seuspagamentos mensais ao banco refletem um tempo de amortização e uma taxa de juros indicativa dascondições globais da acumulação,mediadas pela força e pela segurança de determinadas instituiçõesdentrodosistemafinanceiroepela forçadaeconomianacionalemrelaçãoaocomércio internacional.Todasessasmediaçõessãocaptadasereduzidas,naanálisefinal,aumpagamentomensalaobanco(ouauma instituição financeira paralela).Na outra extremidade, quando os banqueiros internacionais lutamparaproporcionarestabilidadeaumaeconomiamundialquepareceestaràbeiradocaos,elesofazemnocontextodeumamiríadededecisõesindividuaisedainterseçãocaóticadelutasinterterritoriais,dealianças de classe e entre facções etc. Percebendo sua impotência, eles podem começar a criarinstituições,comooFundoMonetárioInternacional,quetêmopoderdedisciplinareseduzirosEstados-naçãoeassimpressionarpormeiodepolíticasqueafetamavidadiáriadoindivíduodemaneirasvitaiseàsvezestraumáticas.Agoraprecisamosconsiderarcomoasmediaçõesdessetipoafetamaformaçãoearesoluçãodascrisesdentrodaeconomiadeespaçodocapitalismo.

Page 387: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

V.O“TERCEIRORECORTE”NATEORIADACRISE:ASPECTOSGEOGRÁFICOSOndequerqueestejam,oscapitalistassecomportamcomocapitalistas.Elesbuscamaexpansãodovalorpormeiodaexploração,semlevaremcontaasconsequênciassociais.Elessuperacumulamocapitale,no fim, criam as condições que conduzem à desvalorização dos capitais individuais e da força detrabalhoduranteacrise.Entretanto,issoacontecedentrodeumaestruturadedesenvolvimentogeográficodesigual produzido pormobilidades diferenciais de vários tipos de capital e força de trabalho, todosjuntosdentrodas restrições temporais impostaspeloprocessodecirculaçãodoprópriocapital.Essasmobilidades moldam os processos de trabalho concretos individualizados em uma “totalidade dediferentesmodosde trabalhoabarcandoomercadointernacional”,eassimdefinemo trabalhoabstratocomovalor.

Nossa tarefa é construir um “terceiro recorte” na teoria da formação da crise que reconheçaespecificamenteasqualidadesmateriaisdoespaçosocialcomoestãodefinidasnasrelaçõescapitalistasdeproduçãoetroca.Lembre-sedequeo“primeirorecorte”dateoriadacrisetratadafontebásicadascontradições internasdo capitalismo.O“segundo recorte”da teoria examinouasdinâmicas temporaiscomoestãomoldadasemediadasapartirdearranjosfinanceirosemonetários.O“terceirorecorte”dateoria,noqual estamosaqui interessados, temde integrar ageografiadodesenvolvimentodesigualnateoria da crise. A tarefa não é fácil. Temos de lidar de algum modo com determinações múltiplas,simultâneaseconjuntas.Anegociaçãoentreomais-valorrelativodevantagensdelugaroutecnológicas,porexemplo, comfrequênciaproporcionaaoscapitalistasuma latitudeconsiderávelnoconfrontocomseusconcorrentes.Essaausênciadedeterminações singularesdificultaa teorização.Por isso, a seguirempregaremosalgumassuposiçõessimplificadasedrásticasparadarcontadaessênciadaformaçãodacrisedentrodageografiadedesenvolvimentodesigual.

1.Desvalorizaçãoparticular,individualeespecíficadolocal

Seocorrerdeocapital,damaneiraquefor,eaforçadetrabalhodequalquertipo,nãoimportaporque razão, não estarem no lugar certo no momento certo, provavelmente vão sofrer desvalorização.Milhares de movimentos especulativos tornam as coordenações apropriadas e exatas no tempo e noespaçoumaquestãodeacaso,amenosqueospoderesdeplanejamentoconscientesejamexercidosviaosistema financeiro ou o Estado. No curso normal dos acontecimentos, alguns indivíduos vão sofrerdesvalorizaçãodoseucapitalouforçadetrabalho,enquantooutrosvãolucrarenormementeouencontrarempregos bem remunerados. A miríade de desvalorizações resultantes, particulares e específicas dolocal, não tem de se unir em nenhum padrão mais grandioso. Elas são simplesmente parte do custohumanonormal,dodesgastesocial,daacumulaçãomedianteacompetição.

Essaconcepçãotemumaimportânciadupla.Emprimeirolugar,adesvalorizaçãoéumadeterminaçãosocial.Nãosetratadeumprocessodeterminadodetrabalhonãopoderabsolutamentefuncionaremumdeterminadolugar,masdeelenãogerarnemmesmoataxadelucromédio.Asdesvalorizaçõessemprefundemoparticulareoindividual(amãodeobraconcreta)comouniversaleosocial(forçadetrabalhoabstrata).Eadesvalorizaçãoésempreespecífica,deumlocaletempoparticulares.Emsegundolugar,formas de crise mais gerais se baseiam e surgem dessa confusão de eventos locais, particulares eindividuais. Da mesma maneira que Marx abre a identidade pressuposta na Lei de Say para tantas

Page 388: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

possibilidades de crises (considerando a separação das vendas e compras no espaço e no tempo),também inúmeras desvalorizações particulares e específicas do local criam aberturas dentro depossibilidades mais gerais para as crises poderem se inflamar. Temos agora de mostrar como osferimentos inflamados são convertidos em chagas abertas pelos processos sociais específicos docapitalismo.

Revoluções no valor são estimuladas pela busca por mais-valor relativo mediante a mudançatecnológicaoumudançasdelugar.Oefeitodissoédesvalorizaroscapitaisempregadosemtecnologiasinferioresouemlocalizaçõesinferiores.Esseprocessoécomplicadoporqueoimpulsoparaacelerarotempodegiromediantemelhoriasnotransporteenascomunicaçõesalteraosespaçosrelativoseassimtransforma localizações superiores em inferiores e vice-versa. O movimento dos trabalhadoresindividuais na busca de padrões de vida materiais mais elevados e melhores condições de trabalhoaumentaaconfusão–avantagemdocapitaldeteracessoafilõesbaratosdemãodeobraexcedenteemalgunslugarespodesergradualmentereduzidapelamigraçãodaforçadetrabalho.Oefeitototaldissoéqueasdesvalorizaçõesespecíficasdolocalsetornammaisqueapenasumaquestãoaleatóriaecasual.Acompetiçãoespacialconduzaofechamentodeumafábricaaqui,àperdadeumaconexãoferroviáriaali.Perdasdeempregosassociadaseadiminuiçãodademandaefetiva localporbens salariaisoucapitalconstanteestimulamosajustesdentrodaeconomiadeespaço,oquelevaamaisdesvalorizações.Estassãosistematizadasemcertaconfiguraçãoespacialmedianteopoderracionalizadordoconflitodeclasseedacompetiçãosobreformasabsolutaserelativasdemais-valor.Entretanto,acontínuareestruturaçãodas configurações espaciais pormeio de revoluções novalor devemais umavez ser vista comoumacaracterísticanormaldodesenvolvimentocapitalista[22].

2.Aformaçãodacrisedentrodasregiões

Asuperacumulaçãoseoriginadecontradiçõesentreasforçasprodutivaseasrelaçõessociaisdentrodoprocessodecirculaçãodocapital.Essascontradiçõesfraturamaunidadedesejadaentreaproduçãoea realização demais-valor.A unidade só pode ser restaurada pelo uso da força durante as crises dedesvalorização.Noentanto,aproduçãoearealizaçãotêmdeserconsumadasdentrodeumdeterminadotempodegiroenósanteriormentemostramosque isso se traduz, emcertas condições, emproduçãoerealização de mais-valor dentro dos confins de um espaço definido. O efeito agregado é difícil dedescrever porque cada capital individual, operando a partir de um lugar particular, tem suas própriascondiçõesespecíficasdeprodução,troca(incluindotransporte)erealização.

Para simplificar, vamos assumir inicialmente que toda a produção e a realização de capitaisinterdependentesocorremdentrodeumaregiãofechada.Aacumulaçãoprocededentrodessaregiãoemvelocidadesquedependemdaexpansãolocaldoproletariado,dasituaçãodalutadeclasses,doritmodainovação, do crescimento na demanda efetiva agregada etc. Mas como os capitalistas serão semprecapitalistas, a superacumulação está prestes a acontecer. A ameaça da desvalorização maciça éimportante e a sociedade civil parece destinada a experimentar o estresse social, a perturbação e ainquietaçãoqueacompanhamaimpetuosarestauraçãodascondiçõesfavoráveisàacumulação.

Isso, é claro, é exatamente o tipo de “dialética interna” que obriga a sociedade a procurar alíviomediantealgumtipode“ajusteespacial”.Asfronteirasdaregiãopodemserrestabelecidasouoalívioconseguido pelas exportações de capitalmonetário,mercadorias ou capacidades produtivas, ou pelasimportaçõesdeforçasdetrabalhonovasvindasdeoutrasregiões.Atendênciaparaasuperacumulaçãodentrodaregiãopermaneceincontrolada,masadesvalorizaçãoéevitadapor“transformaçõesexternas”

Page 389: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

sucessivas e ainda mais grandiosas. Esse processo pode provavelmente continuar até que todas aspossibilidadesexternasestejamesgotadasouqueoutrasregiõesresistamaseremtratadascomosimplesapêndicesconvenientes.

Masassimqueumaregiãoabresuasfronteirasparaosfluxosdecapitale trabalho,asrelaçõesdevalor dentro da região começam a refletir a “totalidade de diferentesmodos de trabalho abarcando omercado internacional”. As revoluções do valor podem também ser impostas de fora da região. Aposição competitiva da região como um todo pode ser corroída porque outras regiões passaram pelodesconforto e a tragédia da reestruturação interna do seu aparato produtivo, das relações sociais, dosarranjos distributivos e assim por diante. A região, longe de resolver seus problemas desuperacumulação mediante a criação de relações externas, pode ser obrigada a experimentar umadesvalorizaçãoaindamaisselvagemdevidoàpressãoexterna.Acompetiçãointer-regionalpassaaseraordem do dia. E as forças relativas das diferentes alianças de base territorial tornam-se um fatorimportante.

Asquestõesagorase tornamaindamaisconfusas.Adistinçãoentreas“transformações internas”e“externas”ficadifícildeisolar.As“fronteiras”regionais,casoexistam,ficamextremamenteporosasaosmovimentosdocapitaledotrabalho;asaliançaslocaisficamvisivelmenteabaladascomrelaçãoacertasquestões; e as formas de organização hierárquica, operando em várias escalas, oferecem diferentespossibilidades de coordenação.O grau em que os problemas da superacumulação que surgem em umlocal podem ser aliviados por mais desenvolvimento ou desvalorização em outro local depende dainterseçãodetodosostiposdeforçasdiversaseconflitantes.

Mas o resultado é que algumas regiões crescem enquanto outras declinam. Entretanto, isso nãoprecisapressagiarumacriseglobaldocapitalismo.Osritmosregionaisdiferentesdaacumulaçãopodemser apenas frouxamente coordenados porque as coordenações se baseiamnasmobilidades contínuas ecom frequência conflitantes de diferentes formas de capital e trabalho[23].O ritmo dasmudanças paramelhoreparapiornociclodaacumulaçãopodeentãovariardeumaregiãoparaoutracomefeitosdeinteração interessantes. A unidade do processo de acumulação pressuposta nas versões anteriores dateoriadacrisesefragmentaemdiferentesritmosregionaisquepodemtãofacilmentecompensarumaàoutra quanto gerar algum vasto crash global. Existe uma possibilidademuito real de que o ritmo daacumulação global possa sermantido pelas oscilaçõesmitigadoras dentro das partes. A geografia dodesenvolvimento desigual ajuda a converter as tendências à crise do capitalismo em configuraçõesregionaismitigadorasdaacumulaçãoedesvalorizaçãorápidas.

3.Crisescíclicas

Odeslocamentoserenodosexcedentesdecapitaletrabalhodeumaregiãoparaoutracriaumpadrãode oscilações mitigadoras dentro do todo que encontra fortes barreiras. As fronteiras podem serfechadas, as sociedades pré-capitalistas podem resistir à acumulação primitiva, podem surgirmovimentosrevolucionáriosetc.Masasbarreirastambémsurgemdevidoatodaalógicacontraditóriadaprópriaacumulaçãodocapital.Vamosagoraconsiderá-lasmaisatentamente.

Quanto mais aberto fica o mundo para a reestruturação geográfica, mais facilmente podem serencontradassoluçõestemporáriasparaosproblemasdasuperacumulação.Aexpansãogeográfica,comoo aumento da população (ver p. 233), proporciona uma base forte para a acumulação sustentada. Ascrisessãoreduzidasacrisescíclicasmenores,enquantoosfluxosdecapitaletrabalhosedeslocamdeuma região para outra, oumesmo se revertem, e estimulam desvalorizações regionais (que, às vezes,

Page 390: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

podem ser intensas), assim como ajustes importantes nas estruturas espaciais (como o sistema detransporte)destinadosafacilitarosfluxosespaciais.

Masoproblemaéquequantomaisocapitalismosedesenvolve,maiseletendeasucumbiràsforçasque colaboram para a inércia geográfica. Encontramos aqui uma versão dessa contradição queMarxdescreveucomoadominaçãodaforçadetrabalhomortasobreaviva.Acirculaçãodocapitalficacadavez mais aprisionada dentro de infraestruturas físicas e sociais imóveis que são criadas para apoiaralguns tipos de produção, alguns tipos de processos de trabalho, arranjos distribucionais, padrões deconsumoetc.Quantidadescrescentesdecapitalfixoetemposdegiromaislongosnaproduçãodetêmamobilidade desenfreada. Em resumo, o crescimento das forças produtivas atua como uma barreira àreestruturaçãogeográfica rápidaexatamentedamesmamaneiraque impedeadinâmicadaacumulaçãofutura pela imposição do peso morto dos investimentos passados. As alianças territoriais, que comfrequência se tornam cada vez mais poderosas e mais profundamente entrincheiradas, surgem paraprotegereaumentarovalordocapitaljácomprometidodentrodaregião.

Todas essas forças se integram, fortalecem a tendência para a inércia geográfica e, desse modo,impedemreestruturaçõesrápidasnaeconomiadeespaçodocapitalismo.E,piorainda,sobapressãodadesvalorização,asforçasdainérciapodemaumentar,emvezdediminuir,suapressãoeassimexacerbaro problema – uma aliança local pode agir para conservar privilégios já conquistados, para manterinvestimentosjáfeitos,paramanterumcompromissolocalintactoeparaseprotegerdosventosgeladosdacompetiçãoespacialporcontrolesdeimportaçãoeexportação,controlesdocâmbiointernacionalepor leis de imigração. Novas configurações espaciais não podem ser alcançadas porque asdesvalorizaçõesregionaissãoimpedidasdeseguiroseucurso.Odesenvolvimentogeográficodesigualdocapitalismoassumeentãoumaformaqueétotalmenteinconsistentecomaacumulaçãosustentada,quernaregiãoqueremumaescalaglobal.

Quanto mais as forças da inércia geográfica permanecem, mais profundas se tornarão as crisesagregadas do capitalismo e mais selvagens as crises cíclicas se tornarão para poderem restaurar oequilíbrio perturbado. As alianças locais terão de ser dramaticamente reorganizadas (a ascensão dofascismo sendo o exemplo mais terrível), as incorporações tecnológicas repentinamente alteradas(incorrendonadesvalorizaçãomaciçadaantiga fábrica), as infraestruturas físicase sociais totalmentereconstituídas (com frequência devido a uma crise nos gastos doEstado) e a economia de espaço daprodução,distribuiçãoeconsumocapitalistastotalmentetransformada.Ocustodadesvalorizaçãotantoparaoscapitalistasindividuaisquantoparaostrabalhadorestorna-sesubstancial.Ocapitalismocolheosfrutosmaisselvagensdesuasprópriascontradiçõesinternas.

Maspormaisselvagensquepossamseressascrisescíclicas,atotalreestruturaçãodaeconomiadeespaço do capitalismo em uma escala global ainda conserva a perspectiva de uma restauração doequilíbriomedianteumareorganizaçãodaspartesregionais.Ascontradiçõesdocapitalismoaindaestãocontidasdentrodasestruturasglobaisdodesenvolvimentogeográficodesigual.

4.Criaçãodenovosarranjosparacoordenaraintegraçãoespacialeodesenvolvimentogeográficodesigual

Nem todas as formas de desenvolvimento geográfico desigual e expansão espacial diminuem osproblemas da superacumulação. Na verdade, as configurações espaciais têm tanta probabilidade decontribuir para o problema quanto de resolvê-lo. Isso concentra a nossa atenção nos mecanismos decoordenaçãoquemoldamasconfiguraçõesespaciaiseosfluxosdecapital.Porexemplo,nocapítulo12

Page 391: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

mostramosqueamobilidadegeográficadodinheiro,dasmercadorias,docapitalprodutivoedaforçadetrabalhodependedacriaçãodeinfraestruturasfísicasesociaisfixaseimóveis.Comoestaúltimapodesermodificadaparaacomodarosvolumesemexpansãodocapitalemmovimento?

Vimosnocapítulo8quenovossistemasdetransporteecomunicaçõespodemserconstruídosusandoocapitalsuperacumulado,emboraàcustadealgumadesvalorizaçãodocapitalincorporadonopassado.Osnovosinvestimentossótendemaserdesvalorizadosseasexpansõesantecipadasfracassarememsuamaterialização na configuração espacial, ou se outros investimentos competitivos se acumularemrapidamente uns em relação aos outros. O ritmo da transformação nos sistemas de transporte ecomunicaçõesérestringidoporessasconsiderações.Elasnãopodemnecessariamenteseexpandirrápidoo bastante para acomodar as necessidades de quantidades continuamente aceleradas demovimento demercadoriasparanovasregiões.Asprópriasestruturasespaciaisfixasrequeridasparasuperaroespaçosetransformamembarreirasespaciaisaseremsuperadas.

Amesmaobservaçãoseaplicaàquelesarranjosinfraestruturaissociaiseorganizacionaisque,comovimosanteriormente,tendemaexibirumaestruturahierárquicaaninhada,caracterizadaportodosostiposde superposições e descontinuidades desordenadas, mas que podem vincular os aspectos locais eparticularescomosaspectosglobaiseuniversaisdotrabalhonocapitalismo.Naverdade,grandepartedaaparentedesordenaçãodessesarranjosrefleteofatodequeelesestãocontinuamenteemprocessodetransformação.Por exemplo, o aumentodramáticonovolumedo comércio internacional eno fluxodecapitalcolocaumaenormepressãosobreosistemamonetárioefinanceirointernacional.Foramcriadosníveistotalmentenovosdentrodahierarquia(bancoscentraiseinstituiçõesmonetáriasinternacionais),esurgiram novas relações de poder entre os níveis. De modo similar, as companhias multinacionaistatearamembuscadenovasformasdeorganizaçãoparaenfrentarcircunstânciasqueestãoemcontínuamudança.Ossistemaspolíticoseadministrativostambémestãosemprepressionadosparaagir.

No entanto, essas estruturas hierárquicas não se adaptam instantaneamente às necessidades docapitalismo. Para começar, cada conjunto de instituições se adapta à luz dos interesses particularesdaqueles que as dirigem, assim como em resposta à pressão interna. As corporações multinacionaisatuamparagarantiroacessoamatérias-primas,aosmercadoseàforçadetrabalho;procuramcobriroespaço e excluir a competição; e estão interessadas tanto na monopolização quanto na coordenaçãoparticular das exigências globais. Uma vez em posição de administrar a escassez, elas podemsimplesmente organizar o comércio internacional e até mesmo todos os padrões de desenvolvimentogeográficodesigualemseupróprio interesseestreitamentedefinido.Éprovávelqueusemoseupoderpara roubar e enganar os outros para obter deles omáximo demais-valor. Omesmo é verdade comrespeitoaosbanqueiros(emqualquernívelnahierarquia),políticos,administradoresetc.Aapropriaçãodessetipoatrapalhaascoordenaçõesepodenecessitardacriaçãodecamadassempremaisnovasdentrodahierarquiaparadisciplinarasoutras.

Mesmo quando não sucumbem à pura venalidade, os administradores dentro desse sistemahierárquico em geral possuem poder suficiente para influenciar tanto o ritmo quanto a direção daexpansãogeográfica. Isso é particularmenteverdadeiro com relação às vastas empresas, às principaisinstituiçõesfinanceiraseaoEstado,quetêmopodernominaldeconterosfluxosdecapitaledeforçadetrabalhosegundoosinteressesdaaliançaterritorialqueosregulamenta.AcompetiçãoentreosEstados(ououtrasunidades)ouaslutasdepoderentreosníveisdentrodahierarquiatêmefeitosmarcantessobreospadrõesdedesenvolvimentodesigual.Alémdisso,asestruturashierárquicasnãosão independentesumasdasoutras:porexemplo,aevoluçãodascorporaçõesmultinacionaisdependeudenovosarranjos

Page 392: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

monetáriosinternacionaisedenovasformasdeintervençãodoEstado.Asintegraçõesimplicamqueaslutasdepodercomrelaçãoaquemvaiexercerquefunçãodecoordenaçãosejamendêmicas.Equeessaslutasdepodersejammuitasvezestravadascomtotaldesconsideraçãoàsnecessidadesdocapitalismoemgeral.

Mesmo se os abusos não existissem, a tensão básica entre a fixidez e a mobilidade – que gerouoriginalmente os arranjos hierárquicos – permaneceria não resolvida. A estabilidade dos arranjoscoordenadosé,afinal,umatributovitaldiantedodinamismoperpétuoeincoerente.Emalgummomento,atensãoentreosdoispodeexplodir.

Nesses momentos ocorre uma crise nos mecanismos de coordenação. As estruturas hierárquicasaninhadas têm de ser reorganizadas, racionalizadas e reformadas. Novos sistemas monetários, novasestruturaspolíticas,novasformasorganizacionaisparaocapital têmdesercriadas.Ascontraçõessãocom frequência dolorosas. Mas somente dessa maneira os arranjos institucionais que cresceramperdulários e gordos são colocados em uma relação mais estreita com as exigências básicas daacumulação. Se as reformas dão certo, as coordenações que absorvem a superacumulaçãomediante odesenvolvimento geográfico desigual pelo menos parecem possíveis. Se falham, o desenvolvimentodesigual resultante exacerba, emvez de resolver, as dificuldades. Segue-se uma crise global.A únicasolução é uma total reestruturação das relações dentro domodo de produção capitalista, incluindo osarranjosdecoordenaçãohierárquicos.

VI.ACONSTRUÇÃODASCRISESGLOBAISOdesenvolvimentoeaexpansãogeográficosdesiguaisnãopodemcurarascontradiçõesherdadaspelocapitalismo.Porisso,osproblemasdocapitalismonãopodemserresolvidospelamágicainstantâneadealgum “ajuste espacial”. Mas é importante reconhecer que mais crises gerais surgem do caos e daconfusãodoseventos locais,particulares.Elas sãoedificadas sobreabasedosprocessosde trabalhoindividuais concretos e das trocas domercado e se transformamem crises globais nas qualidades dotrabalhoabstrato,naformadovalor.Asrestriçõestemporaiseespaciaisaotempodegirogarantemqueváriasdiferenciações regionais sejamproduzidasno caminho.Por isso, as crises sãoproduzidaspelodesenvolvimentogeográficodesigual,coordenadasporformasorganizacionaishierárquicas.Eamesmaobservação se aplica aos impactos da desvalorização. Eles são sempre sentidos em locais e temposparticulares e são construídos em configurações regionais, setoriais e organizacionais distintos. Seusimpactospodemserdisseminadoseatécertopontomitigadospelodeslocamentodosfluxosdocapitaledo trabalhoentre setorese regiões (comfrequência simultaneamente)ouporuma reconstrução radicaldas infraestruturas físicas e sociais. As crises globais são produzidas pelo impacto de crises dedeslocamentomenostraumáticas.

Elas são formadas, portanto, como “violentas fusões de fatores desconectados que operamindependentemente um do outro, porém correlacionados”[24]. Para explorar mais concretamente esseprocesso de fusão, adotamos algumas suposições. Vamos supor que o globo esteja dividido emeconomias regionais que “operam independentemente, porém estão correlacionadas”. As regiões sãoconectadas por fluxos de capital e de força de trabalho sob a égide de arranjos organizacionaishierarquicamente estruturadosque sãoneutros com relação aos seus efeitos.Os ritmosda acumulaçãovariam de uma região para outra. No entanto, a tendência para a superacumulação e para adesvalorização é universal para todas as regiões. Por isso, cada região é periodicamente obrigada a

Page 393: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

buscaralgumatransformaçãoemsuasrelaçõesexternasquepossamaliviarodesconfortodascrisesdedesvalorizaçãodentrodesimesma.

Marxestavatotalmenteconscientedaexistênciadessassituações.Eleobserva,porexemplo,queemcondiçõesdesuperacumulaçãoosingleses“sãoobrigadosaemprestarseucapitalaoutrospaísesparapoder criar ummercado para suasmercadorias”, que o capital tem “de calçar botas de sete léguas”,romper barreiras espaciais e, assim, conseguir um “desenvolvimento das forças produtivas que sópoderiaseralcançadomuitolentamentedentrodeseuspróprioslimites”[25].Seascrisesvãoounãosedissipar ou ser criadas por intermédio dessesmecanismos torna-se o problema a ser resolvido. E asrespostassãotãovariadasquantoosmeiosabertosaoscapitalistasemumaregiãoparainvestiremseucapitalsuperacumuladoemoutra.Vamosabordarumapossibilidadedecadavez.

1.Mercadosexternosesubconsumo

Se o capital superacumulado na Grã-Bretanha é emprestado como ummeio de pagamento para aArgentina comprar as mercadorias excedentes produzidas na Grã-Bretanha, o alívio para asuperacumulação é na melhor das hipóteses efêmero e as perspectivas gerais para evitar adesvalorizaçãonegligenciáveis.Abuscadessaestratégiaassumequeascrisesdocapitalismo,quesãoparcialmentemanifestadascomoumaaparenteausênciadedemandaefetiva,sãointeiramenteatribuíveisaosubconsumo.Marxétãofirmeemsuarejeiçãodaversãointer-regionaldesseargumentoquantooédaoriginal.Tudooqueacontece,sugereele,équeosefeitosdasuperacumulaçãoproliferamsobreoespaçoduranteafasedeexpansãoestimuladapelocréditoesãoregistradoscomoumalacunacrescenteentreabalançacomercialeobalançodepagamentosentreasregiões.Quandoosistemadecréditodesmoronaevoltaàsuabasemonetária,comoMarxinsistequeeledevevoltar,asequênciadoseventosémodificadaporessesbalançosinter-regionais.Eledescreveumasequênciadaseguintemaneira:

Acrise pode semanifestar primeiro na Inglaterra, o país que adianta amaior parte do crédito e tomaomínimo, porque o balanço depagamentos[…]quedeveserrestabelecidaimediatamente,édesfavorável,aindaqueabalançageraldocomérciosejafavorável.[…]AquebranaInglaterra,iniciadaeacompanhadaporumadrenagemdoouro,restabeleceobalançodepagamentos.[…]Agorachegaavezdealgumoutropaís.[…]Emtemposdecrise,obalançodepagamentosédesfavorávelatodanação[…]massempreacadanaçãosucessivamente,comonotiroemmassa. […] Fica então evidente que todas essas nações simultaneamente exportaram em excesso (portanto, superproduziram) esuperimportaram(portanto,negociaramemexcesso),fazendocomqueospreçosfosseminfladosemtodoseles,eocréditofossemuitoestendido.Eomesmocolapsoocorreemtodaselas.

Oscustosdadesvalorizaçãoretornamàregiãoinicialdaseguintemaneira:

Primeiro embarcando para forametais preciosos; depois vendendomercadorias consignadas a preços baixos; exportandomercadoriaspara dispor delas ou obter adiantamentos de dinheiro por elas dentro do país; aumentando a taxa de juros, recorrendo ao crédito,depreciando os títulos, dispondo de títulos estrangeiros, atraindo capital estrangeiro para investimento nesses títulos depreciados, efinalmenteenfrentandoafalência,queresolveumasériedeobrigações.[26]

A sequência soa tristemente familiar. Evidentemente, aqui não há nenhuma perspectiva de “ajusteespacial”paraascontradiçõesdocapitalismo.Masomundoéclaramenteumlugarcomplicado,eporissoatémesmoaquisurgempossibilidadesquepodempelomenosadiarainevitabilidadedascrises.Porexemplo, se aArgentina tem reservas de ouro abundantes,mas a Inglaterra não temnenhuma, então oexcessodemercadoriasproduzidona Inglaterrapode ser pagoemespécie.Osbalanços sãomantidos

Page 394: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

pelastransferênciasinter-regionaisdeespécie.Issopodeatenuaroprocessodaformaçãodecrise.Masem longoprazo issopodenão termais efeito doque invocar os produtores deouro comoosgrandesestabilizadoresdoprocessodecirculaçãodocapitalcomoumtodo(verp.152-6).

Umapossibilidademaisintrigantesurgequandoocapitalismosetornaextremamentedependentedocomércio com formações sociais não capitalistas. Marx admite que é possível na verdade surgircircunstânciasemque“omododeproduçãocapitalistaestácondicionadoamodosdeproduçãosituadosem outro estágio de desenvolvimento”[27]. O grau de alívio assim permitido depende da natureza dasociedadenãocapitalistaedasuacapacidadeparaseintegrarnosistemacapitalistamedianteastrocasde mercadorias e dinheiro. Mas a formação da crise só é ativada se os países não capitalistas“consumiremeproduzirememumavelocidadequeseadapteaospaísescomproduçãocapitalista”[28].Ecomoissopodeserfeitosemoenvolvimentonapolíticaenaeconomiadedominaçãoimperialista?E,mesmoassim,hácontradiçõesenvolvidasque tornamessauma resolução temporária. “Vocênãopodecontinuarinundarumpaíscomseusprodutos,amenosqueelepossalhedaralgunsprodutosemtroca.”Porisso,“quantomaisointeresseindustrial(britânico)setornardependentedomercadoindiano,maiselevaisentiranecessidadedecriarpotenciaisprodutivosnovosnaÍndia,depoisde terdestruídosuaindústrianativa”[29].Nãosetratamaisdeumaquestãodebuscaralívioexternomedianteocomércio,masde forjar novos sistemas de produção baseados em novas relações sociais em novas regiões. Agoravamostratardiretamentedessaperspectiva.

2.Aexportaçãodecapitalparaaprodução

Ocapitalexcedenteemprestadoaumpaísestrangeirocomomeiodecompra(emvezdecomomeiodepagamento)contribuiparaaformaçãodenovasforçasprodutivasemoutrasregiões.Ummovimentoexternodessetipotemumarelaçãointeiramentediferentecomoprocessogeraldesuperacumulação.IssoestáemconformidadecomoargumentodeMarxdequeoproblemadarealizaçãosópodeserresolvidomedianteumaexpansãodaprodução.Masissosimplesmentetransfereosdilemasda“acumulaçãopelaacumulação, da produção pela produção” para outras regiões, ao mesmo tempo que intensifica asuperacumulaçãoemcasa.SegundoMarx,“seocapitaléenviadoparaoexterior,issonãoéfeitoporqueelenãopodeabsolutamenteseraplicadoemcasa,masporqueelepodeseraplicadocomumataxadejurosmaisaltaemumpaísestrangeiro”[30].Oefeitodissoéaumentarataxadelucromédio[31]eapressaratendênciaparaaquedadoslucrosemlongoprazo[32].Omesmoresultadoéalcançadoseaexpansãodaprodução no exterior barateia os elementos do capital constante e dos bens salariais no mercadodoméstico.Acomposiçãodevalordocapitaldeclinatemporariamenteeataxadeexploraçãoaumenta.Comoresultado,maiscapitalaindaéproduzido.

Osignificadodissoéquea superacumulaçãoemcasa sópode seraliviada seocapitalmonetárioexcedente(ouseuequivalenteemmercadorias)forenviadoparaoexteriorparacriarforçasprodutivasnovasemnovasregiõesemumabasecontinuamenteacelerada.Alémdisso,asforçasprodutivastêmdeser usadas de certa maneira para o capital ser reproduzido. As relações sociais apropriadas aocapitalismo–trabalhoassalariado–têmdeestaremvigoreseremcapazesdeumaexpansãoparalela.Porisso,aexpansãogeográficadasforçasprodutivassignificaaexpansãodoproletariadoemumabaseglobal. Voltamos à proposição (ver p. 233) de que as crises do capitalismo são menos intensas emcondiçõesdeumaumentorápidonaforçadetrabalho,pormeiodaacumulaçãoprimitivaoudoaumentonatural.Vamostratarbrevementedasprofundasimplicaçõesdisso.

Page 395: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Aexportaçãodas forçasprodutivas significaaexportaçãode todoopacotedomododeproduçãocapitalista,queincluiosmodosdedistribuiçãoeconsumo.Estapareceseraúnicamaneiraderesolveroproblema de superacumulação do capitalismo. Ele gera vários efeitos regionais, dependendo dasrelaçõesentreasregiõesedascondiçõesqueprevalecememcadaumadelas.

A destruição das formas pré-capitalistas da economia e da indústria pormeio da competição dasproduções de máquinas (auxiliadas por custos de transporte baratos) “obrigatoriamente converte” ospaísesemfornecedoresdematéria-prima.

Cria-se,assim,umanovadivisãointernacionaldotrabalho,adequadaàsprincipaissedesdaindústriamecanizada,divisãoquetransformauma parte do globo terrestre em campo de produção preferencialmente agrícola voltado a suprir as necessidades de outro campo,preferencialmenteindustrial.[33]

Contudo,seadivisãoterritorialdotrabalhopermanecerconstante,acirculaçãodocapitalvaiquasecertamentegerarcrisescíclicascadavezmaisprofundasnosfluxosdecapitale trabalhoentreelas.Aúnica solução é uma transformação adicional na divisão territorial do trabalho baseada em umaintensificaçãodomododeproduçãocapitalistananovaregião.MarxesperavaumatransformaçãodessetiponaÍndia:

Quando máquinas são introduzidas nos meios de transporte de um país que possui ferro e carvão, torna-se impossível impedi-las defabricá-las. […] O sistema ferroviário realmente se torna, na Índia, o precursor da indústria moderna [que] dissolve as divisõeshereditáriasdo trabalho, sobreaqual sebaseiamascastas indianas,aqueles impedimentosdecisivosaoprogressoeaopoder indianos.[…]Operíodoburguêsdahistória temdecriar abasematerialdonovomundo. […]A indústriaeocomércioburguesescriamessascondiçõesmateriaisdeumnovomundodamesmamaneiraqueasrevoluçõesgeológicascriaramasuperfíciedaterra.[34]

A transição antecipada foimuito adiadana Índia por ummisto de resistência interna à penetraçãocapitalistaedaspolíticasimperialistasimpostaspelosbritânicos.Entretanto,aquestãoteóricaéque,seessastransiçõesforembloqueadasporquaisquerrazões,acapacidadedopaísdeorigemparadispordecapitalsuperacumuladotambémestaráemlongoprazobloqueada.Oajusteespacialénegadoeascrisesglobaissãoinevitáveis.Ocrescimentoirrestritodocapitalismonasnovasregiões–imediatamentevêmàmente osEstadosUnidos e o Japão – é, portanto, uma absoluta necessidade para a sobrevivência docapitalismo. Estes são os campos em que os capitais excedentes superacumulados podem ser maisfacilmente absorvidos de maneira a criarem mais aberturas no mercado e mais oportunidades parainvestimentos lucrativos.Mas aqui encontramos outro tipo de dilema.As novas forças produtivas nasnovas regiões impõem uma ameaça competitiva à indústria do país de origem.Além disso, o capitaltendeasesuperacumularnanovaregião,queéobrigadaabuscarseupróprioajusteespacialparaevitardesvalorizaçõesinternas.

Adesvalorização,nãoimportadequetiposeja,éoresultado.Opaísdeorigemficaemumbecosemsaída. O desenvolvimento incontido do capitalismo em novas regiões causado pelas exportações decapitalproduzdesvalorizaçãonopaísdeorigemdevidoàcompetiçãointernacional.Odesenvolvimentocontidonoexteriorlimitaacompetição,masvedaasoportunidadesparamaisexportaçãodecapitale,portanto,estimulaasdesvalorizaçõesgeradasinternamente.Nãocausaespanto,então,queasprincipaispotências imperialistas tenhamvaciladoemsuaspolíticasentrea“portaaberta”,o livrecomércioeaautossuficiênciaemumimpériofechado[35].

Nãoobstante,dentrodessasrestriçõeshátodotipodeopções.A“missãohistórica”daburguesianãoé cumprida da noite para o dia, assim como as “condiçõesmateriais de um novomundo” não foram

Page 396: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

criadasemumdia.A intensificaçãoeadisseminaçãodocapitalismodependemdeuma transformaçãorevolucionáriacontínuaeprolongadaconseguidadurantegeraçõessucessivas.Emboraascriseslocais,regionais e cíclicas sejam coisas normais para a elaboração desse processo mediante umdesenvolvimentogeográficodesigual,aconstruçãodascrisesglobais–normalmenteexperimentadasdeiníciocomocrisescíclicasdeintensidadecrescente–dependedoesgotamentodaspossibilidadesparamaistransformaçãorevolucionáriaaolongodelinhascapitalistas.Eissonãodependedapropagaçãodenovas forças produtivas pela face da terra, mas da oferta de força de trabalho nova. E é para essaperspectivaquevamosnosvoltaragora.

3.Aexpansãodoproletariadoeaacumulaçãoprimitiva

Em todas as matizadas mudanças na divisão internacional do trabalho, na tecnologia e naorganização,enadistribuiçãodasforçasprodutivas,estáumaproposiçãomarxianabásica:aacumulaçãodo capital é o aumento do proletariado[36]. O ponto central do desacordo de Marx com Hegel, porexemplo,nãoéofatodeacolonizaçãonãopodersepermitiraliviartemporariamenteascontradiçõesdocapitalismo,masdeelasópoderfazê-loseestiveracompanhadadaacumulaçãoprimitiva.Aimportânciadoúltimocapítulodoprimeirolivrod’Ocapitalapareceagoracomforçaredobrada.Aacumulaçãodocapitaléoaumentodoproletariado,eissosignificaacumulaçãoprimitivadeumtipooudeoutro.

Masacumulaçãoprimitivaaparecesobmuitosdisfarces.Aspenetraçõesdasformasdedinheiroedocomércioexercemuma“influênciamaisoumenosdissolventeem todapartenaorganizaçãoprodutoraqueencontraàmãoecujasdiferentesformassãoconduzidasvisandoprincipalmenteovalordeuso”[37].Mas a forma do processo de trabalho e das relações sociais da produção resultantes variaconsideravelmente,dependendodascondiçõesiniciais.Orelato“clássico”daacumulaçãoprimitivaqueMarx apresenta n’O capital está aberto à repetição em outros lugares apenas namedida em que sãoencontradas condições mais ou menos paralelas. O próprio Marx reconheceu algumas das possíveisvariações. As colônias de plantação, dirigidas pelos capitalistas tendo por base o trabalho escravo,produziram para o mercado internacional e foram formalmente integradas ao capitalismo sem sebasearemnotrabalhoassalariado.

Nãoimportaoquãograndesejaoprodutoexcedente[extraído]dotrabalhoexcedentedeseusescravosnaformasimplesdealgodãooumilho, eles podemaderir a esse trabalho indiferenciado simples porqueo comércio internacional lhes permite converter esses produtossimplesemqualquertipodevalordeuso.[38]

Os modos de exploração nas sociedades tradicionais de base camponesa podem também serconvertidosem reinosde subsunçãomais formaldoque real aocapital.Todoodebate,queMarxemparte pressagiou, sobre omodo de produção asiático e a conversão direta dos poderes do estado emformasdecapitalismodeEstadocolocaumproblemasimilar.NemoqueMarxchamoude“ascolôniasperfeitas” – como “os Estados Unidos, a Austrália etc.” – não escapam de nuances sutis dentro daestruturageraldaacumulaçãoprimitiva.“Nessescasos”,dizMarx,

amassadoscolonosagrícolas,emboratragamcomelesumaquantidademaioroumenordecapitaldaterranatal,nãosãocapitalistasnemdesenvolvemumaproduçãocapitalista.Elessãomaisoumenoscamponesesquetrabalhamecujoprincipalobjetivo[…]éproduzirpara sua própria sobrevivência. […] Eles são, e continuam a ser por um longo tempo, concorrentes dos fazendeiros que já estãoproduzindodeumamaneiramaisoumenoscapitalista.[39]

Page 397: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Aqui, o regime capitalista choca-se por toda parte contra o obstáculo do produtor, que, comopossuidor de suas próprias condições detrabalho,enriquececomseuprópriotrabalho,enãoaocapitalista.Acontradiçãodessesdoissistemaseconômicosdiametralmenteopostosseefetivaaqui,demaneiraprática,na luta entre eles.Ondeocapitalista é respaldadopelopoderdametrópole, eleprocuraeliminar àforçaomododeproduçãoeapropriaçãofundadonotrabalhoindependente.[40]

Demora muitas gerações até o trabalhador ficar totalmente “livre” como um simples trabalhadorassalariado. Há muitos passos intermediários nessa evolução, muitas formas intermediárias que asrelaçõessociaisdaproduçãopodemadquirir.Ecadaumapagaoseutributoaocapitalnaformadepelomenos um excedente do produto.Mas quando o poder revolucionário do capitalismo ganha força, asformas intermediárias dão lugar ao trabalho assalariado puro e simples.Novos ciclos de acumulaçãoprimitiva ocorrem e corroem as relações sociais da produção conseguidas nos ciclos precedentes. Odesenvolvimentogeográficodesigualdesseprocessoestálavradonosanaisdahistóriahumanaemletras“desangueefogo”.Aviolentaeepisódicalutadeguerrilha,travadaemumterrenoextremamentevariadoe sob todosos tiposde condições sociais, explodeperiodicamente emgrandes confrontações entreosrepresentantesde sistemaseconômicosopostos.Assimé ageografia social ehumanadonovomundo,criadaparaseadaptaràsnovascondiçõesmateriaisestabelecidas.

Masquandoocapitalismoesgotaaspossibilidadesdeacumulaçãoprimitivaàcustadasformaçõessociais pré-capitalistas e intermediárias, ele temde buscar emoutros locais fontes novas de força detrabalho. No fim só lhe resta um lugar para ir. Tem de canibalizar a si mesmo. Alguns capitalistas,embora permaneçam nominalmente no controle de seus próprios meios de produção, tornam-seformalmentesubordinadosaoutroscapitalistas–principalmenteviaosistemadecrédito,mas tambémmediante padrões de subcontratação vinculada a empresas maiores ou dependência das fontes deabastecimento monopolistas. Outros são obrigados a entrar diretamente no proletariado, às vezes emtempoparcialeàsvezesemtempointegral,devidoaoacirramentodacompetiçãoeàfalência.Outrascamadas dentro da burguesia também perdem sua independência anterior e se tornam simplestrabalhadoresassalariados,emborabemgraduadodentrodeumsistemahierárquico.

Evidentemente,Marxestavabastanteconscientedequeoscapitalistastendiamaserproletarizados,masconcentrousuaatençãoprincipalmentenasfasesdedesvalorizaçãoquesãosempre,emumgrauououtro, fases de acumulação primitiva à custa de capitalistas já existentes[41]. O aprofundamento e aampliaçãodascrisesemconfiguraçõesglobaistransformamastendênciascanibalísticasdocapitalismoemmuitosmodosdedestruiçãomutuamenteassegurados,quesãoperiodicamentedesencadeadoscomoaformafinaldadesvalorização.

4.Aexportaçãodadesvalorização

Em épocas de forte desvalorização, as rivalidades inter-regionais tipicamente degeneram em lutassobre quem vai arcar com a carga da desvalorização. A exportação do desemprego, da inflação, dacapacidadeprodutivaociosatornam-seasapostasnojogo.Guerrascomerciais,dumping,guerrasdetaxade juros, restrições ao fluxo de capital e ao comércio exterior, políticas de imigração, conquistascoloniais, subjugação e dominação das economias tributárias, reorganização forçada da divisão dotrabalho dentro dos impérios econômicos e, finalmente, destruição física e desvalorização forçada docapital de um rival mediante a guerra, são alguns dos métodos utilizados. Cada um deles envolve amanipulação agressiva de algum aspecto do poder econômico, financeiro ou estatal. A política doimperialismo, a percepção de que as contradições do capitalismo podem ser curadas mediante a

Page 398: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

dominaçãodomundoporalgumpoderonipotente,surgenalinhadefrente.Osmalesdocapitalismonãopodem ser tão facilmente contidos. Mas a degeneração das lutas econômicas em lutas políticasdesempenhaoseupapelnaestabilizaçãoemlongoprazodocapitalismo,contantoquecapitalsuficientesejadestruídonocaminho.Opatriotismoeonacionalismotêmmuitasfunçõesnomundocontemporâneoepodemsurgirpordiversasrazões;mas,emgeral,proporcionamumacoberturamuitoconvenienteparaa desvalorização tanto do capital quanto do trabalho. Retornaremos brevemente a esse aspecto daquestão,poiseleé,acredito,aameaçamaisséria,nãoapenasàsobrevivênciadocapitalismo(oquenãotemamínimaimportância),masàsobrevivênciadaespéciehumana.

VII.IMPERIALISMOMarxnuncapropôsuma teoriado imperialismo.Elepresumivelmente iriaconfrontaro temaemlivrossobreoEstado,ocomércioexterioreomercadomundial[42].Naausênciadessasobrasacabamostendodeespecularsobrecomoelepodeterintegradoostemasdoimperialismo,tãoevidentesnahistóriadocapitalismo,comateoriadaacumulação.

Os estudos sobre o imperialismo escritos desde Marx têm contribuído muito para o nossoentendimentodahistória,mastemsidodifícilinserirseusachadosnaestruturateóricadopróprioMarx.O resultado tem sido a construção não de uma teoria do imperialismo, mas de uma série derepresentações sobre o assunto[43]. Quando diretamente fundamentados no pensamento de Marx, elestendem a apelar apenas para um ou outro aspecto – a busca pormercados externos, a exportação decapitais excedentes, a acumulação primitiva, o desenvolvimento geográfico desigual etc. – em vez deparaumateoriacomoumtodo.EmoutroscasosdeclaramiralémdeMarxeretificaromissõesesupostoserros.Grande parte dessa literatura é poderosa e persuasiva.Constitui um testemunho comovente dasdepredações forjadas em nome do progresso humano por um capitalismo predador. Também capta aimensacomplexidadee riquezada interaçãohumanaquandodiferentespovosdomundocomhistórias,culturas e modos de produção igualmente diversos são massificados em uma unidade vergonhosa eopressivasobabandeiradaleidovalorcapitalista.

As imagensdominantesnessa literaturaunemdramaticamenteos temasda exploração edo “ajusteespacial”.Oscentrosexploramasperiferias, asmetrópolesexploramas terrasdo interior,oprimeiromundosubjugaeexplorasemmisericórdiaoterceiro,osubdesenvolvimentoéimpostodeforaeassimpordiante.Alutadeclasseséresolvidanalutadeformaçõessociaisperiféricascontraafontecentraldaopressão.O campo se revolta contra a cidade, a periferia contra o centro, o terceiromundo contra oprimeiro. Essas imagens espaciais são tão poderosas que fluem livremente para a interpretação dasestruturas atémesmonoâmagodocapitalismo.O subdesenvolvimento regionalnospaíses capitalistasavançadosévistocomoumprocessodeexploraçãocoerentedasregiõesporumametrópoledominante,ela própria mantendo guetos como “neocolônias internas”. A linguagem d’O capital parece sersubstituídaporumaimagemigualmenteirrefutáveldaexploraçãodaspessoasdeumlugarpelasdeoutro.

Odesafioéreconstituiroqueporvezesaparececomolinhasdepensamentoantagônicaseintegrá-lasemumaestruturaúnicadereferênciateórica.Damaneiracomoasituaçãoatualseapresenta,osvínculosouestãobaseadosnaemoção,baseadosnoapeloaosfatosdaexploração,ouentãoestãoprojetadosnosmaisaltosplanospossíveisdaabstração,concebendooimperialismocomoaconfrontaçãoviolentaentreocapitalismoeoutrosmodosdeprodução(oudeformaçõessociais),queentãosetornam“articulados”uns sobre os outros em configurações particulares em diferentes locais e épocas, dependendo do

Page 399: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

resultado das lutas travadas. A terceira abordagem, que tanto Rosa Luxemburgo quanto Lenincompartilham,éenxergaroimperialismocomoaexpressãoexterna,dominanteemumestágioparticularnahistóriadocapitalismoeatingidosobaégidedocapitalismofinanceiro,dascontradiçõesinternasàsquaisocapitalismoestá sistematicamentepropenso.Essesautoresapelamdiretamenteparaa ideiado“ajuste espacial”,mas explicamanegligência deMarx em relação ao tópico simplesmente comoumaquestão de que a história obsoletou o mestre. Nenhuma dessas abordagens é muito satisfatória. OimperialismoestavavivoeprósperonaépocadeMarxefoifrequentementeobjetodecomentáriosemseus escritos populares[44], enquanto a ideia dos modos de produção entrecruzados e conflitantes élançada, embora de ummodo preliminar, nosGrundrisse. Portanto, a teoria da acumulação deMarxprecisa ainda ser estendida para abarcar as diversas teorias daqueles que procuram representar aexperiênciahistóricadaexploraçãopormeiodoimperialismo.Nãopossoassumiressedesafioaquiemtodaasuaplenitude.Masorelatoumpoucomaismatizadodadinâmicaespacialdocapitalismo,comofoi apresentado nos últimos capítulos, pode ajudar a definir uma base material dentro da teoria daacumulaçãoparamuitodoqueéaceitocomoimperialismo.

Opontocentralqueprocureienfatizarnosdoisúltimoscapítuloséodaproduçãodasconfiguraçõesespaciaisemummomentoconstitutivonecessariamenteativonadinâmicadaacumulação.Aformadasconfiguraçõesespaciaiseosmeiosparaadestruiçãodoespaçopelotemposãotãoimportantesparaoentendimentodessasdinâmicascomoosmétodosmelhoradosdecooperação,ousomaisestendidodasmáquinasetc.Todosessesaspectostêmdeserassimiladosdentrodeumaconcepçãoampladamudançatecnológicaeorganizacional.Comoestaúltimaéoeixoemtornodoqualgiraaacumulação,assimcomoonexodoqual fluemascontradiçõesdocapitalismo,entãoasexpressõesespaciaise temporaisdessadinâmicacontraditóriasãodeigualimportância[45].

Nós jávimosqueasconfiguraçõesespaciaissãoproduzidase transformadasmedianteasvariadasmobilidadesdediferentestiposdecapitaleforçadetrabalho(incluindoomovimentodocapitalatravésde infraestruturas sociais e físicas imóveis). As complementaridades e os antagonismos dentro daunidadenecessáriadessasmobilidadesproduzemumpanorama irregular, instável e repletode tensõesparaaprodução,atrocaeoconsumo.Asforçasdeconcentraçãosecontrapõemàquelasdadispersãoeproduzem centros e periferias que as forças da inércia podem transformar em aspectos relativamentepermanentes dentro da economia de espaço do capitalismo.A divisão do trabalho assume uma formaterritorial e a circulação do capital sob as restrições espaciais assume configurações regionalmenteconfinadas.Estas proporcionamumabasematerial para as alianças de classe e entre as facções paradefenderemelhorarovalornomovimentodentrodeumaregião.Namedidaemquea lutadeclassesproduz um terreno de compromisso entre o capital e o trabalho dentro de uma região, amão de obraorganizada pode correr em apoio a essas alianças para proteger os empregos e os privilégios jáconquistados. Portanto, a regionalização da circulação do capital é acompanhada e reforçada pelaregionalizaçãodoconflitodeclasseeentreasfacções.

Ahomogeneidade,emdireçãoàqualtendealeidovalor,contémsuapróprianegaçãonoaumentodadiferenciaçãoregional.Surgementãotodosostiposdeoportunidadesparaacompetiçãoeparaatrocadesigualentreas regiões.Concentraçõesmaciçasdepodereconômicoepolíticodentrodeumaregiãopodem se tornar uma base para a dominação e a exploração de outras pessoas. Sob a ameaça dedesvalorização,cadaaliançaregionalprocurausarasoutrascomoummeioparaaliviarseusproblemasinternos. A luta sobre a desvalorização assume uma feição regional.Mas com isso as diferenciaçõesregionais tornam-se instáveis.Além disso, asmobilidades variadas do capital e da força de trabalho

Page 400: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

tendem a corroer as próprias estruturas regionais que eles ajudaram a criar. As alianças regionaissoçobram na rocha da competição internacional e do impulso para igualar a taxa de lucro(particularmentesobreocapitalmonetário).Alutaparareduzirotempodegiroreordenaasdistânciasrelativasedesconsideraasfronteirasregionais,que,detodomodo,estãoextremamenteporosas(mesmoquandopatrulhadasporfuncionáriosdaalfândegaedaimigração).Equandoadesvalorizaçãosetornaameaçadora,oselementos individuais tantodocapitalquantodo trabalhopodemcorrer tão facilmenteparaosportossegurosquantopermanecernolugarelutarparaexportaroscustosparaoutrasregiões.

O resultado é um caos de movimentos confusos e desordenados rumo à homogeneidade e àdiferenciaçãoregional.Organizaçõeshierarquicamenteestruturadas–dosistemafinanceiroepolíticoemparticular–sãoessenciaisparaadesordemsercontida.Essasorganizações,emboratotalmentecarentesem termosde efeito criativodireto, tipicamente concentramum imensopoder repressivo– financeiro,político e militar – em seus escalões mais altos. Esses poderes podem ser usados para aumentardiretamente a taxa de exploração (principalmente por meio do posicionamento estratégico do braçorepressivo do aparato do Estado) ou para redistribuir omais-valor já produzido entre as facções ouregiões. A luta pelo controle dos centros estratégicos dentro do Estado, o sistema monetáriointernacional,asinstituiçõesdecapitalfinanceiroetc.sãoumapreparaçãovitalparaocasodequalquerfacçãoouregiãodecidirinspecionaroscustosdedesvalorizaçãoemrelaçãoaalgumaoutra.

É claro que o imperialismo é mais do que isso. No entanto, muito do que se reconhece comoimperialismosebaseianarealidadedaexploraçãodaspessoasdeumaregiãopelasdeoutra,sobaégidedealgumpodersuperior,dominantee repressivo.Mostramosagoraqueessa realidadeestácontidanapróprianoçãodoprópriocapital.Há,então,umabasematerialparaaperpetuaçãoeareconstituiçãodepreconceitostradicionais,derivalidadesregionaisenacionaisdentrodeumaestruturaemevoluçãododesenvolvimento geográfico desigual. Podemos também entender a formação de alianças dentro dasregiões, a luta pelo controle de instituições hierarquicamente ordenadas e as confrontações violentasperiódicasentreasnaçõeseasregiões.Entretanto,dizerqueháuma“basematerial”paraessefenômenonacirculaçãodocapitalnãoéafirmarquetudoalipodeserentendidodomesmomodo.Nemsignificaque esses fenômenos – mesmo quando conseguem um relativo equilíbrio entre a homogeneidade e adiferenciação regional, entre a concentração e a dispersãogeográfica–proporcionamumabase firmeparaafuturaacumulaçãodecapital.Naverdade,nãoédifícillocalizarumacontradiçãofundamental.Osprocessos descritos permitem que a produção geográfica de mais-valor divirja da sua distribuiçãogeográficadeumamaneiramuitoparecidacomaseparaçãoentreaproduçãoeadistribuiçãosocial.Damesmaformaque,comojávimos,adissonânciaentreaproduçãoeadistribuiçãoéumadasrochasnaqualsoçobraacirculaçãocontínuadocapital,podemoscomsegurançaconcluir,comMarxeLenin,queabase para a formação da crise é ampliada e aprofundada pelos processos que aqui descrevemos. Emresumo,nãohá“ajusteespacial”quepossaconteremlongoprazoascontradiçõesdocapitalismo.

VIII.RIVALIDADESINTERIMPERIALISTAS:AGUERRAGLOBALCOMOUMAFORMADEDESVALORIZAÇÃODuasvezesnoséculoXXomundoimergiunumaguerraglobaldevidoarivalidadesinterimperialistas.Duas vezes no espaço de uma geração omundo experienciou a desvalorizaçãomaciça do capital pormeiodadestruiçãofísica,daextinçãofinaldaforçadetrabalhocomobuchadecanhão.Alutadeclasses,

Page 401: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

é claro, pagou o seu tributo à custa da sua integridade física e da sua vida, principalmente devido àviolência diária que o capital impunha ao trabalhador no local de trabalho, e devido à violência daacumulação primitiva (incluindo as guerras imperialistas travadas contra outras formações sociais emnome das “liberdades” capitalistas). Mas o enorme número de perdas incorridas nas duas guerrasmundiaisfoiprovocadoporrivalidadesinterimperialistas.Comoissopodeserexplicadotendoporbaseuma teoria que apela para a relação de classe entre o capital e o trabalho como fundamental para ainterpretaçãodahistória?

Este foi, é claro, oproblemaqueLenin enfrentou emseu ensaio sobreo imperialismo.Maso seuargumento,comovimosnocapítulo10,estárepletodeambiguidades.Ocapitalfinanceiroénacionalouinternacional?Qualéarelação,então,entreoposicionamentoestratégicomilitarepolíticodopoderdoEstado e a indubitável tendência dentro do capitalismo para criar formas multinacionais e forjar aintegraçãoespacialglobal?Eseosmonopólioseocapitalfinanceiroeramtãopoderososepropensosaconspirar em qualquer situação, por que não conseguiam conter as contradições do capitalismo semdestruirumaooutro?Oqueentãotornaasguerrasinterimperialistasnecessáriasparaasobrevivênciadocapitalismo?

O“terceirorecorte”nateoriadacrisesugereumainterpretaçãodasguerrasinterimperialistascomomomentos constitutivos na dinâmica da acumulação, em vez de aberrações, acidentes ou o simplesprodutodeambiçãoexcessiva.Vamosvercomoissoacontece.

Quandoa“dialéticainterna”emaçãodentrodeumaregiãoadirecionaparabuscarsoluçõesexternaspara seus problemas, ela precisa sair à procura de novos mercados, de novas oportunidades para aexportaçãodecapital,matérias-primasbaratas,mãodeobradebaixocustoetc.Todasessasmedidas,paraseremalgoalémdeumpaliativotemporário,oucolocamaresponsabilidadesobreotrabalhofuturoouenvolvemdiretamenteumaexpansãodoproletariado.Essaexpansãopodeserrealizadapormeiodocrescimentodapopulação,damobilizaçãodesetoreslatentesdoexércitodereservaoudaacumulaçãoprimitiva.

Ainsaciávelsededocapitalismoporofertasnovasdetrabalhoéresponsávelpelovigorcomqueeletem buscado a acumulação primitiva, destruindo, transformando e absorvendo as populações pré-capitalistasondequerqueasencontre.Quandoosexcedentesdetrabalhoestãodisponíveisparaseremtomados, e os capitalistas, pormeio da competição, não confinaram seus destinos a uma combinaçãotecnológica que não pode absorver essa força de trabalho, então as crises são tipicamente de curtaduração,meros contratempos em uma trajetória geral de acumulação global sustentada, e em geral semanifestam como leves crises cíclicas dentro de uma estrutura em evolução do desenvolvimentogeográfico desigual. Esse era o preço padrão para o capitalismo do século XIX. Os verdadeirosproblemas têm início quando os capitalistas, enfrentando escassez de oferta demão de obra e comosempre estimulados pela competição, induzem o desemprego mediante inovações tecnológicas queperturbamoequilíbrioentreaproduçãoearealização,entreasforçasprodutivaseasrelaçõessociaisque as acompanham. O fechamento das fronteiras para a acumulação primitiva, devido ao puroesgotamentodaspossibilidades,aumentandoaresistênciaporpartedaspopulaçõespré-capitalistasouamonopolização por parte de algum poder dominante, tem, por isso, uma enorme importância para aestabilidadeemlongoprazodocapitalismo.Essafoiagrandemudançaquecomeçouasercadavezmaissentida enquanto o capitalismo ingressava no séculoXX. Foi a grandemudança que,muitomais queascensãodasformasmonopolistaoufinanceiradocapitalismo,desempenhouopapelcrucialempurrandoocapitalismocadavezmaisfundonolododascrisesglobaiseconduziu,inexoravelmente,aostiposde

Page 402: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

acumulaçãoprimitivaedesvalorizaçãoconjuntamenteforjadospormeiodasguerrasintercapitalistas.Como sempre, os mecanismos são intrincados em seus detalhes e extremamente confusos nas

conjunturas históricas reais devido a inúmeras contracorrentes de forças conflitantes. Mas podemosconstruirumalinhadeargumentaçãosimplesparailustrarospontosimportantes.Paraqueoprocessodaacumulaçãocontinue,qualqueraliançaregionaldevemanteroacessoàsreservasdetrabalhoetambémàquelas “forças da natureza” (como recursosminerais importantes) que, do contrário, estão sujeitas àmonopolização. Poucos problemas surgem se existem reservas de ambas na região em que circula amaiorpartedocapital local.Quandoas fronteiras internas se fecham,ocapital temdeprocuraroutrolugaroucorreroriscodedesvalorização.Aaliançaregionalsenteoestresseentreocapitalincorporadonolocaleocapitalquesemoveparacriarcentrosnovosepermanentesdeacumulaçãoemoutrolugar.Oconflito entre diferentes capitais regionais e nacionais sobre o acesso às reservas de trabalho e aosrecursosnaturaiscomeçaasersentido.Os temasde internacionalismoemultilateralismoseacumulamduramentecontraodesejodeautossuficiênciacomoomeioparapreservaraposiçãodealgumaregiãoparticulardiantedascontradiçõesinternasepressõesexternas–autossuficiênciadotipoqueprevalecianadécadade1930,quandoaGrã-BretanhaseamparouemseucomérciodoCommonwealtheoJapãoseexpandiu para aManchúria e aÁsiaContinental, aAlemanha para o Leste Europeu e a Itália para aÁfrica, colocando diferentes regiões uma contra a outra, cada uma buscando o seu próprio “ajusteespacial”. Somente os Estados Unidos acharam apropriado buscar uma política de “porta aberta”fundamentadanointernacionalismoenocomérciomultilateral.Nofim,aguerrafoitravadaparaconteraautossuficiência e abrir o mundo todo para as potencialidades da expansão geográfica e para odesenvolvimentodesigualilimitado.Essasolução,buscadaunilateralmentesobahegemoniadosEstadosUnidos após 1945, tinha a vantagem de ser sobreposta a um dos mais selvagens episódios dedesvalorizaçãoedestruiçãojamaisregistradosnaviolentahistóriadocapitalismo.Eosextraordináriosbenefíciosresultaramnãoapenasdaimensadestruiçãodocapital,mastambémdadistribuiçãogeográficadesigualdessadestruição.Omundofoisalvodosterroresdagrandedepressão,nãoporalgumglorioso“newdeal”oupelo toquemágicodaeconomiakeynesiananoscofresmundiais,maspeladestruiçãoemortedaguerramundial.

Paraoobservadorexterno,o internacionalismoeomultilateralismodomundopós-guerraparecemsermuitodiferentes.Aliberdadeglobalparaomovimentodocapital(emtodasassuasformas)permitiuum acesso imediato ao “ajuste espacial” mediante a expansão geográfica dentro de uma estrutura dedestruição geográfica desigual. A rápida acumulação do capital nessa base conduziu à criação e, emalgunscasos,àrecriaçãodecentrosdeacumulaçãoregionaisindependentes–Alemanha,Japão,Brasil,México, Sudeste da Ásia etc. Alianças regionais são mais uma vez formadas e competem para acontraçãodasoportunidadesde lucro.Aameaçadaautossuficiênciaseagigantanovamente.Ecomelasurge a ameaça renovada da guerramundial, dessa vez travada com armas de imenso e insano poderdestrutivo,edirecionadaparaaacumulaçãoprimitivaàcustadoblocosocialista.

Osmarxistas,desdeaprimeiravezqueRosaLuxemburgoescreveusobreoassunto,hámuitovinhamsendoatraídospelaideiadosgastosmilitarescomoummeioconvenienteparaabsorverosexcedentesdecapital e da força de trabalho. A obsolescência instantânea dos equipamentos militares e a fácilmanipulação das tensões internacionais em uma demanda política pelo aumento nos gastos da defesaadicionambrilhoàideia.Acredita-seporvezesqueocapitalismoéestabilizadomedianteoorçamentoda defesa, embora privando a sociedade de programas mais humanos e socialmente meritórios.Infelizmente,essalinhadepensamentoétraçadasegundoomoldesubconsumista.Eudigo“infelizmente”,

Page 403: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

nãotantoporqueessainterpretaçãoestejaerrada,masporqueapresenteteoriasugereumainterpretaçãomais sinistra e aterrorizante dos gastosmilitares: as armas não apenas devem ser compradas e pagaspelosexcedentesdecapitale trabalho,masdevemserpostasemuso.Poisesseéoúnicomeioqueocapitalismotemàsuadisposiçãoparaconseguirosníveisdedesvalorizaçãoagorarequeridos.Aideiaéapavoranteemsuasimplicações.Quemelhorrazãopoderiahaverparasedeclararquechegouahoradeocapitalismodesaparecerparaabrircaminhoaalgummododeproduçãomaissaudável?

[1]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.591,eLivroII,p.470.

[2]Ibidem,LivroI,cap.25.

[3]Ibidem,p.787.

[4]G.W.F.Hegel,PhilosophyofRight(Oxford,OxfordUniversityPress,1967),p.149-52.

[5]ShlomoAvineri(Hegel’sTheoryof theModernState,Londres,CambridgeUniversityPress,1972,cap.7) resumeoargumentogeral,enquanto Albert Hirschman (“On Hegel, Imperialism, and Structural Stagnation”, Journal of Development Economics, 1976 [ed. bras.:“SobreHegel, imperialismoe estagnaçãoestrutural, emAlmanaque,Brasiliense, n. 9, 1979]) justapõe uma interpretação do argumento deHegelaumainterpretaçãoumtantoimpertinentedeMarx.

[6]KarlMarx,Capital,LivroII,cit.,p.408.

[7]Ibidem,LivroIII,p.820.

[8]QuandoMarxdeclarouemumdoscomentáriosfinaisaOcapital(LivroI,p.91)quehaviachegadoaumacordocomHegel“háquasetrintaanos”,oqueeletinhaemmenteeraasuaCríticaàFilosofiadoDireitodeHegel.A“Introdução”deO’Malleyaestaúltimaobraémuitoútil.EledeclaraquealeituradeMarxdosPrincípiosdaFilosofiadoDireitodeHegelacompanhouMarxemgrandepartedasuavidaintelectualsubsequente.

[9]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.237-9.

[10] A literatura sobre o imperialismo é imensa. Para levantamentos, ver Michael Barratt-Brown, The Economics of Imperialism(Harmondsworth,PenguinBooks,1974),TomKemp,TheoriesofImperialism(Londres,Dobson,1967),eSamirAmin,ClassandNation,HistoricallyandintheCurrentCrisis(NovaYork,MonthlyReviewPress,1980).

[11]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.581.

[12]Idem,Grundrisse,cit.,p.334.

[13]EssaideiaestáfortementepresentenaobradePhilippeAydalot,Dynamiquespatialeetdéveloppementinégal,cit.

[14]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.;Grundrisse,cit.,cap.1.

[15]Ibidem,LivroII,p.250-1.

[16]Ibidem,LivroI,p.341.

[17]Ibidem,LivroIII,p.256.

[18]VerMichaelDeareAllenScott,UrbanizationandUrbanPlanninginCapitalistSociety,cit.;JohnCarney,RayHudsoneJimLewis,RegionsinCrisis,cit.

[19]Aquestãodecomoasburguesiasnacional,regionalelocalseformameagemnuncafoiclaramenteanalisadaapartirdeumaperspectivamarxista, excetodeumpontodevista puramentepolítico e estratégicodentrode algumaconcepçãogeral de lutade classes.Aquestão éprofundaerepletadecontrovérsias.ContribuiçõesrecentesdeTomNairn(TheBreak-upofBritain:CrisisandNeo-Nationalism,Londres,NLB,1977),HoraceDavis(TowardaMarxistTheoryofNationalism,NovaYork,MonthlyReviewPress,1978)eSamirAmin(ClassandNation,Historically and in theCurrent Crisis, cit.) têm abordado a questão demodomais amplo e provocado críticas vigorosas. Nãopretendoidentificarumarespostaplenaaoproblemacolocado.Querosimplesmenterevelarabasematerialdentrodalógicadaacumulaçãoparaalgunstiposdefaccionalizaçãoaolongodelinhasregionais.

[20] Hugo Radice, International Firms and Modern Imperialism, cit.; Christian Palloix, Les firmes multinationales et le procèsd’internationalisation,cit.,eL’internationalisationducapital,cit.

[21]A discussão deRenaudDulong (Les régions, l’État et la société locale, cit.) da organização do poder regional na França émuitointeressante.

Page 404: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

[22]DoreenMassey (“TheU.K. Electrical Engineering andElectronics Industries: the Implications of theCrisis for theRestructuring ofCapitalandLocationalChange”,emM.DeareA.Scott[orgs.],UrbanizationandUrbanPlanninginCapitalistSociety,cit.)exploraessaideiaemprofundidadecomreferênciaàsindústriasdeengenhariaeletrônicaeelétricadoReinoUnido.

[23]VerJohnCarney,RayHudsoneJimLewis,RegionsinCrisis,cit.,eonúmeroespecialdoJournaloftheUnionofRadicalPoliticalEconomics,1978,v.10,n.3.

[24]KarlMarx,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte3,p.120.

[25]Ibidem,p.122;Grundrisse,cit.,cap.3.

[26]Idem,Capital,LivroIII,p.491-2,517.

[27]Ibidem,LivroII,p.110.

[28]Ibidem,LivroIII,p.257.

[29]KarlMarxeFriedrichEngels,OnColonialism(NovaYork,InternationalPublishers,1972),p.52.

[30]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.256.

[31]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.436-7.

[32]Idem,Capital,LivroIII,cit.,p.237.

[33]Ibidem,LivroI,p.523.

[34]KarlMarxeFriedrichEngels,OnColonialism,cit.,p.85-7.

[35] O estudo de Lloyd Gardner,Economic Aspects of NewDeal Diplomacy (Madison, University ofWisconsin Press, 1964), sobre adiplomaciadoNewDealporpartedosEstadosUnidoscaptamuitobemaessênciadesseconflito.

[36]KarlMarx,Ocapital,LivroI,cit.,p.614.

[37]Ibidem,LivroIII,p.331-2;Grundrisse,cit.,p.224-5.

[38]Idem,TheoriesofSurplusValue,cit.,parte2,p.302-3,parte3,p.243.

[39]Ibidem,parte2,p.202-3.

[40]Idem,Ocapital,LivroI,cit.,p.835.

[41]Idem.

[42]KarlMarxeFriedrichEngels,SelectedCorrespondence,cit.,p.112-3.

[43]VernovamenteasanálisesdeMichaelBarratt-Brown,TheEconomicsofImperialism,cit.,TomKemp,TheoriesofImperialism,cit.,eSamirAmin,ClassandNation,HistoricallyandintheCurrentCrisis,cit.

[44]VerKarlMarxeFriedrichEngels,OnColonialism,cit.

[45]Os escritos sobre as crises, como aqueles analisados por ErikOlinWright (Class, Crisis and the State, cit.) eAnwar Shaikh (“AnIntroduction to theHistoryofCrisisTheories”, cit.), com frequêncianegligenciam totalmente adimensãogeográficaoua tratamcomoumapêndice,enquantoosescritossobreoimperialismosãoemgeralcuriosamenteingênuosemsuaconcepçãodecomoascrisesseformameseproliferamdentrodeumaestruturadedesenvolvimentodesigual.LateCapitalism(Londres/AtlanticHighlands,NLB/HumanitiesPress,1975[ed.bras.:O capitalismo tardio, São Paulo,Abril Cultural, 1982]) de ErnestMandel eAccumulation on aWorld Scale (cit.) deAmin,emboralongedeseremperfeitos,têmavirtudedemanterosaspectosgeográficosbemàvista.

Page 405: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Epílogo

Uma obra desse tipo não admite conclusão. O modo de pensar dialético, pelo menos como eu ointerpreto,excluiofechamentodoargumentoemqualquerpontoparticular.Asconfiguraçõesintrigantesdascontradiçõesinternaseexternas,quecomenteinaIntrodução,obrigamoargumentoaseestendercadavezmais a todosos tiposdenovos terrenos.Oaparecimentodenovasquestões a serem respondidas,novoscaminhosaseremseguidospelainvestigação,provocasimultaneamenteareavaliaçãodeconceitosbásicos–comoodevalor–,aeternareformulaçãodoaparatoconceitualusadoparadescreveromundo.Talvez o insight mais extraordinário que se possa obter de um estudo cuidadoso de Marx seja aintrincadafluidezdopensamento,aeternacriaçãodenovasaberturasdentrodocorpodeseusescritos.Portanto,éestranhoqueos filósofosburgueses frequentementedescrevamaciênciamarxistacomoumsistema fechado, não receptivo a procedimentos de verificação comos quais eles buscam fechar suasprópriashipótesescomoverdadesuniversaiseincontestáveis.Eéestranhotambémquemuitosmarxistasconvertam compromissos profundamente arraigados e intensamente experimentados em dogmatismodoutrinário, tão fechados a novas aberturas quanto os modos de pensamento burgueses tradicionais,quandoaprópriaobradeMarxnegatotalmenteessefechamento.

Na verdade, cada fim deve ser encarado como um novo início. É difícil para os simplesmortaisaceitaressaverdade,quedirálutaroujogarcomsuasimplicaçõesdemaneirascriativas.Infelizmente,como observou o próprioMarx, “não há caminho real para a ciência”, e é na verdade uma “subidafatigante”até se alcançaros “cumes luminosos”doconhecimento.Emborapotencialmente infinito, elenãoé,noentanto,umarededeargumentoscontínuaquebuscamosdesfiar.Formas indistintasemergemdassombrasiniciaisdamistificaçãoeassumemumaformamaisfirmequandoosdiferentesaspectossãoiluminadosdenovosângulos,estudadosapartirdaaberturadenovas“janelas”conceituais.Estálongedeserumconjuntoderelacionamentosinformesquepassamosadiscernir.Massecadafiméuminício,entãoosesforçosdaspáginasprecedentesdevemnosconduziraconsiderarnovoscaminhos,construirnovosconceitoseexplorarnovosrelacionamentos.OpropósitodesteEpílogoélevantaressasquestões.

A mercadoria fundamental para a produção de mais-valor, a força de trabalho, é ela própriaproduzida e reproduzida em relações sociais sobre asquaisos capitalistasnão têmcontroledireto.Éestranho que Marx não tenha se detido mais de perto nesse paradoxo em todas as suas múltiplasdimensões.Evidentemente, hámais coisas aí implicadasdoqueuma simples exploraçãodas relações

Page 406: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

entre os ritmos temporais do crescimento geográfico em diferentes regiões e a dinâmica espacial daacumulação, embora esse fosse um ponto de partida proveitoso, pois a acumulação em longo prazosemprepressupõeumaexpansãodoproletariado.Entretanto,nuncadevemosnosesquecerque,emboraaforçadetrabalhosejaumamercadoria,otrabalhadornãooé.Eaindaqueoscapitalistaspossamencará-loscomo“mãos”dotadasdeestômago,“comoalgumascriaturasrasteirasnapraia”,comoDickensumdiacolocou,ostrabalhadoressãosereshumanosdotadosdetodosostiposdesentimentos,esperançasemedos,e lutamparacriarumavidaparasimesmosquecontenhapelomenossatisfaçõesmínimas.Nocentro dessa vida existem condições de produção e reprodução das forças de trabalho de diferentequantidade equalidade.E, embora suscetível a todo tipode influênciaporpartedas instituições edaculturaburguesas,nofimnadaconseguesubverterocontrolequeostrabalhadoresexercemsobrealgunsprocessosmuitobásicosdasuaprópriareprodução.Suavida,suaculturae,acimadetudo,seusfilhosestãoaíparaseremreproduzidos.

Nosúltimosanos,oshistoriadores,tantomarxistasquantooutros,têmprestadomuitaatençãoaessestemas,emboraosestudantesmarxistasdoprocessourbanogostemdeencararacidadecomoolocaldereproduçãodaforçadetrabalho.Sãoabundantesatualmenteosestudossobreafamília,acomunidade,acultura,aestratificaçãoeavidasocialdaclassetrabalhadoraemtodaasuamanifestacomplexidade.Eaemergência de uma forte crítica feminista tem contribuído para novos debates e contribuições. Essesestudosestãodesesperadamente carentesde síntese:naverdade, esta talvez seja a tarefamaisurgentecomaqualsedeparaateoriamarxiana.Alémdisso,trata-sedeumatarefaquedeveserrealizadacomoconhecimento claro de que a reprodução da força de trabalho mediante a vida vivida das classestrabalhadoraséumadimensãototalmentediferenteparaaanálisedomododeproduçãocapitalista.Nãoéummeroadendoaoquejásabemos,masconstituiumpontodepartidatotalmentediferentedaquelenoqualébaseadaateoriad’Ocapital.Opontodepartidanãoéamercadoria,masumsimplesevento:onascimentodeumfilhodaclassetrabalhadora.Ossubsequentesprocessosdesocializaçãoeinstrução,deaprendereserdisciplinado,podemtransformaresseserhumanoemalguémquetemcertacapacidadeparao trabalhoequeestádispostoavender essacapacidadecomoumamercadoria.Essesprocessosmerecemoestudomaisprofundopossível.

A maneira como a reprodução do capital mediante a produção de mais-valor se combina e seentrelaça com a reprodução da vida vivida do trabalhador torna-se problemática.As duas dimensõescaptam, em sua oposição, a tensão fundamental entre a riqueza da cultura diversificada e as áridasrealidades da busca de lucro. Algum tipo de unidade deve existir entre as duas para a sociedadecapitalistapoderatingirpelomenosaaparênciadeestabilidadesocial,edesajustesimportantesdevemsercertamenteosinaldecrisesmarcadasporumconflitocivilsério.Entretanto,nenhumprocessopodedominar fácil ou diretamente o outro, apesar da sua mútua interdependência. Meios de coordenaçãodevemserencontrados,muitosmecanismosdecontençãomútua,quedealgummodomantêmasociedadeem um equilíbrio suficiente em suas partes isoladas para impedir qualquer colapso social total. Essetematambémtemsidoexploradoemoutroslocais,principalmenteemtermosdasrelaçõesentreaslutasbaseadasnotrabalhoeaquelastravadasnoespaçodevidasobrehabitação,saúde,educaçãoetc.Ofatodehaveralgumtipodeunidade latenteemtodasessas lutaséóbvio.Eosdois ladossabemdisso.Ostrabalhadores sabem que as habilidades monopolizáveis aprendidas na comunidade podem ser muitocompensatórias, tanto nas taxas salariais quanto nas condições de trabalho.E os capitalistas hámuitoestãoconscientesdeque,paradominaremos trabalhadoresno localdaprodução, têmdeexercerumainfluêncianotávelsobreelesemseulocaldereprodução.Masasconexõessãodispersaseosmodosde

Page 407: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

influência contrária, de extraordinária complexidade.As crises dedesvalorizaçãoque atingem tantoocapital quanto o trabalho necessariamente enviam reverberações para o local de trabalho e para acomunidade,quepodemabalarasprópriasbasesdasociedadecivil.

Oprincipalcanalemqueasfunçõescoordenadorasemutuamenterestritivaspodemserexercidassãoasvariadas instituiçõesdoEstadomoderno.Nãoconsidereia teoriadoEstadocapitalistamarxistanopresentetrabalho,emparteporqueacheiqueumtratamentocompletodessetemacontrovertidodeveriaaguardarumaanálisecuidadosadosprocessosdereproduçãodotrabalhadoredaforçadetrabalho.MasoEstado capitalista não foi totalmente negligenciadonas páginas precedentes.Naverdade, ele esteveonipresentecomooresponsávelpeloscontratosepelas liberdadesdos indivíduos jurídicos,ecomoopoder repressivoqueamboscriamequemantéma forçade trabalhocomoumamercadoria.OEstadocolocaumabasesobacompetiçãointercapitalistaeregulaascondiçõesdeemprego.Elepodefacilitaracentralizaçãodocapital,mastambémdesempenhaumpapelnabuscadoequilíbrioentreacentralizaçãoeadescentralizaçãoquepreservaaestabilidadedacomposiçãodevalordocapital.Realizaaproduçãodasmercadorias (principalmentenoambienteconstruído)queoscapitalistas individuaissão incapazesdeproduzirounãoestãodispostosafornecer,pormaisvitaisqueelassejamcomocondiçõesdemaisacumulação.Eleusa seuspoderesdeplanejamentoparamoldara economiadeespaçodocapitalismodiretamentee,dessemodo,poderegularatémesmoatensãoinvasivaentreaconcentraçãoeadispersãogeográfica. Por meio da égide de um banco central, desempenha um papel hegemônico na oferta dedinheirodecertaqualidade.AconsideraçãodasfunçõesfiscaisemonetáriasdoEstadoindicaaamplalatitudedesuapotencialintervençãonadinâmicatemporaleespacialdaacumulaçãodentrodoterritóriosob sua jurisdição. Desse modo, o Estado se torna uma parte essencial dessa série de organizaçõeshierarquicamente ordenadas que vinculam os trabalhadores individuais à totalidade expressada comotrabalho abstrato. Ocupando essa posição estratégica, e abençoado como ele é com as armasfundamentais do poder político emilitar, o Estado se torna a instituição central em torno da qual seformamasalianças.Ospoderes fiscal emonetáriopodementão serpressionadospara ficar a serviçodessa aliança. Arranjos distribucionais podem ser modificados, o investimento na apropriação,controlado,capitaisfictícios,criadoseastendênciasparaadesvalorizaçãodessemodo,convertidaseminflação. O Estado se torna a instituição central por meio da qual os conflitos inter-regionais sãoelaborados,eabaseapartirdaqualcadaaliançaregionalbuscaoseu“ajusteespacial”.

OEstado, em resumo, é protagonista emquase todos os aspectos da reprodução do capital.Alémdisso,quandoogovernointervémparaestabilizaraacumulaçãoemfacedemúltiplascontradições,issosóaconteceàcustadainternalizaçãodessascontradições.Eleadquireadúbiatarefadeadministrarasdoses necessárias de desvalorização.Mas tem escolha em relação a como e onde faz isso. Ele podelocalizaroscustosdentrodoseuterritóriomedianteumalegislaçãotrabalhistarígidaerestriçõesfiscaise monetárias. Ou pode buscar alívio externo por meio de guerras comerciais, políticas fiscais emonetárias combativas no cenário mundial, apoiadas no fim pelo apelo à força militar. A forma dedesvalorizaçãofundamentaléaconfrontaçãomilitareaguerramundial.

NotextoprecedenteconsideramostodosessesaspectosdoEstadomoderno.Maselesnãoconstituemumabase adequada para uma teoria abrangente doEstado.Muitos elementos são deixados de fora.Areproduçãodotrabalhadoredaforçadetrabalho,eaproduçãoeousodoconhecimento,tantocomoumaforçamaterial na produção quanto como uma arma para a dominação e o controle ideológico, devemestar integradasnoargumento.Eenquantonosesforçamosparacumprir essa tarefa,duascoisas ficamaparentes.Emprimeirolugar,asinstituiçõesfundamentaisparaareproduçãodocapital(comoobanco

Page 408: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

central) devem até certo ponto ficar mantidas bem separadas daquelas que tratam da reprodução dotrabalhadoredaforçadetrabalho.Mas,emsegundolugar,algumtipodeunidadetemdeprevalecerentreasdiversasinstituições,algumequilíbriotemdeserencontradoparaqueasociedadecomoumtodosejareproduzida. Isso suscita questões de alocação dos poderes, de legitimidade, de democracia e deideologia,queosmarxistastêmenfrentadodiretamenteemumaliteraturaimensaecontrovertida.Acimadetudo,nossaatençãodeveentãoseconcentrarnalutapolíticapelocontroledoaparatodoEstadoedospoderesquealiresidem.Alutadeclassesédeslocadadolocaldaproduçãoparaaarenapolítica.

Massurgeentãoumproblemaadicional.Arelaçãoentreocapitaleotrabalhotransformou-seagoraem configurações múltiplas e conflitantes. Já identificamos alguns aspectos nesse processo, como ocapital e o trabalho se dividemem facções diferentes e às vezes se reconstituemem torno de algumaaliançaregional.E,assimquelevamosemcontaoutrosaspectosdavidacapitalista–aformaçãodeumaelite científica e técnica, o crescimento das funções de gerenciamento, da burocracia etc. –, comfrequênciaficaquaseimpossíveldiscernirsobelaarelaçãoseparadaentreocapitaleotrabalho.Nesseaspecto,achosimbólicoqueoúltimocapítulodoterceirolivrod’Ocapitaltratedoproblemadasclassesno capitalismo.A posição do capítulo é importante, embora seu conteúdo não possa ser levado tão asério. Ele sugere que as configurações de classe que realmente existem no capitalismo têm de serinterpretadas como o produto de forças que se estendem em apoio à acumulação do capital e àreproduçãodotrabalhadorcomooportadordamercadoriaforçadetrabalho.Porisso,asconfiguraçõesdeclassenãopodemserassumidasapriori.Elassãoativamenteproduzidas.Arelaçãodeclasseentreocapitaleotrabalho–umarelaçãoquesimplesmentereconheceacentralidadedecomprarevenderforçade trabalho para a vida econômica no capitalismo – é apenas um ponto de partida no qual se podeanalisar a produçãode configurações de classe bemmais complicadas, específicas do capitalismo.Ofluxodeforçasemaçãodentrodadinâmicadahistóriacapitalista–umfluxoqueprocuramospelomenosparcialmente captar nas páginas precedentes – cria pressões para a formação de novas estruturas ealianças de classe (inclusive aquelas baseadas no território). Mas as lealdades, a identidade e aconsciênciadeclassenãosãodemodoalguminstantaneamentemaleáveis.Atensãoresultantemereceomaiorescrutíniopossível.Afinal,a lutadeclassesnãopodeseradequadamenteentendidasemqueseentenda,antesdetudo,comoasconfiguraçõeseasaliançasdeclassesãoforjadasemantidas.

Talabordagempodeajudarauniraquiloquecomfrequênciapareceumadisjunçãomaissériaentreos teóricos de um modo de produção puramente capitalista e aqueles que buscam reconstruir asgeografias históricas reais das formações sociais capitalistas em toda a sua rica complexidade. Osteóricos podem procurar torcer e tecer seus argumentos demodo a “localizar e descrever as formasconcretasquecrescemdosmovimentosdocapitalcomoumtodo”eassim“seaproximampassoapasso”das formasconcretasqueocapital“assumenasuperfíciedasociedade”[1].Dessamaneira, “avidadamatéria” pode ser “refletida idealmente”[2].Mas o aparato conceitual incorporado nessa reconstruçãoteórica não é de modo algum uma abstração idealista. Ele é construído a partir de categorias erelacionamentos, como força de trabalho,mais-valor (absoluto e relativo) e o capital comoprocesso,forjadomediante transformaçõeshistóricas reais–pormeioda acumulaçãoprimitiva,da ascensãodeformasdedinheiroedointercâmbionomercado,dalutaferozpelocontrolecapitalistadentrodoreinodaprodução.Asprópriascategoriasnascemdeumaexperiênciahistóricareal.

Ateoriacomeçaquandocolocamosessascategoriashistoricamentefundamentadaspara trabalharegerarnovasinterpretações.Nãopodemos,poressemeio,esperarexplicartudooqueexistenembuscarumplenoentendimentodeeventossingulares.Essasnãosãoastarefascomasquaisateoriadevelidar.

Page 409: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Aocontrário,seuobjetivoécriarestruturasparaoentendimento,umaparatoconceitualelaboradocomoqualcaptarosrelacionamentosmaisimportantesemaçãodentrodadinâmicacomplexadatransformaçãosocial. Podemos explicar por que a mudança tecnológica e organizacional e as reorganizaçõesgeográficasdentrodadivisãoespacialdotrabalhosãosocialmentenecessáriasparaasobrevivênciadocapitalismo. Podemos entender as contradições incorporadas nesses processos e mostrar como ascontradiçõesestãomanifestadasnageografiahistóricapropensaàcrisedodesenvolvimentocapitalista.Podemos entender como novas configurações e alianças de classe são formadas, como podem serexpressas como configurações territoriais e degenerar em rivalidades interimperialistas. Esses são ostiposdediscussõesqueateoriapodeproduzir.

Masumateoriaquenãoconseguelançarluzsobreahistóriaousobreapráticapolíticaécertamenteredundante.Piorainda:ateorizaçãoerrônea–demodoalgumumaprerrogativaexclusivadaburguesia–podeinduziraequívocosemistificar.Enenhumteóricopodereivindicaronisciência.Emalgumpontoououtroconexões tangíveisdevemser feitasentrea tramada teoriaea texturadageografiahistórica.Opoder persuasivo do primeiro livro d’O capital deriva precisamente da maneira como o aparatoconceitual da teorização apoia e é apoiado por evidências históricas. Este é o tipo de unidade quedevemoscontinuamentenosesforçarparamanteremelhorar.

Noentanto,aseparaçãodentrodessaunidade,adequadamenteconstruída,temoseulugar.Elapodeser o local de uma tensão criativa, um ponto de alavancagem para a construção de novas ideias eentendimentos. A insistência prematura na unidade da teoria e da prática histórica pode conduzir àparalisiaeàestase,eàsvezesaformulaçõestotalmenteequivocadas.Ounosesforçamosparaentulharuma geografia histórica recalcitrante em uma dinâmica descrita por algumas categorias simplistas, oucriamos novas categorias historicamente fundamentadas nesses eventos particulares dos quais elas sópodemcaptaraaparênciasuperficial,nuncaosignificadosocialinterno.

Há,então,certavirtudeemaceitareatémesmobuscaremseusmaisextremos limitesaseparaçãoentreateoriaeapráticahistórica,aindaqueapenasporqueoseudesenvolvimentodesigualabrenovasperspectivas na unidade que necessariamente deve prevalecer entre elas. Correr com as duas pernasaindaémaisrápidoquepularcomasduaspernasamarradas.

Mas,naanálisefinal,oimportanteéaunidade.Odesenvolvimentomútuodateoriaedareconstruçãohistórica e geográfica, todas projetadas nos entusiasmos da prática política, constitui o cadinhointelectual do qual podem emergir novas estratégias para a reconstrução saudável da sociedade. Aurgênciadessatarefa,emummundoassaltadoportodosostiposdeperigosinsanos–incluindoaameaçade guerra nuclear total (uma forma inglória de desvalorização) –, certamente não necessita dedemonstração.Seocapitalismoatingiutaislimites,entãocabeanósencontrarmaneirasparatranscenderoslimitesdoprópriocapital.

[1]KarlMarx,Capital,LivroIII,cit.,p.25.

[2]Ibidem,LivroI,p.90.

Page 410: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Referênciasbibliográficas

OBRASDEMARXCapital.NovaYork,InternationalPublishers,1967,LivrosIIeIII.Ocapital.Trad.RubensEnderle.SãoPaulo,Boitempo,2013,LivroI.AContribution to theCritique ofPoliticalEconomy.NovaYork, InternationalPublishers, 1970. [Ed. bras.:Contribuição à crítica da

economiapolítica,SãoPaulo,ExpressãoPopular,2004.]Critiqueof theGothaProgramme.NovaYork, InternationalPublishers, 1970. [Ed. bras.:CríticadoProgramadeGotha, trad. Rubens

Enderle,SãoPaulo,Boitempo,2012.]EarlyTexts.Org.D.McClellan.Oxford,BasilBlackwell,1972.Economic and Philosophic Manuscripts of 1844. Nova York, International Publishers, 1964. [Ed. bras.: Manuscritos econômico-

filosóficos,trad.JesusRanieri,SãoPaulo,Boitempo,2004.]TheEighteenthBrumaireofLouisBonaparte.NovaYork,InternationalPublishers,1964.[Ed.bras.:O18debrumáriodeLuísBonaparte,

trad.NélioSchneider,SãoPaulo,Boitempo,2011.]Grundrisse:Manuscritos econômicos de 1857-1858.Esboços da crítica da economia política.Trad.MarioDuayer eNélio Schneider. São

Paulo,Boitempo,2011ThePovertyofPhilosophy.NovaYork,InternationalPublishers,1963.[Ed.bras.:Amisériadafilosofia,SãoPaulo,Ícone,2004.]ResultsoftheImmediateProcessofProduction(ApêndiceaoCapital,LivroI).Harmondsworth,Penguin,1976.TextsonMethod.Org.TerrellCarver.NovaYork,BarnesandNoble,1975.TheoriesofSurplusValue.Londres,LawrenceandWishart,partes1e2,1969;parte3,1972. [Ed.bras.:Teoriasdamais-valia,Riode

Janeiro,CivilizaçãoBrasileira,1980.]WageLabourandCapital.Pequim,ForeignLanguagesPress,1978.[Ed.bras.:Trabalhoassalariadoecapital&Saláriopreçoelucro,

SãoPaulo,ExpressãoPopular,2010.]Wages,PriceandProfit.Pequim,ForeignLanguagesPress,1965.[Ed.bras.:Trabalhoassalariadoecapital&Salário,preçoelucro,

SãoPaulo,ExpressãoPopular,2010.]

OBRASDEMARXEENGELSCollectedWorks.NovaYork,InternationalPublishers,1975-1980,v.1-12.TheGermanIdeology.NovaYork,InternationalPublishers,1970.[Ed.bras.:Aideologiaalemã, trad.RubensEnderle,NélioSchneidere

LucianoMartorano,SãoPaulo,Boitempo,2007.]IrelandandtheIrishQuestion.NovaYork,InternationalPublishers,1972.Manifesto of the Communist Party. Moscou, Progress Publishers, 1952. [Ed. bras.:Manifesto Comunista, trad. Álvaro Pina e Ivana

Page 411: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Jinkings,SãoPaulo,Boitempo,1998.]OnColonialism.NovaYork,InternationalPublishers,1972.SelectedCorrespondence.Moscou,ProgressPublishers,1955.

OBRASDEENGELSAnti-Dühring.Moscou,ProgressPublishers,1947.[Ed.bras.:Anti-Dühring,SãoPaulo,Boitempo,noprelo.]TheConditionoftheWorkingClassinEnglandin1844.Londres,AllenandUnwin,1962.[Ed.bras.:Asituaçãodaclassetrabalhadora

naInglaterra,trad.B.A.Schumann,SãoPaulo,Boitempo,2008.]TheHousingQuestion.NovaYork,InternationalPublishers,1935.TheOriginoftheFamily,PrivatePropertyandtheState.NovaYork,InternationalPublishers,1942.[Ed.bras.:Aorigemdafamília,da

propriedadeprivadaedoEstado,SãoPaulo,ExpressãoPopular,2010.]

OUTRASOBRASCITADASAglietta,M.ATheoryofCapitalistRegulation.Londres,NLB,1979.Althusser,L.ForMarx.Londres,AllenLane,1969._____.Balibar,E.Reading“Capital”.Londres,NLB,1970.Altvater,E.NotesonSomeProblemsofStateInterventionism.Kapitalistate.SanFrancisco,SanFranciscoBayAreaKapitalistateGroup,

1973,v.1-2.Amin,S.AccumulationonaWorldScale.NovaYork,MonthlyReviewPress,1974._____.UnequalDevelopment.NovaYork,MonthlyReviewPress,1977._____.ClassandNation,HistoricallyandintheCurrentCrisis.NovaYork,MonthlyReviewPress,1980.Anderson,P.LineagesoftheAbsolutistState.Londres,NLB,1974.[Ed.bras.:LinhagensdoEstadoabsolutista,SãoPaulo,Brasiliense,

1995.]_____.ArgumentswithinEnglishMarxism.Londres,NLB,1980.Arrighi,G.TheGeometryofImperialism.Londres,NLB,1978.Arthur,C.J.TheConceptof“AbstractLabor”.BulletinoftheConferenceofSocialistEconomists,1976,v.5,n.2.Avineri,S.Hegel’sTheoryoftheModernState.Londres,CambridgeUniversityPress,1972.Aydalot,P.Dynamiquespatialeetdéveloppementinégal.Paris,Economica,1976.Ball,M.DifferentialRentandtheRoleofLandedProperty.InternationalJournalofUrbanandRegionalResearch,1977,v.1.Banaji,J.SummaryofSelectedPartsofKautsky’sTheAgrarianQuestion.EconomyandSociety,1976,v.5.Baran,P.ThePoliticalEconomyofGrowth.NovaYork,MonthlyReviewPress,1957._____.Sweezy,P.MonopolyCapital.NovaYork,MonthlyReviewPress,1966.Barker,C.TheStateasCapital.InternationalSocialism,1978,série2,n.1.Barratt-Brown,M.TheEconomicsofImperialism.Harmondsworth,PenguinBooks,1974.Barrère,C.Crisedusystèmedecréditetcapitalismemonopolisted’État.Paris,Economica,1977.Bassett,K.;Short,J.HousingandResidentialStructure:AlternativeApproaches.Londres/Boston,Routledge&K.Paul,1980.Baumol,W.J.TheTransformationofValues:WhatMarx“Really”Meant(anInterpretation).JournalofEconomicLiterature,1974,v.12.Becker,J.F.MarxianPoliticalEconomy.Cambridge,CambridgeUniversityPress,1977.Benetti,C.Valeuretrépartition.Grenoble,PressesuniversitairesdeGrenoble,1976._____.Berthomieu,C.;Cartelier,J.Économieclassique,économievulgaire.Grenoble,PressesuniversitairesdeGrenoble,1975.Bernal,J.D.ScienceinHistory.Cambridge,MITPress,1969,4v.Berthoud,A.TravailproductifetproductivitédutravailchezMarx.Paris,Maspero,1974.Blaug,M.TechnicalChangeandMarxianEconomics.In:Horowitz,D.(org.).MarxandModernEconomics.NovaYork,ModernReader

Paperbacks,1968.Blaug,M.EconomicTheoryinRetrospect.Londres,Heinemann,1978.Bleaney,M.UnderconsumptionTheories.NovaYork,InternationalPublishers,1976.Boccara,P.Étudessurlecapitalismemonopolisted’État,sacriseetsonissue.Paris,Éditionssociales,1974.

Page 412: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Boddy,R.;Crotty,J.ClassConflictandMacro-Policy:thePoliticalBusinessCycle.ReviewofRadicalPoliticalEconomics,1975,v.7,n.1.Böhm-Bawerk,E.von.KarlMarxandtheCloseofhisSystem.NovaYork,AugustusM.Kelley,1949.Bouvier,J.;Furet,F.;Gillet,M.LemouvementduprofitenFranceauXIXesiècle.Paris,LaHaye,MoutonetCie,1965.Braverman,H.LaborandMonopolyCapital.NovaYork,MonthlyReviewPress,1974.[Ed.bras.:Trabalhoeocapitalmonopolista,Rio

deJaneiro,Zahar,1974.]BrightonLabourProcessGroup.TheCapitalistLabourProcess.CapitalandClass,1977,v.1.Bronfenbrenner,M.“DasKapital”fortheModernMan.In:Horowitz,D.(org.).MarxandModernEconomics.NovaYork,ModernReader

Paperbacks,1968.Bukharin,N.ImperialismandtheAccumulationofCapital.In:Luxemburgo,R;Bukharin,N.ImperialismandtheAccumulationofCapital.

NovaYork,MonthlyReviewPress,1972.Burawoy,M.TowardaMarxistTheoryoftheLaborProcess:BravermanandBeyond.PoliticsandSociety,1978,v.8.Burawoy,M.ManufacturingConsent:Changes in theLaborProcess underMonopolyCapitalism.Chicago,University ofChicagoPress,

1979.Carney,J.G.;Hudson,R.;Lewis,J.R.RegionsinCrisis.NovaYork,St.Martin’sPress,1980.Castells,M.TheUrbanQuestion.Londres,EdwardArnold,1977.[Ed.bras.:Aquestãourbana,SãoPaulo,PazeTerra,2009.]Chandler,A.StrategyandStructure.Cambridge,MIT.Press,1962._____.TheVisibleHand:theManagerialRevolutioninAmericanBusiness.Cambridge,BelknapPress,1977.Cheape,C.W.MovingtheMasses.Cambridge,HarvardUniversityPress,1980.Christaller,W.CentralPlacesinSouthernGermany.EnglewoodCliffs,Prentice-Hall,1966.Churchward,L.G.TowardstheUnderstandingofLenin’sImperialism.AustralianJornalofPoliticsandHistory,1959,v.5,n.1.Clarke,S.TheValueofValue.CapitalandClass,1980,v.10.Cogoy,M.TheFall in theRateofProfit and theTheoryofAccumulation: aReply toPaulSweezy.Conferenceof SocialistEconomists

Bulletin,1973,v.2,n.7.Cohen,G.A.KarlMarx’sTheoryofHistory:aDefence.Princeton,PrincetonUniversityPress,1978.ConferenceofSocialistEconomists.OnthePoliticalEconomyofWomen.CSEPamphlet,1976,n.2.Coutiere,A.Lesystèmemonétairefrançais.Paris,Economica,1976.Crouzet,F.CapitalFormationintheIndustrialRevolution.Londres,Methuen,1972.Cutler,A.;Hindess,B.;Hirst,P.;Hussain,A.Marx’sCapitalandCapitalismToday.Londres/Boston,RoutledgeandKeganPaul,1978,2v.Davis,H.TowardaMarxistTheoryofNationalism.NovaYork,MonthlyReviewPress,1978.DeBrunhoff,S.L’offredemonnaie.Paris,Maspero,1971._____.MarxonMoney.NovaYork,UrizenBooks,1976.[Ed.bras.:AmoedaemMarx,SãoPaulo,PazeTerra,1978.]_____.TheState,CapitalandEconomicPolicy.Londres,PlutoPress,1978._____.Lesrapportsd’argent.Grenoble,PressesuniversitairesdeGrenoble,1979.DeGaudemar,J.P.Mobilitédutravailetaccumulationducapital.Paris,Maspero,1976.DeLaHaye,Y.MarxandEngelsontheMeansofCommunication.NovaYork/Bagnolet,InternationalGeneral/InternationalMassMedia

ResearchCenter,1979.Deane,P.;Cole,W.BritishEconomicGrowth:1688-1959.Londres,CambridgeUniversityPress,1962.Dear,M.;Scott,A.(orgs.).UrbanizationandUrbanPlanninginCapitalistSociety.Londres/NovaYork,Methuen,1981.Desai,M.MarxianEconomics.Oxford,BasilBlackwell,1979[Ed.bras.:Economiamarxista,RiodeJaneiro,Zahar,1984].Dichervois,M.;Théret,B.Contributionàl’étudedelarentefoncièreurbaine.Paris,Mouton,1979.Dobb,M.PoliticalEconomyandCapitalism.Londres,Routledge, 1940. [Ed. bras.:Economiapolítica e capitalismo, SãoPaulo,Graal,

1978.]_____.TheStudiesintheDevelopmentofCapitalism.NovaYork,InternationalPublishers,1963._____.TheoriesofValueandDistributionsinceAdamSmith:IdeologyandEconomicTheory.Londres,CambridgeUniversityPress,1973._____.ANoteontheRicardo-Marx-SraffaDiscussion.ScienceandSociety,1975-1976,v.39.Domhoff,W.G.ThePowersThatBe:ProcessesofRuling-ClassDominationinAmerica.NovaYork,RandomHouse,1978.Donzelot,J.ThePolicingoftheFamilies:WelfareversustheState.NovaYork,PantheonBooks,1979.Dostaler,G.Valeuretprix:histoired’undébat.Paris,Maspero,1978._____.Marx:lavaleuretl’économiepolitique.Paris,Anthropos,1978.Draper,H.KarlMarx’sTheoryofRevolution.Part1:StateandBureaucracy.NovaYork,MonthlyReviewPress,1977.Dulong,R.Lesrégions,l’Étatetlasociétélocale.Paris,PUF,1978.

Page 413: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Duménil,G.L’expressiondutauxdeprofitdans“LeCapital”.RevueÉconomique,1975,v.26._____.MarxetKeynesfaceàlacrise.Paris,Economica,1977.Edel,M.Marx’sTheoryofRent:UrbanApplications.Kapitalistate,1976,v.4-5.Edwards,R.ContestedTerrain:theTransformationoftheWorkplaceintheTwentiethCentury.NovaYork,BasicBooks,1979.Eisenstein,Z.(org.).CapitalistPatriarchyandtheCaseforSocialistFeminism.NovaYork,MonthlyReviewPress,1979.Elbaum, B.; Lazonick,W.;Wilkinson, F.; Zeitlin, J. The Labour Process, Market Structure andMarxist Theory.Cambridge Journal of

Economics,1979,v.3.Elbaum,B.;Wilkinson,F. IndustrialRelationsandUnevenDevelopment: aComparativeStudyof theAmericanandBritishStell Industries.

CambridgeJournalofEconomics,1979,v.3.Elger,T.Valorizationand“Deskilling”:aCritiqueofBraverman.CapitalandClass,1979,v.7.Elson,D.(org.).Value:theRepresentationofLabourinCapitalism.Londres/AtlanticHighlands,CSEBooks/HumanitiesPress,1979.Elster,J.TheLaborTheoryofValue:aReinterpretationofMarxistEconomics.MarxistPerspectives,1978,v.1,n.3.Emmanuel,A.UnequalExchange:aStudyoftheImperialismofTrade.NovaYork,MonthlyReviewPress,1972.Erlich,A.DobbandtheMarx-FeldmanModel:aProbleminSovietEconomicStrategy.CambridgeJournalofEconomics,1978,v.2.Fairley,J.FrenchDevelopmentsintheTheoryofStateMonopolyCapitalism.ScienceandSociety.1980,v.44.Fine,B.WorldEconomicCrisis and Inflation. In:Green,F.;Nore,P. (orgs.). Issues inPoliticalEconomy:ACriticalApproach.Londres,

Macmillan,1979._____.OnMarx’sTheoryofAgriculturalRent.EconomyandSociety,1979,v.8._____.EconomicTheoryandIdeology.NovaYork,Holmes&MeierPublishers,1981.Fine,B.;Harris,L.Re-ReadingCapital.Londres,Macmillan,1979.Fitch,R.;Openheimer,M.WhoRulestheCorporations?SocialistRevolution,1970,v.1,n.4-6.Foster,J.ClassStruggleintheIndustrialRevolution.NovaYork,St.Martin’sPress,1975.Frank,A.CapitalismandUnderdevelopmentinLatinAmerica.NovaYork,MonthlyReviewPress,1969.Freyssenet,M.Lesrapportsdeproduction:travailproductifettravailimproductif.Paris,CSU,1971._____.Ladivisioncapitalistedutravail.Paris,Savelli,1977.Friedman,A.IndustryandLabour.Londres,Macmillan,1977._____.ResponsibleAutonomyversusDirectControlovertheLabourProcess.CapitalandClass,1977,v.1.Gardner,L.C.EconomicAspectsofNewDealDiplomacy.Madison,UniversityofWisconsinPress,1964.Gerdes,C.TheFundamentalContradictionintheNeoclassicalTheoryofIncomeDistribution.ReviewofRadicalPoliticalEconomics,1977,

v.9,n.2.Gerstein, I. Production, Circulation and Value: the Significance of the ‘Transformation Problem’ inMarx’s Critique of Political Economy.

EconomyandSociety,1976,v.3.Gillman,J.TheFallingRateofProfit.Londres,D.Dobson,1957.Glyn,A.;Sutcliffe,R.BritishCapitalism,WorkersandtheProfitSqueeze.Harmondsworth,Penguin,1972.Godelier,M.RationalityandIrrationalityinEconomics.Londres,NLB,1972.[Ed.bras.:Racionalidadeeirracionalidadenaeconomia,

SãoPaulo,TempoBrasileiro,1970.]Goldsmith,R.W.FinancialStructureandDevelopment.NewHaven,YaleUniversityPress,1969.Gough,I.ProductiveandUnproductiveLabourinMarx.NewLeftReview,1972,v.76.Gramsci,A.PrisonNotebooks.Londres,Lawrence&Wishart,1971.[Ed.bras.:Cadernosdocárcere,trad.CarlosNelsonCoutinho,Riode

Janeiro,CivilizaçãoBrasileira,1999.]Grossman,H.Archive:Marx,ClassicalPoliticalEconomyandtheProblemofDynamics.CapitalandClass,1977,v.2-3.Gurley,J.G.;Shaw,E.S.MoneyinaTheoryofFinance.Washington,BrookingsInstitution,1960.Hannah,L.TheRiseoftheCorporateEconomy.Londres,Methuen,1976.Harris,L.OnInterest,CreditandCapital.EconomyandSociety,1976,v.5._____.TheScienceoftheEconomy.EconomyandSociety,1978,v.7._____.TheRole ofMoney in theEconomy. In:Green,F.;Nore, P. (orgs.). Issues in Political Economy: a CriticalApproach. Londres,

Macmillan,1979.Hartmann,H.TheUnhappyMarriageofMarxismandFeminism:TowardsaMoreProgressiveUnion.CapitalandClass,1979,v.8.Harvey,D.ExplanationinGeography.Londres,EdwardArnold,1969._____.SocialJusticeandtheCity.Londres,EdwardArnold,1973._____.TheGeographyofCapitalistAccumulation:aReconstructionoftheMarxianTheory.Antipode,1975,v.7,n.2.

Page 414: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

_____.Labor,CapitalandClassStruggleAroundtheBuiltEnvironmentinAdvancedCapitalistSocieties.PoliticsandSociety,1977,v.6._____.UrbanizationunderCapitalism:aFrameworkforAnalysis.InternationalJournalofUrbanandRegionalResearch,1978,v.2.Harvey,J.TheoriesofInflation.MarxismToday,jan.1977.Heertje,A.EssayonMarxianEconomics.SchweizerischesZeitschriftfürVolkwirtschaftundStatistik ,1972,v.108._____.EconomicsandTechnicalChange.NovaYork,Wiley,1977.Hegel,G.W.PhilosophyofRight.Oxford,OxfordUniversityPress,1967.[Ed.bras.:Princípiosdafilosofiadodireito,MartinsFontes,

2003.]Hendrick,B.J.GreatAmericanFortunesandTheirMaking:StreetRailwayFinanciers.McCluresMagazine,1907,v.30.Herman,E.S.DoBankersControlCorporations?MonthlyReview,1973,v.25,n.1._____.KotzonBankerControl.MonthlyReview,1979,v.31,n.4.Hilferding,R.Lecapitalfinancier.Paris,ÉditionsdeMinuit,1970.Hilton,R.(org.).TheTransitionfromFeudalismtoCapitalism.Londres/AtlanticHighlands,NLB/HumanitiesPress,1976.Himmelweit,S.;Mohun,S.DomesticLabourandCapital.CambridgeJournalofEconomics,1977,v.1.Hindess,B.;Hirst,P.Pre-CapitalistModesofProduction.Londres/Boston,RoutledgeandK.Paul,1975.[Ed.bras.:Modosdeprodução

pré-capitalistas,RiodeJaneiro,Zahar,1976.]_____.ModeofProductionandSocialFormation.Londres,Macmillan,1977.[Ed.bras.:Modosdeproduçãoeformaçãosocial,Riode

Janeiro,Zahar,1978.]Hirschman,A.O.OnHegel, Imperialism, and Structural Stagnation. Journal ofDevelopmentEconomics, 1976, n. 3. [Ed. bras.: “Sobre

Hegel,imperialismoeestagnaçãoestrutural,emAlmanaque,Brasiliense,n.9,1979.]Hobson,J.A.Imperialism.AnnArbor,UniversityofMichiganPress,1965.Hodgson,G.TheTheoryoftheFallingRateofProfit.NewLeftReview,1974,v.84._____.ATheoryofExploitationwithouttheLaborTheoryofValue.ScienceandSociety,1980,v.44.Holloway,J.;Picciotto,S.StateandCapital:aMarxistDebate.Londres,EdwardArnold,1978.Hook,S.TowardstheUnderstandingofKarlMarx:aRevolutionaryInterpretation.NovaYork,JohnDayCo.,1933.Howard,M.C.;King,J.E.ThePoliticalEconomyofMarx.Londres,Longman,1975.Humphries,J.ClassStruggleandthePersistenceoftheWorking-ClassFamily.CambridgeJournalofEconomics,1977,v.1.HuntCommissionReport.FinancialStructureandRegulation.Washington,1971.Hunt,E.K.TheCategoriesofProductiveandUnproductiveLaborinMarxistEconomicTheory.ScienceandSociety,1979,v.43.Hymer,S.TheMultinationalCorporationandtheLawofUnevenDevelopment.In:Bhagwati,J.(org.).EconomicsandWorldOrderfrom

the1970stothe1990s.NovaYork,Macmillan,1972.Isard,W.LocationandSpaceEconomy.NovaYork,TechnologyPressofMassachusettsInstituteofTechnology/Wiley,1956.Itoh,M.AStudyofMarx’sTheoryofValue.ScienceandSociety,1976,v.40._____.TheFormationofMarx’sTheoryofCrisis.ScienceandSociety,1978,v.42._____.TheInflationalCrisisofCapitalism.CapitalandClass,1978,v.4.Jacobi,O.;Bergmann,J.;Mueller-Jentsch,W.ProblemsinMarxistTheoriesofInflation.Kapitalistate,1975,v.3.Kalecki,M.SelectedEssaysontheDynamicsoftheCapitalistEconomy.Londres,CambridgeUniversityPress,1971.Kautsky,K.Laquestionagraire.Paris,Maspero,1970.[Ed.bras.:Aquestãoagrária,SãoPaulo,NovaCultural,1986.]Keiper,J.S.;Kurnow,E.;Clark,C.D.;Segal,H.H.TheoryandMeasurementofRent.Filadélfia,ChiltonCo.,BookDivision,1961.Kemp,T.TheoriesofImperialism.Londres,Dobson,1967.Keynes,J.M.TheGeneralTheoryofEmployment,InterestandMoney.NovaYork,Harcourt,Brace,1936.[Ed.bras.:Ateoriageraldo

emprego,dojuroedamoeda,SãoPaulo,NovaCultural,1996.]Koeppel,B.TheNewSweatshops.TheProgressive,1978,v.42,n.11.Kolko,G.TheTriumphofConservatism:aReinterpretationofAmericanHistory.NovaYork,FreePressofGlencoe,1963.Kotz,D.BankControlofLargeCorporationsintheUnitedStates.Berkeley,UniversityofCaliforniaPress,1978.Krelle,W.MarxasaGrowthTheorist.GermanEconomicReview,1971,v.9.Kühne,K.EconomicsandMarxism.NovaYork,St.Martin’sPress,1979,2v.Laclau,E.PoliticsandIdeologyinMarxistTheory:Capitalism,Fascism,Populism.Londres,NLB,1977.[Edbras.:Políticaeideologiana

teoriamarxista,SãoPaulo,PazeTerra,1978.]Laibman,D.ValuesandPricesofProduction:thePoliticalEconomyoftheTransformationProblem.ScienceandSociety,1973-1974,v.37.Lamarche, F. Property Development and the Economic Foundations of the Urban Question. In: Pickvance, C. (org.).Urban Sociology:

CriticalEssays.Londres,TavistockPublications,1976.

Page 415: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Lazonick,W.IndustrialRelationsandTechnicalChange:theCaseoftheSelf-ActingMule.CambridgeJournalofEconomics,1979,v.3.Lebowitz,M.A.CapitalandtheProductionofNeeds.ScienceandSociety,1977-1978,v.41.Lefebvre,H.Ledroitàlaville.Paris,Anthropos,1972._____.Laproductiondel’espace.Paris,Anthropos,1974.Lenin,V.I.TheDevelopmentofCapitalisminRussia.Moscou,ForeignLanguagesPub.House,1956.[Ed.bras.:Odesenvolvimentodo

capitalismonaRússia,SãoPaulo,AbrilCultural,1982.]_____.SelectedWorks.Moscou,ProgressPublishers,1970,3v.Levine,D.EconomicTheory.Londres/Boston,RoutledgeandK.Paul,1978.Lipietz,A.Letributfoncierurbain.Paris,Maspero,1974._____.Lecapitaletsonespace.Paris,Maspero,1977.Lösch,A.TheEconomicsofLocation.NovaYork,ScienceEditions,1967.Luxemburgo,R.TheAccumulationofCapital.Londres,Routledge andK.Paul, 1951. [Ed.bras.:Aacumulaçãodocapital, São Paulo,

Novacultural,1988.]Luxemburgo,R.;Bukharin,N.ImperialismandtheAccumulationofCapital.NovaYork,MonthlyReviewPress,1972.Maarek,G.AnIntroductiontoKarlMarx’sDasKapital:aStudyinFormalisation.NovaYork,OxfordUniversityPress,1979.Macfarlane,A.TheOriginsofEnglishIndividualism:TheFamily,PropertyandSocialTransition.Oxford,BlackwellBasil,1978.[Ed.bras.:

Família,propriedadeetransiçãosocial,RiodeJaneiro,Zahar,1980.]Macpherson,C.B.ThePoliticalTheoryofPossessiveIndividualism.Oxford,ClarendonPress,1962.Magaline,A.D.Luttedeclasseetdévalorisationducapital.Paris,Maspero,1975.Malos,E.ThePoliticsofHousework .Londres,Allison&Busby,1980.Mandel,E.MarxistEconomicTheory.Londres,Merlin,1968._____.TheFormationoftheEconomicThoughtofKarlMarx.NovaYork,MonthlyReviewPress,1971._____.LateCapitalism. Londres/Atlantic Highlands, NLB/Humanities Press, 1975. [Ed. bras.:O capitalismo tardio, São Paulo, Abril

Cultural,1982.]_____.TheSecondSlump.Londres,NLB,1978.Massey,D.Regionalism:SomeCurrentIssues.CapitalandClass,1978,v.6._____.InWhatSenseaRegionalProblem?RegionalStudies,1979,v.13._____. The U. K. Electrical Engineering and Electronics Industries: the Implications of the Crisis for the Restructuring of Capital and

Locational Change. In: Dear,M.; Scott, A. (orgs.).Urbanization and Urban Planning in Capitalist Society. Londres/Nova York,Methuen,1981.

Massey,D.;Catalano,A.CapitalandLand:LandownershipbyCapitalinGreatBritain.Londres,EdwardArnold,1978.Mathias,P.CapitalCreditandEnterpriseintheIndustrialRevolution.JournalofEuropeanEconomicHistory,1973,v.2.Mattick,P.MarxandKeynes.Boston,P.Sargent,1969._____.Economics,PoliticsandtheAgeofInflation.WhitePlains,M.E.Sharpe,1980.Mckinnon,R.MoneyandCapitalinEconomicDevelopment.Washington,BrookingsInstitution,1973.Meek,R.L.StudiesintheLabourTheoryofValue.Londres,LawrenceandWishart,1973._____.Smith,MarxandAfter.Londres/NovaYork,Chapman&Hall/Wiley,1977.Meillassoux,C.Maidens,MealandMoney.Londres,CambridgeUniversityPress,1981.Merignas,M.Travailsocialetstructuresdeclasse.Critiquesdel’économiepolitique,NewSeries,1978,n.3.Montgomery,D.Worker’sControlinAmerica.Londres,CambridgeUniversityPress,1979.Morin,F.Lastructurefinancièreducapitalismefrançais.Paris,Calmann-Lèvy,1974.Morishima,M.Marx’sEconomics.Londres,CambridgeUniversityPress,1973._____.Catephores,G.Value,ExploitationandGrowth.Maidenhead,McGraw-Hill,1978.Nagels,J.Travailcollectifettravailproductif.Bruxelas,Editionsdel’Universite deBruxelles,1974.Nairn,T.TheBreak-upofBritain:CrisisandNeo-Nationalism.Londres,NLB,1977.Niehans,J.TheTheoryofMoney.Baltimore,JohnsHopkinsUniversityPress,1978.Noble,D.AmericabyDesign:Science,TechnologyandtheRiseofCorporateCapitalism.NovaYork,Knopf,1977.O’connor,J.TheFiscalCrisisoftheState.NovaYork,St.Martin’sPress,1973._____.ProductiveandUnproductiveLabor.PoliticsandSociety,1975,v.4.Okishio,N.TechnicalChangeandtheRateofProfit.KobeUniversityEconomicReview,1961,v.7.Ollman,B.Alienation:Marx’sConceptionofManinCapitalistSociety.Londres,CambridgeUniversityPress,1971.

Page 416: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

_____.MarxismandPoliticalScience:aProlegomenontoaDebateonMarx’sMethod.PoliticsandSociety,1973,v.3.Osadchaya,I.FromKeynestoNeo-ClassicalSynthesis:aCriticalAnalysis.Moscou,ProgressPublishers,1974.Palloix,C.Lesfirmesmultinationalesetleprocèsd’internationalisation.Paris,Maspero,1973._____.L’internationalisationducapital.Paris,Maspero,1975._____.TheInternationalizationofCapitalandCircuitofSocialCapital.In:Radice,H.(org.).InternationalFirmsandModernImperialism.

Harmondsworth,PenguinBooks,1975._____. The Labour-Process: From Fordism to Neo-Fordism. In: Conference of Socialist Economists. The Labour Process and Class

Strategies.Londres,1976.Palmer,B.Class,ConceptionandConflict: theThrust forEfficiency,ManagerialViewsofLabour,and theWorkingClassRebellion,1903-

1922.ReviewofRadicalPoliticalEconomics,1975,v.7,n.2.Pannekoek,A.TheTheoryoftheCollapseofCapitalism.CapitalandClass,1977,v.1.Peet,R.SpatialDialecticsandMarxistGeography.ProgressinHumanGeography,1981,v.5.Pilling,G.TheLawofValueinRicardoandMarx.EconomyandSociety,1972,v.1.Pinkney,D.H.NapoleonIIIandtheRebuildingofParis.Princeton,PrincetonUniversityPress,1958.Portes,A. The Informal Sector and theCapitalAccumulation Process in LatinAmerica. In: Portes,A.;Walton, J. (orgs.).The Political

EconomyofDevelopment.NovaYork,AcademicPress,1980.Postel-vinay,G.Larentefoncièredanslecapitalismeagricole.Paris,Maspero,1974.Poulantzas,N.ClassesinContemporaryCapitalism.Londres,NLB,1975.[Ed.bras.:Asclassessociaisnocapitalismodehoje,Riode

Janeiro,Zahar,1978.]_____.State,Power,Socialism.Londres,NLB,1978.[Ed.bras.:OEstado,opoder,osocialismo,SãoPaulo,Graal,1990.]Radice,H.(org.).InternationalFirmsandModernImperialism.Harmondsworth/Baltimore,PenguinBooks,1975.Report of theCommission onMoney andCredit.Money andCredit, Their Influence on Jobs, Prices, andGrowth. EnglewoodCliffs,

Prentice-Hall,1961.Revell,J.TheBritishFinancialSystem.Londres,Macmillan,1973.Rey,P-P.Lesalliancesdeclasses.Paris,Maspero,1973.Ricardo,D.TheWorksandCorrespondenceofDavidRicardo.Londres,CambridgeUniversityPress,1970.Roberts,S.PortraitsofaRobberBaron:CharlesT.Yerkes.BusinessHistoryReview,1961,v.35.Robinson,J.AnEssayonMarxianEconomics.Londres,Macmillan,1967._____.“MarxandKeynes”.In:Horowitz,D.(org.).MarxandModernEconomics.NovaYork,ModernReaderPaperbacks,1968._____.TheLaborTheoryofValue.MonthlyReview,1977,v.29,n.7._____.TheOrganicCompositionofCapital.Kyklos,1978,v.31.Roemer,J.TechnicalChangeandthe“TendencyoftheRateofProfittoFall”.JournalofEconomyTheory,1977,v.15._____.TheEffectofTechnologicalChangeontheRealWageandMarx’sFallingRateofProfit.AustralianEconomicPapers,1978,v.17._____.ContinuingControversyontheFallingRateofProfit:FixedCapitalandOtherIssues.CambridgeJournalofEconomics,1979,v.3._____.AGeneralEquilibriumApproachtoMarxianEconomics.Econometrica,1980,v.48.Roncaglia,R.TheReductionofComplexLabourtoSimpleLabour.BulletinoftheConferenceofSocialistEconomists,1974.Rosdolsky,R.TheMakingofMarx’sCapital.Londres,PlutoPress,1977.Rostow,W.W.TheStagesofEconomicGrowth:ANon-CommunistManifesto.Londres,CambridgeUniversityPress,1960.Rowthorn,B.Capitalism,ConflictandInflation.Londres,LawrenceandWishart,1980.Rubin,I.EssaysonMarx,TheoryofValue.Detroit,Black&Red,1972.Samuelson,P.WagesandPrices:aModernDissectionofMarxianEconomicModels.AmericanEconomicReview,1957,v.47._____.UnderstandingtheMarxianNotionofExploitation:aSummaryoftheSo-CalledTransformationProblemBetweenMarxianValuesand

CompetitivePrices.JournalofEconomicLiterature,1971,v.9.Santos,M.TheSharedSpace: theTwoCircuitsoftheUrbanEconomyinUnderdevelopedCountries.Londres/NovaYork,Methuen,1979.

[Ed.bras.:Oespaçodividido,SãoPaulo,Edusp,2008.]Schmidt,A.TheConceptofNatureinMarx.Londres,NLB,1971.Schumpeter, J. The Theory of Economic Development. Cambridge, Harvard University Press, 1934. [Ed. bras.: A teoria do

desenvolvimentoeconômico,SãoPaulo,AbrilCultural,1984.]_____.BusinessCycles.NovaYork/Londres,McGraw-HillBookCompany,1939.Scott,A.TheUrbanLandNexusandtheState.Londres,Pion,1980.Scott,J.Corporations,Classes,Capitalism.Londres,Hutchinson,1979.

Page 417: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Seccombe,W.TheHousewifeandHerLabourunderCapitalism.NewLeftReview,1974,v.83.Shaikh,A.Marx’sTheoryofValueand the“TransformationProblem”. In:Schwarts, J. (org.).TheSubtleAnatomyofCapitalism. Santa

Monica,GoodyearPub.Co.,1977._____.AnIntroductiontotheHistoryofCrisisTheories.In:U.S.CapitalisminCrisis.NovaYork,UnionofRadicalPoliticalEconomics,

1978._____.ForeignTradeandtheLawofValue.ScienceandSociety,1979-1980,v.43-44.Sherman,H.MarxandtheBusinessCycle.ScienceandSociety,1967,v.31._____.MarxistModelsofCyclicalGrowth.HistoryofPoliticalEconomy,1971,v.3._____.Stagflation:aRadicalTheoryofUnemploymentandInflation.NovaYork,Harper&Row,1976.Smith, A. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Nova York, The Modern Library, 1937.[Ed. bras.:

Investigaçãosobreanaturezaeascausasdariquezadasnações,SãoPaulo,AbrilCultural,1974.]Smith,N.TheProductionofNature,1980(manuscritonãopublicado)._____.DegeneracyinTheoryandPractice:SpatialInteractionismandRadicalEclecticism.ProgressinHumanGeography,1981,v.5.Soja, E. The Socio-Capital Dialectic. Annals of the Association of American Geographers, 1980, v. 70. [Ed. bras.: “A dialética

socioespacial”,emGeografiaspós-modernas:areafirmaçãodoespaçonateoriasocialcrítica,RiodeJaneiro,Zahar,1993,cap.3.]Sowell,T.Say’sLaw:anHistoricalAnalysis.Princeton,PrincetonUniversityPress,1972.Spring,D.TheEnglishLandedEstateintheNineteenthCentury.Baltimore,JohnsHopkinsPress,1963.Sraffa,P.TheProductionofCommoditiesbyMeansofCommodities.Londres,CambridgeUniversityPress,1960.[Edbras.:Aprodução

demercadoriaspormeiodemercadorias,RiodeJaneiro,Zahar,1977.]Steedman,I.MarxafterSraffa.AtlanticHighlands,HumanitiesPress,1977.Stone,F.TheOriginofJobStructuresintheSteelIndustry.TheReviewofRadicalPoliticalEconomics,1974,v.6,n.2.Studenski,P.;Kroos,H.E.FinancialHistoryoftheUnitedStates.NovaYork,McGraw-Hill,1952.Sweezy, P.The Theory of Capitalist Development. Nova York, Monthly Review Press, 1968. [Ed. bras.: Teoria do desenvolvimento

capitalista,RiodeJaneiro,Zahar,1967.]_____.TheResurgenceofFinancialControl:FactorFancy?MonthlyReview,1971,v.23,n.6._____.MarxianValueTheory.MonthlyReview,1979,v.31,n.3.Sweezy,P.;Magdoff,H.TheDynamicsofU.S.Capitalism.NovaYork,MonthlyReviewPress,1972.Taylor, J.G.FromModernization toModesofProduction.Londres,MacmillanPress,1979.Therborn,G.Science,Class andSociety.

Londres,NLB,1976.Théret,B.;Wieviorka,M.Critiquedelathéorieducapitalismemonopolisted’État.Paris,Maspero,1978.Thomas,B.MigrationandEconomicGrowth.Londres,CambridgeUniversityPress,1973.Thompson,E.P.TheMakingoftheEnglishWorkingClass.Harmondsworth,Penguin,1968.[Ed.bras.:Aformaçãodaclasseoperária

inglesa,RiodeJaneiro,PazeTerra,1987.]_____.ThePovertyofTheoryandOtherEssays.Londres,LondonMerlinPress,1978.Thompson,F.M.L.EnglishLandedSocietyintheNineteenthCentury.Londres,Routledge/KeganPaul,1963.Thompson,G.TheRelationshipBetweentheFinancialandIndustrialSectorintheUnitedKingdomEconomy.EconomyandSociety,1977,v.

6.Tilly,L.A.;Scott,J.Women,WorkandFamily.NovaYork,Holt,RinehartandWinston,1978.Topalov,C.Lespromoteursimmobiliers.Paris,Mouton,1974.Tortajada,R.ANoteontheReductionofComplexLabourtoSimpleLabour.CapitalandClass,1977,v.1.Tribe,K.EconomicPropertyandtheTheorizationofGroundRent.EconomyandSociety,1977,v.6._____.Land,LabourandEconomicDiscourse.Londres/Boston,Routledge&K.Paul,1978.Tsuru,S.KeynesversusMarx:theMethodologyofAggregates.In:Horowitz,D.(org.).MarxandModernEconomics.NovaYork,Modern

ReaderPaperbacks,1968.Tucker,R.TheMarxianRevolutionaryIdea.NovaYork,Norton,1969.Uno,K.PrinciplesofPoliticalEconomy:TheoryofaPurelyCapitalistSociety.Brighton,Harvester,1980.Van Parijs, P. The Falling-Rate-of-Profit Theory of Crisis: a Rational Reconstruction byWay of Obituary. Review of Radical Political

Economics,1980,v.12.Vilar,P.AHistoryofGoldandMoney.Londres/AtlanticHighlands,NLB/HumanitiesPress,1976.VonBortkiewicz,L.ValueandPriceintheMarxianSystem.InternationalEconomicPapers,1952,v.2.VonWeizsäcker.OrganicCompositionofCapitalandAveragePeriodofProduction.Revued’ÉconomiePolitique,1977,v.87,n.2.

Page 418: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Walker,R.A.TheSuburbanSolution:UrbanReformandUrbanGeography in theCapitalistDevelopmentof theUnitedStates.Tesededoutorado,Baltimore,TheJohnsHopkinsUniversity,1977.

Walker,R.A.;Storper,N.CapitalandIndustrialLocation.ProgressinHumanGeography,1981,v.5.Wallerstein,I.TheProcessofAccumulationandthe“Profit-squeeze”Hypothesis.ScienceandSociety,1974,v.43.Weeks,J.TheProcessofAccumulationandthe“Profit-Squeeze”Hypothesis.ScienceandSociety,1979,v.43.Weisskopf,T.Marxist Perspectives onCyclicalCrises. In:U. S.Capitalism inCrisis.NovaYork,Union ofRadical Political Economics,

1978.Wilson,J.C.ANoteonMarxandtheTradeCycle.ReviewofEconomicStudies,1938,v.5.Wright,E.O.Class,CrisisandtheState.Londres,NLB,1978.[Ed.bras.:Classe,criseeoEstado,RiodeJaneiro,Zahar,1979.]Yaffe,D.TheMarxianTheoryofCrisis,CapitalandtheState.EconomyandSociety,1973,v.2.Zaretsky,E.Capitalism,theFamilyandPersonalLife.Londres,PlutoPress,1976.Zeitlin, J.CraftControl and theDivisionofLabour:Engineers andCompositors inBritain, 1890-1930.Cambridge Journal ofEconomics,

1979,v.3.Zeitlin,M.CorporateOwnershipandControl:theLargeCorporationandtheCapitalistClass.AmericanJournalofSociology,1975,v.79.

Page 419: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Índiceonomástico

Nota: este índice não inclui os autores de obras citadas nas notas de rodapé. Ver “Referênciasbibliográficas”.Marxtambémestáexcluído.

Althusser,L.,40Amin,S.,40

Ball,M.,455Baran,P.,40,208Bauer,O.,136Baumol,W.,122Bernstein,E.,265Boccara,P.,208-9,275-6Böhm-Bawerk,E.von.,111,114-5,119Braverman,M.,113,167,170-4,176-8,181,183Bukharin,N.136,381Burawoy,M.,172,174,179

Catalano,A.,447Catephores,G.,94,121Cherbuliez,A.-E.,191Coronil,F.,19

DeBrunhoff,S.,322,368,383Desai,M.,85,126,242Dobb,M.,40,84

Edwards,R.,174Elbaum,B.,179,181Elson,D.,86Engels,F.,69,94,118-9,121,203-4,208,243,251,254,321,430

Fine,B.,455,459Foster,J.B.,27

Page 420: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Friedman,A.,178-9Fromm,E.,176

Gillman,J.,253Gramsci,A.,167,176Grossman,H.,136

Habermas,J.,176Heertje,A.,255Hegel,G.W.F.,18,524-6,549Hilferding,R.,204,265,322,373,375,379,381-4,388,414-5,417,419-20Hobson,J.,381,383,420Horkheimer,M.,176Hymer,S.,203

Jessop,B.,21

Kalecki,M.,134Kautsky,K.,265Keynes,J.,19,134-5,403Koeppel,B.,40

Laibman,D.,120LaSalle,F.,101Lazonick,W.,173Lefebvre,H.,25Lenin,V.I.,204,26,322,373,375,379-83,388,414-5,419-20,426,554,556-7Levine,D.,293Lukács,G.,176Luxemburgo,R.,20,28,133,135-6,152,240,247,265,554,559

MacPherson,C.B.,64Magaline,A.,265Malthus,T.,28,103,132,134,151,234-5,429Mandel,E.,40Marcuse,H.,176Massey,D.,447Meek,R.,84,121Mellon,A.,413Mill,J.,132Mill,J.S.,90,92,132,134,249Morgan,J.P.,331-2Morishima,M.,85,94,111,121-2,242,255,291-2

O’Connor,J.,27Okishio,N.,258Ollman,B.,44

Palmer,B.,174Poulantzas,N.,40Quesnay,F.,49,240

Page 421: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Rey,P.-P.,444,447Ricardo,D.,12,27,59-60,70-1,83,89,96,103,132,13,153,191,234,249,269,293,325,428-9,433,435,450,452,455-6Robinson,J.,85Roemer,J.,85Roncaglia,R.,112Rosdolsky,R.,322Rowthorn,R.,102,112Rubin,I.,85

Samuelson,P.,111,120Shaikh,A.,121Sismondi,J.,132-4,136,153Smith,A.,12,89-91,96,166,211,213,249,266,483Sraffa,P.,90,291-2Steedman,I.,291-2Sweezy,P.,40,84,133,136,208,234

Thompson,E.,40,176-7Tortajada,R.,112Tugan-Baranovski,M.,299,300

Uno,K.,40

VanParijs,P.,258vonBortkiewicz,L.,119vonNeumann,O.,291

Wallerstein,I.,40

Page 422: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Índiceremissivo

açambarcamento,57,128,145,242,312,336,348,362acumulaçãodocapital(verciclos:superacumulação),12-3,16,19,20-2,24,34,51-2,104,108,133,135,148,150,152,170,173,175,178,187,

199,228,230-1,240,281,297,311,320,347,381,419,437,459,461,464,471,473,475,481,486-7,524,529,540,549-50,559,565acumulaçãopelaacumulação,33,76,82,86,106,108,145,151,155-6,227-8,236,247,268,388,525,547dedívidas(vercapitalfictício),356,391equilibrada(verequilíbrio),201-2,230,238,243,247-8,263,295,347,375-6,394,405,410leigeralda,227,230-4,236,408modelosde,226,231,254,282,318administradores,79,170,348,377,418,542-3agricultura,27,128,185,210,283,317,432-5,440-1,451-8,464,467,469ajusteespacial,22,39,497,539,544,546,548-9,553-4,556,558-9,564aliançasdeclasse,20,22,409,424,479,536,555,565-6ambienteconstruído(verinfraestruturas),124,160,289,3148,351,359,428,432,467,481,483-4,503-6,510,518,564bancos,30,275,329-34,348,361,363,367-8,370,378,380-1,388,395-6,403,411-6,419-20,447,469,493,542central,331-4,369-70,384,386-7,389-401,403-6,409-19,424,493-4,542,564-5basemonetária,39,338-9,347,356,365,383-90,393,395-7,402,407,409,422,480,493-4,534,545burguesia,26,73-4,96,129-30,137,145,150-1,157,170,220,233,237,314,342,360,362,373-4,377-8,389,394,396,405,407,411-4,418-9,

423,438,445-6,451,463,465,469-70,489,507,509,513,524,531,549,551,566burocracia(verEstado),565camponeses,114,235,340,443,462,465-7,550capital(vercirculaçãodocapital;circulaçãodocapitalquerendejuros;capitalfixado)centralizaçãodo,203,205,213,218,257,274,305,348,358-60,376,414,534,564circulante,194,279,284-6,289,294-99,301,304,306,308,311,315,318-20,352,359,374-5,382conceitode,303,373,380-1,414,458concentraçãode,205constante(vercomposiçãodocapital),95-6,112,116-7,150,190,193-8,237,241,244-5,247,250-1,254-7,260,271,273,278,284-6,289,302,

305,308,318,394,396,433,481,495,499,538,547fictício,19,31,155,352-9,364-7,374,379,386-7,391,393-7,403-5,409,413,417,422,431,447-8,468,470-3,476,503-4,517financeiro,13,26,39,204,316,348,367,373-5,377-425,517,556-7mercantil,124,127,129,446,534monetário(vercirculaçãodocapitalquerendejuros),30,67,93,103,124-9,141-3,146,149,154-5,179,211,217-20,245-7,259,267,271-2,

279,298,306,308-9,312-3,317,319,322-3,336-60,364-5,368-70,373-8,381,387,394,396,412-3,420,446,469,471,473,476,492,503-4,516-8,532,539,547,555

Page 423: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

produtivo,67,100,125-6,129,142,154,204,245,353,355,395variável(vercomposiçãodocapital;valordaforçade trabalho),95-6,100,107-8,110,116-7,148-50,190,193-8,200,220,227,229,231-2,

238-9,241,243-6,256-8,260,279-80,285-6,362,390,481,485-6capitalexcedente(versuperacumulação),19,29,31,265,268,279,319,449,517,547capitalfixo,12,19,37-9,49-50,84,116,124,134,145,186-8,193-7,214-5,230,237,241,244-5,250,254,258-9,262,266,271-3,275,277-8,

282-320,351-9,374-5,382,393-8,422,428,434,457,468,483-4,495,502-3,516,540desvalorizaçãodo(verdesvalorização),299,301,303durabilidade,304,307tipoautônomode,307,309-10,351,503valordo,145,287-8,291,293,354-5capitalsocial(eações)(vercapitalfictício),149,193,206,240,250,274-5,357,359-60,378,452,503,531ciclos(veracumulaçãodecapital),131,134,257,393,423,551ciência,43,45,47,60,86-7,161,171,175-6,205,214,369,412,445,516,518,561circulaçãodocapital(vercapital;circulaçãodocapitalquerendejuros;capitalfixo),19,26,35-6,66,74,124-9,141-9,166,194,196-7,213,

220-1,225-6,241,243-7,258-61,267,270,282,286-9,291-5,300-12,317-23,335,338-41,344,346-7,350-4,357,361-2,370,373-4,376,378,383,385,389-90,393,399,403-4,411,413,417-21,424-5,429,434,447-9,468-70,472,475-6,480-2,485,489,502-9,512,514-5,520-2,526,528-31,533,538,540,546,548,555-6

capitalconstante,260capitalvariável,194,241,243,245mais-valor,510circulaçãodocapitalquerendejuros(vercirculaçãodocapital),312,321,323,346-7,353-4,357,370,378,411,413,417-21,424,447-9,470,

472,475-6,504circulaçãodasreceitas,361-2,389-90,392,395-6,399,510classecapitalista(verconceitodeclasse;relaçõesdeclasse;lutadeclasses;contradiçõesdocapitalismo–individualv.classe),11,13,17,28,

73-4,77,81-3,93,123,150-1,169,193,201,220,232,262,267,278-9,321,323,358,370,375-9,381,388,407,409,419,423,491,496facções,13,74,96,322,370-1,377,391,418,424,451,465,488,509,521-2,530-3,535-6,555-6,565classetrabalhadora(verconceitodeclasse;relaçõesdeclasse),11,13,30,77-83,95,100,106,109,133,148-9,151-2,165,174-6,183,188,

227,230-3,243-4,249,263,267,280,362,399,407-8,419,451,462-3,487,489,491,510,531,562-3,570consumo(verpadrãodevidadotrabalho),244cultura,244degradação/empobrecimento,79,147,168-72,230-1,245,276,280,326,528estratificação(verhierarquias),562organização,399poupanças,348-9,351,354,362-3,367-8,370,376,378,395,407,413colonização,446,523-4,549comércioexterior(verimperialismo;organizaçãogeográfica),152,250,267,478,480,552comunidade,54-5,129,172,305,326,479,489-90,530,562-3competição,75-82,133,136,140,146,168,175,179,183,186-9,192-3,200,205-18,221-2,227,230,238,242,246,248,256,258,278-9,287,

291,307,310,313,331-2,338,345,354-5,357-8,360,377,380-2,389,395-6,399,402,406,408,413,416,419,431,440,442,454,456,464-5,468,474-5,483-4,494-8,500,502,506,514,531,535,537-9,541-3,548-9,551,555,557-8,564

espacial,495-6,498,502,531,538,541entreEstados,543composiçãodocapital,196conceitodeclasse,71-2,74,80-1concepçõesmentais,161-3consciênciadeclasse,81,181,232,529,565conhecimento,158,161-3,168,189,199,259,282,320consumo,47,52,61,73,92,106,108,110,126,131-59,186-7,200,220,226,237-8,243-4,246,249,270,273,282-3,286-8,290,295-7,299-300,

310-20,326,350-2,362,375-6,382,390,392,395-6,398,405,421-2,428,438,454,463,469-70,483,503,509,516,518,527-8,540-1,547,555

produtivo,137,237,286-90,295,319

Page 424: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

racional,244,313contradiçõesdocapitalismo(verrelaçõesdeclasse;lutasdeclasses,crises;desvalorizaçãotaxadecrescentedelucro;superacumulação),201,

251-2,261,269,360,379,399,417,450,491,541,546,549,552,554,556-7capitalfixov.capitalcirculante,284,286,374centralizaçãov.descentralização,257,267,307,374,376,529controledaproduçãov.anarquiadomercado,201dentrodaformamonetária,62,272,308,320,361-2,388dentrodosistemadecrédito,56,128,136,153-4,185,238,245,247,261,267,278,295,305-6,310,312-3,321-3,330,337-40,346-97,400,

404-5,418,421-5,448,457,469,475,484,493-4,504-6,515-6,545,551forçasprodutivasv.relaçõessociais,149,157-9,161-2,183-4,189-90,252-3,262-3,267-8,423,538individualv.classe,118,122-4,149,183-5,193,199-201,256,262-3,277-80,323,374,376,421-2,387-8,496-7,538mobilidadev.imobilidade,153-4,313-4,476,481-5,492-3,494-502,504-5,520-2,529-30,542-4,554-5naformadevalor,84-7,268-72,294produçãov.distribuição,118,122-4,148-54,272,375-6,453produçãov.troca/consumo/realizaçãosistemafinanceirov.basemonetáriacooperação,79-80,162-3,166,168,174-6,205corporação,203,215-23,364,411-26,487-8,517,533-4,542sociedadeanônima,213,274-5,343-4,364-7,373,379crises(vercontradiçõesdocapitalismo;desvalorização; taxadecrescentede lucro,superacumulação)85,104,107,123,131-6,139-40,143,

156,159,183,201,221-2,226,240-4,248-80,302-3,337,351,376-7,382-3,393-411,415-6,421-6,453,493-4,497,502,506,512,519-22,526,533-4,537-59,566

aspectosgeográficos,536-59cíclicas,298-300,319,351-3,540-4,548-9,557-8dedesproporcionalidade,131,187,238-48,295,376-7,382-3,469-70,508-9deformaçãodecapitalfixo,298-304,308,320,382-3derealização(verrealização),140-154monetáriasefinanceiras,221,252,277-8,326-7,329,337-339,352-3,356,374-5,387-8,420-6,493-4subconsumo,106-7,133-154,271-2,544-7custosdacirculação,126-8,144-6,153-4,184-6,196-7,210,227,325-31,349-50,482custosdetransação,144-6,210-5,227,324-31,349-50,401-2demandaeoferta,52-4,63-4,131-42,147-8,213-4,324-5decapitalmonetário(vercapital;circulaçãodecapitalquerendejuros),344-6,362,365-8,389-92,393-9,470-1dedinheiro(verdinheiro),56-8,153-5,245,389-91,393-410detrabalho(verforçadetrabalho),102-4,107-8,145-6,227-37,241-2,247-8,269-70,281,298-9,393-9,404,494-5demandaefetiva,132,147-56,200,243,246-8,393-403,408,468-9,494-5,510-1,531,538,544-7departamentosdeprodução,51,236-48,299-300,305-6,311-2,319,393-9descentralização,203-4,210,213-23,359-60,375-6,413-4,417,563desejosenecessidades,47-50,109,137,149-50,160-2,257,269-70,453-4desemprego(verexércitoindustrialdereserva;população-excedenterelativo),80,84-5,134-5,143,188-9,228-37,267-8,272,393-9,405-6,

408,498-9,551-3desenvolvimentodesigual,103,178-9,184-7,307,380-2,446geográfico,446,477,497,501-3,511-3,525-8,535-59desequilíbrio(vercrises),226,240-3,314,376-7,391-2,400-10,421-6desvalorização(vercrises;superacumulação),80,141-3,156,250,268-80,298-9,320,329,359-60,369,375-6,386-9,393-402,403-10,424-6,

435-6,476,483,493-6,498-9,501-3,505-6,510-2,514,517-22,531,536-52,563-5docapitalfixo(vercapitalfixo),274-80,287,298-305,309-10,316-7,específicadolocal,483,498-9,511-2,531,536-44dinheiro,52-9,61-4,81,97-8,124-5,138,140-1,143,145-6,153-5,159,240-1,245,262,266-7,271,284-5,303-5,308,320-35,401-10,436-7,

448-9,480-1,486-7,491-4,506,526-7,533-5,539,541-2,545-6circulaçãodo,56-8,127-8,212-3,237-8,244-7,295-8,304-7,326-37,347-51,367-70,385,414-5,443-4,480-1

Page 425: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

comopodersocial,56-9,323-4,328,338-41,374-5,378-9,443-8,469-70,477,514mercadoria(verouro),54-8,273,324-9,386-8medidadevalor,54-8,323-35,338-9,369,384-9meiodecirculação,54-8,262,325-39,347-50,384-9papel,326-35,385-6qualidade,329-35,338-9,356,369,396-8,401-10,413-5,418,423-4,493-4,533-5,563quantidade,56-8,326-32transformaçãoemcapital,57-9,67-72,322-3,335-9,341velocidadedecirculação,56-8,325-6distribuição(vercapital–mercantil;juros;lucro–daempresa;renda;impostos;salários),84-6,89-130,147-54,159,220-3,253-4,258-9,260-

1,321,375-7,390-1,406-7,428-31,452-5,465-6,505,527-8,540-1,547,564-5divisãodetrabalho,47-8,79-80,86,112-3,138,158,167-8,181-2,184-5,202,257,359-60,374-5,464,477,499-501,504,529,548-9,551-2detalhe,158,167-8,205-6,257,499-500economiapolítica,50,60,69-71,84-6,93-6,98-9,119-20,131-5,136-41,165-6,194,234-5,249,251-2,260-1,268-9,295,427-30,435-6,449-50empresários,169-70,177-8,213-5,342-3,376-7,506equilíbrio,52-4,56-7,63-4,102,107-10,131,133-6,138-40,149-50,155-6,197-8,202,207,209-11,226,229-31,238-63,268-9,276-80,305-6,

319,345-6,357-8,391-3,404,417,420-1,423-4,465-70,496-503,541-2,563espaço,138,140-2,269-70,315-20,328,349-50,435-43,536-43absoluto,438integraçãodo,479-80,482-6organização(verorganizaçãogeográfica),210-3,266-7,314-20,428-9,435-43,465-6,473-6,477-59,563especulação,81,265,351-9,364-9,374-5,378,381-2,395-6,403-4,412-3,419-4,428-9,448-9,455-6,470-6,484-5,505-6,532Estado,63-5,72,78,82-3,103,132,134-6,144,150,180,187,203-4,205-6,218-22,233,244,266-7,275-6,300-1,305-6,311-2,314-5,351-2,

367-70,381-4,389-410,474-7,483-4,487-9,492-5,502-8,509-11,513-4,518-21,531,534-5,550-1,capitalismomonopolista,204-23,265,275-6,380-2,408,414-5,417-26dinheiro(verpolíticafiscalemonetária),326-7,329-34,338-9,342,347-8,355,359-62,369-71,386-9,390-410,418-26,465-8,478-9,563-5dívida,351-9,364-7,378,404,417,447-8,486-7,504-6exércitoindustrialdereserva(verpopulação;desemprego),93-4,103,155-6,188-9,228-37,250,267-8,276-7,279,281,290-1,298-300,393-

402,408,478-9,486-8,529,557-8exploraçãodamãodeobra(vermais-valor),69-87,95-112,115-8,119-20,147-8,154-5,169,175,220,225-37,249-51,260-1,285-6,290-1,

402-3,408,485-92,500-1,511-2,547,formassecundárias,98-9,312-3,354,439,441-2,465-6,505,535-6fábrica,79-80fetichismo,62-4,84-6,90,123-4,127-8,130,175,180,186,211,283-4,289-90,343-5,430-1forçadetrabalho,47-8,68-87,95-110,112-4,140-1,145-6,167-9,194,218,336-41,401-2,439,477,485-92,498-9,521-2,525-6,531,549-52,

557-8,562-3desvalorizaçãoda,141-2,147-8,156,266-77,406-9,535-7ofertade,102-4,107-8,110-6,155-6,227-37,256,269-70,295,393-9,404,494-5,498-9quantidadesequalidades,110-6,155-6,158,188-9,233,487-92,509-10,526-7reproduçãoda(verreprodução),48-9,68-74,97-9,109,138,149-50,230-8,243-4,317-8,487-8,502-3forçasprodutivas (vermudança tecnológicaeorganizacional), 132-3,152,157-64,167-8,170-3,177-90,198-9,204-5,247-8,252,263,272,

376-7,410,422-6,444-5,448-9,453-4,464,475-6,483,521-2,530,532,538,540-1,547-50,551-2,563hierarquias(verinstituições),533-7,539,542-5,555-6dedinheiro,330-5,369-70,387-8,533-4gerenciais,212-7,222noprocessodetrabalho(verprocessodetrabalho),79-81,113-5,158,167-70,174-5,181-3,222,551-2urbanas,482,534-5história,48-51,53-4,60,69-71,74-6,81-4,93-4,100-2,107-8,112-4,119-21,128-30,160-3,166-7,169,172-83,186,201,203-23,231-3,235-6,

253-4,272,275-6,280,339-40,430-1,439,442-50,461-2,468-70,477,507-8,517-9,524-6,553-4,557-8ideologia,72,80,91-2,98-9,123-4,172-4,176,180,186,267-8,462-3,507-10,523-6,535-6,564-5imperialismo,117-8,152,204-5,373,380-4,387-9,419-21,426,493-4,517-9,524,545-6,548-50,552-9

Page 426: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

impostos(verdistribuição;Estado),210,219,252-4,355,364-7,375-6,390-1,395-6,416,448-9,465-6,484-5,502-3,508-10,511-4inflação(vercrises;desvalorização),252,272-3,326-7,338-9,375-6,387-9,401-12,424-6,551-2,,564-5instituições(verhierarquias;sistemalegal;Estado),72,175,211,218,322-3,345-6,347-8,358-71,381-2,411-26,489-94,505-8,526-7,533-4,

542-4investimento,70-7,237-45,305-7,347-8,358-9,362,367-8,393-402,404-5,441-2,504jornadadetrabalho(vermais-valor–absoluto),76-8,97-8,105-6,180,467-8,487-8,506juros(vercapital–finanças;circulaçãodecapitalquerendejuros;distribuição),63-4,89-90,93-6,115-6,123-8,134-5,147-8,252,266-7,274,

303-8,311-2,316-8taxade,260-2,271,320,337-71,374-5,386,388-402,406-7,412-3,417-8,428-9,434-6,456-7,465-6,468-9,470-1,476,494-5,502-3,516,

519-20leidovalor(vertempodetrabalhosocialmentenecessário;valor),60-1,64-5,69-70,81,182-3,189-90,207,211,217-9,222,262,280,344-5,

349-50,440,443-4,449-20,452,475-6,504,527,552-3,555-6mais-valorabsoluto,76-9,167-8,444-5,448-9,538conceitode,66-71distribuiçãode(verdistribuição),84-6,89,92-4,116-30,220,341-5,366-8,394-410,451,454-5produçãode,66-84,89,92-4,95-6,109,117-24,137,140-1,145-6,150-4,159,161-2,164-6,175,200,203-10,282,285-6,288,291-2,314,342-

5,354-5,362,364,367-8,376-7,381-5,414-5,421-6,451,454-7,465-6,472,492-503,505-13,526-7reinvestimentoda(vercirculaçãodocapital),76-81,145-6,229-30,237-44,relativo,78-9,99-100,102,122-3,193,198-9,201,205-6,230-1,258-9,263,273,281-2,287,302-3,312-4,319,389-90,401-2,433,467-8,496,

532,536-7,meiosdeprodução,47-9,51,68-87,95-6,107-8,127-8,140-1,150,157,162-3,190-1,197-8,237-9,258-9,282-5,296-300,310-1,354,430-7,

443-5,448-9,454-5,456-63,466-7,499-500nação(verEstado),492-3,513,530,533-5,556-7organizaçãogeográfica(verespaço),209-13,266-7,315,413-4,430-1,455-6,473-514,540-4,563concentração,460-8,499-500,515-6,527-30,563dispersão,460-1,499-500,527-30,563expansão,152,155-6,401-2,500-1,505,519-21,524-59,563organizaçãoterritorial(verorganizaçãogeográfica;espaço),380,414-5,478-9,492-4,506-14,526-8,530-6,539planejamento,214,316,475,505,537,564políticafiscalemonetária(verinflação;Estado),408-9,588população,103,188,228-30,234-6,265,267-8,296-8,306,456,524,540,557,588-90crescimento,61-2,81,100,103,135,157,163,172,183,214,217,219,227,231,234-5,237-8,240-3,246,256,262-3,297,302,309-10,323,

350,361,377,386,392,396,404,406,416,418,439,448-9,479,522,538,540,548,557,562,565excedenterelativo(verexércitoindustrialdereserva),231,296,588teoriamalthusianada,234poupanças,251,306,348-9,351,354,362-3,367-8,370,376,378,395,407,413,518,588preços(vervalordetroca),43,52-4,56,58,60,62-3,68,71,78,84,86,90,93,95,98,111,115,117,119-23,141,190,209-11,214-5,217-9,222,

227,238-9,253,269,273,278,287,301,316,324-5,355,365-7,377,382,385,394,396-8,401-4,406-8,410,417,422,437,440,444-5,451-2,454-5,459-40,463-4,471-2,474,476,583,501,545

desviodosvalores,62-5,84-5,324-6,385monopólio,114,128-9,170,204,206,208,210-2,214,217-9,221,275,301,332,334,370,379-80,382,408,431,449-51,454,461,463,476,

483-4,557preçosdeprodução(verproblemadatransformação),95,115,117,119-23,238-9,269,273,287,377,394,452problemadatransformação(verpreçosdeprodução),47,95,118-22,124,453processodetrabalho(verprodução;mais-valor–produçãode),49-51,55,69,72,77,79-80,109,113-5,122,141,145-6,157-9,161-3,165-9,

171-7,179-83,185,187,189,191-5,197,199,201,205,223,232,273,281-3,287,319-20,385,481,487,494-5,498-9,511,518,526-7,550,589

lutadeclassese,158,166-183,124-5,230-1intensificaçãodo,79,97,177-8,183-4,273produção(verprocessode trabalho;mais-valor–produçãode),46-84,91-5,107-8,115-25,127-56,159,170-1,179,181,197-207,215,222,

Page 427: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

225-6,236-7,240-1,245-6,248-52,256-68,284-5,289-90,300,306,317-8,323-4,334-5,337,347-8,350-3,364-5,375-6,393-405,415-6,421-4,432,438,442-59,468-504,515-22,538-49

ecirculaçãodocapital,225econsumo,47,131-3,135-9,141,143,145,147,151,153,155,282,300,483edistribuição,91,118,213,226novosramosde,207,250,períodode,116-7,151,190,240-1,245,254,262,291,309,350,395produtividadedotrabalho,70,78-80,162,164,178,187,192,196,198-9,212,229,256,273,518,526produtoexcedente,48,469,550propriedade,48,64-5,81,83,128-9,157,190,203,211,213,218,225,235,239,288,304-5,308,314,316-8,328,340-2,352,356,358,361,364-

6,374,382,403-5,428-33,435-8,442-4,446,448,450,452,454,457,460-3,467,471,475-6,479,485,503-4,506,519,523-5,570,578proprietáriosdeterra,89-90,93,99,128-9,279,314,317,340,342,348-9,390-1,407,439,441,444-5,4447-51,453-4,457-8,463,466-8,470-4,

503-5,531-2realizaçãodocapital(vercirculaçãodocapital;mais-valor),142,145-6,300,404,469fictício,404relaçõesentrevalordeuso,valordetrocaevalor,44-8,51,66,70-1,92-3,143,240-1,283-4,323-5,436-7,479-80internas(vermétododeinvestigação),44-8,51,107-8,137-8,209,320-1,561relaçõesdeclasse(verlutadeclasses),43,71,72,83,85-7,93,104,129,159,163,165,168,186,199,223,230,247,243,267-8,278,370,308,

409-11,436,466,587capitalistasmonetáriosv.industriais,343entrefacçõesdocapital,322,418,424,488,521-2,531-2reproduçãodas(verreprodução),163,244,247,268,278,513,562relaçõesdepoder(verrelaçõesdeclasse),247,268relaçõessociaisdocapitalismo(verrelaçõesdeclasse),121,186,189,208,222,235,240,242,250,269,271,303,306,315,358,442,469,497,

507renda(verdistribuição;terra,proprietáriosdeterra),63-4,81,89-90,92-3,95-6,115-6,123-4,128-9,147-8,252,271,303-4,311-3,316-8,339-

40,355,365,375-6,378,395-6,427-76,494-504,511-2absoluta,450-55,463diferencial,450-56,458-60,464-5,498monopólio,114,128-9,170,204,206,208,210,211-2,214,217-9,221,275,301,332,334,370,379-80,382,408,431,449-51,454,461,463,

476,483-4,557reprodução,48-9,51,69,81-3,91-101,109,123,133-5,138,149,152,163,183,201,207,218,226-8,231-5,237,239-48,255,259,2623,267-8,

277-8,284,287,295,299,314,318,323,351,355,398,424,429,432,438-9,453,461-2,465expandida,226,230-1,236-48,259-60,299-300simples,236-8social(verrelaçõesdeclasse),47-9,80-4,57-103,246-7,262-3,267-8,277-80,341,464-6,504,508-13,526-7,525,531-4salários(verdistribuição;valordaforçadetrabalho),68-90,92-116,119-20,130,147-9,167-8,182-4,200,227-37,245,281,348,394,397,465,

510-1evalordaforçadetrabalho,57-110,227-37parceladeequilíbriodoprodutonacional,100-1,200,228-31,404-5real,57-110,257,252-3saláriodesubsistência,101,107,457socialismo,90,162-3,174,176,183-4,418,424-5,446superacumulação(vercontradiçõesdocapitalismo;crises,desvalorização),131,143,265-80,339,379,405-22,501-2,510-1,535-6,538-51superprodução,131-7,151,225-7,379taxadecrescentedelucro(vercontradiçõesdocapitalismo;crises),248-254,270,292,309,359,588tecnologia,50,60,157-6mudançade,260-1viável,240-1,247-8tempodetrabalhosocialmentenecessário(vervalor),

Page 428: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

terra(verrenda),89,128-9,355,404-5,427-76,494-5,502-6expropriaçãoda,256-7,461-3,485-9fertilidadeda,432-6mercados,365,443-4trabalho(verrelaçõesdeclasse;valor)abstratov.concreto,58-61,110-6,159,225,436-7,543-5,563coletivo,165-6especializado,110-6,181-9,486-92mentalv.manual,79-80,205-6produtivov.improdutivo,164-8simples,95,110-6,167-70,479-80,455-500trabalhoassalariado(verrelaçõesdeclasse),60,68,70-1,74-5,81,83,93,115,235,337,341,443,462,486,491,521,526,547,550-1trabalhofeminino,79,165,188-9,231-2,235-6trabalhofuturo,300,313,320,351-2,376,448,471-2,474,476,505,531,557transporteecomunicações,477,519,542troca,116-9,126-8,143-50,196-8,253-4,257,259-60,266-7,337-8,343,350-1,374-5,394-5,473-4,480-2,494-503,508-9,515-7,519,538,

543-4urbanização,478,530usura,339-41,346,397,401,404,443valor(vertrabalho;tempodetrabalhosocialmentenecessário),43-8,50-61,63,65-71,75,78-9,93,95-7,99-105,106,107-11,127,139,141-2,

146-7,149,158-60,164,188,198-9,227-8,230-2,237-8,241,243,250,277-9,281,284,286-7,288,293-4,296-7,299,304,308,311,313,315-7,324,328,344,349,353,375,396,428,431-3,436-7,438-40,476,479,482,483,489,494,495-6,498,502,504,517,520,521,587

valordaforçadetrabalho(verpadrãodevidadotrabalho;salários),69,78,93,95-7,99-105,107-11,116,149,188,198-9,227-8,230-2,250,279,281,311,349,396,438-9,483,489,495-6,498,521-2,587

valordetroca,43-8,50-7,61,66,68-70,75,79,96,99,127,139,146,158-9,241,277-8,284,286-7,293,313,316,324,328,344,428,436-7,479,482

valoresdeuso,44,47-850,52,57-61,63,65-7,71,93,99,101,106,108-10,141-2,146-7,158-60,164,237-8,241,243,277,288,294,296-7,299,304,308,315-7,324,328,353,375,431-3,436-7,440,476,479,494,502,504,517,520

Page 429: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Estelivrosurgiuemumcontextodeefervescênciadaeconomiapolíticadoespaço,emquedespontouaobradeumdosprincipaisteóricosmarxistasbrasileiros,ogeógrafoMiltonSantos(nafoto

acima),cujapesquisaédescritaaquicomoumestudorigorososobreodesenvolvimentoregional.

Page 430: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Copyright©DavidHarvey,2006Copyrightdestatradução©BoitempoEditorial,2013

TraduzidodooriginaleminglêsTheLimitstoCapital(Londres/NovaYork,Verso,2006)

CoordenaçãoeditorialIvanaJinkings

Editores-adjuntosBibianaLemeeJoãoAlexandrePeschanski

AssistênciaeditorialLiviaCampos,ThaisaBuranieMarinaSousa

TraduçãoMagdaLopes

RevisãotécnicaRubensEnderle

PreparaçãoAlíciaToffani

RevisãoPaulaNogueira

DiagramaçãoCrayonEditorial

CapaAntonioKehl

sobreesculturadeSergioRomagnolo

ProduçãoLiviaCampos

VersãoeletrônicaProduçãoKimDoria

DiagramaçãoSchäfferEditorial

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ.

H271LHarvey,David,1935-

Oslimitesdocapital[recursoeletrônico]/DavidHarvey;traduçãoMagdaLopes.-[1.ed.]-SãoPaulo:Boitempo,2013.recursodigitalTraduçãode:LimitstocapitalFormato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebIncluibibliografiaeíndiceISBN978-85-7559-361-5(recursoeletrônico)1.Economia.2.Economiamarxista.3.Capital(Economia).4.Capitalismo.5.Livroseletrônicos.I.Título.

13-07018 CDD:335.4CDU:330.85

Évedadaareproduçãodequalquerpartedestelivrosemaexpressaautorizaçãodaeditora.

Page 431: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Estelivroatendeàsnormasdoacordoortográficoemvigordesdejaneirode2009.

1aedição:maiode2013

BOITEMPOEDITORIALwww.boitempoeditorial.com.br

www.boitempoeditorial.wordpress.comwww.facebook.com/boitempo

www.twitter.com/editoraboitempowww.youtube.com/user/imprensaboitempo

JinkingsEditoresAssociadosLtda.RuaPereiraLeite,37305442-000SãoPauloSP

Tel./fax:(11)3875-7250/[email protected]

Page 432: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

E-BOOKSDABOITEMPOEDITORIAL

10anosdegovernospós-neoliberais*formatoPDFEmirSader(org.)

18crônicasemaisalgumas*formatoePubMariaRitaKehl

Aeducaçãoparaalémdocapital*formatoPDFIstvánMészáros

Aeradaindeterminação*formatoPDFFranciscodeOliveiraeCibeleRizek(orgs.)

Afinançamundializada*formatoPDFFrançoisChesnais

Ahipótesecomunista*formatoePubAlainBadiou

Aindústriaculturalhoje*formatoPDFFabioDurãoetal.

Alinguagemdoimpério*formatoPDFDomenicoLosurdo

Anovatoupeira*formatoPDFEmirSader

AobradeSartre*formatoePubIstvánMészáros

Apolíticadoprecariado*formatoePubRuyBraga

Apotênciaplebeia*formatoPDFÁlvaroGarcíaLinera

Arevoluçãodeoutubro*formatoPDFLeonTrotski

Arimanaescola,oversonahistória*formatoPDFMaíraSoaresFerreira

AteoriadarevoluçãonojovemMarx*formatoePubMichaelLöwy

Avisãoemparalaxe*formatoePubSlavojŽižek

Alguémdissetotalitarismo*formatoePubSlavojŽižek

Page 433: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Asarmasdacrítica*formatoePubIvanaJinkingseEmirSader(orgs.)

Asartesdapalavra*formatoPDFLeandroKonder

Àsportasdarevolução:escritosdeLeninde1917*formatoePubSlavojŽižek

AsutopiasdeMichaelLöwy*formatoPDFIvanaJinkingsejoãoAlexandrePeschanski

Atéoúltimohomem*formatoPDFFelipeBritoePedroRochadeOliveira(orgs.)

Bazardadívidaexternabrasileira*formatoePubRabahBenakouche

Bem-vindoaodesertodoReal!(versãoilustrada)*formatoePubSlavojŽižek

Brasildelivery*formatoPDFLedaPaulani

Cãesdeguarda*formatoPDFBeatrizKushnir

CaioPradoJr.*formatoPDFLincolnSecco

Cidadedequartzo*formatoPDFMikeDavis

Cidadesrebeldes*formatoePubCarlos Vainer, David Harvey, Ermínia Maricato, Felipe Brito, João Alexandre Peschanski, Jorge Luiz Souto Maior, Leonardo Sakamoto,LincolnSecco,MauroLuisIasi,MikeDavis,MovimentoPasseLivre(SP),PedroRochadeOliveira,RuyBraga,SilviaViana,SlavojŽižekeVenícioA.deLima.

Cinismoefalênciadacrítica*formatoPDFVladimirSafatle

Críticaàrazãodualista/Oornitorrinco*formatoPDFFranciscodeOliveira

Cypherpunks*formatoePubJulianAssangecomJacobAppelbaum,AndyMüller-MaguhneJérémieZimmermann

DeRousseauaGramsci*formatoPDFCarlosNelsonCoutinho

Democraciacorintiana*formatoPDFSócrateseRicardoGozzi

Democraciacorintiana*formatoPDFSócrateseRicardoGozzi

Domarxismoaopós-marxismo*formatoePubGöranTherborn

Page 434: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

Dosonhoàscoisas*formatoPDFJoséCarlosMariátegui

Emdefesadascausasperdidas*formatoePubePDFSlavojŽižek

EmtornodeMarx*formatoPDFLeandroKonder

Espectro:dadireitaàesquerdanomundodasideias*formatoPDFPerryAnderson

Estadodeexceção*formatoPDFGiorgioAgamben

Estadoeformapolítica*formatoePubAlyssonLeandroMascaro

Extinção*formatoPDFPauloArantes

GaribaldinaAméricadoSul*formatoePubGianniCarta

Globalização,dependênciaeneoliberalismonaAméricaLatina*formatoPDFCarlosEduardoMartins

Hegemoniaàsavessas:economia,políticaeculturanaeradaservidãofinanceira*formatoPDFFranciscodeOliveira,RuyBragaeCibeleRizek(orgs.)

História,teatroepolítica*formatoePubKátiaRodriguesParanhos(org.)

Infoproletários*formatoPDFRuyBragaeRicardoAntunes(orgs.)

IstvánMészároseosdesafiosdotempohistórico*formatoPDFIvanaJinkingseRodrigoNobile

Lacrimaererum:ensaiosdecinemamoderno*formatoPDFSlavojŽižek

Lenin*formatoPDFGyörgyLukács

Marx,manualdeinstruções*formatoePubDanielBensaïd

Memórias*formatoPDFGregórioBezerra

Menosquenada*formatoePubSlavojŽižek

MeuvelhoCentro*formatoPDFHeródotoBarbeiro

Mídia,poderecontrapoder*formatoePub

Page 435: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

DênisdeMoraes(org.)

Modernidadeediscursoeconômico*formatoPDFLedaPaulani

Nolimiardosilêncioedaletra*formatoePubMariaLuciaHomem

Novaclassemédia*formatoPDFMarcioPochmann

Oanoemquesonhamosperigosamente*formatoePubSlavojŽižek

Ocapitalismocomoreligião*formatoePubMichaelLöwy(org.)

Ocaracolesuaconcha*formatoPDFRicardoAntunes

OconceitodedialéticaemLukács*formatoePubIstvánMészáros

Ocontinentedolabor*formatoPDFRicardoAntunes

Odesafioeofardodotempohistórico*formatoPDFIstvánMészáros

Oempregonaglobalização*formatoPDFMarcioPochmann

Oempregonodesenvolvimentodanação*formatoPDFMarcioPochmann

Oenigmadocapital*formatoePubDavidHarvey

Opoderdasbarricadas*formatoPDFTariqAli

Opoderglobal*formatoPDFJoséLuisFiori

Oquerestadaditadura:aexceçãobrasileira*formatoPDFEdsonTeleseVladimirSafatle(orgs.)

OquerestadeAuschwtiz*formatoPDFGiorgioAgamben

Oromancehistórico*formatoPDFGyörgyLukács

Otempoeocão:aatualidadedasdepressões*formatoPDFMariaRitaKehl

Oreinoeaglória*formatoePubGiorgioAgamben

Page 436: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

OvelhoGraça*formatoePubDênisdeMoraes

Occupy:movimentosdeprotestoquetomaramasruas*formatoePubArtigosdeDavidHarvey,EdsonTeles,EmirSader,GiovanniAlves,HenriqueCarneiro, ImmanuelWallerstein, JoãoAlexandrePeschanski,MikeDavis,SlavojŽižek,TariqAlieVladimirSafatle

OpusDei*formatoePubGiorgioAgamben

Oscangaceiros:ensaiodeinterpretaçãohistórica*formatoPDFLuizBernardoPericás

Ossentidosdotrabalho*formatoPDFRicardoAntunes

Padrãodereproduçãodocapital*formatoePubCarlaFerreira,JaimeOsorioeMathiasLuce(orgs.)

Paraalémdocapital*formatoPDFIstvánMészáros

ParaentenderOcapital,livroI*formatoePubDavidHarvey

ParaumaontologiadosersocialI*formatoePubGyörgyLukács

ParaumaontologiadosersocialII*formatoePubGyörgyLukács

Planetafavela*formatoPDFMikeDavis

Poderedesaparecimento*formatoePubPilarCalveiro

Primeirocomotragédia,depoiscomofarsa*formatoPDFSlavojŽižek

Profanações*formatoPDFGiorgioAgamben

Prolegômenosparaumaontologiadosersocial*formatoPDFGyörgyLukács

Revoluções*formatoPDFMichaelLöwy

Rituaisdesofrimento*formatoePubSilviaViana

Saídasdeemergência:ganhar/perderavidanaperiferiadeSãoPaulo*formatoePubRobertCabanes,IsabelGeorges,CibeleRizekeVeraTelles(orgs.)

SãoPaulo:afundaçãodouniversalismo*formatoPDFAlainBadiou

Page 437: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

SãoPaulo:cidadeglobal*formatoPDFMarianaFix

Sobreoamor*formatoPDFLeandroKonder

Trabalhoedialética*formatoPDFJesusRanieri

Trabalhoesubjetividade*formatoPDFGiovanniAlves

Videologias:ensaiossobretelevisão*formatoPDFEugênioBuccieMariaRitaKehl

Vivendonofimdostempos*formatoePubSlavojŽižek

WalterBenjamin:avisodeincêndio*formatoPDFMichaelLöwy

LITERATURA

ABíbliasegundoBeliel*formatoePubFlávioAguiar

Anita*formatoPDFFlávioAguiar

Cansaço,alongaestação*formatoPDFLuizBernardoPericás

Crônicasdomundoaorevés*formatoPDFFlávioAguiar

MéxicoInsurgente*formatoPDFJohnReed

Selvaconcreta*formatoePubEdyrAugustoProença

SoledadnoRecife*formatoPDFUrarianoMota

COLEÇÃOMARX-ENGELSEMEBOOK

AguerracivilnaFrança*formatoePubKarlMarx

Aideologiaalemã*formatoePubKarlMarxeFriedrichEngels

Asagradafamília*formatoePubKarlMarxeFriedrichEngels

AsituaçãodaclassetrabalhadoranaInglaterra*formatoePubFriedrichEngels

Page 438: DADOS DE COPYRIGHT · 2. O valor de troca, o dinheiro e o sistema de preços 3. A teoria do valor 4. A teoria do mais-valor II. Relações de classe e o princípio capitalista da

AslutasdeclassesnaFrança*formatoePubKarlMarx

CríticadafilosofiadodireitodeHegel*formatoePubKarlMarx

CríticadoProgramadeGotha*formatoePubKarlMarx

LutasdeclassesnaAlemanha*formatoePubKarlMarxeFriedrichEngels

LutasdeclassesnaRússia*formatoePubKarlMarxeFriedrichEngels

ManifestoComunista*formatoePubKarlMarxeFriedrichEngels

Manuscritoseconômico-filosóficos*formatoePubKarlMarx

O18debrumáriodeLuísBonaparte*formatoePubKarlMarx

Ocapital,livroI*formatoePubKarlMarx

Osocialismojurídico*formatoePubFriedrichEngelseKarlKautsky

Sobreaquestãojudaica*formatoePubKarlMarx

Sobreosuicídio*formatoePubKarlMarx