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DADOS DECOPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizadapela equipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdopara uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como osimples teste da qualidade daobra, com o fim exclusivo de

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compra futura.

É expressamente proibida etotalmente repudiável a venda,aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceirosdisponibilizam conteúdo dedominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmentegratuita, por acreditar que oconhecimento e a educaçãodevem ser acessíveis e livres atoda e qualquer pessoa. Você

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pode encontrar mais obras emnosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceirosapresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

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Folha de Rosto

Vi r g i n i a Wo o l f

A Viagem

traduçãoLya Luft

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CréditosThe Voyage Out

Copyright da tradução © 2007 by Lya LuftCopyright © 2008 by Novo Século Editora

Ltda.

Produção Editorial: Equipe Novo SéculoCapa: Guilherme Xavier / gxavier.com

Projeto Gráfico: Guilherme XavierComposição: Cintia de Cerqueira Cesar

Tradução: Lya LuftRevisão: Gabriel Kwak

Diagramação para ebook: Janaína Salgueiro

Woolf, VirginiaA travessia das aparências / Virginia Woolf ;

tradução Lya Luft. -- Osasco, SP : NovoSéculo

Editora, 2008.

Título original: The voyage out.

1. Ficção inglesa I. Título.

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08-04464CDD-823

1. Ficção : Literatura inglesa 823

2008

IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTAEDIÇÃO À

NOVO SÉCULO EDITORA LTDA.Rua Aurora Soares Barbosa, 405 – 2º andar

CEP 06023-010 – Osasco – SPFone (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323

[email protected]

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Dedicatória

Para L.W.

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Prefácio

A Viagem deve ser saboreadocomo o primeiro romance deVirginia Woolf. Foi certamente otrabalho mais difícil de suabrilhante carreira. Em agosto de1906 ela escreveu à amiga VioletDickinson contando ter escrito 40páginas manuscritas. Segundoestudiosos essas 40 páginaspodem ter sido o início de AViagem. Ela embarca no livro pravaler em 1907. Mas levarão noveanos antes de seu primeiro

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romance emergir. Consta que aidéia teria começado em 1904.Nesse ano, depois da morte dopai,ela e os três irmãos deixarama sorumbática atmosfera vitorianada casa em Hyde Park Gate, ondetantas perdas ocorreram, emudaram-se para o alegre bairrode Bloomsbury onde as mentesfinalmente floresceram e ondeteve início o lendário grupo demodernistas que ficariaconhecido como The BloomsburyGroup. Até a entrega para

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publicação, pela editora do meio-irmão Gerald Duckworth, em1913, o livro teve várias versõese três títulos – Valentine,Melymbrosia e The Voyage Out.A versão definitiva é esta, que oleitor brasileiro tem emmãos,perfeitamente traduzida porLya Luft (que também traduziu amaior parte da obra de VirginiaWoolf publicada no Brasil). TheVoyage Out teve sua primeiraedição lançada em 1915, quandoVirginia tinha 33 anos. Estava há

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três anos casada com LeonardWoolf.

Ao começar o livro, aindacomo Virginia Stephen, solteira,ela vinha de várias perdasirreparáveis – a morte damãe, dameia-irmã, do pai e, em 1906, amorte do irmão Thoby. Mortesdevastadoras. Durante o processoVirginiapassou por muitas eprofundas crises mentais,tentativas desuicídio, culminandocom um longo internamentoassimque o livro foi

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lançado.Tudo isso está esmiuçadonas váriasbiografias, nas tesesacadêmicas e nos diários, cartas ememórias da escritora. Durante avida e até seu suicídio em 1941Virginia passou por tantas crisese internamentosque, em 17 deabril de 1928, numa carta bemhumorada aosobrinho QuentinBell (carta citada na biografiadefinitivade VW por HermioneLee publicada pela Chatto&Windus, 1996) depois de visitaro asilo de St Rémy, naProvence,

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onde Van Gogh fora internado,Virginia, encantada com o lugarconsiderou a idéia de serinternada ali apróxima vez quepirasse.

Mas, voltando ao seu primeiroromance, para nós, brasileiros, éuma honra, até então nãodivulgada, que Virginiatenhaescolhido para a ação do romanceum vilarejo – fictício, é claro –situado em algum lugar no nortedo Brasil.

O primeiro romance de

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Virginia Woolf se passa noBrasil?!

Pois é. É bem verdade que emnenhuma, das tantas páginas dolivro, ela é explícita em citar oBrasil. Se por umlado, talvez poruma consciente ignorânciageográfica, elatenha preferido nãose comprometer e generalizarpara al-gum lugar fictício naAmérica do Sul situado “na bocadoAmazonas”, nós, brasileiros,lendo o romance e tendo umacerta noção de geografia,

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imaginamos o lugar entreMaranhão e “a boca doAmazonas”. O pai deRachelVinrace,a heroína,é donode uma frota de navios cargueirosque faz rota entre o estuário doTâmisa, em Londres, eBuenosAires. Euphosyne, o navio que faza viagem do título – como eracomum em navios de carga - levaalgunspoucos passageiros, anegócio ou turismo – entre eles ocasal Dalloway (que faz só umtrecho da viagem - a

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deliciosaSra. Dalloway, queVirginia entregará ao público emMrs.Dalloway, 1925, uma décadadepois do lançamento de AViagem) e os tios de Rachel,ocasal Ridley e HelenAmbrose.Helen, irmã de Theresa(a falecida mãe de Rachel)convence o pai deixar a filha sobseu cuidado para educá-la.Rachelestá com 24 anos.Rachel e os tios deixam o naviono portode Santa Marina onde ocasal tem uma villa. O vilarejo

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temtambém um hotel cujoshóspedes, ingleses classe médiadevárias idades e extrações,improvisam uma típicacolôniainglesa entre portuguesesresidentes - e filhos destescomíndios que também têm filhoscom espanhóis. A paisagem éexuberante – rios gigantescos,florestas deslumbrantes eopressivas, praias, o mar, aluminosidade do céu, astransformações climáticasinfluindo no estado de espírito

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dos personagens, namoros enoivados, as vidas seentregam,como só os ingleses seentregam, ao paraíso e ao infernodesse meio ambiente. O livrocertamente deve muito de suainspiração a uma viagem aPortugal e Espanha feita em 1905por Virginia e o irmão caçulaAdrian. No cenário nortebrasileiro tem até plantações deoliveiras, casas comlareira eoutras características dapaisagem ibérica.

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Numquestionário que fiz em 1996com Quentin Bell, sobrinhoeprimeiro biógrafo de VirginiaWoolf e seu amigo de toda a vida,perguntei sobre A Viagem sepassar no Brasil. Quentinrespondeu:“As noções deVirginia sobre a Américado Suleram grotescas. Ela tinha umaamiga, VictoriaOcampo, deBuenos Aires, que tinha deexplicar a ela quea Argentina nãoera uma floresta com jacarés eborboletastão grandes quanto

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urubus e com nativos perseguidosporpumas. A colônia de línguainglesa de The Voyage Out sóexistia na imaginação dela.” (Aamizade de Virginia com VictoriaOcampo começou na década de1930, duas décadas depois de AViagem.) Sua imaginação estavasempre viajando por continentesonde nunca esteve. Só mais parao fim da vida Virginia, que nuncaestivera na América, consideravaa idéia de visitar os EstadosUnidos.)

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O romance, em se tratando deVirginia Woolf, contém umavastidão de elementosautobiográficos. Helen e Ridleylembram os pais da autora (Helenlembra também sua irmãVanessa). Rachel, é claro, temmuito delamesma,Virginia.TerenceHewet,com quem a heroína acabanoivando, tem mais do cunhadoClive Bell mas também algo deLeonard Woolf (a quem eladedica o livro). Para St.John

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Hirst, cujo homossexualismorecebe no livro um tratamentovelado,Virginia tomou comomodelo o amigo Lytton Strachey(Strachey e Virginia, antes de eladecidir-se por Leonard, flertarama idéia, logo descartada, de secasarem). Lady Ottoline Morrell(que também irá inspirarpersonagens em romances deAldous Huxley e D.H.Lawrence)em A Viagem inspirou Virginia acriar a entusiasmada Mrs.Flushing. E assim outros, como a

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espevitada e comovente EvelynMurgatroyd, filha de mãesolteira,fã de Garibaldi, fugindodo assédio de Sinclair e Perrottmas atrás do ambíguo St. JohnHirst, que foge dela como o diaboda cruz.

O sabor maior de A Viagemestá nos diálogos e nashistóriasnarradas pelos personagens.Embora de partodifícil (as váriasversões do livro) já brota aqui,auspiciosamente, o humor deVirginia Woolf. Nada é

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previsível,tudo é surpresa echoque. Os personagens sãoextremamente tagarelas. Emmomentos de puro lampejosãoacudidos por revelaçõesdefinitivas. Talvez por issoumdeles pense escrever umromance sobre o silêncio. Esendoingleses, volta e meia estão sepreparando paramais uma sessãode chá. Virginia ciclotímica nofluxo daconsciência. Uma hora éassim, outra hora é assado.Repentinamente as personagens

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se cansam de achar tudo ótimo e,irritadíssimas, descarregam fel evenenoumas nas outras. Defeminina, feminista, magra,delicada, compassiva, Virginiavira fera, botinuda, e chuta obaldemandando tudo às favas. Mas sãofavas contadas. Logo ela voltacheia de compaixão. E quem saiganhando é o leitor, porque tudo éritmo, genialidade, paixão,pathos.E a opressão geográfica provocaora o maior bem estar, ora umainsustentável irritabilidade. O

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paraísotropical se transforma emcovil de serpentes. Mas, passadaa tempestade, a crise, ademolição, volta a solidariedade,a amizade, o amor, oentendimento. Nada é simples,tudo é complexo, complexos sãoa autora e a América do Sul ondetodos se encontram. À medida emque o livro vai caminhando parao fecho, do capítuloXXI até ocapítulo XXV, não dá mais paraler de umasentada só, como se dizdas obras fáceis. O sofrimento

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sem fim, a longa agonia, o delírioe finalmente a mortede Rachel éum dos capítulos mais profundose tocantesde toda a obra deVirginia Woolf.

Em 2003 a InternationalVirginia Woolf Society, sediadanos EUA, convidou-me acolaborar em um número especialdo Virginia Woolf Miscellany,órgão da sociedade, númerodedicado às traduções de VW nomundo todo. Coube a mimescrever sobre as traduções

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brasileiras, desde Mário Quintana(Mrs.Dalloway) e CecíliaMeireles (Orlando) às maisrecentes, de Lya Luft e outros tãobons quanto. A pergunta geral era:Virginia Woolf viaja bem emtraduções? Meu texto veio emprimeiro lugar, logo após aintrodução de Patricia Laurence,a editora, que escreveu: “Estenúmero nos leva à Europa, aoOriente Médio, ao ExtremoOriente e faz dela [Virginia] umalocal. Como afirma vivamente

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Antonio Bivar sobre as traduçõesem língua portuguesa, ‘é como seVirginia Woolf fosse uma grandeescritora brasileira’. Cada umdos artigos aqui devem serapresentados do mesmo modo

– como se Virginia Woolffosse japonesa, hebréia,espanhola, francesa...” E escrevi:“Virginia Woolf viajaperfeitamente bem em nossalíngua. E que coincidência: emseu primeiro romance, TheVoyage Out (A Viagem), o

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cenário onde se passa a ação é aAmérica do Sul. JaneWheare,editora e autora daintrodução e notas da edição de1992 de The Voyage Out, nacoleção Penguin/Twentieth-Century Classics escreveu: ‘SantaMarina é uma cidade imagináriasituada (de acordo com asdescrições no romance) noBrasil, na boca da Amazônia’.”

Antonio Bivar

Membro do The Virginia Woolf

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Society of Great Britain

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Introdução

Minha tia Virginia Woolf foirealmente uma grande escritora?Quando eu ainda era adolescente,umas poucas pessoas pareciampensar assim, embora não tantasquanto hoje, e suas vozesespalhavam-se mais debilmente,nem muito convencidas nem muitoconvincentes. Mas naquele tempoo mundo era infinitamente menore a palavra ‘grande’significavaalgo diferente.Aliava-se a algumacoisa tremenda, gigantesca e

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granítica, e apesar de JaneAusten, Charlotte Brontë eGeorge Eliot, era duvidoso queuma mulher pudesse aspirar a talcondição.

Às vezes me perguntavam oque eu achava e eu não sabiaresponder: a pergunta me pareciadescabida, não combinava com ofato de Virginia ser minha tia. Seisso expressa meu próprionarcisismo, também expressa aseriedade com que Virginiaassumia seu papel de tia. Mas

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como Rachel Vinrace em Aviagem, eu não apenas suspeitavade que meu interlocutorexagerava, aumentava o temasegundo seus próprios objetivos,como também ficava calada pornão saber o que responder deverdade.

Isso em parte ocorria porqueeu não apenas conhecia Virginiacomo membro da família – umdos ‘adultos’ –, mas porque,tendo o privilégio de escutar atrásdos bastidores, sabia que estava

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longe de ser perfeita. Podíamosprovocá-la, rir dela, às vezes nasua frente, mas em geral às suascostas. Virginia a egoísta,Virginia a desastrada, Virginia adistraída, Virginia a exagerada, aesnobe e mexeriqueira. Minhafamília raramente elogiava seuspróprios membros: virtude eraconsiderada coisa natural porquedefeitos comuns – habitualmentetolerados – eram muito maisdivertidos de se comentar.

Mesmo assim, a verdade

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(oposta à exatidão) eraimportante, e eu sabia que erapreciso ser fiel a ela: mas queproposição impossívelrelacionada a alguém tão próximode mim, tão protéico, tão esquivo,irônico e inconclusivo. Paraminha autodefesa eu costumavadizer que preferia seus ensaioscríticos aos romances, mas hojevejo que minha mente não estavapronta para ser excitada efertilizada pela maravilhosaimaginação de Virginia. Estava na

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fase em que ainda precisavaidentificar-me com heróis eheroínas, e não existe nenhum nosromances de Virginia: sãoindivíduos e personalidades, masencarados com um distanciamentoque se recusa a conferir-lhes asproporções de uma CatherineEarnshaw ou um Julien Sorel.Apesar de toda a sua simpatia eafeição, Virginia vê com o olhomais do que com o coração, e éum olho colocado na lente de umtelescópio ou no topo do

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Monumento. Teria sido precisomais conhecimento, maisimaginação do que estava a meualcance, para apreciar os talentosespeciais de Virginia comoromancista.

A viagem não é um romanceapreciado pelos que não podemtolerar certa distância entre elesmesmos e o tema. A identificaçãocom Rachel, Terence ou Helen sótrará decepção, pois, não sendosobre-humanos, eles não podemnos levar a essa condição. Com

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exceção talvez de HelenAmbrose, são as pessoas maiscomuns do mundo. São tambémarquétipos de homem e mulher,um pouco achatados peladistância, como se avistadosmuito cedo de manhã, através deum nevoeiro.

Pois este, devemos lembrar, éum primeiro romance, publicadoem 1915. Virginia estava testandosuas asas. As penas já estão ali,essas que a farão pairar alto semesforço, mas no momento há um

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grande encanto nessa experiêncianova, a aurora do seu protestocontra romantismo e realismo,afirmado por uma jovem mulherque, embora inexperiente, já écapaz de um ponto de vistaintelectualmente maduro esofisticado.

No capítulo XVI de Aviagem,Terence Hewet, namoradode Rachel Vinrace, diz: “Eu queroescrever um romance sobre osilêncio, as coisas que as pessoasnão dizem. Mas a dificuldade é

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imensa”. Olhava-a quase comseveridade. “Ninguém se importa.Só se lê um romance para ver quetipo de pessoa é o escritor e, se éconhecido, para ver quais de seusamigos ele botou lá dentro.”

Essa é uma queixa que aprópria Virginia pode ter feito detempos em tempos.Talvez nãofosse muito séria,ou esperamosque não, pois para nós, leitoresde sua obra, um dos maioresprazeres é a oportunidade de verdentro da mente de Virginia.

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Humana, pessoal e bem-humoradacomo sempre é uma face dela,aumenta a nossa sensação deintimidade se pudermosdistinguir, entre seus persona-gens e situações, personalidadese reações que se ligam ao quesabemos sobre sua própria vida.Mas há um motivo mais profundo,o de que a mente de Virginia eraexcepcional; seus interesses,amplos e variados; suas emoções,profundas; suas convicções,apaixonadamente defendidas

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– mais que isso, sentimos queela não dirá nada em que nãoacredite. Já que este é umromance muito preocupado comum senso de discriminação e devalores, sua própria mente evisão são em grande parte overdadeiro tema deste livro: nãoas poderíamos evitar ainda quequiséssemos. Elas são o ar quedurante essa extraordináriaviagem temos o privilégio derespirar.

Os eventos que formam o

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romance são extremamentesimples. Depois de uma viagematravés do oceano para aslatitudes do Sul, durante a qual aheroína sente o frêmito de serbeijada por um homem com quaseo dobro de sua idade, ela seapaixona por um rapaz chamadoTerence Hewet. Seu amor mútuo,visto subjetivamente e semromantismo, é colocado diante deum pano de fundo, em boa partecômico, composto por turistasjovens e velhos hospedados no

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hotel local. Aparentementedestinado a uma relação maishonesta e verdadeira do que ohabitual, o noivado acaba com adoença e a morte de Rachel, edepois disso nos é mostrado que,não importa qual a tragédia, avida continua sem maioresalterações.

Contada sem rodeios, ahistória é tão banal que pode serdifícil compreender por quedeveríamos nos dar ao trabalhode lê-la. Mas escolhendo uma

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moldura tão simples, Virginiatornou possível concentrar-senaqueles temas que elaconsiderava importantes. Rachele Terence, mesmo HelenAmbrose, não são notáveis:conquistam nossa simpatia porqueos vemos lutando contra forçasmais poderosas que eles.

Desde o começocompreendemos que Helen, amulher mais velha, mãe e esposaarquetípica, está cheia depressentimentos. Verdade que

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podemos sentir que seus receiosquanto aos próprios filhos sãoexagerados, mas durante o livroficamos muito conscientes daextensão de sua experiência: elaem alguma ocasião anteriorencarou a morte, e com relação aisso tem uma profundidadepsicológica maior do quequalquer outra pessoa noromance. Esposa, mãe eenfermeira, ela também é aobservadora, a sábia Oinone,confidente de Fedra, que observa

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e comenta, a um só tempocompreensiva e cética porquesabe que não temos liberdadepara fazer o que desejamos. Equando no final chegamos à mortede Rachel, nós a vemos comoresultado dessa vulnerabilidade.A vida, impiedosa e violenta,esmaga os jovens e corajososbem como os velhos e os fracos,mas por causa de sua imensurávelvitalidade nós nos apaixonamospor ela: apesar de tudo, ela temde continuar.

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Isso não quer dizer que adoença e a morte de Rachel sejamdescritas de maneira desumana,sem emoção. Ao contrário, aexperiência é vista primeiro daperspectiva dela e depois da deTerence, com um realismovisionário que só pode ter sidoadquirido através do sofrimentopessoal. Em seus 33 anos de vida,Virginia teve um contatoterrivelmente íntimo com a morte.Sua mãe morrera quando ela tinha13 anos, e dois anos depois sua

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adorada meio-irmã StellaDuckworth morreu de peritonite,morte mais triste ainda porquecasada poucos meses antes com oadvogado Jack Hills, elaflorescera depois de umajuventude à sombra de suabrilhante mãe. Depois, nove anosmais tarde, em 1906, o irmãomais velho de Virginia, Thoby,morreu de tifo, diagnosticadotarde demais, após um feriadoque passaram juntos na Grécia.

É mais do que provável que o

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romance seja um reflexo dessesacontecimentos traumáticos e umesforço de colocálos numaperspectiva literalmentesuportável, com a experiênciapessoal de Virginia deenfermidade aliada a colapsomental. Mesmo que, como sugereQuentin Bell, ela tivessecomeçado a pensar emMelymbrosia, como se chamava olivro no começo, em 1904, foi sónos dois anos seguintes à mortede Thoby que ele adquiriu

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importância suficiente paraVirginia falar a respeito dele. Foientão que mostrou os capítulosiniciais a seu cunhado Clive Bell,que lhe deu excelentes conselhosencorajadores. Diz-se que elaescreveu ao todo sete versõesdiferentes, completando a versãofinal, mas ainda não corrigida,pouco antes de seu casamentocom Leonard Woolf, em 1912.Mesmo então, principalmentedevido à enfermidade, apublicação foi adiada até 1915,

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quando ela estava demasiadoperturbada mentalmente paraapreciar o acontecimento.

Em sua necessidade deescrever, ainda queobliquamente,sobre seu própriosofrimento,Virginia escolheu – outalvez tenha sido forçada pelaintensidade de seus sentimentos –assumir a visão do topo damontanha, de onde, embora aspessoas pareçam menores, o ar éclaro, transparente e seco. Suaextraordinária capacidade de ser

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fiel a suas próprias sensações,enquanto de um lado evita osentimentalismo, também incluitraços de misticismo, da idéia deque a morte também implicalibertação e êxtase. Todo ocapítulo XXV, com o patético e oridículo que se ligam aosofrimento, testemunha o gênio deVirginia.

Embora, como em todas astragédias, a vida triunfe, Virginianão a condena nem sequer tentaaplacá-la. Para ela é uma força

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incontrolável com a qual cada umprecisa aprender a lidar,misericordiosamente entremeadapor uma comédia irônica eeventualmente hilariante. Oheterogêneo grupo de pessoasreunidas aleatoriamente no hotelnão é apenas um contraste com avida na villa, como o é o coronuma peça grega, mas umaoportunidade para Virginiademonstrar sua capacidade deobservação, seu afeto e humor,seu amor pelo idiossincrático,

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que, sem ser tratado comcrueldade ou superficialmente,continua próximo o bastante darealidade para ser genuinamenteengraçado. Apesar de suaspeculiaridades, essas são pessoasmuito comuns, humildes edespretensiosas. São iluminadascomo que por uma tocha à noite, esomos alertados para uma visãonova e original de seres humanostrazidos ao foco pelodistanciamento da visão deVirginia. Percebemos ligações até

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então despercebidas entrepessoas e o modo como vivem, eficamos a um tempo comovidos edeliciados.

Helen é uma precursora deMrs. Ramsay em Passeio aofarol, um retrato da mãe deVirginia, Julia Stephen,partilhando, tal como na vidareal, com algo das característicasde sua irmã Vanessa. Mrs.Dalloway, passageira temporáriano Euphrosyne, termina umdiscurso bastante efusivo

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comparando a arte com a vidareal dizendo a Helen: “– Você nãosente que a vida é um conflitoperpétuo? – Helen pensou por uminstante. – Não – disse ela –,achoque não. – Houve uma pausa,decididamente desconfortável”.

A resposta atrevida de Helen,implicando uma crítica tácita, asensação de que os valores deMrs. Dalloway são de algumaforma falhos, lembra Vanessa que,quando tímida ou socialmenteinfeliz, ou surpreendida em

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contradição sem poder explicarpor quê, pronunciava um ‘sim’monossilábico, ou um ‘não’, numavoz profunda e irrespondível,reduzindo seu interlocutor aosilêncio. Próprio dela também é aocasião em que Helen muda ascadeiras no Euphrosyne “para daraos homens um aposento só deles.Ela arrancou da mesa uma toalhade veludo. A aparência do lugarmelhorou maravilhosamente”.Vanessa, e Julia também, tinhamtalento para improvisar conforto,

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e quem quiser poderá ler nessegesto uma atitude levementeimpaciente e irônica com o sexomasculino que, apesar de toda asua aparente superioridade,dependia inteiramente dasmulheres para algo tão fácil deter. Uma apologia da igualdadedas mulheres percorre o livro, eRachel pode ser vista, a seumodo, passiva e bastantenegativa, como símbolo da novageração que está na iminência detransformar a relação entre os

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sexos.Mesmo assim, como se disse

que havia em Julia, há algo demundano em Helen: ela temestilo, um savoir faire social, eaté uma habilidade de manipularpessoas

– embora não necessariamentecomo Clarissa Dalloway,encantando-as –, que é parte dopoder e da atração desuapersonalidade. É ela quemapresenta a Rachel um modo maisamplo e tolerante de pensar, e tem

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a generosidade de encorajá-la aser ela mesma. E embora Racheldificilmente seja mais do que umcabide para pendurar certasexperiências e sentimentos,muitas vezes sentimos que esteseram os de Virginia. Maiscaracterístico de Virginia, porexemplo, é a visão de Rachel daárvore em seu caminho ou dogrupo de pessoas paradas diantedo hotel que visto “comintensidade espantosa... pareciauma visão no escuro, à noite...

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Por um momento nada pareceuacontecer”. É um momento quasemístico, uma experiência notávelpor si só, simbolizando o estadode apaixonamento de Rachel.

A veracidade e a totalausência de sentimentalismo comque esse amor é mostrado não sãoapenas características da própriaVirginia, mas integram suascrenças como artista. Foi precisocoragem e tenacidade para nadarcontra a forte corrente deromantismo que ainda prevalecia

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na época, e através do livro todoela é leal ao que reconhecemoscomo sua estrela-guia, caminhodo qual, uma vez tomado, elanunca se apartará. Quando nosrecuperamos do choque de nãonos darem uma resposta fácil,vemos que ela está certa, ela émaior que a soma das partes, elaé confiável. Assim apaziguados,podemos nos atrever a ler o livropor suas qualidades abstratas, seuritmo musical, lembrando assutilezas de Debussy ou Ravel;

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seu emprego da metáfora visualpara intensificar uma emoção eremover o entulho, o peso de umevento descrito muitofactualmente; a atmosfera oníricaengendrada primeiro pelo mar edepois pelo país semitropical emítico em que nos encontramos(outra metáfora para a própriavida); e o entrelaçamento dospersonagens menores, descritoscom uma simpatia e afeto queprovam que o distanciamento deVirginia está longe da

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indiferença. Não lemos um livrodesses por sua semelhança comnossas próprias vidas mas porseu poder de discernimento, que,ele nos ensina, tem seu própriovalor, raramente encontrado edifícil de adquirir.

Angelica Garnett,

Presidente honorária de TheVirginia

Woolf Society of Great Britain

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Como as ruas que levam doStrand ao Embankment são muitoestreitas, é melhor não caminharde braço dado. Se você insistir,empregados de escritórios deadvocacia terão de saltar na lama;jovens datilógrafas terão de trotarnervosamente atrás de você. Nasruas de Londres onde a belezanão é percebida, a excentricidadetem de pagar o pato, e é melhornão ser muito alto, usar umcasaco azul comprido ou abanar o

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ar com a mão esquerda.Certa tarde no começo de

outubro, quando o tráfego setornava agitado, um homem altoveio a passos largos pelabeira dacalçada com uma dama pelobraço. Olhares iradosbatiam nascostas deles. As figuras pequenas,agitadas – pois em comparaçãocom o casal a maioria daspessoas parecia pequena –adornadas com canetas-tinteiro,carregadascom pastas dedocumentos, tinham

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compromissos a cumprir eganhavam salário semanal, demodo que havia alguma razãopara o olhar pouco amistosolançado sobre a altura de Mr.Ambrose e o casaco de Mrs.Ambrose. Mas algumencantamento colocara homem emulher além do alcance damalícia e da impopularidade. Nocaso dele, podia se adivinharpelos lábios que se moviam queera o pensamento; e no caso dela,pelos olhos empedernidos e

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fixosà sua frente num nível acimados olhos da maioria, via-se queera tristeza. Só desprezando todosos que via ela conseguia conter aslágrimas, e o atrito de pessoasroçando nela, ao passar, eraevidentemente penoso. Depois deobservar o tráfego noEmbankment por um minuto oudoiscom olhar estóico e fixo, elapuxou a manga do maridoeatravessaram em meio a rápidapassagem dos automóveis.Quandoestavam a salvo do outro lado,

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ela docemente retirou o braço dodele ao mesmo tempo em quedeixava suaprópria boca relaxar etremer; então lágrimas rolarame,apoiando os cotovelos nabalaustrada, ela protegeu orostodos curiosos. Mr. Ambrosetentou consolá-la; deu-lhepalmadinhas no ombro; mas elanão mostrava sinais de deixaraproximar-se e, sentindo serinconveniente ficar parado juntode uma dor maior que a sua, elecruzou os braços nascostas, e deu

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uma volta na calçada.O Embankment sobressai em

ângulos aqui e ali como púlpitos;entretanto, em vez de pregadores,menininhos os ocupam,balançando cordas, jogandopedras ou lançando folhas depapel para um cruzeiro. Com umolho acurado paraexcentricidades, inclinavam-se aachar Mr.Ambrose pavoroso; masum espertinho mais rápido gritou“Barba Azul!” quando ele passou.Para o caso de passarem a

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aborrecer sua esposa, Mr.Ambrose brandiu sua bengala nadireção deles, o que fez com queresolvessem que ele era apenasgrotesco, e quatro gritaram emcoro,em vez de um só: “BarbaAzul!”

Embora Mrs. Ambrose ficassebastante quieta, muito mais tempodo que é natural, os menininhos adeixaram em paz. Sempre háalguém olhando o rio perto daPonte de Waterloo; um casal ficaali conversando meia hora numa

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bela tarde; a maior parte daspessoas, caminhando por prazer,fica olhando por três minutos;depois tendo comparado aocasião com outras ocasiões, outendo dito alguma frase, seguemadiante. Às vezes as casas,igrejas e hotéis de Westminstersão como os contornos deConstantinopla num nevoeiro; àsvezes o rio é de um roxoopulento, às vezes cor de lama, àsvezes de um azul cintilante comoo mar. Sempre vale a pena olhar

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para baixo e ver o que estáacontecendo. Mas aquela senhoranão olhava nem para cima nempara baixo: a única coisa que viradesde que estava ali parada eraum pedaço de pano circulariridescente que passava flutuandolentamente com uma palha nomeio. A palha e o paninhoseguiam seu nado sob o véutrêmulo de uma grande lágrimaque brotava, e a lágrima cresceu,caiu e tombou no rio. Então elaouviu ali perto:

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Lars Porsena de Clusium

Ele jurou pelos nove Deuses

e depois, mais débil, como seo falante tivesse passado por elana sua caminhada:Que a Grande Casa de TarquínioNão deverá sofrer mais reveses.

Sim, ela sabia que precisavavoltar para tudo aquilo,mas nomomento tinha de chorar.Protegendo o rosto ela soluçou

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mais do que antes, os ombroserguendo-se e caindo com granderegularidade. Foi essa imagemque seu marido viu quando, tendochegado à Esfinge polida, ten-dose enredado com um homem quevendia cartões-postais, ele sevirou; o poema interrompeu-seimediatamente.Ele foi até ela, pôsa mão em seu ombro e disse:

– Querida.Sua voz era suplicante. Mas

ela escondeu o rosto como sedissesse: “Você jamais poderia

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entender”.Mas como ele não a deixasse,

ela teve de enxugar os olhos eerguê-los ao nível das chaminésda fábrica na outra margem.Também viu os arcos da Ponte deWaterloo e as carroças movendo-se através deles, como a fila deanimais numa barraca de tiro aoalvo. Ela as via claramente, masver alguma coisa era naturalmenteparar de chorar e começar aandar.

– Eu preferia andar – disse

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ela, depois de o marido terchamado um táxi já ocupado pordois homens da cidade.

A fixidez do estado de espíritodela foi rompida pela ação decaminhar. Os automóveis emdisparada, mais parecidos comaranhas na lua do que comobjetos terrestres,as carroçastrovejantes, os cabriolésbalouçantes e os pequenos cochespretos fizeram-na lembrar-se domundo em que vivia. Em algumponto acima dos pináculos onde a

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fumaça se erguia numa colinapontuda, seus filhos agoraestavam chamando por ela erecebendo uma respostatranqüilizadora. Quanto aosmontes de ruas, praças e edifíciospúblicos que os separavam, elaapenas sentia, naquele instante,como Londres fizera pouco paraque ela a amasse, embora 30 deseus 40 anos tivessem se passadonuma rua daquelas. Ela sabiacomo interpretar as pessoas quepassavam a seu lado; havia os

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ricos correndo ora das casas, orapara as casas uns dos outros aessa hora; havia os funcionáriosobstinados dirigindo-se em linhareta para seus escritórios; haviaos pobres que eram infelizes ejustificadamente malignos.Embora ainda houvesse solnaquela névoa, velhos e velhasmaltrapilhos cochilavam nosbancos. Quando se desistia de vera beleza que vestia as coisas,aquele era o esqueleto que ficavapor baixo.

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Agora uma chuvinha fina adeixava ainda mais melancólica;furgões com os nomes esquisitosdos que se dedicam aindústriasbizarras – Sprules, Manufatura deSerragem;Grabb, que não deixaescapar um pedacinho de papeldesperdiçado – soavam comouma piada ruim; amantes ousados,ocultos atrás de um só casaco, lhepareciam sórdidos nasua paixão;as floristas, grupo alegre, cujafala sempre vale apena escutar,eram velhas feias e estúpidas; as

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flores vermelhas, amarelas eazuis, comprimidas umas contraas outras,não resplendiam. Alémdisso, seu marido, caminhandocomum passo rápido e ritmado,eventualmente acenando comsuamão livre, não era nem umviquingue nem um Nelsonferido;as gaivotas tinham mudado o jeitodele.

– Ridley, vamos de carro?Vamos de carro, Ridley? Mrs.Ambrose teve de falar alto; a essaaltura ele estava distante dela.

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O fiacre, trotando firme aolongo da mesma rua, em breve osafastou de West End,mergulhando-os em Londres.Parecia ser uma grande fábrica,onde as pessoasestivessemengajadas em fazer coisas, comose West End,com seus lampiõeselétricos, suas enormes janelas devidrobrilhando amarelas, suascasas bem acabadas e minúsculasfiguras vivas trotando na calçadaou carregadas sobre rodas,fosse oproduto acabado. A ela parecia

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um trabalho muitopequeno parater sido feito por uma fábrica tãoenorme.Por alguma razão,pareceu-lhe como uma pequenaborla deouro na ponta de umvasto sobretudo negro.

Observando que não passavampor outro fiacre, mas só furgões ecarroças, e que nenhum daquelesmilhares de homens e mulheresque ela via era cavalheiro oudama,Mrs. Ambrose entendeu queafinal a coisa comum é ser pobre,e que Londres é uma cidade de

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inumeráveis pobres. Espantadacom essa descoberta e vendo-secaminhando em círculo todos osdias de sua vida em torno dePiccadilly Circus, ela ficouimensamente aliviada ao passarpor um edifício destinado peloConselho Municipal de Londres aEscolas Noturnas.

– Meus Deus, como isso aquié triste! – resmungou seu marido.– Pobre gente! Com a aflição porseus filhos, os pobres e a chuva,amente dela era como uma ferida

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exposta para secar no ar.Nesse momento o fiacre parou,

pois estava na iminência de seresmagado como uma casca deovo. O amploEmbankment,quetivera espaço para esquadrões ecanhões,agora encolhera,tornando-se uma ruela calçada depedras,fumegando com odores demalte e óleo e bloqueadaporcarroças. Enquanto seu maridolia os cartazes colados notijoloanunciando os horários em quecertos navios partiriam para a

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Escócia, Mrs. Ambrose tentavaencontrar informação. De ummundo ocupado exclusivamenteem carregar carroças com sacos,meio obliterado também numafinanévoa amarela, eles nãoconseguiam nem ajuda nematenção. Pareceu um milagrequando um velho se aproximou,adivinhou o estado em que seachavam e propôs leválos para onavio no barquinho amarrado nofundo de um lance de degraus.Hesitando um pouco, confiaram-

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se a ele,ocuparam seus lugares eem breve estavam ondulandosobre as águas, Londres reduzidaa duas linhas de edifíciosdos doislados deles, construçõesquadradas econstruçõesretangulares em filascomo uma avenida de bloquinhosdemadeira construída por umacriança.

O rio, numa turva luz amarela,corria com muita força; balsasenormes passavam rápidas,escoltadas por rebocadores;

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barcos da polícia passavam portodos em disparada; oventosoprava na direção da torrente. Obarco a remo, aberto, em queestavam sentados, pulava ebalançava, cruzando a linha dotráfego. No meio do rio o velhopousou as mãossobre os remos ecomentou, enquanto a águapassava velozmente, que outroralevava muitos passageiros, masagorararamente havia algum.Parecia lembrar uma época emqueseu barco, ancorado entre

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juncos, carregava pésdelicadospara o outro lado, paraos relvados de Rotherhithe.

– Agora eles querem pontes –disse, apontando o contornomonstruoso da Ponte da Torre.Helen contemplou tristonha ohomem que estava pondo águaentre ela e seus filhos. Tristonha,olhava o navio do qual estavamse aproximando; ancorado nomeio da torrente, podiam lerobscuramente seu nome:Euphrosyne.

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Na névoa que baixava podiamver muito difusamente as linhasdo cordame, os mastros e abandeira escura que a brisainflava para trás.

Quando o barquinho se alinhoucom o vapor, o velho largou seusremos e comentou mais uma vez,apontando para cima, que naviosdo mundo todo usavamaquelabandeira no dia de partir. Nasmentes de ambosos passageiros abandeira azul pareceu umpresságio sinistro, e aquele, um

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momento para pressentimentos,mas mesmo assim levantaram-se,juntaram suas coisas esubiram aoconvés.

Lá embaixo, no salão do naviode seu pai, Miss Rachel Vinrace,de 24 anos, estava esperando depé, nervosa, seu tio e sua tia. Paracomeçar, embora parentespróximos, ela quase não selembrava deles; ainda por cimaeram idosos,e finalmente, comofilha do seu pai, ela tinha de estarpreparada para distraí-los de

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alguma forma. Esperava por elescomo gente civilizada em geralaguarda a primeira visão de gentecivilizada, como se fosse danatureza deles a iminência de umdesconforto físico – um sapatoapertado ou uma janela comcorrente de ar. Estava numaanimação pouco natural pararecebê-los. Enquanto se ocupavacolocando garfos esmeradamenteao lado de facas,ouviu uma vozmasculina dizer em tom sombrio:

– Numa noite escura pode-se

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cair de cabeça nesta escada.Euma voz feminina acrescentou: -Emorrer. Ao pronunciar as últimaspalavras ela apareceu na porta.Alta, olhos grandes, enrolada numxale roxo, Mrs.Ambrose eraromântica e bela; talvez nãosimpática, pois seus olhosfitavam diretamente e analisavamo que viam.Seu rosto era muitomais cálido do que um rostogrego;por outro lado, era muitomais audacioso do que os rostosde mulheres inglesas bonitas

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costumavam ser.Ah, Rachel, como vai? – disse

ela, apertando a mão da outra.Como vai, querida? – disse

Mr. Ambrose, inclinando acabeça para que a moça obeijasse. A sobrinhainstintivamente gostou do corpomagro e anguloso dele, e dacabeça grande com traçosimperiosos, e dos olhos agudos einocentes.

– Avise Mr. Pepper – pediuRachel ao criado. Marido e

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mulher sentaram-se então a umlado da mesa com a sobrinha nafrente.

– Meu pai me pediu quecomeçasse – explicou-lhe ela.

– Está muito ocupado com oshomens... Conhecem Mr.Pepper?Um homenzinho curvado, comoalgumas árvores se curvam com ovento que sopra de um lado,esgueirara-se para a sala.Cumprimentando Mr. Ambrosecom um ace-no de cabeça,apertou a mão de Helen.

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– Correntes de ar – disse ele,levantando o colarinho do casaco.

– Ainda está com reumatismo?– perguntou Helen.Sua voz erabaixa e sedutora, embora falassecom ar distraído, tendo em menteainda a visão da cidade e do rio.

– Uma vez reumático, semprereumático, eu receio – respondeuele. – Até certo ponto depende doclima, embora não tanto quanto aspessoas pensam.

Seja como for, não se morredisso – disse Helen.

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Geralmente não – respondeuMr. Pepper.

Sopa, tio Ridley? – perguntouRachel.

– Obrigado, querida – disseele e, enquanto estendia o prato,deu um suspiro audível. – Ah! elanão é como a mãe.

– Helen bateu tarde demais ocopo na mesa para que Rachelnãoescutasse e não ficasse vermelhade constrangimento.

– Vejam só como os criadostratam as flores! – ela dis-se

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apressadamente. Puxou em suadireção um vaso verde combeirada rachada e começou a tiraros pequenos crisântemos, quecolocava sobre a toalha da mesa,arranjando-os minuciosamentelado a lado.

Houve um silêncio.– Você conheceu Jenkinson,

não conheceu, Ambrose? –perguntou Mr. Pepper do outrolado da mesa. – Jenkinson dePeterhouse?

Morreu – disse Mr. Pepper.

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Meu Deus! Eu o conheci... fazséculos – disse Ridley.

– Foi o herói daquele acidentede chalana, lembra? Sujeitoestranho. Casado com uma moçade uma tabacaria, e morava nosFens... nunca mais soube dele.

– Bebida,drogas – disseMr.Pepper com sinistra concisão.

– Deixou um ensaio. Disseramque é uma confusão total. – Ohomem realmente tinha grandeshabilidades – disse Ridley.

– Sua introdução a Jellaby se

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mantém – prosseguiu Mr. Pepper–, o que é surpreendente,levando-se em conta como oslivros-texto mudam. – Havia umateoria sobre os planetas, nãohavia? – perguntou Ridley.

– Sem dúvida ele tinha umparafuso frouxo – disseMr.Pepper, balançando a cabeça.

A mesa tremeu e uma luz láfora oscilou. Ao mesmo tempo,uma campainha elétrica começoua tocar, aguda,repetidas vezes.

– Estamos partindo – disse

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Ridley.Uma onda leve mas

perceptível pareceu rolar debaixodo assoalho; depois baixou; entãooutra veio, mais perceptível.Luzes deslizaram fora da janelasem cortinas. O navio deu umuivo alto e melancólico.

– Partimos – disse Mr. Pepper.Outros navios, tão tristes quantoaquele, responderam lá fora, norio. Podiam-se ouvir nitidamenteos gorgolejos e assobios da água,e o naviobalançava tanto que o

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camareiro trazendo os pratos tevedeequilibrar-se quando puxou acortina. Houve um silêncio.

– Jenkinson de Cats... vocêainda tem contato com ele? –perguntou Ambrose.

– Tanto quanto é possível –disse Mr. Pepper. – Nós nosencontramos todo ano. Este anoele teve a infelicidade de perdera esposa, o que naturalmentetornou esse encontro penoso.

– Muito penoso – concordouRidley.

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– Há uma filha solteira quecuida da casa para ele, eu acho,mas nunca é a mesma coisa, nãona idade dele.

Os dois cavalheiros ficarambalançando as cabeçassabiamente enquantodescascavam suas maçãs.

– Havia um livro, não havia? –indagou Ridley.

Havia um livro, mas jamaishaverá um livro – disse Mr.Pepper com tal ferocidade que asduas damas ergueram os olhos

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para ele.Nunca haverá um livro, porque

outra pessoa o escreveu por ele –disse Mr. Pepper com bastanteazedume. – É o que acontecequando se larga tudo paracolecionar fósseis e escavararcos normandos em pocilgas.

– Confesso que simpatizo comisso – disse Ridley num suspiromelancólico. – Tenho um fracopor pessoas que não conseguemengrenar direito na vida.

–... O acervo de toda uma vida

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desperdiçado – prosseguiu Mr.Pepper. – Ele tinha coisasguardadas o bastante para encherum celeiro. – Isso é um vício doqual alguns de nós escapam –disse Ridley. – Nosso amigoMiles tem outra obra publicadahoje.

Mr. Pepper deu um risinhoazedo.

– Segundo meus cálculos –disse –, ele produziu doisvolumes e meio por ano, o que,descontando o tempo passado no

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berço e assim por diante, mostrauma aplicação louvável.

– Sim, o que o velho Masterdisse dele concretizou-sedireitinho disse Ridley.

– Eles tinham lá seu jeito –disse Mr.Pepper.– Conhece acoleção Bruce? Não para serpublicada, claro. – Acho que não– disse Ridley,significativamente. – Para umclérigo ele era... notavelmenteliberado.

– O Pump em Neville’s Row

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por exemplo? – perguntou Mr.Pepper.

– Exatamente – disseAmbrose.

Cada uma das damas, segundoa moda do seu sexo,altamentetreinada para promover aconversa masculina sem a escutar,podia pensar – sobre a educaçãode filhos ou sobre o uso desirenes de nevoeiro numa ópera –sem se trair. Helen apenas seespantou porque Rachel estavatalvez um pouco calada demais

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para uma anfitriã e poderia terocupado suas mãos com algumacoisa.

Talvez... ? – disse ela depois,e ambas se levantaram e saíram,para vaga surpresa dos homens,que ou as julgavam atentas, outinham esquecido sua presença.

Ah, a gente podia contarhistórias estranhas sobre osvelhos tempos – ouviram Ridleydizer enquanto ele mergulhava denovo em sua cadeira. Olhando derelance para trás, na porta, viram

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Mr. Pepper, como se tivesse derepente afrouxado suas roupas,tornando-se um velho macacoanimado e malicioso.

Enrolando véus na cabeça, asmulheres caminhavam no convés.Agora moviam-se constantementerio abaixo,passando pelos vultosescuros de navios ancorados, eLondres era um enxame de luzescom um dossel amarelopálidopousado em cima. Havia as luzesdos grandes teatros, as luzes dasruas compridas, as luzes

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indicando enormes quadrados deconforto doméstico, luzespenduradas no ar. Nenhumaescuridão jamais se instalariasobre esses lampiões assim comonenhuma escuridão se instalarasobre eles em centenas de anos.Parecia assustador que a cidadedevesse arder assim no mesmoponto, para sempre;assustadorpelo menos para pessoas quepartiam para uma aventura nomar, encarando-a como umacolina circunscrita, eternamente

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acesa, eternamente manchada. Doconvés do navio a grande cidadeparecia uma figura agachada ecovarde, um avarento sedentário.

Inclinando-se sobre abalaustrada, lado a lado comRachel, Helen disse:

– Você não vai sentir frio?Rachel respondeu:

Não... Que lindo! –acrescentou um momento depois.Via-se muito pouca coisa: algunsmastros, uma sombra de terraaqui, uma linha de janelas

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brilhantes ali.Tentaram enfrentaro vento.

Está soprando... estásoprando! – arquejou Rachel, aspalavras socadas garganta abaixo.Lutando ao lado dela,Helensubitamente foi dominada peloespírito de movimento e avançoucontra o vento, as saiasenroscando-se em seus joelhos,os dois braços levantados parasegurar o cabelo.Mas lentamenteaquela embriaguez do movimentofoi cedendo, o vento ficou áspero

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e frio. Espiaram por uma fendanacortina e viram que longoscharutos estavam sendo fumadosna sala de jantar; viram Mr.Ambrose lançar-se violentamentecontra o encosto de sua cadeira,enquanto Mr.Pepper enrugava asbochechas como se tivessem sidocortadas em madeira. O fantasmade uma grande risada veio atéelase foi imediatamente engolido pelovento. Na sala seca,de luzamarelada, Mr. Pepper e Mr.Ambrose não se davamconta de

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nenhum tumulto: estavam emCambridge, e provavelmente erapelo ano de 1875.

– São velhos amigos – disseHelen, sorrindo ao vê-los.

Há algum quarto onde a gentepossa se sentar? Rachel abriuuma porta.

Antes um patamar do que umquarto – disse ela. Naverdade nãotinha nada do caráter fechado efixo de um aposento em terra.Uma mesa estava presa no centro,cadeiras encravadas nos lados.

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Felizmente os sóistropicaistinham desbotado astapeçarias num verde-azul pálido,e o espelho com sua moldura deconchas, obra de amor docamareiro quando o tempo estavapesado nos mares dosul, era antesbizarro do que feio. Conchasenroscadascom bordas vermelhascomo chifres de unicórnioornamentavam o parapeito dalareira coberto de um veludoroxodo qual pendia um número deborlas. Duas janelasabriam para

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o convés, e a luz que vinhaatravés delasquando o navio eracalcinado no Amazonastransformara as gravuras naparede oposta, deixando-as comumamarelo vago, de modo que “OColiseu” pouco se distinguia daRainha Alexandra brincando comseus spaniels.Um par de cadeirasde balanço junto da lareiraconvidava a aquecer as mãos emuma grade de latão; umgrandelampião balançava sobre amesa, a espécie de lampiãoque é

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a luz da civilização sobre camposescuros paraquem neles caminha.

– É estranho que todo mundoseja velho amigo de Mr.Pepper –disse Rachel nervosamente, poisa situação era difícil, o aposentofrio, e Helen estava curiosamentecalada.

– Você o conhece bem,suponho? – disse a tia.

– É o jeito dele – disseRachel, encontrando um peixefossilizado numa tigela eajeitando-o.

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– Acho que você está sendosevera demais – comentou Helen.Rachel tentou imediatamentesuavizar o que dissera contra suaconvicção.

– Eu não o conheço deverdade – disse e refugiou-se nosfatos, acreditando que pessoasmais velhas gostassem mais delesdo que das emoções. Relatou oque sabiasobre William Pepper.Contou a Helen que ele sempre osvisitava nos domingos quandoestavam em casa; sabiamuitas

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coisas: matemática, história,grego, zoologia, economia e assagas da Islândia. Traduzirapoesia persa em prosa inglesa, eprosa inglesa em iâmbicosgregos; erauma autoridade emmoedas e em mais alguma coisa...ahsim, ela achava que era tráfegode veículos.Ele estava ali paratirar coisas do mar ou escreversobre o provável curso deOdisseu, pois afinal grego era seuhobby.

– Tenho todos os seus

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panfletos – disse ela. – Pequenoslivrinhos amarelos. – Ela nãoparecia ter lido nenhum.

– Ele alguma vez seapaixonou? – perguntou Helen,que escolhera uma cadeira.Aquiloatingiu um alvo inesperado.

O coração dele é um sapatovelho – declarou Rachel,largandoo peixe. Mas quando interrogada,teve de reconhecer que jamaisfalara isso com ele.

Pois eu vou lhe perguntar –disse Helen. – Da última vez que

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a vi, você estava comprando umpiano. Lembra, o piano, o quartono sótão, as grandes plantas comespinhos?

Sim, e minhas tias disseramque o piano entraria pelo térreo,mas na idade delas a gente não seimporta mais de ser assassinadade noite? – perguntou ela.

Faz pouco tempo tive notíciasde tia Bessie – afirmou Helen. –Ela receia que você vá estragarseus braços se insistir em seexercitar tanto ao piano.

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Os músculos do antebraço... eaí a gente não consegue arrumarmarido?

Ela não pôs a questão dessamaneira – respondeu Mrs.Ambrose.

Ah, não. Claro, ela não fariaisso – disse Rachel com umsuspiro.

Helen contemplou-a.Seu rostoera antes fraco do que decidido, esó não era insípido por causa dosgrandes olhos interrogativos;tendo-lhe sido negada a beleza,

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agora que estava abrigada dentrode casa, pela falta de cor econtornos definidos. Mais queisso, uma hesitação ao falar, ouuma tendência a usar as palavraserradas, faziam com queparecesse mais incompetente doque o normal para sua idade. Mrs.Ambrose, que andara falandocoisas casuais, agora refletiu quecertamente não esperava comansiedade pela intimidade de trêsou quatro semanas a bordo donavio. Mulheres de sua idade

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habitualmente a entediavam, e elasupunha que uma mocinha seriaainda pior. Lançou mais um olhara Rachel. Sim! Como estava claroque ela seria vacilante, emotiva, equando lhe dissessem algumacoisa não faria impressão maisduradoura do que o golpe de umbastão na água. Não havia nadaque se arraigasse em mocinhas –nada sólido, permanente,satisfatório. Willoughby disse trêssemanas ou quatro? Ela tentoulembrar.

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Mas a essa altura a portaabriu-se e um homem alto erobusto entrou no quarto, avançoue apertou a mão de Helen comuma espécie de cordialidadeemocionada. O próprioWilloughby, pai de Rachel,cunhado de Helen.Como teriasido necessária grandequantidade de carne para torná-loum homem gordo, pois suaossatura era muito grande, não eragordo; seu rosto também eragrande, parecendo, pelas feições

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estreitas e o brilho na faceencovada, mais adequado pararesistir aos ataques do cli-ma doque para expressar sentimentos eemoções ou para reagir aemoções alheias.

– É um grande prazer você tervindo – disse ele – para nós dois.Rachel murmurou alguma coisaobedecendo ao olhar do pai.

– Vamos fazer o que pudermospara que fique confortável. ERidley também.

– Consideramos uma honra

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estarmos cuidando dele. Pepperterá alguém para contradizê-lo,coisa que não me atrevo a fazer.Você achou essa criança crescida,hein? Uma jovem mulher, não?

Ainda segurando a mão deHelen ele passou o braço peloombro de Rachel, aproximando asduas desconfortavelmente, masHelen não olhou.

– Você acha que podemos nosorgulhar dela? – perguntou ele.

– Ah, sim – disse Helen.– Porque esperamos grandes

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coisas dela – continuou ele,apertando o braço da filha esoltando-a. – Mas falemos devocê agora. – Sentaram-se lado alado no sofazinho.

– Você deixou as criançasbem? Acho que estão na idade deir à escola. São parecidas comvocê ou Ambrose? Tenho certezade que têm boas cabeças.Helenimediatamente iluminou-se mais eexplicou que seu filho tinha seisanos e a filha dez.Todo mundodizia que seu menino era parecido

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com ela, e a menina, comRidley.Quanto à cabeça, segundoela, eram crianças atiladas, emodestamente contou umapequena história sobre o filho decomo, sozinho por um minuto elepegou uma bolinha de manteigaentre os dedos, correu pela sala ea jogou no fogo –apenas pelabrincadeira, sentimento que elapodia entender.

– E você teve de mostrar aomolequezinho que essas coisasnão se fazem, hein?

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Uma criança de seis anos?Acho que não é importante.

Eu sou um pai antiquado.Bobagem, Willoughby; Rachel

sabe melhor disso.Por mais que Willoughby

certamente tivesse gostado de serelogiado pela filha, ela não o fez;seus olhos nada espelhavam,como água, seus dedos aindabrincavam com o peixefossilizado, sua mente ausente. Osmais velhos continuaram falandosobre arranjos para maior

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conforto de Ridley – uma mesaposta onde ele não deixaria dever o mar, longe das caldeiras, eao mesmo tempo protegida degente passando. A não ser quetransformasse isso em férias, comos livros todos em malas, elejamais teria férias; pois em SantaMarina, Helen sabia porexperiência que ele trabalharia odia todo; disse que as caixas deleestavam lotadas de livros.

Deixe isso comigo... deixeisso comigo! – disse Willoughby,

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obviamente pretendendo fazerbem mais do que ela lhe pedia.Mas escutaram Ridley e Mr.Pepper mexendo na porta.

Como vai, Vinrace? – disseRidley, estendendo uma mão semenergia ao entrar, como se oencontro fosse melancólico paraos dois, porém mais para ele.

Willoughby preservou suacordialidade, temperada porrespeito. No momento nãodisseram nada.

– Espiamos e vimos vocês

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dois rindo – comentou Helen.Mr. Pepper acaba de contar

uma história excelente.Psst. Nenhuma das histórias

foi boa – disse o marido, mal-humorado.

– Ainda um juiz severo,Ridley? – perguntou Mr.Vinrace.–Nós as entediamos tanto quevocês foram embora –

disse Ridley, falandodiretamente a sua esposa.Comoera verdade, Helen não tentounegar, e comentou:

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– Mas não melhoraram nadadepois que saímos – umcomentário desastrado, porqueseu marido agora respondeuabaixando os ombros:

– Pioraram, se é que erapossível.

Agora a situação era de grandedesconforto para todos, o que seviu pelo longo intervalo desilêncio e constrangimento. Mr.Pepper na verdade criou umadistração saltando em suacadeira, os dois pés encolhidos

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debaixo do corpo,como umasolteirona vendo um camundongo,quando acorrente de ar atingiuseus tornozelos. Encolhido ali emcima, pitando seu charuto, braçosao redor dos joelhos, eleparecia aimagem de Buda, e lá de cimacomeçou um discurso endereçadoa ninguém, pois ninguém o pedira,a respeito das profundezasinexploradas do oceano.Declarouse surpreso ao saber queembora Mr. Vinrace possuíssedez navios, circulando

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regularmente entre Londres eBuenosAires, nenhum deles sedestinava a investigar osgrandesmonstros brancos daságuas mais profundas.

– Não, não – riu Willoughby –,bastam-me os mons

tros da terra! Ouviram umsuspiro de Rachel:

– Pobres cabritinhas!– Se não fossem as cabras não

haveria música, querida;a músicadepende das cabras – disse o paidela com certa aspereza, e Mr.

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Pepper passou a descrever osmonstros brancos, cegos epelados, deitados encolhidos embancos de areia no fundo do mar,que explodiriam trazidos àtona,os flancos estourando eespalhando entranhas no ventoquando aliviados da pressão, comconsiderável rigor e talconhecimento que Ridley ficourepugnado e implorou queparasse.

Helen tirou conclusões de tudoisso, bastante lúgubres.Pepper era

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um chato; Rachel era umamocinha rude, prolífica emconfidências, e a primeira delasseria: “Sabe, eu não me dou bemcom meu pai”. Willoughby, comosempre, amava seu negócio econstruía seu império, e entretodos eles ela se entediariaconsideravelmente. Sendo mulherde ação, porém, levantou-se edisse que iria para a cama. Naporta, olhou para trásinstintivamente para Rachel,esperando que, sendo do mesmo

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sexo, saíssem juntas da sala.Rachel levantou-se, olhouvagamente o rosto de Helen ecomentou com seu leve gaguejar:

– Vou sair para t-t-triunfar novento.

As piores suspeitas de Mrs.Ambrose se confirmaram;eladesceu pelo corredor balançandode um lado para outro e,apoiando-se na parede branca,ora com o braço direito, ora como esquerdo, a cada balançoexclamava enfaticamente:

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-Droga!

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2

Por mais desconfortável que anoite pudesse ter sido,com seumovimento balouçante e seuscheiros de maresia, e para umdeles sem dúvida o foi porqueMr. Pepper tinha pouca roupasobre sua cama, o café da manhãseguinte teve uma espécie debeleza. A viagem começara, ecomeçara feliz com um céu azulsuave e um mar calmo. Asensação de recursos ociosos decoisas não ditas tornou a hora

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importante, de modo que em anosfuturos toda a jornada talvez fosserepresentada por essa única cena,com o som de sirenes uivando norio na noite anterior, de algumaforma misturado nela.

A mesa tinha aparência alegrecom maçãs, pão e ovos.Helenpassou a manteiga a Willoughby,e quando fezisso olhou-o erefletiu, “E ela se casou comvocê, e acho que foi feliz”.

Prosseguiu numa cadeia depensamentos familiares, levando

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a toda sorte de reflexões bemconhecidas, desde o antigoespanto, por que Theresa secasara com Willoughby?

“Naturalmente a gente vêisso”, pensou ela, referindose aofato de que se via que ele eragrande e robusto, com uma grandee sonora voz e um punho e umavontade própria: “mas ...” aquiela entrou numa bela análise dele,que é bem representada com umapalavra, “sentimental”, no sentidode que ele nunca era simples e

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honesto quanto aos seussentimentos. Por exemplo,raramente falava na morta, mascomemorava os aniversários comsingular pompa. Ela suspeitava deque ele fosse capaz deinomináveis atrocidades com suafilha, como sempre suspeitara queele enganasse a esposa.Naturalmente passou a compararsua própria sorte com a sorte desua amiga, pois a esposa deWilloughby fora talvez a únicamulher que Helen chamou de

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amiga, e essa comparação muitasvezes era o tema de seusdiálogos. Ridley era umintelectual, e Willoughby, umhomem de negócios. Ridleyestava editando o terceiro volumede Píndaro quando Willoughbylançava ao mar seu primeironavio. Construíram uma novafábrica no mesmo ano em que oensaio sobre Aristóteles – foraesse mesmo? – aparecia naEditora da Universidade. “ERachel”, ela a encarou, querendo

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sem dúvida decidir a discussãoque de resto estava equilibradademais, declarando que não sepodia comparar Rachel com seuspróprios filhos.

“Na verdade ela poderia terseis anos de idade”foi tudo

o que disse, porém, referindo-se, nesse julgamento, ao contornosuave do rosto da moça, semcondená-la de outro modo, poisse Rachel fosse pensar, sentir, rirou expressar-se, em vez dederramar leite do alto para ver

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que tipo de gotas produzia,poderia ser interessante, emboranunca bela. Era como sua mãe,como a imagem na piscina numcalmo dia de verão é parecidacom a vívida face corada que seinclina sobre ela.

Entretanto, a própria Helenestava sendo examinada,emborapor nenhuma de suas vítimas. Mr.Pepper a analisava; e suasmeditações, realizadas enquantocortava sua torrada em tiras e ascobria escrupulosamente de

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manteiga, levaram-no por umconsiderável trajeto deautobiografia. Um de seus olharespenetrantes assegurou-lhe queestava certo na noite passada aojulgar que Helen era linda.Passou-lhe a geléia docemente.Ela falava bobagens,mas nãomais do que as pessoas costumamfalar no café da manhã, acirculação do cérebro, como elesabia por experiência própria,podia causar problemas nessahora. Ele prosseguiu dizendo

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“não” para ela, por princípio,pois jamais cedia a uma mulherapenas pelo seu sexo. Eaqui,baixando os olhos para seuprato, ele se tornouautobiográfico. Não se casara,pelo motivo suficiente de quejamais encontrara uma mulher quelhe suscitasserespeito.Condenado a passar ossensíveis anos da juventude numaestação ferroviária em Bombaim,ele vira só mulheres de cor,esposas de militares, de

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funcionários do governo. E seuideal era uma mulher quesoubesse ler grego, senão persa,tivesse um rostoirrepreensivelmente claro e fossecapaz de entender as pequenascoisas que ele soltasse ao despir-se. Ele contraíra hábitos dosquais não tinha a me-norvergonha. Passava algunsestranhos momentos todo diadecorando coisas: nunca pegavaum bilhete sem anotar o número;devotava janeiro a Petrônio,

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fevereiro a Catulo,março talvezaos vasos etruscos;de qualquermodo fizera um bom trabalho naÍndia, e não havia do que searrepender em sua vida, excetodos defeitos fundamentais de quenenhum homem sábio searrepende, quando o presenteainda lhe pertence. Concluindoassim, ele de repente ergueu osolhos e sorriu. Rachel viu seuolhar.

“E agora,suponho,vocêmastigou algo 37 vezes?”pensou

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ela, mas disse alto,educadamente:

– Suas pernas continuamincomodando hoje,Mr.Pepper?

Meus ombros? – perguntou elemovendo-os doloridamente. –Que eu saiba a beleza não agesobre ácido úrico – ele suspiroucontemplando a vidraça redondaem frente, através da qual céu emar se exibiam, azuis. Ao mesmotempo, tirou do bolso um pequenovolume de pergaminho e colocou-o sobre a mesa. Como ficasse

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claro que esperava comentário,Helen lhe perguntou onome.Conseguiu-o; mas tambémconseguiu uma digressão sobre ométodo certo de construirestradas. Começando com osgregos, que disse ele, tiverammuitas dificuldades,prosseguiucom os romanos, passou para aInglaterra e o método certo, querapidamente se tornara métodoerrado e passou a denunciar comtamanha fúria os construtores deestradas do presente em geral e

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os do Richmond Park emparticular, onde Mr. Pepper tinhao hábito de andar de bicicletatoda manhã antes do café, que ascolheres literalmente tilintaramcontra as xícaras de café, e osmiolos de pelo menos quatropãezinhos empilharam-se nummontinho ao lado do prato de Mr.Pepper.

Seixos – concluiu elecolocando viciosamente sobre omontinho outra bolinha de pão. –As estradas da Inglaterra são

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remendadas com seixos! Eu lhesdisse: com a primeira chuva fortesua estrada vai virar um charco!Minhas palavras foramcomprovadas todas as vezes. Masacha que eles me escutam quandolhes digo isso, quando aponto asconseqüências para o bolsopúblico, quando recomendo queleiam Corifeu? Nada. Eles têmoutros interesses. Não, Mrs.Ambrose, a senhora não teráopinião justa sobre a estupidezhumana enquanto não se sentar

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num Conselho Borough! – Ohomenzinho fitou-a com um olharde energia feroz.

– Eu tive empregadas – disseMrs. Ambrose, concentrando seuolhar. – Agora mesmo tenho umababá. É uma boa mulher, do jeitodela, mas está decidida a fazerminhas crianças rezarem. Atéaqui, devido a grande cuidado deminha parte, elas pensam emDeus como uma espécie de vacamarinha; mas agora que virei ascostas... Ridley – exigiu ela

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girando para enfrentar o marido–,o que vamos fazer se asencontrarmos rezando o PaiNosso quando chegarmos outravez em casa?

Ridley fez um som que se poderepresentar como “tch”.

Mas Willoughby, cujodesconforto enquanto escutava semanifestava por um levemovimento de embalo do corpo,disse desajeitadamente:

Ora, Helen, um pouco dereligião certamente não faz mal a

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ninguém.Eu preferia que meus filhos

mentissem – respondeu elae,enquanto Willoughby refletia quesua cunhada era aindamaisexcêntrica do que ele tinhalembrado, empurrou a cadeirapara trás e subiu impetuosamenteas escadas. Num segundoouviram-na chamar: – Olhem,olhem! Estamos em alto mar!

Seguiram-na para o convés.Toda a fumaça e as casas tinhamdesaparecido, e o navio estava

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num vasto espaço de mar,muitofresco e claro,embora pálido naluz da manhã. Tinham deixadoLondres instalada na sua lama.Uma tênue linha de sombraestreitava-se no horizonte, maltinha densidade suficiente parasuportar a carga de Paris, quemesmo assim pousava sobre ela.Estavam livres de estradas, livresda raça humana, e a mesmaeuforia de liberdade percorreutodos eles. O navio abria caminhofirmemente através de pequenas

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ondas que chapinhavam contra elee depois chiavam como águaefervescente, deixando umapequena borda de bolhas eespuma nos dois lados. O incolorcéu de outubro tinha nuvens finascomo a linha de fumaça de umincêndio de floresta, e o ar eramaravilhosamente salgado efresco. Na verdade estava friodemais para ficarem quietos aliparados.Mrs.Ambrose enfiou obraço no do marido, e quando seafastavam podia-se ver pelo jeito

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como seu rosto se erguia para odele que ela tinha algo particulara comunicar. Andaram al-gunspassos e Rachel viu que sebeijavam.

Ela baixou os olhos para aprofundeza do mar, que estavalevemente perturbado nasuperfície pela passagem doEuphrosyne, mas por baixo eraverde e penumbroso, e ficavamais e mais penumbroso até que aareia no fundo parecesse só umamancha pálida e difusa. Quase

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não se viam as balizas pretas dosnavios naufragados,ou as torresem espiral feitas pelas grandesenguias cavando suas tocas ou osmonstros lisos de flancos verdesque passavam vi-rando-serápidos para um lado e outro.

– E, Rachel, se alguémprocurar por mim, estou ocupadoaté a uma – disse o pai dela,reforçando suas palavras comofreqüentemente fazia quandofalava com a filha,dando-lhe umtapinha nos ombros.

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– Até a uma – repetiu ele. – Evocê vai encontrar algumaocupação, hein? Treinar escalasno piano, francês, um pouco dealemão, hein? Há Mr. Pepper quesabe mais sobre verbosseparáveis do que qualquerhomem na Europa,hein? – e elecontinuou rindo. Rachel tambémriu, como sempre ria sem achargraça, mas porque admirava opai.Mas quando estava sevirando, talvez pensandoencontrar alguma ocupação, foi

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interceptada por uma mulher tãogrande e gorda que era inevitávelser interceptada por ela. Odiscreto jeito hesitante com quese movia, com seu vestido pretosóbrio, mostrava que pertencia auma classe mais baixa; mesmoassim, assumiu uma postura derocha,olhando em torno para verse não havia gente fina perto daliantes de dar sua mensagem, quese referia ao estado dos lençóis eera da maior gravidade.

– Não sei realmente como

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vamos agüentar esta via-gem,Miss Rachel, realmente não sei –começou ela sacudindo a cabeça.– Só há lençóis suficientes parauma vez,e o do patrão tem umlugar puído onde a gente poderiaenfiar o dedo. E os cobertores, asenhora notou os cobertores?Pensei cá comigo mesma que umapessoa pobre teria vergonhadeles. Aquele que dei a Mr.Pepper nem serviria para cobrirum cachorro... Não, Miss Rachel,eles não poderiam ser

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remendados; só servem paraproteger os móveis. Mesmo que agente costurasse até os ossos dosdedos ficarem à mostra, naprimeira vez que fossem lavadostodo o trabalho seriadesmanchado outra vez.

Sua voz estava tremendo deindignação como se estivesse àbeira das lágrimas.

Não havia nada a fazer senãodescer e inspecionar uma grandepilha de roupas de cama colocadasobre uma mesa.Mrs. Chailey

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lidava com os lençóis como seconhecesse cada um deles pornome, caráter e constituição.Alguns tinham manchas amarelas,outros, lugares onde os fiosestavam esgarçados; mas para oolho comum pareciam comogeralmente se parecem lençóis,muito frios, brancos eirrepreensivelmente limpos.

De repente, Mrs. Chailey,mudando do assunto dos lençóis etirando-os totalmente dopensamento, fechou os punhos em

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cima deles e proclamou:– E não se poderia pedir a

nenhuma criatura viva que ficasseonde eu fico!

Queriam que Mrs. Chaileyficasse numa cabinesuficientemente grande, mas pertodemais das caldeiras, demodoque depois de cinco minutospodia ouvir seu coração“disparando”, queixou-se,colocando as mãos em cima dele,compondo um estado de coisasque Mrs.Vinrace,mãe de

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Rachel,jamais teria sequersonhado em causar – Mrs.Vinrace, queconhecia cada lençolde sua casa e esperava de cadaum omelhor que pudesse fazer,mas não mais que isso.

Era a coisa mais fácil domundo conseguir outro aposento,e o problema dos lençóisresolvia-se por si ao mesmotempo, miraculosamente, uma vezque manchas e puídos podiam serreparados, mas...

– Mentiras! Mentiras!

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Mentiras! – exclamou a criadaindignada correndo para oconvés. – De que adianta medizer mentiras?

Com raiva porque uma mulherde 50 anos se portava como umacriança e chorando procuravauma mocinha porque queria ficaronde não tinha licença para ficar,ela não pensou naquele casoparticular e, pegando seu cadernode música, logo esqueceu tudosobre a velha e seus lençóis.

Mrs. Chailey dobrava os

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lençóis, mas sua expressãodenunciava seu abatimentointerior.O mundo já não seimportava com ela, e um navionão era um lar. Quando seacenderam os lampiões ontem eos marinheiros despencaramsobresua cabeça, ela chorou;choraria esta noite também;choraria amanhã. Aquilo não eraum lar. Enquanto isso elaarranjavaos enfeites daquelequarto que conseguira facilmentedemais.Eram estranhos enfeites

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para se trazer numa viagemmarítima – cachorrinhos deporcelana, jogos de chá emminiatura,xícaras ostensivamenteestranhas com o brasão da cidadede Bristol, caixas de grampos decabelo cobertas de trevos,cabeças de antílopes em gessocolorido, além de uma infinidadede minúsculas fotografias,representando trabalhadorescomseus trajes de domingo e mulheressegurando bebêsbranquinhos.Mas havia um retrato numa

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moldura dourada,para a qual seprecisava de um prego, e antes deprocurá-loMrs. Chailey botouseus óculos e leu o que estavaescritonum bilhete no verso.

“Este retrato de sua patroa foidado a Emma Chailey porWilloughby Vinrace em gratidãopor 30 anos de devotadoserviço.”

Lágrimas obliteraram aspalavras e a cabeça do prego.

– Desde que eu possa fazeralguma coisa pela sua família –

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dizia ela batendo o prego namoldura, quando uma voz chamoumelodiosamente no corredor:

– Mrs. Chailey! Mrs. Chailey!Chailey imediatamente recompôsseu vestido, ajeitou o rosto eabriu a porta.

Estou em apuros – disse Mrs.Ambrose, corada e ofegante. – Asenhora sabe como são oshomens. As cadeiras altasdemais... mesas baixas demais... a15 centímetros entre o chão e aporta. O que eu quero é um

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martelo,um acolchoado velho, e asenhora tem algo parecido comuma mesa de cozinha? Seja comofor, entre nós – ela abriu a portado aposento de seu marido erevelou Ridley caminhando de umlado para outro, testa enrugada,colarinho do casaco erguido.

Parece que se empenharam emme atormentar! – gritou ele eparou abruptamente. – Será quevim a esta via-gem para pegarreumatismo ou pneumonia?Realmenteera de se imaginar que

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Vinrace tivesse mais bomsenso.Minha querida – Helenestava ajoelhada sob uma mesa –você está apenas estragando suaroupa, e seria muito melhorreconhecermos que estamoscondenados a seis semanas deindizível desgraça. Vir já foi umaloucura completa,mas agora queestamos aqui acho que possoenfrentartudo como homem.Minhas enfermidadesnaturalmente vão piorar... já mesinto pior que ontem, mas

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devemos issoapenas a nósmesmos, e por sorte as crianças...

Saia! Saia! Saia! – gritouHelen enxotando-o de um cantopara o outro com uma cadeira,como se ele fosse uma galinhaextraviada. Saia do caminho,Ridley, e em meia hora você vaiencontrar tudo pronto.

Ela o botou para fora doquarto e ele foi pelo corredorgemendo e praguejando.

Atrevo-me a dizer que ele nãoé muito forte – disse Mrs.

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Chailey, olhandocompassivamente para Mrs.Ambrose, enquanto a ajudava aempurrar e carregar.

São livros – suspirou Helen,erguendo uma braçada devolumes tristes do chão até aprateleira. – Grego da manhã ànoite.Se Miss Rachel algum diase casar,Chailey,reze para que secase com um analfabeto.

Depois de superados, dealguma forma, os desconfortos edificuldades preliminares que

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geralmente tornam os primeirosdias de uma viagem marítima tãosem alegria e desgastantes, osdias seguintes foramrazoavelmente agradáveis.Outubro já ia avançado, masconstantemente queimando comum calor que fazia os primeirosmeses de verão parecerem docese suaves. Grandes parcelas deterra agora jaziam sob o sol deoutono, e toda a Inglaterra, doscharcos nus aos penhascos daCornualha, acendia-se do

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amanhecer ao pôr-do-sol,mostrando faixas deamarelo,verde e roxo. Debaixodessa luz, até os telhados dasgrandes cidades brilhavam. Emmilhares de pequenosjardins,milhões de floresvermelho-escuras floresciam atéque as velhinhas que cuidavamtanto delas viessem com suastesouras, cortassem seus caulessuculentos, e as depositassem emfrias pedras na igreja daaldeia.Inumeráveis grupos de

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pessoas fazendo piquenique,voltando para casa ao anoitecer,gritavam:

– Já houve um dia como este?É você – sussurravam os

moços.Ah, é você – respondiam as

moças.E todos os velhos e muitos

enfermos eram levados, ainda quesó um pouco, para o ar livre eprognosticavam coisasagradáveis sobre o curso domundo. Quanto às confidências e

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expressões de amor que seouviam, não só nos milharais,mas em quartos iluminados ondeas janelas se abriam para jardinse homens com charuto beijavammulheres de cabelos grisalhos,eram impossíveis de con-tar.Alguns diziam que o céu era umemblema da vida que tinham tidojuntos; outros, que era a promessada vida que ainda teriam.Pássaros de caudas longas batiambicos e gritavam e voavam debosque em bosque, olhos

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dourados em sua plumagem.Mas enquanto tudo isso

acontecia em terra, muito poucaspessoas pensavam no mar.Achavam natural que omarestivesse calmo; e não havianecessidade, como acontece emmuitas casas quando a trepadeirabate nas janelas do quartodedormir, de que os casaisdesmanchassem antes de sebeijar,“Pense nos navios estanoite”ou “Graças a Deus,não souo faroleiro!” Pois imaginavam

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que ao desaparecer no horizonteos navios se desmanchassemcomo neve na água. Avisão dosadultos na verdade não era muitomais clara do quea das pequenascriaturas em calções de banhoavançando naespuma ao longodas costas da Inglaterra, tirandoágua embaldes. Viam alvas velasou tufos de fumaça passarempelohorizonte, e se dissessem queeram trombas d’água ou pétalasde brancas flores do mar, teriamconcordado.

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Mas as pessoas nos naviostinham uma visão igualmentesingular da Inglaterra. Não apenasela lhes parecia uma ilha, e muitopequena, mas uma ilha queencolhia, na qual havia pessoasaprisionadas. Primeiro a gente asimaginava correndo por ali comoformigas sem objetivo, qua-seempurrando umas às outras sobrea margem; e depois,quando onavio se afastava, a gente asimaginava fazendo um alaridovão, que, por não ser ouvido,

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cessava ou se transformava numagritaria. Finalmente, quando nãose via mais o navio da terra,ficava claro que as pessoas daInglaterra eram totalmente mudas.A enfermidade atacava outraspartes da Terra; a Europaencolhia, a Ásia encolhia, aÁfrica encolhia, a Áméricaencolhia, até parecer duvidosoque um navio jamais voltasse atopar com qualquer uma dessaspequenas rochas enrugadas. Maspor outro lado, uma imensa

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dignidade baixara sobre o navio:ele era habitante do grandemundo, que tem tão poucosmoradores, viajando o dia todopelo universo vazio, com véusbaixados adiante e atrás. Era maissolitário do que uma caravanaatravessando o deserto; erainfinitamente mais misteriosomovendo-se por seu própriopoder e sustentado por suaspróprias fontes. O mar poderialhe dar morte ou alguma alegriasem igual, e ninguém saberia de

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nada.O navio era uma noivaavançando para seu marido, umavirgem desconhecida dos homens;no seu vigor e pureza podia sercomparado a todas as coisasbelas, pois como navio tinha umavida própria.

Na verdade se não tivessemsido abençoados pelo tempo, umdia azul seguido de outro, calmo,perfeito, imaculado, Mrs.Ambrose teria achado tudo muitodesinteressante. Mas mandarainstalar seu bastidor no convés,

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com uma mesinha ao lado ondejazia aberto um livro preto defilosofia. Ela escolhia um fio donovelo de várias cores que haviaem seu colo e bordava vermelhona casca de uma árvore, ouamarelo na torrente de um rio.Estava num grande desenho de umrio tropical correndo através deuma floresta tropical, ondeveados malhados pastavam sobremontes de frutas, bananas,laranjas e romãs gigantescas,enquanto uma tropa de nativos nus

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lançavam setas no ar. Entre ospontos ela olhava para o lado elia uma frase sobre a Realidadeda Matéria ou a Natureza deDeus. Ao seu redor, homens emmalhas azuis ajoelhavamseesfregando as tábuas, ouassobiavam debruçados naamurada, e perto dali Mr. Peppercortava raízes com um canivete.Os demais estavam ocupados emoutras partes do navio: Ridleycom seu grego – nunca encontraraalojamentos mais do seu agrado;

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Willoughby com seusdocumentos, pois usava asviagens para colocar em dia osseus negócios; e Rachel – Helen,entre suas frases de filosofia,àsvezes imaginava o que Rachelestaria fazendo. Pensavavagamente em ir ver. Mal tinhamfalado duas palavras desdeaquela primeira noite; erameducadas quando se encontravam,mas não houvera confidência dequalquer espécie. Rachel pareciadar-se muito bem com seu pai –

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muito melhor, pensou Helen, doque deveria – e estava tãodisposto a não incomodar Helenquanto Helen estava a nãoimportuná-la.

Nesse momento Rachel estavasentada em seu quarto sem fazerabsolutamente nada. Quando onavio estava cheio, aqueleaposento recebia um títulomagnificente e era o refúgio desenhoras idosas com enjôo demar, que deixavam o convés paraos jovens. Devido ao piano e a

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uma confusão de livros no chão,Rachel o considerava seu quarto,e lá se sentava horas a fiotocando músicas muito difíceis,lendo um pouco de alemão ou umpouco de inglês quando tinhavontade, ou – como naquelemomento – não fazendoabsolutamente nada.

A forma pela qual foraeducada, aliada a uma refinadaindolência natural, eram causaparcial disso, pois fora educadacomo a maioria das moças ricas

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na última parte do século XIX.Doutores amáveis e velhosprofessores gentis ensinaram-lheos rudimentos sobre cerca de dezdiferentes ramos deconhecimento, mas logo aforçavam a passar um trecho detrabalho enfadonho tãoescrupulosamente como lheteriam dito que suas mãosestavam sujas.Uma ou duas horaspor semana passavam muitoagradavelmente, em parte devidoàs outras alunas, em parte porque

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a janela dava para os fundos deuma loja onde apareciam vultosdiante das janelas vermelhas noinverno, em parte devido aosacidentes que acontecem quandohá mais de duas pessoas juntas nomesmo aposento. Mas não haviatema no mundo que elaconhecesse bem. Sua mente eracomo a de um homem inteligenteno começo do reinado da RainhaElizabeth; ela acreditavapraticamente em tudo que lhecontassem, inventava razões para

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qualquer coisa que diziam. Aforma da terra, a história domundo, como funcionavam ostrens ou como se investiadinheiro, que leis vigoravam, quepessoas queriam o quê,e por queo queriam, a mais elementar idéiade um sistema de vida moderna –nada disso lhe fora imposto pornenhum de seus professores oupreceptoras. Mas esse sistema deeducação tinha uma grandevantagem. Não ensinava nada,mas não punha obstáculo a

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qualquer dos reais talentos que aaluna eventualmente tivesse.Rachel, sendo musical, só podiaaprender música; tornou-sefanática por música. Todas asenergias que poderiam ter idopara as línguas, a ciência ou aliteratura, que poderiam ter-lherendido amigos ou ter-lhemostrado o mundo, canalizavam-se na música. Julgando seusmestres inadequados,elapraticamente instruíra a si mesma.Na idade de 24 sabia tanto sobre

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música quanto a maioria daspessoas aos 30, e podia tocar tãobem quanto a natureza lhepermitia, o que, como se tornavacada dia mais óbvio, erarealmente uma permissãogenerosa. Se esse talentoinquestionável era rodeado desonhos e idéias das maisextravagantes e tolas, issoninguém sabia.

Sendo sua educação assim,normal, suas circunstânciastambém não eram incomuns. Era

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filha única e nunca foraprovocada ou zombada porirmãos ou irmãs.Tendo suamãemorrido quando ela tinha 11,duas tias, irmãs de seu pai,tinham-na criado, e por causa doar puro viviam numacasaconfortável em Richmond.Ela naturalmente foi criada comexcessivo cuidado: quandocriança, pela sua saúde; comomoça e jovem mulher, por causado que pareceria quasegrosseirochamar de sua moral. Até

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recentemente ignoravatotalmenteque uma coisa dessas existia paramulheres.Procurava oconhecimento em velhos livros, eo encontrava em densos volumesrepulsivos, mas por natureza nãose importava com livros, de modoque jamais seu coração seperturbou com a censura exercidaprimeiro por suas tias, maistardepor seu pai. Amigas poderiamter-lhe contado coisas,mas elatinha poucos amigos de sua idade– era terrível chegar a Richmond

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– e a única mocinha que conheciaera umafanática religiosa, que nofervor da intimidade falava emDeus e nas melhores maneiras deassumir a própria cruz,assunto sóde vez em quando interessantepara alguém cujamente atingisseoutros estágios em outras épocas.

Mas, deitada em sua cadeira,uma das mãos atrás da cabeça, aoutra pegando o braço da cadeira,concentrava -se em seuspensamentos. Sua educação lhedeixava muito tempo para pensar.

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Seus olhos fixavam-se numa bolana amurada do navio, de tal modoque ela teria se sobressaltado e seaborrecido caso alguma coisa aocultasse por um segundo sequer.Começava sua meditação comuma risada alta, causada pelaseguinte tradução do Tristão:

Tremulamente encolhendoSua vergonha pareceesconder-seEnquanto ele aproxima dorei

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A noiva rígida como umamorta.Parece tão obscuro o queestou dizendo?

Ela gritou que parecia e jogouo livro no chão. Depois pegou oCartas de Cowper, clássicoprescrito por seu pai e que aentediara, de modo que numafrase dizendo algo sobre o cheirode giestas no jardim, ela acabaravendo o pequeno saguão lotadode flores em Richmond no dia do

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enterro de sua mãe, com cheirotão intenso que agora qualqueraroma de flor trazia de voltaaquela sensação nauseante ehorrível; e assim, de uma cenaela, meio ouvindo,meiovendo,passou a outra.Viu sua tiaLucy arranjando as flores na salade estar:

– Tia Lucy – disse –, não gostodo cheiro de giestas,me lembrafunerais.

– Bobagem, Rachel –respondeu tia Lucy –, não diga

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coisas tão bobas, querida. Euacho que é uma florparticularmente alegre.Deitada nosol quente,seu pensamento estavafixo na personalidade de suastias, seus pontos de vista, amaneira como viviam. Naverdade esse tema perdurava emsuas centenas depasseios matinaisem torno do Richmond Park,obliterandoas árvores, as pessoase os veadinhos. Por que faziam ascoisasque faziam, e o quesentiam, e do que se tratava tudo

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aquilo,afinal? Ouviu novamentetia Lucy falar com tia Eleanor.Elatirara aquela manhã paracuidar do caráter de uma criada:

– E naturalmente, a genteespera que às dez e meia damanhã a criada esteja escovandoa escada.

Que estranho! Queindizivelmente estranho! Mas nãoconseguiu explicar para si mesmapor que de repente, enquanto suatia falava, todo o sistema em queviviam tinha parecido a seus

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olhos algo pouco familiar,inexplicável, e elas mesmas comocadeiras ou guarda-chuvaslargados aqui e ali sem nenhummotivo. E só pôde dizer, com umaleve gagueira:

V-v-você gosta da tia Eleanor,tia Lucy? E sua tia respondeu comaquela risadinha cacarejante:

Mas minha querida criança,que perguntas você faz!

Gosta muito? Quanto? –insistiu Rachel.

Acho que nunca pensei

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“quanto” – disse Miss Vinrace.– Se a gente gosta, não pensa

em “quanto”, Rachel – o que sedestinava à sobrinha,que jamaisse “aproximara”de suas tias tãocordialmente quanto elasdesejavam.

– Mas você sabe que gosto devocê, não sabe, querida,porquevocê é filha de sua mãe, se nãopor outros motivos,há muitosoutros motivos – e abaixou-se ebeijou Rachel com algumaemoção, e a discussão se desfez

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no ambiente como um jarro deleite derramado.

Assim Rachel atingiu aqueleestágio de pensamento,se é que sepode chamar isso de pensar, emque os olhosse concentram numabola ou maçaneta, e os lábiosjánão se movem mais. Seusesforços para compreenderapenastinham magoado sua tia, e aconclusão era queseria melhornão tentar. Sentir qualquer coisaintensamente era criar um abismoentre si mesma e outros,

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quesentem intensa mas talvezdiferentemente. Era bem melhortocar piano e esquecer o resto.Sua conclusão foimuito bem-vinda. Deixar aqueles homens emulheresesquisitos – suas tias, osHunt, Ridley, Helen, Mr. Peppereo resto – serem símbolos,informes mas dignos símbolos daidade, da juventude, damaternidade, da erudição,e beloscomo muitas vezes são belas aspessoas num palco. Era como seninguém jamais dissesse algo que

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realmente fosse sincero, oujamais falasse de uma emoçãoquesentia, mas para isso existia amúsica. Com a realidaderesidindo no que se via ou sesentia, mas não secomentava, erapossível aceitar um sistema emque ascoisas giravam e giravamde modo bastante satisfatórioparaoutras pessoas, sem se perturbarem pensar sobreelas comfreqüência, exceto como algosuperficialmenteestranho.Absorvida por sua música, ela

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aceitava seudestino com bastantecomplacência, indignando-se,quem sabe, uma vez a cada 15dias, e depois aquietandose comose aquietava agora.Inexplicavelmente imersanumaconfusão onírica, sua menteparecia entrar em comunhão, quese expandia deliciosamente, como espírito dos quadrosesbranquiçados no convés, com oespíritodo mar, com o espírito doOpus 111 de Beethoven, e atécomo espírito do pobre William

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Cowper lá em Olney.Como umabola de penugem de cardo, suamente beijava o mar, erguia-se,beijava-o de novo, e assim,erguendo-se e beijando,finalmente perdia-se de vista. Osubire descer da bola de penugemera representado por umasúbitainclinação de sua própria cabeçapara diante, equando se perdeu devista ela adormeceu.

Dez minutos depois Mrs.Ambrose abriu a porta e encarou-a. Não a surpreendeu descobrir

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que assim Rachel passava suasmanhãs. Olhou em torno doaposento, para

o piano, os livros, a confusãogeral. Em primeiro lugar,analisouRachel esteticamente; deitada ali,desprotegida,ela parecia umavítima que caíra das garras deuma ave de rapina, mas encaradacomo mulher, uma jovem de 24anos, dava motivo a reflexões.Mrs. Ambrose ficou parada alipensando pelo menos doisminutos. Então sorriu, vi-rou-se

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sem fazer ruído e afastou-se paraque a adormecida não despertassee não houvesse entre as duas oconstrangimento de um diálogo.

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3

Cedo na manhã seguinte houverumor de correntes arrastadas naparte de cima;o coração firme doEuphrosyne lentamente cessou depulsar; e Helen, metendo o narizsobre o convés, viu um casteloimóvel sobre uma colinaimóvel.Tinham lançado âncora naembocadura do Tejo e,em vez dese quebrarem sempre novasondas, as mesmas ondas ficavamvoltando e lavando novamente osflancos do navio.

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Assim que tomou o café damanhã, Willoughby desapareceupela lateral do navio carregandouma maleta de couro castanho,gritando sobre o ombro que todomundo devia se controlar e secomportar porque ele iria ficarem Lisboa fazendo negócios atéas cinco da tarde.

E por essa hora ele reapareceucarregando sua maleta,dizendo-secansado,aborrecido,faminto,sedento,comfrio e precisando do seu cháimediatamente. Esfregando

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asmãos, ele lhes contou asaventuras do dia: comoencontrara o pobre velho Jacksonpenteando o seu bigode diantedoespelho no escritório, sem oaguardar, e fizera-otrabalharnaquela manhã comoraramente acontecia; depois oconvidara para um almoço comchampanhe e hortelãs; fizeraumavisita a Mrs. Jackson, mais gordaque nunca a pobre mulher, queainda perguntara bondosamentepor Rachel –e ah, meu Deus, o

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pequeno Jackson confessara quecometera uma fraqueza confusa –bom, bom, segundo ele nãohouvenenhum prejuízo, mas de queadiantava dar ordensse eramimediatamente desobedecidas?Ele dissera claramente que nãoaceitaria passageiros nessaviagem. Aí começou a procurarem seus bolsos e acaboudescobrindo umcartão, que botouna mesa diante de Rachel. Elaleu: “Mr. e Mrs. RichardDalloway, Browne Street 23,

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Mayfair”.– Mr. Richard Dalloway –

prosseguiu Vinrace – parece serum cavalheiro que pensa queporque um dia foi membro doParlamento e sua esposa é filhade um nobre,eles podem ter tudoo que quiserem apenas pedindo.Seja como for, convenceram opobre do Jackson. Disseram quetinham de ter passagens...apresentaram uma carta de LordGlenaway pedindo-me comofavor pessoal... contrariaram

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todas as objeções de Jackson(não creio que ele tenha feitomuitas) e assim não há nada afazer senão aceitar, eu suponho.

Mas era evidente que por umarazão ou outra Willoughbygostava de aceitar, emborafingisse mau humor.A verdade eraque Mr. e Mrs. Dalloway viram-se largados em Lisboa. Haviamviajado pelo continente poralgumas semanas, principalmentepara ampliar a visão de Mr.Dalloway. Incapaz, por um desses

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acidentes da vida política,deservir ao seu país noParlamento,Mr.Dalloway fazia omelhor que podia para servir forado Parlamento.Para isso os paíseslatinos eram ótimos, embora oLeste,naturalmente, tivesse sidomelhor.

– Espere notícias minhas dePetersburgo ou Teerã – disseraele virando-se para acenar emdespedida nos degraus doTravellers’. Mas irrompera umaenfermidade noOriente, havia

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cólera na Rússia, e tiveramnotícias dele, não tãoromanticamente,de Lisboa.Tinhampassado pelaFrança; ele pararaem centros industriais onde,mostrando cartas deapresentação, fora conduzido porfábricas e anotara fatos em umacaderneta. Na Espanha, ele eMrs.Dalloway tinham montadoem mulas, poisdesejavamcompreender comoviviam os camponeses. Estarãomaduros para uma rebelião, por

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exemplo? Mrs. Dallowayentãoinsistira em um dia ou dois emMadri com os retratos.Finalmente chegaram a Lisboa epassaram seisdias que, numdiário editado privadamente maistarde,descreveram como de“interesse único”. Richard teveaudiências com ministros e previuuma crise em breve, “asfundaçõesdo governo estandoincuravelmente corrompidas. Mascomo censurar etc”; enquantoClarissa inspecionava os

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estábulos reais e tirava váriasfotos de homens agora exilados ejanelas agora quebradas. Entreoutrascoisas, ela fotografou atumba de Fielding e soltouumpassarinho que algum facínoraprendera “porque é odiosopensarem qualquer coisa engaioladaonde há ingleses enterrados”,afirmava o diário. A viagem delesestava totalmente fora dasconvenções, e não seguia nenhumplanopremeditado. Oscorrespondentes estrangeiros do

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Times decidiram a rota delescomo tudo o mais. Mr.Dallowaydesejava olhar certasarmas e achava que a costaafricanaera bem mais inquieta doque as pessoas em casa tendemaacreditar. Por esses motivosqueriam uma espécie de naviovagaroso, curioso e confortável,pois eram maus marinheiros, masnão extravagantes, que parassepor um diaou dois num ou noutroporto, carregando carvãoenquanto os Dalloway davam uma

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olhada nas coisas. Enquantoisso,acabaram em Lisboa semconseguirem o navio desejado.Ouviram falar do Euphrosyne,mas também ouviram dizer queera basicamente um navio decarga, e sóaceitava passageirospor arranjo especial, uma vez queseunegócio era levar mercadoriaspara o Amazonas e trazerborrachade volta para casa.“Por arranjoespecial”,porém,eram palavrasaltamente encorajadoras paraeles, pois vinham de uma classe

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em que quase tudo eraarranjadoassim, ou podia serquando necessário. Nessa ocasiãotudo o que Richard fez foiescrever um bilhete a LordGlenaway,chefe da linhagem quetraz seu título, visitar o pobrevelho Jackson, contar-lhe queMrs. Dalloway era fulana etal,que ele fora isso ou aquilo, e oque queriam era tal etal coisa. Foitudo acertado. Separaram-se comelogios deambas as partes, e umasemana depois vinha o barco

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aremo até o navio no nevoeiro,com os Dalloway a bordo; emtrês minutos estavam juntos noconvés do Euphrosyne.Suachegada naturalmente crioualguma agitação, e vários paresde olhos viram que Mrs.Dalloway era umamulher alta emagra, corpo enrolado em peles,cabeça em véus, enquanto Mr.Dalloway era de estatura média ecorpo troncudo, vestido como umesportista numa charnecanooutono. Muitas bolsas de couro

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genuíno de um ricotom castanhoos rodeavam, e Mr. Dallowaycarregavaainda uma pasta dedocumentos, e sua esposa umnécessaire que sugeria um colarde diamantes e frascoscomtampas de prata.

– É tão parecido comWhistler! – exclamou ela, com umaceno em direção da praiaenquanto apertava a mão deRachel, que só teve tempo deolhar as colinas cinzentas de umlado antes que Willoughby

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apresentasse Mrs.Chailey, quelevou a dama para suacabine.Momentânea comoparecia, a interrupção mesmoassim causou irritação; todomundo ficou mais ou menosaborrecido, desde Mr. Grice, ocamareiro, até o próprio Ridley.Poucos minutos depois Rachelpassou pelo salão de fumar eencontrou Helen movendopoltronas. Estava absorta em seusarranjos e vendo Rachel,comentou confidencialmente:

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– Se se pode dar aos homensum quarto só deles, tudo é lucro.Poltronas são as coisasimportantes... – ela começou aempurrá-las por ali. – Agora issoainda parece um bar numa estaçãoferroviária?

Ela arrancou uma toalha develudo de cima de uma mesa. Aaparência do local melhorouincrivelmente.

Mais uma vez, a chegada dosestranhos tornou evidente paraRachel, quando se aproximava a

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hora do jantar,que precisavatrocar de vestido, e o toque dosino grande a encontrou sentada àbeira de sua cama numa posiçãoem que o pequeno espelho sobrea pia refletia sua cabeça e seusombros. No espelho ela tinha umaexpressão de melancolia tensa,pois chegara à conclusãodeprimente,desde a chegada dosDalloway, de que seu rosto nãoera o que queria, e muitoprovavelmente jamais seria.

Porém a pontualidade lhe fora

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bem ensinada e, não importava orosto que possuísse, tinha de ir aojantar.

Willoughby usara aquelespoucos minutos descrevendo paraos Dalloway pessoas que iriamencontrar, e contando-as nosdedos.

– Há o meu cunhado,Ambrose, o intelectual (suponhoque ouviram falar nele), suaesposa, meu velho amigo Pepper,um homem muito quieto, mas quesabe tudo, segundo dizem. E é só.

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Somos um grupo muitopequeno.Vou deixá-los na costa.

Mrs. Dalloway, com a cabeçaum pouco inclinada, fez

o possível para lembrar-se deAmbrose – isso era sobrenome? –mas não conseguiu. Ficara umpouco insegura com o que tinhaouvido. Sabia que intelectuais secasavam com qualquer uma –moças que encontravam emfazendas em grupos de leitura, oumulherezinhas suburbanas quediziam com jeito desagradável:

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“Claro que sei que é meu maridoque a senhora deseja; não a mim”.

Mas Helen entrou nessemomento e Mrs. Dallowayviucom alívio que embora deaparência levemente excêntricaela não era relaxada, tinha boapostura e suavoz era contida, oque julgava ser característica deumadama. Mr. Pepper não se deraao trabalho de trocar seufeioterno.

“Mas afinal”, pensou Clarissaenquanto seguia Vinrace para o

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jantar, “todo mundo é interessantede verdade”.

À mesa, ela precisoureassegurar-se um pouco maisdisso, especialmente por causa deRidley, que veiotarde,decididamente desalinhado,e tomava sua sopa num arprofundamente sombrio.

Um sinal imperceptível passouentre marido emulher,significando queentendiam a situação e ficariamjuntos comlealdade mútua. Quase

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sem intervalo, Mrs. Dallowayvirouse para Willoughby ecomeçou:

– O que acho tão cansativo nomar é que não há flores.Imaginecampos de malvas-rosa e devioletas no meio do oceano! Quedivino!

– Mas um tanto perigoso paraa navegação – trovejou Richard,grave, como o fagote para ofloreado violino da esposa. –Ora, sargaços podem ser muitoprejudiciais, não podem,

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Vinrace? Recordo-me de umatravessia no Mauretania certa veze de dizer ao capitão...Richards...você o conheceu... ?“Agora me diga que perigosrealmente mais teme para o seunavio, capitão Richards?”esperando que ele dissesseicebergs, ou restos denaufrágios,ou nevoeiro, ou coisaassim. Nada disso. Semprelembro a resposta dele. Sedgiusaquatici, disse ele, o que imaginoque seja uma espécie de alga

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marinha.Mr. Pepper ergueu osolhos bruscamente, estava porfazer uma pergunta quandoWilloughby continuou:

– Eles passaram por mausbocados... esses capitães! Trêsmil almas a bordo!

– Sim,é verdade – disseClarissa.Virou-se para Helencomar de quem diz algo profundo –Estou convencidade que aspessoas estão erradas quandodizem que é otrabalho que acabacom a gente; é a

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responsabilidade. É por isso quese paga mais à cozinheira do queà copeira,eu acho.

– Nesse sentido, deveria sepagar dobrado a uma babá;masnão se paga – disse Helen.

– Não, mas imagine quealegria lidar com bebês em vezde panelas! – disse Mrs.Dalloway, olhando com maisinteresse para Helen, umaprovável mãe.– Eu preferiria sercozinheira a babá – disse Helen.– Nada me faria cuidar de

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crianças.– Mães sempre exageram –

disse Ridley. – Uma criança bemcriada não é responsabilidade.Viajei por toda a Europa com asminhas. Basta abrigá-las emroupas quentes e botá-las nocercadinho. Helen riu disso. Mrs.Dalloway exclamou, olhandopara Ridley:

– Isso é bem coisa de pai! Omeu marido é a mesma coisa. Edepois se fala de igualdade desexos!

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– Fala-se? – disse Mr. Pepper.– Ah,algumas pessoas falam –

gritou Clarissa.– Meu maridoteve de agüentar uma senhorafuriosa em todas asúltimassessões da tarde que nãofalava de outra coisa, imagino.–Ela sentava-se diante da casa; foimuito desagradável –disseDalloway. – Finalmente crieicoragem e lhe disse:“Minha boamulher, você está apenasatrapalhando. Estámeatrapalhando. E não está

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fazendo nenhum bem a si mesma”.– E então ela o agarrou pelo

casaco e podia ter arrancado seusolhos – interrompeu Mrs.Dalloway.

– Isso é exagero – disseRichard. – Não, tenho pena delas,eu confesso. O desconforto desentar-se naquelas escadas deveser terrível.

– Bem feito para elas – disseWilloughby laconicamente.

– Ah,concordo inteiramentecom você – disse Dalloway.

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– Ninguém pode condenarmais a total futilidade etolicedesse comportamento doque eu; e quanto a toda essaagitação, bem, espero estar nasepultura antes de uma mulherterdireito de votar na Inglaterra! Ésó o que digo.A solenidade daafirmação do marido deixouClarissa séria.

– É impensável – disse ela. –Não me diga que é um sufragista?– virou-se para Ridley.

– Não me interesso nem por

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um lado nem por outro– disse Ambrose. – Se

qualquer criatura é tão iludida aponto de pensar que votar lhe fazbem, seja homem ou mulher, poisque vote. Em breve vai aprender.

Vejo que não é político – elasorriu.

Não, pelo amor de Deus –disse Ridley.

– Receio que seu marido nãome aprove – disse Dalloway àparte para Mrs. Ambrose. Derepente ela recordou que ele

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estivera no Parlamento.– Não acha isso muito

monótono? – perguntou ela, semsaber exatamente o quedizer.Richard espalmou as mãos asua frente como se houvesseinscrições nelas.

– Se me perguntar se eu achomonótono – disse ele –,devodizer sim; por outro lado, se meperguntar que carreira consideroa mais agradável para um homem,analisando tudo, o bom e o ruim,e a mais invejável, sem falar do

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seu lado mais sério, devo dizerque de todas elas a melhor é a depolítico.

– Advocacia ou política,concordo – disse Willoughby.

Ganha-se mais dinheiro.Todas as nossas faculdades

são empregadas – disse Richard.– Posso estar entrando em terrenoperigoso, mas o que sinto acercade poetas e artistas em geral éisso: não se pode ser vencido naprópria especialidade, é certo;mas fora disso... é preciso dar um

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desconto. Eu não gostaria depensar que alguém tivesse de dardescontos para mim.

– Não concordo, Richard –disse Mrs. Dalloway. – Pense emShelley. Sinto que em Adonais háquase tudo que se possa desejar.

– Leia Adonais sem falta –concedeu Richard. – Mas sempreque ouço falar em Shelley repitoas palavras de Matthew Arnold:“Que conjunto! Queconjunto!”Isso chamou a atençãode Ridley.

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– Matthew Arnold? Umpedante detestável! – disse eleasperamente.

– Um pedante,sim – disseRichard –,mas um homem domundo. É aí que vem o que euacho. Nós, políticos, semdúvidaparecemos a vocês (ele entendeude alguma formaque Helenrepresentava as artes ali) umconjunto de pessoasgrosseiras evulgares. Mas nós vemos os doislados; podemosser rudes, masfazemos o melhor que podemos

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para compreender as coisas. Masos seus artistas acham coisasdesordenadas, dão de ombros,viram-se para as suas visões...quepodem ser muito bonitas, devoconcordar... e deixam as coisasna desordem. Isso me parece serfuga da responsabilidade. Alémdisso, não nascemos todos comtalento artístico.

– É terrível – disse Mrs.Dalloway, que enquanto seumarido falava, estivera pensando.– Quando estou com artistas sinto

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tão intensamente as delícias defechar-se num pequenomundo sóseu, com quadros e música etodas as coisas lindas,e entãosaio para a rua e a primeiracriança que encontro, comseupobre rostinho sujo, me faz virare dizer: “Não, eu não posso meisolar... não vou viver num mundosó meu. Gostaria de interrompertoda a pintura e a música e aliteratura até queesse tipo decoisa não exista mais”. Você sente– ela virou-se,dirigindo-se a

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Helen – que a vida é um conflitopermanente?

Helen pensou por ummomento.

– Não – disse ela. – Acho quenão.

Houve uma pausadecididamente incômoda.Mrs.Dalloway teve então umpequeno calafrio e perguntou sepodia pedir que trouxessem suacapa de peles. Quando ajustou asmacias peles castanhas nopescoço, ocorreu-lhe um assunto

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novo.– Confesso – disse ela – que

nunca esquecerei a Antígona. Eua vi em Cambridge anos atrás, edesde então me persegue. Nãoacha que é a coisa maismodernaque já viu? – perguntou aRidley. – Pareceu-lhe queconhecia umas 20 Clitaimnestras.A velha Lady Ditchlingera uma.Não sei uma palavra de grego,mas poderia escutá-lo parasempre...

Mr. Pepper interveio:

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Mrs. Dalloway olhou para elecom lábios apertados.

Eu daria dez anos de minhavida para saber grego – dissequando ele terminou.

Posso lhe ensinar o alfabetoem meia hora – disse Ridley – e asenhora poderia ler Homero emum mês.Seria uma honra ensinar-

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lhe.Helen, ocupada com Mr.

Dalloway e o hábito, agoracomeçando a declinar, de sefazerem citações em grego naCâmara dos Comuns, anotou, nogrande livro de atualidadesaberto ao nosso lado quandofalamos, o fato de que todos oshomens, mesmo como Ridley,realmente preferem que asmulheres estejam na moda.

Clarissa exclamou que nãopodia pensar em nada mais

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delicioso. Por um instante viu-seem sua sala de estar em BrowneStreet com um Platão abertosobre os joelhos – Platão emgrego, no original. Acreditavaque um verdadeiro intelectual, seespecialmente interessado,poderia meter grego em suacabeça com pouca dificuldade.

Ridley convidou-a a viramanhã.

– Se ao menos o seu navio nostratar com bondade! – exclamouela, trazendo Willoughby para

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dentro do jogo.Por causa dosconvidados, e aqueles eramdistintos, ele dispôs-se, com umainclinação de cabeça, a garantir obom comportamento até dasondas.

– Eu estou péssima; e meumarido não está muito bemsuspirou Clarissa.

Eu nunca enjôo – explicouRichard. – Pelo menos, só estiveenjoado de verdade uma vez –corrigiu-se. – Foi atravessando oCanal. Mas um mar encapelado,

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confesso,ou pior ainda, umvagalhão, me deixa nitidamenteincomodado. O importante énunca deixar de fazer asrefeições. Você olha a comida ediz “Não posso”, então come umbocado, e Deus sabe como vaiengolir; mas persevere,vocêresolve de vez um ataque denáusea. Minha esposa é umacovarde.

Estavam empurrando de voltaas cadeiras. As damas estavamhesitantes na porta.

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– É melhor eu mostrar ocaminho – disse Helen,avançando.

Rachel seguiu. Não participarada conversa; ninguém lhe dirigiraa palavra, mas ela escutara tudo oque fora dito. Olhara de Mrs.Dalloway para Mr. Dalloway, ede novo de Mr. Dalloway para aesposa. Clarissa era realmente umespetáculo fascinante. Usava umvestido branco e um longo colarcintilante. Com suas roupas, seurosto travesso e delicado que

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mostrava um rosado muito bonitodebaixo dos cabelos quecomeçavam a ficar grisalhos, eraespantosamente parecida comuma obra-prima do século XVIII– um Reynolds ou um Romney.Ela fazia Helen e os outrosparecerem toscos e desleixados.Sentada levemente ereta, pareciaestar lidando com o mundo à suaprópria maneira; o enorme globosólido girava para um lado eoutro debaixo de seus dedos. Eseu marido! Mr. Dalloway

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soltando aquela voz opulenta ecadenciada era maisimpressionante ainda. Parecia virdo centro oleoso e ruidoso daengrenagem onde hastes polidasgiram, deslizam, e pistões batem;agarrava as coisas tão firme mastão livremente; fazia os outrosparecerem solteironasbarganhando restos. Rachelseguiu no cortejo dematronas,quase em transe; umcurioso aroma de violetas vinhade Mrs. Dalloway, misturando-se

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com o macio farfalhar de suassaias e o tilintar de suascorrentes.

Seguindo atrás, Rachel pensoucom suprema autohumilhação,lembrando todo o curso de suavida e das vidas de todas as suasamigas: “Ela disse quevivemosnum mundo nosso. Éverdade. Somosperfeitamenteabsurdas”.

– Nós nos sentamos aqui –disse Helen abrindo a porta dosalão.

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– A senhora toca? – disse Mrs.Dalloway a Mrs. Ambrose,pegando a partitura de Tristãoque estava sobre a mesa.

– Minha sobrinha toca – disseHelen botando a mão no ombrode Rachel.

– Ah, mas como a invejo! –Clarissa dirigia-se a Rachel pelaprimeira vez. – Lembra-se disso?Não é divino? – Ela tocou umcompasso ou dois com dedoscheios de anéis sobre a página.

– E depois Tristão vai assim, e

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Isolda... ah, é tudo emocionantedemais! Você já esteve emBayreuth?

Não, não estive – disseRachel.

Então isso ainda vai acontecer.Nunca esquecerei o meu primeiroParsifal... um dia quente deagosto,aquelas alemãs gordas nassuas roupas abafadas, e depois oteatro escuro, a músicacomeçando, não se podiaevitar ossoluços. Lembro-me de que umhomem bondoso foi apanhar água

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para mim: eu só chorava noombrodele. Aquilo me tocava aqui (elatocou a garganta). Não há nadaparecido no mundo! Mas ondeestáo seu piano?

– Em outro quarto – explicouRachel.

– Mas vai tocar para nós? –suplicou Clarissa. – Não consigoimaginar nada melhor do quesentar ao luar lá fora e ouvirmúsica... só que isso parece coisade colegial!

– Sabe – disse ela virando-se

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para Helen –, acho que músicanão faz bem às pessoas... – receioque não.

– Tensão demais? – perguntouHelen.

– De alguma forma, achoemocional demais – disseClarissa. – A gente notaimediatamente quando um rapazou uma mocinha assume a músicacomo profissão. Sir WilliamBroadley me disse a mesmacoisa. Você não odeia as atitudesque as pessoas assumem ouvindo

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Wagner... assim... – Ela levantouos olhos para o céu, juntou asmãos, com um ar de intensidade.– Isso realmente não significa queo apreciam; na verdade sempreacho que é o contrário. Aspessoas que realmente seimportam com uma arte são asmenos afetadas. Conhece HenryPhilips, o pintor? – perguntou ela.

– Já o encontrei – disse Helen.– Pela aparência, a gente

pensaria que ele é um corretorbem-sucedido da bolsa e não um

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dos maiores pintores de nossotempo. É disso que eu gosto.

– Há muitos corretores bem-sucedidos da bolsa, se gosta deolhar para eles – disseHelen.Rachel desejouintensamente que sua tia não fossetão perversa.

– Vendo um músico comcabelo comprido você não sabeinstintivamente que ele é ruim? –perguntou Clarissa virando-separa Rachel. – Watts e Joachim...eles pareciam exatamente como

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você e eu.– E como pareceriam bem

mais simpáticos com cabelopreso! – disse Helen. – A questãoé: você aspira à beleza ou não?

– Limpeza! – disse Clarissa. –Quero que um homem tenhaaparência limpa!

– Com limpeza você querdizer roupas bem talhadas – disseHelen.

– Há algo que distingue umcavalheiro – disse Clarissa –,mas não se sabe dizer o que é.

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– Pegue o meu marido, eleparece um cavalheiro?Clarissaachou a pergunta de umextraordinário mau gosto.

“É uma das coisas que não sepode dizer”, teria dito,mas nãosoube o que responder e deu umarisada.

– Bem, seja como for – dissevirando-se para Rachel –,vouinsistir em que toque para mimamanhã.

E foi assim que fez com queRachel a amasse.

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Mrs. Dalloway dissimulou umpequeno bocejo, um mero inflardas narinas.

– Sabe – disse –, estou comum sono incrível. O ar marinho.Acho que vou fugir.Uma vozmasculina, que ela pensou ser deMr. Pepper,estridente nadiscussão e vindo em direção dosalão, foi o sinal de alarme.

– Boa noite, boa noite! –disse. – Ah, eu sei o caminho...rezem para termos calmaria! Boanoite!

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Seu bocejo deve ter sido aimagem de um bocejo. Em vez dedeixar sua boca abrir-se,largando todas as suas roupasnuma trouxa como se estivessempenduradas numa corda, eesticando os membros até omáximo que lhe permitia seubeliche, ela apenas mudou deroupa, vestindo um robe cominumeráveis babados e, enrolandoos pés numa manta, instalou-secom um bloco de papel no joelho.Aquela cabine pequena e atulhada

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já se transformara no quarto devestir de uma dama de classe.Havia frascos com líquidos;havia bandejas, caixas, escovas,alfinetes.Evidentemente, nem umcentímetro de sua pessoa eradesprovido de seu instrumentopróprio. O aroma que inebriaraRachel invadia o ar.Assiminstalada, Mrs.Dallowaycomeçou a escrever. Uma canetaem suas mãos tornava-se umobjeto para acariciar papel, e elapodia estar acariciando e

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provocando um gatinho quandoescreveu:

Imagine-nos, querida,

embarcados no mais esquisitonavio em que possa pensar. Não étanto o navio, mas as pessoas. Agente encontra tipos bemesquisitos quando viaja.Devodizer que acho isso imensamentedivertido. Há o diretor da linha,chamado Vinrace, um simpáticoinglês grandão, que fala pouco –você conhece o tipo. Quanto ao

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resto poderiam estar saindo deum número antigo de Punch. Sãocomo pessoas jogando croqué nosanos 60.Não sei há quanto tempoestão trancados neste navio – eudiria anos e anos–, mas a gentesente como se tivesse subido abordo de ummundo separado, ecomo se eles nunca tivessemestado emterra, nem feito coisascomuns em suas vidas. É o quesempre disse a respeito deliteratos – são de longe aspessoasmais difíceis de se lidar.

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O pior é que essa gente – umhomem e sua esposa e umasobrinha – poderiam ter sido,sente-se isso, como qualqueroutra pessoa, se não tivessemsidoengolidos por Oxford ouCambridge ou algum lugar desses,tornando-se maníacos. O homemé realmente encantador (secortasse as unhas) e a mulher temum rosto bem agradável, apenas,naturalmente, veste-se num sacoda batatas e usa o cabelo comouma balconista da Liberty. Falam

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sobrearte e acham que somos unsmalucos por nos vestirmosmelhor para o jantar. Mas nãoposso evitar isso; prefiro morrerajantar sem trocar de roupa – vocênão faria o mesmo? Issoé bemmais importante do que a sopa. Éesquisito como ascoisas são tãomais importantes do quegeralmente se pensa”. Eu preferiater a cabeça cortada a usar flanelasobre apele. Há ainda umasimpática mocinha tímida –coitada –,que queria que alguém a

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tirasse dali antes que fossetarde.Tem olhos e cabelos muitobonitos, só que,naturalmente,também vai ficarcômica. Devíamos fundar umasociedade para ampliar as mentesdos jovens – muito mais útil doquemissionários, Hester! Ah,esqueci, há uma criaturinhahorrenda chamada Pepper. Ele éexatamente como o seunome.Indescritivelmenteinsignificante e bastante bizarrode temperamento, pobre coitado.

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É como sentar-se para jantarcomum fox-terrier maltratado, só quenão se pode escoválo, nem jogar-lhe talco, como se faria com umcachorro deestimação. Uma pena,às vezes, não podermos tratarpessoascomo cachorros! Ogrande conforto é que estamoslonge dejornais, de modo queRichard terá férias de verdadedestavez. A Espanha não foiférias...

– Covarde! – disse Richard

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quase enchendo o quarto com suafigura atarracada.

Eu cumpri meu dever nojantar! – exclamou Clarissa.

Seja como for, interessou-sepelo alfabeto grego.

– Ah, meu caro! Quem éAmbrose?

Acho que foi professor emCambridge; agora vive emLondres e publica clássicos.

Você já viu um grupo dedoidos como esse? A mulher meperguntou se eu achava que o

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marido dela tinha ar decavalheiro!

Certamente foi difícil manter abola rolando no jantar – disseRichard. – Por que é quemulheres nessa classe são tãomais esquisitas do que oshomens?

– Não são feias realmente... sóque... são tão esquisitas!

Os dois riram pensando nasmesmas coisas de modo que nãofoi preciso comparar suasimpressões.

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– Vejo que vou ter muito adizer a Vinrace – disse Richard. –Ele conhece Sutton e tudo aquilo.Pode me dizer uma porção decoisas sobre a construção denavios no Norte.

– Ah, que bom. Os homenssempre são tão melhores que asmulheres.

– Sempre se tem o que dizer aum homem, sem dúvida

– disse Richard. – Mas tenhocerteza de que você vai passar otempo bem depressa falando

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sobre as crianças, Clarissa.Ela tem filhos? Não parece.Dois. Um menino e uma

menina. Uma inveja aguda varouo coração de Mrs. Dalloway.

Dick, nós temos de ter umfilho – disse ela.

– Santo Deus, queoportunidades existem hoje paraum jovem! – disse Dalloway, poisa sua conversa o fizera pensar. –Acho que não há oportunidadestão boas desde os dias de Pitt.

E é para você! – disse

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Clarissa.Ser um líder de homens –

monologou Richard. – É uma belacarreira. Meu Deus... quecarreira! O peito infloulentamente debaixo do seu colete.

– Você sabe, Dick, não possodeixar de pensar naInglaterra –disse sua esposa pensativamenteencostando a cabeça no peitodele. Estar neste navio parecetornar tudo tão mais intenso querealmente significa seringlês.Pensando em tudo que fizemos,

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em nossas armadas,e nas pessoasna Índia e na África,e em comoavançamos século após século,enviando nossos rapazesdealdeiazinhas do interior... e emhomens como você, Dick, faz-nossentir ser insuportável não seringlês! Pense naluz acesa sobre aCâmara, Dick! Quando estava noconvés, há pouco, parecia que avia. É o que Londres significapara a gente.

– É a continuidade – disseRichard sentenciosamente. Uma

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visão da história inglesa, rei apósrei, primeiro-ministro apósprimeiro-ministro, e lei após lei,tinham-lhe ocorrido enquanto suamulher falava. Ele percorreu comsua mente a linha da políticaconservadora, que seguia firmede Lord Salisbury a Alfred,egradualmente abarcava como sefosse um laço abrindo-se eapanhando coisas,enormes parteshabitáveis do globo.

– Demorou muito tempo, masquase já conseguimos

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– disse ele; – resta agoraconsolidar tudo.

E essa gente não vê isso! –exclamou Clarissa.

É preciso todo tipo de gentepara fazer um mundo

– disse seu marido. – Jamaishaveria um governo se nãohouvesse uma oposição.

– Dick, você é melhor que eu– disse Clarissa. – Tem visãoglobal, enquanto eu só vejo aqui.Ela pressionou um ponto nascostas da mão dele.

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– Esse é o meu negócio, comotentei explicar no jantar.

– O que eu gosto em você,Dick – prosseguiu ela –, é quevocê é sempre o mesmo, e eu souinstável.

– Mas seja como for, você éuma linda criatura – disse ele,fitando-a com olhos maisprofundos.

– Acha mesmo? Então mebeije.

Ele a beijou apaixonadamente,de modo que a carta dela,

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inacabada, escorregou para ochão. Apanhando-a,ele leu sempedir licença.

– Onde está sua caneta? –perguntou; e acrescentou na suapequena letra masculina:

“R.D. loquitur: Clarissa nãolhe contou que estavaextraordinariamente bela nojantar e fez uma conquista,obrigando-se a aprender oalfabeto grego. Aproveito aocasiãopara acrescentar queestamos nos divertindo nessas

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terrasestrangeiras, e sódesejaríamos a presença denossos amigos(a saber você eJohn) para que a viagem fosse tãoperfeitamente agradável comopromete ser instrutiva...”

Ouviram-se vozes no fim do

corredor. Mrs. Ambrose estavafalando em voz baixa; WilliamPepper comentava na sua vozclara e bastante azeda:

– Esse é o tipo de senhora comque realmente não simpatizo.

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Ela...Mas nem Richard nem

Clarissa souberam da sentença,pois como parecesse que iriamescutar, Richard fez ruídoamassando uma folha de papel.

“Muitas vezes”, pensavaClarissa na cama, diante dopequeno volume branco de Pascalque ia com ela a toda parte, “ficoimaginando se é realmente bompara uma mulher viver com umhomem moralmente superior aela,como Richard é em relação a

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mim. Isso nos deixa tãodependentes. Acho que sinto porele o que minha mãe e asmulheres de sua geração sentiampor Cristo. Isso apenas mostraque não se pode passar semalguma coisa”. Ela entãoadormeceu, o sono extremamentefirme e reparador de sempre; masvisitada por sonhos fantásticoscom grandes letras gregascaminhando pelo aposento,acordou e riu de si mesma,lembrando onde estava e que as

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letras gregas eram pessoas deverdade, adormecidas pertodali.Depois pensando no escurolá fora, balouçando sob a lua,elateve um calafrio e pensou no seumarido e nos outroscompanheiros de viagem. Ossonhos não estavam confinadosnela, mas iam de um cérebro aoutro. Todos sonharam uns comos outros aquela noite, como eranatural,levando em conta comoeram tênues as divisórias entreeles e como tinham sido

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estranhamente erguidos da terrapara se sentarem perto uns dosoutros no meio do oceano,vendocada pormenor dos rostos uns dosoutros e escutando tudo quepudessem dizer.

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4

Na manhã seguinte, Clarissalevantou-se antes de todos.Vestiu-se, saiu ao convés pararespirar o ar fresco deuma manhãtranqüila e, fazendo pela segundavez o circuito no navio, topoucom a figura magra de Mr. Grice,o camareiro. Ela desculpou-se eao mesmo tempo pediu-lhe umaexplicação: o que eram aqueleslustrosos suportes demetal, com aparte superior de vidro? Elaestivera imaginando o que eram,

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mas não conseguiu descobrir.Quandoele explicou, elaexclamou com entusiasmo:

Eu realmente acho que sermarinheiro é a melhor coisa domundo!

E o que é que a senhora sabesobre isso? – disse Mr.Grice,reagindo de um modo estranho. –Perdão. O que sabe sobre o marqualquer homem ou mulher criadona Inglaterra? Eles fingem saber;mas não sabem.

A amargura com que ele falava

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predizia o que estava por vir. Elea conduziu para seu alojamento esentando-se à beira de uma mesaengastada em latão, parecendosingularmente com uma gaivota,com o corpo branco afilado e orosto magro e alerta, Mrs.Dalloway teve de escutar osarroubos de um fanático. Acasoela percebia, para começar, queparte tão pequena do mundo era aterra? Como era pacífico, belo ebenigno o mar em comparação?As águas profundas sustentariam

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a Europa se todos os animais daterra morressem de peste amanhã.Mr. Grice recordou visõesterríveis que tivera na cidademais rica do mundo – homens emulheres fazendo fila hora apóshora para receberem um canecode sopa gordurosa.

– E pensei na boa carneesperando, ali embaixo, pedindopara ser apanhada. Não souexatamente um protestante, e nãosou católico, mas quase poderiarezar pela volta dos dias do

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papado... por causa dos jejuns.Enquanto falava ele ficava

abrindo gavetas e movendopequenos frascos de vidro. Aquiestavam os tesouros que

o grande oceano lhe concedera– peixes lívidos em líquidosesverdeados, medusas gelatinosascom madeiras ondulantes, peixescom luzes nas cabeças porqueviviam nas profundezas.

– Eles nadaram entre ossos –suspirou Clarissa.

Está pensando em Shakespeare

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– disse Mr. Grice e,pegando umexemplar de uma prateleira comlivros enfileirados, recitou numaenfática voz nasal:

Full fathom five thy fathers lies,

Um grande homem,Shakespeare – disse, recolocandoo volume no lugar.Clarissa ficoumuito contente ao ouvi-lo dizerisso.

Qual sua peça favorita? Será amesma que eu prefiro?

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Henrique V – disse Mr. Grice.Maravilha! – exclamou

Clarissa. – É essa!Hamlet era o que se poderia

chamar de introspectivo demaispara Mr. Grice, os sonetos,apaixonados demais;Henrique Vera para ele o modelo docavalheiro inglês,mas sua leiturafavorita era Huxley, HerbertSpencer eHenry George; enquantoEmerson e Thomas Hardy eleliapara relaxar. Estava dando a Mrs.Dalloway suas opiniões sobre o

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atual estado da Inglaterra, quandoa sinetado café da manhã soou tãoimperiosamente que ela tevedesair apressada, prometendo voltare olhar as algasmarinhas.

O grupo, que lhe parecera tãobizarro na noite anterior, jásereunira em torno da mesa, aindasob influência do sono, e por issopouco comunicativo, mas aentrada dela causou umapequenaagitação, como um sopro de ar emtodos eles.

– Tive a conversa mais

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interessante de minha vida! –exclamou ela, assentando-se aolado de Willoughby. – Você sabeque um de seus homens é filósofoe poeta?

– Um homem muitointeressante... é o que eu sempredigo – disse Willoughby,distinguindo Mr. Grice. – EmboraRachel o ache um chato.

– Ele é um chato quando falasobre correntes oceânicas – disseRachel. Seus olhos estavamcheios de sono, mas Mrs.

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Dalloway ainda lhe pareciamaravilhosa.

– Eu ainda não encontrei umchato! – disse Clarissa.

– Pois eu diria que o mundoestá cheio deles! – exclamouHelen. Mas sua beleza, radiante àluz da manhã, contrariava suaspalavras.

– Concordo que é a pior coisaque se possa dizer de outrapessoa – disse Clarissa. Épreferível ser um assassino a serum chato! – acrescentou com seu

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habitual ar de quem dizia algoprofundo. – Pode-se imaginargostar de um assassino. É amesma coisa com cachorros.Alguns são incrivelmente chatos,coitados. Richard estava sentadojunto de Rachel. Ela estavacuriosamente consciente de suapresença e aparência – suasroupas bem talhadas, seu peito decamisa engomado,os punhos comanéis azuis em torno e os dedosde pontas quadradas, muitolimpos, com a pedra vermelha no

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dedo mínimo da mão esquerda.– Tínhamos um cachorro que

era um chato e sabia disso – disseele,dirigindo-se a Rachel em tomfrio e calmo. – Era um skyeterrier, um daqueles compridõescom pezinhos pequenos brotandodo gelo como... como lagartas...não, eu diria como sofás. Bem,tínhamos outro cachorro aomesmo tempo, um animal preto eesperto... um schipperke, achoque é assim que o chamam. Nãopode imaginar maior contraste. O

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skye tão lento ehesitante,erguendo os olhos paraa gente como algum velhocavalheiro no clube, como sequisesse dizer. “Você não estáfalando sério, está?” E oschipperke é rápido como umraio. Eu gostava mais do skye,confesso. Havia nele algo depatético.

A história parecia não terclímax.

– E o que aconteceu a ele? –perguntou Rachel.

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– É uma história muito triste –disse Richard baixando a voz edescascando uma maçã. – Eleseguiu minha esposano carrocerto dia e foi atropelado por umciclista cruel.

Morreu? – perguntouRachel.Mas Clarissa, em suaponta da mesa, escutara.

Não fale nisso! – exclamou. –Não consigo pensar nisso atéhoje.Haveria lágrimas em seusolhos?

– Essa é a coisa dolorosa com

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bichos de estimação – disse Mr.Dalloway –, eles morrem. Aprimeira tristeza que recordoocorreu com a morte de um ratosilvestre.Lamento dizer que mesentei em cima dele. Mas isso nãome deixou menos triste. Aqui jazo pato em que Samuel Johnsonsentou, hein? Eu era grande paraminha idade.

Depois tivemos canários –prosseguiu ele –, um par depombos, um lêmure e uma vezuma andorinha.

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– O senhor vivia no campo? –perguntou Rachel.

Passávamos seis meses do anono campo. Quando digo “nós”refiro-me a quatro irmãs, umirmão e eu próprio. Não há nadacomo vir de uma família grande.Principalmente irmãs, são umagraça.

Dick, você foi terrivelmentemimado! – exclamou Clarissasobre a mesa.

– Não, não, eu fui apreciado –disse Richard.

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Rachel tinha outras perguntasna ponta da língua; ou antes, umaenorme pergunta, que não sabiacomo pôr em palavras. Aconversa parecia animada demaispara admiti-la.

“Por favor, conte-me... tudo”.Era isso que queria dizer.Eleabrira uma pequena fresta emostrara tesouros espantosos.Parecia-lhe incrível que umhomem como aquele quissesse lhedirigir a palavra. Ele tinha irmãse animais deestimação e uma vez

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morara no campo. Ela mexia eremexia a colher em sua xícara dechá; as bolhas que boiavameagarravam-se à taça lhepareciam a união de suas mentes.

Enquanto isso a conversadisparava ao lado dela equandoRichard de repenteafirmou num tom de voz jocoso:

– Tenho certeza de que MissVinrace agora tem inclinaçõessecretas para o catolicismo – elanão tinha como responder, eHelen não pôde deixar de rir da

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tentativa que ela fez.Mas o café da manhã

terminara, e Mrs. Dallowayestava se levantando.

– Sempre acho que religião écomo colecionar insetos

– disse ela encerrando adiscussão enquanto subia asescadas com Helen. – Umapessoa tem paixão por besourospretos; outra não tem; não adiantadiscutir sobre isso.Qual é agora oseu besouro preto?

– Acho que são meus filhos –

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disse Helen.– Ah... isso é diferente –

Clarissa falou. – Conte-me. Vocêtem um menino, não tem? Não édetestável ter de deixá-los?

Foi como se uma sombra azultivesse caído sobre uma piscina.Os olhos delas ficaram maisfundos, as vozes mais cordiais.

Em vez de juntar-se a elasquando começaram a caminharpelo convés, Rachel estavaindignada com aquelas prósperassenhoras, que a faziam sentir-se

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fora do seu mundo, órfã, evirando-se, deixou-asabruptamente. Bateu a porta doquarto e retomou sua música. Eratudo música antiga – Bach eBeethoven, Mozart e Purcell – aspáginas amarelas, a impressãoáspera ao toque. Em três minutosestava imersa numa fuga muitodifícil, muito clássica, em lá, eem seu rosto apareceu umaexpressão estranha, remota,impessoal de absorção completae ansiosa satisfação.Ora

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tropeçava, ora falhava e tinha derepetir o mesmo compasso; masuma linha invisível parecia reuniras notas num fio, do qual seerguia um contorno, umaconstrução.Ela estava tão absortanesse trabalho, pois era realmentedifícil descobrir como todosaqueles sons deveriam se unir, eempregava todas as suasfaculdades nisso, que não escutouuma batida na porta. Ela abriu-seimpulsivamente e Mrs. Dallowayaparecia no quarto, deixando a

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porta aberta de modo que umafaixa do convés branco e do marazul apareceu na abertura. Ocontorno da fuga de Bach partira-se no chão.

– Não deixe que eu ainterrompa – implorou Clarissa.

– Ouvi você tocar e não puderesistir. Adoro Bach!

Rachel corou e retorceu osdedos no colo. Pôs-se de pédesajeitadamente.

– É difícil demais – disse.– Mas você estava tocando

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esplendidamente! Eu devia terficado do lado de fora.

– Não – disse Rachel.Ela tirou da poltrona as

Cartas de Cowper e O Morro dosventos uivantes e Clarissa foiconvidada a sentar-se.

– Mas que quartinhoagradável! – disse ela olhando emtorno. Ah, as Cartas de Cowper!Nunca as li. São boas?

– Bastante monótonas – disseRachel.

– Ele escrevia terrivelmente

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bem, não é? – disse Clarissa; –para quem gosta desse tipo decoisa... terminava suas frases etudo isso. O morro dos ventosuivantes! Ah, isso é mais do meugosto. Eu realmente não poderiaviver sem as Brontës! Você não éapaixonada por elas? Mas demodo geral eu preferiria viversem elas a viver sem Jane Austen.

Embora falasse de jeito leve ecasual, sua postura revelava umextraordinário grau de simpatia edesejo de fazer amizade.

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– Jane Austen? Eu não gostode Jane Austen – disse Rachel.

– Você é um monstro! – disseClarissa. – Mal posso perdoá-la.Diga-me por quê? – Ela é tão...bem... tão como uma trançaapertada – atrapalhou-se Rachel.

– Ah... entendo o que querdizer. Mas não concordo. E vocênão vai concordar quando formais velha. Na sua idade eu sógostava de Shelley. Lembro-mede ter-me emocionado lendoShelley no jardim.

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He has outsoared the shadow of

our night,Envy and calumny and hate and

pain...

“lembra?”

Can touch him not and torturenot again

From the contagion of theworld’s slow stain.

– Que divino!...e,no

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entanto,que absurdo! – Ela olhouem torno do quarto. – Eu sempreacho que é viver, e não morrer oque conta. Eu realmente respeitoum velho corretor da Bolsarabugento que vai somar colunaatrás de coluna todos os dias etrotar de volta à sua villa emBrixton com algum cachorrovelho de focinho chato que eleadora e uma enfadonhamulherzinha sentada na ponta damesa, que vai para Margate por15 dias... asseguro-lhe que

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conheço um monte de genteassim... bem, eles me parecemrealmente mais nobres do quepoetas, a quem todo mundovenera, só porque são gênios emorrem jovens. Mas não esperoque você concorde comigo!

Ela apertou o ombro deRachel.

– Um... m... m – e continuoucitando:

Unrest which men miscall

delight...

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– Quando você tiver a minhaidade verá que o mundo estálotado de coisas encantadoras.Acho que os jovens cometem umgrande erro em relação a isso nãosepermitindo serem felizes. Àsvezes penso que a felicidade é aúnica coisa que conta. Não aconheço suficientemente bem paradizer, mas creio que você podeser umpouco inclinada a... quandoa gente é jovem e atraente...voudizê-la, sim!... tudo está aosnossos pés. – Ela olhouem torno

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como se fosse dizer, “Não sóalguns poucoslivros enfadonhos eBach”.

– Quero muito fazer perguntas– prosseguiu. – Você me interessatanto. Se estou sendoimpertinente, dê um puxão nasminhas orelhas.

– E eu... eu quero fazerperguntas – disse Rachel comtamanha gravidade que Mrs.Dalloway teve de conter seusorriso.

– Importa-se de irmos

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caminhar? – disse ela. – O ar estátão delicioso. Ela inspirou comoum cavalo de corrida quandofecharam a porta e pararam noconvés.

– Não é bom estar viva? –exclamou e puxou o braço deRachel para dentro do seu. –Olhe! Olhe! Que bonito!As praiasde Portugal começavam a perdersua substância; mas a terra aindaera a terra, apesar de muitodistante. Podiam distinguir ascidadezinhas espalhadas nas

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dobras das colinas, e a fumaçaerguendo-se, tênue. As cidadespareciam muito pequenas emcomparação com as grandesmontanhas roxas ao fundo.

– Sinceramente,porém – disseClarissa depois de olhar –, nãogosto de paisagens. Sãodesumanas demais. –Continuaram andando.

– Que coisa estranha! –continuou ela, impulsivamente. –A esta hora ontem nem nosconhecíamos. Eu estava

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arrumando coisas num quartinhoabafado de hotel. Não sabíamosabsolutamente nada uma da outra,mesmo assim sinto como setivesse conhecido você antes!

– A senhora tem filhos... seumarido esteve no Parlamento?

Você nunca foi à escola emora... ?

Com minhas tias, emRichmond.

Richmond?– Sabe, minhas tias gostam do

Parque. Gostam do sossego.

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– E você não! Entendo! –Clarissa riu.

– Eu gosto de caminharsozinha no Parque; mas não...comos cachorros – concluiu ela.

– Não; e algumas pessoas sãocachorros, não são? – disseClarissa, como se tivesseadivinhado um segredo. – Masnem todo mundo... ah não, nemtodo mundo.

– Nem todo mundo – Racheldisse isso e parou.

– Posso muito bem imaginar

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você andando sozinha – disseClarissa – e pensando... numpequeno mundo só seu. Mas comovai desfrutá-lo... um dia!

– Vou gostar de caminhar comum homem... é isso que querdizer? – disse Rachel fitandoMrs. Dalloway com seus grandesolhos inquiridores.

– Eu não estava pensando numhomem em particular

– disse Clarissa. – Mas vocêvai.

– Não. Eu não vou me casar

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nunca – decidiu Rachel.– Eu não teria tanta certeza

disso – disse Clarissa. Seu olharde viés dizia a Rachel que ela aachara atraente, embora fosseinexplicavelmente engraçada...

Por que as pessoas se casam?– perguntou Rachel.

É isso que você vai descobrir– Clarissa ainda ria.

Rachel seguiu seus olhos e viuque por um segundo tinhampousado na figura robusta deRichard Dalloway,ocupado

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acendendo um fósforo na sola dabotina, enquanto Willoughbyexpunha algo que parecia damaior importância para os dois.

– Não há nada igual – concluiuela. – Conte-me sobre osAmbrose. Ou estou fazendoperguntas demais?

– É bom falar com a senhora –disse Rachel.

Mas o breve esboço dosAmbrose foi de alguma formasuperficial e pouco disse além dofato de o Mr. Ambrose ser seu tio.

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– Irmão de sua mãe?Quando um nome cai em

desuso, a mais leve menção a elereaviva a memória. Mrs.Dalloway continuou:

– Você é parecida com suamãe?

– Não; ela era diferente –disse Rachel e foi tomada de umintenso desejo de contar a Mrs.Dalloway coisas que nuncacontara a ninguém... coisas quenem ela percebera até aquelemomento. – Eu me sinto sozinha.

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Eu quero...– Ela não sabia o que queria,

de modo que não pôde concluir afrase; seu lábio, porém,tremeu.Mrs. Dalloway, contudo,pareceu capaz de compreendersem palavras.

– Eu sei – disse, passando umbraço pelo ombro de Rachel. –Quando eu tinha a sua idadetambém queria.Ninguém mecompreendia até que encontreiRichard. Ele me deu tudo o queeu queria. Ele é homem e mulher

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ao mesmo tempo. – Seus olhospousaram em Mr.Dalloway,encostado na amurada,ainda falando. – Não pense quedigoisso porque sou esposadele... vejo seus defeitos maisclaramente do que os de qualqueroutra pessoa. O que se quernapessoa com quem se vive é queela nos mantenha em nossamelhorforma. Muitas vezes ficopensando o que fiz para sertãofeliz! – exclamou, e uma lágrimadeslizou pela sua face.Ela a

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enxugou, apertou a mão de Rachele exclamou:

– Como a vida é boa! – Nessemomento com aquela brisa frescao sol sobre as ondas e a mão deMrs. Dalloway sobre o braço,pareceu realmente que a vida,antes sem nome, agora erainfinitamente maravilhosa e boademais para ser verdade.

Nisso, Helen passou por elas evendo Rachel de braço dado comuma quase estranha, parecendoanimada, divertiu-se, mas ao

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mesmo tempo ficou levementeirritada.Porém Richard, com umhumor bastante sociável, juntouseimediatamente a elas, depois deuma conversa muito interessantecom Willoughby.

– Observem o meu panamá –disse, tocando a aba doseuchapéu. – Miss Vinrace, deu-seconta do quanto se pode fazerpara induzir bom tempo usando ochapéu adequado? Decidi quehoje é um dia quente de verão;previno-a de que nada que a

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senhorita possa dizer vai meabalar.Por isso vou me sentar.Aconselho-a a seguir meuexemplo.

– Três cadeiras em filaconvidavam-nos a nos sentarmos.Recostando-se para trás, Richardobservou as ondas.

– Um azul muito bonito –disse. – Mas há um pouco de azulem demasia. A variedade éessencial para uma paisagem.Assim, se há colinas deve haverum rio; se há um rio, deve haver

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colinas. A melhor paisagem nomundo,na minha opinião, é aquelade Boars Hill num dia bonito...atenção, tem de ser um diabonito... Uma manta? Ah,obrigado, minha cara... Nessecaso você terá a vantagem dasassociações, o passado.

Dick, você quer falar ou querque eu leia em voz alta?Clarissapegara um livro com as mantas.

Persuasão – anunciou Richardexaminando o volume.

– É para a Miss Vinrace –

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disse Clarissa. – Ela não suportaa nossa amada Jane.

– Isso... se me permite dizer...é porque a senhorita não a leu –disse Richard. – Ela éincomparavelmente a maiorescritora que temos. É a maior epor um motivo: não tenta escrevercomo homem.Todas as outrasmulheres fazem isso: por isso nãoas leio.

– Diga suas objeções, MissVinrace – prosseguiu ele,juntandoas pontas dos dedos. – Estou

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pronto para me converter.E aguardou enquanto Rachel

tentava em vão vingar seu sexodaquele desrespeito que ele lhefazia.

– Receio que ele tenha razão –disse Clarissa. – Geralmente eletem... esse infeliz! Eu trouxePersuasão – prosseguiu ela –porque pensei que era um poucomenos desinteressante que osoutros... mas, Dick, não adiantafingir que conhece Jane de cor,pois ela sempre o faz pegar no

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sono!Mereço dormir depois dos

trabalhos de legislação – disseRichard.

Não pense naquelas armas –disse Clarissa, vendo que o olhodele, passando sobre as ondasainda procurava a terra, pensativo– nem em navios, ou impérios, ounada.

Dizendo isso, ela abriu o livroe começou a ler:

–“Sir.Walter ElIiott,deKellynch Hall,em

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Somersetshire,era um homem que,para divertir-se, nunca apanhavaum livro senão o Baronetage”...não conhece Sir Walter?... “Lá eleencontrava ocupação nas horasociosas e consolo nashoras deaborrecimento” – Ela escrevebem, não escreve? “Lá...” – elacontinuou lendo numa vozlevemente jocosa.Decidira queSir Walter afastaria a mente domarido dasarmas da Grã-Bretanha e o transportaria paraum mundorefinado, exótico,

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jovial e um tanto ridículo. Algumtempodepois pareceu que o sol sepunha e os contornos se tornavammais suaves. Rachel levantou osolhos para ver o quecausaraaquela mudança.As pálpebras deRichard estavamse fechando eabrindo, abrindo e fechando. Umarespiração nasal forte anunciouque ele já não mantinha asaparênciase dormiaprofundamente.

– Triunfo! – sussurrou Clarissano fim de uma frase. De repente,

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ergueu as mãos em protesto. Ummarinheiro aguardava; ela deu olivro a Rachel e deu uns passosleves para pegar o recado: “Mr.Grice queria saber se eraconveniente” etc. Ela o seguiu.Ridley, que vagara por ali,avançou, parou e com um gesto dedesagrado afastou-se para o seuestúdio. O político adormecidoficou aos cuidados de Rachel. Elaleu uma frase e deu uma olhadanele. Dormindo, ele parecia umcasaco pendurado ao pé de uma

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cama; lá estavam todas as rugas,as mangas e pernas de calçasmantinham a forma, embora jánão preenchidas por pernas ebraços. É quando melhor se podejulgar a idade e o estado docasaco. Ela o examinou todo atéquando lhe pareceu que ele teriaprotestado.

Era um homem de talvez 40anos; e havia linhas em torno deseus olhos, e curiosas fendas emsuas faces. Parecia um poucodesgastado, mas persistente e no

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auge da vida.Irmãs, um ratinho e alguns

canários – murmurou Rachel, semtirar o olho dele. – Não sei, nãosei. – Ela calou-se, queixo namão, ainda olhando para ele. Umsino tocou atrás deles, e Richardergueu a cabeça. Depois abriuosolhos tendo por um segundo aexpressão bizarra de ummíopecujos óculos se perderam. Levouum momento parase recuperar daimpropriedade de ter roncado, etalvez grunhido, diante de uma

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jovem. Acordar e ver-se sozinhocom alguém também era umpouco desconcertante.

Parece que andei cochilando –disse ele. – O que aconteceu comtodo mundo? E Clarissa?

– Mrs. Dalloway foi olhar ospeixes de Mr. Grice – respondeuRachel.

– Eu devia ter adivinhado –disse Richard. – Um fato comum.E como a senhorita usou essahora luminosa? Converteu-se?

– Acho que não li uma só linha

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– respondeu Rachel.– É o que eu sempre acho. Há

coisas demais para se olhar. Achoa natureza muito estimulante.Minhas melhores idéias mevieram ao ar livre.

– Quando estava caminhando?– Caminhando... cavalgando...

andando de barco...acho que aconversa mais importante deminha vidaaconteceu enquanto euperambulava no grande pátioemTrinity. Estive nas duasuniversidades. Era um caprichodo

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meu pai. Ele achava que issoalargava a mente. Achoqueconcordo com ele. Possolembrar... parece que fazumséculo!... que eu estava decidindoa base de um futuro estado com oatual Secretário da Índia. Nós nosachávamos muito sábios. Não seise não éramos. Éramos felizes,Miss Vinrace, e éramos jovens...talentos que compensam asabedoria.

– E fizeram o que disseramque iam fazer? – perguntou ela.

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– Pergunta desconcertante!Respondo: sim e não. Se de umlado não realizei o que desejeirealizar... e quem de nósrealiza?... de outro lado possohonestamente dizer isso: nãodiminuí meu ideal.

Ele contemplou com arresoluto uma gaivota como se seuideal voasse nas asas do pássaro.

– Mas – disse Rachel – qual éo seu ideal?

– Está perguntando demais,Miss Vinrace – disse Richard em

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tom de brincadeira. Ela apenaspôde dizer que queria saber, eRichard estava se divertindo osuficiente para responder:

– Bem,como devo responder?Numa palavra...Unidade.Unidadede objetivo, de domínio, deprogresso. A dispersãodasmelhores idéias sobre a maiorárea possível.

– Dos ingleses?– Garanto que os ingleses

parecem de modo geral maisbrancos do que a maioria dos

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homens, seus registros, maislimpos. Mas, meu Deus, nãopense que não vejo asdesvantagens... horrores... coisasque nem se pode mencionar,feitasentre nossa própria gente! Nãotenho ilusões.Poucas pessoas,suponho, têm menos ilusões doque eu. Já esteve numa fábrica,Miss Vinrace? Não, acho quenão... posso dizer que espero quenão.Rachel mal caminhara numarua pobre, e sempre acompanhadapelo pai, pela criada ou pelas

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tias.– Eu ia dizer que se já tivesse

visto o tipo de coisa queaconteceao seu redor, compreenderia oque faz de homens,como eu,políticos. A senhorita meperguntou há pouco seeu fiz o quepretendia fazer. Bem, quandopenso em minhavida, há um fatodo qual admito sentir orgulho; porminhacausa milhares de mocinhasem Lancashire... e muitosmilhares que virão depois delas...podem passar uma horatodo dia

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ao ar livre, enquanto suas mãestiveram de passá-ladiante de seusteares. Tenho mais orgulho dissodo que teria se escrevesse comoKeats e Shelley!

Foi penoso para Rachel ser umdos que preferem Keats e Shelley.

Ela gostava de RichardDalloway e tornava-se maiscálida na medida em que eletambém o fazia. Ele parecia falara sério.

– Eu não sei nada! – exclamouela.

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– É bem melhor não saber denada – disse ele paternalmente –,e tenho certeza de que estáenganada.Disseram-me que asenhorita toca piano muito bem, esem dúvida leu montes de livroseruditos. Brincadeiras dos maisvelhos já não a incomodavam.

– O senhor fala de unidade –disse ela. – Devia tentar me fazerentender.

– Eu nunca permito que minhamulher fale de política

– disse ele, gravemente. – Por

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esta razão. É impossível paraseres humanos, constituídos comosão, ao mesmo tempo lutar e terideais. Se preservei os meus, efico grato por poder dizer que fizisso em grande escala, é porquetenho voltado para casa, paraminha esposa de noite, e ver queela passou o dia fazendo visitas,tocando música,brincando com ascrianças e cumprindo seusdeveres domésticos... o que vocêfará; as ilusões dela não foramdestruídas. Ela me dá coragem

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para prosseguir. A tensão da vidapública é enorme – acrescentouele.Isso o fazia parecer um mártirabalado, todo dia desfazendo-sedo mais puro ouro, a serviço dahumanidade.

– Nem posso imaginar comoalguém faz isso! – exclamouRachel.

– Explique, Miss Vinrace –disse ele. – Esse é um assunto quequero esclarecer.

A amabilidade de Dallowayera sincera, e ela decidiu aceitar

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a chance que ele lhe dava,embora falar com um homem detal importância e autoridadefizesse seu coração disparar.

– Parece-me assim – começouela, primeiro esforçando-se porlembrar e depois por expor suasamedrontadas visões particulares.

– Há uma velha viúva em umquarto, em algum lugar,digamos,nos subúrbios de Leeds.Richardinclinou a cabeça para mostrarque aceitara a viúva.

– Em Londres o senhor passa

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sua vida falando, escrevendocoisas, aprovando decretos,perdendo o que parece sernatural. O resultado de tudo isso éque ela vai ao seu guarda-comidae acha um pouco mais de chá,alguns torrões de açúcar, ou umpouco menos de chá e umjornal.Viúvas por todo o país,admito, fazem isso. Mas há amente da viúva, os afetos; a esseso senhor não atinge.Masdesperdiça seus próprios.

– Se a viúva vai ao seu

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guarda-comida e o encontra vazio– respondeu Richard –, podemosadmitir que sua perspectivaespiritual seja afetada. Se eupuder abrir buracos na suafilosofia, Miss Vinrace, que temseus méritos,direi que um serhumano não é um conjunto decompartimentos, mas umorganismo. Imaginação, MissVinrace;use sua imaginação; é aíque vocês, jovens liberais,falham.Conceba o mundo comoum todo. Agora, quanto ao seu

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segundo tema: quando afirma quetentando arranjar a casa parabenefício da nova geração estoudesperdiçando minhas maiorescapacidades, discordo totalmente.Não posso conceber uma metamais sublime... ser cidadão doImpério. Encare isso dessamaneira, Miss Vinrace; conceba oEstado como uma engrenagemcomplexa; nós cidadãos somospartes dessa engrenagem; algunscumprem tarefas maisimportantes; outros (talvez eu seja

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um deles) servem apenas paraconectar partes obscuras domecanismo, escondidas do olhodo público. Mas se o menorparafuso falha na sua tarefa, ofuncionamento adequado do todofica comprometido.

Era impossível combinar aimagem de uma magraviúva depreto, olhando fixamente pelajanela e ansiandoter alguém comquem falar, com a imagem de umamáquina imensa, como se vê emSouth Kensington, pulsando,

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pulsando, pulsando. A tentativade comunicaçãofora um fracasso.

– Parece que não nosentendemos – disse ela.

– Posso dizer alguma coisaque vai deixar a senhorita muitozangada? – perguntou ele.

– Não vou ficar – disse ela.– Pois então muito bem;

nenhuma mulher tem o que euchamaria de instinto político.Vocês têm virtudes imensas; sou oprimeiro, espero, a admitir isso;mas nunca conheci uma mulher

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que sequer reconhecesse o que éser estadista. Vou deixá-la maisirada ainda. Espero nuncaconhecer essa mulher. Agora,Miss Vinrace, somos inimigospara o resto da vida? Vaidade,irritação e um pungente desejo deser compreendida impeliram-na afazer ainda outra tentativa.

– Debaixo das ruas, nosesgotos, nos fios, nos telefones,há alguma coisa viva; é disso queo senhor está falando? Em coisascomo carrocinhas de garis e

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homensconsertando estradas? Osenhor sente isso o tempo todo,quando caminha por Londres equando abre uma torneira e saiágua?

– Certamente – disse Richard.– Compreendo que a senhoritaquer dizer que o todo de umasociedade moderna se baseia noesforço de cooperação. Se aomenos mais pessoas entendessemisso, Miss Vinrace, haveriamenos das suas velhas viúvassolitárias e nostálgicas!

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Rachel pensou por ummomento.

– O senhor é liberal ouconservador? – indagou.

– Eu me chamo deconservador por causa daconveniência – disse Richardsorrindo.

– Mas há mais em comumentre os dois partidos do quegeralmente as pessoasadmitem.Houve uma pausa, queda parte de Rachel não se deviaàfalta de coisas a dizer; como de

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costume ela não as podiadizer, eficava mais confusa ainda porqueprovavelmente havia poucotempo para conversar. Eraperseguida poridéiasabsurdamente obscuras – como sese voltasse atrás o suficiente,talvez tudo ficasse inteligível;tudo era comum,pois os mamutesque tinham pastado nos camposda ruaprincipal de Richmondtinham se transformado empedrasde calçamento e caixascheias de fitas, e em suas tias.

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– O senhor disse que vivia nocampo quando era criança? –perguntou ela.

Embora os modos dela lheparecessem rudes, Richard ficoucontente. Não podia haver dúvidade que o interesse dela eragenuíno.

– Sim – ele sorriu.– E o que foi que aconteceu? –

perguntou ela. – Ou estou fazendoperguntas demais?

– Asseguro-lhe que ficocontente. Mas... vamos ver... o

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que foi que aconteceu? Bem,cavalgar, aulas, irmãs. Havia ummonte de entulho encantado,lembro-me disso, onde aconteciatoda sorte de coisas bizarras.Estranho, as coisas queimpressionam as crianças!Lembro a aparência do lugar atéhoje. É um engano pensar que ascrianças são felizes. Não são; sãoinfelizes. Nunca sofri tanto quantosofri quando criança.

– Por quê? – perguntou ela.– Eu não me dava bem com

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meu pai – disse Richard,lacônico.– Ele era um homem muito capaz,mas duro.Bem... isso nos fazdecidir não cometer o mesmopecado.Crianças nunca esqueceminjustiças. Perdoam muitas coisascom que os adultos se importam;mas esse pecado é opecadoimperdoável. Atrevo-me a dizerque eu era umacriança difícil dese lidar; mas quando penso noque estavadisposto a dar! Não,pecaram mais contra mim do queeupequei. E depois fui para a

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escola, onde me dei bastantebem;depois, como lhe disse, meu paime mandou para asduasuniversidades... Sabe, MissVinrace, que a senhoritame fezpensar? Como afinal se podedizer pouco a outrapessoa sobre anossa própria vida! Estou aquisentado; asenhorita está aísentada; não duvido de que ambosestejamos repletos das maisinteressantes experiências,idéias,emoções; mas como noscomunicarmos? Eu lhe disse o

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que praticamente qualquer um lhediria.

– Acho que não – disse ela. –É o jeito de dizer as coisas, nãoé? E não as coisas em si.

– Verdade – disse Richard. –Absolutamente verdade.

– Ele fez uma pausa. – Quandoolho para trás, para minha vida...tenho 42 anos... quais são osgrandes fatos que se destacam?Quais foram as revelações, seposso chamá-lasassim? A misériados pobres e... (ele hesitou e

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lançou)“o amor!”Nessa palavra ele baixou a

voz; era uma palavra que pareciadesvendar os céus para Rachel.

– É uma coisa estranha para sedizer a uma jovem – prosseguiuele. – Mas a senhorita tem idéiado que... o que quero dizer comisso? Não, é claro que não. Nãouso a palavra no sentidoconvencional. Uso-a como osrapazes a usam. As moças sãomantidas na maior ignorância, nãosão? Talvez seja uma coisa

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sábia... talvez... A senhorita nãosabe?

Ele falava como se tivesseperdido a consciência do quedizia.

Não, não sei – disse ela, quasesussurrando.

Navios de guerra, Dick! Ali!Olhe!

Clarissa, liberada por Mr.Grice, tendo apreciado todas assuas algas marinhas, deslizava nadireção deles,gesticulando.

Avistara dois sinistros navios

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cinzentos, bastante mergulhadosna água e de aparência pobre, umseguindo o outro bem de perto, eque lembravam feras semolhosprocurando suas presas.Richard retomou aconsciênciaimediatamente.

– Meu Deus! – exclamou,protegendo os olhos com a mão.

Nossos, Dick? – perguntouClarissa.

A Frota do Mediterrâneo –respondeu ele.O Euphrosyneiçava sua bandeira lentamente.

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Richard ergueu o chapéu.Clarissa apertava a mão deRachelconvulsivamente.

– Não fica feliz de seringlesa? – perguntou.

Os navios de guerra passaramlançando um curioso efeito dedisciplina e tristeza sobre aságuas, e só quando ficaraminvisíveis de novo as pessoasvoltaram a falar comnaturalidade. No almoço aconversa girou em torno devalores de morte, e as magníficas

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qualidades dos almirantesbritânicos. Clarissa citou umpoeta, Willoughby citou outro. Avida de um combatente a bordoera esplêndida,concordaram, e osmarujos eram particularmentesimpáticos e simples.

Sendo assim, ninguém gostouquando Helen comentou que lheparecia tão errado ter marinheirosquanto ter um zoológico, e quequanto a morrer no campo debatalha, estava certamente na horade pararmos de elogiar a coragem

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– “ou de escrever poesia ruim arespeito dela”,rosnou Pepper.

Mas Helen estava na verdadeimaginando por queRachel,sentada em silêncio, parecia tãoesquisita e corada.

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5

Mas ela não foi capaz deseguir com suas observações oude chegar a alguma conclusão,pois, por um desses acidentespassíveis de acontecer no mar,todo o curso das suas vidas foiperturbado.

Mesmo na hora do chá, oassoalho erguia-se debaixo dosseus pés e lançava-se abaixo, eno jantar o navio parecia gemer econtorcer-se como se uma chibataestivesse descendo sobre ele.

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Esse navio, que fora um cavalodeflancos largos, em cujosquartos pierrôs poderiamterdançado, tornou-se um potrosolto nos campos. Os pratosdeslizavam longe das facas, e orosto de Miss Dallowayempalideceu por um segundoquando ela seservia e viu asbatatas rolarem de um lado paraoutro.Willoughby naturalmenteexaltou as virtudes do seu navio ecitou o que peritos e passageirosnotáveis tinham dito sobre ele,

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pois amava seus bens. Mesmoassim ojantar foi desconfortável,e assim que as damasficaramsozinhas, Clarissa disseque ficaria melhor na cama esefoi, sorrindo corajosamente.

Na manhã seguinte atempestade baixou sobre eles, enenhuma boa educação podiaignorar esse fato. Mrs.Dallowayficou em seu quarto. Richardenfrentou trêsrefeições, comendovalentemente em cada uma delas;mas na terceira, aspargos boiando

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em azeite finalmente oderrubaram.

– Isso liquidou comigo – disseele, e retirou-se.

– Agora estamos mais uma vezsozinhos – disse William Pepper,olhando em torno da mesa; masninguém se dispunha a conversar,e a refeição terminou em silêncio.

No dia seguinte encontraram-se, mas como folhas soltas seencontram no ar. Não estavamnauseados; mas o vento osprecipitava impetuosamente para

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os quartos e violentamente escadaabaixo. Passavam uns pelosoutros no convés, arquejantes;gritavam para serem ouvidos dooutro lado da mesa. Usavamcasacos de pele; e Helen nuncaera vista sem um lenço na cabeça.Para maior conforto retiravam-separa suas cabines onde, com pésfirmemente apoiados, deixavam onavio saltar e inclinar-se.Sentiam-se como batatas numsaco sobre um cavalo a galope. Omundo lá fora era um tumulto gris

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e violento. Por dois dias tiveramum perfeito descanso de suasvelhas emoções. Rachel tinhasuficiente consciência apenaspara imaginar-se um burrico nomeio de um charco numatempestade de granizo,mostrandoos sulcos deixados pelo vento noseu pêlo; depois tornou-se umaárvore enfeitiçada, perpetuamenteempurrada para trás pelo ventosalgado do Atlântico.

Helen, por sua vez, cambaleouaté a porta de Mrs.Dalloway,

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bateu, não pôde ser ouvida porcausa das portas que batiam e dosgolpes do vento, e entrou.

Naturalmente havia bacias.Mrs. Dalloway repousavasoerguida sobre travesseiros enão abriu os olhos. Depoismurmurou:

– Oh, Dick, é você? Helengritou – pois foi lançada contra apia: – Como está você? Clarissaabriu um olho. Aquilo lhe deuuma aparência inacreditavelmentedevassa.

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– Horrível! – arquejou. Seuslábios estavam brancos pordentro.Plantando os pés bemseparados no chão, Helen tentoudespejar champanha numa canecacom uma escova de dentes dentro.– Champanha – disse.

– Há uma escova de dentes aídentro – murmurou Clarissa, esorriu; podia ter sido também umacareta de choro. Ela bebeu.

– Nojento – sussurrou,apontando as bacias. Restos debom humor ainda brincavam em

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sua face como o luar.– Quer mais? – gritou Helen.

Mais uma vez a fala ficavaalémdo alcance de Clarissa. O ventodeitava o navio de lado,tremendo. Pálidas agoniascruzaram o rosto de Mrs.Dalloway,em ondas.Quando ascortinas balouçaram,luzescinzentas sopraram sobre ela.Entre os espasmos da tempestade,Helenajeitou as cortinas, sacudiuos travesseiros, esticou as roupasdecama e acalmou as narinas

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quentes e a testa com perfumefrio.

– Você é muito boa! – arquejouClarissa. – Que confusãohorrível!

Estava tentando desculpar-sepelas roupas de baixo brancascaídas e espalhadas no chão. Porum segundo abriu um olho e viuque o quarto estava arrumado.

– Muito simpático de sua parte– arquejou.

Helen deixou-a; bem distanteela sentia uma espécie de

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simpatia por Mrs. Dalloway. Nãopodia deixar de respeitar seucaráter e seu desejo, mesmo nasconvulsões da náusea, de umquarto de dormir bem arrumado.Mas suas anáguas vinham acimados joelhos.

Subitamente a tempestaderelaxou seu domínio. Aconteceuna hora do chá; o esperadoparoxismo do vendaval cedeuexatamente quando atingiu oclímax e afastouse definhando, eo navio, em vez de dar o

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mergulho usual,seguiu adiante,sólido. A monótona seqüência demergulhar e subir, bramir erelaxar, mudou, e todos na mesaergueram os olhos e sentiramalguma coisa afrouxar-seinternamente. A tensão aliviou-se,os sentimentos humanoscomeçaram a agir novamente,como quando a luz do diaapareceno fim de um túnel.

Tente uma volta comigo –Ridley chamou Rachel do outrolado da mesa.

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Bobagem! – gritou Helen, massubiram a escada aos tropeções.

Sufocados pelo vento,animaram-se num ímpeto, poisnas beiradas de todo aqueletumulto gris havia um nevoentoponto dourado. Instantaneamenteo mundo voltou a tomar forma;não eram mais átomos voando novácuo, mas gente sobre um naviotriunfante no dorso do mar.

Vento e espaço tinham sidobanidos; o mundo flutuava comouma maçã numa bacia, e a mente

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humana, que também estiveradesenraizada, mais uma vez seprendia às velhas crenças.

Tendo andado em torno donavio duas vezes, recebendomuitos golpes fortes do vento,viram um rosto de marinheiro debrilho positivamente dourado.Olharam e contemplaram umcírculo amarelo de sol; no minutoseguinte, ele foi atravessado porfaixas errantes de nuvens, edepois completamenteobscurecido. No café da manhã

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seguinte, porém, o céu estavavarrido e limpo, as ondas,emboraaltas, eram azuis, e depois davisão do estranho submundohabitado por fantasmas, aspessoas começaram a viver entrepotes de chá e fatias de pão commais entusiasmo do que nunca.

Mas Richard e Clarissa aindaestavam na fronteira.Ela nãotentou soerguer-se; seu maridoestava de pé, contemplou seucolete e suas calças, sacudiu acabeça e depoisdeitou-se de

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novo. O interior de seu cérebroainda se erguiae baixava como omar no palco. Às quatro horas eleacordou e viu a luz do sol formarum ângulo vívido sobreascortinas de veludo vermelho eas calças de tweed cinza. Omundo comum lá fora escorregoupara dentro de sua mente, equando se vestiu voltou a ser umcavalheiro inglês.

Sentou-se ao lado de suaesposa. Ela o puxou para junto desi pela lapela do casaco, beijou-o

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e segurou-o por um minuto.– Vá pegar um pouco de ar,

Dick – disse ela. – Parece muitoabatido... Que bom o seucheiro!... E seja educado comaquela mulher. Ela foi boacomigo.

Depois disso Mrs. Dallowayvirou-se para o lado fresco dotravesseiro, terrivelmente abatidamas ainda invencível. Richardencontrou Helen falando com ocunhado diante de dois pratos debolo amarelo, pão macio e

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manteiga.– O senhor parece muito

doente! – exclamou ela ao vê-lo.– Venha tomar um pouco dechá.Ele notou que as mãos que semoviam sobre as xícaras eramlindas.

– Ouvi dizer que a senhora foimuito boa com minha esposa –disse. – Ela passou momentosterríveis. A senhora entrou e lhedeu champanha. Esteve tambémentre os que não sofreram?

– Eu? Ah, eu não enjôo há 20

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anos... enjôo de mar,quero dizer.– Há três fases de

convalescença, eu sempre digo –interrompeu a voz forte deWilloughby. – A fase do leite, afase do pão com manteiga e a fasedo rosbife. Eu diria que o senhorestá na fase de pão com manteiga.– E passoulhe o prato. – Agora euaconselharia um chá reforçado euma boa caminhada no convés; ena hora do jantar vai estarpedindo um bife, hein? – Eleafastou-se, rindo, desculpando-se

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por causa do trabalho.– Que sujeito esplêndido esse!

– exclamou Richard. – Sempreentusiasmado com alguma coisa.

– Sim – disse Helen –, elesempre foi assim.

– Este é um grandeempreendimento dele –continuouRichard. – É umnegócio que não pára nos navios,eu diria.Nós ainda o veremos noParlamento, ou estou muitoenganado. É o tipo de homem quequeremos no Parlamento, ohomem

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que realizou coisas.Mas Helen não estava muito

interessada no cunhado. –Imagino que sua cabeça estejadoendo, não está? – perguntou elaservindo nova xícara de chá.

– Sim, está – disse Richard. –É humilhante ver que neste mundose é tão escravo do corpo. Sabe,eu nunca consigo trabalhar semuma chaleira sobre oaparador.Muitas vezes nem bebochá, mas tenho de saber quepoderei tomar, se quiser.

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– Isso é péssimo para o senhor– disse Helen.

– Encurta a vida; mas, receio,Mrs. Ambrose, que nós políticostenhamos de nos decidir sobreisso no começo.Temos dequeimar nossa vela nas duaspontas, ou...

– Você põe tudo a perder! –disse Helen, divertida.

– Não podemos fazer asenhora nos levar a sério,Mrs.Ambrose – protestou ele. –Posso lhe perguntar como passa

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seu tempo? Lendo... filosofia? –(Ele viu o livro pre-to.) –Metafísica e pescaria! –exclamou. – Se eu tivesse deviver de novo, acho que medevotaria a uma coisa ou outra. –Começou a folhear as páginas.

– “O bem,então,éindefinível”– leu em voz alta. –Que alegria pensar que issocontinua! “Até onde eu sei, há umsó escritor ético, o professorHenry Sidgwick, que reconheceuclaramente e afirmou esse fato.”

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É exatamente o tipo de coisa deque costumávamos falar quandomeninos. Lembro-me de discutiraté as cinco da manhã com Duffy,agora Secretário da Índia,caminhando naqueles claustrosaté decidirmos que era tardedemais para ir para a cama, e emvez disso íamos andar a cavalo.Se chegamos a algumaconclusão... isso é outro assunto.Mas é a discussão que conta. Sãocoisas assim que se destacam navida.

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Nada desde então foi tãovívido. São os filósofos, osintelectuais – continuou ele, –eles é que são as pessoas quepassam adiante a tocha, quemantêm o fogo queimandoenquanto estamos vivos. Serpolítico não nos faz cegosnecessariamente para isso, Mrs.Ambrose.

– Não. E por que faria? –disse Helen. – Mas o senhorconsegue lembrar se sua esposatoma com açúcar? Ela levantou a

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bandeja e saiu para levá-la aMrs.Dalloway.Richard enrolouduas vezes um cachecol nopescoço e subiu com esforço atéo convés. Seu corpo, que ficarabranco e macio no quarto escuro,formigava no ar fresco.Sentia-serealmente no auge da vida. Oorgulho brilhava em seus olhosenquanto deixava o vento fustigá-lo e permanecia firme. Com acabeça levemente baixada eledobrou esquinas, subiu ladeiras,enfrentou o vento. Houve uma

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colisão, por um segundo ele nãopôde ver em que corpo batera.

– Perdão, perdão. – FoiRachel quem pediu desculpas.Osdois riram, havia vento demaispara poderem falar. Ela abriu aporta de seu quarto e entrounaquela calmaria.Para falar comela, Richard também teria deentrar. Estavam parados numredemoinho de vento; papéiscomeçaram a voar em círculo, aporta fechou-se com estrondo, eeles cambalearam, rindo, até suas

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cadeiras. Richard sentou-se emcima de Bach.

– Meu Deus! Que tempestade!– exclamou ele.

– Maravilha, não é? – disseRachel. Certamente a luta e ovento tinham-lhe fornecido adeterminação que lhe faltava;havia rubor em suas faces, e ocabelo estava solto.

– Ah, que divertido! – gritouele. – Estou sentado em quê? Esteé seu quarto? Como é alegre!

– Ali... sente-se ali –

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comandou ela. Mais uma vez oCowper escorregou.

– Que bom encontrarmo-nosde novo – disse Richard.

– Parece um século. Cartas deCowper?... Bach?... Morro dosventos uivantes?... É aqui que asenhorita medita sobre o mundo edepois sai e enfrenta pobrespolíticos com perguntas? Nosintervalos de enjôo pensei muitona sua con-versa. Acredite, mefez pensar.

– Eu o fiz pensar! Mas por

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quê?– Que solitários icebergs nós

somos, Miss Vinrace! Como noscomunicamos pouco! Há muitascoisas que eu gostaria de lhedizer... e sobre as quais queroouvir sua opinião. Alguma vez leuBurke?

– Burke? – repetiu ela. –Quem foi Burke?

– Não? Bem, então façoquestão de lhe enviar umexemplar. O discurso sobre aRevolução Francesa – A rebelião

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americana? Fico pensando, o queseria? – Ele anotou alguma coisaem sua agenda. – E depois asenhoritaterá de me escrever edizer o que achou. Essareticência... esse isolamento... éesse o problema na vidamoderna! Agora, fale-me de si.Quais seus interesseseocupações? Devo imaginar que éuma pessoa com interesses bemmarcados. Claro que é! SantoDeus! Quandopenso na era emque vivemos, com suas

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oportunidadese possibilidades, omonte de coisas a serem feitaseaproveitadas... por que nãotemos dez vidas em vez deuma?Mas, e a senhorita?

Como vê, eu sou uma mulher –disse Rachel.

Eu sei... eu sei – disseRichard, jogando a cabeça paratrás e passando os dedos sobre osolhos. – Que estranho ser umamulher! Uma mulher jovem elinda – continuou ele, sentencioso– com o mundo todo a seus pés. É

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verdade, Miss Vinrace. Vocês têmum poder inestimável... para obem ou para o mal. O que nãopoderiam fazer... – eleinterrompeu-se.

– O quê? – perguntou Rachel.Vocês têm beleza – disse ele.

O navio inclinou-se. Rachel caiuum pouco para a frente. Richardpegou-a nos braços e beijou-a.Abraçando-a fortemente, beijou-acom paixão, de modo que elasentiu a dureza do seu corpo easpereza do seu rosto apertado

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contra o dela. Ela caiu para trásna cadeira, com o coraçãodisparado, a cada pulsaçãomandando ondas escuras sobreseus olhos. Ele agarrou a testacom as mãos.

Você me tenta – disse ele. Oseu tom de voz era assustador.Parecia sufocado na luta. Ambostremiam. Rachel levantou-se esaiu. Sua cabeça estava fria, osjoelhos tremendo, e a dor físicada emoção era tanta que sóconseguia mexer-se com grandes

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saltos do coração. Inclinou-se naamurada do navio e aos poucosdeixou de sentir,pois um friogélido cobria seu corpo emente.Bem longe entre as ondasflutuavam aves marinhas negras ebrancas. Alteando-se e caindocom movimentos leves egraciosos nas cavidades dasondas, pareciam singularmentedesligadas e despreocupadas.

Vocês são tão pacíficas – disseela, também apaziguada, aomesmo tempo dominada por uma

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estranhaexaltação. A vida pareciaconter infinitas possibilidadesque ela jamais adivinhara.Debruçou-se na amurada eolhouas águas cinzentas e turbulentas,onde o sol sefragmentava nacrista das ondas, até ficar fria einteiramente calma mais uma vez.Mesmo assim, algo demaravilhoso acontecera.

Porém no jantar ela não sesentiu exaltada, apenasdesconfortável, como se ela eRichard tivessem visto juntos

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algo que é escondido na vidacomum, de modo que já nãoquisessem fitar-se nos olhos.Richard deslizou os olhos sobreela uma vez, inquieto, e não afitou mais. Chavões formaisforam fabricados com esforço,mas Willoughby estava animado.

– Bife para Mr. Dalloway! –gritou. – Vamos... depois dacaminhada, Dalloway, vocêchegou à fase da carne!

Seguiram-se maravilhosashistórias masculinas sobre Bright

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e Disraeli e governos decoalizão, histórias maravilhosasque faziam as pessoas à mesa dejantar parecerem insignificantes,sem nada de especial. Depois dojantar,sentada sozinha com Racheldebaixo do grande lampião quebalouçava, Helen ficouimpressionada com a palidezdela. Mais uma vez ocorreu-lheque havia algo esquisito nocomportamento daquela moça.

– Parece cansada. Estácansada? – perguntou.

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– Cansada não – disse Rachel.– Ah, sim, acho que estoucansada.

Helen aconselhou-a a ir para acama, e ela foi, sem voltar a verRichard. Devia estar cansada,pois adormeceu logo, mas depoisde uma hora ou duas de um sonosem sonhos, sonhou. Sonhou queestava caminhando por um longotúnel, que se estreitava tanto queela podia tocar os tijolos úmidosdos dois lados. Com o tempo otúnel se abriu tornando-se uma

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abóbada; ela viu-se presa alidentro, tijolos ao redor em todosos lados, sozinha com umhomenzinho deformado e de unhaslongas que se agachava no chãofalando coisas inarticuladas. Seurosto era agudo como o focinhode um animal. A parede atrás deleexsudava umidade, que secristalizava em gotas eescorria.Quieta e fria como amorte ela se deitou ali sematreverse a se mexer, até romper aagonia jogando-se atravessada na

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cama, e acordou gritando “Oh!”A luz mostrou-lhe as coisas

familiares: suas roupas caídas dacadeira, o jarro de água brilhandobranco, mas o horror não se foilogo. Sentia-se perseguida, demodo que se levantou e trancou aporta. Uma voz gemia chamandopor ela; olhos a desejavam. Portoda a noite homens bárbarosassediavam o navio; desciambarulhentos pelos corredores,paravam para fungar na sua porta.Ela não conseguiu mais dormir.

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6

Essa é a tragédia da vida,como sempre digo! – disse Mrs.Dalloway. – Começar coisas e terde terminá-las. Mas não voudeixar isto terminar, se vocêconcordar. – Era de manhã, o marestava calmo, e o navio, mais umavez ancorado perto de outrapraia.

Ela vestia seu longo manto depeles com os véus enrolados em

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torno da cabeça, e mais uma vezas ricas caixas estavam umassobre as outras, de modo queparecia repetir-se a cena dealguns dias atrás.

– Você acha que vamos nosencontrar em Londres? – disseRidley irônico. – Você teráesquecido completamente de mimquando sair do barco.

Ele apontou a praia dapequena baía onde podiam agoraver as árvores e seus galhos semovendo.

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– Como você é horrível! – elariu. – Rachel vai me visitar...assim que você voltar – disse elaapertando o braço de Rachel. –Agora, você não tem desculpa!

Com um lápis de prata elaescreveu seu nome e endereço nafolha de rosto de Persuasão eentregou o livro aRachel.Marinheiros estavambotando a bagagem nos ombros, easpessoas começavam a reunir-seem grupo. Havia ocapitãoCobbold, Mr. Grice,

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Willoughby, Helen, e um homemhumilde e agradável numacamiseta de malha azul.

– Ah, está na hora – disseClarissa. – Bem, adeus. Eu gostomesmo de você – murmurou, ebeijou Rachel.Pessoasinterpondo-se entre elespouparam Richard de apertar amão de Rachel; ele conseguiuencará-la sem convicção por umsegundo antes de seguir suaesposa descendo pelo flanco donavio.O barco que se apartava do

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navio dirigiu-se para a terra, epor alguns minutos Helen, Ridleye Rachel encostaram-se naamurada observando. Mrs.Dalloway virou-se e acenou; maso bote ficava cada vez menor emenor, até cessar de levantar-se eabaixar-se, e nada se poderia versenão duas costas resolutas.

– Bem, acabou – disse Ridleydepois de um longo silêncio. – Aeles, nós nunca mais veremos –acrescentou virando-se para ir atéseus livros. Uma sensação de

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vazio e melancolia os dominava;sabiam em seus corações queaquilo tinha acabado e que setinham separadopara sempre, e aconsciência disso provocavaneles umadepressão bem maiordo que se justificaria pelo tempoque se conheciam. Mesmo quandoo bote se afastavapodiam sentiroutras visitas e sons começando atomar o lugar dos Dalloway, e asensação era tão desagradávelque tentaram resistir. Pois assimtambém eles seriamesquecidos.

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De um modo bastante parecidocom Mrs.Chailey varrendo dotoucador as pétalas de rosamurchas, Helen estava ansiosapor ajeitar as coisas depois de osvisitantes terem partido.A óbvialanguidez e distração de Rachel atornavam presa fácil, e Helen naverdade tramara uma espécie dearmadilha.Agora sentia combastante segurança que algoacontecera; além disso, começaraa pensar que já tinham sidoestranhastempo suficiente e

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desejava saber como era aquelamoça, em parte, é claro, porqueRachel não mostrava disposiçãode serconhecida. Assim, quandose afastaram da amurada, eladisse:

– Venha conversar comigo emvez de exercitar-se ao piano – emostrou o caminho para o ladoabrigado onde se estendiam ascadeiras do convés, ao sol.Rachel seguiu-a, indiferente. Suamente estava absorvida porRichard, pela extrema estranheza

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do que acontecera e por milsentimentos deque não tiveraconsciência anteriormente. Elaquase nemtentava escutar o queHelen dizia, enquanto esta falavalugares-comuns. Enquanto Mrs.Ambrose arranjava seu bordado,chupava seu fio de seda e oenfiava na agulha, Racheldeitava-se para trás fitando o horizonte.

– Você gostou daquela gente?– perguntou Helen em tom casual.

Sim – respondeu sem rodeios.Você conversou com ele, não

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foi? Por um minuto ela nadadisse.

Ele me beijou – disse depois,sem mudar a entonação.

Helen sobressaltou-se, olhou-a, mas não conseguiu descobrir oque ela sentia.

– Humm... sim – disse, depoisde uma pausa. – Achei que ele eraesse tipo de homem.

Que tipo de homem? – disseRachel.

Pomposo e sentimental.Eu gostava dele – disse

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Rachel.Então não se importou?Pela primeira vez desde que

Helen conhecia Rachel,os olhosda moça se iluminaram.

Eu me importei – disse elaveemente. – Tive sonhos. Nãoconsegui dormir.

Conte-me o que aconteceu –disse Helen, que tinha de cuidarpara que seus lábios não serepuxassemenquanto escutava ahistória de Rachel, que foidespejada abruptamente, com

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grande seriedade e nenhum sensode humor.

Estávamos falando sobrepolítica. Ele me disse o que tinhafeito pelos pobres em algumlugar. Eu lhe fiz toda sorte deperguntas. Ele me falou de suavida. Anteontem,depois datempestade, ele veio me ver. Eentão aconteceu,bem de repente.Ele me beijou. Não sei por quê. –À medida que falava, Rachelenrubescia. – Fiquei muitoexcitada, mas não me importei, a

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não ser depois, quando – ela fezuma pausa e viu novamente afigura daquele homenzinhoinchado – fiquei aterrorizada.

Pela expressão de seus olhosvia-se claramente que estavaaterrorizada outra vez. Helenrealmente não sabia o que dizer.Do pouco que conhecia daeducação de Rachel,achou queela nada sabia sobre as relaçõesentre homens e mulheres. Com atimidez que sentia com mulheres,e não com homens, ela não quis

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explicar simplesmente querelações eram essas. Por isso,tomou o outro caminho e reduziua importância de todo o caso.

Ora, bem – disse ela –, ele eraum bobo, e se eu fosse você nempensava mais nisso.

Não – disse Rachel,endireitando-se. – Não farei isso.Pensarei no assunto dia e noiteaté descobrir exatamente o quesignifica.

– Você nunca lê nada? –perguntou Helen, perquiridora.

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– As Cartas de Cowper...coisas assim. Papai as traz paramim, ou minhas tias.

Helen quase não conseguiuevitar dizer o que pensava de umhomem que educava sua filha demodo que, com 24 anos, ela malsoubesse que homens desejammulheres e ainda ficasseapavorada com um beijo. Teveboas razões de recear que Rachelhouvesse feito um papelincrivelmente ridículo.

Você não conhece muitos

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homens? – perguntou.Mr. Pepper – disse Rachel,

com ironia.Então, nenhum que quisesse se

casar com você?Não – respondeu ela,

ingenuamente.Helen refletiu que, já que

Rachel – tendo em vista o que elaprópria dissera – certamentepensaria em tais coisas, seriabom ajudá-la.

– Você não devia ter medo –disse ela. – É a coisa mais natural

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do mundo. Homens vão quererbeijar você assim como vãoquerer se casar com você. Pena éver essas coisas de mododesproporcionado. É como notaros ruídos que as pessoas fazemquando comem, ou homenscuspindo;em suma, qualquerdessas coisinhas nos dá nosnervos.

Rachel parecia não prestaratenção.

– Diga-me – disse subitamente–, como são essas mulheres em

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Piccadilly?– Piccadilly? – disse Helen. –

São prostitutas.– Isso é assustador... é

repugnante – afirmou Rachel,como se incluísse Helen naqueleódio.

– É, sim – disse Helen. –Mas...

– Eu gostava dele – disseRachel como se falasse para simesma. – Eu queria falar com ele;queria saber o que ele tinha feito.As mulheres em Lancashire...

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Enquanto recordava suaconversa, pareceu-lhe que ha-viaalgo adorável em Richard, algode bom em sua tentativa deamizade, e estranhamentelamentável na maneira comotinham se separado.

Helen notou que seu estado deânimo se abrandava.

– Veja – disse ela –, você temde aceitar as coisas como são; ese quiser amizade com homens,tem de correr riscos.Pessoalmente – continuou,

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abrindo um sorriso – acho quevale a pena; não me importo deser beijada; acho que tenhociúmes porque Mr. Dallowaybeijou você e não a mim, emboraeu o achasse bastante chato.

Mas Rachel não devolveu osorriso, nem pôs de lado todo ocaso, como Helen desejara. Suamente trabalhavamuito depressa,inconsistente e doloridamente. Aspalavras de Helen cortavamgrandes blocos de um lugarondesempre estiveram, e a luz que

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agora entrava erafria. Depois desentar-se algum tempo com olhosfixosela explodiu:

– Então é por isso que não medeixam passear sozinha!

Sob essa nova luz ela via suavida pela primeira vez como umacoisa furtiva e encerradacuidadosamente entre altosmuros, aqui virada de lado, alimergulhada em trevas, embotadae mutilada para sempre – a suavida, que era a sua única chance.Mil palavras e atos se tornavam

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evidentes agora.– Porque os homens são

brutos! Odeio homens! –exclamou.

– Achei que você tinha ditoque gostava dele – disse Helen.

– Gostava dele e gostei de serbeijada – respondeu ela,como seisso só acrescentasse maisdificuldades ao problema. Helenficou surpresa ao ver como eramgenuínos o choque e o problema,mas não conseguiu pensar emoutro jeito de facilitar as coisas,

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senão continuar falando. Queriafazer sua sobrinha falar, e assimentender porque esse políticobastante sem graça, bondoso ebem-falante lhe causara umaimpressão tão profunda, poiscertamente aos 24 anos isso nãoera natural.

– E você também gostava deMrs. Dalloway? –perguntou.Enquanto falava, viuRachel ficar mais vermelha, poislembrava as coisas bobas quedissera e também ocorreulhe que

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tratara bastante mal aquelarefinada mulher, pois Mrs.Dalloway dissera que amava omarido.

– Ela era bem simpática, masuma criatura enganadora –continuou Helen. Nunca ouvitantas bobagens!Conversa fiada...peixe e o alfabeto grego... nuncaouviauma palavra do que osoutros diziam... cheia deteoriasidiotas sobre o jeito decriar filhos... eu preferia falarcomele. Era pomposo, mas pelo

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menos compreendia oque sedizia.

Imperceptivelmente, o encantode Richard e Clarissa desbotouum pouco. Não tinham sido tãomaravilhosos,afinal, aos olhos deuma pessoa madura.

– É muito difícil saber comosão as pessoas – comentouRachel, e Helen viu com prazerque ela falava com maisnaturalidade. – Acho que meenganei.

Havia pouca dúvida sobre

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isso em Helen, mas ela se contevee disse alto:

– A gente tem de fazerexperiências.

– E eles eram simpáticos –disse Rachel. –Extraordinariamenteinteressantes. – Tentou lembrar aimagem domundo como a coisaviva que Richard lhe dera, comraloscomo nervos, e casas ruinscomo marcas de pele. Lembrouassuas palavras-chave Unidade eImaginação, e viu novamente as

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bolhas em sua xícara de cháenquanto ele falavade irmãs ecanários, da infância e de seu pai,o pequeno mundo de Rachelalargando-se maravilhosamente.

– Mas todas as pessoas nãolhe parecem igualmenteinterressantes, parecem? –perguntou Mrs. Ambrose.Rachelexplicou que a maioria daspessoas até ali haviam sidosímbolos; mas quando falavam,cessavam deser símbolos etornavam-se... – Ah, eu poderia

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ouvi-lospara sempre! – exclamouela. Depois deu um saltou, sumiuescada abaixo por um minuto evoltou com umgrosso livrovermelho.

– Quem é quem – disse,colocando-o sobre o joelho deHelen e virando as páginas. – Dáresumo da vida das pessoas... porexemplo: “Sir Roland Beal;nascido em1852; pais de Moffatt;educado em Rugby; passoucomoprimeiro para os RoyalEngineers (R.E.)”; casou em 1878

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com a filha de T. Fishwick; serviuna ExpediçãoBechuanaland 1884– 1885 (menção honrosa).Clubes:United Service, Naval eMilitar. Hobby: entusiásticojogador de curling”.

Sentada no convés aos pés deHelen, ela ficou folheando aspáginas e lendo biografias debanqueiros, escritores,clérigos,marinheiros, cirurgiões, juízes,professores universitários,estadistas, editores, filantropos,comerciantes e atrizes; a que

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clubes pertenciam, ondemoravam, que jogos praticavam equantos acres de terra possuíam.

Estava absorta no livro.Enquanto isso Helen

trabalhava em seu bordado epensava nas coisas que dissera.Sua conclusão foi quegostariamuito de mostrar à sua sobrinha,se possível,como viver ou, comodizia, como ser uma pessoasensata.Pensou que devia haveralgo errado naquelaconfusãoentre política e beijar

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políticos, e que uma pessoamaisvelha poderia ajudar.

– Concordo – disse – quepessoas são muito interessantes;apenas... – Rachel, botando odedo entre as páginas, ergueu osolhos interrogativamente.

– Só acho que você tem dediscriminar – concluiu. – É umapena ser íntima de pessoas quesão... bem, bastante secundárias,como os Dalloway, e descobririsso depois.

– Mas como é que se sabe? –

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perguntou Rachel.– Eu realmente não sei dizer –

respondeu Helen comsinceridade, depois de pensar ummomento. – Vai ter de descobrirsozinha. Mas tente e... por quenão me chama de Helen? –perguntou. – “Tia” é uma palavrahorrenda.Nunca gostei de minhastias.

– Eu vou gostar de chamá-lade Helen – respondeu Rachel.

– Você me acha poucocompreensiva?

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Rachel reviu os pontos queHelen não compreendera e quesurgiram principalmente dadiferença de quase 20 anos naidade delas, o que fazia Mrs.Ambrose parecer irônica e friaem assuntos graves.

– Não – disse ela. –Naturalmente, algumas coisasvocê não entende.

– Claro – concordou Helen. –Agora, seja uma pessoaindependente.A visão de suaprópria personalidade, de si

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mesma comouma coisa real eduradoura, diferente do resto,inconfundível, como o mar ou ovento, brilhou na mente deRachel, e ela ficou muito excitadacom a idéia de estar viva.

– Posso ser eu m... m...mesma? – gaguejou. – Apesardevocê, dos Dalloway, de Mr.Pepper, de meu pai e deminhastias, apesar de tudo isso? –perguntou ela passandoa mãosobre toda uma página deestadistas e soldados.

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– De todos eles – disse Helengravemente. Depois largousuaagulha e explicou um plano quesurgia em sua mente enquantofalavam.Em vez de vagar peloAmazonas até chegar aalgumsulfuroso porto tropical, onde erapreciso ficar dentrode casadeitada o dia todo afastandoinsetos com um leque, acoisasensata a fazer seria certamentepassar uma temporadacom eles nasua villa junto ao mar,onde entreoutras vantagensa própria Mrs.

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Ambrose estaria por perto...– Afinal, Rachel – interrompeu

ela –, é bobagem fingir queporque há 20 anos de diferençaentre nós, não podemos conversarcomo seres humanos.

– Não; porque gostamos umada outra – disse Rachel.

– Sim – concordou Mrs.Ambrose.

Esse fato, com outros, ficaraclaro na sua conversa de 20minutos, embora agora nãopudesse dizer como tinham

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chegado a essa conclusão.Isso foi sério o suficiente para

fazer Mrs. Ambrose um ou doisdias depois procurar seu cunhado.Encontrou-osentado em sua salatrabalhando, aplicando um grossolápis azul imperiosamente emmaços de papel fino.Papéisjaziam à sua esquerda e àsua direita, e havia grandesenvelopes tão recheados depapéis que os cuspiam namesa.Acima dele pendia umretrato do rosto de uma mulher.

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Anecessidade de sentar-setotalmente quieta diante deumfotógrafo londrino conferira aseus lábios um pequenorictoesquisito, e seus olhos pelomesmo motivo pareciamdar aentender que achava toda aquelasituação ridícula.Mesmo assim,era o rosto de uma mulherindividual e interessante, que semdúvida teria se virado para rirparaWilloughby, se pudesse pegarseu olhar; mas quando eleergueuos olhos para ela, suspirou fundo.

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Na sua menteaquele trabalho, asgrandes fábricas em Hull, quepareciam montanhas à noite, osnavios que cruzavam o oceanopontualmente, os esquemas paracombinar isso e aquilo econstruiruma sólida indústria, era tudouma oferta paraela; ele depunhaseu sucesso aos pés dela; e estavasemprepensando em como educarsua filha, para que Theresaficasse contente. Era um homemmuito ambicioso e, embora nãotivesse sido especialmente

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bondoso com ela quando eraviva, como Helen achava, agoraacreditava que elao observava docéu e inspirava o que havia debom nele.

Mrs. Ambrose desculpou-sepor interromper e perguntou sepoderia falar com ele sobre umplano. Ele consentiria em deixarsua filha com eles quandoatracassem,em vez de levá-la aoAmazonas?

– Nós tomaríamos conta delamuito bem – acrescentou ela. – E

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realmente nos dariaprazer.Willoughby assumiu um armuito grave e pôs de lado ospapéis cuidadosamente.

– Ela é uma boa moça – disseele. – Há alguma semelhança? –acenou a cabeça para o retrato deTheresa e suspirou. Helen olhouTheresa torcendo os lábios diantedaquele fotógrafo londrino.Sugeria-a de uma maneiraabsurdamente humana, e sentiuuma vontade imensa de fazeralguma brincadeira.

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– Ela é a única coisa que meresta – suspirou Willoughby.– Agente vive ano após ano sem falarnessas coisas... – Eleinterrompeu-se. – Mas é melhorassim. Só que a vida é muitodura.

Helen teve pena dele e bateu-lhe no ombro, mas sentiu-sepouco à vontade quando seucunhado expressou seussentimentos, e refugiou-se emelogios a Rachel, explicando porque achava que seu plano poderia

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ser bom.– Verdade – disse Willoughby

quando ela terminou.A situação social lá tenderá a

ser primitiva. Eu vou estar foramuito tempo. Concordei porqueela desejava. E naturalmentetenho total confiança em você...Veja, Helen prosseguiu ele, agoraconfidencial. – Quero criá-lacomo sua mãe teria desejado.Não concordo com as posiçõesmodernas... não mais do quevocê, hein? Ela é uma moça

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quieta e simpática, devotada a suamúsica. Um pouco menos dissonão faria mal. Mas é feliz, elevamos uma vida bastante calmaem Richmond. Eu gostaria que elacomeçasse a encontrar maisgente. Quero levá-la comigo parasair, quando voltar para casa.Estou quase decidido a alugaruma casa em Londres, deixandominhas irmãs em Richmond, elevá-la para conhecer uma ouduas pessoas que seriam boascom ela por minha causa. Começo

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a perceber – continuou ele,esticando o corpo – que tudo issome levará ao Parlamento, Helen.É o único jeito de conseguir fazeras coisas como a gente deseja.Falei com Dalloway a respeito.Nesse caso, naturalmente, eudevo querer que Rachel participemais das coisas. Certa quantidadede diversão seria necessária:jantares, uma festa eventual.Nossos constituintes gostam deser alimentados,eu acho. Emtodas essas coisas Rachel poderia

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me ajudar.Assim – concluiu ele –,eu gostaria muito se pudéssemosarranjar essa visita (que deve serpor algum motivo de negócio) sevocê pudesse ajudar a minhamenina, fazê-la desabrochar... elaé um pouco tímida ainda...transformála numa mulher, o tipode mulher que a mãe dela gostariaque fosse – concluiu virando acabeça para o retrato.

O egoísmo de Willoughby,embora cheio de real afeto pelafilha como Helen notava, fez com

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que ela decidisse fazer a moçaficar com ela, ainda que tivessede prometer um curso completode graças femininas. Nãoconseguiu conter o riso pensandonisso: Rachel, uma anfitriãconservadora! E admirou-seenquanto o deixava com aquelaespantosa ignorância de pai.

Consultada, Rachel reveloumenos entusiasmo do que Helendesejava. Num momento ficouansiosa; no outro, cheia dedúvidas. Visões de um vasto rio,

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ora azul ora amarelo ao soltropical, cruzado por pássaroscoloridos,ora branco ao luar, oraprofundamente sombreado pelasárvores móveis e pelas canoasdeslizando nas margensemaranhadas, dominaram-na.Helen prometeu um rio.Além domais, ela não queria deixar o pai.Esse sentimento também pareceugenuíno, mas no final Helenprevaleceu, embora ao vencertenha sido tomada por dúvidas, emais de uma vez se arrependeu do

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impulso que a enredara com asorte de outro ser humano.

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A distância, o Euphrosyneparecia muito pequeno.Binóculosdirigiam-se para ele do convés degrandes navios, e julgaram-no umbarco de carga, um barco semcarteira regular ou um daquelesmiseráveis vapores depassageiros onde as pessoasrolavam pelo convés no meio dogado.As figuras dosDalloway,dos Ambrose e dosVinrace, parecendo insetos,também foram objeto de zombaria

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pela extrema pequenez de suaspessoas e pela dúvida, que sóbinóculos muito fortesconseguiriam desfazer, sobreserem realmente criaturas vivasou apenas montes de cordameenovelado. Mr. Pepper, com todaa sua cultura, fora tomado por umalcatraz, e depois, com igualinjustiça,transformado numa vaca.À noite, na verdade, quando asvalsas giraram no salão, epassageiros talentosos recitavam,o naviozinho – reduzido a umas

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poucas luzes entre as ondasescuras, e a uma bem no alto, noar, no topo do mastro – pareciaum tanto misterioso eimpressionante para os casaisacalorados descansando dadança. Tornouse um naviopassando na noite – emblema dasolidão da vida humana, ocasiãode confidências insólitas esúbitos pedidos de compreensão.

E lá se ia ele, dia e noite,seguindo sua trilha, até que certamanhã rompesse e mostrasse a

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terra. Perdendo sua aparência desombra, ela tornou-se primeiromontanhosa e cheia defendas,depois cinzenta e roxa,emseguida manchada de blocosbrancos que gradualmente seseparavam unsdos outros, e então,quando o avanço do navio atuavasobre apaisagem como umbinóculo de poder crescente,tornou-se ruas com casas.Porvolta das nove horas oEuphrosyne assumiu sua posiçãono meio de uma grande baía;

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lançou âncora;imediatamente,como se fosse um gigante deitadopedindo para ser examinado,pequenos barcos vieram emgrupos atéele. O navio ressoavade gritos; homens saltavam sobreele;seu convés era pisoteado. Ailhazinha solitária foi invadidadetodos os lados ao mesmo tempo, edepois de quatro semanas desilêncio era estranho escutar falahumana. Só Mrs. Ambrose nãoprestava atenção a nada dessaconfusão.Estavalívida de tensão,

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enquanto o bote com malas decorrespondência vinha na direçãodeles. Absorvida em suas cartas,ela não notou que deixara oEuphrosyne e não sentiutristezaquando o navio ergueu suavoz e mugiu três vezes comoumavaca separada do seubezerrinho.

– As crianças estão bem! –exclamou.

Mr. Pepper, que se sentavadiante dela com um grande montede sacolas e uma manta sobre os

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joelhos, disse:– Gratificante.Rachel, para quem o fim da

viagem significava uma mudançacompleta de perspectiva, estavaatordoada demais com aaproximação da praia paraentender que crianças estavambem, ou por que aquilo eragratificante.Helen continuoulendo.

Movendo-se muito lentamentee subindo incrivelmente alto acada onda, o barquinho agora se

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aproximava de uma meia-luabranca de areia. Atrás, ficava umfundo vale verde, com nítidascolinas de cada lado. Na encostada colina, do lado direito,aninhavam-se casas brancas comtelhados castanhos, como avesmarinhas em seus ninhos, e aintervalos a colina era cruzadapor ciprestes como grades pretas.Montanhas com encostas coradasde vermelho, mas topos calvos,erguiam-se como um pináculoescondendo outro pináculo atrás.

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Ainda era muito cedo,por issotoda a vista era singularmenteleve e graciosa; os azuis e verdesdo céu e das árvores eramintensos mas não opressivos.Quando se aproximaram mais epuderam distinguir detalhes, oefeito da terra com seus diminutosobjetos e cores e diferentesformas de vida foi arrebatadordepois de quatro semanas no mar,e os deixou calados.

– Trezentos anos estranhos –disse Mr. Pepper pensativo.

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Como ninguém dissesse “Oquê?” ele apenas pegou umfrasquinho e engoliu uma pílula.O fragmento de informação quemorrera dentro dele era de que300 anos atrás cinco embarcaçõeselisabetanas tinham ancoradoonde agora flutuava oEuphrosyne. Com os cascosrepousados sobre a praia havianúmero igual de galeõesespanhóis sem tripulação, pois opaís ainda era uma terra virgempor trás de um véu. Deslizando

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sobre a água, os marujos inglesesconquistaram barras de prata,fardos de linho, troncos de cedro,crucifixos dourados comesmeraldas incrustadas. Quandoos espanhóis vieram de ondeestavam bebendo, houve uma luta,as duas partes revolvendo a areia,e cada uma empurrando a outrapara a rebentação. Os espanhóis,gordos com aquela boa vida,comendo os frutos daquela terramilagrosa, caíam aos montes; masos ingleses vigorosos, morenos

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da viagem no mar,cabeludos porfalta de tesouras, com músculoscomo arame, mandíbulas loucaspor carne e dedos coçando porouro, despacharam os feridos,jogaram os moribundos no mar elogo reduziram os nativos a umsupersticioso espanto. Aqui seestabeleceu uma aldeia;importaram-se mulheres;cresceram crianças. Tudo pareciafavorecer a expansão do impériobritânico, e tivesse havidohomens como Richard Dalloway

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na época de Carlos I , o mapasem dúvida seria vermelho ondeagora é de um verde odioso. Masdeve-se supor que a mentalidadepolítica daquela época não tinhaimaginação, e meramente por al-guns milhares de quilos e algunsmilhares de homens,morreu afagulha que deveria ter causadouma conflagração. Do interiorvieram índios com venenos sutis,corpos nus e ídolos pintados; domar vieram espanhóis vingativose portugueses ávidos; expostos a

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todos esses inimigos (embora oclima fosse maravilhosamentebondoso e a terra abundante), osingleses retiraram-se e quasedesapareceram. Em algummomento, nos meados do séculoXVII,uma chalupa solitáriaaproveitou a ocasião e afastou-sede noite, levando consigo tudo oque restara da grande colôniabritânica, uns poucos homens,umas poucas mulheres e talvezuma dúzia de crianças tristonhas.A história inglesa nega ter

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qualquer conhecimento do lugar.Devido a uma causa ou outra, acivilização deslocou seu centropara um local a 700 ou 800quilômetros ao sul, e hoje em diaSanta Marina não é muito maiordo que foi há 300 anos.Suapopulação é uma mistura feliz,pois pais portugueses casaram-secom índias, e seus filhos secasaram com espanhóis. Emboraobtenham seus arados deManchester, fazem seus casacoscom lã de suas próprias ovelhas,

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seda de seus próprios vermes, emóveis de seus próprios cedros,de modo que em artes e indústriao local ainda é em boa partecomo nos dias elisabetanos.

Os motivos que atraíram osingleses através do mar parafundarem uma pequena colônianos últimos dez anos não sãofáceis de escrever, e talvez nuncasejam registrados em livros dehistória. Facilidade garantida deviajar,paz, bons negócios e assimpor diante, havia além disso uma

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espécie de insatisfação entre osingleses com os países maisantigos e os enormes acúmulos depedra esculpida, os vitrais e arica pintura castanha queofereciam aos turistas. Omovimento em busca de algonovo era muitíssimo pequeno,afetando apenas um punhado depessoas ricas. Começou comalguns professores ganhando suapassagem para a América do Sulcomo comissários de navioscargueiros sem rota fixa.

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Voltavam em tempo parao período letivo de verão,

quando suas histórias sobre osesplendores e durezas da vida nomar, os humores dos capitães, asmaravilhas da noite e da aurora, eos encantos do lugar deliciavamos outros, às vezes acabandoimpressos. O país exigia todos osseus talentos de descrição, poisdiziam que era maior que a Itáliae realmente mais nobre do que aGrécia.Declaravam também queos nativos eram de uma estranha

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beleza, muito altos, escuros,passionais e rápidos na faca. Olocal parecia novo e cheio deformas novas de beleza, e paraprovar isso mostravam lenços quemulheres usavam em torno dascabeças e esculturas primitivascoloridas de um verde e azulmuito vivos. De um jeito ou outro,como costuma acontecer, a modase espalhou; um antigo mosteirologo foi transformado emhotel,enquanto uma famosa linhade vapores alterava sua rota para

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maior conveniência dospassageiros.

Estranhamente, o menossatisfatório dos irmãos de HelenAmbrose fora enviado anos antespara fazer sua fortuna, ou pelomenos para ficar longe dascorridas de cavalos, àquelemesmo lugar agora tão popular.Muitas vezes debruçado nacoluna da varanda, ele observaranavios ingleses com professoresingleses como comissários debordo entrando na baía. Tendo

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finalmente ganhado o bastantepara poder tirar férias e estandocansado daquele lugar, elecolocou à disposição da irmã suavilla na encosta da montanha. Elatambém ficara um pouco agitadacom aquela conversa sobre umnovo mundo onde sempre haviasol e nunca nevoeiro, e quandoestavam planejando passar oinverno fora da Inglaterra,parecia boa demais para serperdida. Por esse motivo eladecidiu aceitar as passagens

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grátis no navio de Willoughby,deixar as crianças com seus avóse fazer tudo intensamente.

Assentando-se numacarruagem puxada por cavalos decaudas longas com penas depavão entre as orelhas, osAmbrose, Mr. Pepper e Rachelsaíram matraqueando do porto. Odia ia ficando mais quenteenquanto subiam a colina. Aestrada passava pela cidadezinha,onde homens pareciam estarbatendo metais e gritando “água”,

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onde a passagem era bloqueadapor mulas e desobstruída comchibatadas e imprecações, ondeas mulheres andavam descalças,as cabeças equilibrando cestos, eos aleijados expunhamansiosamente seus membrosmutilados; a estrada seguia entrecampos verdes e íngremes, masnão tão verdes pois a terraaparecia. Grandes árvores agorasombreavam a estrada, deixandoao sol apenas a faixa central,euma torrente de montanha, tão

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rasa e rápida que se trançava emfaixas ao correr, disparava aolongo da estrada. Subiram maisainda até que Ridley e Rachelcomeçaram a ficar para trás;depois passaram a um caminhocalçado de pedra, onde Mr.Pepper ergueu a bengala esilenciosamente apontou umarbusto que ostentava entre folhasesparsas um volumoso botão deflor roxa; e num trote mansocumpriram a última fase docaminho.

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A villa era uma espaçosa casabranca que, como acontece com amaioria das casas do continente,parecia frágil,arruinada eabsurdamente frívola ao olhoinglês,mais parecendo umquiosque num jardim do que umlugar para se dormir. O jardimpedia urgentemente serviços deum jardineiro. Arbustosbalançavam seus ramos sobre asveredas, e as folhas de grama,com intervalos de terra, podiamser contadas. No terreno circular

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diante da varanda havia doisvasos rachados dos quaisvendiam flores vermelhas, comuma fonte de pedra no meio,agora desbotada ao sol. O jardimcircular levava a um jardimcomprido onde as tesouras dojardineiro pouco estiveram, a nãoser vez por outra quando cortavaum ramo de flores para suaamada. Poucas árvores altas lhedavam sombra, e arbustosredondos com flores parecendofeitos de cera juntavam suas

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copas numa fileira. Um jardimcom solo macio de turfa, divididopor grossas sebes, canteiros deflores coloridas, como temosdentro de nossos muros naInglaterra,teria ficado deslocadona encosta daquela colina nua.Não havia nada de feio paraencobrir, e a villa olhavadireto,por sobre as rebarbas deuma encosta cheia de oliveiras,para o mar.

A indecência do lugar chocouMrs. Chailey. Não havia

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persianas para tapar o sol, nemmóveis para serem protegidos dosol. Parada no saguão de pedranua, contemplando uma escadariasoberba, mas rachada e semtapetes, ela adiante opinoutambém que havia ratos, grandescomo cães terrier, e que sealguém pisasse no chão com forçaele afundaria. Quanto à águaquente – nessa altura suasinvestigações a deixaram sempalavras.

Pobre criatura! – murmurou

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para a magra criada espanholaque apareceu com os porcos egalinhas para recebê-los. – Nãoadmira que você quase nempareça humana!

Maria aceitou o elogio comuma delicada graça espanhola. Naopinião de Chailey, teria sidomelhor terem ficado a bordo deum navio inglês, mas ninguémmelhor que ela sabia que o devera obrigava a ficar.

Quando já estavam instalados,começando a procurar ocupações

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diárias, houve algumaespeculação sobre os motivos quefaziam Mr. Pepper ficar ali, nacasa dos Ambrose. Alguns diasantes do desembarque tinham-seesforçado para que ele entendesseas vantagens do Amazonas.

– Aquela corrente enorme! –começava Helen de olhos fixoscomo se visse uma cascatavisionária. – Eu penso bastanteem ir, Willoughby, mas não posso.Pense nos crepúsculos e nonascer da lua... acho que as cores

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são inimagináveis.Há pavões silvestres –

arriscava Rachel.E criaturas maravilhosas nas

águas – afirmava Helen.– Alguém poderia descobrir

um novo réptil – continuavaRachel.

– Disseram-me que comcerteza vai haver uma revolução– insistia Helen.

O efeito desses subterfúgiosfoi um pouco reduzido porRidley, que depois de encarar

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Pepper por algum tempo, suspiroualto, “Pobre sujeito!” einternamente especulava sobre acrueldade das mulheres.

No entanto, ele ficou por seisdias, aparentemente contente,brincando com um microscópio eum caderno em uma das saletasesparsamente mobiliadas, masnanoite do sétimo dia, quando sesentaram para jantar, ele pareceumais inquieto do que de costume.Amesa de jantar estava instaladaentre duas janelas compridas, sem

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cortinas por ordem de Helen. Aescuridãobaixava como uma facaafiada naquele clima, e entãoacidade brotava em círculo elinhas de pontos luminososabaixo deles. Construções quejamais apareciam dediaapareciam de noite, e o mar fluíasobre a terra, ajulgar pelas luzesmóveis dos navios. A paisagemcumpria o mesmo objetivo deuma orquestra num restaurantelondrino, criando ambiente para osilêncio. William Pepper

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observou-a por um tempo;colocou osóculos para ver a cena.

– Identifiquei o grande bloco àesquerda – comentou e apontoucom o garfo para um quadradoformado por várias fileiras deluzes.

– Pode-se inferir que sabemcozinhar legumes – acrescentouele.

Um hotel? – perguntou Helen.Outrora um mosteiro – disse

Mr. Pepper.Nada mais se disse então, mas

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no dia seguinte Mr.Pepper voltoude um passeio ao meio-dia eparou calado diante de Helen, quelia na varanda.

Peguei um quarto lá – disseele.

O senhor não vai embora! –exclamou ela.

Na verdade, vou – disse ele. –Nenhuma cozinheira de famíliasabe cozinhar legumes. Sabendoque ele nãogostava de perguntas,coisa de que ela até certopontopartilhava, Helen não

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perguntou mais nada. Masumasuspeita desconfortávelespreitava sua mente, a dequeWilliam escondia uma ferida.Corou ao pensar quesuaspalavras, ou as do marido oude Rachel o tivessem magoado.Quase teve vontade de gritar“Pare com isso, William,explique!” e teria voltado aoassunto no almoço se William nãotivesse se mostradoimperscrutável efrio,pegandofragmentos de salada com a ponta

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do garfo, com movimentos de umhomem lidando comalgasmarinhas, detectando areia esuspeitando de germes.

Se todos vocês morrerem detifo, eu não vou ser oresponsável! – disse eleasperamente.

“Nem eu, se você morrer detédio”, ecoou Helen no seucoração. Ela refletiu que nuncalhe perguntara se ele jáseapaixonara.Tinham-se afastadocada vez mais desse assunto em

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vez de se aproximarem dele, e elanão pôde deixar desentir alívioquando William Pepper com todoo seu conhecimento, seumicroscópio e seus cadernos denotas, suabondade genuína e bom-senso, mas com uma certasecurade lima, partiu. Tambémnão pôde deixar de achartristeque amizades terminassemassim, embora nesse caso teroquarto vazio fosse um certoconforto, e tentou consolar-sedizendo a si mesma que nunca

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se sabe até que ponto aspessoassentem o que se supõe que sintam.

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8

Os poucos meses seguintespassaram, como muitos anospodem passar, semacontecimentos definidos, mas,sesubitamente perturbados, seriavisível que esses meses e anostinham um caráter diferente deoutros. Os três meses quepassaram conduziram-nos aocomeço de março.O climamantivera sua promessa, e amudança de estação do invernopara primavera trouxera muito

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pouca diferença, de modo queHelen, sentada na sala de estar,caneta na mão, podia deixar asjanelas abertas, embora umagrande fogueira de tarasqueimasse a seu lado. Abaixo, omar ainda estava azul, e ostelhados castanhos e brancos,embora

o dia morresse rapidamente.Havia penumbra no aposento,que, grande e vazio em todas asépocas, agora parecia maior emais vazio do que de costume.

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Sua própria figura,sentadaescrevendo com um bloco nosjoelhos, partilhava do efeito geralda vastidão e ausência depormenores, pois as chamas quecorriam ao longo da galharia,subitamente decorada porpequenos tufos verdes,queimavam intermitentemente elançavam luzes irregulares sobreo seu rosto e as paredes dereboco. Não havia quadros nasparedes,mas, aqui e ali, ramoscarregados de flores de muitas

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pétalas espalhavam-seamplamente contra eles. Eraimpossível, naquela luz, traçar oscontornos dos livros caídos noassoalho nu e empilhados sobre agrande mesa.

Mrs. Ambrose escrevia umacarta muito comprida.Começandocom “Querido Bernard”,descrevia o que andaraacontecendo na Villa SanGervasio durante os últimos trêsmeses, como por exemplo, que ocônsul britânico viera para jantar,

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que haviam hospedado umguerreiro espanhol, e que virammuitas procissões e festasreligiosas,tão belas que Mrs.Ambrose não podia entender porque,se as pessoas têm de terreligião, não se tornavam todascatólicas romanas. Tinhamrealizado muitasexpedições,embora nenhumamuito grande. Valia a pena ir atéali ainda que só pelas árvores emflor que cresciam silvestres bemperto da casa, e pelas espantosas

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cores de mar e terra.A terra, emvez de marrom, era vermelha,roxa, verde. “Você não vaiacreditar”,acrescentou ela,“nãoexistem cores parecidas naInglaterra”. Na verdade elaadotava um tom condescendenteem relação àquela pobre ilha, queagora produzia açafrões gélidos evioletas mergulhadas emesconderijos, em cantinhosaconchegantes, cuidadas porbrilhantes velhos jardineirosusando cachecóis, sempre

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tocando os chapéus e fazendomesuras servis. Ela continuouridicularizando os própriosilhéus. Boatos sobre Londresfervendo com as Eleições Geraistinham chegado até eles, mesmoaqui tão longe. “Pareceincrível”,continuou ela, “que aspessoas se interessem em saberse Asquith entra ou AustenChamberlain sai, e enquantogritam até ficarem roucas falandode política, deixam morrer defome ou ridicularizam as pessoas

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que tentam fazer alguma coisaboa. Quando foi que vocêsencorajaram um artista vivo? Oucompraram sua melhor obra? Porque são todos tão feios e tãoservis? Aqui os criados são sereshumanos. Falam conosco como sefossem iguais.Até onde posso ver,não há aristocratas.”

Talvez fosse a menção dearistocratas que a fizesse pensarem Richard Dalloway e Rachel,pois continuou na mesma penadaa descrever sua sobrinha.

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“É um estranho destino esseque botou aos meus cuidados umamocinha”, escreveu,“considerando que nunca me deibem com mulheres, nem tivemuito a ver com elas. Maspreciso retratar-me de algumascoisas que disse a respeito delas.Se fossem adequadamenteeducadas, não vejo por que nãopoderiam ser como os homens –igualmente satisfatórias, querodizer; embora, naturalmente,muitodiferentes. A questão é: como as

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educaríamos? O presente métodome parece abominável. Essamocinha,embora com 24 anos,nunca ouvira dizer que homensdesejam mulheres e até eu lheexplicar isso, não sabia comonascem as crianças. Suaignorância sobre outros assuntosigualmente importantes” (aqui acarta de Mrs. Ambrose não podeser citada)... “era total. Parece-me não apenas tolo mas tambémcriminoso educar pessoas dessejeito.Sem falar no seu sofrimento,

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isso explica por que as mulheressão como são – admira-me é quenão sejam piores.Assumi a tarefade esclarecê-la, e agora, emboraainda bastante preconceituosa edada a exageros, ela se tornou umser humano mais ou menosrazoável. Mantê-las ignorantesnaturalmente é contraproducente,e quando começam a entenderlevam tudo a sério demais. Meucunhado realmente mereceu umacatástrofe... que não vaisofrer.Agora rezo para que

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apareça um jovem e me ajude;quero dizer, alguém que fale comela abertamente e prove como sãoabsurdas quase todas as suasidéias sobre a vida.Infelizmentetais homens parecem quase tãoraros quantos as mulheres. Acolônia inglesa certamente nãome dará nenhum; artistas,comerciantes, gente culta – sãoburros, convencionais, eflertadores...” Ela parou e, com acaneta na mão, ficou sentadaolhando o fogo transformar as

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toras de madeira em cavernas emontanhas, pois estava escurodemais para escrever. Mais queisso, a casa começava a agitar-se,pois se aproximava a hora dojantar; ela podia ouvir os pratostilintando na sala de jantar, aolado,e Chailey instruindo a moçaespanhola sobre onde colocar ascoisas, no seu inglês vigoroso. Asineta tocou; ela levantou-se,encontrou Ridley e Rachel láfora, e todos foram jantar.

Três meses tinham feito pouca

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diferença na aparência de Ridleyou Rachel; mas um bomobservadorpoderia ter achado amoça mais definida eautoconfiante. Sua pele estavamorena, os olhos certamentemaisbrilhantes, e acompanhava o queestava sendodito como seestivesse prestes a contradizer. Arefeiçãocomeçou com oconfortável silêncio de pessoasque se sentem à vontade juntas.Depois Ridley, apoiadonocotovelo e olhando pela janela,

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comentou que estavauma noiteadorável.

– Sim – disse Helen, eacrescentou olhando as luzesabaixo deles – Começou atemporada. – Ela perguntou aMaria em espanhol se o hotel nãoestava ficando lotado.Mariainformou com orgulho que viriaum tempo em que seria difícilcomprar ovos... os donos dosarmazéns não se importavam comos preços pedidos; eles oscomprariam dos ingleses a

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qualquer preço.– Há um vapor inglês na baía

– disse Rachel olhandoumtriângulo de luzes embaixo. –Chegou cedo esta manhã.

– Então teremos cartas epoderemos mandar as nossas –disse Helen. Por algummotivo,falar em cartas sempreabatia Ridley,e o resto darefeição passou-se numadiscussão áspera entre marido emulher acerca de ele ser ou nãototalmente ignorado pelo mundo

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civilizado.– Considerando a última

remessa de cartas – disse Helen–, você devia levar uma surra.Foi convidado a dar conferências,recebeu um título acadêmico euma mulher idiota não só elogiouseus livros mas sua beleza...disseque você é o que Shelley seria setivesse chegadoaos 55 anos edeixado a barba crescer.Realmente, Ridley,você é ohomem mais vaidoso que conheço– concluiu ela, levantando-se da

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mesa –, e acredite, isso é muito.Encontrando sua carta diante

da lareira acrescentou-lhe umaspoucas linhas e depois anunciouque estava levandoas cartas –Ridley devia dar-lhe as dele – eRachel?

– Espero que tenha escritopara suas tias! Está na hora.

As mulheres botaram mantos echapéus e, depois de convidaremRidley para acompanhá-las, o queele recusou enfaticamenteexclamando que esperara que

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Rachel fosse boba mas que Helendevia ser mais esperta, elas seviraram para sair. Ele ficouparado diante da lareira fitandoas profundezas do espelho, e seurosto comprimido ali maisparecia o de um comandantecontemplando um campo debatalha ou o de um mártir vendoas chamas lamberem os dedos deseus pés do que o de umprofessor no ostracismo.

Helen agarrou a sua barba:Eu sou boba, é? – disse ela.

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Me deixe em paz, Helen.Sou boba? – repetiu ela.Mulher perversa! – exclamou

ele, e beijou-a.– Vou deixar você entregue às

suas vaidades – disse ela quandosaíam.

Estava uma bela noite, aindasuficientemente clara para se vero longo caminho até a estrada láembaixo, embora as estrelasestivessem parecendo. A caixa docorreio estava embutida num altomuro amarelo onde a trilha

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encontrava a estrada. Depois dejogar as cartas lá dentro,Helen sepreparava para voltar.

– Não, não – disse Rachelpegando-lhe o pulso. – Vamos vera vida. Você prometeu.

“Ver a vida”era uma frase queusavam para seu hábito de vagarpela cidade depois de escurecer.A vida social em Santa Marinaacontecia quase inteiramente à luzde lampiões, o que o calor dasnoites e os aromas das florestornavam uma coisa bastante

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agradável. As moças, com oscabelos magnificamentearranjados em cachos, uma florvermelha atrás da orelha,sentavam-se nos degraus ou sedebruçavam em sacadas,enquanto os rapazes caminhavampara cima e para baixo gritandovez ou outra uma saudação eparando aqui e ali para umdiálogo amoroso.Nas janelasabertas viam-se comerciantesfazendo o balanço do dia emulheres idosas levando jarras de

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prateleira em prateleira. As ruasestavam cheias de gente, amaioria homens, trocando idéiassobre o mundo enquantoandavam, ou reunindo-se emtorno de mesas com vinho nasesquinas, onde um velho aleijadotangia as cordas de sua guitarraenquanto uma moça pobre gritavasua canção apaixonada na sarjeta.As duas inglesas despertavamcuriosidade amigável, masninguém as molestava.

Helen avançava observando

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com satisfação as diferentespessoas em suas roupas puídas,que pareciam tão despreocupadase tão naturais.

– Imagine a Alameda estanoite! – exclamou afinal. – É15de março.Talvez haja umjulgamento no tribunal.–Elapensou na multidão esperandono ar frio da primavera paraveras grandes carruagens passando.– Está muito frio, senão estiverchovendo – disse ela. Primeiro,os homens vendendo cartões-

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postais; depois as míserasvendedorazinhascom caixas dechapéus redondas; depois osbancários de casaca; e depois...uma porção de costureiras.Pessoas deSouth Kensingtonchegam numa charrete alugada;funcionários públicos têm um parde cavalos baios; condes, porsuavez, vêm seguidos de um criado;duques têm dois, duques reais...me disseram... três. Acho que orei pode tertantos quantos quiser.E o povo acredita nisso!

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Ali, parecia-lhes que aspessoas na Inglaterra deviam sercomo reis e rainhas, cavaleiros epeões do tabuleiro de xadrez, tãoestranhas eram suas diferenças,tão marcantes e tãoimplicitamente aceitas.

Tiveram de separar-se paraevitar um grupo.

– Eles acreditam em Deus –disse Rachel quandosereencontraram. Quis dizer queas pessoas no grupoacreditavamNele; pois lembrava das cruzes

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com figuras de gesso sangrando,postadas nas encruzilhadas, eoinexplicável mistério de umacerimônia numa igrejacatólicaromana.

– Jamais vamos entender! –suspirou ela.

Tinham caminhado bastante, jáera noite, mas podiam ver umgrande portão de ferro um poucoadiante no caminho à suaesquerda.

– Você pretende subir diretoao hotel? – perguntouHelen.

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Rachel empurrou o portão; eleabriu-se e, não vendo ninguémpor ali, julgando que naquele paísnada era privado, as duasavançaram. Uma avenida deárvores seguia ao longo docaminho, que era totalmente reto.De repente acabaram-se asárvores; a estrada fez uma curva eelas defrontaram-se com umgrande edifícioquadrado.Estavam num amploterraço que rodeava o hotel, aapenas poucos passos das

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janelas. Uma fileira de janelascompridas abria-se quase naaltura do chão. Nenhuma tinhacortinas, e todas estavam bemiluminadas, de modo que puderamver tudo lá dentro. Cada janelarevelava um aspecto diferente davida no hotel. Recuaram para umadas largas colunas de sombra queseparavam as janelas e olharampara dentro.Estavam bem nafrente da sala de jantar.Estavasendo varrida; um garçom comiaum cacho de uvas, com a perna

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passada sobre a beira da mesa.Ao lado ficava a cozinha, ondeestavam lavando louça;cozinheiras de brancomergulhavam os braços emcaldeirões enquanto os garçonscomiam vorazmente refeiçõesdeixadas pela metade,pegandomolho com pedaços depão.Adiantandose mais, as duasse perderam nos arbustos, e derepente viram-se diante da salade visitas, onde damas ecavalheiros, tendo jantado bem,

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se recostavam em fundaspoltronas, eventualmentefolheando revistas ouconversando. Uma mulher magrafazia floreios ao piano.

– O que é um dahabeeyah,Charles? – perguntou ao filho avoz nítida de uma viúva numapoltrona junto da janela.

Estavam no fim do aposento, ea resposta dele se perdeu nopigarreio e agitação gerais.

– Todos são velhos nesta sala– sussurrou Rachel.

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Esgueirando-se mais adianteviram que a janela seguinterevelava dois homens em mangasde camisa jogando bilhar comduas jovens.

Ele beliscou meu braço! –gritou a jovem gordinha quandoerrou seu golpe.

Vocês dois aí... nada debobagens – censurou-os o rapazcom rosto vermelho que estavamarcando os pontos.

Cuidado ou vão nos ver –sussurrou Helen, puxando Rachel

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pelo braço. Sua cabeça aparecerapor descuido no meio da janela.

Dobrando a esquina chegaramao maior aposento do hotel, comquatro janelas, chamado sala deestar, embora na verdade fosseum saguão. Ornado de armadurase bordados nativos, com divãs ebiombos que cobriam cantosaconchegantes, o aposento, menosformal do que os outros, eraevidentemente o recanto dosjovens. Signor Rodriguez, quesabiam ser o gerente do hotel,

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estava bem perto delas, no umbralda porta, olhando a cena:cavalheiros repousando emcadeiras, casais debruçando-sesobre xícaras de café, o jogo decartas no centro, sob uma profusaluz elétrica. Ele se parabenizavapelo empreendimento quetransformara o refeitório, um frioaposento de pedra com potes deplantas em cavaletes, no maisconfortável salão da casa. O hotelestava lotado, e provava suasabedoria ao decretar que nenhum

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hotel pode progredir sem umasala de estar.

As pessoas espalhavam-se porali em grupos de dois ou quatro e,ou se conheciam bem, ou aqueleaposento informal os deixavamais à vontade. Pela janela abertavinha um zumbido irregular, comoo que vem de um rebanho deovelhas num cercado aocrepúsculo. O grupo de carteadoocupava o centro do salão.

Helen e Rachel observaram-nos jogar alguns minutos,sem que

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distinguissem uma palavra. Helenolhara intensamente para um doshomens. Era magro, um tantocadavérico, da idade dela, perfilvirado para elas, parceiro de umamoça muito enrubescida,obviamente inglesa.

De repente, na maneiraestranha com que algumaspalavras se destacam das demais,ouviram-no dizer nitidamente:

– Tudo o que a senhorita queré prática, Miss Warrington;coragem e prática... uma coisa

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não presta sem a outra.– Hughling Elliot! Claro! –

exclamou Helen. Ela abaixou acabeça imediatamente, pois aoouvir seu nome ele levantou osolhos. O jogo continuou poralguns minutos até serinterrompido pela aproximaçãode uma cadeira de rodas com umavolumosa anciã que parou juntoda mesa e disse:

– Melhor sorte esta noite,Susan?

– Toda a sorte está do nosso

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lado – disse um rapaz que até aliestivera de costas para a janela.Parecia um tanto gordo, com ocabelo grosso.

– Sorte, Mr. Hewet? – disse aparceira dele, uma senhora demeia idade, de óculos. –Asseguro-lhe, Mrs.Paley, nossosucesso se deve unicamente aonosso brilhante jogo.

– A não ser que eu vá para acama cedo, praticamente nãodurmo – explicou Mrs. Paley,como se justificasse o fato de

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convocar Susan, que se levantou ecomeçou a empurrar a cadeira atéa porta.

– Vão arranjar outra pessoapara jogar em meu lugar

– disse Susan, alegremente.Mas estava errada. Não tentaramencontrar outro parceiro e, depoisque o rapaz construíra trêsandares de um castelo de cartasque desmoronou, os jogadores seespalharam em várias direções.

Mr. Hewet virou seu rostorechonchudo para a janela.Elas

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puderam ver que tinha olhosgrandes obscurecidos poróculos;sua pele era rosada; seus lábiossem bigode; e vistoentre gentecomum, parecia ser um rostointeressante. Eleveio direto paraelas, mas seus olhos não estavamfixados nasespiãs e sim numponto onde a cortina pendia emdobras.

– Com sono? – disse ele.Helen e Rachel começaram a

pensar que alguém estiverasentado perto delas o tempo todo,

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sem ser notado.Havia pernas nasombra. Uma voz melancólicaveio de cima delas.

– Duas mulheres – disse.Ouviu-se um rumor do

cascalho. As mulheres tinhamfugido. Não pararam de correr atéestarem certas de que nenhumolho conseguiria penetrar aescuridão, e o hotel fosse apenasuma sombra quadrada nadistância, com buracos vermelhosrecortados regularmente.

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9

Passou-se uma hora, e osaposentos térreos do hotelficaram escuros e quase desertos,enquanto os pequenos retângulosacima deles brilhavam radiantes.Cerca de 40 ou 50 pessoasestavam indo para a cama. Podia-se ouvir a batida surda de jarrascolocadas no chão no andar decima e o tilintar de porcelana,pois não havia uma divisãogrossa entre os quartos, não tantoquanto se poderia desejar,pensou

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Miss Allan, a dama idosa queestivera jogando bridge, dandouma rápida batida na parede comos nós dos dedos. Era só tábuafina, determinou ela, colocadapara transformar um aposentogrande em dois pequenos.

Sua anágua cinzentaescorregou para o chão, e elainclinou-se e dobrou suas roupascom dedos hábeis, se nãoamorosos, torceu o cabelo numatrança, deu corda no relógiodeouro do pai e abriu as obras

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completas de Wordsworth.Estava lendo o “Prelúdio”, em

parte porque sempre liao“Prelúdio” quando no exterior,em parte porque escreviaumbreve Resumo da literaturainglesa – de Beöwulf aSwinburne –, que teria umparágrafo sobre Wordsworth.Estava mergulhada no quintovolume, parando para fazer umaanotação alápis, quando um parde botas caiu no chão, uma atrásdaoutra, no chão acima dela. Ela

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ergueu os olhos e ficouespeculando. De quem seriam asbotas, imaginava. Então notouumsom farfalhante na porta ao lado –nitidamente uma mulherguardando o vestido –, que foisucedido por um rumor de levesbatidas, como o de alguémarrumando o cabelo.Era muitodifícil fixar-se no “Prelúdio”.Seria Susan Warrington fazendoaqueles movimentos? Mas ela seforçoua ler até o fim do livro,quando colocou o marcador entre

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aspáginas, suspirou satisfeita, edepois apagou a luz.

Muito diferente era o quartoatrás da parede, embora emformato fosse uma caixa de ovosigual ao outro. Enquanto MissAllan lia seu livro, SusanWarrington escovava o cabelo.Séculos consagraram essa hora, ea mais majestosa das açõesdomésticas, mulheres falando deamor; mas Miss Warringtonestava sozinha e não podia falar;podia apenas olhar com extrema

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solicitude seu próprio rosto noespelho. Virou a cabeça de umlado para outro, jogando cachospesados para cá e para lá. Depoisrecuou um passo ou dois eanalisou-se seriamente.

“Sou bem bonita”, decidiu.“Possivelmente... não linda.”Endireitou-se um pouco. “Sim... amaior parte das pessoas diria quetenho boa aparência.”

Ela realmente pensava no queArthur Venning diria aseurespeito. Seu sentimento com

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relação a ele era decididamentesuspeito. Não admitiria para simesma que estavaapaixonada porele nem que queria se casar comele, maspassava todos os minutosem que estava sozinhaimaginando o que ele pensariadela e comparando o quetinhamfeito hoje com o que tinhamfeito no dia anterior.

“Ele não me pediu para jogarmas me acompanhou até

o saguão”, meditou, resumindoa noite. Tinha 30 anos de idade, e

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devido ao número de irmãs e àvida reclusa numa paróquia dointerior, não tivera ainda propostade casamento. A hora dasconfidências muitas vezes eratriste, e dizia-se que ela saltavana cama tratando mal seuscabelos, sentindo-se ignoradapela vida em comparação com asoutras. Era uma mulher graúda ebem feita, o rubor em suas facesem manchas demasiado definidas,mas sua ansiedade graveconferia-lhe uma certa beleza.

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Estava por empurrar oslençóis quando exclamou: –Ah,estou esquecendo! – e foi atésua escrivaninha. Umvolumemarrom jazia ali com onúmero do ano gravado. Elacomeçou a escrever em uma letraquadrada e feia, decriançamadura, como escreviadiariamente ano após ano,mantendo os diários, emborararamente olhasse para eles.

“Manhã. Falei com Mrs. H.Elliot sobre vizinhos do campo.

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Ela conhece os Mann e tambémos Selby-Carroway. Como omundo é pequeno! Gosto dela. Lium capítulo de As aventuras deMiss Appleby para tia E. Tarde.Joguei tênis na quadra com Mr.Perrott e Evelyn M. Não gosto deMr. P. Tenho a sensação de queele não é ‘muito’, embora sejaesperto. Venci os dois. Diaesplêndido, vista maravilhosa. Agente se acostuma com a falta deárvores,embora no começopareça tudo despido demais.

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Cartas depois do jantar. Tia E.alegre, embora irritadiça, dizela.Obs.: perguntar sobre lençóisúmidos.”

Ela ajoelhou-se para rezar,depois deitou-se na camaajeitando as cobertasconfortavelmente ao seu redor, eem poucos minutos sua respiraçãomostrava que estava adormecida.Com suspiros e hesitaçõesprofundamente pacíficos, pareciaa respiração de uma vacaequilibrada sobre os joelhos a

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noite toda em capim alto.Um olhar no quarto ao lado

mostraria pouco mais do que umnariz destacando-se dos lençóis.Acostumado à escuridão, pois asjanelas estavam abertas emostravam retângulos cinzentoscom cintilações de estrelas,podia-se distinguir um vultomagro, terrivelmente parecidocom um cadáver, o corpo deWilliam Pepper, tambémadormecido. Trinta e seis, trinta esete, trinta e oito e aqui ha-via

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três negociantes portugueses,adormecidos provavelmente, poisum ronco se ouvia com aregularidade de um granderelógio. Trinta e nove era umquarto de canto, no fundo docorredor, mas embora fosse tarde– bateu “uma” levemente notérreo – uma faixa de luz debaixoda porta indicava que haviaalguém acordado.

Como está atrasado, Hugh! –disse numa voz irritadamassolícita uma mulher deitada na

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cama. Seu marido escovava osdentes e por alguns momentos nãorespondeu.

Você devia ter dormido –respondeu ele. – Eu estavaconversando com Thornbury.

Mas sabe que não consigodormir enquanto espero por você– disse ela.

Ele não respondeu, apenascomentou: – Bem então vamosapagar a luz. – Ficaram calados.

A pulsação débil maspenetrante de uma

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campainhaelétrica podia agoraser ouvida no corredor. A velhaMrs.Paley, tendo acordadofaminta mas sem óculos,chamavasua criada para queencontrasse a caixa debiscoitos.Terrivelmenterespeitosa até nessa hora, emboraenrolada numa jaqueta, a criadarespondeu à campainha, e depoisdisso o corredor ficou quieto. Noandar térreo tudoestava escuro evazio; mas no andar superior umaluzainda ardia no quarto onde as

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botas tinham caído pesadamentesobre a cabeça de Miss Allan. Láestava o cavalheiro que, poucashoras antes, na sombra dacortina,parecia consistirinteiramente em pernas. No fundodeuma poltrona, ele lia o terceirovolume da História do declínio equeda do Império Romano, deGibbon, à luz de uma vela. Lendo,vez por outra batiaautomaticamente acinza docigarro e virava a página,enquanto toda umaprocissão de

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esplêndidas frases penetrava emsua poderosa fronte e marchavaordenadamente cérebro adentro.Era provável que esse processocontinuasse por umahora ou mais,até que todo o regimento tivesseentrado em seus alojamentos, nãotivesse a porta se abrido eohomem com tendência aengordar não tivesse entradocomseus grandes pés nus.

Oh, Hirst, o que esqueci dedizer foi...

Dois minutos – disse Hirst,

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erguendo o dedo.E marcou asúltimas palavras do parágrafo.

O que foi que você esqueceude dizer? – indagou.

– Você acha que admitesuficientemente os sentimentos? –perguntou Mr. Hewet. Mais umavez esquecera o que pretendiadizer.

Depois de contemplarintensamente o imaculadoGibbon, Mr. Hirst sorriu dapergunta do amigo. Largou

o livro e ficou pensando...

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– Devo dizer que você temuma mentesingularmentedesorganizada –observou. – Sentimentos? Masnão são exatamente aquilo queadmitimos? Colocamos o amor láemcima e o resto todo láembaixo. – Com a mão esquerdaeleapontou o topo de umapirâmide, e com a direita, suabase.

– Mas você não saiu da camapara me dizer isso – acrescentou,severo.

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– Saí da cama apenas paraconversar, eu acho – disse Hewetvagamente.

– Enquanto isso vou me despir– disse Hirst. Quando despido detudo menos a camisa, e inclinadosobre a pia,Mr. Hirst nãoimpressionava mais com amajestade do seu intelecto, mascom o patos de seu corpo jovem efeio,pois era encurvado e tãomagro que havia linhas escurasentre os vários ossos do pescoçoe dos ombros.

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– Mulheres me interessam –disse Hewet, que, sentado nacama, queixo apoiado nosjoelhos, não prestava atenção aofato de Mr. Hirst estar despido.

– Elas são tão burras – disseHirst. – Você está sentado sobre omeu pijama.

– Acha que elas são burras? –admirou-se Hewet.

– Acho que não pode haverduas opiniões quanto a isso –disse Hirst cruzando o quarto emsaltos. – A não ser que você

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esteja apaixonado... aquelagorducha da Warrington? –perguntou.

– Não é uma mulher gorda...todas as mulheres gordas –suspirou Hewet.

– As mulheres que eu vi estanoite não eram gordas – disseHirst, que se aproveitava dacompanhia de Hewet para cortaras unhas dos dedos dos pés.

– Descreva-as – disse Hewet.Você sabe que não sei

descrever as coisas! – disse

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Hirst. – Elas se pareciam muitocom as outras mulheres,acho.Sempre se parecem.

Não; é nisso que diferimos –disse Hewet. – Eu digo que tudo édiferente. Não há duas pessoasminimamente parecidas. Vejavocê e eu agora.

Um dia pensei assim também –disse Hirst. – Masagora existempessoas de todos os tipos. Nãovamos nostomar como exemplo...tomemos este hotel. Podiam-sedesenhar círculos em torno de

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todos, e nenhum ficaria de fora.(Pode-se matar uma galinha

assim) – murmurou Hewet.Mr. Hughling Elliot, Mrs.

Hughling Elliot, Miss Allan, Mr.e Mrs. Thornbury... um círculo –continuou Hirst – MissWarrington, Mr. Arthur Venning,Mr.Perrott, Evelyn M., outrocírculo; depois, uma porção denativos; finalmente, nós dois.

Estamos sozinhos em nossocírculo? – perguntouHewet.

Bem sozinhos – disse Hirst. –

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Você tenta sair mas não consegue.E tentando, só faz uma confusão.

Não sou uma galinha dentro deum círculo – disse Hewet. Sou umpombo no topo de uma árvore.

Será que é isso que chamamunha encravada? – disse Hirst,examinando o dedo grande do péesquerdo.

Fico voando de galho emgalho – continuou Hewet.

O mundo é muito agradável. –Ele deitou-se para trás na cama,apoiado nos braços.

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Será mesmo bom ser tão vagoquanto você é? – perguntou Hirstolhando para ele. – É a ausênciade continuidade... é isso que é tãoesranho em você – prosseguiu. –Na idade de 27, o que são quase30 anos, você parece nãoterchegado a nenhuma conclusão.Um grupo de velhotas ainda oexcita tanto quanto se vocêtivesse três anos.

Hewet contemplou o jovemanguloso que em silênciomomentâneo jogava

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cuidadosamente as beiradas dasunhas de seus pés na lareira.

– Eu respeito você, Hirst –comentou.

E eu o invejo... em algumascoisas – disse Hirst. – A suacapacidade de não pensar e o fatode as pessoas gostarem mais devocê que de mim. Acho que asmulheres gostam de você.

Não sei se isso é realmente oque mais importa – dis-se Hewet,agora deitado na cama, acenandoa mão em círculos vagos no alto

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Claro que é – disse Hirst. –Mas isso não é o problema. Oproblema é encontrar um objetoadequado, não é?

Não há galinhas no seucírculo? – perguntouHewet.

– Nem um fantasma de galinha– disse Hirst.

Embora se conhecessem hátrês anos, Hirst nunca escutara averdadeira história dos amores deHewet. Pelas conversaspresumia-se que eram muitas, masem particular não se comentava o

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tema. O fato de ele ter dinheiropara não trabalhar, de ter deixadoCambridge depois de doissemestres por uma briga com asautoridades, e de ter viajado evagado a esmo, tornava sua vidaestranha em muitos pontos em queas vidas de seus amigos erammuito coesas.

– Não vejo os seus círculos...não os enxergo – continuouHewet. – Vejo uma coisa comoum pião girando para dentro epara fora... batendo nas coisas...

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disparando de um lado paraoutro... colecionando númerosmais e mais e mais, até o lugartodo ficar cheio deles. E giram egiram lá, por cima da beirada...fora da vista.

Seus dedos mostravam que ospiões bailarinos haviamrodopiado para além da colcha,caindo da cama para o infinito.

– Você poderia suportar trêssemanas sozinho neste ho

tel? – perguntou Hirst depoisde um momento de pausaHewet

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começou a pensar.– A verdade é que nunca se

está sozinho e nunca se está emcompanhia – concluiu.

– Significando? – disse Hirst.– Significando? Ah, alguma

coisa sobre bolhas... auras...como é que se chamam? Você nãopode ver a minha bolha; eu nãoposso ver a sua; tudo o que vemosum do outro é uma partícula,como a mecha no centro daquelachama. A chama anda conoscopor toda parte; ela não é

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exatamente nós, mas o quesentimos; o mundo é breve, ou aspessoas principalmente; todasorte de pessoas.

– A sua deve ser uma belabolha listrada! – disse Hirst.

– E supondo que minha bolhapudesse topar com a bolha deoutro alguém...

– E as duas explodirem? –interveio Hirst.

– Então... então... então... –ponderou Hewet, como se falassesozinho – seria um mundo enorme

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– disse, estendendo os braços emtoda a sua extensão como semesmo assim mal pudessemagarrar o universo encapelado,pois quando estava com Hirst elesempre se sentia esperançoso evago.

– Não acho mais você tãobobo quanto achava, Hewet

– disse Hirst. – Você não sabeo que quer dizer, mas tenta dizê-lo.

– Mas não está se divertindoaqui? – perguntou Hewet.

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– De modo geral... sim – disseHirst. – Gosto de observar aspesoas. Gosto de olhar coisas.Este país é de uma belezaespantosa. Você tinha notadocomo o topo da montanha ficouamarelo esta noite? Temosrealmente de levar nosso almoçoe passar o dia fora. Você estáficando repulsivamente gordo. –Ele apontou a barriga da pernanua de Hewet.

– Vamos organizar umaexcursão – disse Hewet

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energicamente. – Vamos convidaro hotel inteiro. Alugar burricose...

– Santo Deus! –... disse Hirst.– Esqueça! Posso ver MissWarrington, Miss Allan, Mrs.Elliot e os outros agachados naspedras e grasnando “Mas quelindo!”

–Convidaremos Venning ePerrott e Miss Murgatroyd...todosque pudermos apanhar –prosseguia Hewet. – Qual o nomedaquele gafanhotinho velho de

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óculos? Pepper? Pepper vai nosguiar.

– Graças a Deus você jamaisconseguirá os burricos – disseHirst.

– Preciso tomar nota disso –disse Hewet lentamente baixandoos pés sobre o assoalho. – Hirstacompanha Miss Warrington;Pepper avança sozinho sobre umasno branco; provisõesdistribuídas igualmente... oudeveríamos alugar uma mula? Assenhoras... Mrs. Paley, meu

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Deus!... dividirão uma carruagem.

– É aí que você erra – disseHirst. – Botando virgens no meiode senhoras.

– Quanto tempo você acha queia demorar uma expediçãodessas, Hirst? – perguntou Hewet.

– Eu diria de 12 a 16 horas –respondeu Hirst. – O tempohabitualmente gasto num primeiroconfinamento.

– Vai ser preciso umaorganização considerável- disse

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Hewet, que andava brandamentepelo quarto e parou para mexernos livros empilhados sobre amesa, uns sobre os outros.

– Também vamos quereralguns poetas – comentou ele. –Não Gibbon; não; por acaso vocêtem Amor moderno ou JohnDonne? Sabe, penso em pausasem que as pessoas se cansam deolhar a paisagem, e então seriabom ler algo bastante difícil emvoz alta.

– Mrs. Paley vai se divertir –

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disse Hirst.– Mrs. Paley certamente vai

gostar – disse Hewet. – Éuma dascoisas mais tristes que conheço...o jeito como assenhoras idosasdeixam de ler poesia. E como éadequado:

Falo como alguém quesondaA difusa profundeza davida,Alguém que finalmente

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pode soarClaras visões, e certas.

Mas – depois do amor, oque sobrevém?Uma cena que ameaça,Umas poucas tristes horasvazias,E depois, a Cortina.

Atrevo-me a dizer que Mrs.Paley é a única de nós que podeentender isso de verdade.

– Vamos perguntar a ela –

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disse Hirst. – Por favor, Hewet,se você tiver de ir para a cama,feche minha cortina. Poucascoisas me aborrecem mais do queo luar.

Hewet retirou-se, apertando ospoemas de Thomas Hardydebaixo do braço, e em breve osdois jovens dormiamprofundamente em suas camas.

Entre o apagar da vela deHewet e o levantar-se de umsombrio rapaz espanhol que foi oprimeiro a divisar a desolação do

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hotel no começo da manhã, houvealgumas horasde silêncio. Quasese podiam ouvir cem pessoasrespirandofundo, e por maisalerta e inquieto que se estivesse,teriasido difícil escapar do sonono meio de tantosono.Olhandopelas janelas, só sevia escuridão. Por toda asombreada metade do mundo aspessoas jaziam de bruços epoucas luzesbruxuleantes nas ruasvazias marcavam os locais ondese erguiam suas cidades. Ônibus

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vermelhos e amarelosperseguiam-se em Piccadilly;mulheres suntuosas balouçavamsenuma parada; mas aqui naescuridão uma coruja esvoaçavade árvore em árvore, e quando abrisa ergueu os ramosa lualampejou como se fosse umatocha. Até todas as pessoasacordarem novamente os animaissem casa estavam em toda parte,os tigres e os cervos, e oselefantes descendona escuridãopara beber nas poças. O vento à

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noite soprando sobre as colinas eflorestas era mais puro e maisfrescodo que o vento de dia, e aterra, despida de seusdetalhes,mais misteriosa do que aterra colorida e dividida porestradas e campos. Por seis horasexistia essa beleza profunda,atéquando o leste branqueava, ofundo emergia à superfície, asestradas revelavam-se, a fumaçase erguia, as pessoasse moviam eo sol brilhava sobre as janelas dohotel emSanta Marina, esperando

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abrirem-se as cortinas e oressoardo gongo pela casa todaanunciando o café da manhã.

Assim que o café terminou, asdamas como de costume ficaramcirculando vagamente, apanhandojornais e largando-os de novopelo saguão.

– E o que vai fazer hoje? –perguntou Mrs. Elliot, deslizandona direção de MissWarrington.Mrs. Elliot, esposa deHughlind, reitor de Oxford, erauma mulher baixinha de

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expressão normalmentelamentosa. Seus olhos moviam-sede uma coisa a outra como senunca encontrassem nadasuficientemente agradável parapousar por mais tempo.

– Vou tentar levar tia Emmapara a cidade – disse Susan. –Ela ainda não viu nada.

– Acho isso tão animado daparte dela – disse Mrs. Elliot –,vir tão longe de seu próprio lar.

– Sim, eu sempre lhe digo queela vai morrer a bordo deum

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navio – respondeu Susan. – Elanasceu num navio.

– Antigamente – disse Mrs.Elliot – muita gentenascia.Sempre tive tanta penadessas pobres mulheres! Temosmuitos motivos para nos queixar!– Ela balançou a cabeça. Seusolhos vagaram sobre a mesa, eela comentou sem nenhuma razãoaparente: – Coitada darainhazinha da Holanda!Repórteres de jornal, por assimdizer, praticamente na porta de

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seu quarto de dormir!– Estava falando na rainha da

Holanda? – disse a voz agradávelde Miss Allan, que procurava asgrossas páginas do Times entreum monte de jornais estrangeiros.

– Sempre invejo quem vivenum país tão excessivamenteplano! – comentou ela.– Mas quecoisa mais estranha! – disse Mrs.Elliot. – Eu acho um país planotão deprimente.

– Então receio que não possaser muito feliz aqui, Miss Allan –

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disse Susan.– Ao contrário – disse a Miss

Allan. – Eu adoro montanhas.Percebendo o Times a certadistância, ela se dirigiu até lápara pegá-lo. – Bem, precisoencontrar o meu marido – disseMrs. Elliot afastando-se inquieta.

– E eu preciso ver minha tia –disse Miss Warrington.Eassumindo as tarefas do dia,afastaram-se todas. Talvez porquea fragilidade do papel estrangeiroe a aspereza de seus tipos sejam

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uma prova de frivolidade eignorância, não há dúvida de queingleses dificilmente consideremo que lêem lá como notícias,assim como um programacomprado de um homem na ruanão inspira confiança no que diz.Um casal idoso muitorespeitável,tendo inspecionado aslongas mesas de jornais, nãoachou que valesse a pena ler maiso que as manchetes.

– Só agora o debate do dia 15deve ter nos alcançado –

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murmurou Mrs. Thornbury. Mr.Thornbury, que eramaravilhosamente limpo e tinhatraços rubros em sua face comotraços de tinta numa escultura demadeira gasta pelotempo,olhoupor cima dos óculose viu que Miss Allan tinha oTimes.

Por isso o casal sentou-se naspoltronas e ficou esperando.

Ah,aí está Mr.Hewet – disseMrs.Thornbury. – Mr. Hewet,venha sentar-se conosco. Eu

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estava dizendo ao meu marido oquanto o senhor me lembra umavelha querida amiga minha, MaryUmpleby. Era uma mulher tãoencantadora, acredite. Cultivavarosas. Antigamente costumávamoshospedar-nos com ela.

Nenhum rapaz gosta de que lhedigam que se parece com umavelha solteirona – disse Mr.Thornbury.

Ao contrário – disse Mr.Hewet. – Sempre considero umelogio lembrar conhecidos de

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outras pessoas. Mas MissUmpleby... por que ela cultivavarosas?

Ah, coitadinha – disse Mrs.Tornbury – é uma longa história.Ela passara por sofrimentosterríveis. Numaocasião acho queteria perdido o juízo não fosse oseujardim. O solo era muitohostil... uma benção disfarçada;ela tinha de levantar-se demadrugada... sair de casaemqualquer tempo. E depois háessas criaturas que comem as

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rosas. Mas ela triunfou. Sempretriunfava. Erauma alma corajosa.– Ela suspirou fundo, mas aomesmotempo resignada.

Eu não tinha percebido queestava monopolizando o jornal –disse Miss Allan, vindo emdireção deles.

Estávamos tão ansiosos porler sobre o debate – dis-se Mrs.Thornbury aceitando-o por causado marido.

Não se entende como umdebate pode ser interessante, até

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se ter filhos na marinha. Meusinteresses estão igualmentedivididos mesmo assim.Tambémtenho filhos no exército, e umfilho que faz discursos nosindicato... o meu bebê!

Acho que Hirst deve conhecê-lo – disse Hewet.

Mr. Hirst tem um rosto tãointeressante – disse Mrs.Thornbury. – Mas sinto que épreciso ser muito inteligente parafalar com ele. Então,William? –inquiriu ela, pois Mr. Thornbury

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grunhiu.Estão confundindo tudo –

disse Mr. Thornbury, que chegaraà segunda coluna da reportagem,uma espasmódica, pois osmembros irlandeses estavam-sedigladiando há três meses sobreuma questão de eficiêncianaval.Depois de um ou doisparágrafos perturbados, a colunaimpressa corria suavemente maisuma vez.

A senhorita leu? – perguntouMrs.Thornbury a Miss Allan.

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Não, lamento dizer que só lisobre as descobertas em Creta.

– Ah, mas seria tão bomconhecer o mundo antigo! – gritouMrs. Thornbury. – Agora que nós,velhos, estamos sozinhos...estamos na nossa segunda lua-de-mel... estou realmente voltando àescola. Afinal estamos fundadosno passado, não estamos, Mr.Hewet? Meu filho soldado dizque ainda há muita coisa deAníbal a ser aprendida.Devia-sesaber muito mais do que se sabe.

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De alguma forma, quando leio ojornal, começo primeiro com osdebates, e antes de terminar aporta sempre se abre... somos umgrupo muito grande em casa... eassim nunca se pensa o bastantesobre os antigos e tudo o quefizeram por nós. Mas a senhoritacomeça do começo, Miss Allan.

– Quando penso nos gregos,imagino-os como negros nus –disse Miss Allan. – O que, estoucerta, é bastante incorreto.

– E o senhor, Mr. Hirst? –

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disse Mrs. Thornbury,percebendo que o rapaz macilentoestava perto. – Tenho certeza deque o senhor lê tudo.

– Eu me limito ao críquete eao crime – disse Hirst. – O piorde vir das classes superiores éque nossos amigos nunca sãomortos em acidentes ferroviários.

Mr. Thornbury jogou o jornalna mesa e deixou cair os óculosenfaticamente. As folhas caíramno meio do grupo e todos ascontemplaram. – Não foi bem? –

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perguntousua esposa, solícita.Hewet pegou uma das folhas e

a leu: – Uma dama caminhavaontem nas ruas de Westminsterquando percebeu um gato najanela de uma casa deserta. Oanimal faminto...

Seja como for estou fora disso– interrompeu Mr. Thornbury,irritado.

As pessoas sempre esquecemum gato – comentou Miss Allan.

Lembre, William, o primeiro-ministro adiou sua resposta –

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disse Mrs. Thornbury.Aos 80 anos, Mr. Joshua

Harris, de Eeles Park,Brondesbury, teve um filho –disse Hirst.

–... o animal faminto, que foranotado por operários por algunsdias, foi resgatado mas... porDeus! mordeu a mão do homem,deixando-a em pedaços!

– Louco de fome, suponho –comentou Miss Allan.

– Estão todos esquecendo aprincipal vantagem de estar além-

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mar – disse Mr. Hughling Elliot,que se reunira ao grupo. – Podemler suas notícias em francês, oque equivale a não ler notícias.

Mr. Elliot tinha profundoconhecimento de copta, o queescondia o máximo possível, ecitava frases francesas tãoperfeitamente que era difícilacreditar que também soubessefalar a língua comum. Ele tinhaum respeito imenso pelosfranceses.

Vamos? – perguntou aos dois

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jovens. – Devíamos partir antesde ficar realmente quente.

Suplico-lhe que não caminheno calor, Hugh – implorou suaesposa, dando-lhe um pacoteanguloso onde estavamembrulhados metade de um frangoe passas.

Hewet será nosso barômetro –disse Mr. Elliot. – Vai derreterantes de mim.

Na verdade, se uma só gotaderretesse nas suas magrascostelas, os ossos ficariam

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expostos. As damas ficaramsozinhas, rodeando o Times quejazia no chão. Miss Allan olhou orelógio do pai.

Dez para as onze – comentou.Trabalho? – perguntou Mrs.

Thornbury.Trabalho – respondeu Miss

Allan.– Que bela criatura ela é! –

murmurou Mrs.Thornburyenquanto a figura robusta seafastava no seu casaco de cortemasculino.

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– Estou certa de que ela temuma vida dura – suspirou Mrs.Elliot.

– Ah, é uma vida dura – disseMrs. Thornbury.Mulheres nãocasadas... ganhando sua própriavida... é a pior vida.

No entanto ela parece bemalegre – disse Mrs. Elliot.

Deve ser muito interessante –disse Mrs. Thornbury.

– Invejo o seu conhecimento.Mas não é isso que as

mulheres querem – disse

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Mrs.Elliot.Receio que seja tudo o que a

grande maioria das mulherespode esperar ter – suspirou Mrs.Thornbury. – Acredito que hajamais de nós do que nunca antes.Sir Harley Lethbridge me diziaainda outro dia como é difícilencontrar rapazes para amarinha... em parte por causa dosseus dentes, é verdade. Ouvidizer que as mulheres falam bemabertamente de...

Horrível, horrível! – exclamou

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Mrs. Elliot. – O coroamento,pode-se dizer, da vida de umamulher. Eu, que sei o que é nãoter filho... – ela suspirou e calou-se.

– Mas não devemos ser duras– disse Mrs. Thornbury.

– As condições mudaram tantodesde quando eu era umajovenzinha.

– Certamente a maternidadenão muda – disse Mrs. Elliot.

– De algumas formas podemosaprender muito dos jovens – disse

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Mrs. Thornbury. – Eu aprendomuito com minhas filhas. – Euacho que Hughling realmente nemse importa – disse Mrs. Elliot. –Mas ele tem o seu trabalho.

– Mulheres sem filhos podemfazer tanta coisa pelos filhos dosoutros – comentou Mrs.Thornburypolidamente.

– Eu desenho bastante – disseMrs. Elliot – mas isso não érealmente uma ocupação. É tãodesconcertante ver que mocinhasque apenas começam fazem as

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coisas melhor do que a gente! E anatureza é difícil... muito difícil!

– Não há instituições...clubes... que a senhora pudesseajudar? – perguntou Mrs.Thornbury.

– Eles são tão cansativos –disse Mrs. Elliot. – Eu pareçoforte por causa da minha cor, masnão sou; a caçula de onze filhosnunca é.

– Se a mãe for cuidadosa antes– disse Mrs.Thornburyjudiciosamente –, não há motivo

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para o tamanho da família fazerqualquer diferença. E não existetreinamento como o treinamentoque irmãos e irmãs dão uns aosoutros. Meu menino mais velho,Ralph, por exemplo...Mas Mrs.Elliot não estava prestandoatenção à experiência da senhoramais velha, e seus olhos vagarampelo saguão.

– Minha mãe sofreu doisabortos, eu sei – disse ela derepente. – O primeiro, porque viuum daqueles enormes ursos que

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dançam... não deviam permitirisso; o outro...foi uma históriahorrenda... nossa cozinheira teveuma criança e havia um jantarfestivo. Atribuo a isso a minhadispepsia.

– E um aborto é bem pior doque um parto – murmurouMrs.Thornbury distraída, ajeitandoseus óculos e apanhando o Times.Mrs. Elliot levantou-se e saiualvoroçada.

Depois de ouvir o que uma dasmilhares de vozes falando no

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jornal tinha a dizer e de notar queuma primasua se casara com umclérigo em Minehead –ignorandoas mulheres bêbadas, osanimais dourados de Creta, osmovimentos de batalhões, osjantares, as reformas, osincêndios, os indignados, oseruditos e os benevolentes –,Mrs.Thornbury subiu as escadas paraescrever uma carta para ocorreio.

O jornal estava bem embaixodo relógio, os dois juntos

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parecendo representar aestabilidade num mundo emtransformação. Mr. Perrottpassou; Mr. Venning parou por uminstante junto a uma mesa. Mrs.Paley foi empurrada na suacadeira de rodas.Susan seguiu-a.Mr.Venning foi andando atrásdela. Famílias de militaresportugueses,com roupassugerindo que se tinhamlevantado tarde em quartosdesarrumados, passaram seguidosde babás barulhentas carregando

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crianças barulhentas. À medidaque o meio-dia se aproximava e osol incidia diretamente sobre

o telhado, um redemoinho demoscas graúdas zumbia emcírculo; serviram-se bebidasgeladas sob as palmeiras; aslongas persianas foram baixadassoltando o seu guinchocaracterístico, tornando toda a luzamarela. Agora o relógio tinha asua disposição um saguãosilencioso para tiquetaquear euma platéia de quatro ou cinco

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comerciantes sonolentos. Aospoucos, figuras alvas comchapéus sombreados entrarampela porta, deixando entrar umafresta do dia quente de verão efechando-o novamente láfora.Depois de repousar unsminutos na penumbra, subiram asescadas. Ao mesmo tempo orelógio resfolegou uma hora, soouo gongo, começando levemente,entrando num frenesi e parando.Houve uma pausa. Depois, todosos que tinham subido as escadas

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desceram; chegaram os aleijados,plantando os dois pés no mesmodegrau para poderem escorregar;chegaram menininhas segurando odedo da babá; velhos gordoschegaram ainda abotoando seuscoletes. O gongo soara no jardim,e aos poucos figuras reclinadasergueram-se e entraramlentamente para comer, poischegara a hora de se alimentaremoutra vez.Havia piscinas e faixasde sombra no jardim mesmo aomeio-dia, onde dois ou três

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visitantes podiam se deitartrabalhando ou conversando àvontade.

Devido ao calor do dia, oalmoço geralmente eraumarefeição silenciosa, quandoas pessoas observavam seusvizinhos e assimilavam rostosnovos que pudesse haver,adivinhando quem eram e o quefaziam. Mrs. Paley, emborabemalém dos 70 anos, de pernasincapacitadas, saboreava suacomida e as peculiaridades dos

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seus semelhantes. Sentava-sejunto a uma mesa pequena comSusan.

– Eu não gostaria de dizer oque ela é! – disse ela numarisadinha contemplando umamulher alta vestida toda debranco, com pintura nas facesencovadas, que sempre chegavatarde e sempre era servida poruma mulher de aspecto pobre.Susan corou diante dessecomentário, imaginando por quesua tia dizia coisas desse tipo.

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O almoço prosseguiumetodicamente até que cadaumdos sete pratos ficou apenasnas sobras e as frutas eramnãomais que um brinquedo a serdescascado e cortado, comoumacriança destruindo umamargarida, pétala a pétala.Acomida servia como o extintorde qualquer tênue chamadoespírito humano que pudessesobreviver ao calor do meiodia,mas Susan sentava-se em seuquarto remoendo o agradável fato

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de que Mr. Venning a procurarano jardim e sesentara aliaproximadamente meia horaenquanto ela liaem voz alta para atia. Homens e mulheresprocuravamcantos diferentes ondepodiam ficar sem seremobservados;das duas às quatropodia-se dizer sem exagero que ohotelera habitado por corpos semalma. Teria sido desastroso seumincêndio ou uma morte de repentetivesse exigido danaturezahumana algo de heróico, mas as

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tragédias sempre acontecem emhoras de fome. Perto das quatrohoras o espírito humanocomeçava novamente a tocar ocorpo como uma chama toca umpromontório negro de carvão.Mrs.Paley achou que não ficavabem abrir tão amplamentesuamandíbula embora nãohouvesse ninguém por perto, eMrs. Elliot examinouansiosamente seu rosto redondo ecorado no espelho.

Meia hora depois, tendo

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removido os sinais desono,encontraram-se no saguão, eMrs. Paley comentou que ia tomaro seu chá.

– A senhora também gosta doseu chá, não gosta? – disse econvidou Mrs. Elliot, cujo maridoainda estava fora, para reunir-secom ela numa mesa especial quemandara colocar debaixo de umaárvore.

Neste país, um pouco de prataviaja muito – disse ela rindo.Mandou Susan apanhar outra

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xícara.Eles têm uns biscoitos

excelentes por aqui – comentoumirando uma travessa. – Nãobiscoitos doces, de que nãogosto... biscoitos secos... andoudesenhando?

Fiz dois ou três pequenosrabiscos – disseMrs.Elliot,falando mais alto doque o habitual. – Mas é tão difícildepois de Oxfordshire, onde hátantas árvores. A luz aqui é tãointensa. Algumas pessoas a

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admiram, sei disso, mas eu a achomuito cansativa.

Eu realmente não preciso ficaraqui cozinhando,Susan – disseMrs. Paley quando sua sobrinhavoltou. – Vou ter de importuná-lapara que me leve daqui.

Tudo teve de ser levado paraoutro local. Finalmentecolocaram a velha senhora demodo que a luz ondulava sobreela como se fosse um peixe numarede. Susan servia o chá ecomentava que em Wiltshire

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também fazia calor,quando Mr.Venning perguntou se podiajuntar-se a elas.

– É tão bom encontrar umjovem que não despreza o chá –disse Mrs. Paley, recuperando seubom humor. – Um de meussobrinhos outro dia pediu umcopo de xerez... às cinco da tarde!Eu lhe disse que podia tomá-lo nocafé dobrando a esquina, mas nãona minha saleta.

– Prefiro ficar sem almoço aficar sem chá – disse Mr.

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Venning. – Não é bem verdade.Gosto dos dois.Mr. Venning eraum rapaz moreno, de cerca de 32anos, muito relaxado e confianteem seus modos, embora naquelemomento, obviamente, estivesseum pouco excitado. Seu amigo,Mr. Perrott, era advogado e,como se recusasse a ir a qualquerparte sem Mr. Venning, quandovinha a Santa Marina para cuidarde assuntos de uma empresa, oamigo tinha de vir também. Mr.Venning também era advogado,

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mas odiava aprofissão que omantinha dentro de casa, em cimadoslivros, e assim que sua mãeviúva morresse, confidenciou aSusan, ele se dedicariaseriamente a voar e seria sócionum grande empreendimento deconstrução deaeroplanos. Aconversa prosseguiadivagando.Naturalmente, tratavadas belezas e singularidadesdolugar, das ruas, das pessoas eda quantidade de cachorrosamarelos sem dono.

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– Não acham terrivelmentecruel o jeito como tratam oscachorros neste país? – perguntouMrs. Paley.

– Eu mandaria matar todos –disse Mr. Venning.

– Ah, mas uns cachorrinhostão bonitos – disse Susan.

– Uns sujeitinhos tãodivertidos – disse Mr.Venning.

– Olhe, a senhorita não temnada para comer. – Uma grandefatia de bolo foi passada a Susanna ponta deuma faca trêmula. A

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mão dela também tremia quando apegou.

– Eu tenho um cachorro emcasa de que gosto muito

– disse Mrs. Elliot.– Meu papagaio não suporta

cachorros – disse Mrs. Paley comar de quem faz uma confidência. –Sempre suspeitei de que ele (ouela) fosse provocado por umcachorro quando eu estava emviagem no exterior.

– A senhorita não foi longeesta manhã, Miss Warrington. –

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disse Mr. Venning.– Estava quente – respondeu

ela. O diálogo dos dois tornou-seprivado, devido à surdez de Mrs.Paley e à longa história triste queMrs. Elliot passara a contar sobreum terrier pêlo-de-arame brancocom uma única mancha preta, deum tio dela, que se suicidara.

– Animais se suicidam, sim –suspirou ela como se tivesseafirmando um fato doloroso.

– Não podíamos explorar acidade esta noite? – sugeriu Mr.

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Venning.– Minha tia... – começou

Susan.– A senhorita merece umas

férias – disse ele. – Está semprefazendo coisas para os outros.

– Mas essa é a minha vida –disse ela disfarçando ao enchernovamente o bule de chá.

– Essa não é vida paraninguém – retorquiu ele –, denenhuma pessoa jovem. Asenhorita vem?

Eu gostaria – murmurou

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ela.Nesse momento Mrs. Elliotergueu os olhos e exclamou:

Oh, Hugh! Ele está trazendoalguém – acrescentou.

– Ele vai gostar de chá – disseMrs. Paley. – Susan, corra e tragaxícaras... lá estão os dois rapazes.

– Estamosloucos por um chá –disse Mr.Elliot.– Conhece Mr.Ambrose, Hilda? Nós nosencontramos no morro.

– Ele me arrastou até aqui –disse Ridley –, eu estouconstrangido. Estou empoeirado,

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com sede, e com má aparência. –Ele apontou as botas brancas depoeira, enquanto uma flor murchana lapela, como um animalexausto pendurado sobre umportão, aumentava o efeito dedesmazelo e altura. Ele foiapresentado aos outros.Mr.Hewet e Mr. Hirst trouxeramcadeiras, e o chá recomeçou, comSusan despejando cascatas deágua do bule,sempre alegre e coma habilidade da longaexperiência.

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– A esposa de meu irmão –explicou Ridley a Hilda, de quemnão se lembrava – tem uma casaaqui, que ele nos emprestou. Euestava sentado numa pedra sempensar em nadaquando Elliotapareceu como uma fada numapantomima.

– Nosso frango estava salgadodemais – disse Hewetmelancolicamente a Susan –, enão é verdade que bananastenham líquido além desubstância.Hirst já estava

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bebendo.– Estávamos amaldiçoando

você – disse Ridley, respondendoàs perguntas de Mrs. Elliot sobrea esposa dele.

– Vocês turistas devoram todosos ovos, disse-me Helen. Aquilotambém é uma monstruosidade –ele balançou a cabeça em direçãodo hotel. – Chamo isso de luxorepugnante. Nós vivemos comoporcos na sala de estar.

– A comida aqui não é o quedeveria ser – disse Mrs.Paley,

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séria – levando em conta o preço.Mas se não se ficar num hotel,onde é que se irá ficar?

– Em casa – disse Ridley. –Muitas vezes desejo ter ficado emcasa! Todo mundo deveria ficarem casa, mas, naturalmente, nãoficam.

Mrs. Paley sentiu certairritação contra Ridley, queparecia estar criticando seushábitos depois de se conhecerempor cinco minutos.

– Eu própria acredito em

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viagens para o exterior – afirmouela – se se conhece seu país natal,o que posso honestamente dizerque acontece comigo. Eu nãoadmitiria que ninguém viajasseantes de ter visitado Kent eDorsetshire... Kent pelos lúpulose Dorsetshire por seus antigoscottages de pedra. Não há nadaaqui que se compare a isso.

– Sim... eu sempre acho quealgumas pessoas gostam dasterras planas e outras dos vales –disse Mrs. Elliot com jeito

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bastante vago.Hirst, que estiveracomendo e bebendo seminterrupção, acendeu um cigarro ecomentou:

– Ah, mas a esta altura todosconcordamos em que a natureza éum erro. Ou é muito feia,espantosamente desconfortável,ou absolutamente aterradora. Nãosei o que me deixa maisalarmado: uma vaca ou umaárvore. Uma vez encontrei umavaca no campo à noite. A criaturame olhava. Acreditem, fiquei de

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cabelo branco. É uma desgraçapermitirem animais assim à solta.

– E o que foi que a vacapensou dele? – murmurou Venningpara Susan, que imediatamenteachou que Mr.Hirst era um rapazmedonho e que embora tivesseaquele ar de inteligenteprovavelmente não era tãointeligente quanto Arthur, não dojeito que realmente importava.

– Não foi Wilde quemdescobriu que a natureza nãoadmite os ossos ilíacos? –

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indagou Hughling Elliot.Àquelaaltura sabia exatamente queestudos e distinções Hirst tinha, eformara uma excelente opiniãosobre sua capacidade.

Mas Hirst apenas apertou oslábios e não respondeu.

Ridley ficou imaginando seagora poderia se retirar. Aeducação exigia que agradecesseMrs. Elliot pelo chá eacrescentasse, acenando com amão:

Precisam vir nos visitar. A

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onda incluía Hirst e Hewet, querespondeu:

Eu gostaria imensamente.O grupo desfez-se e Susan,

que nunca na vida se sentira feliz,estava por iniciar sua caminhadapela cidade com Arthur, quandoMrs. Paley a chamou de volta.Não podia compreender, pelolivro, como se joga a paciênciado Double Demoll; e sugeriu quese sentassem e trabalhassemnaquilo juntas, seria uma boamaneira de ocupar o tempo antes

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do jantar.10

Entre as promessas que Mrs.Ambrose fizera a suasobrinhacaso ela ficasse, havia umaposento afastadodo resto dacasa, grande, privado – umaposento ondeela podia tocar, ler,pensar, desafiar o mundo; umafortaleza e um santuário. Sabiaque aos 24 anos aposentoserammundos antes de quartos. Estava

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certa, e quando fechou a portaRachel entrou num lugarencantado,onde os poetascantavam e as coisas assumiamsua verdadeira proporção. Algunsdias depois da visão do hotel ànoite, ela estava sentada sozinha,mergulhadanuma poltrona, lendoum volume vermelho decapacolorida, tendo na lombadaObras de Henrik Ibsen. Haviapartituras abertas no piano elivros de músicaempilhados emdois montes no chão; mas no

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momento ela abandonara amúsica.

Longe de parecer entediada oudistraída, seus olhosconcentravam-se quaseseveramente na página; pela suarespiração lenta mas contida,podia-se ver que todo o seu corpoestava tenso pelo trabalho mental.Finalmente ela fechou o livro numgesto brusco, deitou-se para trás,respirou fundo, expressando oassombro que sempre marca atransição do mundo imaginário

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para o mundo real.– O que eu quero saber – disse

ela em voz alta – é isso:qual é averdade? Qual a verdade detudo? – Falava sempreem partecomo ela mesma, e em partecomo a heroína dapeça queacabava de ler. A paisagem láfora, já que ela nadavira senãoletra impressa pelo espaço deduas horas, agorapareciasurpreendentemente sólida eclara, mas, emborahouvessehomens no morro lavando troncos

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de oliveiras com um líquidobranco, por um instante elapensou que eraela própria a coisamais viva na paisagem – umaheróica estátua no primeiro planodominando a vista. As peçasdeIbsen sempre a deixavam nesseestado. Ela as encenava diasa fiopor vezes, para grandedivertimento de Helen:depoisseria a vez de Meredith, eela se tornava Diana dasEncruzilhadas. Mas Helen dava-se conta de que nem tudoera

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encenação e que algum tipo demudança estava acontecendo noser humano. Quando Rachel secansava da rigidez de sua pose noencosto da cadeira, virava-se,deslizavaconfortavelmente até ofundo dela e olhava acima dosmóveis pela janela oposta que seabria para o jardim. (Suamentevagava afastando-se de Nora, mascontinuava pensando em coisasque o livro sugeria: as mulheres ea vida.)

Durante os três meses em que

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estava ali ela se recompensaragrandemente, como Helen achavaque devia ser, das intermináveiscaminhadas ao redor de jardinsfechados e dos mexericosdomésticos de suas tias. MasMrs. Ambrose teria sido aprimeira a rejeitar qualquerinfluência, ou crença, de fato, queinfluenciar fosse coisa queestivesse em seu poder. ViaRachel menos tímida, menosgrave, o que era bom, e asausências e confusões

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intermináveis que tinham levadoàquele resultado em geral nãoeram nem notadas. Ela confiavaem que o remédio seria falar semse proteger, e ser tão francaquanto o hábito de falar comhomens a fazia ser. Nãoencorajava aqueles hábitos dealtruísmo e bondade fundados eminsinceridade tão valorizados emlares onde vivem homens emulheres. Queria que Rachelpensasse, por isso oferecia livrose desencorajava uma dependência

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excessiva de Bach, Beethoven eWagner. Mas quando Mrs.Ambrose sugeria Defoe,Maupassant ou alguma amplacrônica de vida familiar, Rachelescolhia livros modernos, livrosde capa amarela lustrosa, livroscom muito dourado na lombada,que eram aos olhos de sua tiasímbolos de ásperas discussões edisputas sobre fatos que nãotinham tanta importância quantoos modernos afirmavam. Mas nãointerferia. Rachel lia o que

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desejava, com a curiosaliteralidade de alguém para quemfrases escritas são poucofamiliares,lidando com palavrascomo se fossem feitas demadeira,de grande importânciaisoladamente, possuindoformas,como mesas ou cadeiras.Assim ela tirava conclusões quetinham de ser remodeladasdependendo das aventuras do dia,e na verdade eram remodeladascom toda a liberalidade que sepudesse desejar, deixando sempre

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atrás de si um grãozinho decrença.

Ibsen foi seguido de umromance do tipo queMrs.Ambrose detestava, cujoobjetivo era distribuir a culpa daruína de uma mulher sobre osombros certos: objetivo que eraalcançado, se é que o desconfortodo leitor é prova de alguma coisa.Ela jogou o livro no chão, olhoupela janela,virou-se para o outrolado e desabou numa poltrona.

A manhã estava quente, e o

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exercício de ler deixara suamente contraindo-se eexpandindo-se como a molaprincipal de um relógio. Os sonsdo jardim lá fora uniram-se aosrelógios e aos pequenos rumoresdo meio-dia, que não se podematribuir a nenhuma causa definida,todos num ritmo regular. Era tudomuito real, muito grande,muitoimpessoal, e depois de um oudois momentos ela começou aerguer o dedo indicador e deixá-lo cair sobre o braço da cadeira

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como se trouxesse de voltaalguma consciência de suaprópria existência. Em seguidafoi tomada pela estranhezaindizível com relação ao fato deestar sentada numa poltrona,demanhã,no meio do mundo.Quemeram as pessoas movendo-se nacasa... movendo coisas de umlugar a outro? E a vida, o que eraaquilo? Era apenas uma luzpassando na superfície edesaparecendo, como ela mesmacom o tempo desapareceria,

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embora os móveis do quartofossem ficar? Sua dissoluçãotornou-se tão completa que nãoconseguia mais erguer o dedo, esentou-se totalmente quieta,olhando sempre o mesmo ponto.Tudo se tornava cada vez mais emais estranho. Foi assaltada peloassombro de que as coisas talveznem existissem... Esqueceu-se deque tinha dedos para erguer... Ascoisas que existiam eram tãoimensas e tãodesoladas...Continuou consciente

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dessas vastas massas desubstância por um longo tempo, orelógio ainda tiquetaqueando nomeio do silêncio universal.

– Entre – dissemecanicamente, pois um fio emseu cérebro pareceu puxado poruma batida persistente naporta.Com muita lentidão a portaabriu-se e um ser humanoaltoveio na direção dela,estendendo o braço e dizendo:

– O que devo dizer disso?O completo absurdo de uma

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mulher entrando num quarto comum pedaço de papel na mãodeixou Rachel atônita.

– Não sei o que responder,nemquem é Terence Hewet

– continuou Helen, na vozinexpressiva de um fantasma.Elacolocou diante de Rachel o papelonde estavam escritas as incríveispalavras:

“CARA MRS. AMBROSE –

Estou organizando umpiqueniquepara a próxima sexta-feira, que

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propomos começar às onze emeia se o tempo for bom, e subiro Monte Rosa. Isso vai levaralgum tempo, mas a vista deve sermagnífica. Eu teria grande prazerse a senhora e Miss Vinraceconsentissem em fazer parte dogrupo.

Cordialmente, TERENCEHEWET”.

Rachel leu as palavras em voz

alta para acreditar nelas.Pelomesmo motivo botou a mão no

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ombro de Helen.– Livros... livros... livros... –

disse Helen na sua maneiradistraída. – Mais livros novos...fico imaginando o que é que vocêencontra neles...

Rachel leu a carta pelasegunda vez, mas para simesma.Agora, em vez de parecervaga como um fantasma, cadapalavra era espantosamentedestacada; emergiam comotoposde montanhas emergem numnevoeiro. Sexta-feira... onze e

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meia... Miss Vinrace. O sanguecomeçou a correr emsuas veias;ela sentiu seus olhos brilhando.

– Temos de ir – disse,surpreendendo Helen com suadeterminação. – Certamentetemos de ir – tal era o alívio dever que coisas ainda aconteciam ena verdade pareciam maisbrilhantes por causa da névoa queas rodeava.

– Monte Rosa... é à montanhaali, não é? – disse Helen.

– Mas Hewet... quem é ele?

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Um dos rapazes que Ridleyconheceu, suponho. Então, devodizer sim? Pode ser terrivelmentemonótono.

Ela pegou a carta e saiu, poiso mensageiro aguardava resposta.

O grupo que fora sugeridoalgumas noites atrás no quarto deMr. Hirst tomara forma, e eramotivo de grande satisfação paraMr. Hewet, que raramente usavasuas habilidades práticas e ficavacontente de ver que estavam àaltura da exigência. Seus convites

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tinham sido universalmenteaceitos, o que era maisencorajador, pois tinham sidofeitos, contra o conselho de Hirst,a pessoas muito sem graça,totalmente inadequadas umas àsoutras, e que certamente nãoviriam.

– Sem dúvida – disseenrolando e desenrolando umbilhete assinado “HelenAmbrose” –, os talentosnecessários para fazer um grandelíder foram superestimados.Cerca

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de metade do esforço intelectualnecessário para revisar um livrode poesia moderna me fez reunirsete ou oito pessoas de sexosopostos no mesmo local à mesmahora no mesmo dia. O que mais éo generalato senão isso, Hirst? Oque mais fez Wellington no campode Waterloo? É como contar oscascalhos de um caminho tedioso,mas não difícil.

Hewet estava sentado em seuquarto, uma perna sobre o braçoda cadeira, e Hirst escrevia uma

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carta diante dele. Hirst apontourapidamente todas as dificuldadesque ainda restavam.

Por exemplo, aqui há duasmulheres que você nunca viu.Imagine que uma delas tenhamedo de alturas, como minhairmã, e a outra...

Ah, as mulheres ficam comvocê – interrompeu Hewet. – Euas convidei só por sua causa. Oque você quer, Hirst, você sabe, écompanhia de jovens da suaidade. Não sabe como lidar com

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mulheres, o que é um grandedefeito, levando em conta quemetade do mundo consiste emmulheres.

Hirst murmurou que estavabem consciente disso...

Mas a complacência de Hewetesfriou um poucoquando elecaminhou com Hirst para o localonde tinham combinado umareunião geral. Ficou imaginandopor que na verdade convidaraessas pessoas e o que realmentese esperava daquele agrupamento

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de gente.– Vacas – refletiu ele –

reunidas num campo; navios numacalmaria; e nós somos exatamentea mesma coisa quando não temosnada mais a fazer. Mas por quefazemos?... para evitarenxergarmos o fundo das coisas –eleparou junto de um regato ecomeçou a remexer nelecom suabengala, sujando a água com lama–, fazendocidades e montanhas euniversos inteiros do nada, ourealmente amamos uns aos outros,

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ou de outro modo, vivemos numestado de perpétua incerteza, nãosabendo nada, saltando demomento em momento como demundo em mundo?... o que é, demodo geral, a opiniãopara a qualeu me inclino.

Ele saltou sobre o riacho;Hirst rodeou-o e juntou-se a ele,comentando que há muito cessarade procurar a razão de qualqueração humana.

Quase um quilômetro adiante,chegaram a um grupo de plátanos

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e à casa de fazenda cor de salmãojunto da torrente que foraescolhida como local deencontro. Era um lugarsombreado, localizadoconvenientemente, onde o morroemergia da planura. Entre osesguios troncos dos plátanos osrapazes podiam ver pequenosgrupos de burricos pastando euma mulher alta esfregando ofocinho de um deles enquantooutra se ajoelhava junto datorrente,bebendo água das mãos

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em concha.Quando eles entraram naquela

sombra, Helen ergueu os olhos eestendeu a mão.

Tenho de me apresentar. SouMrs. Ambrose.Depois de sedarem as mãos, ela disse:

E esta é minha sobrinha.Rachel aproximou-se,

desajeitada. Estendeu a mão,masretirou-a.

– Está toda molhada – disse.Mal tinham trocado algumas

palavras, apareceu a primeira

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carruagem. Os burricos forampostos rapidamente em posição, echegou a segunda carruagem. Aospoucos o bosquezinho encheu-sede gente – os Elliot,osThornbury,Mr. Venning e Susan,Miss Allan, Evelyn Murgatroyd eMr. Perrott. Mr. Hirst fez o papelde cão pastor com voz enérgica erouca. Com algumas palavras emlatim cáustico comandou osanimais e inclinando um ombroanguloso, ajudou as damas asubir.

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– O que Hewet não conseguiuentender – comentou – é quetemos de começar a subida antesdo meio-dia. – Ele estavaajudando uma jovem damachamada Evelyn Murgatroydenquanto falava. Ela se alçou atéseu assento,leve como uma bolha.Com uma pluma balouçando deum chapéu de abas largas, vestidade branco da cabeça aos pés,parecia uma galante dama dotempo de Carlos I liderandotropas reais para ação.

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– Cavalguem comigo –comandou ela; e assim que Hirstsaltou no lombo de uma mula osdois partiram, liderando acavalgada.

– Não me chame de MissMurgatroyd. Odeio isso.Meunome é Evelyn. Qual é o seu?

– St. John – disse ele.– Gosto dele – disse Evelyn. –

E qual o nome do seu amigo?– Suas iniciais são R.S.T., por

isso nós o chamamos de Monge –disse Hirst.

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– Ah, vocês são espertíssimos– disse ela. – Para que lado?Apanhe um galho para mim.Vamos num galope leve.

Ela deu um golpe breve emseu burrico com um raminho eavançou. A carreira plena eromântica de Evelyn Murgatroydé melhor descrita em suaspróprias palavras:“Chame-me deEvelyn e eu chamarei você de St.John”.Ela dissera aquilo com umaleve provocação – seu sobrenomebastava -; mas, embora muitos

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rapazes já lhe tivessemrespondido com bastante humor,ela continuou dizendo aquilo semescolher nenhum. Mas seu burricocomeçou a trotar mais forte e elateve de avançar sozinha, pois atrilha, quando começou a subiruma das cristas do morro,tornava-se estreita e cheia depedras. A cavalgada avançava emespiral como uma lagarta cheiados tufos dos guarda-sóis brancosdas senhoras e dos chapéus-panamá dos cavalheiros. A certa

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altura onde o solo se erguia bemíngreme, Evelyn M. saltou do seuanimal, jogou as rédeas para orapazinho nativo e disse a St.John Hirst que tambémdesmontasse. Seu exemplo foiseguido por aqueles que sentiamnecessidade de esticar as pernas.

– Não vejo nenhumanecessidade de descer – disseMiss Allan à Mrs. Elliot logoatrás dela -levando em conta adificuldade que tive de subir.

– Esses burricos agüentam

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qualquer coisa, n’ est-ce pas?– disse Mrs. Elliot ao guia,

que inclinou a cabeçaobsequiosamente.

– Flores – disse Helenparando para apanhar as lindasflorezinhas coloridas quecresciam isoladamente, aqui e ali.

– É só beliscar as folhas e elascomeçam a soltar seu perfume –disse ela depositando uma nojoelho de Miss Allan.

– Já não nos encontramosantes? – perguntou a Miss Allan,

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olhando para ela.– Eu achava que sim – Helen

riu, pois na confusão do encontronão tinham sido apresentadas.

– Que coisa boa! – gorjeouMrs. Elliot. – É o que todossempre gostariam de fazer... sóque infelizmente não é possível.

– Não épossível?– disseHelen.–Tudo épossível.Quemsabe o que pode acontecer antesque a noite caia? – continuou elazombando da timidez da pobresenhora que dependia tão

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implicitamente das coisascertinhas, que o mero vislumbrede um mundo onde por acaso sepudesse omitir o jantar ouremover a mesa uma polegada doseu lugar costumeiro, enchia-a dereceio por sua própriaestabilidade.

Subiram mais e mais alto, eficaram separados do mundo. Omundo, quando se viraram paraolhar para trás,achatava-se e seestendia, marcado por retângulosde um verde e cinza tênues.

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As cidades são muitopequenas – comentou Racheltapando Santa Marina e seussubúrbios com uma das mãos. Omar enchia suavemente todos osângulos da costa, quebrando-senum rufo branco, e aqui e alinavios estavam firmementeinstalados naquele azul. O marera manchado de púrpura e verde,e havia uma linha cintilante nabeirada onde ele encontrava océu. O ar era muito claro esilencioso, exceto pelo ruído

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agudo dos gafanhotos e o zumbidodas abelhas, que soava alto noouvido quando disparavam pertodas pessoas e sumiam. O grupoparou e sentou-se por algumtempo numa grande pedra naencosta do morro.

Espantosamente claro –exclamou St. John identificandoum local após o outro napaisagem.

Evelyn M. sentava-se a seulado, apoiando o queixo na mão.Observava a paisagem com certo

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ar de triunfo.– Não acha que Garibaldi

pode ter estado aqui em cima?– perguntou a Mr. Hirst. Ah, se

ela tivesse sido a noiva dele!Se,em vez de um grupo fazendo umpiquenique, aquele fosse umgrupo de patriotas, e ela, decamisa vermelha como o resto,estivesse entre homens ferozesdeitada sobre a selva apontandosua arma para os torreões brancosabaixo, estreitando os olhos paraespreitar através da fumaça!

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Pensandoassim, seu pé remexia-se inquieto, e ela exclamou:

Não chamo isso de vida, vocêchama?

O que chama de vida? –perguntou St. John.

– Luta... revolução – disse elaainda contemplando a cidadecondenada. – Sei que você só seinteressa por livros.

– Está bem enganada – disseSt. John.

– Explique – insistiu ela, poisnão havia armas para

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seremapontadas a corpos, e ela sevoltava para outro tipo de guerra.

– Que coisas me interessam? –disse ele. – Gente.

– Bem, estou surpresa! –exclamou ela. – Você parece tãoterrivelmente sério. Vamos seramigos e contar um ao outro comosomos. Odeio ser cautelosa, evocê? Mas St. John eradecididamente cauteloso, comoela podia ver pela súbitaconstrição dos seus lábios, e nãopretendia revelar sua alma a uma

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moça.– O asno está comendo o meu

chapéu – comentou ele e estendeua mão para apanhá-lo em vez delhe responder.Evelyn corou umpouco e depois virou-se comcerto ímpeto para Mr. Perrott;quando montaram de novo foi elequem a ajudou a subir à sela.

– Quem botou os ovos quecoma a omelete – disse HughlingElliot, em francês, perfeitoensinamento aos outros, de queestava na hora de cavalgarem

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novamente.O sol do meio-dia, que Hirst

predissera, começava acairescaldante sobre eles. Quantomais subiam, mais o céu se abria,até que a montanha não era maisque uma pequena tenda de terradiante de um enorme fundo azul.Os ingleses ficaram calados; osnativos que caminhavam ao ladodos burricos irromperam emestranhas canções ondulantesetrocavam piadas entre si. Ocaminho ficava muito íngreme, e

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cada cavaleiro mantinha os olhosfixos na forma encurvada docavaleiro e do burrico logo a suafrente. Seuscorpos estavam sendosubmetidos a mais tensão do queélegítimo num passeio de prazer,e Hewet escutou um oudoiscomentários um tanto mal-humorados.

– Talvez não seja muito sábiofazer excursões com este

calor – murmurou Mrs. Elliotpara Miss Allan.Mas Miss Allanrespondeu:

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– Eu sempre gosto de chegarao topo – e era verdade,emborafosse uma mulher grande de juntasrígidas e não acostumada amontar em burricos, mas comosuas férias eram poucas,aproveitava-as ao máximo.Aanimada figura branca cavalgavabem na frente; de alguma formaconseguira apossar-se de umgalho folhudo e enrolara-o nochapéu como uma grinalda.Prosseguiram em silêncio poralguns minutos.

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– A vista vai ser maravilhosa– assegurou-lhes Hewet, vi-rando-se na sela e sorrindoencorajadoramente. Rachelencontrou seu olhar e sorriutambém. Persistiram por mais al-gum tempo, e nada se escutavasenão o tropel dos cascosnaspedras soltas. Então viram queEvelyn desmontara do seuanimale que Mr. Perrott estava paradona atitude de um estadista naParliament Square, estendendoum braço de pedrapara a

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paisagem. Um pouco à esquerdadeles havia um murobaixo emruínas, restos de uma torre devigia elisabetana.

– Eu não teria agüentado muitomais tempo – confidenciou Mrs.Elliot a Mrs. Thornbury, mas aexcitação deestar no topo dentrode um instante vendo a paisagemimpediu os demais deresponderem. Um depois dooutro, saíram todos para o espaçoplano no topo e pararam ali,tomados de admiração.

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Contemplavam um espaçoimensodiante deles – areiascinzentas transformando-se emfloresta, floresta fundindo-se emmontanhas e montanhas lavadaspelo ar – as infinitas distâncias daAmérica do Sul.Um rio cruzava acampina, plano como a terra eparecendoparado. O efeito detanto espaço era bastanteassustador nocomeço. Sentiram-se muito pequenos, e por algumtemponinguém disse nada. Evelynentão exclamou:

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Esplêndido! – E pegou a mãode quem estava mais próximo;por acaso, era a mão de MissAllan.

Norte... Sul...Leste... Oeste... –disse Miss Allan entortando acabeça de leve na direção dospontos cardeais.

Hewet, que fora um pouco àfrente, ergueu os olhos para seusconvidados como para sejustificar por tê-los trazido.Observou como as pessoasparadas em fila com o corpo

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levemente inclinado para diante esuas roupas amassadas pelo ventorevelando o contorno de seuscorpos pareciam, estranhamente,estátuas nuas. No seu pedestal deterra, pareciam pouco familiarese nobres, mas em outro momentojá haviam rompido aquela ordeme ele teve de cuidar da comida.Hirst veio em seu auxílio, epassaram de um para outropacotes de frango e pão.

Quando St. John deu a Helen oseu embrulho, ela o fitou direto

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nos olhos e disse:O senhor recorda... duas

mulheres?Lembro.– Então são vocês as duas

mulheres! – exclamou Hewet,olhando de Helen para Rachel.

– As suas luzes nos tentaram –disse Helen. – Observamosenquanto jogavam cartas, mas nãosabíamos que estávamos sendoobservadas.

– Era como um jogo –acrescentou Rachel.

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– E Hirst não conseguiudescrevê-las – disse Hewet.Eracertamente estranho ter vistoHelen e não ter nada a dizer arespeito dela.Hughling Elliotbotou seu monóculo e entendeuasituação.

– Não sei de nada maisterrível- disse, puxando uma coxade galinha – do que ser vistoquando não se tem consciênciadisso. Sente-se que se foiapanhado fazendo alguma coisaridícula... por exemplo, olhando a

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própria língua num cabriolé.Osoutros cessaram de contemplar apaisagem e, reunindo-se,sentaram-se em círculo em tornodas cestas.

– Mas aqueles espelhinhos noscabriolés têm umafascinaçãoprópria – disse Mrs.Thornbury.–Nossos traços parecem tãodiferentes quando só se pode verumpedaço deles.

– E em breve vão restarpoucos cabriolés – disseMrs.Elliot. – E carruagens de

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quatro rodas... até emOxford,acreditem, é quaseimpossível conseguir uma.

Fico pensando no que será doscavalos – disse Susan.

Pastelão de vitela – disseArthur.

– Está mais do que na hora dese acabar com os cavalos – disseHirst. – São terrivelmente feios,além de se-rem malvados.

Mas Susan, que fora educadaacreditando que cavalos são asmais nobres criaturas de Deus,

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não pôde concordar e Venningachou Hirst um verdadeiroimbecil, mas era educado demaispara interromper a conversa.

Quando nos virem caindo dosaeroplanos, espero que retomemalguns dos cavalos – disse ele.

O senhor voa? – disse o velhoMr.Thornbury,botando os óculospara vê-lo.

– Espero voar, um dia-disseArthur.

Então discutiram longamentesobre aviões, e Mrs. Thornbury

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deu uma opinião que foi quase umdiscurso sobre o fato de que emtempo de guerra eles seriamnecessários, e na Inglaterraestávamos terrivelmenteatrasados.

– Se eu fosse um rapaz –concluiu ela – eu certamente meprepararia. – Era esquisito veraquela dama baixinha,idosa, emseu casaco e saia cinzentos, comum sanduíche na mão, olhosiluminados de entusiasmoimaginando-se um rapaz num

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avião. Mas por algum motivodepois disso a conversa não fluíacom facilidade, só se falavasobre a bebida, o sal e apaisagem. De repente Miss Allan,sentada de costas contra o muroem ruínas, largou seu sanduíche,tirou algo do pescoço ecomentou:

– Estou coberta de unsbichinhos.

Era verdade, e a descobertafoi bem-vinda. As formigasdespejavam uma mantinha de

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terra solta entre as pedrasdaruína, grandes formigascastanhas com corposlustrosos.Ela colocou uma nascostas da sua mão para Helenolhar.

– Será que picam? – disseHelen.

– Não picam mas podeminfestar a comida – disseMissAllan. E medidas foramtomadas para afastar as formigasdoseu curso. Por sugestão deHewet, decidiram adotar os

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métodos de guerra modernacontra um exército invasor. Atoalha da mesa representava opaís invadido, e ao redordelaconstruíram barricadas decestas, ajeitaram as garrafas devinho como uma muralha, fizeramfortificações de pão e cava-ramfossos de sal. Quando umaformiga passava por ali,eraexposta a fogo cerrado demigalhas de pão, até queSusandeclarou que aquilo eracruel e premiou aqueles espíritos

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corajosos com despojos em formade língua. Nesse jogo perderamseu formalismo até se tornareminusitadamente ousados, pois Mr.Perrott, que era muito tímido,disse “com licença” e retirou umaformiga do pescoço de Evelyn.

– Não seria para risadas,realmente – disse Mrs. Elliotconfidencialmente para Mrs.Thornbury – se uma formigaconseguisse meter-se entre acamiseta e a pele.

O alarido de repente ficou

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mais forte porque descobriramque uma longa fileira de formigassubira na toalha de mesa por umaentrada nos fundos, e se o sucessopudesse ser medido por ruído,Hewet tinha todos os motivospara julgar sua expedição umsucesso. Mesmo assim, semnenhum motivo, ficouprofundamente deprimido.

“Não são satisfatórios; sãoignóbeis”, pensou, analisandoosconvidados de certa distância,onde estava juntando ospratos.

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Lançou uma olhada em todos eles,inclinando-se ebalançando,gesticulando em torno da toalhade mesa. Amáveis e modestos,respeitáveis em muitas maneiras,amáveis mesmo na sua satisfaçãoe desejo de serem bondosos,comoeram medíocres todos eles,capazes de insípidas maldadesuns contra os outros! HaviaMrs.Thornbury,doce masbanal noseu egoísmo maternal; Mrs.Elliot, eternamentequeixando-sede sua sorte; seu marido um zero

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à esquerda; eSusan, que não tinhapersonalidade e não contava;Venning era tão honesto e brutalquanto um menino de colégio;pobre velho Thornbury, apenastrotava em círculos como um asnonum moinho; e quanto menos seinvestigasse o caráterde Evelynmelhor, suspeitava ele. Mas erampessoas com dinheiro, e a elesmais que a outros se entregava ogoverno do mundo. Ponha-seentre eles alguém mais vital, quese interessasse pela vida e pela

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beleza, e que agonia, que perdalhe causariam se tentasse dividirisso com eles e não os criticar!

“Aqui está Hirst”, concluiuele, chegando à figura doamigo;com sua habitual ruga deconcentração na testa,eledescascava uma banana. “E éfeio como o pecado”. Poisjulgavaa feiúra de St. John Hirst e aslimitações que elatrazia de certaforma responsáveis pelo resto.Era culpa delas que tivesse deviver sozinho. Então chegou a

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Helen,atraído pelo som do seuriso. Ela ria com Miss Allan.

– Usa combinação nessecalor? – disse ela num tom de vozque pretendia ser particular.

Ele gostava imensamente dasua aparência, não tanto da suabeleza, mas do seu tamanho esimplicidade, que a destacavamdo resto como uma grande mulherde pedra,e tornou-se mais gentil.Seu olho caiu sobreRachel.Estava deitada um tantoatrás dos outros, repousando num

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cotovelo; podia estar pensandoexatamente os mesmospensamentos de Hewet. Seusolhos fixavam-se tristes, mas nãosérios, na fila de pessoas à suafrente. Hewet foi até ela dejoelhos, com um pedaço de pãona mão.

– O que está olhando? –perguntou ele.

Ela ficou um pouco espantada,mas respondeu com franqueza:

– Seres humanos.

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11

Um, um, todos ergueram-se eesticaram-se; em poucos minutosdividiram-se em dois grupos maisou menos separados. Um delesera dominado por Hughling Elliote Mrs.Thornbury,que,tendo lidoos mesmos livros e analisado asmesmas questões, agora estavamansiosos por dar

o nome aos lugares aliembaixo e pendurar neles montesde informações sobre armadas eexércitos, partidos políticos,

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nativos e produtos minerais –tudo junto, diziam, para provarque a América do Sul era oterritório do futuro.

Evelyn M. escutava, com seusbrilhantes olhos azuis fixosnaqueles sábios.

– Como isso me faz desejarser homem! – exclamou.

Mr. Perrott respondeu,contemplando a planície, que umaterra com futuro era uma belacoisa.

– Se eu fosse você – disse

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Evelyn voltando-se para ele epuxando a luva pelos dedos comveemência – eu reuniria umatropa, conquistaria algum grandeterritório e o tornaria esplêndido.Precisariam de mulheres paraisso.Eu adoraria iniciar uma vidabem do começo, como deveriaser... nada medíocre... comgrandes salões e jardins e homense mulheres esplêndidos. Masvocês... vocês só gostam deTribunais de Justiça!

E a senhorita realmente se

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contentaria sem belas saias, semdoces e todas as coisas de que asjovens damas gostam? –perguntou Mr. Perrott,escondendo certa dor sob o jeitoirônico.

Eu não sou uma jovem dama –respondeu Evelyn bruscamente emordeu o lábio inferior. – Osenhor ri de mim só porque gostode coisas esplêndidas. Porquenão existem hoje em dia homenscomo Garibaldi?

Olhe aqui – disse Mr. Perrott

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–, a senhorita não me dá umachance. Acha que devíamosrecomeçar tudo do início.Tudobem.Mas não vejobem...conquistar um território? Jáforam todos conquistados, nãoforam?

– Não se trata de nenhumterritório em particular – explicouEvelyn. – É a idéia, não estávendo? Levamos umas vidas tãomonótonas. E tenho certeza deque o senhor tem coisasesplêndidas dentro de si.

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Hewet viu as cicatrizes ecovas no rosto astuto de Mr.Perrott relaxarem pateticamente.Podia imaginar os cálculos queele fazia sobre dever ou não pediruma mulher em casamento,levando em conta que nãoganhava mais do que 500 librasao ano no Tribunal, não tinha benspessoais e sustentava uma irmãinválida. Mr. Perrott soube maisuma vez que não era “muito”,como Susan afirmou em seudiário; não muito cavalheiro,

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queria dizer ela, pois era filho deum dono de mercearia em Leeds,começara a vida com um cestonas costas, e agora, emborapraticamente não se distinguissede cavalheiros natos, mostravasua origem para olhos penetrantesatravés do impecável asseio daroupa, as maneiras inibidas, aextrema limpeza pessoal e certaindescritível precisão e timidezcom garfo e faca, que podiam serresquícios de dias em que carneera coisa rara, e o jeito de lidar

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com ela nada escrupuloso.Os dois grupos que passeavam

por ali e perdiam sua unidadereuniram-se e ficaram olhandolongamente as manchas amarelase verdes da paisagem escaldantelá embaixo. O ar quente dançavasobre ela, impedindo-os de veremnitidamente os telhados de umaaldeia na planície.Até no topo damontanha onde a brisa sopravaleve estava muito quente; o calor,a comida, o espaço imenso etalvez alguma causa menos

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definida produziam umaconfortável sonolência e umasensação de relaxamento feliz.Não diziam muita coisa, mastambém não sentiamconstrangimento no silêncio.

– Que tal irmos ver o que podeser visto lá de cima? – disseArthur a Susan, e o par saiuandando junto, sua partidacertamente dando aos outros umfrêmito de emoção.

Turma esquisita, não é? –disse Arthur. – Achei que jamais

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conseguiríamos trazer todos até otopo. Mas estou contente portermos vindo, meu Deus! Eu nãoteria per-dido isso por nada nomundo.

Eu não gosto de Mr. Hirst –disse Susan, inconseqüente. –Acho que é muito inteligente, maspor que pessoas inteligentes sãotão... na verdade, imagino que eleseja incrivelmente simpático –acrescentou, abrandandoinstintivamente o que poderia tersido um comentário pouco

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bondoso.– Hirst? Ah, ele é um desse

caras cultos – disse Arthur comindiferença. – Não parece estar sedivertindo nada.Devia ouvi-lofalar com Elliot. É o máximo queposso fazer para seguir suasconversas... Nunca fui muito bomcomos livros. Com essas frases epausas, chegaram a um pequenoouteiro sobre o qual cresciamvárias árvores esguias.

– Não se importa de nossentarmos aqui? – disse Arthur,

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olhando em torno. – É gostoso nasombra... e a vista...– Sentaram-se e olharam para a frente,quietospor algum tempo.– Mas às vezeseu invejo esses sujeitosinteligentes – comentou Arthur. –Não creio que já... – ele nãoconcluiu a frase.

– Não vejo por que osinvejaria – disse Susan comgrande sinceridade.

– Acontecem coisas esquisitascom a gente – disse Arthur. – Agente vai andando muito bem,

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uma coisadepois da outra, tudomuito bom e calmo, pensandoquesabe de tudo, e de repente nãose sabe mais o que acontece, tudoparece diferente do quecostumava ser. Hojemesmo,subindo aquela trilha, cavalgandoatrás da senhorita, pareceu que euvia tudo como se... – ele fezumapausa e arrancou pela raiz umpunhado de capim. Tirouostorrõezinhos de terra presos nasraízes como se issotivesse algumtipo de significado. A senhorita

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fez a diferença para mim –explodiu ele. – Não vejo por queeu não deveria lhe dizer. Sentiisso desde que a conheci...Éporque eu amo você.

Mesmo enquanto diziambanalidades, Susanestiveraconsciente da excitaçãoda intimidade, que parecia nãoapenas estar dentro dela, mas nasárvores, no céu, e o rumoda faladele, que parecia inevitável, erapositivamente doloroso para ela,pois nenhum ser humano se

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aproximara tan-to dela até então.Susan ficou subitamente

paralisada enquanto elecontinuava falando, e seu coraçãodeu grandes saltos isolados nasúltimas palavras dele. Sentava-secom dedos enroscados em tornode uma pedra, olhando em frente,montanha abaixo, para a planície.Então realmenteacontecera,estava sendo pedidaem casamento.

Arthur olhou para ela; seurosto estava estranhamente

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retorcido. Ela respirava com tantadificuldade que quase nãoconseguiu responder.

– Você podia ter sabido. – Elea pegou nos braços; abraçaram-sevárias vezes murmurando coisasinarticuladas.

– Bem – suspirou Arthursentando-se novamente –,essa é acoisa mais maravilhosa que já meaconteceu. – Parecia estartentando colocar coisas vistasnum sonho junto de coisasreais.Houve um demorado

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silêncio.– É a coisa mais perfeita do

mundo – afirmou Susan,muitodocemente e com grandeconvicção. Não era mais apenasuma proposta de casamento, mascasamento com Arthur, por quemestava apaixonada.

No silêncio que seseguiu,segurando a mão dele comfirmeza, ela rezou para que Deusa fizesse uma boa esposa paraele.

– E o que vai dizer Mr.

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Perrott? – perguntou ela no fim.– Bom velho – disse Arthur

que, passado o primeiro choque,relaxava numa enorme sensaçãode prazer e satisfação. – Temosde ser muito bons com ele, Susan.Ele lhe contou como fora a vidade Perrott e como eraabsurdamente devotado aopróprio Arthur. Passou a falar-lhesobre sua mãe, uma viúva decaráter forte. Susan emcontrapartida esboçou os retratosde sua própria família – Edith em

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especial, sua irmã mais moça, aquem amava mais do que aqualquer outra pessoa.

– Exceto você, Arthur... –prosseguiu. – Arthur, qual aprimeira coisa de que vocêgostou em mim?

– Uma fivela que usou umanoite no mar – disse Arthurdepois de pensar devidamente. –Lembro-me de ter nota-do... éuma coisa absurda de se notar!...que você não comeu ervilhasporque eu também não as comi.

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A partir dali passaram acomparar seus gostos maissérios,ou antes Susan quis saberdo que Arthur gostava,e diziagostarimensamente da mesmacoisa. Viveriam em Londres,talvez tivessem um cottage nocampo perto da família deSusan,poisachariam estranho semela no começo. Sua mente, aprincípioparalisada,agora voavapara as várias mudanças que seunoivado traria – como seriadelicioso partilhar das fileiras

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das mulheres casadas – não termais de andar com mocinhasmuito mais novas que ela –escapar da longa solidão de umavida desolteirona.Vez por outraficava dominada pela sua boasorte e virava-se para Arthur comuma exclamação de amor.

Deitaram-se um nos braços dooutro e não tiveram noção deestarem sendo observados. Masde repente apareceram duasfiguras entre as árvores acimadeles.

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– Aqui há sombra – começouHewet, quando Rachel de repenteparou, imobilizada. Viram umhomem e uma mulher deitados nochão abaixo deles, rolando deleve de um lado para o outro àmedida que o braço se apertavaou relaxava. O homem entãosentou-se e a mulher, que agoraparecia ser Susan Warrington,deitava-se de costas no solo,olhos fechados e um ar absorto norosto, como se não estivesseinteiramente consciente. Nem se

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podia ver,pela sua expressão, seestava feliz ou se sofrera algumacoisa. Quando Arthur se viroupara ela outra vez, dandocabeçadinhas nela como umcordeirinho numa ovelha, Hewete Rachel recuaram sem dizernada. Hewet sentiasedesconfortavelmente tímido.

Não gosto disso – disseRachel um instante depois.

Também não lembro de gostardisso – disse Hewet.

– Recordo... – mas mudou de

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idéia e continuou num tom de vozcomum: – Bem, acho quepodemos acreditar que estãonoivos. Acha que ele vai emboraou que ela vai pôr um fim nisso?Mas Rachel ainda estava agitada;não conseguia desviar-se do queacabara de ver. Em vez deresponder a Hewet, ela persistia:

– O amor é uma coisaesquisita, não é, faz o coração dagente disparar.

– É tão imensamenteimportante, você sabe –

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respondeu Hewet. – Agora asvidas deles mudaram parasempre.

– E a gente também fica compena deles – continuou Rachel,como se estivesse seguindo ocurso de suas emoções. – Nãoconheço nenhum deles, mas estouquase chorando. Coisa boba, nãoé?

– Só porque estãoapaixonados – disse Hewet. Sim– acrescentou depois de refletirum momento –, há alguma coisa

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terrivelmente patética nisso tudo,concordo.

E agora, quando tinhamcaminhado um trajeto dobosquezinho chegando a umaconcavidade arredondada econvidativa, sentaram-se, e avisão dos namorados foiperdendo sua intensidade, emboracontinuassem enxergando tudo demaneira muito forte, talvez aindaresultado do que tinham visto.Como um dia no qual se reprimiumuita emoção é diferente de

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outros dias, aquele dia agora eradiferente, apenas porque tinhamvisto outras pessoas numa crisede suas vidas.

– Podiam ser um grandeacampamento de tendas – disseHewet, olhando em frente, para asmontanhas. – Também é comonuma aquarela... sabe como aaquarela seca em riachinhos portodo o papel... andei pensando emcomo seriam.

Seus olhos ficaramsonhadores, como se estivessem

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comparando coisas, e sua correcordou a Rachel a carneverdede uma lesma. Ela sentava-se aolado dele, olhando as montanhastambém. Quando se tornoudoloroso continuar olhando, agrande vastidão da paisagemparecendo aumentar os olhos delaalém do limite natural, ela fitou ochão; gostava de perscrutar cadapolegadado solo da América doSul, tão minuciosamentequenotava cada grão de terra e otransformava num mundo no qual

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ela tinha o poder supremo.Dobrou umafolha de capim,empurrou um inseto até a suaextremidade, ficou imaginando seo inseto entendia sua estranhaaventura e pensou como eraestranho ter dobrado essa folhade capim em vez de qualqueroutra dos milhões de folhas queexistiam.

– Você não me disse seu nome– disse Hewet de repente. – MissAlguém Vinrace... Gosto de saberos nomes das pessoas.

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– Rachel – respondeu ela.– Rachel. Tenho uma tia

Rachel que pôs em verso a vidado padre Damião. Ela é umafanática religiosa... resultado domodo como foi criada emNorthamptonshire,sem jamais verninguém. Você tem tias?

Eu moro com elas – disseRachel.

O que estarão fazendo agora?– perguntou Hewet.

– Provavelmente comprandolã – deteminou Rachel, e tentou

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descrevê-las. – São mulherespequenas, bastante pálidas, muitolimpas. Moramos em Richmond.Elas também têm um cachorrovelho que come só tutano deossos... Estão sempre indo àigreja. E arrumam um bocadosuas gavetas – mas nisso ela foidominada pela dificuldade dedescrever pessoas.

– É impossível acreditar quetudo isso ainda continue!

– exclamou ela. O sol estavaatrás deles e duas longas sombras

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de repente jaziam na terra à frentedeles, uma agitada porque eraformada por uma saia, a outraquieta porque lançada por um parde pernas em calças.

– Vocês parecem estar muitoconfortáveis aí! – disse a voz deHelen acima deles.

– Hirst – disse Hewetapontando a sombra em forma detesoura; então aproximou-se eergueu os olhos para eles. – Aquihá lugar para todos nós.

Quando Hirst estava sentado

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confortavelmente, perguntou:– Vocês parabenizaram o

jovem casal?Parecia que, vindos do mesmo

lugar poucos minutos depois deHewet e Rachel, Helen e Hirsttinham visto exatamente a mesmacoisa.

– Não,não os parabenizamos –disse Hewet.– Pareciam muitofelizes.

– Bem – disse Hirst torcendoos lábios –, desde que eu nãoprecise me casar com nenhum

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deles...– Ficamos muito comovidos –

disse Hewet.– Imaginei que ficariam –

disse Hirst. – Qual foi, Monge? Aidéia das paixões imortais ou aidéia de machos recém-nascidospara manterem afastados oscatólicos romanos? Acredite –disse ele a Helen –, ele é capazde comover-se com qualquer umadas duas coisas.Rachel ficoubastante chocada com a troçadele, que sentiu estar dirigida

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igualmente aos dois, mas nãoconseguiu pensar em nenhumaresposta.

– Nada comove Hirst – riuHewet; não parecia aborrecido. –A não ser que fosse um númerotransfinito apaixonando-se por umfinito... acho que essas coisasacontecem, mesmo na matemática.

– Ao contrário – disse Hirstcom um toque de desgosto –, eume considero uma pessoa depaixões muito intensas. – Estavaclaro, pelo seu jeito de falar, que

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falava sério;naturalmente porcausa das damas.

– Por falar nisso, Hirst – disseHewet depois de umapausa –,tenho de fazer uma terrívelconfissão. Seu livro, os poemasde Wordsworth, que peguei emsua mesa quando estávamospartindo e certamente boteinomeu bolso...

– Perdeu-se – concluiu Hirstem lugar dele.

– Acho que ainda há umachance – disse Hewet batendo no

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próprio corpo à direita e àesquerda – de que afinal eu nem otenha pegado.

– Não – disse Hirst – estáaqui. – Apontou para o peito.

– Graças a Deus – exclamouHewet. – Não me sinto maiscomo se tivesse assassinado umacriança!

– Imagino que viva perdendosuas coisas – comentou Helenfitando-o pensativamente.

– Eu não perco as coisas –disse Hewet. – Eu as coloco fora

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do lugar. Por isso Hirst serecusou a partilhar a minhacabine na viagem.

– Vocês vieram juntos? –indagou Helen.

– Proponho que cada membrodeste grupo agora dê um breveesboço autobiográfico de simesmo ou de si mesma – disseHirst, sentando-se ereto. – MissVinrace, a senhorita primeiro;comece.Rachel disse que tinha 24anos, era filha de um dono denavios, nunca recebera instruções

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adequadas; tocava piano, nãotinha irmãos nem irmãs e viviaem Richmond com tias, pois suamãe morrera.

– Seguinte – disse Hirstdepois de ouvir essesfatos;apontou para Hewet.

– Eu sou filho de umcavalheiro inglês.Tenho 27 anos

– começou Hewet. – Meu paiera um nobre rural que caçavaraposas.Morreu quando eu tinhadez anos.Lembro de trazerem seucorpo para casa, acho que numa

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maca,exatamente quando euestava descendo para o chá, e denotar que havia geléia para o cháe de imaginar se me permitiriam...

– Sim; mas queremos os fatos– interrompeu Hirst.

– Fui educado em Winchestere Cambridge, que tive deabandonar depois de algumtempo. Desde então fiz muitascoisas...

Profissão?Nenhuma. Pelo menos...Gostos?

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Literário. Estou escrevendoum romance.

Irmãos e irmãs?Três irmãs, nenhum irmão, e a

mãe.– É só isso que vamos saber a

seu respeito? – disse Helen. Elarevelou que era muito velha, fez40 em outubro passado, e que seupai fora advogado na cidade, masfalira, por isso ela nunca receberamuita instrução... viviam numlugar, depois noutro... mas seuirmão mais velho costumava

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emprestar-lhe livros.– Se eu fosse lhes contar

tudo... – ela parou e sorriu. –Levaria tempo demais – concluiu.Casei-me com 30 anos e tenhodois filhos. Meu marido é umintelectual. E agora... é sua vez –ela acenou com a cabeça paraHirst.

– A senhora deixou muitacoisa de fora – censurou ele.

– Meu nome é St. John AlaricHirst – começou num tom de vozanimado. Tenho 24 anos, sou filho

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do Reverendo Sidney Hirst,vigário do Great Wappyng emNorfolk.Ah, recebi bolsas deestudo por toda parte,Westminster,King’s. Agora soubolsista na King’s. Não souterrível? Ambos os pais vivos(que pena). Dois irmãos e umairmã.Sou um jovem muito distinto– acrescentou.

– Um dos três, ou serão cinco,homens mais distintos daInglaterra – comentou Hewet.

– Correto – disse Hirst.

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– Tudo isso é muitointeressante – disse Helen depoisde uma pausa. – Mas naturalmentedeixamos de fora as únicasquestões importantes. Porexemplo, somos cristãos?

Eu não sou – responderam osdois rapazes.

Eu sou – declarou Rachel.– E acredita num Deus

pessoal? – perguntou Hirst,virando-se e fitando-a com seusóculos.

– Eu acredito... eu acredito... –

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gaguejou Rachel. – Acredito quehá coisas que não sabemos e queo mundo poderia mudar numminuto e aparecer alguma coisa.

Helen riu sinceramente disso.– Bobagem – disse ela. – Você

não é cristã. Nunca pen-sou noque é. E há muitas outrasperguntas, embora talvez não sepossa fazê-las ainda. – Emborativessem falado tão livremente,todos estavamdesconfortavelmente conscientesde que realmente nada sabiam uns

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dos outros.– As questões importantes –

ponderou Hewet –, as realmenteinteressantes. Duvido de que agente jamais as faça.Rachel, queaceitava lentamente o fato de quesó muito poucas coisas podem serditas mesmo por pessoas que seconhecem bem, insistiu em sabero que ele queria dizer comaquilo...

– Se estamos apaixonados? –perguntou ela. – É esse o tipo depergunta a que se refere?

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Helen riu dela novamente,jogando-lhe brandamentepunhados daquele capim de taloslongos, por ser tão corajosa e tãotola.

– Ah, Rachel – gritou ela, tervocê conosco é como ter umcachorrinho na casa... umcachorrinho que traz as nossasroupas de baixo para a sala.Masnovamente a terra ensolaradadiante deles foi varada defantásticas figuras ondulantes,sombras de homens e mulheres.

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– Aí estão eles! – exclamouMrs. Elliot. Havia um toque demau humor na sua voz. – Eprocuramos tanto por vocês.Sabem que horas são?

Mrs.Elliot e Mr.eMrs.Thornbury enfrentaram-nos.Mrs. Elliot estendia seurelógio e tamborilava com osdedos jocosamente o mostrador.Hewet lembrou que eraresponsável por aquele passeio eimediatamente os conduziu devolta à torre de vigia, onde

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tomariam chá antes de voltarempara casa. Um lenço vermelhobrilhante flutuava no topo domuro; Mr. Perrott e Evelyn oestavam amarrando numa pedraquando os outros apareceram. Ocalor mudara a ponto de sesentarem ao sol em vez de sefixarem à sombra, e ainda estavaquente o suficiente para pintarseus rostos de vermelho eamarelo, e colorir grandes fatiasde terra lá embaixo.

– Não há nada tão bom quanto

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uma xícara de chá! – disse Mrs.Thornbury, pegando sua taça.

– Nada – disse Helen. –Recorda-se de quando criançatermastigado feno – ela falava bemmais depressa do que decostumee mantinha os olhos fixos em Mrs.Thornbury –,fingindo que era chá,e ter sido censurada pelas babás?Nãoposso imaginar por quê,exceto que babás são brutas,nãopermitem pimenta em vez desal embora não haja o menormalnisso. Suas babás não eram

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exatamente a mesma coisa?Durante esse discurso Susan

chegou ao grupo e sentou-se juntode Helen. Poucos minutos depoisMr.Venning veio andando do ladooposto. Estava um pouco corado,disposto a responder jocosamentea qualquer coisa que lhedissessem.

– O que andou fazendo natumba daquele velho? –perguntou, apontando a bandeiravermelha que flutuava no topo daspedras.

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– Tentando fazê-lo esquecerseu infortúnio de ter morrido há300 anos – disse Mr. Perrott.

– Seria terrível... estar morta!– exclamou Evelyn M.

– Morta! – disse Hewet. – Nãoacho que seria horrível.É bastantefácil de imaginar. Quando forpara a cama à noite cruze as mãosassim... respire devagar... e maisdevagar... – ele deitou-se paratrás com as mãos cruzadas nopeito, olhos cerrados. – Agora, eununca, nunca, nunca mais vou me

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mexer – seu corpo, estendido nomeio deles,por um instantepareceu morto.

– Mas que espetáculo horrível,Mr. Hewet! – gritou Mrs.Thornbury.

– Queremos mais bolo! – disseArthur.

– Asseguro-lhe que não hánada de horrível- disse Hewet,soerguendo-se e pegando o bolo.– É tão natural.As pessoasdeveriam fazer esse exercíciocom os filhos todas as noites...

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Não que eu deseje morrer.– E quando fala em sepultura –

disse Mr. Thornbury,que falavapraticamente pela primeira vez –tem algumaautoridade parachamar essa ruína de sepultura?Estou doseu lado, negando-me aaceitar a interpretação comumquedeclara que são restos de umatorre de vigia elisabetana... assimcomo não acredito que osmontinhos ou outeiros queencontramos no topo de nossosplanaltos tenham sido

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acampamentos. Os antiquárioschamam tudo de acampamento.Estou sempre lhes perguntando.Bem, então ondeacham quenossos antepassados guardavam ogado? Metadedos acampamentosna Inglaterra são apenas umantigo curral ou cercado, comochamamos na minha parte domundo. O argumento de queninguém guardaria seu gadoemlocais tão expostos e inacessíveisnão tem nenhum valor, sepensarmos que naqueles dias o

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gado de um homem era o seucapital, seu mercado de capitais,o dote de sua filha. Sem gado eleera um servo, homem de outrohomem...

– Seus olhos perderamlentamente a intensidade e elemurmurou algumas palavras deconclusão, a meia-voz, parecendoestranhamente velho edesamparado.Hughling Elliot, dequem talvez se esperasse entrarem discussão com o velhocavalheiro, estava ausente no

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momento. Agora aproximava-se,segurando no alto um grandequadrado de algodão, sobre oqual se imprimia em agradáveiscores fortes um belo desenho, quefazia sua mão parecer muitobranca.

– Uma pechincha – anunciou,largando no chão o tecido.Comprei daquele homem grandecom brincos. Bonito, não?Naturalmente não vai combinarcom ninguém, mas é exatamente acoisa... não é, Hilda?... que

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combina com Mrs. RaymondParry.

– Mrs. Raymond Parry! –gritaram Helen e Mrs. Thornburyao mesmo tempo.

Encararam-se como se umnevoeiro que até então obscureciaseus rostos de repente se tivessedesfeito.

– Ah... vocês também iamàquelas maravilhosas festas?

– perguntou Mrs. Elliotinteressada.

A sala de estar de Mrs. Parry,

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embora a milhares de quilômetrosde distância, atrás de umavastidão de água,sobre umminúsculo pedaço de terra,apareceu diante de seus olhos.Eles, que não haviam tido solideznem âncora,pareceram de algummodo ligados a ela, e de repentehaviam-se tornado maissubstanciais. Talvez tenhamestado naquela sala ao mesmotempo: talvez tenham passado unspelos outros nas escadas; fossecomo fosse, conheciam algumas

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das mesmas pessoas.Examinaram-se mutuamente comnovo interesse. Mas não podiammais do que encarar-se, pois nãohavia tempo para saborear osfrutos daquela descoberta. Osburricos estavam chegando, e eraaconselhável começar a descidaimediatamente, pois a noite caíatão depressa que estaria escuroantes de estarem novamente emcasa.

Montando ordenadamente,desceram pela encosta do morro.

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Fragmentos de conversaschegavam flutuando de uns aosoutros. Havia piadas e risos;alguns caminharam parte dotrajeto apanhando flores ejogando pedras quericocheteavam a sua frente.

– Quem escreve os melhoresversos em latim na suauniversidade, Hirst? retomouElliot de um jeito incongruente, eMr. Hirst respondeu que não faziaidéia.

O nevoeiro caiu tão

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subitamente quanto haviamprevenido os nativos, asgargantas das montanhas dos doislados encheram-se de escuridão ea trilha tornava-se tão sombriaque era surpreendente escutar oscascos dos burricos aindabatendo na rocha dura. O silênciocaiu sobre um deles, depois sobreoutros, finalmente todos estavamcalados, e o pensamento girandono profundo ar azul. O caminhoparecia mais curto na escuridãodo que de dia;em breve as luzes

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da cidade apareceram na planíciedistante abaixo deles.

De repente alguém gritou:– Ah!Por um momento a vagarosa

gota amarela apareceu novamentena planície embaixo; ergueu-se,parou, abriuse como uma flor ecaiu numa chuva de gotas.

– Fogos de artifício –gritaram.

Outro subiu mais depressa;depois outro; quase podiam ouvi-los girando e bramindo.

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– Deve ser festa de algumsanto – disse uma voz.

A disparada e o enlace dosfoguetes enquanto se erguiam noar pareciam amantes fogososerguendo-se para se unir,deixando a multidão lá embaixoolhando para cima com tensosrostos brancos. Mas Susan eArthur, cavalgando morro abaixo,não trocaram uma palavra, man-tendo-se cuidadosamenteafastados.

Depois os fogos de artifício

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ficaram irregulares e logodesapareceram totalmente; o restoda jornada foi feito qua-se naescuridão, a montanha como umagrande sombraatrás deles,arbustos e árvores como sombraspequenas lançando treva sobre aestrada. Entre os plátanossepararamse, enfiando-se emcarruagens e partindo sem dizerboanoite, ou dizendo apenas deum jeito meio abafado.

Era tão tarde que não haviatempo para conversas normais

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entre a chegada no hotel e a idapara a cama. Mas Hirstentrou noquarto de Hewet com umcolarinho na mão.

– Bem, Hewet – comentou, nomeio de um bocejo gigantesco –,acho que foi um grande sucesso. –Ele bocejou. – Mas cuidado paranão se meter com aquelamoça...Não gosto de moças...

Hewet estava inebriadodemais pelas horas ao ar livrepara dar qualquer resposta. Naverdade todos os membros da

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excursão dormiam profundamentedepois de dez minutos, excetoSusan Warrington. Ela ficoudurante um tempo considerávelolhando sem ver a parede emfrente,mãos crispadas sobre ocoração, a lâmpada da cabeceiraacesa ao lado. Todo o pensamentoarticulado há muito a abandonara;seu coração parecia do tamanhodo sol, iluminando seu corpointeiro, espalhando, como o sol,uma torrente constante de calor.

– Eu estou feliz, estou feliz,

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estou feliz – repetia ela. – Amotodo mundo. Estou feliz.

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12

Quando o noivado de Susanfoi aprovado em casa eparticipado a todos os que seinteressassem por isso no hotel –a essa altura a sociedade do hotelestava dividida a ponto de sedarem notas em giz invisívelcomo descrevera Mr. Hirst – anotícia justificava umacomemoração – uma excursão? Játinham feito uma. Então um baile.A vantagem do baile era queabolia uma daquelas noites

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compridas que facilmente setornavam tediosas e faziam todomundo dormir absurdamentecedo, apesar do bridge.

Duas ou três pessoas paradasdebaixo do rígido leopardoempalhado no saguão logodecidiram a questão.Evelyndeslizou um passo ou doispara lá e para cá e disse queochão estava excelente. SignorRodriguez informou que umvelhoespanhol tocava violino emcasamentos – tocava deum modo

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que faria até uma tartaruga valsar.E sua filha, de olhos negros comocarvões, tinha o mesmo dom aopiano.Se houvesse alguém doenteou rabugento o bastanteparapreferir ocupaçõessedentárias na noite em questãoem vezde girar com os outros,teria à sua disposição a sala deestare o salão de bilhar. Hewettratou de integrar o mais possívelos que estavam de fora. Não ligoupara a teoria de Hirsta respeitodas notas a giz invisível. Recebeu

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uma reprimenda ou duas, mas emcompensação algunsobscuroscavalheiros solitáriosficaram com essa oportunidadedefalar com seus pares, e a damade caráter duvidoso mostroutodos os sintomas de que numfuturo próximo deviaconfiar a eleseu caso. Na verdade, ficou claroque as duasou três horas entre ojantar e a cama trazia boa porçãode infelicidade, o que erarealmente lamentável, poistantagente não conseguira fazer

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amizades.Acertaram que o baile seria na

sexta-feira, uma semana depoisdo noivado, e no jantar Hewet sedeclarou satisfeito.

Virão todos! – disse a Hirst. –Pepper! – chamou, vendo WilliamPepper esgueirar-se por ele,esperando a sopa, com umpanfleto debaixo do braço. –Estamos contando com você paraabrir o baile.

Você certamente não permitiráque alguém diga que vai dormir –

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retrucou Pepper.Você deve abrir o baile com

Miss Allan – continuou Hewet,consultando uma folha de papelcom notas a lápis.

Pepper parou e começou umdiscurso sobre danças emciranda, danças rurais, dançasfolclóricas e quadrilhas, todasabsolutamente superiores àbastarda valsa e à polca espúriaque as sobrepujaram injustamentena popularidade contemporânea,quando os garçons gentilmente o

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conduziram para sua mesa nocanto.

Nesse momento a sala dejantar tinha certa semelhançafantástica com um pátio de granjacoberto de cereais sobre o qualbaixavam coloridos pombos.Quase todas as damas usavamvestidos que não tinham exibidoainda e seus cabelos erguiam-seem ondas e cachos parecendomadeira esculpida nas igrejasgóticas. O jantar foi mais breve emenos formal do que de costume;

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até os garçons pareciam afetadospela excitação geral. Dez minutosantes de o relógio bater novehoras, o comitê fez uma turnê pelosalão de baile. O saguão,removidos os móveis,brilhantemente iluminado, tinhauma maravilhosa aparência dealegria etérea.

É como um céu estrelado numanoite totalmente limpa –murmurou Hewet olhando emtorno no aposento vazio egracioso.

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De qualquer modo, umassoalho celestial – acrescentouEvelyn, dando uma corridinha eescorregandonum trecho.

E que tal essas cortinas? –perguntou Hirst. As cortinasvermelhas estavam abaixadas nasaltas janelas. – Lá fora está umanoite perfeita.

Sim, mas cortinas inspiramconfiança – decidiu Miss Allan.Quando o baile estiver no auge,sempre haverá tempo de abri-las.Até podermos abrir um pouco as

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janelas... se fizermos isso agora,pessoas de mais idade vãoimaginar que há corrente de ar.

Sua sabedoria foi reconhecidae respeitada. Enquanto ficavamparados conversando, os músicosdesembrulhavam seusinstrumentos e o violino repetia erepetia uma nota tocada no piano.Tudo estava pronto para começar.

Depois de alguns poucosminutos de pausa, o pai, a filha, eo genro que tocava trompetetocaram um acorde florido. Como

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ratos seguindo o flautista,imediatamente apareceramcabeças no umbral. Houve outrofloreio, depois otrio iniciouespontaneamente o triunfanteímpeto da valsa.Foi como se oaposento tivesse sidoinstantaneamenteinundado deágua. Depois de um momento dehesitação,primeiro um casaldepois outro saltaram no meio datorrente e giraram e giraram emredemoinhos. O zunido rítmicodos bailarinos soava como um

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torvelinho de água.Aos poucos osalão foi ficando mais quente. Ocheiro de luvas de pelicamisturavam-se com o forte aromade flores.Os redemoinhospareciam girar mais e maisdepressa, atéque a música seencaminhou para um estrondo,cessou, e oscírculos sedesfizeram em pedacinhosseparados. Os parespartiram emdiferentes direções, deixando umatênue fileira de pessoas maisidosas junto das paredes, e aqui e

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ali umenfeite, um lenço ou umaflor jazia no chão. Houveumintervalo, então a músicarecomeçou, os redemoinhosgiraram, os casais circulavamdentro deles até haver estrondo, eos círculos se rompiam emfragmentos.

Quando isso acontecera umascinco vezes, Hirst, que seencostava num parapeito dejanela como uma estranhagárgula, notou que HelenAmbrose e Rachel estavam

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paradasno umbral. A multidãoestava tão apinhada que não sepodiam mexer,mas ele asreconheceu por um pedaço doombro de Helen e um vislumbreda cabeça de Rachel virando-se.Abriu caminho até elas, que osaudaram com alívio.

– Estamos sofrendo as torturasdos condenados – dis-se Helen.

– Essa é a minha idéia doinferno – disse Rachel.

Os olhos dela estavamiluminados e parecia

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aturdida.Hewet e Miss Allan, quevalsavam com algumesforço,pararam e saudaram osrecém-chegados.

– Isso é muito agradável-disse Hewet. – Mas onde está Mr.Ambrose?

– Píndaro – disse Helen. –Uma mulher casada quecompletou 40 anos em outubropode dançar? Eu nem consigoficar parada. – Ela pareceudiluir-se em Hewet, e os dois sedissolveram na multidão.

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– Temos de ir atrás – disseHirst a Rachel, pegando-aresolutamente pelo cotovelo.Rachel, sem ser perita, dançavabem, por ter bom ouvido pararitmo, mas Hirst não tinha gostopor música, e umas poucas liçõesde dança em Cambridge só otinham posto a par da anatomia davalsa,sem lhe transmitirem nadado seu espírito. Uma só voltaprovou-lhes que seus métodoseram incompatíveis; em vez decombinarem uns com os outros,

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seus ossos pareciam saltar emângulos, impossibilitandovolteios suaves e, mais que isso,impedindo o avanço circular dosoutros bailarinos.

– Vamos parar? – disse Hirst.Rachel percebeu pela suaexpressão que ele estavaaborrecido.Cambalearam até ascadeiras no canto, de onde tinhamvista do salão, que ainda estavatumultuado, ondas de azul eamarelo com listras dos trajespretos de noite dos cavalheiros.

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– Espetáculo espantoso –comentou Hirst. – A senhoritadança muito em Londres? – Osdois respiravam depressa, ambosum pouco excitados, embora cadaum estivesse determinado a nãomostrar excitação alguma.

Quase nunca. E o senhor?Meu pessoal realiza um baile

todos os Natais.Esse assoalho não é nada mau

– disse Rachel. Hirst não tentouresponder à sua banalidade.Ficou sentado,bastante quieto,

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olhando os bailarinos. Depois detrês minutos, o silêncio tornou-setão insuportável para Rachel queela foi impelida a arriscar outrocomentário sobre a beleza danoite. Hirst interrompeu-arudemente.

O que foi toda aquelabobagem que a senhorita dis-seoutro dia sobre ser cristã e nãoter instrução? – perguntou ele.

Era praticamente verdade –respondeu ela. – Mas eu toco bempiano, melhor do que qualquer

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outra pessoa nesta sala, espero. Osenhor é o homem mais distintoda Inglaterra, não é? – perguntoutimidamente.

– Um dos três mais – corrigiuele.

Nisso, Helen, que passavarodopiando, jogou um leque nocolo de Rachel.

– Ela é muito bonita –comentou Hirst.

Ficaram calados de novo.Rachel imaginava se ele tambéma acharia bonita; St. John

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ponderava sobre a imensadificuldade de falar commocinhas que não tinhamexperiência da vida. ObviamenteRachel jamais pensara nemsentira nem vira nada. Mas amente dele ainda remoía o insultode Hewet – “Você não sabe lidarcom mulheres”, e estavadeterminado a aproveitar essaoportunidade. O traje de festadela conferia-lhe um toque deirrealidade e distinção, o quetornava romântico falar com ela e

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despertava o desejo de conversar,o que o irritava porque não sabiacomo começar. Lançou-lhe umolhar,e ela lhe pareceu muitodistante, inexplicável, muitojovem e casta. Ele suspirou ecomeçou:

Então, a respeito de livros. Oque foi que a senhorita leu? SóShakespeare e a Bíblia?

Não li muitos clássicos –declarou Rachel. Estavalevemente aborrecida com o jeitodesembaraçado e pouco natural

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dele, enquanto as suas aptidõesmasculinas a induziam a umavisão muito modesta de seupróprio poder.

Quer dizer que realmentechegou aos 24 anos sem lerGibbon? – perguntou eleimperiosamente.

– Sim...– Mon Dieu! – exclamou Hirst

levantando as mãos. – Precisacomeçar amanhã mesmo. Vou lhemandar meu exemplar. O quequero saber é – ele a encarou

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criticamente –, sabe, o problemaé: pode-se realmente conversarcom a senhorita? Tem uma mente,ou é como o resto do seu sexo? Amim, parece absurdamente jovemcomparada com os homens de suaidade.

Rachel encarou-o mas nãodisse nada.

– Quanto a Gibbon – continuouele –, pensa que será capaz deapreciá-lo? Naturalmente ele é oteste. É terrivelmente difícil falarde mulheres... Quero dizer, o

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quanto se deve à falta detreinamento e o quanto àincapacidade inata. Não vejo porque a senhorita não entenderia...apenas acho que até aqui levouuma vida absurda... acho queacaba de topar com um crocodiloe com seu cabelo caindo pelascostas.

A música começava outra vez.O olho de Hirst vagou pela salaprocurando Mrs. Ambrose.Mesmo com a melhor boavontade do mundo, estava

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consciente de que não progrediammuito bem.

– Eu gostaria muitíssimo delhe emprestar livros – dis-se eleabotoando as luvas e levantando-se de sua cadeira.

– Vamos nos encontrar denovo. Agora vou deixá-la.Elelevantou-se e se afastou. Rachelolhou em torno. Sentia-serodeada, como uma criança numafesta, pelos rostos de estranhos,todos hostis, com narizeslevantados e olhos indiferentes e

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arrogantes. Estava junto de umajanela. Abriu-a com um gestobrusco e saiu para o jardim. Seusolhos estavam inundados delágrimas de indignação.

– Aquela droga de homem! –exclamou, tendo aprendidoalgumas das palavras de Helen. –Droga de insolência! Ficouparada no meio do pálidoretângulo de luz lançadona relvapela janela que abrira. Asgrandes árvores negras erguiam-se maciças na frente dela. Ficou

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quieta, olhando-as,tremendolevemente de raiva e excitação.Ouvia os passos dosdançarinosque rodopiavam atrás de si, e oritmo da valsa.

– Aí estão as árvores – disseem voz alta. Elas a compensariamde St. John Hirst? Ela seria umaprincesa persa longe dacivilização, cavalgando seucavalo nas montanhas, sozinha,fazendo suas aias cantarem aoanoitecer, longe de tudo aquilo,longe da hostilidade e de homens

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e mulheres... então um vulto saiuda sombra; uma luzinha vermelhaacendeu-se na treva.

– Miss Vinrace? – disseHewet encarando-a. – Estavadançando com Hirst?

– Ele me deixou furiosa! –exclamou ela, veemente. –Ninguém tem o direito de serinsolente!

Insolente? – Hewet repetiu apalavra tirando o charuto daboca, surpreso. – Hirst...insolente?

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Ele é tão insolente... – Racheldisse e parou. Não sabia bem porque ficara tão furiosa. Recompôs-se com grande esforço.

Bem – disse, tendo diante dosolhos a visão de Helen e de suazombaria –, acho que sou umaboba. – Fez menção de voltarpara a sala de baile, mas Hewet adeteve.

Por favor, explique-me – disseele. – Tenho certeza de que Hirstnão quis ofendê-la.

Quando tentou explicar,

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Rachel achou muito difícil.Nãopodia dizer que achavaespecialmente injusta e horrível avisão de si mesma topando comum crocodilo com o cabelo soltonas costas; nem podia explicarpor que Hirst presumir que suanatureza e experiência eramsuperiores lhe tinha parecido nãoapenas ofensivo masterrível,como se alguém tivessebatido uma porta na suacara.Caminhando pelo terraço aolado de Hewet ela

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disse,amargurada:– Não adianta; devemos viver

separados; não podemos nosentender; apenas provocamos oque há de pior em nós.

Hewet rejeitou suageneralização quanto à naturezados dois sexos, pois essasgeneralizações o aborreciam epareciam-lhe normalmente falsas.Mas, conhecendo Hirst, sabiabem o que tinha acontecido, eembora secretamente sedivertisse muito, não queria que

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Rachel guardasse aqueleincidente na sua memória,mudando sua visão da vida.

– Agora a senhorita vai odiá-lo – disse ele –, o queestá errado.Pobre do velho Hirst... ele nãoconseguemudar seu método.Realmente, Miss Vinrace, eleestava fazendo o melhor quepodia; estava lhe dando umelogio... estava tentando...tentando... – não pôdeconcluir,pois caiu na risada.

De repente Rachel girou nos

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calcanhares e também começou arir. Viu que havia algo de ridículoem Hirst, e talvez em si mesma.

– Acho que é o jeito dele defazer amigos – riu ela. –Bem...vou fazer a minha parte.Voucomeçar...“Feio de corpo erepulsivo de mente como o senhoré, Mr. Hirst...”

– Isso, isso! – exclamouHewet. – É assim que temdetratá-lo. Sabe, Miss Vinrace,tem de ter certa complacênciacomHirst. Ele passou toda a sua vida

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na frente de um espelho, porassim dizer, num magníficoaposento com lambris,cheio depinturas japonesas e lindascadeiras e mesas antigas,apenasum toque de cor no lugar certo,sabe... entre as janelas, acho... elá ele fica sentado horas e horascom os dedos dos pés sobre oguarda-fogo da lareira, falandosobre filosofia,e Deus,e o seupróprio fígado,e seu coração,e oscoraçõesde seus amigos. Sãotodos falidos. Não pode esperar

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que eleseja ótimo num salão debaile. Ele quer um lugaraconchegante,enfumaçado,masculino,ondepossa esticar as pernas esó falarquando tiver alguma coisa a dizer.De minha parte,acho isso bastantesem graça. Mas respeito. Eleslevam issotão a sério. Levammuito a sério as coisas sérias.

A descrição do modo de vidade Hirst interessou Rachel tantoque ela quase esqueceu suamágoa pessoal contra ele, e seurespeito reacendeu-se.

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Então eles são realmente todosmuito inteligentes? perguntou.

Claro que são. No que dizrespeito a cérebros, acho que éverdade o que ele disse outro dia:são as pessoas mais inteligentesda Inglaterra. Mas... a senhoritadeveria observá-lo um pouco –acrescentou. – Há muito maisdentro dele do que alguém jamaisimaginou. Ele quer alguém que riadele... Hirst dizendo-lhe que asenhorita não teve experiências!Pobre velho Hirst!

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Caminhavam pelo terraçoenquanto falavam; então uma auma as janelas escuras foramdesveladas por uma mãoinvisível, e facetas de luz caíramregularmente sobre a relva, emintervalos iguais. Pararam defalar diante da sala de estar eperceberam Mr. Pepperescrevendo sozinho numa mesa.

– Lá está Pepper escrevendopara sua tia – disse Hewet.

– Deve ser uma senhora idosamuito notável, 83 anos, ele disse,

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que ele leva para caminhadas naNew Forest...Pepper! – elechamou batendo na janela. – Vácumprir o seu dever. Miss Allan oestá aguardando.Quandochegaram às janelas do salão debaile, o ritmo dos bailarinos e acadência da música foramirresistíveis.

– Vamos? – disse Hewet, ederam-se as mãos e saíramdeslizando magnificamente paradentro do grande redemoinho. Eraapenas a segunda vez que se

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encontravam,tendo sido aprimeira quando avistaram umhomem e umamulher beijando-se,e na segunda vez Mr. Hewetachavaque uma jovem zangada separecia muito com umacriança.Assim quando se deramas mãos na dança, sentiram-semais à vontade do que as pessoasde costume se sentem.

Era meia-noite e o baileestava agora no auge. Criadosespiavam as janelas; o jardimestava respingando de vultos

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alvos de casais sentados lá fora.Mrs. Thornbury e Mrs.Elliotsentavam-se lado a lado debaixode uma palmeira,segurandoleques, lenços e brochesdepositados em seus regaços pormocinhas coradas. De vez emquando trocavam comentários.

– Miss Warrington parece felizde verdade – disse Mrs.Elliot; asduas sorriram; as duassuspiraram.

– Ele tem muito caráter – disseMrs. Thornbuty, aludindo a

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Arthur.– E caráter é o que se quer –

disse Mrs. Elliot. – Agora,aquelerapaz é bastante inteligente –acrescentou, fazendo um sinal decabeça na direção de Hirst, quepassava conduzindo Miss Allan.

– Espero que estejam sedivertindo! – disse Hewet para asdamas.

– Esta é uma posição muitofamiliar para mim! – sorriuMrs.Thornbury. – Criei cinco filhas...e todas adoravam dançar! A

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senhorita também gosta, MissVinrace? – perguntou, olhandopara Rachel com olhos maternais.– Eu adorava, quando tinha a suaidade. Como suplicava à minhamãe que me deixasse ficar... eagora simpatizo com aspobresmães... mas também simpatizocom as filhas.Ela deu um sorrisocompreensivo, ao mesmo tempoencarando Rachel de um jeitobastante penetrante.

– Parece que têm muito aconversar – disse Mrs.

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Elliot,olhando significativamenteas costas do par quando seafastaram. – Notou isso nopiquenique? Ele foi a únicapessoa que conseguiu fazê-lafalar.

– O pai dela é um homemmuito interessante – disse Mrs.Thornbury. – Tem uma dasmaiores companhias denavegação em Hull. Na últimaeleição, lembra, ele deu umaresposta bastante hábil a Mr.Asquith. É tão interessante ver

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que um homem da experiênciadele é um protecionista convicto.Ela teria gostado de discutirpolítica, o que a interessava maisdo que pessoas, mas Mrs. Elliotsó queria falar do Império numaforma menos abstrata.

– Ouvi dizer que há históriashorríveis da Inglaterra quanto aosratos – disse ela. – Uma cunhadaminha que mora em Norwich medisse que não é muito seguropedir aves. A peste... sabe. Elaataca os ratos, e através deles

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outras criaturas...– E as autoridades locais não

estão tomando medidasadequadas? – perguntou Mrs.Thornbury.

– Isso ela não contou. Mas dizque a atitude das pessoas cultasque deviam estar bem maisorientadas é muitorude.Naturalmente minha cunhadaé uma dessas mulheres modernasativas que sempre critica ascoisas, sabe... o tipo demulherque admiramos embora não

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sintamos, pelos menoseu nãosinto... mas ela tem umaconstituição de ferro.

Nisso, trazendo o tema devolta por delicadeza, Mrs.Elliotsuspirou. – Um rosto muitoanimado – disse Mrs.Thornbury,olhando para Evelyn M., queparara perto delas para prendermelhor uma flor vermelha nopeito. Ela não queria ficar presa,e com um engraçado gesto deimpaciência Evelyn a enfiou nalapela do seu parceiro. Era um

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rapaz alto e melancólico, querecebeu o presente como umcavalheiro antigo receberia aprenda de sua dama.

– Muito tentador para os olhos– disse então Mrs.Elliot,depoisde observar por alguns minutos oredemoinho amarelo em que tãopoucos dos que rodopiavamtinham nomeou personalidadepara ela. Emergindo da multidão,Helenaproximou-se delas e pegouuma cadeira vazia.

– Posso me sentar com vocês?

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– disse, sorrindo e arfando. –Acho que devia estarenvergonhada –continuou,sentando-se –, na minhaidade. Agora que estava corada eanimada, sua beleza era maisaparente do que de costume, e asduas senhoras sentiram o mesmodesejo de tocá-la.

– Euestou me divertindo –arquejou ela.– Movimentarse...não é uma coisa incrível?

– Sempre ouvi dizer quedançar é a melhor coisa do

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mundo, para quem sabe – disseMrs. Thornbury olhando-a comum sorriso.

Helen balançava o corpo deleve como se estivesse sentadasobre arames.

– Eu podia ficar dançandopara sempre! – disse. – Deviamsoltar-se mais! Deviam saltar ebalançar-se. Olhem! Como sãoafetados!

– A senhora viu aquelesmaravilhosos bailarinos russos?

– começou Mrs. Elliot. Mas

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Helen viu seu parceiroaproximar-se e ergueu-se como seergue a lua. Antes de tiraremosolhos dela, já fizera quase meiavolta na sala, e não podiamdeixarde admirá-la embora achassemum pouquinho esquisito que umamulher da idade dela gostassetanto de dançar.

No instante em que ficousozinha, Helen teve a companhiade St. John Hirst, que estiveraesperando uma oportunidade.

– A senhora se importaria de

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sentar-se lá fora comigo? –perguntou ele. – Eu não seidançar. – Ele a conduziu até umcanto onde havia duas poltronas eassim saborearam a vantagem deuma meia privacidade. Sentaram-se, por al-guns minutos Helenestava ainda demasiadoinfluenciada pela dança parapoder falar.

– É espantoso! – exclamou elapor fim. – Como é que elapensaque é seu corpo? – Essecomentário fora provocadopor

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uma dama que passava por eles,antes bamboleando doquecaminhando,apoiada no braço deum senhor gordo com olhosverdes redondos num rostobranco e gordo. Era precisoalgum apoio, porque ela era muitogorda e tão compridaque a partesuperior do seu corpo avançavaconsideravelmente à frente dospés, que só podiam dar miúdospassinhosdevido à estreiteza dasaia sobre os tornozelos. Ovestido consistia em um pedaço

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de cetim amarelolustroso,adornadoaqui e ali,indiscriminadamente comcírculos de contas azuise verdespara imitar o desenho de um peitode pavão. Notopo de um castelode cabelo,uma pluma roxa erguia-se reta,enquanto o pescoço curtoera rodeado de uma fita develudopreto com pedras;braceletes de ouro estavammetidos à força na carne de seusgordos braços enluvados. Elatinha orosto de um porquinho

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impertinente mas cômico,commanchinhas vermelhas debaixo dagrossa camada de pó.St. John nãopôde partilhar do riso de Helen.

– Fico doente com isso –declarou. – Tudo isso me deixadoente... Pense nas mentes dessaspessoas... seus sentimentos. Nãoconcorda?

– Sempre juro nunca mais ir anenhuma festa desse mundo –respondeu Helen –, e semprequebro o juramento.

Ela reclinou-se para trás na

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cadeira e contemplou o rapaz,risonha. Podia ver que estavarealmente aborrecido embora aomesmo tempo um pouco animado.

– Mas – disse ele retomandoseu tom de censura – acho que épreciso entender uma coisa.

-Qual?– Nunca haverá no mundo

mais do que cinco pessoas comquem valha a penafalar.Lentamente a cor e o brilhono rosto de Helen foram sumindo,e ela pareceu tão quieta e atenta

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como de costume.– Cinco pessoas? – comentou.

– Eu diria que há mais do quecinco.

– Então a senhora tem muitasorte – disse Hirst. – Ou talvez eutenha azar. – E calou-se.

– A senhora diria que sou umapessoa difícil de lidar?

– perguntou-lhe bruscamente.– A maior parte das pessoas

inteligentes o são quando jovens– respondeu Helen.

– E naturalmente eu sou...

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imensamente inteligente –disseHirst. – Sou infinitamente maisinteligente do queHewet. É bempossível – continuou, naquele seujeitocuriosamente impessoal –que eu venha a ser uma daspessoas que realmente importam.Isso é totalmente diferente de serinteligente, embora não se possaesperar que nossaprópria famíliaentenda isso – acrescentou,amargurado.

Helen achou que tinha direitode perguntar:

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– O senhor acha sua famíliadifícil de lidar?

– Insuportável... Eles queremque eu seja um grande vassalo doreino e um membro do conselhoprivado. Vim até aqui em partepara dar um jeito nesse assunto.Vai ser tudo resolvido. Ou metorno advogado, ou fico emCambridge. Naturalmente as duascoisas têm óbvias desvantagens,mas certamente para mim osargumentos são favoráveis aCambridge. É esse tipo de coisa!

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– ele acenou a mão para o salãode baile apinhado.–Repulsivo.Também tenhoconsciência do grande poder doafeto.Naturalmente não soususcetível a isso como Hewet é.Gosto muito de umas poucaspessoas. Por exemplo, acho quese deve dizer alguma coisa sobreminha mãe, embora em tantascoisas ela seja tão deplorável...Em Cambridge, por exemplo, euinevitavelmente devo tornar-me ohomem mais importante do lugar,

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mas há outros motivos pelosquais tenho horror a Cambridge...– aí ele se calou.

– Está me achandoterrivelmente chato? – continuoudepois. Curiosamente mudara deum amigo confidenciando a umaamiga para um rapazconvencionalnuma festa.

– Nem de longe – disse Helen.– Estou gostando muito.

– A senhora não pode imaginar– exclamou ele, falando quasecom emoção – que diferença faz

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encontrar alguémcom quem falar!Eu vi imediatamente que asenhora podiame compreender.Gosto muito de Hewet, mas elenão tema mais remota idéia decomo eu sou. A senhora é a únicamulher que já encontrei queparece ter uma vaguíssimaidéiado que quero dizer quando faloalguma coisa.

Começava a dançaseguinte;era a Barcarolle deHoffmann, que fez Helenacompanhar o ritmo com a ponta

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do pé; massentiu que depois detal elogio era impossívellevantar-se e irembora; além deestar se divertindo, ela se sentiarealmente lisonjeada,e asinceridade da vaidade dele aatraía.Suspeitava que ele não erafeliz, e era suficientementefeminina paradesejar ouvirconfidências.

Eu sou muito velha – suspirou.O mais esquisito de tudo é que

não a considero velha –respondeu ele. – Sinto como se

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tivéssemos exatamente a mesmaidade. Mais ainda... – aqui elehesitou, mas um olhar para orosto dela lhe deu coragem –sinto que poderia falar combastante franqueza com asenhora,como um homem... sobreas relações entre os sexos,sobre... e...

Apesar de sua certeza, um leverubor lhe subiu ao rosto, ao dizeras duas últimas palavras.Ela otranqüilizou imediatamente com oriso em que exclamou:

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– Bem, eu espero que sim!Ele a fitou com verdadeira

cordialidade e as linhas em tor-node seu nariz e lábios abrandaram-se pela primeira vez.

– Graças a Deus! – exclamouele. – Agora podemos agir comoseres humanos civilizados.

Certamente acabava de cairuma barreira que habitualmenteexiste, e era possível falar sobreassuntos que geralmente sãoapenas comentados entre homense mulheres quando há médicos

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presentes, ou a sombra damorte.Em cinco minutos eleestava contando-lhe a história desua vida. Era longa, repleta deincidentes extremamenteelaborados, que levaram a umadiscussão dos princípios sobre osquais repousa a moral, e assim avários assuntos muitointeressantes, que mesmo naquelesalão de baile tinham de serdiscutidos em sussurros, para quenenhuma daquelas amuadasdamas ou daqueles

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resplandecentes comerciantes osescutassem e mandassem expulsá-los do local. Quando acabaram,ou, para falar mais acuradamente,quando Helen dera a entendercom um leve relaxamento de suaatenção que estavam sentados alitempo suficiente, Hirst levantou-se, exclamando:

– Então não há o menor motivopara todo esse mistério!

Nenhum, exceto que somosingleses – respondeu ela,pegandobraço dele e atravessando o salão

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de baile, abrindo caminho comdificuldade entre os casais quegiravam e que agora estavamperceptivelmente desalinhados,certamente não muito belos aosolhos de alguém mais crítico. Aexcitação de iniciar uma amizadee sua longa con-versa deram-lhesfome, e foram procurar comida nasala de jantar, que agora estavacheia de gente comendo emmesinhas separadas. No umbralencontraram Rachel, que iadançar outra vez com Arthur

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Venning. Estava corada e pareciamuito feliz; Helen ficou surpresaao ver que nesse estado deespírito ela era com certeza maisatraente do que a maioria dasmoças. Nunca notara isso tãoclaramente antes.

Divertindo-se? – perguntou,quando pararam por um segundo.

Miss Vinrace acaba de fazeruma confissão – respondeu Arthurno lugar dela: – que não tinhaidéia de que um baile pudesse sertão delicioso.

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Sim! – exclamou Rachel. –Mudei completamente minhavisão sobre a vida!

Não me diga! – zombou Helen,enquanto seguiam adiante.

É bem típico de Rachel –disse ela. – Muda sua visão davida todos os dias. Sabe, achoque o senhor é exatamente apessoa que eu quero – dissequando se sentaram – parameajudar a completar a instruçãodela. Foi criada praticamente numconvento. O pai dela é absurdo.

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Tenho feito oque posso... mas souvelha demais, e sou mulher. Porque osenhor... não poderia falarcom ela... explicar-lhecoisas...falar com ela, querodizer, como fala comigo?

– Já fiz uma tentativa estatarde – disse St. John. – Nãocreio que tenha sido muito bem-sucedida. Ela meparece tãojovem e inexperiente. Prometi quelhe emprestaria Gibbon.

– Não é exatamente Gibbon –considerou Helen. – Acho que

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são as verdades da vida... sabe oque quero dizer? O que realmenteacontece, o que as pessoassentem,embora geralmente tentemesconder isso. Não há nada parase ter medo. É tão mais belo doque os fingimentos...sempre maisinteressante... sempre melhor, euacho, do que aquele tipo decoisa.

Ela indicou com sua cabeçauma mesa próxima onde duasmocinhas e dois rapazes estavambrincando uns com os outros, num

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diálogo insinuante antiqüíssimo,repassado de carinhos,provavelmente a respeito de umpar de meias ou de pernas. Umadas moças manejava umleque,fingindo estar chocada, e avisão era muitodesagradável,pois era óbvio quesecretamente as moçashostilizavam-se entre si.

– Mas, na minha idadeavançada – suspirou Helen –começo a pensar que a longoprazo não importa muito o que

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fazemos; as pessoas semprefazem o que querem...nada jamaisinfluenciará ninguém. – Elaindicou com a cabeça o grupo queceava.

Mas St. John não concordou.Pensava que os pontos de vista decada um podiam realmente fazergrande diferença, os livros, eassim por diante, e acrescentouumas poucas coisas que nomomento importavam mais do queesclarecer mulheres. Às vezespensava que quase tudo dependia

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da instrução.Enquanto isso, no salão de

baile, os dançarinos formavamfilas para a dança doslanceiros.Arthur e Rachel,SusaneHewet, Miss Allan e HughlingElliot estavam juntos.

Miss Allan olhou o relógio.Uma e meia – disse. – E

amanhã preciso despacharAlexander Pope.

Pope! – ironizou Mr. Elliot. –Eu gostaria de saber quem lêPope! Ler a respeito dele... Não,

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não, Miss Allan;acredite, dançarvai lhe dar mais vantagens do queliteratura. – Era uma dassimulações de Mr. Elliot, quenada no mundo se comparava aosencantos da dança, nada nomundo era tão tedioso quantoliteratura. Assim ele procuravapateticamente agradar aos jovense provar-lhes que, sem dúvida,embora casado com uma esposaidiota, e mesmo sendo pálido,encurvado e consumido pela suainstrução, era tão animado quanto

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os mais jovens.É uma questão de gosto –

respondeu Miss Allan.Masparece que estão esperando pormim. – Ela assumiu o seu lugar eesticou uma ponta de pé preta equadrada.

– Mr . Hewet, o senhor fazmesura para mim. –Ficouevidente de imediato queMiss Allan era a única pessoaentreeles com sólidoconhecimento dos movimentos dadança.

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Depois dos lanceiros houveuma valsa; depois da valsa umapolca; e depois aconteceu umacoisa terrível: a música queestivera tocando com pausasregulares decinco minutos parouinesperadamente. A dama degrandes olhos negros começou aenrolar seu violino em seda, ocavalheiro colocou seu trompetecuidadosamente noestojo. Foramrodeados por casais que lhesimploravam em inglês, francês eespanhol que tocassem mais

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umadança, uma só; ainda eracedo. Mas o velho no piano sóexibia seu relógio e sacudia acabeça. Levantou o colarinho docasaco e pegou uma manta deseda vermelha,que desfezcompletamente sua aparênciafestiva. Por estranho queparecesse, os músicos erampálidos e de pálpebras pesadas;pareciam prosaicos e entediadoscomose o máximo de seus desejosfosse carne fria ecerveja,seguidos imediatamente

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de cama.Rachel era uma das pessoas

que lhes suplicaram quecontinuassem. Quando serecusaram, ela começou a virar asfolhas da música de dança sobreo piano. Em geral as peças eramcobertas de capas coloridas, comfiguras de cenas românticas –gondoleiros sobre o crescente dalua,freiras espreitando através degrades de uma janela de conventoou jovens com cabelo solto,apontando uma arma para as

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estrelas. Ela lembrou que o tomgeral da música que tinhamdançado tão alegremente era dearrependimento apaixonado peloamor perdido e pelos inocentesanos de juventude; tristezashorríveis que sempre tinhamseparado os dançarinos de suafelicidade passada.

– Não admira que enjoem detocar uns troços desses

– comentou ela lendo umcompasso ou dois. – Sãorealmente hinos, tocados bem

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depressa, com pedaços deWagner e Beethoven.

A senhorita toca? Tocaria paranós? Qualquer coisa,desde quepossamos dançar! – De todos oslados insistiam no seu talentopara o piano, e ela teve deconsentir.Assim que tocara asúnicas peças de música de dançaque lembrava, passou a uma áriade uma sonata de Mozart.

Mas isso não é dança – dissealguém parado junto ao piano.

É sim – respondeu

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ela,balançando a cabeça.–Inventem os passos. – Certa desua melodia, ela marcavarudemente o ritmo, parasimplificar. Helen entendeu aidéia; pegou MissAllan pelobraço e girou pela sala, orafazendo mesuras, oragirando, oradando corridinhas para um lado eoutro como uma criança correndopor um campo.

Essa é a dança para gente quenão sabe dançar! – gritou ela. – Amelodia agora era um minueto; St.

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John saltitava com incrívelagilidade, ora sobre a pernaesquerda, orasobre a direita; amelodia fluía; Hewet, acenandoos braços e segurando as pontasda cauda de seu casaco, flutuavapeloaposento, imitando avoluptuosa dança sonhadora deumadonzela indiana dançandodiante do seu rajá. A melodiaerade marcha; Miss Allan avançoude saias infladas e fez umaprofunda mesura para o casal denoivos. Uma vez queseus pés

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caíam no ritmo, eles exibiam umatotal falta de pudor. De Mozart,Rachel passou sem parar a velhascanções de caça inglesas, cantosnatalinos e hinos religiosos,pois,como observara, qualquer boamelodia com um poucode arranjopodia ser dançada. Aos poucostodos no salãoestavam dandopassinhos e girando aos pares ousozinhos.Mr. Pepper executavaum engenhoso passo derivado demanobras de patinação, pelasquais outrora recebera algum

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prêmio, enquanto Mrs. Thornburytentava lembrar umavelha dançarural que vira os empregados deseu pai dançarem em Dorsetshire,nos velhos tempos. Quanto a Mr.e Mrs. Elliot, galopavam ao redorda sala com tamanhaimpetuosidade que os outrosdançarinos remiam quando seaproximavam. Algumas pessoascriticaram essa performancecomo uma travessura; outrasacharam tudo aquilo aparte maisdivertida da noite.

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– Agora,a grande roda! –gritou Hewet.Imediatamenteformou-se um círculo gigantesco,os dançarinos de mãos dadasgritando: “Você conhece JohnPeel” enquanto giravam mais emais depressa, até que a tensãoficou forte demais, um elo dacadeia – Mrs. Thornbury – cedeu,e o resto voou pela sala em todasas direções, acabando no chão ousobre as cadeiras, ou uns nosbraços dos outros, conformeparecesse mais

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conveniente.Erguendo-se dessasposições, arquejantes edescabelados, pareceu-lhes pelaprimeira vez que as lâmpadaselétricas estivessem muitopálidas, e instintivamente muitosolhos voltaram-se para as janelas.Sim... estava amanhecendo. Anoite passara enquanto dançavam,e chegara a madrugada. Lá fora,as montanhas apareciam muitoremotas e puras; o orvalhocintilava na relva, o céu estavapintado de azul, exceto pelo

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pálido amarelo e rosa no leste.Os dançarinos apinharam-se nasjanelas, abriram-nas,e aqui e aliarriscaram um passo na grama.

– Como parecem bobas aspobres lâmpadas! – disse EvelynM. num tom de voz curiosamenteabafado. – E nós mesmos; nãofica bem. – Era verdade; o cabelodesgrenhado e as pedraspreciosas verdes e amarelas quepareciam tão festivas meia horaatrás, agora pareciam baratas evulgares.A pele das senhoras

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mais idosas sofrera terrivelmentee,como se tivessem consciênciade um olho frio fixado nelas,começavam a dizer boa-noite e irpara a cama.

Rachel, embora privada de suaplatéia, continuara tocando parasi mesma.De John Peel passou aBach,que era então objeto degrande entusiasmo seu, e um a umalguns dos jovens dançarinosvoltaram do jardim e sentaram-senas cadeiras douradasabandonadas em torno do piano; a

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sala agora estava tão clara que asluzes foram apagadas. Sentaram-see ficaram à escuta,e seus nervosforam-se aquietando; o caloreirritação de seus lábios, resultadode incessante riso e fala,desapareceram. Sentavam-semuito quietos como se vissemumedifício com espaços e colunassucedendo-se no vazio.Depoiscomeçaram a ver a si próprios eas suas vidas, e todaa vidahumana avançando muitonobremente sob orientação da

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música. Sentiram-se enobrecidos,e quando Rachel paroude tocar sóqueriam dormir.

Susan levantou-se.– Acho que esta foi a noite

mais feliz de minha vida!– exclamou. – Eu realmente

adoro música – disse, quandoagradeceu a Rachel. – Parecedizer todas as coisas que nósmesmos não conseguimos dizer.Deu uma risadinha nervosa eolhou cada um com grandebenignidade, como se quisesse

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dizer alguma coisa mas nãoencontrasse palavras.Todo têmsido tão bondosos... tão bondosos– disse, e também foi para acama.

Depois de a festa terminardaquele modo bem abrupto emque as festas terminam, Helen eRachel pararam juntoda portacom seus mantos, procurando umacarruagem.

– Acho que as senhoraspeceberam que não há maiscarruagens? – disse St. John, que

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saíra para olhar. – Terão dedormir aqui.

– Ah, não – disse Helen. –Vamos andar.

– Podemos ir também? –perguntou Hewet. – Não podemosir para a cama. Imagine deitar-seentre travesseiros olhando para olavatório numa manhã comoesta... É ali que moram?

Tinham começado a descer aavenida, quando Hewet virou-see apontou a villa verde e brancana encosta do morro, que parecia

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estar de olhos fechados.– Aquilo não é uma luz acesa,

é?- perguntou Helen ansiosa.É o sol – disse St. John. As

janelas de cima tinham manchasde ouro.

Tive receio de que fosse meumarido, ainda lendo grego – disseela. – Todo esse tempo ele estáeditando Píndaro.

Passaram pela cidadezinha esubiram por um caminho íngreme,perfeitamente claro, embora aindabeirado de sombras. Em parte por

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estarem cansados, em parteporque a luz da manhã os vencia,quase não falavam, masrespiravam o delicioso ar fresco,que parecia pertencer a uma vidadiferente do ar do meio-dia.Quando chegaram ao alto muroamarelo onde a trilha se desviavada estrada, Helen quis despacharos dois rapazes.

– Já vieram longe o bastante –disse ela. – Voltem e vão

para a cama.Mas elespareciam não querer ir.

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– Vamos nos sentar por ummomento – disse Hewet.Eleestendeu seu casaco no chão. –Vamos nos sentar e pensar. –Sentaram-se e olharam a baía;estava muito quieta, o marvagamente enrugado, linhas deverde e azul começavam a cruzá-lo. Não havia ainda barcos àvela, mas um vapor estavaancorado na baía, fantasmagóricono nevoeiro; ele soltou um gritodesumano, e depois tudo ficousilencioso.

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Rachel ocupava-se pegandouma pedra cinzenta atrás da outrae construindo um pequeno marco;fazia isso muito calma ecuidadosamente.

– Então você mudou sua visãoda vida, Rachel? – disse

Helen. Rachel acrescentououtra pedrinha e bocejou.

Não me lembro – disse. –Sinto-me como um peixe no fundodo mar. – Bocejou de novo.Nenhuma daquelas pessoastinham qualquer poder de assustá-

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la ali fora ao amanhecer, e elasentia uma perfeita familiaridadeaté com Mr. Hirst.

Meu cérebro, ao contrário –disse Hirst – está numa atividadeanormal. – Sentava-se na suaposição favorita com os braçosprendendo as pernas e o queixopousado nos joelhos. – Vejoatravés de tudo... absolutamentetudo.A vida não tem maismistérios para mim. – Falava comconvicção, mas não pareciaquerer resposta. Embora se

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sentassem próximos e sesentissem familiarizados,pareciam meras sombras uns paraos outros.

E toda aquela gente aliembaixo vai dormir – Hewetcomeçou a devanear – pensandocoisas tão diferentes...MissWarrington, eu acho, agora estáajoelhada; os Elliot estão umpouco espantados, não é sempreque se agitam e só querem dormirdepressa; há aquele pobre moçomagro que dançou a noite toda

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com Evelyn; está pondo a sua florna água e perguntando-se: “Issoserá amor?”... e o pobre velhoMr. Perrott, atrevo-me a dizer quenão consegue dormir e está lendoseu livro grego favorito paraconsolar-se... e os outros... não,Hirst – rematou ele –, eu não achoisso nada simples.

– Eu tenho a chave – disseHirst enigmaticamente.Seu queixoainda estava sobre os joelhos, osolhos fixos em frente. Seguiu-seum silêncio. Então Helen

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levantou-se e deu-lhes boa noite.– Mas – disse ela –, lembrem-

se de que têm de vir nos visitar.Acenaram dando boa-noite esepararam-se, mas os doisrapazes não voltaram ao hotel,foram dar uma caminhada durantea qual pouco falaram e nãomencionaram os nomes das duasmulheres que, em grandeparte,eram objetos de seuspensamentos. Não queriampartilhar suas impressões.Voltaram ao hotel a tempo de

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tomarem o café da manhã.

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Havia muitos aposentados, navilla mas um possuía um caráterpróprio porque a porta estavasempre fechada, nenhum som demúsica ou riso jamais saíadele.Todo mundona casa sabiavagamente que algo aconteciaatrás da portae, sem saber do quese tratava, seus própriospensamentoseram influenciadospor saberem que, se passarem porela,aquela porta estaria fechada e,se fizessem ruído, Mr. Ambrose

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lá dentro seria perturbado. Porisso certos atostinham mérito eoutros eram ruins, assim a vida setornava mais harmoniosa e menosdesconectada do que teria sido seMr. Ambrose tivesse desistido deeditar o Píndaro e assumido umaexistência nômade, entrando esaindo de todas as peças da casa.Na verdade todo mundo estavaconsciente de que observandocertas regras como pontualidadeesilêncio, cozinhando bem,realizando outras pequenas

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tarefas, uma ode após a outraseria satisfatoriamente devolvidaao mundo, e assim partilhavam dacontinuidade da vidado erudito.Infelizmente, assim como a idadeergue umabarreira entre sereshumanos, e a instrução outra, e osexo uma terceira, Mr. Ambroseem seu estúdio ficavaalgunsmilhares de quilômetros dedistância do seu mais próximoserhumano, que nessa casa erainevitavelmente uma mulher. Elesentava-se agora após horas entre

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livros de folhasbrancas, sozinhocomo um ídolo numa igreja vazia,quieto exceto pela passagem desua mão de um lado para outrodafolha, silencioso pelo eventualrisinho contido que o levavaaestender o cachimbo no ar por ummomento. Enquantoseguiatrabalhando e penetrando mais emais no coraçãodo poeta, suacadeira ficava rodeada por umaparede cadavez mais alta delivros abertos no chão, que sópodia serultrapassada com um

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cuidadoso processo de passos,tão delicado que seus visitantesem geral paravam e lhe falavamde fora dela.

Na manhã seguinte ao baile,entretanto, Rachel entrou noaposento do tio e o chamou duasvezes, “Tio Ridley”,antes que elelhe desse atenção.

Finalmente ele olhou por cimados óculos. – Sim? – perguntou.

– Eu quero um livro –respondeu ela. – A História doImpério Romano de Gibbon.

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Posso? Ela observou as linhas norosto do tio reorganizaremsegradualmente diante de suapergunta. Antes de ela ter falado,o rosto era liso como umamáscara.

– Por favor, diga isso de novo– disse seu tio, ou porque nãoouvira, ou porque não entendera.

Ela repetiu as mesmaspalavras e corou levemente.

– Gibbon! Mas por que vocêhaveria de querer esse livro? –indagou ele.

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– Alguém me aconselhou a ler– gaguejou Rachel.

– Mas eu não viajo por aí comuma coleção variada dehistoriadores do século XVIII! –exclamou seu tio. – Gibbon! Pelomenos dez grandes volumes.

Rachel disse que sentia muitoter interrompido e se virou parasair. – Pare! – gritou seu tio. Elelargou o cachimbo, pôs de lado olivro, ergueu-se e a levoulentamente pelo aposento,segurando-a pelo braço. – Platão!

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– dis-se, colocando um dedo noprimeiro de uma fila de livrinhospretos – e Jorrocks ao lado, o queestá errado. Sófocles, Swift.Acho que você não se interessapor comentaristas alemães. Então,franceses. Você lê francês? Devialer Balzac. Depois chegamos aWordsworth e Coleridge. Pope,Johnson, Addison, Wordsworth,Shelley,Keats. Uma coisa leva aoutra. Porque Marlowe está aqui?Mrs. Chailey, imagino. Mas deque adianta a leitura se você não

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lê grego? Afinal, se lesse grego,jamais precisaria ler nada alémdisso, pura perda de tempo... puraperda de tempo – e assim falavaquase num monólogo,movimentando as mãosrapidamente; voltaram ao círculode livros no chão, e issointerrompeu seu avanço.

– Bem – disse ele –, qualserá?

Balzac – disse Rachel, ou temo Discurso sobre a revoluçãoamericana, tio Ridley?

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O Discurso sobre a revoluçãoamericana? – perguntou ele.Encarou-a novamente de formamuito penetrante. – Outro rapazno baile?

– Não, foi Mr. Dalloway –confessou ela.

– Santo Deus! – ele jogou acabeça para trás, lembrando-sede Mr. Dalloway.

Ela escolheu por si mesma umvolume ao acaso, apresentou-o aotio, que, vendo que se tratava deLa cousine Bette, mandou que o

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jogasse fora se o achasse horríveldemais; ela já ia deixá-lo quandoele indagou se gostara do seubaile.

Depois quis saber o que aspessoas faziam em bailes,pois sófora a um baile há 35 anos,quando nada lhe parecera maissem sentido e mais idiota.Gostavam de girar e girarenquanto o violino arranhava?Falavam, diziam coisas bonitas, ese faziam isso, por que não ofaziam em situação mais sensata?

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Quanto a ele próprio –suspirou e apontou os sinais detrabalho espalhados ao seu redor,o que, apesar do suspiro, encheuseu rosto de um súbitocontentamento, a ponto desuasobrinha achar melhor sair.Depois de um beijo ela tevepermissão de ir, mas não antes deter prometido aprender o alfabetogrego e devolver seu romancefrancês quando terminasse,depoisdo que encontrariam algo maisadequado para ela.

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Como os aposentos em que aspessoas vivem podem provocarem parte o mesmo choque queseus rostos vistos pela primeiravez, Rachel desceu as escadasmuito devagar, perdida empensamentos sobre seu tio, seuslivros, o fato de ele nunca ir abailes e sua visão esquisita davida,totalmente inexplicável masaparentemente satisfatória,quandoseu olho foi atraído por umbilhete com seu nome no saguão.O endereço estava escrito numa

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letra pequena e forte,desconhecida, e o bilhete, semcomeço, dizia:

“Estou enviando o primeirovolume de Gibbon comoprometi.Pessoalmente tenhopouco a dizer sobre os modernos,mas vou lhe mandar Wedekindquando o tiver concluído. Donne?A senhorita leu Webster e todoaquele grupo?Invejo-a porque vailê-los pela primeiravez.Completamenteexaustodepois da noite passada. E a

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senhorita?”O floreio de iniciais, que ela

imaginou serem St.J.A.H.,encerrava a carta. Ficou muitolisonjeada pelofato de Mr. Hirstter se lembrado dela e cumprirsuapromessa tão rapidamente.

Ainda faltava uma hora para oalmoço, e com Gibbonem umamão e Balzac na outra ela saiupelo portão e desceua trilhazinhade barro batido entre oliveiras naencosta do morro. Estava quentedemais para subir os morros, mas

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novale havia árvores e umavereda de relva ao longo do leitodo rio. Naquele país onde apopulação se centralizava nascidades era possível afastar-se dacivilização em poucotempo,passando só por eventuaisgranjas onde as mulhereslidavamcom raízes vermelhas nopátio, ou por um menininhodeitado sobre os cotovelos naencosta rodeado por umrebanhode cabras de cheiro forte.Exceto por um fio de água

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nofundo, o rio era meramente umfundo canal de pedras amarelassecas. Na margem cresciamaquelas árvores que Helendisseravalerem toda a viagem. Abrilfizera desabrocharemseus botõese grandes flores ostentavam entresuas lustrosasfolhas verdes, compétalas de uma grossa substânciaparecida com cera em belascores: creme, rosa ou vermelhoprofundo. Mas cheia de umadaquelas exaltaçõesirracionaisque geralmente

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começam sem causa conhecida earrebatam em seu braço países ecéus inteiros, ela caminhava semnadaver. A noite ultrapassava oslimites do dia. Seus ouvidospulsavam com as melodias quetocara na noite anterior;elacantou, e cantar fazia-acaminhar mais e mais depressa.Nãovia distintamente o lugaraonde estava indo, as árvores eapaisagem aparecendo apenascomo montes de verde e azul,comeventual esboço de céu de várias

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cores. Rostos de pessoas que virana noite anterior apareceram àsua frente; ouviu suas vozes;parou de cantar e começou arepetir coisas oudizê-las de jeitodiferente, ou inventar coisas quepoderiamter sido ditas. Oconstrangimento de estar entreestranhosnum vestido de sedacomprido tornava inusitadamenteexcitante caminhar assimsozinha.Hewet,Hirst,Mr.Venning,MissAllan, a música, a luz, as árvoresescuras no jardim, oamanhecer –

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enquanto ela andava continuavamgirandodentro de sua cabeça, umfundo tumultuado do qual opresente momento, com suaoportunidade de fazer exatamenteo que queria, destacava-semaravilhosamente, mais vivodoque na noite anterior.

Assim ela podia ter caminhadoaté perder toda a noção do seucaminho não fosse uma árvoreque, embora não crescesse nomeio da trilha, impediu-a, comose os galhoslhe tivessem batido

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no rosto. Era uma árvore comum,mas pareceu-lhe tão estranhacomo se fosse a única árvoredomundo. O tronco era escuro nomeio, e os ramos saltavam aqui eali deixando intervalosrecortados de luz, tão nítidoscomo se tivessem brotado dochão naquele momento.Depois deuma visão que ficara com ela avida toda, e elapreservaria aquelemomento, a árvore mergulhoumais umavez na fileira comum deárvores, e ela foi capaz de sentar-

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se à sua sombra apanhando asflores vermelhas com finas folhasverdes que cresciam debaixodela. Colocou-as lado alado, florcom flor e caule com caule,acariciando-asporque,caminhando sozinha,floreseatépedrinhas na terra tinham suaprópria vida e disposição,evocando as sensações deumacriança para quem tinham servidode companheiras.Erguendo osolhos, sua visão foi atraída pelalinha dasmontanhas lançada

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energicamente através do céucomo olaço de uma chibataretorcida. Ela fitou o distante céupálido e os locais altos e nussobre os topos dasmontanhasexpostos ao sol.Quando se sentou, largou oslivros na terraa seus pés e baixouos olhos para eles, ali deitados,tão quadrados sobre a relva, umtalo alto inclinando-se eacariciando a macia capa marromde Gibbon, enquanto o Balzacdeum azul salpicado jazia

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despido ao sol. Sentindo queabrire ler seria certamente umaexperiência surpreendente,elavirou a página do historiador eleu que:

“Seus generais, na primeiraparte de seu reinado, tentaramreduzir a Etiópia e a ArábiaFelix. Marcharam quase1500quilômetros ao sul do trópico;mas o calor do climaem breverepeliu os invasores e protegeu ospacíficos nativos daquelasregiões seqüestradas... Os países

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do norte daEuropa dificilmentemereceriam os custos e ostrabalhosda conquista. Asflorestas e pantanais da Germâniaeram povoados por uma raçaintrépida de bárbaros, quedesprezavam a vida quandoprivada da liberdade.”

Nunca palavras lhe tinhamparecido tão vivas e belas –Arábia Felix... Etiópia. Mas nãoeram mais nobres do que asoutras, bárbaros intrépidos,florestas e pantanais.Pareciam

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abrir estradas até os primórdiosdo mundo em cujos lados ospovos de todos os tempos epaíses se postavam em avenidas;passando por elas todo oconhecimentoseria dela; e o livrodo mundo voltaria atrás, até aprimeirade todas as páginas.Estava tão excitada com aspossibilidades de conhecimentoque agora se abriam diante dela,quedeixou de ler; e uma brisavirando a página fez a capadoGibbon farfalhar docemente,

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fechando-se. Então ela selevantou de novo e continuouandando. Devagar suacabeçaficou menos confusa eprocurou as origens de suaexaltação,que eram duas epodiam ser limitadas com algumesforçoàs pessoas de Mr. Hirst ede Mr. Hewet. Qualquer análiseclara deles era impossível,devido à aura de assombro naqualestavam envolvidos. Ela nãopodia raciocinar sobreeles comosobre pessoas cujas emoções

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seguiam as mesmasregras que asdela, e sua mente detinha-se sobreeles comuma espécie de prazerfísico, como o que é causadopelacontemplação de coisasbrilhantes penduradas ao sol.Delasparecia irradiar-se toda avida; as palavras dos livrosestavam envoltas em brilho.Assim ela começou a serperseguida por uma suspeita deque ela estava tão relutante emenfrentar que gostou de tertropeçado sobre o capim,

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poisassim sua atenção sedispersava, mas num segundoconcentrara-se outra vez.Inconscientemente ela caminharamais e mais depressa, seu corpotentando correr mais que amente;mas agora estava no topode um pequeno outeiro queseerguia acima do rio e expunha ovale. Não conseguia maisjogarcom várias idéias, mas precisavalidar com a mais persistente, euma espécie de melancoliasubstituiu sua excitação. Sentou-

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se na terra, agarrando os doisjoelhos juntos, eolhou em frentesem ver. Por algum tempoobservou umagrande borboletaamarela que abria e fechava suasasasmuito lentamente sobre umapedra chata.

– O que é estar apaixonada? –perguntou depois de longosilêncio; cada palavra ao surgirlançava-se num mardesconhecido. Hipnotizada pelasasas da borboleta, e aterrorizadapela descoberta de uma terrível

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possibilidade na vida, ela ficousentada mais algum tempo.Quando a borboleta voou,afastando-se, ela se ergueu, e comseus dois livros debaixo do braçovoltou para casa novamente,comoum soldado preparado para umabatalha.

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O sol daquele mesmo diabaixando, a penumbra foisaudada, com sempre no hotel,com um instantâneo brilho delâmpadas elétricas. As horasentre o jantar e a cama eramsempre difíceis de passar, e nanoite seguinte ao bailecontinuavam disfarçadas pelaimpaciência da dissipação.Certamente, na opinião de Hirst eHewet, que se deitavam emlongas poltronas no meio do

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saguão com xícaras de café aolado e cigarros nas mãos, a noiteera inusitadamente enfadonha, asmulheres estavam inusitadamentemal-vestidas, os homensinusitadamente enfatuados. Maisque isso, quando fora distribuídaa correspondência meia horaatrás, não houvera cartas paranenhum dos dois jovens. Comopraticamente todo mundorecebera duas ou três gordascartas da Inglaterra, que agoraestavam lendo, aquilo pareceu

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duro de suportar, e levou Hirst afazer o comentário cáustico deque os animais tinham sidoalimentados. Disse que o silênciodeles lhe recordava o silêncio dajaula dos leões quando cada ferasegura um naco de carne cruaentre as patas. Estimulado poressa comparação ele prosseguiu,comparando alguns ahipopótamos, outros a canários,outros a porcos, alguns apapagaios e alguns a repulsivosrépteis enroscados em torno de

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corpos semi-apodrecidos deovelhas. Os sons intermitentes –ora uma tosse, ora um horrívelpigarro, ora um fragmento dediálogo – são exatamente o que seescuta ao se parar junto da jaulados leões quando estãomastigando os ossos, disse ele.Mas essas comparações nãoinstigaram Hewet, que depois deum olhar desinteressado peloaposento, fixou os olhos numfeixe de lanças nativas tãohabilmente arranjado que

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apontava para a gente nãoimportando por que lado alguémse aproximasse. Era claro que elese esquecera do ambiente; eHirst, percebendo que a mente deHewet estava totalmente vazia,fixou melhor sua atenção sobre asoutras criaturas na sala. Estavalonge demais delas para escutar oque diziam, porém divertiu-seconstruindo pequenas teorias arespeito das mesmas, extraídas deseus gestos e aparência.

Mrs. Thornbury recebera

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muitas cartas. Estava totalmenteconcentrada nelas. Quandoterminava uma página,passava-aao marido, ou lhe dava o sentidodo que estava lendo, numa sériede breves citações unidas por umsom no fundo da garganta.

– Evie escreve que George foia Glasgow. “Ele acha Mr.Chadbourne uma pessoa muitosimpática para se trabalhar, eesperamos passar o Natal juntos,mas eu não gostaria de levarBetty e Alfred para muito longe

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(não, é certo),embora seja difícilimaginar tempo frio neste calor,... Eleanor e Roger vieram na suanova carruagem...Eleanor pareciamais ela mesma do que quando avi no inverno. Ela agora passouBaby para três mamadeiras, oque, tenho certeza, é uma coisasábia. (Eu também tenho certeza),e assim consegue noitesmelhores... Meu cabelo ainda estácaindo. Encontro cabelo notravesseiro! Mas fico contentecom notícias de Tottie Hall

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Green... Muriel está em Torquaydivertindo-se enormemente embailes.Afinal ela vai mostrar oseu pug preto”... Uma linha deHerbert – tão ocupado, coitado!Ah, Margaret diz: “A pobre Mrs.Fairbanks morreu no dia oito, derepente, na estufa, só uma criadana casa, que não teve presença deespírito para levantá-la, o que aspessoas pensam que poderia tê-lasalvo, mas o médico diz que amorte poderia ter vindo aqualquer momento, e apenas se

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pode agradecer por ter sido nasua casa e não na rua (eu tambémacho!).Os pombos aumentaramterrivelmente, exatamente comoos coelhos há cinco anos... –Enquanto ela lia seu maridoficava balançando a cabeça bemde leve, mas regularmente, emsinal de aprovação.

Perto dali, Miss Allan estavatambém lendo suas cartas. Nãoeram todas agradáveis, como sepodia ver pela vaga rigidez quecobrira seu grande e bonito rosto

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quando terminou de ler e asrecolocou cuidadosamente nosenvelopes. Linhas depreocupação e responsabilidadefaziamna parecer antes um homemidoso do que uma mulher.Ascartas lhe traziam notícias dofracasso da colheita de frutas doano passado na Nova Zelândia, oque era um assunto sério, poisHubert, seu único irmão, vivia deuma granja de frutas, e sefracassasse de novo, naturalmenteele jogaria tudo para o alto e

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voltaria para a Inglaterra, e o quefariam com ele desta vez? Aviagem até ali, que significava aperda de um semestre de trabalho,tornava-se uma extravagância, enão as justas e maravilhosasférias que lhe eram devidasdepois de 15 anos dando aulas ecorrigindo trabalhos sobreliteratura inglesa. Emily, suairmã, que também era professora,escrevera: “Devíamos estarpreparadas, embora eu não tenhadúvida de que desta vez Hubert

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vai ser mais razoável”. Depoiscontinuava no seu jeito sensato adizer que estava tendo umperíodo muito alegre nos Lagos.“Estão extraordinariamentebonitos agora. Raramente vi asárvores tão adiantadas nestaépoca do ano. Almoçamos foravários dias. A velha Alice estátão jovem quanto antes, perguntaafetuosamente por todo mundo.Os dias passam muito depressa, eem breve recomeçarão as aulas.As perspectivas políticas não são

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boas, eu acho, mas não gosto deabafar o entusiasmo de Ellen.Lloyd George defendeu o projetode lei, mas tantos fizeram issoantes dele, e vejam onde estamos;espero estar enganada. Seja comofor, temos nosso trabalhoplanejado... Certamente Meredithnão tem o toque humano que agente aprecia em W.W.” concluíaela e passava a discutir algumasquestões de literatura inglesa queMiss Allan propusera em suaúltima carta.

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A pouca distância de MissAllan, numa cadeira sombreada esemi-oculta por um grosso tufo depalmeiras,Arthur e Susan estavamlendo as cartas um do outro. Osgrandes manuscritos floreados dejovens jogadoras de hóquei emWiltshire estavam sobre osjoelhos de Arthur, enquanto Susandecifrava pequenas letrasapertadas, que raramente enchiammais que uma página, sempredando amesma impressão de umabenevolência animada e jocosa.

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– Espero realmente que Mr.Hutchinson goste de mim, Arthur– disse ela erguendo os olhos.

– Quem é a sua afetuosa Flo?– perguntou Arthur.

– Flo Graves... a moça dequem lhe falei, que estava noivadaquele medonho Mr. Vincent –disse Susan. – Mr.Hutchinson écasado? – perguntou.

Sua mente já se ocupava complanos benevolentes para suasamigas, ou melhor, um planomagnífico que também era

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simples – todas iriam se casar deuma vez assim que ela voltasse.Casamento, casamento, era acoisa certa a se fazer, a únicacoisa, a solução exigida paratodos os que ela conhecia, egrande parte de suas meditaçõesdedicava-se a lembrar ascircunstâncias de desconforto,solidão, doença, ambição nãosatisfeita, inquietação,excentricidade,pegando coisas elargando-as de novo, falar empúblico,atividade filantrópica da

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parte de homens, e especialmentede mulheres, porque queriam secasar, estavam tentando se casar enão conseguiam casar-se. Se,como ela tendia a acreditar, essessintomas às vezes persistemdepois do casamento, ela sópodia atribuí-los a uma lei infelizda natureza que decretava quehavia só um Arthur Venning e sóuma Susan para se casar com ele.Naturalmente sua teoria tinha omérito de ser plenamente apoiadapor seu próprio caso. Ela estivera

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vagamente desconfortável emcasa por um ou dois anos, e umaviagem como aquela com suavelha tia egoísta que pagava suapassagem mas a tratava comocriada e companheira era umexemplo do tipo de coisa que aspessoas esperavam dela. Assimque ficou noiva, Mrs. Paley seportou com instintivo respeito,protestou até quando Susan seajoelhou como sempre paraamarrar seus sapatos, pareciarealmente grata por uma hora da

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companhia de Susan, quandoestivera habituada a exigir duasou três como um direito seu. Porisso ela previa uma vida de muitomais conforto do que aquela a queestava acostumada, e a mudançatornava muito mais cálidos seussentimentos para com outraspessoas.

Fazia agora quase 20 anos queMrs. Paley não conseguia amarrarseus sapatos, nem ao menosenxergá-los,tendo odesaparecimento de seus pés

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coincidido mais ou menos com amorte de seu marido, homem denegócios.Pouco depois de suamorte Mrs. Paley começou aengordar. Era uma velha egoísta,independente, tinha ganhosconsideráveis, que gastavacuidando de uma casa queprecisava de sete criadas e umafaxineira em Lancaster Gate, eoutra casa com jardim e cavalosde carruagem em Surrey.Onoivado de Susan aliviava-a dagrande inquietação de sua vida –

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que seu filho Christopher se‘enrolasse’ com a prima. Agoraque essa fonte familiar deinteresse fora removida, ela sesentia um pouco deprimida, einclinava-se a ver em Susan maisdo que costumara ver. Decidiradarlhe um belo presente decasamento, um cheque de200,250, ou possivelmente,provavelmente – dependia daconta do ajudante de jardineiro ede Huth pela reforma da sala deestar –, até 300 libras esterlinas.

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Ela pensava exatamente nessaquestão, calculando ascifras,sentada na sua cadeira derodas com uma mesa coberta decartas ao lado. O baralho depaciência estava bastantemisturado, e ela não queriachamar Susan para ajudar, poisSusan parecia ocupada comArthur.

“Ela tem todo o direito deesperar um belo presente de mim,claro”, pensava Mrs. Paley,olhando vagamente o leopardo

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empalhado nas patas traseiras, “enão tenho dúvida de que esperamesmo! Todo mundo gosta dedinheiro.Os jovens são muitoegoístas. Se eu fosse morrer,ninguém sentiria minha falta, sóDakyns, e ela se consolaria commeu testamento! Mas não tenhomotivos para me queixar... Aindaposso me divertir. Não sou fardopara ninguém... Gosto bastante demuitas coisas, apesar das minhaspernas.”

Mas, estando um pouquinho

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deprimida, passou a pensar nasúnicas pessoas que conhecera quenão lhe tinhamparecido egoístasnem ávidas por dinheiro, que lhetinhamparecido de alguma formamais refinadas do que ogeral;pessoas, reconheceu de boavontade, que eram mais finasdoque ela mesma. Havia somenteduas. Uma era seu irmão, que seafogara diante de seus olhos,outra uma mocinha, sua maioramiga, que morrera dando à luz oprimeirofilho. Essas coisas

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tinham acontecido há uns 50 anos.“Eles não deviam ter

morrido”, pensou. “Masmorreram, e nós, velhas criaturasegoístas, continuamos aqui.”Aslágrimas lhe vieram aos olhos;sentia uma verdadeira saudadedeles, uma espécie de respeitopor sua juventude e beleza, e umaespécie de vergonha de si mesma;mas as lágrimas não caíram; elaabriu um daqueles inumeráveisromances que costumava julgarbons ou ruins, ou bastante

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medíocres ou realmentemaravilhosos. “Não sei como éque as pessoas imaginam coisasassim” costumava dizer,tirandoseus óculos e erguendo seusvelhos olhos desbotados, quecomeçavam a adquirir círculosesbranquiçados.

Logo atrás do leopardoempalhado Mr. Elliot jogavaxadrez com Mr. Pepper.Naturalmente estava sendoderrotado, pois Mr. Pepper quasenão tirava os olhos do tabuleiro, e

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Mr. Elliot ficava recostado paratrás na cadeira fazendocomentários com um cavalheiroque chegara na noite anterior, umhomem alto e bonito, a cabeçaparecendo a de um intelectual.Depois de alguns poucoscomentários de natureza geral,estavam descobrindo queconheciam algumas pessoas emcomum, o que ficara óbvio desdeque se tinham visto, pela suaprópria aparência.

Ah, sim, o velho Truefit –

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disse Mr. Elliot. – Tem um filhoem Oxford. Muitas vezes mehospedei com eles. Umalindavelha casa no estilo jacobino. UnsGreuzes muito bonitos... uma ouduas pinturas holandesas que ovelho guardava nos porões.Também havia pilhas e maispilhas de gravuras. Ah, a sujeiradaquela casa! Ele era umavarento,você sabe. O rapazcasou-se com uma filha de LordPinwells.Também os conheço.Amania de colecionar ten-de a

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repetir-se nas famílias. Essehomem coleciona fivelas...devemser fivelas de sapatos masculinos,usados entre 1580e 1660; as dataspodem não ser exatas mas o fato écomo eudisse. O verdadeirocolecionador sempre tem umaexcentricidade desse tipo.Noutros pontos ele é tãocomumquanto um criador devacas, o que por acaso é suaprofissão.Então, os Pinwells,como você provavelmente sabe,também têm suas excentricidades.

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Lady Maud, por exemplo...aquiele foi interrompido pelanecessidade de analisar suajogada – Lady Maud tem horror agatos, sacerdotes e pessoas comdentes frontais grandes. Eu aescutei gritar do outro lado damesa. “Fique de boca fechada,Miss Smith;eles são amareloscomo cenouras!”. Isso à mesa,imagine.Comigo ela sempre foieducadíssima. Mexe comliteratura,gosta de reunir algunsde nós na sua sala de estar, mas

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mencione um padre, um bispo, atéo próprio arcebispo, e elacomeçaa gorgolejar como um peru.Disseram-me que é uma briga defamília... algo ligado a umantepassado noreinado de CarlosI. Sim – continuou ele, sofrendoum xeque depois do outro –, eugosto de saber coisas sobreasavós dos nossos jovenselegantes. Na minha opinião,elespreservam tudo o queadmiramos no século XVIII, comavantagem, na maioria dos casos,

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de serem pessoalmente asseados.Não que se fosse insultar LadyBarborough dizendo que éasseada. Hilda – chamou suaesposa –, quantasvezes SuaSenhoria toma banho?

– Eu não gostaria de dizer,Hugh – respondeu Mrs. Elliotcom um risinho abafado. – Masusando veludo roxo mesmo nosmais quentes dias de agosto, nãose nota.

– Pepper, você me venceu-disse Mr. Elliot. – Meu xadrez é

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pior do que eu lembrava. – Eleaceitou sua derrota com grandeequanimidade, porque o querealmente queria era falar.Depoisempurrou sua cadeira ao lado deMr. Wilfred Flushing, o recém-chegado.

– O senhor vende tudo isso? –perguntou apontando para umestojo na frente deles,ondecrucifixos,jóias altamentepolidas, peças de bordado eobras de nativos estavamexpostos.

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– Tudo falsificado – disse Mr.Flushing, lacônico. – Mas essamanta não está nada ruim. – Eleinclinou-se e pegou uma parte damanta a seus pés. – Não éantiga,claro, mas o desenho estáconforme a tradição. Alice,empreste-me seu broche. Vejam adiferença entre trabalho antigo enovo.

Uma senhora que lia muitoconcentrada soltou o seu broche edeu-o ao marido sem olhar paraele nem para a tentativa de

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mesura que Mr. Elliot queria lhefazer. Se ela tivesse escutadopoderia ter se divertido com areferência à velha LadyBarborough, sua tia-avó, mas,esquecida de onde estava,continuou lendo.

O relógio que há algunsminutos sibilava como um velhopreparando-se para tossir, bateunove horas. O som perturbou deleve alguns sonolentos homens denegócios,pessoal do governo ehomens de posses recostados em

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suas poltronas, conversando,fumando, ruminando sobre seusassuntos, olhos semicerrados;eles levantaram suas pálpebrasum instante ouvindo as batidas efecharam-nas de novo. Pareciamcrocodilos tão repletos por suaúltima refeição que o futuro domundo não lhes dava a menoransiedade. A única perturbaçãona sala plácida e iluminada foiuma grande mariposa quedisparava de lâmpada emlâmpada, zumbindo por cima de

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penteados elaborados, fazendovárias jovens erguerem as mãosnervosas,exclamando:

– Alguém tem de matá-la!Absorvidos em seus própriospensamentos, Hewet e

Hirst não falavam há bastantetempo.Quando o relógio bateu,Hirst disse:

Ah, as criaturas começam amover-se... – Observouaslevantando-se de seus lugares,olhando em torno e sentando-sede novo. – O que eu mais detesto

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– concluiu é o seio feminino.Imagine ser Venning e ter de irpara a cama com Susan! Mas acoisa realmente repulsiva é queelas não sentem absolutamentenada... mais ou menos o que sintoquando tomo um banho quente.São grosseiras,são absurdas, sãoabsolutamente insuportáveis!

Dizendo isso, sem obterresposta de Hewet, ele continuoupensando em si mesmo, naciência, em Cambridge,noTribunal, em Helen e no que ela

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pensaria dele, até que,muitocansado, começou a cabecear ecochilar.

De repente, Hewet despertou-o.

Como é que você sabe o quesente, Hirst?

Você está apaixonado? –perguntou Hirst colocando omonóculo.

– Não seja bobo – respondeuHewet.

– Bem, vou pensar nisso –disse Hirst. – Nós realmente

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devíamos. Se ao menos essaspessoas aí pensassem, o mundoseria um lugar bem melhor parase viver. Está tentando pensar?

Era exatamente isso queHewet estivera fazendo na últimameia hora, mas naquele momentonão achou que Hirst estivessesendo compreensivo.

Vou dar um passeio – disseHewet.

Lembre-se de que ontem ànoite não fomos dormir – disseHirst com um bocejo

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prodigioso.Hewet levantou-se eesticou o corpo.

– Quero caminhar e respirarum pouco – disse.Um sentimentoinusitado o estivera incomodandoa noite toda, impedindo-o deseguir qualquer linha depensamento. Era exatamente comose estivesse no meio de umaconversa que lhe interessasseprofundamente e alguém viesseinterrompê-la. Não conseguiaterminar a conversa, e quantomais ficava ali sentado mais

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queria concluí-la. Como odiálogo interrompido tivesse sidocom Rachel, indagava-se por quesentia isso e por que queriacontinuar falando com ela. Hirstteria dito apenas que estavaapaixonado por ela. Mas nãoestava. Amor começava assim,com o desejo de continuarconversando? Não. No caso dele,sempre começava com sensaçõesfísicas definidas, que nãoaconteciam desta vez. Haviaalguma coisa, inusitada claro, em

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relação a ela – erajovem,inexperiente, indagadora,tinham sido mais francos um como outro do que era possívelhabitualmente. Ele sempre achavainteressante falar com moças, eessa era uma boa razão paraquerer continuar falando com ela;e na noite passada, com amultidão e a confusão, ele apenasconseguira começar um diálogo.O que estaria ela fazendo agora?Deitada num sofá olhando o teto,quem sabe? Podia imaginá-la

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fazendo isso, Helen numapoltrona com as mãos no braço dapoltrona, assim – olhando emfrente com aqueles olhos enormes–, não, não, estariamconversando, claro, sobre o baile.Mas, e se Rachel partisse por umdia ou dois, e se fosse o fim desua visita, e seu pai tivessechegado num dos vaporesancorados na baía? – erainsuportável saber tão poucosobre ela. Por isso, Hewetexclamou:

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– Como é que você sabe o quesente, Hirst? – para impedir-se depensar.

Mas Hirst não o ajudou, e asoutras pessoas, com seusmovimentos despropositados esuas vidas desconhecidas,eramperturbadoras, de modo queansiava por uma escuridão vazia.A primeira coisa que buscouquando saiu da porta do salão foia luz da villa dos Ambrose.Quando decidiu finalmente queuma luz apartada das outras mais

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acima no morro era a luz deles,ficou bem mais tranqüilo.Pareciahaver de repente um pouco deestabilidade na sua incoerência.Sem qualquer plano definido namente, ele dobrou à direita eatravessou a cidade, chegando atéo muro onde as estradas seencontravam, e parou. Ouvia-se obramido do mar. A massa azul-escura das montanhas erguia-sediante do azul mais pálido do céu.Não havia lua, mas miríades deestrelas e as luzes ancoradas

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acima e abaixo das escuras ondasde terra ao seu redor. Ele quisvoltar, mas a luz isolada da villados Ambrose se transformara emtrês luzes separadas, e ficoutentado a prosseguir.Podiaverificar se Rachel ainda estavalá. Caminhando depressa, logochegou junto do portão de ferrodo jardim deles e empurrou-o; ocontorno da casa subitamenteapareceu nítido diante de seusolhos, com a fina coluna davaranda atravessando o cascalho

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palidamente iluminado doterraço. Ele hesitou. Alguém faziaruído com latas nos fundos dacasa. Aproximou-se da frente; aluz no terraço mostrava que assalas de estar ficavam daquelelado. Parou o mais próximo daluz que podia, no canto da casa,as folhas de uma hera roçando seurosto. Depois de um momentoouviu uma voz. A voz prosseguiufirme; não era uma conversa, maspela continuidade do som era umavoz lendo em voz alta. Ele

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esgueirou-se um pouco maisperto; juntou as folhas para quenão farfalhassem em torno de suasorelhas. Podia ser a voz deRachel. Saiu da sombra e entrounos raios de luz; então ouviu umafrase nitidamente pronunciada:

– E lá vivemos do ano de1860 a 1895, os anos mais felizesda vida de meus pais, e lá em1862 meu irmão Maurice nasceu,para encanto de seus pais, eestava destinado a ser o encantode todos os que o conhecessem.A

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voz corria e o tom tornou-seconclusivo, erguendo-se de leve,como se as palavras fossem o fimde um capítulo.Hewet recuoupara a sombra. Houve um silêncioprolongado. Ele ouviu cadeirassendo empurradas lá dentro.Quasedecidiu voltar,quando derepente duas figuras apareceramnajanela, a menos de dois metrosde onde ele estava.

– Foi de Maurice Fielding, éclaro, que sua mãe esteve noiva –disse a voz de Helen. Falava em

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tom pensativo,olhando para ojardim escuro, evidentementepensando tanto na aparência danoite quanto no que dizia.

– Mamãe? – disse Rachel. Ocoração de Hewet saltou, e elenotou isso. A voz dela, emborabaixa, estava cheia de surpresa.

– Você não sabia? – disseHelen.

– Eu nem sabia que tinhahavido outra pessoa – disseRachel. Sua surpresa eraevidente, mas tudo o que diziam

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era baixo e inexpressivo, porqueestavam falando na fria noiteescura.

– Ela teve mais apaixonadosdo que qualquer outra pessoa queconheci – afirmou Helen. –Tinha... esse poder ela saboreavaas coisas. Não era linda, mas...pensei nela ontem à noite duranteo baile. Ela sabia lidar com todotipo de pessoas e tornava tudo tãosurpreendentemente... divertido.

Parecia que Helen ia voltar aopassado, escolhendo palavras

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deliberadamente, comparandoTheresa com as pessoas queconhecera depois que elamorrera.

Não sei como ela fazia isso –prosseguiu e calou-se;houve umalonga pausa, em que umacorujinha gritou,primeiro aqui,depois ali, movendo-se de árvoreem árvore no jardim.

É bem típico de tia Lucy e tiaKatie – disse Rachel por fim.Elas sempre me disseram que elaera muito triste e muito boa.

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Mas então por que, pelo amorde Deus, elas sempre acriticavam quando era viva? –disse Helen. Suas vozes soavammuito docemente, como seatravessassem as ondas do mar.

– Se eu fosse morrer amanhã...– começou ela.

As frases interrompidastinham uma extraordinária belezae distanciamento aos ouvidos deHewet, e uma espéciede mistériotambém, como se estivessemfalando no sono.

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Não, Rachel – exclamou a vozde Helen. – Não vou caminhar nojardim; está úmido... certamenteestá úmido;além disso vi pelomenos uma dúzia de sapos.

Sapos? São pedras, Helen.Venha. Está mais bonito fora. Asflores estão perfumadas –respondeu Rachel.

Hewet recuou ainda mais. Seucoração pulsava muito depressa.Aparentemente Rachel tentavapuxar Helen para o terraço eHelen resistia. Houve uma porção

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de ruídos de insistência,resistência e risadas das duas.Então apareceu o vulto de umhomem. Hewet não conseguiaouvir o que todos diziam. Logoentraram; ele pôde ouvirferrolhos trancando portas;depois baixou um silêncio mortal,e todos as luzes se apagaram.

Ele afastou-se, aindaamassando e desamassando umpunhado de folhas que arrancarada parede. Um delicadosentimento de prazer e alívio o

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dominou; era tudo tão sólido epacífico depois do baile no hotel,quer ele estivesse apaixonado porelas ou não, e não estavaapaixonado por elas; não, mas erabom estarem vivas.

Depois de ficar quieto umminuto ou dois, ele virou-se ecomeçou a andar em direção aoportão. Com o movimento do seucorpo, a excitação, o romance e ariqueza da vida torvelinhavam emseu cérebro. Gritou um verso,mas as palavras lhe escapavam, e

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tropeçou entre versos efragmentos de versos que nãotinham nenhum significado senãoa beleza das palavras. Fechou oportão e correu cambaleando deum lado a outro morro abaixo,gritando qualquer insensatez quelhe ocorresse.

– Aqui estou! – gritavaritmicamente, enquanto seuspésbatiam no chão à esquerda e àdireita. – Avançando comoumelefante na seiva, arrancandogalhos enquanto sigo

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(eleapanhava galhinhos de umarbusto à beira docaminho),berrando incontroláveispalavras, correndo morro abaixoefalando bobagens alto para mimmesmo a respeito de estradas efolhas e luzes e mulheres saindopara a escuridão...sobremulheres... sobre Rachel, sobreRachel.

Ele parou e respirou fundo. Anoite parecia imensa eacolhedora, e embora estivessetão escuro, parecia haver coisas

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movendo-se lá embaixo no portoe no mar lá fora.Ele ficou olhandoaté a escuridão o deixarembotado; então seguiu andandorapidamente, ainda murmurandopara si mesmo:

– E eu devia estar na cama,roncando e sonhando, sonhando,sonhando. Sonhos e realidades,sonhos e realidades, sonhos erealidades – repetiu todo ocaminho subindo a avenida, quasesem saber o que dizia, até chegarà porta da frente.Lá parou por um

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segundo e controlou-se antes deabrir a porta.

Seus olhos estavamaturdidos,as mãos muito frias,seucérebro excitado e mesmo assimsemi-adormecido. Dentro de casatudo estava como deixara, excetoo saguão,que estava vazio. Haviacadeiras voltadas umas para asoutras onde as pessoas tinham sesentado conversando,coposvazios sobre mesinhas e jornaisespalhados no chão.Quandofechou a porta sentiu-se

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aprisionado numa caixa quadrada,e imediatamente murchou. Eratudo muito pequeno e muito claro.Parou por um minuto junto damesa comprida para procurar umjornal que andara querendo ler,mas ainda estava demasiadoinfluenciado pela escuridão epelo ar puro para refletirexatamente qual era o jornal eonde o vira.

Enquanto remexia vagamenteos jornais, viu com o rabo doolho uma figura passar, descendo

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as escadas.Ouviu um farfalhar desaias, e para sua grande surpresaEvelyn M. veio até ele, pousou amão na mesa como para evitarque ele apanhasse um jornal, edisse:

– O senhor é exatamente apessoa com quem eu que-ria falar.– Sua voz era um pouquinhodesagradável emetálica, seusolhos muito brilhantes, e ela osmantinha fixos em Hewet.

– Falar comigo? – repetiu ele.– Mas estou quase dormindo.

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– Mas acho que o senhorentende melhor que a maioria daspessoas – respondeu ela e sentou-se numa cadeirinha junto de umagrande poltrona de couro, demodo que Hewet teve de sentar-se ao lado dela.

– Então? – disse ele,bocejando abertamente,acendendo um cigarro. Não podiaacreditar que aquilo estavarealmente lhe acontecendo. – Doque se trata?

– O senhor realmente está

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interessado, ou é só pose? –indagou ela.

– A senhora é que vai dizer –respondeu ele. – Acho que estouinteressado. – Ainda se sentiaembotado e parecia-lhe que elaestava próxima demais.

– Qualquer um pode estarinteressado! – exclamou ela.

– Seu amigo Mr. Hirst estáinteressado, suponho. Masacredito no senhor. Tem cara deter uma irmã simpática.Ela fezuma pausa, apanhando umas

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lantejoulas em seu regaço, eentão, como se tivesse tomadouma decisão, começou:

– Seja como for, vou lhe pedirum conselho. O senhor algumavez entrou num estado em que nãoentende mais sua própria mente?Eu estou me sentindo assim. Sabe,na noite passada, no baile,Raymond Oliver, o rapaz alto emoreno que parece ter sangueíndio... bem, estávamos sentadosjuntos lá fora e ele me contourealmente tudo a respeito de si

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mesmo, de como é infeliz em casae como odeia estar aqui.Colocaram-no num trabalhohorrível, de minas. Ele diz que éhorrível... Sei que eu gostaria,mas isso não é nem aqui nem lá. Etive muita pena dele, não se podiadeixar de ter pena, e quando eleme perguntou se podia me beijareu deixei. Não vejo nenhum malnisso, e o senhor? E então estamanhã ele disse que achava queeu queria dizer mais alguma coisae que eu não era o tipo de mulher

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que deixa qualquer um lhe dar umbeijo. E falamos muito. Atrevo-me a dizer que fui muito boba,mas não dá para evitar de gostarde pessoas quando se tem penadelas. Eu gosto terrivelmentedele... – Ela fez uma pausa. –Então lhe fiz uma meia promessa,e depois, sabe,existe AlfredPerrott.

– Ah, o Perrott – disse Hewet.– Ficamos nos conhecendo no

piquenique outro dia – continuouela. – Parecia tão

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solitário,especialmente quandoArthur se afastou com Susan, enão se podia deixar de adivinharo que se passava na sua mente.Então tivemos uma conversabastante longa quando vocêsestavam olhando as ruínas, e eleme contou tudo sobre sua vida,sua lutas e de como tudo foraterrivelmente difícil. Sabe, ele foimensageiro numa mercearia ecarregava os embrulhos daspessoas para a casa delas numcesto. Isso me interessou

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sobremaneira, pois sempre digoque não importa como se nasce,desde que se tenha material bompor dentro. Ele me falou da irmãparalítica, pobre mocinha, podese ver que é uma grandeprovação, embora eleevidentemente lhe seja muitodevotado. Devo dizer que admiropessoas assim! Não espero queadmire, pois o senhor é tão culto.Bem, na noite passada nossentamos juntos lá fora no jardim,e não pude deixar de ver o que

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ele queria dizer,de consolá-lo umpouquinho dizendo-lhe que meimportava com ele... e realmenteme importo... só que agora existeRaymond Oliver. O que quero queo senhor me diga é: pode-se estarapaixonado por duas pessoas aomesmo tempo, ou não?

Ficou calada, sentada com oqueixo nas mãos, parecendomuito concentrada,como seenfrentasse um problema real quetivessem de discutir.

– Acho que depende do tipo

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de pessoa que se é – disse Hewet,e encarou-a. Era pequena ebonita, talvez com 28 ou 29 anos,mas embora belas e bem feitas,suas feições não expressavamnada muito claramente, excetouma grande dose de animação eboa saúde.

– Quem é a senhorita, o que éa senhorita? Veja, não sei nada aseu respeito – continuou ele.

– Bem, era disso que eu iafalar – disse Evelyn M. aindacom o queixo apoiado nas mãos e

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olhando em frente com atenção. –Sou filha de mãe solteira, se issolhe interessa. Não é uma coisamuito boa. Acontece sempre nointerior. Ela era filha de umfazendeiro, e ele era um bonitão...o rapaz da casa grande. Nunca fezas coisas direito... nunca se casoucom ela... embora nos dessebastante dinheiro. Sua família nãodeixava. Pobre papai! Não possodeixar de gostar dele. Mas mamãenão era mesmo o tipo de pessoaque pudesse satisfazê-lo. Foi

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morto na guerra.Acho que seushomens o adoravam. Dizem queno campo de batalha alguns deseus comandados, homensenormes, choraram sobre seucorpo. Eu queria tê-lo conhecido.Mamãe perdeu toda a vontade deviver. O mundo... – ela fechou opunho. – Ah, as pessoas podemser horríveis com uma mulherdessas! – Virou-se para Hewet. –Bem,quer saber mais a meurespeito?

Mas, e a senhorita? –

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perguntou ele. – Quem tomavaconta da senhorita?

Em geral eu cuido de mimmesma – riu ela. – Tive amigosesplêndidos. Eu gosto de gente!Esse é o problema. O que faria osenhor se gostasse tremendamentede duas pessoas ao mesmo tempoe não pudesse dizer de qual gostamais?

– Eu continuaria gostandodelas... e esperaria para ver o queia acontecer. Por que não?

– Mas é preciso decidir-se –

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disse Evelyn. – Ou o senhor éuma dessas pessoas que nãoacreditam em casamento e tudoisso? Olhe... isso não é justo, euconto tudo,e o senhor não meconta nada. Quem sabe o senhor éigual ao seu amigo... – ela olhou-o, cheia de suspeitas. – Talveznão goste de mim.

– Eu não a conheço – disseHewet.

– Eu sei quando gosto de umapessoa no primeiro instante! Naprimeira noite no jantar soube que

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gostava do senhor. Ah! meu Deus– continuou impaciente –, quantoaborrecimento seria poupado seas pessoas dissessem francamenteas coisas que pensam. Eu souassim. Não posso fazer nada.

– Mas não acha que isso causaproblemas? – perguntou Hewet.

– Isso é um erro dos homens –respondeu ela. – Eles sempreforçam isso... no amor, querodizer.

– E assim a senhorita teve umaproposta atrás da outra

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– disse Hewet.– Acho que não recebi mais

propostas do que a maioria dasmulheres – disse Evelyn, mas semconvicção.

– Cinco, seis, dez? – arriscouHewet.

Evelyn pareceu calcular quedez talvez fosse a cifra certa, masque isso não era realmente grandecoisa.

– Acho que está me julgandouma flertadora sem coração

– protestou ela. – Mas não me

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importa. Não me importocom oque os outros pensem de mim. Sóporque a gente seinteressa,querser amiga dos homens e fala comeles como sefala com mulheres,já nos chamam de flertadoras.

Mas, Miss Murgatroyd...Queria que me chamasse de

Evelyn – interrompeu ela.– Depois de dez propostas,

sinceramente ainda pensa que oshomens são iguais às mulheres? -Sinceramente, sinceramente...como odeio essa palavra! Sempre

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é usada por grandes pedantes –exclamou Evelyn. – Sinceramenteeu acho que deviam ser. É issoque é tão decepcionante. Semprese pensa que não vai acontecer, esempre acontece.

– A busca da amizade – disseHewet. – Título de uma comédia.

– O senhor é terrível – gritouela. – Não se importa com nada.O senhor parece Mr. Hirst.

– Bem – disse Hewet –, vamospensar. Vamos pensar...– ele fezuma pausa, pois no momento não

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podia lembrarsobre o que é quedeviam pensar. Estava bem maisinteressado nela do que na suahistória, pois enquanto ela falavaoembotamento dele desaparecia,consciente de uma misturadeafeto, piedade e desconfiança. –A senhorita prometeuse casar comos dois, Oliver e Perrott? –concluiu ele.

– Não exatamente – disseEvelyn. – Não posso decidirsobre qual realmente gosto mais.Ah, como detesto a vida moderna!

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– disparou ela. – Deve ter sidotão mais fácil para oselisabetanos! Outro dia namontanha pensei como gostaria deter sido um desses colonizadores,derrubando árvores, fazendo leise tudo isso, em vez de ficar mefazendo de boba com essa genteque só pensa que eu sou apenasuma moça bonitinha. Embora eunão seja. Eu realmente poderiarealizar alguma coisa. – Elarefletiu em silêncio por umminuto, depois disse:

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– Bem no fundo do coraçãotenho medo de que Alfred Perrottnão sirva. Ele não é forte, é?

– Talvez ele não conseguissederrubar uma árvore – disseHewet. – A senhorita nuncagostou de ninguém?

– Gostei de montes depessoas, mas não para me casar

– disse ela. – Acho que souexigente demais. Toda a vida euquis alguém que pudesse admirar,alguém grande, alto,esplêndido.Os homens em geral são tão

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pequenos.– O que quer dizer com

esplêndido? – perguntouHewet. – As pessoas são o

que são... nada mais.Evelyn ficouperplexa.

– Nós não gostamos daspessoas pelas suas qualidades

– tentou explicar Hewet. –Gostamos apenas delas – eleacendeu um fósforo –, só isso –concluiu apontando para aschamas.

– Entendo o que quer dizer –

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disse ela –,mas não concordo. Eusei por que gosto das pessoas, eacho que dificilmentemeengano.Vejo imediatamente o quehá dentro delas.Achoque o senhordeve ser esplêndido; mas não Mr.Hirst.Hewet sacudiu a cabeça.

– Ele não é nem de longe tãoaltruísta, tão simpático,tão grandeou tão compreensivo – continuouEvelyn.

Hewet ficou sentado, quieto,fumando seu cigarro. – Eu odiariaderrubar árvores – comentou.

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– Não estou tentando flertarcom o senhor, embora ache quepensa que estou! – disparouEvelyn. – Nunca oteria procuradose pensasse que apenas pensacoisasodiosas a meu respeito! –Seus olhos encheram-se delágrimas.

– A senhorita nunca flerta? –perguntou ele.

– Claro que não – protestouela. – Eu não lhe disse? Queroamizade; quero gostar de alguémmaior e mais nobre do que eu; se

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se apaixonam por mim não éculpa minha; eu não quero isso;odeio isso, na verdade.Hewet viuque adiantava pouco continuarcom aquele diálogo, pois eraóbvio que Evelyn não queriadizer nada em particular, masimpor-lhe uma imagem de simesma,por estar, por algummotivo que não revelava, infelizou insegura. Ele estava muitocansado, e um garçom pálidoficava caminhandoostensivamente até o centro da

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sala, olhando significativamentepara eles.

– Estão querendo fechar –disse Hewet. – Meu conselho éque a senhorita conte a Oliver ePerrott, amanhã,que decidiu nãose casar com nenhum dos dois.Estou certo de que não quermesmo. Se mudar de idéia,sempre poderá lhes dizer isso. Osdois são homens sensatos; vãocompreender. E então todo esseseu aborrecimento vai passar. – Elevantou-se.

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Mas Evelyn não se mexeu.Ficou sentada erguendo paraeleseus olhos brilhantes e ansiosos,no fundo dos quais ele pensoudetectar um pouco de decepçãoou insatisfação.

– Boa noite – disse ele.– Ainda há montes de coisas

que eu queria lhe dizer – disseela. – E um dia vou dizer. Imaginoque o senhor tenha de ir para acama agora? – Sim – disseHewet. – Estou quase dormindo...– Deixou-a ainda sentada sozinha

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no saguão vazio.– Por que será que elas não

querem ser honestas? –resmungava, subindo as escadas.Por que relações entre pessoasdiferentes eram tãoinsatisfatórias,fragmentárias,tãoarriscadas, e as palavras tãoperigosas que o instinto desimpatizar com outro ser humanodevia ser cuidadosamenteexaminado e provavelmenteesmagado? O que Evelynrealmente desejava dizer-lhe? O

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que sentia agora,sozinha nosaguão vazio? O mistério da vidae a irrealidade de nossas própriassensações o dominaram quandoele descia pelo corredor quelevava ao seu quarto. Estava maliluminado, mas o suficiente paraver uma figura num robe coloridopassar rapidamente na sua frente,o vulto de uma mulher passandode um quarto a outro.

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15

Sejam frágeis demais ou muitovagos, os laços que unem aspessoas que se encontram poracaso num hotel à meianoitepossuem uma vantagem, pelomenos, em relação aoslaços queunem os mais velhos, que, umavez juntos, têm deviver juntos avida inteira. Podem ser frágeis,mas são vivos egenuínos,meramente porque o poder derompê-los está ao alcance detodos, e não há motivo para

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continuar, exceto umverdadeirodesejo de que continuem. Quandoduas pessoasestão casadas háanos, parecem tornar-seinconscientes dapresençacorporal uma da outra, de modoque se movemcomo se estivessemsozinhas,falam alto coisas quenão esperam resposta, e em geralparecem experimentar todo oconforto do isolamento sem asolidão.As vidas unidas deRidleye Helen haviam chegado aesse estágio de comunhão,e

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muitas vezes era necessário queum ou outro lembrasse comesforço se uma coisa forapronunciada ou apenaspensada,partilhada ou sonhada emparticular. Às quatro datarde,dois ou três dias depois,Mrs. Ambrose estava escovandoseucabelo enquanto o maridoestava no quarto de vestircontíguo ao quarto dela;eventualmente, através docascatear daágua – ele lavava orosto – ela ouvia exclamações:

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– É assim, ano após ano; euqueria, queria poder acabar comisso – mas ela não dava atenção.

– É branco? Ou só castanho? –ela murmurava examinando umfio de cabelo que brilhava demodo suspeito entre os castanhos.Ela o arrancou e depositou notoucador. Criticava sua própriaaparência, ou antes aprovava-a,afastando-se um pouco doespelho e olhando seu rosto commajestoso orgulho e melancolia,quando seu marido apareceu na

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soleira, em mangas de camisa,rosto meio coberto por umatoalha.– Muitas vezes você mediz que não noto as coisas –comentou ele.

– Então me diga, isto é umcabelo branco? – respondeu ela, ebotou o cabelo na mão dele.

– Não há um só cabelo brancona sua cabeça – exclamou ele.

– Ah, Ridley, começo aduvidar – suspirou ela e inclinousua cabeça debaixo dos olhosdele para que pudesse avaliar,

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mas a inspeção apenas produziuum beijo na linha divisória doscabelos, e marido e mulherpassaram a mover-se pelo quartocom murmúrios casuais.

– O que é que você estavadizendo? – comentou Helendepois de um intervalo dodiálogo que nenhuma terceirapessoa teria entendido.

– Rachel... você devia ficar deolho em Rachel – comentou eleenfaticamente, e Helen, emboracontinuasse a escovar os cabelos,

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o encarou. Em geral oscomentários dele eramverdadeiros.

– Jovens cavalheiros não seinteressam pela instrução dejovens damas sem um motivo –comentou ele.

– Ah, Hirst – disse Helen.– Hirst e Hewet, para mim é

tudo a mesma coisa...todos muitosuspeitos – respondeu ele. – Ele aaconselha a ler Gibbon, vocêsabia disso? Helen não sabia,mas não admitiu ser inferior ao

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marido em poder deobservação.Então apenas disse:

– Nada me surpreenderia,mesmo aquele horrível homemvoador que encontramos nobaile... até Mr. Dalloway... até...

– Aconselho-a a sercircunspecta – disse Ridley. –Existe Willoughby, lembre-se...Willoughby – ele apontou parauma carta.

Helen olhou com um suspiropara um envelope sobre seutoucador. Sim, lá estava

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Willoughby, lacônico,inexpressivo, eternamente jocoso,retirando o mistério de todo umcontinente, perguntando pelasmaneiras e moral de sua filha –esperando que ela não osaborrecesse pedindo que adespachassem de volta a bordodo primeiro navio se os estivesseaborrecendo – e depois, grato eafetuoso, com emoção contida, edepois meia página sobre seuspróprios triunfos sobremiseráveis pequenos nativos que

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tinham feito uma greverecusando-se a carregar seusnavios, até ele berrar em inglês“metendo a cabeça fora da janelabem como estava, em mangas decamisa. Os mendigos tiveramjuízo bastante para sedispersarem”.

– Se Theresa se casou comWilloughby – comentou elavirando a página com um grampode cabelo não vejo o queimpediria Rachel...

Mas Ridley agora entregava-

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se a seus próprios aborrecimentosquanto à lavagem de suascamisas, o que o levou acomentar as freqüentes visitas deHughling Elliot, que era chato,pedante, um homem sem graça,mas Ridley não podiasimplesmente apontar a porta darua e mandá-lo embora. Averdade era que viam gentedemais. E assim por diante, eassim por diante, mais conversaconjugal mansa e ininteligível, atéestarem os dois prontos para

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descerem para o chá.A primeira coisa que chamou a

atenção de Helen quando desceua escada foi uma carruagem naporta,cheia de saias e plumasbalouçando em cima de chapéus.Teve apenas tempo de entrar nasala de estar antes de dois nomesserem terrivelmente malpronunciados pela criadaespanhola,e Mrs.Thornburyentrou um pouco à frente deMrs.Wilfrid Flushing.

– Mrs.Wilfrid Flushing – disse

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Mrs.Thornbury com um aceno. –Amiga de nossa amiga comum,Mrs. Raymond Parry.

Mrs. Flushing apertou a mãode Helen energicamente. Era umamulher de talvez 40 anos, muitobem posta e ereta, de umaesplêndida robustez, embora nãotão alta como fazia parecer suapostura ereta.

Fitou Helen diretamente norosto e disse:

– A senhora tem uma casaencantadora.

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Tinha um rosto bem marcado,os olhos fitavam os outrosabertamente, e embora fossenaturalmente imperiosa,eranervosa ao mesmo tempo. Mrs.Thornbury agiu como intérprete,suavizando as coisas com umasérie de encantadorescomentários banais.

– Mr. Ambrose – disse ela –,tomei a liberdade de pro-meterque o senhor teria a bondade dedar a Mrs.Flushing o benefício desua experiência. Tenho certeza de

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que ninguém conhece este país tãobem quanto o senhor. Ninguém dáessas longas caminhadasmaravilhosas. Tenho certeza deque ninguém tem o seuconhecimento enciclopédico detodos os temas.Mr.WilfridFlushing é um colecionador. Jádescobriu coisas realmentebelíssimas. Eu não tinha idéia deque os camponeses fossem tãoartísticos... embora naturalmente,no passado...

– Não coisas velhas... coisas

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novas – interrompeu Mrs.Flushinglaconicamente. – Isto é, quandoele aceita meu conselho.

Os Ambrose conheciam muitagente, pelo menos de nome, porterem vivido tantos anos emLondres, e Helen lembrou-se deter ouvido falar nosFlushing.Mr.Flushing tinha umaloja de móveis antigos, elesempre dissera que nunca secasaria porque a maioria dasmulheres tinha faces vermelhas eque não compraria uma casa

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porque casas em geral têmescadas estreitas, que não comiacarne porque a maioria dosanimais sangra ao serem mortos;depois casou-se com umaexcêntrica aristocrata, quecertamente não era lívida, quetinha ar de quem come carne eque o forçara a fazer todas ascoisas que ele mais detestava – eera essa a dama. Helencontemplou-a com interesse.

Tinham saído para o jardim,onde o chá era servido sob uma

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árvore, e Mrs. Flushing servia- sede geléia de cerejas. Quandofalava, seu corpo dava umsingular movimento brusco, quefazia a pluma amarelo-canário emseu chapéu saltar também. Suasfeições pequenas mas firmementemodeladas e vigorosas, com overmelho profundo de lábios efaces, indicavam muitas geraçõesde ancestrais bem treinados ebem nutridos antes dela.

– Eu não me interesso pornada que tenha mais de 20 anos –

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continuou ela. – Velhos quadrosembolorados, velhos livros sujos,ficam em museus onde só servempara serem queimados.

– Eu concordo – riu Helen. –Mas meu marido passa a vidadesenterrando manuscritos queninguém quer. – Ela diverte-secom a expressão de perplexareprovação de Ridley.

– Mas há um homeminteligente em Londres, chamadoJohn, que pinta muito melhor doque os velhos mestres –

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prosseguiu Mrs. Flushing. – Seusquadros me excitam... nada queseja velho me excita.– Mastambém os quadros dele serãovelhos um dia – interveio Mrs.Thornbury.

– Pois então vou mandar queos queimem, vou botar isso nomeu testamento – disse Mrs.Flushing.

– E Mrs. Flushing vivia numadas mais belas casas antigas daInglaterra... Chillingley –explicou Mrs. Thornbury aos

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demais.– Se eu pudesse fazer como

quero, mandaria queimála amanhã– riu Mrs. Flushing. Seu riso eracomo o pequeno grito de umpapagaio, surpreendente e semalegria.

– O que é que uma pessoasensata quer com uma dessascasas enormes? – perguntou. – Sese desce ao térreo depois deescurecer, fica-se coberto debesouros pretos, e a luz elétricaestá sempre apagando. O que

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fariam se saíssem aranhas datorneira quando abrissem a águaquente? – perguntou imperiosa,fixando o olhar em Helen.Mrs.Ambrose deu de ombros,sorrindo.

– É disso que eu gosto – disseMrs. Flushing, entortando acabeça em direção da villa. –Uma casinha num jardim. Umavez tive uma, na Irlanda. A gentepodia ficar deitado na cama demanhã e apanhar rosas na janelacom os dedos dos pés.

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– E os jardineiros não ficavamespantados? – indagou Mrs.Thornbury.

– Não havia jardineiros –disse Mrs. Flushing comumarisadinha. – Ninguém senãoeu e uma velha desdentada.Vocêssabem que na Irlanda os pobresperdem seus dentesdepois dos 20anos. Mas não se pode esperarque um político entenda isso...Arthur Balfour não entenderia.Ridley suspirou, dizendo quenunca esperava que ninguém

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entendesse nada, muito menospolíticos.

– Porém – concluiu ele –, háuma vantagem em ser muito,muito velho: nada mais importasenão comida e digestão. Tudo oque peço é que me deixem ficarmofando nasolidão. É obvio queo mundo está indo o maisdepressaque pode para o fundodo poço, e tudo o que posso fazeré sentar-me quieto e consumir omais possível minha própriafumaça. – Ele deu um gemido e

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com um olhar melancólicoespalhou geléia no pão, poisachava claramente poucosimpática a atmosfera daqueladama tão brusca...

– Sempre contradigo meumarido quando ele diz isso

– disse docemente Mrs.Thornbury. – Vocês homens! Ondeestariam se não fossem asmulheres?

– Leia o Symposium – disseRidley, carrancudo.

– Symposium? – exclamou

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Mrs. Flushing. – Isso é latim ougrego? Diga-me, existe uma boatradução?

– Não – disse Ridley. – Asenhora terá de aprendergrego.Mrs. Flushing exclamou:

– Ha,ha,ha! Prefiro quebrarpedras na estrada.Sempre invejoos homens que quebram pedra ese sentam o dia todo naquelesbelos montinhos usando óculos.Preferiria infinitamente quebrarpedras a limpar galinheiros oudar comida para as vacas, ou...

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Nisso Rachel subiu da parteinferior do jardim com um livrona mão.

Que livro é esse? – disseRidley após os cumprimentos.

É Gibbon – disse Rachelsentando-se.

– Declínio e queda doImpério Romano? – disse Mrs.Thornbury. – Um livromaravilhoso, eu sei. O meuquerido pai estava semprecitando o livro para a gente e porisso resolvemos nunca ler uma

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linha.– Gibbon, o historiador? –

indagou Mrs. Flushing. – Eu oligo a algumas das horas maisfelizes da minhavida.Costumávamos ficardeitados na cama lendo Gibbon...sobre os massacres dos cristãos,lembro-me disso... quandodevíamos estar dormindo. Não ébrincadeira, acreditem, ler umlivro enorme daqueles em duascolunas com um lampião e aclaridade que entra por uma fresta

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na porta. E havia as mariposas...mariposas-tigre, mariposasamarelas e horrendos besourosgrandes. Louisa, minha irmã,queria ficar de janela aberta. Euqueria fechá-la.Brigávamosterrivelmente todas as noites porcausa daquela janela. Já viramuma mariposa morrendo numlampião? – perguntou ela.

Novamente uma interrupção.Hewet e Hirst apareceram najanela da sala de estar eaproximaram-se da mesa de chá.

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O coração de Rachel bateumais depressa. Percebia umaextraordinária intensidade emtodas as coisas, como se apresença deles removesse algumacobertura da superfície dascoisas; mas os cumprimentosforam notavelmente triviais.

– Com licença – disse Hirsterguendo-se de sua cadeira assimque se sentara. Foi até a sala deestar e voltou com uma almofada,que colocou cuidadosamentesobre sua cadeira.

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– Reumatismo – comentou,quando se sentou pela segundavez.

– Resultou do baile? –perguntou Helen.

– Sempre que fico muitocansado tenho reumatismo –afirmou Hirst e dobrou seu pulsobem para trás. – Escutopedacinhos de giz moendo-se unsaos outros!

Rachel encarou-o. Achavaengraçado mas sentia respeito; seisso era possível, a parte superior

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de seu rosto parecia rir, e ainferior contestar esse riso.

Hewet apanhou o livro queestava no chão.

– Gosta disso? – perguntoucom um tom velado.

– Não, não gosto – respondeuela. Andara realmente tentandotoda a tarde ler o livro, e poralgum motivo a glória quepercebera no início se fora; pormais que lesse não conseguiaapanhar o sentido.

– Ele gira e gira e gira como

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um rolo de oleado – arriscou.Evidentemente queria que sóHewet ouvisse suas palavras, masHirst indagou:

– O que quer dizer com isso?Ela ficou imediatamente

envergonhada por sua figura delinguagem, pois não podiaexplicá-la numa crítica sóbria.

– Certamente é o mais perfeitoestilo que já foi inventado –continuou ele. – Toda frase épraticamente perfeita, e agraça...“Feio de corpo, repulsivo

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de mente”, pensou ela, em vez depensar no estilo de Gibbon. “Sim,mas de mente forte, perquiridora,obstinada.” Ela encarou suacabeça grande, com a testaocupando uma partedesproporcional,e os olhosseveros e diretos.

– Desisto da senhorita,pordesespero – disse ele.Falava semgravidade, mas ela o levou asério e acreditou que seu valorcomo ser humano diminuíraporque não admirava o estilo de

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Gibbon. Os outros agora falavamnum grupo sobre as aldeiasnativas que Mrs. Flushing deviavisitar.

– Eu também me desespero –disse ela, impetuosamente. –Como pode julgar pessoas apenaspelas suas mentes?

– Espero que a senhoritaconcorde com minha tiasolteirona – disse St. Johnnaquela sua maneira animada queera sempre irritante porque faziaa outra pessoa parecer

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indevidamente desajeitada egrave.

– “Seja boa, doce donzela”...pensei que Mr. Kingsley e minhatia estivessem obsoletos hoje emdia.

– Pode-se ser muito agradávelsem se ter lido um livro – afirmouela. Suas palavras soaram muitotolas e simplórias, e a expunhamao ridículo.

– Eu alguma vez neguei isso?– inquiriu Hirst arqueando assobrancelhas. Muito

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inesperadamente, Mrs. Thornburyinterveio nesse momento, ou porser sua missão manter as coisasandando suavemente, ou porquehá muito desejava falar com Mr.Hirst, sentindo como sentia querapazes eram sempre seus filhos.

– Eu vivi minha vida toda compessoas como sua tia,Mr. Hirst –disse ela inclinando-se parafrente em suacadeira. Seus olhoscastanhos brilhavam mais quedecostume. – Elas nunca ouviramfalar de Gibbon. Só se importam

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com seus faisões e seuscamponeses. Sãograndes homens,que ficam muito bem no lombo deumcavalo, como, imagino, oshomens no tempo dasgrandesguerras. Diga o que quisercontra eles... são animais, nãosãointelectuais; não lêem e nãoquerem que outrosleiam, mas sãodas melhores e mais bondosaspessoas daterra! O senhor ficariasurpreso com algumas dashistórias que eu poderia contar.Talvez nunca tenha pensadoem

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todos os romances que acontecemno interior. Sintoque lá estão aspessoas entre as quaisShakespeare renascerá, se nascerde novo. Naquelas casas bizarras,lá emcima, nos Downs...

– Minha tia – interrompeuHirst – passa sua vida em EastLambeth entre os pobresdegradados. Eu só a citei porqueela se inclina a perseguir pessoasque chama de “intelectuais”, oque suspeito que Miss Vinraceesteja fazendo. Está na moda

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agora. Se você é inteligente,sempre pensam que não temsimpatia, compreensão, afeto...todas as coisas que realmenteimportam. Ah, vocês, cristãos!São o grupo mais convencido,condescendente e hipócrita develhos impostores! Claro –continuou ele –, eu sou o primeiroa admitir que seus nobres ruraistêm grandes méritos. De um lado,provavelmente são bem francos arespeito de suas paixões, o quenós não somos. Meu pai,clérigo

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em Norfolk, diz que dificilmenteexiste um nobre rural que nãoseja...

– Mas, e Gibbon? –interrompeu Hewet. O ar detensão nervosa que cobrira todosos rostos relaxou com essainterrupção.

– Acho que você o consideramonótono. Mas, sabe... –ele abriuo livro e começou a procurartrechos para ler emvoz alta; empouco tempo encontrou um queconsiderouadequado. Mas não

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havia nada no mundo queentediasse Ridley mais do quealguém lendo em voz alta. Alémdissoele era escrupulosamentecrítico quanto a trajes ecomportamento de senhoras. Em15 minutos já fizera umjulgamento negativo em relação aMrs. Flushing, pois uma plumalaranja não combinava com suapele, ela falava alto demais,cruzava as pernas e, finalmente,quando a viu aceitarum cigarroque Hewet lhe oferecia, saltou de

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pé exclamando alguma coisasobre “defensores de salão’” eafastou-se. Mrs. Flushing ficouevidentemente aliviada com suapartida. Tirando baforadas de seucigarro, esticou as pernaseinterrogou Helen melhor sobre ocaráter e reputação de suaamigacomum, Mrs. Raymond Parry. Poruma série de pequenosestratagemas, levou-a a definirMrs. Parry como um tanto idosa,nada bonita, muito maquiada...uma velhabruxa insolente, em

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suma, cujas festas eram muitodivertidas porque nela seencontravam pessoas esquisitas,masHelen tinha pena do pobreMr. Parry, que se diziaficartrancado no andar de cimacom caixas de pedraspreciosas,enquanto sua esposa sedivertia na sala de visitas.

– Não que eu acredite no queas pessoas falam contra ela...embora naturalmente ela façainsinuações... e Mrs. Flushinggritou, deliciada:

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– Ela é minha prima-irmã...continue, continue!

Quando se levantou para sair,Mrs. Flushing estava obviamenteencantada com seus novosconhecidos. Fez três ou quatroplanos diferentes de encontros oupasseios,ou de mostrar a Helencoisas que tinham comprado,enquanto se dirigia para suacarruagem. Incluiu-os todos numconvite vago mas pomposo.

Quando Helen voltou ao seujardim, as palavras de aviso de

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Ridley voltaram à sua mente e elahesitou um momento, olhandopara Rachel sentada entre Hewete Hirst. Mas não conseguiu tirarconclusões, pois Hewet ainda liaGibbon em voz alta, e Rachel,pela sua expressão, podia ser umaconcha; as palavras dele, águaroçando em seus ouvidos, como aágua batendo numa concha nasuperfície de uma rocha.

A voz de Hewet era muitoagradável. Quando chegavaao fimda frase, parava e ninguém

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oferecia qualquer crítica.– Eu realmente adoro a

aristocracia! – exclamou Hirstdepois de um momento. – São tãoespantosamente inescrupulosos.Nenhum de nós se atreveria aportar-se como aquela mulher seportou.

– O que gosto neles – disseHelen quando se sentou – é quetêm tão bela postura. Nua, Mrs.Flushing seria soberba.Vestida dojeito que se veste, naturalmente éum absurdo.

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– Sim – disse Hirst, e umasombra de depressão cruzou seurosto.

– Eu nunca pesei mais do que63 quilos na vida, o que éridículo considerando minhaaltura; na verdade perdi pesodesde que cheguei aqui. Atrevo-me a dizer que isso explica oreumatismo. – Ele dobrounovamente o pulso bem para trás,de modo que Helen pudesse ouviro moer dos pedaços de giz. Elanão pôde evitar um sorriso.

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– Acredite, para mim não écoisa de se rir – protestou ele. –Minha mãe é uma inválidacrônica e estou sempre esperandoque me digam que também tenhouma doença cardíaca. No final,reumatismo sempre ataca ocoração.

– Pelo amor de Deus, Hirst –protestou Hewet –, alguémpoderia pensar que você é umvelho aleijado de 80 anos. Se forassim, tenho uma tia que morreude câncer,mas não ligo para isso.

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– Ele endireitou-se e começou abalançar a cadeira para a frente epara trás sobre as pernastraseiras. – Alguém aqui temvontade de dar uma caminhada?Há um passeio magnífico subindoatrás da casa. A gente chega a umpenhasco e vê o mar lá embaixo.Os rochedos são vermelhos;pode-se vê-los embaixo daágua.Outro dia vi uma coisa queme deixou quase sem respirar...cerca de 20 medusas,semitransparentes, rosadas,com

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longos filamentos, flutuandosobre as ondas.

– Tem certeza de que não eramsereias? – disse Hirst.

– Está quente demais parasubir o morro. – Ele olhou paraHelen, que mostrava sinais demexer-se.

– Sim, está quente demais –decidiu ela.Houve um brevesilêncio.

– Eu gostaria de ir – disseRachel.

“Mas ela podia de qualquer

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jeito ter dito isso”, pensouHelenquando Hewet e Rachel seafastaram juntos, e elaficousozinha com St. John, paraevidente satisfação deste.

Ele podia estar satisfeito, massua habitual dificuldade emdecidir qual assunto merecia serabordado o impediu de falar poralgum tempo. Sentava-se olhandofixamente a cabeça de um fósforoapagado, enquanto Helenmeditava – assim parecia pelaexpressão de seus olhos, sobre

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algo não intimamente ligado aomomento presente.

Finalmente St. John exclamou:– Droga! Tudo é uma droga!

Todo mundo é uma droga! –acrescentou. – Em Cambridge hágente com quem se pode falar.–Em Cambridge há gente comquem se pode falar – ecoou Helenrítmica e distraidamente. Entãodespertou.

– Por falar nisso, o senhor járesolveu o que vai fazer... vai aCambridge ou fará Direito?

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Ele torceu os lábios, mas nãorespondeu logo, pois Helen aindaestava um pouco desatenta. Elaestivera pensando em Rachel epor qual dos dois rapazes elaprovavelmente se apaixonaria, eagora, sentada diante deHirst,pensava: “Ele é feio. Umapena que sejam tão feios”.

Não incluiu Hewet nessacrítica; pensava nos rapazescultos, honestos e interessantesque conhecia, dos quais Hirst eraum bom exemplo, e imaginava se

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era necessário que pensamento eerudição sempre maltratassemassim seus corpos e elevassemsuas mentes a uma torre muitoalta, da qual a raça humana lhesparecia ratos e camundongoscontorcendo-se no chão.

“E o futuro?”, refletiu eladivisando vagamente uma raça dehomens que se tornariam cada vezmais parecidos com Hirst e umaraça de mulheres cada vez maisparecida com Rachel. “Ah, não”,concluiu, lançando-lhe um olhar,

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“ninguém se casaria com você.Portanto, o futuro da raça está nasmãos de Susan e Arthur, não...isso é terrível. De agricultores;não... não dos ingleses, mas derussos e chineses.” Essa linha depensamento não a satisfez, e foiinterrompida por St. John, querecomeçava:

Eu gostaria que a senhoraconhecesse Bennett. É o maiorhomem do mundo.

Bennett? – perguntou ela.Ficando mais à vontade,St. John

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deixou aquela rispidezconcentrada e explicou queBennett morava num velhomoinho a dez quilômetros deCambridge. Vivia uma vidaperfeita, segundo St.John, muitosolitário, muito simples,interessando-se apenas pelaverdade das coisas, sempredisposto aconversar,extraordinariamentemodesto, embora sua mente fosseuma das maiores.

A senhora não acha – disse St.

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John depois de descrevê-lo – queesse tipo de coisa faz aquele tipode coisa parecer frívola? Asenhora notou no chá como opobre velho Hewet teve de mudarde assunto? Como estavam todosdispostos a me malhar porqueachavam que eu ia dizer algumacoisa imprópria? E realmente nãoera nada.Se Bennett estivesseaqui, teria dito exatamente o quequeria dizer, ou teria se levantadoe ido embora. Mas é muito ruimpara a personalidade, quero dizer,

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quando não se tem apersonalidade de Bennett. Tendea deixar a gente amargo. Asenhora acha que sou amargo?

Helen não respondeu e eleprosseguiu:

– Naturalmente eu sou amargo,repulsivamente amargo, e é umacoisa abominável ser assim. Maso pior em mim é que sou muitoinvejoso. Invejo todo mundo. Nãosuporto gente que saiba fazercoisa melhor do que eu...coisasperfeitamente absurdas também...

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garçons equilibrando pilhas depratos... até Arthur, porque Susanestá apaixonada por ele. Queroque as pessoas gostem de mim,enão gostam. Espero que seja emparte minha aparência,emboraseja uma mentira dizer que tenhosangue judeu...na verdadeestamos em Norfolk, Hirst deHirstbourne Hall, pelo menos hátrês séculos. Deve serterrivelmente reconfortante sercomo a senhora... todo mundogostando da senhora

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imediatamente.– Asseguro-lhe que não é

assim – Helen riu.– É, sim – disse Hirst com

convicção. – Em primeiro lugar, asenhora é a mais bela mulher quejá vi; em segundo, tem umanatureza excepcionalmenteencantadora.

Se Hirst olhasse para ela emvez de olhar intensamente para axícara de chá, teria visto Helencorar, em parte por prazer, emparte por um impulsivo afeto pelo

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jovem que parecera e voltaria aparecer tio feio e tão limitado.Elasentia pena dele, pois suspeitavade que sofria, interessava-se porele, pois muitas das coisas queele dizia lhe pareciamverdadeiras; admirava a ética dajuventude, e mesmo assim sentia-se prisioneira. Como se o seuinstinto fosse escapar para algovivamente colorido e impessoalque pudesse segurar nas mãos, elaentrou na casa e voltou com seubordado. Mas Hirst não estava

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interessado no bordado dela; nemlhe lançou um só olhar.

Sobre Miss Vinrace –começou ele. – Ah, olheaqui,vamos ser St. John e Helen,e Rachel e Terence... que tal éela? Ela raciocina, sente, ou éapenas uma espécie de banquinhopara os pés?

Ah, não – disse Helen, muitodecidida. Por suas observaçõesdurante o chá duvidava que Hirstseria a pessoacerta para instruirRachel. Aos poucos começara a

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interessar-se pela sobrinha e agostar dela; algumas coisas nelaaaborreciam muito, outras adivertiam; mas de modogeralsentia-a como um serhumano vivo embora informe,experimental, e nem sempre felizem seus experimentos, mascompoderes de algum tipo ecapacidade de sentir. Em al-gumlugar lá no fundo, Helen estavaligada a Rachelpelosindestrutíveis emborainexplicáveis laços do seu sexo.

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Ela parece vaga, mas temvontade própria – disse ela,comose no intervalo tivesse avaliadosuas qualidades.

O bordado,que exigia seupensamento pelo desenho difícilepelas cores que precisavam dealguma análise,causava lapsosnodiálogo quando ela pareciaconcentrada em seus novelosdeseda ou, quando com a cabeçaum pouco recuada e osolhosestreitados, analisava oefeito geral. Por isso, ela apenas

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disse “Hum-hum” ao comentárioseguinte de St. John:

– Vou convidá-la para umpasseio comigo.

Talvez ele se ressentisse daatenção parcial dela.Sentou-secalado observando Helen mais deperto.

– Você está absolutamentefeliz – proclamou ele finalmente.

– O quê? – indagou Helen,enfiando a agulha.

– Suponho que seja ocasamento – disse St. John.

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– Sim – disse Helen,suavemente retirando a agulha.

– Filhos? – perguntou St. John.– Sim – disse Helen, enfiando

novamente a agulha. – Não seiporque sou feliz – de repente elariu, olhando direto nos seusolhos. Houve um considerávelintervalo.

– Há um abismo entre nós –disse St. John. Sua voz soou comose viesse das profundezas de umacaverna nos penhascos. – Você éinfinitamente mais simples do que

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eu. Naturalmente, as mulheressempre são. Esse é o problema.Nunca se sabe como uma mulherchega lá.Achamos que o tempotodo vocês estão pensando:“Ah,mas que rapazmórbido!”Helen ficou sentada,olhando para ele com a agulhanamão. De sua posição via a cabeçadele diante da pirâmide escura deuma magnólia. Com um péerguidosobre a trave de umacadeira e o cotovelo curvado napostura de quem costura, ela tinha

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a sublimidade deuma mulher domundo antigo tecendo o fio dodestino – a sublimidade de muitasmulheres da atualidadequeassumem a postura exigidapara esfregar ou costurar.St. Johnfitou-a.

– Acho que a senhora nuncafez um elogio em sua vida

– disse ele superficialmente.– Eu costumo mimar Ridley –

ponderou Helen.– Vou lhe fazer uma pergunta

bem franca, você gosta de mim?

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Depois de uma pausa elarespondeu:

Sim, sem dúvida.Graças a Deus! – exclamou

ele. – Já é uma graça.Sabe – continuou emocionado

–, prefiro o seu afeto ao dequalquer outra pessoa que jáconheci.

– E quanto aos cincofilósofos? – disse Helen com umarisada, bordando firme erapidamente a sua tela. – Eugostaria que os descrevesse para

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mim.Hirst não tinha muita vontadede descrevê-los , mas quandocomeçou a pensar neles sentiu-semais apaziguadoe mais forte.Longe como estavam, no outrolado do mundo, em aposentosenfumaçados e tribunaismedievais cinzentos, pareciamfiguras notáveis, homens francoscomquem podia sentir-se àvontade; incomparavelmentemaissutis nas emoções do que aspessoas ali. Certamente lhedavamo que mulher alguma podia lhe

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dar, nem mesmo Helen.Aquecendo-se à lembrança deles,continuou a expor seu própriocaso diante de Mrs. Ambrose.Deveria ficarem Cambridge ou irao Tribunal? Um dia ele pensavaumacoisa; noutro dia, outra.Helen escutava atentamente. Porfim, sem nenhuma preferência, eladeu sua decisão.

– Deixe Cambridge e vá aoTribunal – disse. Ele quis saberos motivos. – Acho que vocêgostaria mais de Londres.

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Não parecia um motivo muitosutil, mas ela pareciajulgá-losuficiente. Helen encarou-o diantedo fundo damagnólia emflor.Havia algo de curioso nessavisão.Talvezfosse pelas pesadasflores parecendo cera, tão maciase inarticuladas, e seu rosto – elejogara longe o chapéu, seu cabeloestava desgrenhado, segurava osóculos na mão de modoqueaparecia a marca vermelha dosdois lados do nariz – estava bempreocupado e falante. Era um

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lindo arbusto estendendo-se muitoamplamente, e todo o tempo quepassara ali sentada conversandonotara as manchas de sombra, aforma das folhas e como asgrandes flores brancasestavaminstaladas no meio do verde.Notara isso meioinconscientemente, mas mesmoassim esse padrão tornara-separteda sua conversa. Largou obordado e começou a andar de umlado para o outro do jardim, eHirst também selevantou e

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caminhou ao lado dela. Estavabastante perturbado e pensativo.Nenhum deles falava.

O sol começava a pôr-se, e asmontanhas estavam mudando,como se lhes tivessem roubadosua substância terrena e fossemcompostas apenas de uma imensanévoa azul. Longas e tênuesnuvens cor de flamingo, combeiradas como as de penas deavestruz, enroscadas pelo céu emvárias altitudes. Os telhados dacidade pareciam mais baixos do

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que de costume, os ciprestespareciam muito negros entre ostelhados, e estes estavamcastanhos e brancos. Comosempre ao anoitecer, gritos etoques de sinos isoladoschegavam bem nítidos lá debaixo.

De repente St. John parou:– Bem, você tem de assumir a

responsabilidade – disse ele. –Eu decidi: vou trabalhar noTribunal. Sua palavras erammuito sérias, quase comovidas;

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depois de um segundo dehesitação, Helen lembrou-se.

– Tenho certeza de que vocêestá fazendo o que é certo – disseafetuosamente, e apertou a mãoque ele estendia. – Você vai serum grande homem, estou certadisso.

Então, como para fazê-lo olharo cenário, ela fez umgesto com amão por toda a imensacircunferência dapaisagem. Domar, sobre os telhados da cidade,atravésda crista de montanhas,

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sobre o rio e a planície, enovamente sobre a crista dasmontanhas, a mão deslizou atéchegar à villa, o jardim, amagnólia, os vultos de Hirst eelamesma parados juntos, e depoisdescaiu ao lado dopróprio corpo.

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16

Há muito tempo Hewet eRachel haviam chegado ao lugarna beira do penhasco onde,olhando para o mar abaixo,avistaram-se medusas e delfins.Olhando para o outrolado, a vastaextensão de terra dava-lhes umasensação que nenhuma paisagemna Inglaterra oferecia, por maisvastaque fosse;lá as aldeias emorros com nomes,e o maisdistante horizonte de morrosquase sempre mergulhados e

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mostrando uma linha nevoentaque era o mar; aqui a paisagemerade uma infinita terra ressequidade sol, terra em pináculospontudos, amontoada em vastasbarreiras, terra alargando-se maise mais como o imenso assoalhodo mar, terra contrastada pelo diae pela noite, partida em diversospaíses,onde se fundavam cidadesfamosas e as raças de homensmudavam de selvagens escurospara brancos civilizados enovamente para selvagens

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escuros.Talvez seu sangue inglêstornasse essa perspectivadesconfortavelmente impessoalehostil, pois tendo uma vezvoltado o rosto para aquelelado,logo o voltaram para o mar,e ficaram o resto do temposentados olhando para ele. O mar,embora fosse ali uma águafina ecintilante parecendo incapaz derompantes de ira,eventualmenteestreitava-se, nublava o seu azulpuro com cinza, escorria porestreitos canais, e disparava num

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tremorde águas fragmentadascontra as maciças rochas degranito.Era esse mar que corriaaté à boca do Tâmisa; e oTâmisalavava as raízes da cidadede Londres.

Os pensamentos de Hewettinham seguido mais ou menosesse curso, pois a primeira coisaque disse quando se postaram nabeira do penhasco foi:

– Eu gostaria de estar naInglaterra!

Rachel deitou-se apoiada no

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cotovelo e partiu os talos decapim altos que cresciam nabeira, para poder ter avistadesimpedida.A água estavamuito calma,balançava na basedorochedo, tão clara que se podiaver o vermelho das pedras nofundo. Assim fora no nascimentodo mundo, e assim continuavadesde então. Provavelmentenenhum ser humano jamaisrompera essas águas com barcoou com seucorpo. Obedecendo aum impulso, ela decidiu

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quebraraquela eternidade de paze jogou a maior pedra quepôdeencontrar. Ela bateu na água,e as ondulações se espalharammais e mais. Hewet também olhoupara baixo.

– É maravilhoso – ele disseenquanto as ondulações seespraiavam e cessavam. Ofrescor e a novidade parecerammaravilhosos. Ele jogou tambémuma pedra. Quase não se ouviunenhum som.

– Mas a Inglaterra – murmurou

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Rachel no tom absorto de alguémcujos olhos se concentravamnuma paisa-gem. – O que quercom a Inglaterra?

– Principalmente meus amigos– disse ele –, e todas as coisasque se fazem lá.

Hewet podia olhar paraRachel sem que ela notasse.Aindaestava absorvida pela água epelas sensações extremamenteagradáveis que o mar poucoprofundo banhandoas pedrassugere. Percebeu que ela estava

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usando um vestido azul-escuro,de fino tecido de algodão, que seprendia àsformas do seu corpo.Era um corpo com ângulos ecavidades de um corpo de mulherjovem, ainda nãodesenvolvido,mas também nãodistorcido, e por isso interessantee até adorável. Erguendo osolhos, Hewet observou suacabeça;ela tirara o chapéu, e orosto pousava em sua mão.Quandoela olhava para o mar láembaixo, seus lábios estavam

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levemente entreabertos. Aexpressão era de concentraçãoinfantil, como se esperasse queum peixe passasse nadando sobreas claras rochas vermelhas.Mesmo assim, seus 24 anos devida tinham lhe dado umaaparência reservada. Suamão, quepousava no solo, os dedoslevemente recurvados,era bemformada e competente; os dedosnervosos e depontas quadradaseram dedos de pianista. Com umasensação semelhante a angústia,

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Hewet percebeu que, longe deserpouco atraente, seu corpo o atraíamuito. Os olhos delaestavamcheios de interesse e animação.

– Você escreve romances? –perguntou ela.

Naquele instante ele nãoconseguiu pensar no quedizia.Estava dominado pelodesejo de segurá-la nos braços.

– Ah, sim. Quero dizer, desejoescrever romances.Ela não tiravaos olhos cinzentos do rosto dele.

– Romances – repetiu ela. –

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Por que escreve romances? Deviaescrever música. Música, sabe –ela desviou os olhos e tornou-semenos agradável quando seucérebro começou aagir,provocando certa mudança emseu rosto –, a música vaidiretoaté as coisas. Diz de uma vez tudoo que há para dizer.Ao escrevê-lame parece que há tanto – ela fezuma pausaprocurando umaexpressão e esfregou os dedos naterra,esfregando-os depois numacaixa de fósforo. – Na maior

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parte dotempo quando estavalendo Gibbon esta tarde,eu estavaterrivelmente,ah,infernalmente,abominavelmenteentediada! Ela sacudiu-se ao rirolhando para Hewet, que tambémriu.

– Eu não vou lhe emprestarlivros – comentou ele.

– Por que posso rir de Mr.Hirst com você, mas não na caradele? No chá eu estavacompletamente esmagada, nãopela feiúra mas pela mente dele.– Ela fez um círculo no ar com as

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mãos. Percebeu com grandesensação de conforto como erafácil falar com Hewet, semaqueles espinhos ou arestas querasgam a superfície dealgumasrelações.

– Notei isso – disse Hewet. –Isso é uma coisa que nunca deixade me surpreender. – Recuperarasua compostura a ponto deconseguir acender e fumar umcigarro,e vendo-a tranqüila, ficoufeliz e à vontade.

– O respeito que as mulheres,

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mesmo as instruídas, mulheresmuito capazes, sentem peloshomens – prosseguiu ele–, deveser o tipo de poder que dizem quetemos sobre cavalos. Eles nosenxergam três vezes maiores doque somos, senão nunca nosobedeceriam. Por isso mesmotendo a duvidar de que vocêsmulheres jamais venham a fazerqualquer coisaquando tiveremdireito ao voto. – Ele a fitoupensativamente.

Ela parecia muito calma,

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sensível e jovem. – Vai levarpelomenos seis gerações antes deterem a pelesuficientementegrossa paraingressarem nos tribunais ouescritórios de empresas. Pense novalentão que é um homem comum,no advogado ou homem denegócios comum que trabalhaduro, é bastante ambicioso, comfamília para sustentar e certaposição a manter. E depois,naturalmente, as filhas terão decederlugar aos filhos; os filhos

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terão de ser instruídos; terão defanfarronear e de labutar pelassuas esposas e famílias e tudovairecomeçar. Enquanto isso, láestão as mulheres, ao fundo...Asenhorita realmente acha que ovoto vai favorecê-las?

O voto? – repetiu Rachel.Teve de visualizá-lo como umpapelzinho que se jogava numacaixa antes de entender a questão;encarando-se, sorriram de algumacoisa absurda na pergunta.

Para mim não – disse ela. –

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Mas eu toco piano... Os homenssão realmente assim? – perguntouvoltando à questão que ainteressava. – Eu não tenho medodo senhor – ela o fitou bem àvontade.

Ah, eu sou diferente –respondeu Hewet. – Tenho porano600 ou 700 libras só minhas. Eninguém leva um romancista asério, graças a Deus. Não hádúvida de que issoajuda acompensar a parte enfadonha daprofissão, se umhomem é levado

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muito, muito a sério por todomundo... temcompromissos,escritórios, um título, montes decartas endereçadas a seu nome epedaços de fita e diplomas. Nãotenhoressentimentos por isso,embora às vezes me domine...queespantosa trama! Que milagreé a concepção masculina davida...juízes, funcionários públicos,exército, marinha, CasasdoParlamento, prefeitos... quemundo fazemos com isso!

Veja Hirst agora. Eu lhe

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asseguro, não se passou um diadesde que chegamos sem umadiscussão acerca de ele ficaremCambridge ou ir ao Tribunal. Ésua carreira... suasagradacarreira. E se eu o escutei20 vezes, tenho certeza de queairmã e a mãe dele o escutaram500 vezes. Pode imaginarasreuniões de família, a irmãmandada para o pátio darcomidaaos coelhos porque St.John tem de ficar com a sala deestudos só para ele? “St. John

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está trabalhando”, “St. Johnquerque lhe leve o seu chá.”Vocênunca pensa nesse tipo de coisa?Não admira que St. John julgueser da maior importância. E émesmo. Ele tem de ganhar a vida.Mas a irmã de St.John – Hewetdeu uma baforada em silêncio. –Ninguém aleva a sério,coitadinha. Ela dá comida aoscoelhos.

– Sim – disse Rachel, eu deicomida aos coelhos durante 24anos; agora, parece tão esquisito.

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– Ela parecia pensativa, eHewet,que falava bastante a esmo,adotando instintivamente o pontode vista feminino, viu que agoraela ia falar de si mesma, e era oque ele queria, pois assim talvezse conhecessem.Ela encaravacom ar meditativo a sua vidapassada.

– Como passa os seus dias? –perguntou ele.

Ela ainda meditava. Quandopensava no seu dia, parecia-lheque era cortado em quatro partes

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pelas refeições.Essas divisõeseram absolutamente rígidas, osconteúdos do dia tendo deacomodar-se dentro de quatrorígidas partes. Olhando sua vida,era isso que via.

– Café da manhã às nove;almoço à uma; chá às cinco;jantar às oito – disse ela.

Bem, disse Hewet – o que fazde manhã?

Eu costumava ficar tocandopiano horas e horas.

E depois do almoço?

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– Eu ia fazer compras comuma de minhas tias. Ou íamosvisitar alguém, ou recebíamosuma mensagem, ou fazíamosalguma coisa que tinha de serfeita... as torneirastalvezestivessem pingando. Elasvisitam bastante os pobres...velhas faxineiras doentes daspernas,mulheres que queremcartões de atendimento emhospitais. Eu costumava andarnoparque sozinha.E depois dochá,às vezes fazia uma visita;

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noverão nos sentávamos nojardim ou jogávamos croqué,noinverno eu lia em voz altaenquanto elas trabalhavam;depoisdo jantar eu tocava piano eelas escreviam cartas. Sepapaiestivesse em casa, vinhamamigos para o jantar, e uma vezao mês mais ou menos íamos aoteatro. De vez em quandojantávamos fora; às vezes eu ia aum baile em Londres, mas eradifícil por causa da volta. Aspessoas que víamos eram

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velhosamigos da família eparentes, não víamos muita gente.Haviaum clérigo,Mr.Pepper,e osHunt.Papai em geral gostavadeficar quieto quando estava emcasa, porque em Hull ele trabalhamuito. E também minhas tias nãoeram pessoas muito fortes. Umacasa consome muito tempo sevocê cuida deladireito. Nossascriadas sempre eram ruins, demodo que tiaLucy passava muitotempo na cozinha, e tia Clara, euacho,passava a maior parte da

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manhã tirando pó da sala devisitase cuidando das roupas decama e pratarias. E havia oscachorros. Tinham de ser levadospara caminhar, além de se-rembanhados e escovados.Sandymorreu,mas tia Clara temumacacatua muito velha que veio daÍndia. Tudo na nossacasa –exclamou ela – vem de algumaparte! Está cheia demóveisvelhos, não realmente velhos, masvitorianos, coisas da família deminha mãe ou de meu pai, de que

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não quiseram se livrar emboranão haja realmente lugar paraelas. É uma casa bastantebonita,mas um poucosombria...sem graça, eu diria. –Ela evocou a visão da sala devisitas em casa; era um grandeaposento retangular com umajanela quadrada abrindo para ojardim. Havia cadeiras de veludoverdepostadas diante da parede;também um armário delivrospesado e esculpido, comportas de vidro, e uma

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impressãogeral de estofamentosdesbotados,grandes espaços deverdeclaro, e cesto com trabalhosde tricô caindo para fora. Fotosdevelhas obras-primas italianaspenduradas nas paredes epaisagens de pontes de Veneza ecascatas da Suécia quemembrosda família tinham visto anos atrás.Havia também os dois retratospintados de pais e avós, e umagravura deJohn Stuart Mill,reprodução do quadro de Watts.Era umaposento sem caráter

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definido, nem típica e obviamentemedonho, nem muito artístico,nem realmente confortável.Rachel despertou dacontemplação dessa imagemfamiliar.

Mas isso não é muitointeressante para você –disse,erguendo o olhar.

Santo Deus! – exclamouHewet. – Nunca na vida estivetão interessado. – Então elapercebeu que enquanto estiverapensando em Richmond os olhos

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dele permaneceram grudados emseu rosto. Notar isso animou-a.

Prossiga, por favor, prossiga –insistiu ele. – Vamos imaginar queé quarta-feira. Vocês estão todasalmoçando. A senhorita sentadaali, tia Lucy ali e tia Clara aqui.

Ele arranjou três pedrinhassobre a relva entre eles.

Tia Clara corta o pescoço docordeiro – prosseguiuRachel.Fixava seu olhar nas pedrinhas. –Há um velho suporte de porcelanaamarelo muito feio à minha frente,

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chamado criado-mudo, sobre oqual há três travessas, uma parabiscoitos,outra paramanteiga,outra para queijo.Há umpotede samambaias. E háBlanche, a criada, que éfanhosa.Conversamos... ah sim, éa tarde de tia Lucy emWalworth,de modo quealmoçamos bem depressa. Elasai, tem umasacola roxa e umcaderno preto.Tia Clara tem a suachamadareunião de G.F.S. na salade visitas nas quartas, de modo

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queeu levo os cachorros parapassear. Vou para RichmondHill,ao longo do casario,e entrono parque.É 18 deabril...mesmodia que aqui. NaInglaterra é primavera. O chãoestá bastante úmido. Mesmoassim eu atravesso a estrada,chego até arelva e caminhamos, eeu canto como sempre façoquando estou sozinha, atéchegarmos a um lugar aberto deonde sepode ver Londres inteiralá embaixo num dia claro. A

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torreda Hampstead Church aqui, aCatedral de Westminster aliechaminés de fábrica acolá. Emgeral há nevoeiro sobre aspartesmais baixas de Londres; masmuitas vezes está azulsobre oparque quando Londres estánevoenta. É o localaberto onde osbalões passam vindos deHurlingham.São de um amarelopálido. Bem, há um cheiro muitobom, especialmente quandoqueimam madeira na cabana dozelador que fica ali. Agora eu

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poderia lhe dizer como ir de umlugar aoutro, exatamente por queárvores você passa e onde sedeveatravessar a estrada. Sabe,eu brincava ali quando criança.Aprimavera é boa, mas é melhorno outono quando oscervosbalem; então começa aescurecer e volto pelas ruas; nãoseenxergam direito as pessoas;elas passam muito depressa;malse vêem seus rostos e jásomem... disso que eu gosto... eninguém tem idéia do que se está

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fazendo...– Mas imagino que você tenha

de estar de volta para o chá? –conferiu Hewet.

Chá? Ah, sim. Cinco horas.Então conto o que andeifazendo, eminhas tias contam o que andaramfazendo, etalvez alguém apareça:digamos, Mrs. Hunt. É umavelhasenhora com perna manca.Tem ou teve oito filhos;entãoperguntamos por eles. Estãotodos espalhados pelomundo;então perguntamos onde

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estão, e às vezes estão doentesounuma região que tem cólera, oualgum lugar onde só chovedurantecinco meses. Mrs. Hunt – disseela com um sorriso teve um filhoque morreu com um abraço deurso.

Aqui ela parou e olhou paraHewet, para ver se ele se divertiacom as mesmas coisas que adivertiam. Ficou tranqüilizada.Mas achou que devia pedirdesculpas novamente; falarademais.

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– A senhorita não imaginacomo isso me interessa – disseele. Com efeito, seu cigarroapagara e ele teve de acenderoutro.

– Por que lhe interessa? –perguntou ela.

Em parte porque você é umamulher – respondeu ele. Quandodisse isso, Rachel, que seesquecera de tudo,voltando a umestado infantil de interesse eprazer, perdeu sua liberdade etornou-se consciente de si mesma.

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Sentiuse a um tempo estranha eobservada, como se sentia comSt. John Hirst. Estava porcomeçar uma discussão que osteria deixado amargurados umcom outro e a definir sensaçõesque não tinham a importância queas palavras costumavam conferir-lhes, quando Hewet levou ospensamentos dela em outradireção.

Muitas vezes caminhei poressas ruas onde as pessoas vivemem casas enfileiradas, onde cada

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casa é exatamente igual à outra, eficava imaginando o que será queas mulheres estariam fazendo ládentro – disse ele. – Pense bem:estamos no começo do séculoXX, e até poucos anosatrásnenhuma mulher jamais semanifestava por si mesmanemdizia coisa alguma. E essaestranha vida não-representadacontinuavaacontecendo ao fundo, hámilhares de anos. Naturalmentesempre escrevemos sobre

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mulheres... insultando-as,adorando-as ou desdenhandodelas; mas nada jamais veio daspróprias mulheres. Acredito queainda nãosabemos nem ao menoscomo elas vivem, ou o quesentem,ou o que exatamente elasfazem. Quando se é homem,asúnicas confidências que seescutam de mulheres jovensdizem respeito a seus casos deamor. Mas as vidas das mulheresde 40, de mulheres descasadas,detrabalhadoras, de mulheres que

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têm lojas e criam filhos, demulheres como suastias ouMrs.Thornbury ou MissAllan...não sabemosabsolutamente nada a respeitodelas. Não nos contam nada.Elastêm medo, ou entãodescobriram uma maneira detratar os homens. Sabe, é o pontode vista masculino o que semanifesta sempre. Pense numtrem: 15 vagões para homens quequerem fumar. Isso não faz seusangue ferver? Se eu fosse uma

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mulher, explodiria a cabeça dealguém. Vocês não riemum tantode nós? Não acham tudo isso umagrande farsa? Vocês, querodizer... como é que tudo isso lhesparece?

Aquela determinação de saber,embora desse sentido ao diálogodeles, deixava-a inibida; eleparecia pressionar mais e mais, efazia tudo parecer muitoimportante. Ela demorou aresponder, e nesse meio temporepassou e repassou o curso de

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seus 24 anos de vida, iluminandoum ponto aqui, outro ali – suastias, sua mãe, seu pai; finalmentesua mente fixou-se nas tias e nopai; e tentou descrevê-los comolhe apareciam naquela distância.

As tias tinham muito medo dopai dela.Ele era uma grande forçaobscura naquela casa,pela qual seagarravam ao grande mundorepresentado diariamente peloTimes. Mas a verdadeira vida dacasa era algo bem diferente disso.Prosseguiaindependente de

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Mr.Vinrace e tendia a esconder-sedele.Eleera bem-humorado emrelação a elas,masdesdenhoso.Rachel sempre tevecerteza de que o ponto de vistadele era justo efundado emalguma escala social de coisas,onde a vida de uma pessoa eraabsolutamente mais importante doque a vidade outra,e que nessaescala elas eram muito menosimportantes do que ele. Masrealmente acreditava? Aspalavras deHewet faziam-na

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refletir.Sempre se submetera aseu pai,exatamente como suastias,mas eram elas que ainfluenciavam naverdade; suastias teciam aquela apertada tramade suas vidasem casa. Erammenos esplêndidas, mas maisnaturais do que o pai dela.Todasas iras de Rachel tinham sidocontra elas; era o seu mundo dequatro refeições,suapersonalidade,as criadasnasescadas às dez e meia que elaanalisava bem de perto e queria

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muito veementemente esmigalharem átomos. Seguindo taispensamentos, ela ergueu os olhose disse:

– E há uma espécie de belezanisso... elas estão neste precisoinstante em Richmond construindoas coisas. Estão todas erradas,talvez, mas há nisso uma espéciede beleza – repetiu ela. – É tãoinconsciente, tão modesto. Emesmo assim, elas sentem ascoisas. Sofrem quando pessoasmorrem. Velhas solteironas estão

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sempre fazendo coisas. Não seidireto o que fazem. Mas sei queera isso que eu sentia quandovivia com elas. Era muito real.

Recordou as pequenasjornadas delas de um lado paraoutro, para Walworth, parafaxineiras paralíticas, parareuniões disso e daquilo, seusdiminutos atos de caridade ealtruísmo que fluíampontualmente de uma visãodefinida do que deviam fazer,suas amizades, seus gostos e

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costumes; viu todas essas coisascomo grãos de areia caindo,caindo através de incontáveisdias, formando uma atmosfera ecriando uma massa sólida, umpano de fundo.Hewet a observavaenquanto ela ponderava essascoisas.

– A senhorita era feliz? –interrogou ele.

Ela estava novamenteabsorvida por outra coisa, e ele achamou de volta a umaconsciência inusitadamente viva

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de si mesma.– Eu era as duas coisas –

respondeu Rachel – Era feliz etriste. O senhor não tem idéia decomo é ser uma jovem.

– Ela o encarou abertamente. –Existem os terrores e as agonias –disse, continuando a fitá-lo comose quisesse detectar o mais levesinal de riso.

– Acredito – disse eledevolvendo seu olhar com totalsinceridade.

As mulheres que se vêem nas

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ruas – disse ela.Prostitutas?– Os homens beijando. – Ele

balançou a cabeça. – Coisas quea gente adivinha.

– Nunca lhe contaram nada.Ela sacudiu a cabeça.

– E depois – começou ela, eparou. Aqui estava ograndeespaço de vida no qualnunca ninguém penetrava. Tudooque estivera dizendo sobre seupai, suas tias, caminhadasnoRichmond Park e o que faziam

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de hora em hora, era apenas asuperfície. Hewet a observava.Queria que ela descrevesseaquilo também? Por que sesentava tão perto dela e afitavaassim? Por que não acabava comaquela busca e agonia? Por quenão se beijavam simplesmente?Ela queriabeijá-lo. Mas o tempotodo ficava tecendo palavras.

– Uma menina é mais solitáriado que um menino.Ninguém seimporta absolutamente com o queela faz. Nadase espera dela.A não

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ser que seja muito bonita,aspessoas nemescutam o que eladiz... E é disso que eu gosto –acrescentouela energicamente,como se a lembrança fosse muitofeliz. –Gosto de caminhar noRichmond Park,cantar sozinha esaber que ninguém está ligando amínima. Gosto de ver ascoisasacontecerem... quandoobservamos vocês a outra noite, enãonos viram... adoro essaliberdade... é como estar novento, ou no mar. – Ela virou-se

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com um curioso gesto e fitou omar.Ainda estava muito azul,dançando até onde seu olhoconseguia chegar, mas a luz sobreele agora era mais amarela, easnuvens tingiam-se de umvermelho-flamingo.Umadepressão forte varou a mente deHewet enquantoela falava.Pareciaóbvio que ela nunca se importariamais comuma pessoa do que comoutra; evidentemente ela erabastanteindiferente a ele;pareciam estar bem próximos,e

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logo estavamnovamente maisafastados do que nunca; o gestodela,ao afastar-se para outrolado, fora de uma estranha beleza.

– Bobagem – disse ele,bruscamente. – A senhorita gostadas pessoas. Gosta de seradmirada. Sua verdadeira mágoacontra Hirst é que ele não aadmira.Por algum tempo ela nãorespondeu. Depois, disse:

– Provavelmente seja verdade.Naturalmente gosto de gente...gosto de quase todas as pessoas

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que conheço.Ela virou-se de costas para o

mar e contemplou Hewetcomolhos amigáveis, embora críticos.Ele era bonito nosentido de quesempre tivera suficiente carnepara comer ear puro pararespirar. Sua cabeça era grande;os olhos também; emborageralmente vagos, podiam serpenetrantes; e os lábios eramsensíveis. Podia ser julgado umhomem deconsiderável paixão eenergia, provavelmente sujeito a

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estados de espírito que tinhampouca relação com os fatos;aomesmo tempo tolerante eminucioso. A largura de suafronterevelava capacidade de reflexão.O interesse com queRachel ocontemplava transpareceu em suavoz.

– Que romances o senhorescreve? – perguntou.

Eu quero escrever um romancesobre o silêncio – disse ele –, ascoisas que as pessoas não dizem.Mas a dificuldadeé imensa. – Ele

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suspirou. – Porém a senhorita nãose importa – continuou ele.Olhava-a quase com severidade.– Ninguémseimporta.Só selêumromance paraverquetipo depessoa é o escritor e, se éconhecido, para ver quais deseusamigos ele colocou no livro.Quanto ao romance em si,toda aconcepção, a maneira como se vêa coisa, como sesente, como serelaciona com outras coisas nemuma pessoanum milhão seinteressa por isso. Mas às vezes

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fico imaginando se há algumacoisa no mundo inteiro que valhatantoa pena ser feita. Essas outraspessoas – ele apontou o hotelestão sempre querendo algo quenão conseguem ter. Mashá umaextraordinária satisfação emescrever, mesmo em tentarescrever. O que a senhorita acabade dizer é verdade:não queremosser coisas; queremos apenaspoder vê-las.

Parte da satisfação da qual elefalava apareceu em seu rosto

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quando ele fitou o mar.Agora, foi a vez de Rachel

sentir-se deprimida.Enquanto elefalava em escrever, tornara-se derepente impessoal. Talvez nuncagostasse de ninguém; todo odesejo de conhecê-la eaproximar-se dela, que apressionara quase dolorosamente,desaparecera por completo.

– O senhor é um bom escritor?– perguntou ela.

– Sim – disse ele. – Claro quenão sou de primeira linha; sou um

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bom escritor de segunda linha;acho que tão bom quantoThackeray.Rachel ficou surpresa.Por um lado, surpreendia-a ouvirchamarem Thackeray de segundalinha; ela não conseguia acreditarque existissem grandes escritoresna atualidade, nem que, seexistissem, ela pudesse conheceralgum deles; a confiança deHewet a deixava atônita, e eleficava cada vez mais distante.

– Meu outro romance –prosseguiu Hewet – é sobre um

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jovem obcecado por uma idéia: aidéia de ser um cavalheiro.Eleconsegue viver em Cambridgecom 100 libras ao ano.Ele tem umcasaco; um dia foi um casacomuito bom. Mas as calças... nãosão tão boas assim. Bem, ele vaiaté Londres, entra na boasociedade devido a uma aventurade madrugadanas margens deSerpentina. É levado a dizermentiras... minha idéia, sabe, émostrar a gradual corrupção daalma... finge ser filho de um

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grande proprietário emDevonshire.Enquanto isso ocasaco vai ficando cada vez maisvelho, e elequase nem se atreve ausar as calças. Pode imaginar oinfeliz,depois de uma esplêndidanoitada de orgia,contemplandoessas roupas...pendurando-as ao pé da cama,arranjando-asora em plena luz,ora na sombra, e imaginando sevão sobreviver a ele, ou se ele éque vai sobreviver a elas? Idéiasde suicídio cruzam sua mente. Ele

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também tem um amigo, umhomemque subsiste de alguma formavendendo passarinhos, armandoalçapões nos campos abertos deUxbridge.Os dois sãointelectuais. Conheço uma ouduas dessas criaturas infelizes emortas de fome, que citamAristóteles diante de um arenquefrito e um caneco de cerveja.Vida elegante, também, precisoapresentar isso até certo ponto,paramostrar meu herói em todasas circunstâncias. Lady

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TheoBingham Bingley, cuja éguaassustada ele tivera a sorte defazer parar,é filha de umexcelente velho membro dopartido conservador. Voudescrever o tipo de festas queuma vez freqüentei... osintelectuais elegantes, você sabe,que gostam deter em sua mesa oslivros mais recentes.Eles dãofestas,festas à margem do rio,festas em que se realizam jogos.Não é difícil conceber osincidentes, a dificuldade é dar-

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lhes forma... não se deslumbrarcom as coisas como Lady Theo sedeslumbrava. O fim dela foidesastroso, coitada, pois olivro,como o planejei,terminarianuma profunda e sórdidarespeitabilidade. Rejeitada pelopai, ela se casa com o meu herói,e moram numa confortável epequena villa nos subúrbios deCroydon, cidadezinha onde ele seinstala como corretor deimóveis.Jamais consegue tornar-se umverdadeiro cavalheiro. Essa é a

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parte interessante. Parece-lhe otipo de livro que a senhorita iriagostar de ler? Ou talvezpreferisse minhatragédia Stuart –prosseguiu sem esperar a respostadela. –Minha idéia é que há umaqualidade de beleza nopassado,que o romancistahistórico comum arruína com suasconvenções absurdas. A luatorna-se a Rainha do Céu.Pessoas enfiam esporas em seuscavalos, e coisas assim. Voutratar aspessoas como se fossem

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exatamente iguais a nós. Avantagem é que, esquivando-sedas condições modernas, pode-setorná-las mais intensas e maisabstratas do que as pessoasquevivem como nós.

Rachel escutara tudo comatenção, mas com certaperplexidade. Ambosmergulhavam em seus própriospensamentos.

– Eu não sou como Hirst –disse Hewet depois de umapausa; falava em tom pensativo –,

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não vejo círculos de giz entre ospés das pessoas. Às vezesgostaria de ver.Parece-me tãocomplicado e confuso. Não sepode tomar decisão alguma; esomos cada vez menos capazes defazer um julgamento. Você achaisso? E depois, nunca sabemos oque sentimos. Estamos todos noescuro. Tentamos descobrir, maspode imaginar algo mais ridículodo que a opinião de uma pessoaacerca de outra pessoa? Achamosque sabemos, mas na verdade não

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sabemos.Dizendo isso ele se apoiava

no cotovelo, arranjando erearranjando na relva as pedrasque tinham representado Rachel eas tias no almoço. Falava tantopara si mesmo quanto paraRachel. Raciocinava contra odesejo que voltara, intenso, depegá-la nos braços, de ser franco,de explicar exatamente o quesentia. O que dizia era contra suacrença; todas as coisasimportantes a respeito dela, ele

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sabia; sentia-as no ar ao redordeles; mas não dizia nada;continuava ordenando as pedras.

Eu gosto do senhor; o senhorgosta de mim? – comentou Rachelsubitamente.

Gosto imensamente –respondeu Hewet falando com oalívio de uma pessoa a quem derepente se dá a oportunidade dedizer o que quer dizer. Ele paroude mexer as pedras.

– Não podemos nos chamar deRachel e Terence? – perguntou

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ele.– Terence – repetiu Rachel. –

Terence... é como o pio de umacoruja.

Ela ergueu os olhos com umsúbito acesso de encantamento e,olhando para Terence com olhosarregalados de prazer, ficouchocada com a mudança no céuatrás deles.O substancioso diaazul apagara-se num azul maispálido e etéreo; as nuvens eramrosadas; distantes e bem unidas; ea paz do anoitecer substituíra o

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calor da tarde sulina em quetinham começado sua caminhada.

– Deve ser tarde! – exclamou.Eram quase oito horas.

– Mas oito horas aqui nãocontam, contam? – perguntouTerence enquanto se levantavam ese viravam para o interior.Começaram a caminhar depressamorro abaixo na pequena trilhaentre as oliveiras.Sentiam-semais íntimos porque tinhampartilhado o que significava oitohoras em Richmond.Terence

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caminhava na frente, pois nãohavia espaço para ambos lado alado.

– O que eu quero fazerescrevendo romances é bastanteparecido com o que você querquando toca piano, eu acho –começou ele. – Queremosdescobrir o que há por trásdascoisas, não?... Olhe as luzes láembaixo espalhadas portodaparte. As coisas que sinto mevêm como luzes... Querocombiná-las... Você já viu aqueles

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fogos de artifício queformamfiguras? Eu quero fazer asfiguras... É isso que vocêquerfazer?Agora estavam na estrada epodiam andar juntos.

– Quando toco piano? Músicaé diferente... mas entendo o quequer dizer. – Tentaram inventarteorias e fazer suas teoriasconcordarem entre si. ComoHewet não conhecesse música,Rachel pegou sua bengala edesenhou figuras na fina poeirabranca para explicar como Bach

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escrevera suas fugas.– Meu talento musical foi

arruinado – explicou ele enquantoandavam depois de uma dessasdemonstrações – pelo organistado povoado, que inventara umsistema de notação, com quetentava me ensinar, e assim nuncaconsegui tocar nada. Minha mãeachava que música não era coisade meninos; queria que eumatasse ratos e pássaros... isso éo pior de viver no interior.Moramos em Devonshire. É o

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lugar mais adorável do mundo.Mas... é sempre difícil em casaquando se é adulto. Eu gostariaque você conhecesse uma deminhas irmãs... Ah, aqui está oseu portão. – Ele o empurrou eabriu. Pararam por um momento.Ela não podia convidá-lo a entrar.Não podia dizer que esperava quese encontrassem de novo. Não ha-via nada a ser dito; e assim, semuma palavra, ela atravessou oportão e logo ficou invisível.Assim que a perdeu de vista,

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Hewet sentiu voltar o velhodesconforto, até mais forte do queantes. A conversa deles forainterrompida no meio, quando elecomeçava a dizer as coisas quequeria dizer. Afinal, o que tinhamconseguido dizer? Ele repensouas coisas que tinham dito, ascoisas eventuais e desnecessáriasque tinham girado ao redor econsumido todo o tempo,impelindo-os tão para perto umdo outro e separando-os tanto,deixando-o no fim insatisfeito,

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ainda sem saber o que ela sentiaou como ela era. De que adiantafalar, falar, apenas falar?

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17

Era alta estação e cada navioque vinha da Inglaterra deixavaalgumas pessoas nas praias deSanta Marina, que subiam para ohotel. O fato de os Ambroseterem uma casa onde se podiaescapar por um momento daatmosfera levemente desumana deum hotel era fonte de genuínoprazer, não só para Hirst eHewet, mas para os Elliot, osThornbury, os Flushing, MissAllan, Evelyn M., além de

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pessoas cuja identidade era tãopouco desenvolvida queosAmbrose nem sabiam quetinham nomes. Estabeleceu-se ali,paulatinamente, uma espécie decorrespondência entre as duascasas, a grande e a pequena, demodo que a maior parte das horasdo dia uma casa podia adivinharo que acontecia no outra, e aspalavras ‘a villa’ e ‘o hotel’evocavam a idéia de doissistemas de vidaseparados.Conhecidos mostravam

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sinais de se transformarem emamigos, por isso uma ligação coma sala de visitas de Mrs.Parry sedividira inevitavelmente emmuitas outras, conectadas comdiferentes partes da Inglaterra, eàs vezes essas alianças pareciamcinicamente frágeis, às vezesdolorosamente agudas, poisfaltava-lhes o fundo sólido daorganizada vida inglesa que asapoiasse. Uma noite, quando a luzestava inteira entre árvores,Evelyn M. contou a Helen a

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história de sua vida e afirmou suaamizade duradoura; noutraocasião, apenas por causa de umsuspiro, ou pausa, ou uma palavraimpensada, a pobre Mrs. Elliotdeixou a villa quase em prantos,jurando nunca mais encontrar amulher fria e sarcástica que ainsultara, e na verdade nuncamais se encontraram. Não pareciavaler a pena consertar umaamizade tão tênue.

Hewet deve ter encontradoexcelente material dessa vez na

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villa para alguns capítulos doromance que se chamaria“Silêncio, ou as coisas que aspessoas não dizem”.Helen eRachel tinham-se tornado muitosilenciosas. Tendo detectado,como pensava, um segredo, ejulgando que Rachel queriaescondê-lo dela, Mrs. Ambroserespeitava isso cuidadosamente,mas por isso, embora nãointencionalmente, cresceu entreelas uma estranha atmosfera dereserva. Em vez de partilharem

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seus pontos de vista sobre todosos temas e mergulhar numa idéiaaté onde ela poderia levar,falavam principalmente sobre aspessoas que tinham visto, e osegredo entre elas se manisfetavano que diziam até sobre osThornbury e os Elliot. Semprecalma e não emotiva em seusjulgamentos, Mrs. Ambrose agorainclinava-se a um definitivopessimismo. Não era tão severacom indivíduos quanto incrédulacom a bondade do destino, a

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sorte, o que acontece a longoprazo, e era capaz de insistir queisso era em geral adverso àspessoas na proporção em quemereciam. Mesmo essa teoria elarejeitaria em favor de uma quefazia o caos triunfar, coisasacontecerem sem motivo algum,todo mundo andando às cegas nailusão e ignorância. Com certoprazer ela passou esses pontos devista à sobrinha, pegando comopretexto uma carta de casa, quedava boas notícias mas podia ter

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dado notícias ruins. Como é queela sabia que naquele mesmoinstante seus filhos não estavammortos, esmagados por umônibus? “Está acontecendo comalguém: por que não aconteceriacomigo?”, argumentava ela, rostoassumindo a expressão estóica dador antecipada. Por mais sincerasque fossem essas opiniões, semdúvida eram provocadas peloestágio irracional da mente de suasobrinha,que era tão flutuante epassava tão depressa de alegria a

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desespero, que parecianecessário confrontá-la comalguma opinião estável, quenaturalmente se tornava tãosombria quanto estável. TalvezMrs. Ambrose tivesse algumaidéia de que conduzindo aconversa para esse territóriopoderia descobrir o que sepassava na mente de Rachel,masera difícil julgar, pois às vezesela concordava com a coisa maismelancólica que se dissesse;noutras, recusavase a escutar e

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recebia as teorias de Helen comrisadas, tagarelice,ridicularizando-as ao máximo, oucom ferozes acessos de ira,mesmo diante do que chamava “ograsnar de um corvo na lama”.

As coisas já são bastantedifíceis sem isso – afirmou ela.

O que é difícil? – indagouHelen.

A vida – respondeu, e as duasficaram em silêncio.

Helen podia tirar suaspróprias conclusões do porquê de

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a vida ser difícil, ou do porquê deuma hora depois talvez a vidafosse tão maravilhosa e viva queos olhos de Rachel,contemplando-a, tornavam-serealmente engraçados para umespectador. Fiel ao seu credo, elanão tentou interferir, emborahouvesse vários desses momentosde depressão que tornariam fácilpara uma pessoa menosescrupulosa pressionar edescobrir tudo; talvez Rachellamentasse que sua tia não fizesse

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isso. Todos esses estados deânimo fundiam-se num efeitogeral, que Helen comparava aofluir de um rio, rápido, maisrápido, mais ainda,quandodispara para uma cachoeira. Seuinstinto era gritar “Pare!” masmesmo que adiantasse gritar“Pare!” ela teria se contido,pensando ser melhor que ascoisas seguissem seu curso, coma água disparando porque a terraera feita de modo a que corresseassim.

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A própria Rachel parecia nãosuspeitar de que estava sendoobservada ou de que houvesse noseu comportamento algo quepudesse chamar atenção. Nãosabia o que lhe tinha acontecido.Sua mente estava na mesmasituação que a água em disparadacom a qual Helen a comparava.Queria ver Terence; desejavaconstantemente vê-lo quando elenão estava ali; era uma agonianão o ver; seu dia estava repletode agonias por causa dele, mas

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ela jamais se indagava de ondevinha essa força que agoraperpassava sua vida. Nãopensava em resultados, como umaárvore dobrada pelo vento nãoanalisa o resultado de estar sendocurvada pelo vento.

Durante as duas ou trêssemanas que passaram desdeaquele passeio, meia dúzia debilhetes dele acumulava-se nagaveta. Ela os lia e passava amanhã inteira num aturdimento defelicidade; a paisagem ensolarada

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diante da janela não conseguindoanalisar sua própria cor e calormais do que ela era capaz deanalisar suas cartas. Nesse estadode ânimo ela achava impossíveller ou tocar piano,até mexer-seum pouco que fosse além da suanatural inclinação no momento. Otempo passava sem que elapercebesse. Quando estavaescuro, era atraída para a janelapelas luzes do hotel. Uma luz queacendia e apagava era a luz dajanela de Terence; lá estava ele

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sentado, talvez lendo, oucaminhando pelo quarto pegandoum livro ou outro; agora eleestava sentado na sua cadeiraoutra vez; e ela tentava imaginar oque estaria pensando. As luzesestáveis marcavam os quartos emque Terence se sentava compessoas movendo-se ao seu redor.Cada pessoa que se hospedava nohotel tinha um romantismo ouinteresse. Não eram gente comum.Ela atribuía sabedoria a Mrs.Elliot,beleza a Susan Warrington,

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uma vitalidade esplêndida aEvelyn M.,pois Terence falavacom elas.Tão impensados edifusos eram seus estados dedepressão. Sua mente era como apaisagem lá fora quando o escurosob as nuvens dava açoites devento e granizo. Mais uma vez elase sentava passiva na sua cadeira,exposta ao sofrimento, e aspalavras fantásticas ou tristes deHelen eram como setas fazendo-achorar a dureza da vida. O melhorde tudo eram os estados de

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ânimo, quando por nenhuma razãoessa ênfase de sentimentoafrouxava e a vida prosseguiacomo de costume, apenas comuma alegria e uma cor antesdesconhecidas; tinham umsignificado parecido com o quevira na árvore: as noites eramgrades negras separando-a dosdias; teria gostado de fazer fluiros dias todos numa longasensação contínua. Embora essesestados de alma fossem causadosdireta ou indiretamente pela

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presença de Terence, ou alembrança dele, ela nunca dizia asi mesma que estava apaixonadapor ele, nem imaginava o queaconteceria se continuasse asentir tais coisas, de modo que aimagem de Helen, o riodeslizando para uma cachoeira,era muito semelhante aos fatos, eo alarma que Helen por vezessentia era justificado.

No seu estranho estado desensações não analisadas, ela eraincapaz de fazer um plano que

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tivesse qualquer efeito sobre suadisposição mental. Abandonava-se ao acaso, um dia sentindo faltade Terence; no outro,encontrando-se com ele,recebendo suas cartas semprecom um movimento de surpresa.Qualquer mulher experiente nocurso dessa corte teria extraídode tudo isso ao menos umaopinião que a ajudasse a elaboraruma teoria a seguir;mas ninguémjamais estivera apaixonado porRachel, nem ela se apaixonara

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por ninguém. Mais que isso,nenhum dos livros que lia, de Omorro dos ventos uivantes aHomem e super-homem, e aspeças de Ibsen, sugeria na suaanálise do amor que o que suasheroínas sentiam era o que elaagora estava sentindo. Parecia-lhe que suas sensações não tinhamnome.

Rachel via Terencefreqüentemente. Quando não seencontravam, ele conseguiamandar um bilhete com um livro

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ou acerca de um livro, pois nãoconseguira negligenciar esse tipode intimidade. Mas às vezes elenão vinha nem escrevia porvários dias seguidos. E quando seencontravam, seu encontro podiaser de grande alegria ou de umdesespero aniquilador. Por sobreas suas despedidas pairava asensação de interrupção,deixando-os insatisfeitos, emborasem saberem que o outropartilhava da mesma sensação.

Se Rachel ignorava seus

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próprios sentimentos, ignoravamais ainda os dele. No começoele se movia como um deus;quando o conheceu melhor, eleainda era centro de luz, mascombinava com essa beleza ummaravilhoso poder de deixá-laaudaciosa e confiante. Ela tinhaconsciência de emoções epoderes que jamais suspeitariater, e de uma profundidade atéentão desconhecida nomundo.Quando pensava em suarelação, ela antes via do que

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raciocinava, representando suavisão do que Terence sentia coma imagem dele arrastado pela salapara ficar a seu lado. Essapassagem pelo aposento era umsensação física,mas ela não sabiao que significava.

Assim passava-se o tempocom uma aparência calma eluminosa na superfície. Chegavamcartas da Inglaterra,cartas deWilloughby, e os diasacumulavam seus pequenosacontecimentos que formavam o

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ano. Superficialmente, três odesde Píndaro foram corrigidas,Helen fez cerca de cincopolegadas de seu bordado, e St.John completou os dois primeirosatos de uma peça. Ele e Racheleram agora bons amigos, e ele liaem voz alta para ela, que ficavatão impressionada pelahabilidade dos seus ritmos e avariedade de seus adjetivos, alémdo fato de ele ser amigo deTerence, que ele começava aimaginar se seu destino não seria

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literatura em vez de direito. Foiuma época de reflexões profundase súbitas revelações para mais deum casal e para várias pessoasisoladas.

Chegou um domingo, coisa queninguém na villa, exceto Rachel ea criada espanhola, queriareconhecer. Rachel ainda ia àigreja, porque, segundo Helen,nunca se dera ao trabalho depensar sobre isso. Já quecelebravam missa no hotel ela foiaté lá, esperando ter alguma

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alegria ao atravessar o jardim e osaguão, embora fosse difícil verTerence e ter oportunidade de lhefalar.

Como a maior parte dosvisitantes do hotel eram ingleses,havia quase tanta diferença alientre quarta-feira e domingoquanto na Inglaterra, e domingoali parecia, comolá, o mudoespectro negro ou espíritopenitente do maisocupado dia dasemana. Os ingleses nãoconseguiam empalidecer o sol,

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mas de alguma forma milagrosapodiam daràs horas um cursomais lento, tornar os incidentesmais sem graça, prolongar asrefeições e fazer até criadas epajensassumirem uma expressãode tédio e compostura. Asmelhores roupas que todo mundovestia ajudavam naqueleefeitogeral; parecia que nenhuma damase sentaria sem dobrar umaanágua limpa e engomada, enenhum cavalheiro poderiarespirar sem um súbito estalar de

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seu peito decamisa rijo.Quando os ponteiros do

relógio se aproximaram das onzenaquele domingo especial, váriaspessoas começaram a reunir-seno saguão, segurando livrinhos depáginas vermelhas. O relógiomarcava minutos antes da horaquando passou uma robusta figurapreta, atravessou o saguão com arpreocupado, como se preferissenão notar os cumprimentosembora tivesse consciência deles,e desapareceu pelo corredor que

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partia de lá.– Mr. Bax – sussurrou Mrs.

Thornbury.O grupinho de pessoas

começou então a afastar-se namesma direção em que fora arobusta figura negra.Encaradascom estranheza pelas pessoas quenão faziam menção de se reunir aelas, moveram-se, com umaexceção, lenta e conscientementeaté as escadarias. Mrs. Flushingera a exceção. Desceu as escadascorrendo, pas-sou pelo saguão,

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juntou-se ofegante ao cortejo,perguntando a Mrs. Thornburynum sussurro agitado:

– Onde, onde?– Estamos todos indo – disse

Mrs.Thornbury,e logo desciam asescadas dois a dois. Rachel foiuma das primeiras adescer. Nãoviu que Terence e Hirst entravampelos fundoscarregando não umvolume preto, mas um livro finoencapado com tecido azul-claro,que St. John trazia sob o braço.

A capela era a velha capela

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dos monges. Era um local frescoe profundo onde se celebrava amissa há centenas de anos,penitenciava-se ao luar frio e seadoravam velhas pinturasmarrons e santos esculpidos commãos erguidas em bênção nosnichos das paredes. A transiçãode culto católico a protestantefora feita durante um período dedesuso, quando não haviacerimônias e o lugar era usadopara guardar jarras de azeite,licor e cadeiras espreguiçadeiras;

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o hotel florescendo, algumacorporação religiosa tomaraconta do lugar e agora ele eraprovido de uma série de bancosamarelos lustrosos egenuflexórios de cor púrpura;tinha um pequeno púlpito, umaáguia de latão sustentando nascostas uma Bíblia, enquanto apiedade de várias mulheresfornecera feios retângulos detapeçaria e longas tiras debordado pesadamenteornamentais com monogramas

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dourados.Enquanto os fiéis entravam,

eram recebidos por suavesacordes de um harmônio tocadopor Miss Willett, escondida poruma cortina de baeta. O somespalhou-se pela capela comocírculos de água provocados poruma pedra caída. As 20 ou 25pessoas que compunham os fiéisbaixaram as cabeças, e depoissentaram-se eretas olhando emtorno. Estava muito quieto, e a luzali embaixo parecia mais pálida

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do que a luz de cima. Nãotrocavam os habituaiscumprimentos e sorrisos, masreconheciam-se mutuamente. Opai-nosso foi lido. Quando seouviu o balbucio infantil devozes, os fiéis, muitos dos quaissó tinham se encontrado naescadaria, sentiam-sepateticamente unidos e bemdispostos uns em relação aosoutros. Como se a oração fosseuma tacha aplicada a umcombustível,uma fumaça parecia

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erguer-se automaticamente eencher o lugar com os fantasmasde incontáveis cerimônias emincontáveis manhãs de domingoem casa. Susan Warrington emparticular tinha consciência damais doce fraternidade quandocobriu o rosto com as mãos e viufaixas de costas curvadas atravésdas frestas entre os dedos. Suasemoções intensificavam-se calmae regularmente, e ela ao mesmotempo aprovava a si mesma e àvida.Tudo estava tão quieto e tão

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bom. Mas tendo criado essaatmosfera pacífica, Mr. Bax derepente virou a página e leu umsalmo. Embora lesse sem mudar avoz, o estado de espíritodesfizera -se.

– Tende misericórdia de mim,oh... Deus – leu ele –, pois ohomem está prestes a me devorar,ele está diariamente combatendo-me e perturbando-me...Diariamente interpretam malminhas palavras: tudo o queimaginam é causar-me mal.

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Unem-se e ficam unidos...Quebrai os dentes deles, ó Deus,em suas bocas; esmagai osmaxilares dos leões, ó Senhor:fazei com que se desmanchemcomo água que corre depressa; equando dispararem suassetas,fazei com que sejamexterminados.

Nada na experiência de Susancorrespondia a isso; e como elanão apreciava a linguagem, hámuito cessara de prestar atençãoem tais comentários, embora os

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seguisse com a mesma espécie derespeito mecânico com queouvira muitas das falas de Learpronunciando alto. Sua menteainda era serena e realmenteocupava-se com o louvor àprópria natureza e o louvor aDeus... isto é, à solene esatisfatória ordem do mundo.

Mas podia se ver por umaolhada em seus rostos que amaior parte dos outros,especialmente homens, sentia ainconveniência da súbita intrusão

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daquele velho selvagem.Pareciam mais seculares ecríticos enquanto escutavam asiras daquele velho de preto comum pano em tor-no dos rinsamaldiçoando com gestosveementes junto de uma fogueirano deserto. Depois disso, ouviu-se o ruído generalizado depáginas sendo viradas, como seestivessem numa sala de aula;então foi lido um pouco do VelhoTestamento, a respeito daconstrução de um poço, tudo bem

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parecido com meninos de colégiotraduzindo uma passagem fácil doAnábasis depois de fecharem suagramática francesa.Voltaram entãoao Novo Testamento e à triste ebela figura de Cristo. EnquantoCristo falava, faziam outroesforço de adaptarem suainterpretação da vida às vidasque viviam, mas como fossemtodos diferentes, uns práticos, unsambiciosos, uns tolos, outrostumultuados e experimentais,alguns apaixonados e outros já há

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muito tendo superado qualqueremoção, exceto a sensação deconforto, faziam coisas bemdiversas com as palavras deCristo.

Pelas suas feições parecia quea maior parte deles não faziaesforço algum e, por ser maiscômodo, aceitavam as idéiastransmitidas pelas palavras comosendo palavras de bondade, assimcomo as industriosas bordadeirastinham aceitado como bonito ofeio colorido de sua esteira.

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Fosse qual fosse o motivo,pela primeira vez na sua vida, emvez de deslizar de uma vez paradentro de alguma curiosa eagradável nuvem de emoção,familiar demais para ser levadaem conta, Rachel escutavacriticamente o que se dizia.Depois de passada a formairregular de uma oração a umsalmo, do salmo à história, dahistória à poesia, e Mr. Baxestava dizendo seu texto, ela ficounum estado de desconforto

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intenso. O desconforto era igualao que sentia quando forçada aescutar uma peça de música ruime mal tocada. Torturada,enfurecida pela grosseirainsensibilidade do regente, queacentuava nos lugares errados, eaborrecida com o vasto rebanhoda platéia elogiando econcordando sem saber nem seimportar com nada, ela agoraestava torturada e enfurecida, sóque ali,com olhos semicerrados elábios apertados, a atmosfera de

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forçada solenidade aumentava suaraiva. Ao seu redor havia gentefingindo sentir o que não sentia,enquanto flutuava acima dela aidéia de que nenhum deles podiaentender o que fingiam entender,sempre inalcançável,uma belaidéia, uma idéia que parecia umaborboleta.Uma depois da outra,vastas, e hirtas, e frias lheapareceram todas as igrejas domundo, onde esse esforçodesajeitado e esse mal-entendidoaconteciam perpetuamente,em

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grandes edificações repletas deincontáveis homens e mulheresque não enxergam direito, quefinalmente desistiam do esforçode enxergar, caindoobedientemente em louvor econcordância, olhos semicerradose lábios apertados. O pensamentocausava a mesma espécie dedesconforto provocado por umanévoa que se interpusesseconstantemente entre olhos epágina impressa. Ela esforçou-seao máximo para remover a névoa

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e conceber algo que pudesse servenerado enquanto a cerimôniaprosseguia; mas não conseguiu,sempre desviada pela voz deMr.Bax dizendo coisas quedeformavam a idéia e pelomurmúrio de vozes humanasinexpressivas balindo e caindo aoseu redor como folhas molhadas.O esforço era cansativo edesanimador. Ela cessou deescutar e tirou os olhos na face deuma mulher próxima, umaenfermeira de hospital, cuja

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expressão de atenção devotaparecia provar que de algumaforma tinha satisfação. Masolhando atentamente para ela,Rachel concluiu que a enfermeiraestava apenas concordando comtudo aquilo de modo servil e quea expressão de satisfação nãovinha de nenhuma esplêndidaconcepção de Deus em seuinterior. Como, aliás,poderiaconceber algo tão fora de suaprópria experiência,uma mulhercom aquele rosto banal, um

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rostinho corado e redondo, sobreo qual deveres banais e ódiosbanais tinham traçado linhas,cujos fracos olhos azuis olhavamsem intensidade nemindividualidade, cujas feiçõeseram borradas, insensíveis eduras? Ela estava adorando algofrívolo e presunçoso, agarrando-se àquilo, conforme testemunhavaa boca obstinada, com atenacidade de um marisco; nada aarrancaria de sua crença séria emsua própria virtude e nas virtudes

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de sua religião. Era um mariscocom seu lado sensível preso narocha, morto para sempre para atorrente de coisas frescas e belasque passavam junto dele. O rostodessa única adoradora imprimiu-se na mente de Rachel com umaimpressão de puro horror; derepente ela teve a revelação doque Helen e St. John queriamdizer quando proclamavam seuódio ao cristianismo.Com aviolência que agora marcava suassensações, ela rejeitou tudo

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aquilo em que implicitamenteacreditara.

Enquanto isso Mr. Bax estavana metade da segunda lição. Ela ocontemplava. Era um homem domundo com lábios flexíveis emodos agradáveis, era na verdadeum homem de muita bondade esimplicidade, embora nadainteligente, mas ela não estavadisposta a dar qualquer crédito aessas qualidades, e o examinavacomo se fosse a síntese de todosos vícios do seu culto.

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Bem nos fundos da capela,Mrs. Flushing, Hirst e Hewetsentavam-se numa fila, emestados de espírito bemdiferentes. Hewet fixava o tetocom as pernas estendidas àfrente,pois como jamais tentara adequara cerimônia aqualquer sentimentoou idéia sua, era capaz deapreciar abeleza da linguagemsem impedimento. Sua menteocupou-se primeiro com coisasacidentais, como o cabelodasmulheres à sua frente, e a luz

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sobre os rostos, depoiscompalavras que lhe parecerammagníficas, e depois maisvagamente, com as personagensdos outros fiéis. Masquandosubitamente percebeuRachel, todos esses pensamentosforam expulsos de sua mente, epensou somente nela. Os salmos,as orações, a ladainha e o sermãoreduziram-se todos a um únicosom de cântico que parava edepois se renovava,um poucomais alto, um pouco mais baixo.

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Ele fitava alternadamente Rachele o teto, e sua expressão agoranão nascia do que estava vendo,mas de algo em sua mente.Estavaquase tão dolorosamenteperturbado por seuspensamentosquanto Rachel pelosdela.

No começo da cerimônia Mrs.Flushing descobriu que pegarauma Bíblia em vez de um livro deorações e, sentada perto de Hirst,deu uma olhada por cima doombro dele. Ele estava lendo

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firmemente um volume azul-claro.Incapaz de compreender, elaespiou mais de perto, e Hirsteducadamente colocou o livro àfrente dela, apontando o primeiroverso de um poema grego, edepois a tradução na outra página.

– O que é isso? – sussurrouela.

– Safo – respondeu ele. – Atradução de Swinburne, a melhorcoisa já escrita.

Mrs. Flushing não resistiu a taloportunidade. Engoliu a Ode a

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Afrodite durante a ladainha,contendo-se com dificuldade paranão perguntar quando Safo viverae o que mais escrevera que fossedigno de ser lido, e conseguindocom certa pontualidade no fimpronunciar “o perdão dospecados, a ressurreição da carnee a vida eterna.Amém”.

Enquanto isso Hirst pegava umenvelope e começava a rabiscarno verso. Quando Mr. Bax subiuao púlpito ele fechou Safo com oenvelope entre as páginas, ajeitou

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os óculos e fixou seu olharintensamente sobre oclérigo.Parado no púlpito, esteparecia muito grande e gordo; aluz vindo das janelas esverdeadasfazia seu rosto parecer liso ebranco como um enorme ovo.

Ele olhou em torno para todosos rostos que o fixavambrandamente lá de baixo, emboraalguns fossem rostos de homens emulheres com idade para seremseus avós, e disse seu texto comgrande imponência. O tema do

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sermão era que visitantes naquelelindo país, embora de férias,tinham dever para com os nativos.Na verdade não diferia muito deum artigo sobre assuntos deinteresse geral nos seminários.Divagava de um ponto a outrocom uma espécie de verborragiacordial, sugerindo que todos osseres humanos são bastanteparecidos debaixo de sua pele,ilustrando isso com a semelhançadas brincadeiras dos menininhosespanhóis e dos menininhos de

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Londres,observando que coisasmuito pequenas influenciam aspessoas, especialmente nativos;de fato um amigo muito queridode Mr. Bax dissera-lhe que osucesso de nossa lei na Índia,aquele vasto país, dependiagrandemente do estrito código depolidez adotado pelos inglesespara com os nativos, o que levouao comentário de que as pequenascoisas não são necessariamentepequenas e de alguma forma, àvirtude da simpatia, virtude mais

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necessária hoje em dia do quenunca, quando vivemos numaépoca de experimentação emudança – veja-se o aeroplano eo telegrama sem fio; havia outrosproblemas que dificilmente seapresentariam a nossos país, masque nenhum homem que seconsidera homem poderia deixarsem solução.Aqui Mr. Baxtornou-se mais claramenteclerical, se é que era possível,parecendo falar com uma certainocente astúcia ao apontar que

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tudo isso impunha um deverespecial aos cristãos sérios. Oque os homens se inclinavam adizer era “Ah, aquele sujeito... éum pároco”. O que queremos quedigam é “Ele é um bom sujeito”,em outras palavras,“Ele é meuirmão”. Exortou-os a manterem-se em contato com homens do tipomoderno; precisavam simpatizarcom seus múltiplos interesses afim de compreender sempre quenão importa que descobertas sefizessem, havia uma que não

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podia ser superada, tãonecessária ao mais brilhante ebem-sucedido entre eles quantofora aos seus pais. O maishumilde podia ajudar; as coisasmenos importantes influenciavam(aqui ele tornou-se decididamentesacerdotal, seus comentáriosparecendo destinados àsmulheres, pois os fiéis de Baxeram na grande maioria mulheres,e estava habituado a mostrar-lhesseus deveres em suas inocentescampanhas clericais). Deixando

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de lado as instruções maisdefinidas, ele passou adiante, eseu tema ampliou-se numaperoração para a qual respiroufundo e se postou muito ereto.

– Assim como uma gotad’água, isolada, sozinha,apartadade outras, caindo da nuvem eentrando nogrande oceano sealtera, os cientistas assim noscontam,não apenas o ponto nooceano onde ela cai se altera,mastoda a miríade de gotas que,juntas, compõem o

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grandeuniverso das águas,alterando assim a configuraçãodoglobo, as vidas de milhões decriaturas no oceano e, finalmente,as vidas dos homens e mulheresque ganham a vida nas praias...Tudo isso está na dimensão deumaúnica gota d’água, comoqualquer chuvarada envia milhõespara que se percam na terra...para que se percamna terra, nósdizemos, mas sabemos muito bemque os frutos da terra não podembrotar sem elas... uma maravilha

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comparável ao que está aoalcance de qualquer umde nós,que, soltando uma pequenapalavra ou uma pequena ação nogrande universo, altera-o; sim, éumaidéia solene, altera-o, para obem ou o mal, não por uminstanteou num pequeno ambiente, masatravés de todaa raça e por toda aeternidade.

Virando-se de um lado a outrocomo para impedir aplauso, eleprosseguiu no mesmo fôlego, masnum tom de voz diferente:

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– E agora, ao Senhor nossoPai...

Ele deu sua bênção e então,enquanto os acordes solenesbrotavam mais uma vez doharmônio atrás da cortina, asdiferentes pessoas começaram aremexer-se, e talvez a mover-semuito desajeitada econscientemente na direção daporta. A meio caminho na escada,num ponto em que luzes e sons domundo superior, conflitavam coma penumbra e a melodia

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moribunda dos hinos do mundoinferior, Rachel sentiu uma mãosobre seu ombro.

– Miss Vinrace – sussurrouimperiosamente Mrs. Flushing –,fique para o almoço. Está um diatão melancólico. Eles não dãonem um bife no almoço. Fique,por favor.

Saíram então para o saguão,onde mais uma vez o pequenobando foi saudado com curiososolhares respeitosos pelas pessoasque não tinham ido à igreja,

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embora suas roupas deixassemclaro que aprovavam o domingoquase a ponto de irem à igreja.Rachel sentiu-se incapaz deagüentar mais aquela atmosferaparticular, e estava por dizer quetinha de voltar quando Terencepassou por elas,arrastado numaconversa com Evelyn M. Rachelentão contentou-se em dizer queas pessoas pareciam muitorespeitáveis, comentário negativoque Mrs. Flushing interpretoucomo afirmação de que Rachel

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ficaria.Ingleses no exterior! – disse

com um vivo tom de malícia. –Não são medonhos? Mas nãovamos ficar aqui continuou,puxando o braço de Rachel. –Venha até meu quarto.

Ela a empurrou passando porHewet, Evelyn, os Thornbury e osElliot. Hewet adiantou-se.

– Almoço...– Miss Vinrace prometeu

almoçar comigo – disse Mrs.Flushing, começando a subir

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energicamente as escadas, comose a classe média da Inglaterra aestivesseperseguindo. Não parouaté bater atrás delas a porta doseu quarto.

– Bem, o que achou? –perguntou, ofegando um pouco.

Toda a repulsa e horror queRachel andara acumulandoexplodiram descontroladamente.

– Achei a exibição maisodiosa que já vi! – disse numrompante. – Como podem... comose atrevem... o que querem dizer

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com isso... Mr. Bax, enfermeiras,velhos,prostitutas,repulsivos...Ela atacou o maisdepressa que podia os pontos quelembrava, mas estava indignadademais para parar e analisar seussentimentos. Mrs. Flushingobservava com ávido prazer suafala abrupta acompanhada demovimentos enfáticos de cabeça emãos.

– Prossiga, prossiga, prossiga!– ria ela, batendo pal-mas. – Édelicioso escutar você!

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– Mas então por que a senhoravai? – perguntou Rachel.

– Tenho ido todos os domingosde minha vida desde que melembro – Mrs. Flushing riasatisfeita, como se isso por si jáfosse motivo.

Rachel virou-se bruscamentepara a janela. Não sabia o que adeixara naquele estado tãopassional; a visão de Terencenosaguão confundira seuspensamentos, deixando-aapenasindignada. Olhou direto

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para a sua própria villa, a meiocaminho na encosta da montanha.A vista mais conhecida olhadaatravés de vidro tem uma certadistinção não familiar; enquantoolhava ela foi se acalmando.Então lembrou queestava napresença de alguém a quem nemconhecia direito,virou-se e olhouMrs. Flushing, que ainda estavasentada nabeira da cama olhandopara o alto, os lábiosentreabertosmostrando duasfileiras de fortes dentes brancos.

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– Diga-me, de quem gostamais, de Mr. Hewet ou de Mr.Hirst?

– De Mr. Hewet – respondeuRachel, mas sua voz não soavanatural.

– Qual dos dois é o que lêgrego na igreja? – indagou Mrs.Flushing. Podia ter sido qualquerum deles e, enquanto Mrs.Flushing passava a descrevê-los ea dizer que os dois a assustavam,embora um a assustasse mais,Rachel procurava uma cadeira.

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Naturalmente o quarto era omaior e mais luxuoso do hotel.Havia muitas poltronas ebanquetas cobertas de linhomarrom, mas cada uma dessaspeças estava ocupada por umgrande pedaço de papelãoamarelo quadrado, e em todas aspeças de papelão havia pontinhosou linhas de tinta a óleo.

– Não olhe para aquilo – disseMrs. Flushing vendo o olho deRachel vagar por ali. Saltou evirou todos os papelões que pôde

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no assoalho. Mas Rachelconseguiu apoderar-se de umdeles e, com a vaidade de umaartista, Mrs. Flushing perguntou,ansiosa:

– Então, então?– É uma colina – respondeu

Rachel. Não havia dúvida de queMrs. Flushing representou umvigoroso e abrupto lance de terraerguendo-se no ar; quase sepodiam ver os torrões voandoenquanto a terrarodopiava.Rachel passou de um a

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outro. Estavam todos marcadoscom algo da determinação eenergia de quem os fizera; eramtodos golpes perfeitamentedestreinados do pincel sobre umaidéia semi-realizada, sugeridapor um morro ou árvore; de certaforma todos eram bemcaracterísticos de Mrs. Flushing.

– Eu vejo as coisas semovendo – explicouMrs.Flushing. – Assim – elavarreu o ar com a mão. Depoispegou um dos papelões que

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Rachel pusera de lado, sentou-senuma banqueta e começou a fazerfloreios com um pedaço decarvão. Enquanto se ocupava emtraços que pareciam servir-lhecomo a fala serve a outraspessoas,Rachel, muito inquieta,olhava ao redor.

– Abra o armário – disse Mrs.Flushing depois de al-gum tempo,falando indistintamente porqueestava com um pincel na boca – eolhe as coisas.

Como Rachel hesitasse, Mrs.

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Flushing aproximou-se,ainda comum pincel na boca, abriu comímpeto as portas do guarda-roupae jogou na cama uma quantidadede xales, mantos, panos ebordados; Rachel começou aapalpálos. Mrs. Flushing chegoumais uma vez e largou umaquantidade de contas, broches,brincos, braceletes, enfeites epentes entre os tecidos. Depoisvoltou para sua banqueta ecomeçou a pintar em silêncio. Ostecidos eram coloridos, escuros e

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pálidos; formavam uma curiosatorrente de linhas e cores sobre acolcha, com os montinhosvermelhos de pedra, e penas depavão, e cor de casco de tartarugados pentes no meio de tudo.

As mulheres os usavam hácentenas de anos, e ainda os usamcomentou Mrs. Flushing. – Meumarido sai por aí e os encontra;ninguém sabe o que valem, demodo que os compramos barato.E vamos vendê-los para oselegantes de Londres – disse ela

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numa risadinha, como se a idéiadessas damas e sua absurdaaparência a divertisse. Depois depintar alguns minutos, ela derepente largou o pincel e fixou osolhos em Rachel.

Vou lhe dizer o que querofazer. Quero ir até ali em cima ever as coisas por mim mesma. Ébesteira ficaraqui com um bandode velhas solteironas como seestivéssemos numa praia daInglaterra. Quero ir rio acimaever os nativos em seus

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acampamentos. É só umaquestãode uns dez dias em tendasde lona. Meu marido fez isso. Agente ficaria deitada debaixo deárvores à noite e dedia desceria orio; se víssemos alguma coisabonita gritaríamos para queparassem. – Ela levantou-se ecomeçoua enfiar na camarepetidamente um longo alfinetedourado, enquanto olhava paraver o efeito de sua sugestãoemRachel.

– Temos de organizar um

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grupo – prosseguiu ela. – Dezpessoas poderiam alugar umalancha. Agora, você virá e Mrs.Ambrose também, e Mr. Hirst eaquele outro cavalheiro, virão?Onde há um lápis?

Ela ficava cada vez maisdecidida e animada à medida quedesenvolvia seu plano. Sentou-sena beira da cama eanotou umalista de sobrenomes, queinvariavelmente escrevia errado.Rachel ficou entusiasmada, poisna verdade aidéia era

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incrivelmente deliciosa. Sempretivera muita vontade de ver o rio,e o nome de Terence lançava umbrilho sobre essa perspectiva,tornando-a quase boa demaisparaser verdade. Fez o que podiapara ajudar Mrs.Flushing,sugerindo nomes,ajudando-a a soletrá-los direito ecalculando os dias da semana nosdedos. Como Mrs. Flushingqueria saber tudo o que Rachelpodia dizer sobre a origeme aocupação de cada pessoa

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sugerida, e ela inventavaloucashistórias sobre otemperamento e os hábitos deartistas epessoas do mesmo nomeque costumavam vir aChillingleynos velhos tempos,mas que sem dúvida não eram asmesmas pessoas, embora fossemtambém aqui homens inteligentesinteressados em egiptologia, essaatividade consumiu algum tempo.Finalmente Mrs. Flushing buscouajudaem seu diário, pois ométodo de adivinhar datas nos

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dedosnão era eficaz. Abriu efechou cada gaveta de suaescrivaninha e então gritou,furiosa:

– Yarmouth! Yarmouth!Maldita mulher! Sempre ausentequando preciso dela! Nessemomento soou no frenesi domeio-dia o gongo do almoço.Mrs. Flushing tocouviolentamente a sineta. A portaabriu-se e uma criada bonita,quase tão ereta quanto sua patroa,entrou.

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– Ah, Yarmouth – disse Mrs.Flushing –, encontre meu diário eveja quando é dez dias daqui paraa frente,e indague ao porteiro dosaguão quantos homens seriamnecessários para levar a remooito pessoas rio acima por umasemana, quanto isso custaria,ponha num pedaço de papel edeixe no meu toucador. Agora... –ela apontou a porta com umindicador imperioso de modo queRachel teve de ir à frente.

– Ah, Yarmouth – Mrs.

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Flushing chamou. – Guarde essascoisas e pendure-as em seuslugares, boa menina, ou Mr.Flushing fica furioso.

E a tudo isso Yarmouth apenasrespondia:

– Sim, senhora. Quandoentraram na longa sala de jantarera óbvio que o dia ainda eradomingo, embora o estado deânimo lentamente decaísse. Amesa dos Flushing estava postajunto dajanela, de modo que Mrs.Flushing podia ver cada

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pessoaque entrasse, e suacuriosidade parecia intensa.

– A velha Mrs. Paley –sussurrou quando uma cadeira derodas passou lentamente pelaporta, com Arthuratrás,empurrando. – OsThornbury – chegaram depois. –Aquela simpática mulher – ela fezRachel olhar para Miss Allan. –Como é o nome dela? – A senhoramaquiada que sempre chegavatarde, entrando na sala compassinhos pequenos e um sorriso

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preparado como se entrasse numpalco, quase se intimidou sob oolhar de Mrs. Flushing,queexpressava a sua férreahostilidade para com toda a tribode damas maquiadas. Depoisentraram os dois rapazes a quemMrs. Flushing chamavacoletivamente “os Hirt”.Sentaram-se do outro lado docorredor.

Mr. Flushing tratava suaesposa com um misto deadmiração e indulgência,

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compensando com a suavidade efluência de sua fala a rudeza dasmaneiras dela. Enquanto eladisparava seus comentários, eledava a Rachel um esboço dahistória da arte sul-americana,atendia a uma das exclamações daesposa, e depois voltavasuavemente como sempre ao seutema. Sabia muito bem tornar umalmoço agradável sem ser chatoou íntimo demais. Formara aopinião, contou a Rachel, de quehavia tesouros maravilhosos

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escondidos no interior do país; ascoisas que Rachel vira eramapenas quinquilharias apanhadasdurante uma breve jornada. Eleachava que devia haver deusesgigantes esculpidos na pedra daencosta da montanha; e figurascolossais engastadas no meio devastas pastagens verdes,ondeninguém jamais estivera senãonativos. Antes do amanhecer daarte européia, ele acreditava queos caçadores e sacerdotes antigoshaviam construído templos de

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pedras maciças, formando com asrochas escuras e grandes cedrosfiguras majestosas de deuses eferas, e de símbolos das grandesforças, a água, o ar e a floresta,entre as quais viviam. Podiahaver cidades pré-históricas, emclareiras, como aquelas na Gréciae na Ásia, cheias de obrasdaquela antiga raça. Ninguémjamais estivera lá; quase nada sesabia a respeito. Falando assim, eexpondo a mais pitoresca de suasteorias, ele atraía a atenção de

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Rachel.Ela não via que Hewet ficava

olhando para ela do outro lado docorredor, entre as figuras dosgarçons correndo com pratos. Elenão prestava atenção em nada, eHirst também o achava mal-humorado e desagradável. Osdois haviam tocado em todos osassuntos – política e literatura,mexericos e cristianismo. Haviamdiscutido a respeito da cerimôniaque, segundo Hewet, era em tudotão boa quanto Safo, de modo que

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o paganismo de Hirst era meraostentação. Por que ir à igreja,perguntou ele, só para ler Safo?Hirst comentou que escutara cadapalavra do sermão, o que poderiaprovar se Hewet quisesse umarepetição; e foi à igreja paraentender a natureza do seucriador, o que fizera muitointensamente naquela manhãgraças a Mr. Bax, que o inspiraraa escrever três das mais soberbaslinhas da literatura inglesa, umainvocação à Divindade.

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– Eu as escrevi no verso doenvelope da última carta deminha tia – disse ele, e tirou-odas páginas de Safo.

– Bem, vamos ouvi-las – disseHewet, um pouco abrandado pelaperspectiva de uma discussãoliterária.

– Meu caro Hewet, você querque nós dois sejamos postos parafora do hotel pela turbaenfurecida dos Thornbury e dosElliot? – indagou Hirst. – Ummero sussurro seria suficiente

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para me incriminar parasempre.Meu Deus! De queadianta tentar escrever quando omundo está habitado por idiotasmalditos como esses? Sério,Hewet, aconselho-o a desistir daliteratura. De que adianta? Eis asua platéia.Ele fez um sinal decabeça na direção das mesasonde uma coleção muito variadade europeus estava agoraentretida comendo, em algunscasos mascando, aquelas fibrosasaves estrangeiras. Hewet olhou e

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ficou mais irritado do que nunca.Hirst também olhou. Seus olhoscaíram sobre Rachel e ele lhe fezuma mesura.

– Acho que Rachel estáapaixonada por mim – comentouele quando seus olhos voltaramao prato. – Isso é o pior nasamizades com jovens... elastendem a se apaixonar por nós.

Hewet não respondeu nada esentava-se estranhamente quieto.

Hirst parecia não se importarpor não obter resposta,pois

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voltou àquele Mr. Bax, citando aperoração sobre a gota d’água;Hewet mal respondeu a essescomentários, e Hirst apenasapertou os lábios, escolheu umfigo e concentrou-se bastantesatisfeito em seus própriospensamentos, dos quais sempretinha um grandesuprimento.Quando o almoçoacabou, separaram-se, levandosuas xícaras de café paradiferentes partes do saguão.

De sua cadeira sob uma

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palmeira Hewet viu Rachelsairda sala de jantar com os Flushing;viu-os olhar emtorno procurandocadeiras e escolher três numcantoonde podiam continuarfalando em particular. Mr.Flushing discursava a plenovapor. Exibiu uma folha de papelna qual fazia desenhos enquantoconversava. ViuRachel inclinar-se e apontar aqui e ali com odedo.Hewet comparou poucobondosamente Mr. Flushingqueestava extremamente bem-vestido

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para um climaquente e tinhamaneiras bastante elaboradas,como umdono de loja persuasivo.Nesse meio tempo,enquantoolhava para eles, viu-seenredado com os ThornburyeMiss Allan, que depois dehesitarem um minuto oudois,instalaram-se em cadeiras aoredor dele, segurando asxícarasnas mãos. Quiseram saber sepodia-lhes contaralguma coisasobre Mr. Bax. Mr. Thornburycomo decostume sentava-se sem

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dizer nada, olhando vagamenteemfrente, às vezes erguendo seusóculos como se osquisessecolocar no rosto, mas sempremudando de idéiano últimomomento e deixando-os cair denovo. Depois de algumadiscussão, as senhoras decidiramque Mr. Bax não era filho deWilliam Bax. Houve uma pausa.EntãoMrs. Thornbury comentouque ainda tinha o hábito dedizerrainha em vez de rei no HinoNacional. Houve outra pausa.

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Então Miss Allan dissepensativamente queir à igreja noestrangeiro sempre a fazia sentirque estivera no enterro de ummarinheiro. Houve então umapausa bastante longa, queameaçava ser derradeira, quando,misericordiosamente, um pássaromais ou menos dotamanho de umpintassilgo, mas de cor azulmetálico,apareceu na parte doterraço que podia ser vista deondeestavam sentados. Mrs.Thornbury perguntou se devíamos

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querer que todas as nossasgralhas fossem azuis:

– O que você acha, William? –perguntou ela, tocando o joelhodo marido.

– Se todas as nossas gralhasfossem azuis – ele levantou osóculos e realmente os botou nonariz –, não viveriam muito tempoem Wiltshire – concluiu, tirandonovamente os óculos. Os trêsmais velhos agora contemplavammeditativos o pássaro que fez oobséquio de ficar no meio da

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paisagem por um tempoconsiderável, dispensando-os defalarem novamente. Hewetcomeçava a imaginar se nãopoderia ir até o canto dosFlushing, quando Hirst apareceudo fundo, enfiou-se numa cadeiraao lado de Rachel e começou afalar com ela com todo o ar defamiliaridade. Hewet não pôdemais suportar. Levantouse, pegouseu chapéu e disparou portaafora.

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18

Tudo o que ele via lhedesagradava. Odiava o azul e obranco, a intensidade e a nitidez,os ruídos e o calor do sol; apaisagem lhe parecia tão dura eromântica quanto um cenário depapelão no palco, e a montanhaera apenas um biombo de madeiradiante de um lençol tingido deazul. Ele caminhava depressaapesar do calor do sol.

Dois caminhos saíam dacidade do lado leste; um levava

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na direção da villa dos Ambrose,o outro entrava pelo interiorchegando a uma aldeia naplanície, mas muitas trilhas, feitasem terra úmida, brotavam deleatravessando grandes camposressequidos, conduzindo afazendas esparsas e villas denativos ricos. Hewet saiu docaminho numa dessas trilhas paraevitar a dureza do calor daestrada principal, cuja poeira erasempre erguida em nuvenzinhaspelas carroças e cabriolés

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desengonçados que transportavamgrupos de camponeses festivos,ou perus avolumando-seirregularmente como um monte debalões sob uma rede ou caixas depresentes e a cabeceira de camade latão de algum par de recém-casados.

O exercício serviu na verdadepara remover as irritaçõessuperficiais da manhã, mas elecontinuava infeliz. Pareciafora dedúvida que Rachel não ligavapara ele, pois quasenem olhara, e

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conversara com Mr. Flushing como mesmointeresse com que falaracom ele. Finalmente, asodiosaspalavras de Hirstgolpearam sua mente como umachibata,e recordou que a deixaraconversando com ele. Naquelemomento dialogava com ele, epodia ser verdade que estivesseapaixonada por Hirst, como estedissera. Hewet examinou todas asprovas dessa suposição – osúbito interessedela pelosescritos de Hirst, seu jeito de

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citar respeitosamente ou comapenas meio sorriso as opiniõesdele; o ape-lido que lhe dera, “ogrande Homem”, podia conteralgumsignificado sério. Supondoque houvesse algum entendimentoentre eles, o que isso significaria?

– Que droga tudo isso! – disse.– Estou apaixonado por ela? – Esó podia dar-se uma únicaresposta.Certamente estariaapaixonado por ela, se soubesse oque era amor. Desde que a viraficara interessado e atraído,cada

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vez mais interessado e atraído,até quase nem poder pensar emnada exceto em Rachel. Masenquanto deslizava para umadaquelas longas meditações sobreambos, ele se testou perguntando-se: queria casar-se com ela? Esseera o problema real, pois essasmisérias e agonias não podiamser suportadas, e era precisodecidir-se. Decidiuimediatamente que não queria secasar com ninguém. Em parteporque estava irritado com

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Rachel, a idéia de casamento oirritava. Sugeria-lheimediatamente a imagem de duaspessoas sentadas sozinhas diantede uma lareira; o homem estavalendo, a mulher costurando.Havia uma segunda imagem. Elevia um homem saltar de pé, dizerboa-noite, deixar o grupo eafastar-se depressa com o secretoolhar de quem está fugindo parauma certa felicidade. Esses doisquadros eram desagradáveis, emais ainda um terceiro quadro, de

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marido e mulher e amigo; e oscasados olhando-se como seficassem satisfeitos em deixarpassar alguma coisa nãoabordada, pois eles própriospossuíam uma verdade maisprofunda. Outras imagens – elecaminhava muito depressa na suairritação e elas lhe surgiam semesforço consciente, como imagensnum lençol – sucederam-se. Aquiestavam o marido exausto e aesposa, sentados com os filhos aoredor, muito pacientes,tolerantes

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e sábios. Mas isso também erauma imagem desagradável. Eletentou toda a sorte de quadrostirados das vidas de amigos seus,pois conhecia vários casaisdiferentes, mas sempre os viafechados numa sala iluminada porum fogo de lareira. Quando deoutro lado começava a pensar empessoas solteiras, via-as ativasnum mundo ilimitado; sobretudono mesmo nível que os demais,sem abrigo ou vantagem. Os maisindividuais e humanos de seus

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amigos eram solteirões esolteironas; na verdade estavasurpreso ao ver que as mulheresque mais admirava e conheciamelhor eram solteiras. Ocasamento parecia pior para asmulheres do que para os homens.Deixando de lado esses quadrosgerais, analisou as pessoas queandara observando ultimamenteno hotel. Muitas vezes resolveraessas questões em sua menteobservando Susan e Arthur,ouMr.e Mrs.Thornbury,ou Mr.e

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Mrs.Elliot.Observara como atímida felicidade e surpresa doscasais foram gradualmentesubstituídas por um estado deespírito confortável e tolerante,como se já tivessem liquidado aaventura da intimidade eestivessem assumindo seuspapéis. Susan costumavaperseguir Arthur com um suéterporque um dia ele revelara queum irmão seu morrera depneumonia.A visão disso odivertia, mas não era agradável

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quando se punha Terence eRachel no lugar de Arthur eSusan; e Arthur estava bem menosdesejoso de pegar as pessoas numcanto e falar sobre voar e osmecanismos de aeroplanos. Iriamse dar bem. Depois ele olhou oscasais que estavam casados hávários anos. Era verdade queMrs.Thornbury tinha um marido eque na maior parte do tempoconseguia maravilhosamentemetê-lo na conversa,mas não sepodia imaginar o que diziam

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quando estavam sozinhos. Haviadificuldade com relação aosElliot, exceto que provavelmentediscutiam francamente emparticular.Às vezes discutiam empúblico, embora essesdesacordos fossemminuciosamente recobertos pelaspequenas insinceridades da parteda esposa, que era mais burra queo marido e tinha dificuldades emacompanhá-lo. Não podia haverdúvida de que teria sido melhorpara o mundo se aqueles casais se

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separassem. Até os Ambrose, aquem admirava e respeitavaprofundamente, apesar de todo oamor entre eles, o seu casamentonão era, sobretudo, umaacomodação? Ela cedia a ele; elao mimava; ela arranjava as coisaspara ele; ela, que era todaverdade com os outros,não eraverdadeira com seu marido, nemera leal com os amigos quandoentravam em conflito com omarido dela.Era uma nódoaestranha e lastimável no caráter

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dela. Talvez Rachel estivessecerta quando disse naquela noiteno jardim: “Nós provocamos oque há de pior um no outro...devíamos viver separados”.

Não, Rachel estava totalmenteerrada! Todos os argumentospareciam ser contra assumir acarga de um casamento, atéchegar ao argumento de Rachel,que era manifestamente absurdo.De perseguido ele passava aperseguidor. Deixando de lado ocaso contra o casamento,

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começou a analisar aspeculiaridades de caráter que atinham levado a dizer aquilo.Falara sério? Certamente se deviaconhecer o caráter da pessoa comquem se pretendesse passar avida inteira; sendo romancista,ele que tentasse descobrir quetipo de pessoa ela era. Quandoestava com ela, não conseguiaanalisar suas qualidades porqueparecia conhecê-las por instinto,mas quando estava afastado, àsvezes lhe parecia que não a

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conhecia. Era jovem mas tambémvelha; tinha pouca confiança emsi mesma, mas também era boaem julgar outras pessoas. Erafeliz, mas o que a fazia feliz? Seestivessem sozinhos e a excitaçãotivesse passado, e tivessem delidar com os fatos banais do dia,o que aconteceria? Lançando umolhar em seu próprio caráter, duascoisas apareciam: era muitoimpontual e não gostava deresponder a bilhetes. Até ondesabia, Rachel inclinava-se a ser

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pontual, mas ele não se lembravade jamais tê-la visto com umacaneta na mão. Depois eleimaginava um jantar, digamos noCroom, e Wilson, que a levara atélá, falando sobre a situação dopartido liberal.Ela diria quenaturalmente não sabia nada depolítica.

Mesmo assim, era com certezainteligente e também honesta. Seutemperamento era incerto – elenotara isso –, e não eradoméstica, não era fácil e não era

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quieta, nem bela, exceto emalgumas roupas com algumasluzes. Mas o seu grande talentoera compreender o que lhediziam;nunca houve ninguém iguala ela para se falar. Podia-se dizerqualquer coisa – podia dizer tudo,e ela jamais era servil. Aqui elese sobressaltou, pois de repentelhe pareceu que sabia menossobre ela do que sobre qualquerpessoa. Todos esses pensamentosjá lhe haviam ocorrido muitasvezes; muitas vezes ele tentara

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argumentar e discutir; enovamente chegara ao velhoestado de dúvida.Não a conheciae não sabia o que ela sentia, nemse podiam viver juntos, ou sequeria se casar com ela, masestava apaixonado por ela.

E se fosse até ela e lhedissesse (ele diminuiu o passo ecomeçou a falar alto como sefalasse com Rachel).

– Eu adoro você mas odeio ocasamento, odeio sua presunção,sua segurança, suas concessões, e

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a idéia de você interferir no meutrabalho, impedindo-me; o quevocê responderia?

Ele parou, recostou-se notronco de uma árvore e ficouolhando sem ver algumas pedrasespalhadas na margem do leitoseco do rio. Via claramente orosto de Rachel, os olhoscinzentos, o cabelo, a boca; orosto que podia ser tantas coisas– liso, vazio, quase insignificante,ou louco,apaixonado, quase belo,mas aos olhos dele sempre o

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mesmo por causa daextraordinária liberdade com queela o encarava e dizia o quesentia. O que ela haveria deresponder? O que sentia? Amava-o ou não sentia nada nem por elenem por outro homem, sendo,como ela dissera naquela tarde,livre como o vento ou o mar?

– Ah, você é livre! – exclamouele exultante ao pensar nela. – Eeu a manterei livre. Seremoslivres juntos. Vamos partilhartudo juntos. Nenhuma felicidade

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seria como a nossa. Vida algumapoderia comparar-se às nossas. –Ele abriu bem os braços, como sequisesse encerrar num só abraçoa ela e ao mundo.

Já não conseguindo analisar ocasamento ou avaliar friamentecomo era a natureza dela, nemcomo seria viverem juntos, elecaiu no chão e ficou sentadoabsorvido na lembrança dela,logo atormentando-se com odesejo de estar novamente na suapresença.

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19

Mas Hewet não precisava teraumentado seus tormentosimaginando que Hirst aindafalava com Rachel. O grupo logose desfizera, os Flushing indonuma direção,Hirst em outra, eRachel ficando no saguão,remexendo nas revistas, passandode uma a outra, movimentosexpressando o desejo inquieto einforme na sua mente. Não sabiase devia ir ou ficar, embora Mrs.Flushing lhe tivesse ordenado que

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aparecesse para o chá. O saguãoestava vazio, exceto por MissWillett, que tocava escalas numafolha de música sacra, e pelosCarter, um casal opulento que nãogostava da moça, porque oscadarços de seus sapatos estavamdesarrumados e ela não pareciasuficientemente alegre, o que poralgum processo indireto depensamento os fazia pensar quenão gostava deles. Rachel nãoteria gostado deles se os tivessevisto, pelo excelente motivo de

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que Mr. Carter cofiava seubigode, e Mrs.Carter usavabraceletes; eram evidentemente otipo de pessoas que não gostariamdela; mas estava absorvidademais na sua própria inquietaçãopara pensar ou olhar.

Ela virava as páginasescorregadias de uma revistaamericana quando a porta dosaguão se abriu num ímpeto, umabeira de luz caiu sobre o chão, euma figura pequena e branca,sobre a qual a luz parecia facada,

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atravessou o salão diretamenteaté ela.

– O quê! Você está aqui? –exclamou Evelyn. – Eu a virapidamente no almoço; mas vocênão teve a bondade de olhar paramim!

Era parte do caráter de Evelynque, apesar de muitas afrontasque recebia,jamais desistisse debuscar as pessoas que queriaconhecer, e a longo prazogeralmente conseguia conhecê-lase até fazê-las gostarem dela.

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Evelyn olhou em torno.– Odeio este lugar, odeio essa

gente. Queria que subisse comigoao meu quarto. Quero conversarcom você.Como Rachel nãoquisesse nem ir nem ficar, Evelynpegou-a pelo pulso e puxou-apara fora do saguão, escadaacima.Enquanto subiam doisdegraus de cada vez,Evelyn,queainda segurava a mão de Rachel,soltava frases fragmentadas sobrenão dar a mínima para o que aspessoas diziam.

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– Por que se deveria, sabendo-se que se está certa? Eles que sedanem! É o que eu acho!

Estava muito excitada, e osmúsculos de seus braçosrepuxavam-se nervosamente. Eraóbvio que estava apenasesperando que a porta fechassepara contar tudo a Rachel.

Na verdade, assim quechegaram ao quarto, ela se sentouna beira da cama e disse:

– Acho que você pensa quesou louca.

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Rachel não estava emcondições de pensar claramentesobre o estado mental deninguém. Mas estava emcondições de dizer diretamente oque lhe ocorresse, sem medo dasconseqüências.

– Alguém a pediu emcasamento – comentou.

– Como foi que vocêadivinhou? – exclamouEvelyn,prazer misturando-se comsua surpresa. – Eu pareço queacabo de ser pedida em

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casamento?– Você parece que é pedida

todos os dias – respondeu Rachel.– Mas acho que não fui pedida

mais do que você – riu Evelyn,não muito sincera.

– Nunca fui pedida.– Mas vai ser... montes... é a

coisa mais fácil do mundo... Masnão foi bem isso que aconteceuesta tarde. É... ah, éuma confusão,uma confusão nojenta, horrível,detestável!Ela foi até à pia ecomeçou a passar a esponja nas

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faces,com água fria, pois estavamqueimando. Ainda molhando-as etremendo um pouco, virou-se eexplicou com voz aguda denervosismo:

– Alfred Perrott diz queprometi me casar com ele,mas eununca fiz isso. Sinclair diz quevai se matar com um tiro se eunão me casar com ele, e eu digo“Então,mate – se!” Masnaturalmente ele não vai sematar... eles nunca se matam. ESinclair me agarrou esta tarde e

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começou a me aborrecer para eulhe responder, acusandome deflertar com Alfred Perrott, disseque não tenho coração, que souapenas uma sereia, ah, equantidades de coisas agradáveisdesse tipo. Então finalmente eulhe dis-se “Bem, Sinclair, agoravocê já disse o bastante. Pode melargar”. E aí ele me agarrou e mebeijou... aquele bruto nojento... eainda posso sentir seu repulsivorosto cabeludo bem aqui... comose ele tivesse algum direito,

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depois de tudo o que disse!Ela esfregou energicamente

uma pinta em sua face esquerda.Nunca conheci um homem que

pudesse se comparar a umamulher! – gritou ela.

Eles não têm dignidade, nãotêm coragem, não têm nada senãosua paixões bestiais e sua forçabruta! Alguma mulher teria seportado daquele jeito se umhomem tivesse dito que não aquer? Nós temos muita dignidade;somos infinitamente melhores que

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eles.Evelyn caminhou pelo quarto

limpando as faces molhadas comuma toalha. Agora corriamlágrimas com as gotas de águafria.

– Isso me deixa furiosa –explicou secando os olhos.

Rachel sentou-secontemplando-a. Não pensava naposição de Evelyn; apenaspensava que o mundo estavacheio de gente atormentada. –Aqui há só um homem de quem eu

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realmente goste – continuouEvelyn –, Terence Hewet. Sente-se que se pode confiar nele.

Essas palavras provocaramum frio indescritível em Rachel;seu coração parecia estar sendoapertado entre mãos geladas.

– Por quê? – perguntou. – Porque se pode confiar nele?

– Não sei – disse Evelyn. –Você não tem sensações comrelação às pessoas? Sensaçõesque tem absoluta certeza de queestão corretas? Tive uma longa

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conversa com Terence outra noite.Senti que depois disso ficamosrealmente amigos. Há dentro delealgo de uma mulher... – Ela paroucomo se estivesse pensando emcoisas muito íntimas que Terencelhe tivesse contado, ou pelomenos foi assim que Rachelinterpretou aquele olhar.

Tentou forçar-se a dizer: “Elea pediu em casamento?”mas aquestão era inusitada demais, eem outro momento Evelyn estavadizendo que os melhores homens

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eram como mulheres, e que asmulheres eram mais nobres doque os homens... por exemplo,não se podia imaginar uma mulhercomo Lillah Harrison pensandouma coisa má ou tendo qualquercoisa falsa.

– Como eu gostaria que você aconhecesse! – exclamou.

Estava ficando bem maiscalma, e suas faces já estavambastante secas. Seus olhos tinhamrecuperado a habitual expressãode vitalidade ousada, e ela

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parecia ter esquecido Alfred eSinclair e sua emoção.

– Lillah mantém uma casa paramulheres alcoolizadas naDeptford Road – prosseguiu. –Fundou-a, administrou-a e feztudo por sua própria conta, eagora é a maior do seu tipo naInglaterra. Você não podeimaginar como são essasmulheres... e seus lares. Mas elaanda entre elas todas as horas dodia e da noite. Estive com elavárias vezes... É isso que

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acontece conosco... Nós nãofazemos coisas. O que é que vocêfaz? – perguntou ela olhando paraRachel com um sorriso levementeirônico. Rachel quase nãoescutara nada daquilo, e suaexpressão era vaga e infeliz.Sentia tanta antipatia por LillahHarrison e seu trabalho naDeptford Road, quanto porEvelyn M. e sua profusão decasos de amor.

Eu toco – disse ela com umaafetação de fria serenidade.

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Mas é isso! – riu Evelyn. –Nenhuma de nós faz outra coisasenão tocar piano. E é por issoque mulheres comoLillahHarrison, que valem por vinte denós, têm de se ma-tar trabalhando.Mas eu estou cansada de tocar –ela continuou, estendendo-se nacama, erguendo os braçosacimada cabeça. Assim esticada,parecia menor que nunca.

Eu vou dizer alguma coisa.Tive uma idéia esplêndida. Olheaqui, você tem de participar.

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Estou certa deque tem bastantematerial dentro de si, emborapareça...bem, como se tivessepassado a vida toda num jardim.–Ela soergueu-se na cama,sentou-se e começou a explicaranimadamente. – Pertenço a umclube em Londres. Nós nosreunimos todos os sábados, demodo que sechama SaturdayClub. Devemos falar sobre arte,mas estou enjoada de falar emarte... de que adianta? Com tan-totipo de coisas reais acontecendo

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por aí? E elas nemtêm nada adizer sobre arte. Então o que voulhes dizeré que já falamos demaissobre arte, e que é melhorparavariar falarmos sobre a vida.Questões que realmenteimportamnas vidas das pessoas, o tráficode escravasbrancas, o votofeminino, o projeto deprevidência etc. Equandotivermos decidido o quequeremos fazer, podemos nosarriscar para o fazermos... Estoucerta de que sepessoas como nós

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tomassem as rédeas nas mãos emvezde deixá-las a cargo depoliciais e magistrados,poderíamos parar com... – elabaixou a voz para pronunciarafeia palavra – a prostituição emseis meses. Minha idéiaé quehomens e mulheres deveriamunir-se nesses assuntos.Devíamos ir a Piccadilly einterpelar uma dessaspobresinfelizes e dizer: “Olhe aqui, eunão sou melhorque você, nemfinjo ser melhor, mas você está

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fazendouma coisa que sabe serabominável, e não quero quefaçacoisas abomináveis porquedebaixo de nossa pelesomostodas iguais... por isso, sevocê faz uma coisaabominávelisso me importa”. É oque Mr. Bax estava dizendoestamanhã, e é verdade, emboravocês, gente inteligente...você éinteligente, não é?... não acredite.

Quando Evelyn começava afalar – fato de que logo searrependia – seus pensamentos

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vinham tão depressa que nuncatinha tempo de escutar ospensamentos de outras pessoas.Continuou parando apenas otempo necessário para tomarfôlego.

– Não vejo porque o SaturdayClub não pudesse fazer um grandetrabalho dessa maneira –prosseguiu. – Naturalmente issoexigiria organização, alguém quedesse a vida por essa causa, masestou disposta a fazer isso.Minhaidéia é pensar em seres humanos

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primeiro e deixar idéias abstratasa cargo de si mesmas. O que estáerrado com Lillah... se há algumacoisa errada com ela... é quepensa que a moderação vemprimeiro e as mulheres depois.Mas há uma coisa que quero dizera meu respeito,não sou intelectualnem artista nem nada disso, massou muito humana. – Elaescorregou da cama e sentou-seno chão, erguendo os olhos paraRachel. Perscrutava o rosto delacomo se estivesse tentando ler

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que tipo de personalidade seescondia por trás daquele rosto.Pôs a mão no joelho de Rachel.

– São seres humanos o queinteressa, não é? – prosseguiu ela.– Sermos reais,não importa o quediga Mr.Hirst.Você é real?

Rachel sentiu, assim comoTerence sentira, que Evelynestava demasiado próxima dela eque havia algo de excitante nessaproximidade, embora tambémfosse algo desagradável. Mas nãoprecisou encontrar resposta

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porque Evelyn prosseguia:– Você acredita em alguma

coisa?Para acabar com o escrutínio

daqueles claros olhos azuis ealiviar sua própria inquietaçãofísica, Rachel empurrou suacadeira para trás e exclamou:

– Em tudo! – e começou amanusear diferentes objetos, oslivros na mesa, as fotos, a plantade folhas carnudas com cerdasduras num grande pote de argilana janela.

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– Acredito na cama, nosretratos, no pote, na sacada,nosol, em Mrs. Flushing – comentouela ainda descuidadamente, comalgo no fundo de sua menteforçando-a a dizer coisas quehabitualmente não se dizem. –Mas não acredito em Deus. Nãoacredito em Mr. Bax, não acreditona enfermeira do hospital. Nãoacredito... – ela pegou um retratoe, olhando para ele, não concluiua frase.

– É minha mãe – disse Evelyn,

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que ficou sentada no chão,abraçando os joelhos com obraço e observando Rachel comcuriosidade. Rachel examinava afoto.

– Bem, não acredito muitonela – comentou algum tempodepois, em voz baixa.

Mrs. Murgatroyd na verdadeparecia como se a vida tivessesido espremida para fora dela;ajoelhava-se numa cadeiraespiando comovida atrás docorpo de um cachorro da

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Pomerânia que ela apertavacontra o rosto como se buscasseproteção.

E esse é o meu papai – disseEvelyn, pois havia duas fotos namoldura. A segunda representavaum belo soldado com traçosregulares e espesso bigode preto;sua mão pousava no punho daespada; havia uma evidentesemelhança entre ele e Evelyn.

E é por causa deles – disseEvelyn – que vou ajudar as outrasmulheres. Você ouviu falar em

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mim, eu acho? Sabe, eles nãoeram casados; eu não sou ninguémespecial e não tenho nenhumavergonha disso. Eles seamavam,seja como for, e isso émais do que a maior parte daspessoas pode dizer de seus pais.

Rachel sentou-se na cama comos dois retratos na mão ecomparou-os – o homem e amulher que, segundo Evelyn,tinham se amado tanto. O fato ainteressava mais do que acompanhia em favor das mulheres

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desafortunadas que Evelyncomeçava a descrever mais umavez. E novamente olhava de umpara o outro.

Quando Evelyn parou por umminuto de falar, Rachel indagou:

– Como você acha que é estarapaixonado?

– Você nunca se apaixonou? –perguntou Evelyn. – Ah, não...basta olhar para você e ver isso –acrescentou e pensou um pouco. –Eu estive apaixonada realmenteuma vez – disse, e passou a

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refletir; seus olhos perderam abrilhante vitalidade aproximando-se de algo parecido com ternura.– Foi divino!... enquanto durou. Opior é que não dura, não comigo.Esse é que é o problema.

Evelyn passou a analisar adificuldade com Alfred e Sinclairsobre a qual fingira pedirconselho a Rachel. Mas nãoqueria conselho; queriaintimidade. Quando olhava paraRachel, que ainda olhava a fotona cama, não pôde deixar de notar

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que Rachel não estava pensandonela.Então, em que estavapensando? Evelyn foiatormentada pela pequenacentelha de vida nela que sempretentava abrir caminho até outraspessoas e era semprerejeitada.Silenciando, contemplousua visitante, seus sapatos, asmeias, os pentes no cabelo, todosos detalhes de sua roupa,enfim,como se, apanhando cadapormenor, pudesse aproximar-semais da vida ali dentro.

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Finalmente Rachel largou osretratos, caminhou até a janela ecomentou:

Esquisito. As pessoas falamde amor tanto quanto falam dereligião.

Eu queria que você se sentassepara conversar – disse Evelyn,impaciente.

Em vez disso Rachel abriu ajanela, que era de duas altasvidraças, e olhou para o jardim láembaixo.

– Foi lá que nos perdemos a

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primeira noite – disse ela.– Deve ter sido naqueles

arbustos.– Ali embaixo elesmatam galinhas – disse Evelyn. –Cortam as cabeças delas com umafaca... nojento! Mas diga-me... oque...

– Eu gostaria de explorar ohotel – interrompeuRachel.Recolhe a cabeça paradentro do quarto e olhou paraEvelyn, que ainda estava sentadano chão.

– É como todos os outros

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hotéis – disse Evelyn.Podia ser, embora cada quarto,

corredor e cadeira do lugartivesse um caráter próprio aosolhos de Rachel; mas ela nãoconseguia força se a ficar maistempo no mesmo lugar. Moveu-selentamente na direção da porta.

– O que você quer? – disseEvelyn. – Você me faz sentir queestá sempre pensando em algumacoisa que não diz... Diga! MasRachel não respondeu tampouco aesse convite.Parou com os dedos

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na maçaneta da porta, como serecordasse que esperavam delauma espécie de pronunciamento.

– Acho que você vai se casarcom um deles – disse, girouamaçaneta e fechou a porta atrásde si. Desceu lentamentepelocorredor, passando a mão pelaparede ao lado. Não pensava paraonde ia, por isso seguiu por umcorredor quelevava somente auma janela e uma sacada. Olhoupara baixo, para o pátio dacozinha, o lado errado da vida do

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hotel,que ficava oculto do ladocerto por uma sebe depequenosarbustos. O chão era nu,velhas latas espalhadas por ali,osarbustos cobertos com toalhas eaventais para secarem. Devez emquando um garçom saía numavental branco e jogava lixo nummonte. Duas mulheres grandes emvestidosde algodão sentavam-senum banco com bacias dealumínio manchadas de sangue àfrente e corpos amarelos sobreosjoelhos. Estavam depenando as

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aves e falando enquantodepenavam. De repente umagalinha apareceu ali, estonteada,meio voando, meio correndoperseguida por uma terceiramulher cuja idade podia sermenos de 80. Emborainsegura naspernas e encarquilhada, elacontinuou na suacaçada,estimulada pelo riso das outras;seu rosto expressava uma raivafuriosa, e enquanto corriapraguejava em espanhol.Assustada por um bater de palmas

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aqui, um guardanapo ali, a avecorria de um lado para outro emziguezague, finalmenteesvoaçando direto para a velha,que abriusuas leves saiascinzentas para apanhá-la,tropeçou sobre ela como umatrouxa e então, estendendo-a noar, cortou sua cabeça com umaexpressão de energia vingativa etriunfo combinados. O sangue eaquela feia agitaçãofascinaramRachel de modo que,embora soubesse que alguém

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vierapor trás e parava ao seulado, não se virou até que a velhase tivesse instalado no bancojunto das outras. Então ela ergueuos olhos bruscamente por causada feiúra do que vira.Era MissAllan que estava parada ali.

– Não é uma bela visão,embora eu me atreva a dizer que émais humana do que o nossométodo... Não creio que asenhorita já tenha estado no meuquarto – acrescentou e afastou-se,como se quisesse que Rachel a

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seguisse.Rachel foi, pois pareciapossível que cada pessoa novaremovesse o mistério que pesavasobre ela.

Todos os quartos do hoteltinham o mesmo padrão,apenasalguns eram maiores e outrosmenores; tinham assoalho delajotas vermelho-escuras; tinhamuma cama alta, envolta emmosquiteiros; tinham umaescrivaninha,um toucador e duaspoltronas. Mas assim que se abriauma caixa os aposentos ficavam

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muito diferentes de modo que oquarto de Miss Allan não separecia nada com o de Evelyn.Não havia vários alfinetes dechapéus coloridos sobre otoucador; nem frascos deperfumes; nem pares finos ecurvados de tesouras; nem grandevariedade de botinas e sapatos;nem anáguas de seda sobrecadeiras. O quarto eraextremamente arrumado. Pareciahaver dois pares de tudo. Aescrivaninha, porém, estava

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coberta de pilhas de manuscritos,e uma mesa fora puxada junto dapoltrona, com duas pilhasseparadas de livros escuros debiblioteca, com vários pedaçosde papel emergindo das páginas,em vários graus de espessura.Miss Allan convidara Rachelpara vir por gentileza, pensandoque ela estava por ali esperandosem nada para fazer. Mais queisso,gostava de mulheres jovens,pois dera aulas a muitas delas,etendo recebido tanta

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hospitalidade dos Ambrose,ficava contente em retribuirminimamente. Olhou em torno,buscando algo para lhe mostrar. Oquarto não fornecia muitadistração. Ela tocou seumanuscrito:

– Era de Chaucer; Era deElizabeth; Era de Dryden –refletiu. – Alegra-me que não hajamuito mais eras.Ainda estou nomeio do século. Não quer sesentar, Miss Vinrace? A cadeira,embora pequena, é firme...

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Euphues.O germe do romanceinglês – continuou, olhando outrapágina. – Esse tipo de coisa ainteressa? Ela encarava Rachelcom grande bondade esimplicidade, como se tivessefeito o máximo para lhe dar o queeladesejava. Essa expressão tinhaum notável encanto, num rostocom muitas marcas depreocupações e reflexão.

– Ah, não – exclamou,lembrando-se –, com a senhoritaé a música, não é? E eu

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geralmente acho que nãocombinam. Às vezes, claro, temosprodígios... Olhava em tornoprocurando alguma coisa e viu umpote sobre a lareira, que pegou edeu a Rachel. – Se puser o dedodentro deste vidro poderá extrairum pedaço de gengibre emconserva. A senhorita é umprodígio?

Mas o gengibre estava nofundo e não pôde ser tirado.

– Não se incomode – disseRachel, enquanto Miss Allan

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olhava em torno procurandoalgum instrumento. – Acho quenão vou gostar de gengibre emconserva.

– Você nunca experimentou? –perguntou Miss Allan.

– Então considero um deverseu tentar agora. Ora, podeacrescentar um novo prazer à suavida, e como ainda é jovem... –Ficou imaginando se um ganchode botão funcionaria. – E tenhocomo regra experimentar detudo.Não acha que seria

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aborrecido se experimentassegengibre pela primeira vez no seuleito de morte e achasse que era acoisa melhor do mundo? Euficaria tão aborrecida que ficariaboa só por isso.

Ela conseguiu, e um pedaço degengibre emergiu na ponta dogancho. Enquanto ela foi limpar ogancho,Rachel mordeu o gengibree imediatamente gritou:

Vou ter de cuspi-lo!Tem certeza de que o provou

de verdade? – interrogou Miss

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Allan.Como resposta, Racheljogou-o pela janela.

Seja como for, umaexperiência – disse Miss Allancalmamente. – Vamos ver... nãotenho mais nada a lhe oferecer, anão ser que queira saborear isso.– Sobre sua cama estavapendurado um pequeno armário, edele ela tirou um frasco esguio eelegante, cheio de um líquidoverde brilhante.

Crême de Menthe – disse. –Licor, você sabe. Parece até que

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bebo, não parece? Na verdade eleestá aqui para provar queabstêmia excepcional eusou.Tenho esse frasco há 26 anos– acrescentou ela, contemplando-o com orgulho, enquantoinclinava o frasco, e pela alturado líquido podia-se ver que aindaestava intocado.

– Vinte e seis anos? –exclamou Rachel.

Miss Allan ficou contente,porque queria que Rachel ficassesurpresa.

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– Quando fui a Dresden, há 26anos – disse –, certa amiga minhaanunciou sua intenção de me darum presente. Achava que no casode um naufrágio ou acidenteumestimulante poderia ser útil. Mas,como não tiveocasião de tomá-lo,devolvi-lhe o presente naminhavolta. Na véspera dequalquer viagem, essa mesmagarrafinha sempre aparece, com omesmo bilhete; na voltaé sempredevolvida. Considero-a umaespécie de feitiçocontra acidente.

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Embora uma vez tenha ficado 24horas retida num acidente com otrem na minha frente, eu próprianunca sofri acidente algum. Sim –prosseguiuela, agora falando coma garrafa –, vimos juntosmuitosclimas e armários, não foi?Um desses dias pretendomandarprender nele um rótulo de pratacom uma inscrição. Como podeobservar, é um cavalheiro, eseunome é Oliver... Acho que eunão a perdoaria, MissVinrace, sequebrasse o meu Oliver – disse,

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tirando comfirmeza o frasco dasmãos de Rachel e colocando-onovamente no armário. Rachelestava balançando a garrafinhapelo gargalo.Ficara tãointeressada em Miss Allan queacabara esquecendo o licor.

– Bem – exclamou ela –, achoisso muito esquisito; ter umaamiga há 26 anos, e um frasco,e... ter feito todas aquelasviagens.

– Nada esquisito; eu chamoisso o inverso do esquisito –

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respondeu Miss Allan. – Sempreme considero a pessoa maiscomum que conheço. Esqueci...você é um prodígio,ou disse quenão era prodígio? Ela sorriamuito bondosamente para Rachel.Parecia ter conhecido eexperimentado tanta coisa,enquanto se moviadesajeitadamente pelo quarto, quecertamente de-via haver bálsamopara toda a angústia em suaspalavras,caso se pudesse induzi-la a fazer sinais de romper a

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reticência que a recobria há anos.Uma sensação de desconfortofazia Rachel permanecer calada;de um lado, queria extrair umacentelha daquela fria carnerosada, de outro,percebia que nãohavia nada a fazer senãopassarem uma pela outra emsilêncio.

– Não sou um prodígio. Achomuito difícil dizer o que quero...– comentou ela finalmente.

– Acho que é uma questão detemperamento – Miss Allan veio

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em seu socorro. – Há pessoas quenão têmdificuldade; de minhaparte, acho que há muitascoisasque não consigo dizer. Maseu me considero muito lenta.Umade minhas colegas sabe se gostade alguém ou não...vamos ver,como é que ela faz isso?... pelomodo comodizemos bom-dia nocafé da manhã. Eu às vezes levoanos para me decidir. Mas amaioria dos jovens pareceacharisso fácil.

– Ah, não – disse Rachel. – É

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difícil!Miss Allan olhou para Rachel,

quieta, sem dizer nada;suspeitavade que havia algum tipo deproblema. Depois levou a mão àparte de trás da cabeça edescobriu que um dos caracóisgrisalhos de seu cabelo sesoltara.

– Preciso pedir que me dêlicença – disse, levantando-se

– para eu arrumar meu cabelo.Nunca encontrei umtiposatisfatório de grampo de

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cabelo. Preciso mudar devestidotambém; e gostaria muitode sua ajuda, porque há uma sériede ganchos cansativos que euposso abrir sozinha, masàs vezesisso leva 15 minutos; mas comsua ajuda...Ela despiu casaco,saia e blusa, e postou-se diantedo espelho, arrumando o cabelo,uma figura familiar e maciça, aanágua tão curta que expunha umpar de grossas pernas cinza-azuladas.

– As pessoas dizem que a

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juventude é agradável; eupessoalmente acho a meia-idadebem mais agradável – comentou,removendo grampos e pentes, epegando a escova. Quando caiu,seu cabelo chegava apenas até anuca.

– Quando eu era jovem –prosseguiu, as coisas podiamparecer tão sérias quando se eraassim... E agora,meu vestido.Num espaço maravilhosamentebreve de tempo, seu cabelo forareformado na suas ondas

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habituais. A parte superior do seucorpo tornou-se verde-escuracom listras pretas: mas a saiaprecisava de ganchos em váriosângulos,e Rachel teve deajoelhar-se no assoalho para teros olhos à altura dos ganchos.

– Miss Johnson costumavaachar a vida muito poucosatisfatória, lembro-me disso –continuou Miss Allan virando ascostas para a luz. – Depois elacomeçou a criar porquinhos-da-índia por causa das manchas, e

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ficou absorvida por isso. Acabode ouvir dizer que o porquinhoda-índia amarelo teve um bebê preto.Apostamos seis pence a respeitodisso. Ela vai ficar triunfante.

A saia estava apertada. Elacontemplou-se no espelho com acuriosa rigidez de seu rosto quegeralmente aparece ao olhar-seno espelho.

– Estou adequada para meencontrar com meus semelhantes?– perguntou. – Eu me esqueço decomo é masdizem que animais

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pretos muito raramente têm bebêscoloridos ou é o contrário? Já meexplicaram isso tantas vezesque émuita estupidez minha teresquecido novamente.

Moveu-se pelo quarto pegandoobjetos com umaenergia calma ecolocando-os em si mesma – ummedalhão, um relógio comcorrente, um pesado braceletedeouro e o botão colorido de umasociedade sufragista. Por fim,totalmente equipada para o chádominical,ela se deteve diante de

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Rachel e sorria-lhebondosamente. Não era umamulher impulsiva, e sua vidaatreinara para conter a língua. Aomesmo tempo, tinhagrande boavontade para com os outros,especialmente os jovens, o quemuitas vezes a levava a lamentarserlhe tão difícil falar.

– Vamos descer? – disse.Pôs uma mão no ombro de

Rachel e, inclinando-se, apanhoucom a outra mão um par desapatos baixos colocando-os um

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ao lado do outroescrupulosamente do lado de forada porta. Quando desceram pelocorredor, passaram por muitospares de botas e sapatos, algunspretos outros marrons, todos ladoa lado, e todos diferentes, até namaneira como estavam dispostos.

– Sempre acho que as pessoassão semelhantes às suas botinas –disse Miss Allan.

– Este par é de Mrs. Paley... –mas quando ela falava a portaabriu-se e Mrs. Paley saiu em sua

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cadeira de rodas,tambémequipada para o chá.

Ela cumprimentou Miss Allane Rachel.

– Eu estava mesmo dizendoque as pessoas são bem parecidascom sua batinas – disse MissAllan. Mrs. Paleynão escutou. Elarepetiu ainda mais alto. Mrs.Paley não escutou. Ela repetiuuma terceira vez. Mrs. Paleyescutou,mas não compreendeu.Aparentemente Miss Allanestavapor repetir uma quarta vez,

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quando de repente Rachel dis-sealguma coisa inarticulada edesapareceu no corredor. Omal-entendido, que incluía umbloqueio total docorredor,parecia-lheinsuportável. Andavarapidamente, às cegas,em direçãooposta, e encontrou-se no fim deum cul de sac. Havia uma janela,uma mesa e uma cadeira najanela, e sobre a mesa havia umtinteiro enferrujado, umcinzeiro,um velho exemplar de

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um jornal francês,e uma canetacomponta quebrada. Rachelsentou-se como se fosse estudarojornal francês, mas uma lágrimacaiu sobre a borradaletraimpressa francesa,causandouma mancha suave.Ela levantou acabeça bruscamente, exclamandoalto:

– É insuportável!Olhando pela janela com olhos

que não veriam mesmo que nãoestivessem ofuscados pelaslágrimas, ela finalmente permitiu-

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se criticar o dia todo. Fora umadesgraça do começo ao fim;primeiro, a cerimônia nacapela,depois o almoço; depoisEvelyn; depois Miss Allan;depois a velha Mrs. Paleybloqueando o corredor. Foraatormentada e irritada o dia todo.Agora chegara a uma daquelasculminâncias, resultado de umacrise, da qual finalmente seenxerga o mundo nas suasverdadeiras proporções. E sentiaprofunda aversão ao que via –

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igrejas, políticos, desajustados egrandes impostores, homens comoMr. Dalloway, homens como Mr.Bax, Evelyn e sua tagarelice,Mrs. Paley bloqueando ocorredor. Enquanto isso,a batidaregular do seu próprio pulsorepresentava a quente torrente deemoção que corria ali debaixo;pulsando,lutando, solapando. Nomomento, seu próprio corpo erafonte de toda a vida no mundo,que tentava explodir aqui... ali... eera reprimida, ora por Mr. Bax,

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ora por Evelyn, ora peloimposição de uma pesadaestupidez, o peso do mundointeiro. Atormentada, ela crispavaas mãos juntas, pois todas ascoisas estavam erradas e todas aspessoas eram estúpidas. Vendovagamente que havia pessoas nojardim lá embaixo, ela asinterpretou como massas dematéria sem objetivo, flutuandopara cá e para lá, sem meta senãoa de inibi-la. O que estavamfazendo, essas outras pessoas do

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mundo?Ninguém sabe – disse. A força

da sua ira começava a desgastar-se, e a visão do mundo, que foratão viva, tornava-se nebulosa.

É um sonho – murmurou.Analisou o tinteiro enferrujado, acaneta, o cinzeiro e o velho jornalfrancês.Aqueles pequenos objetossem valor pareciam-lherepresentar vidas humanas.

Estamos adormecidos esonhando – repetiu ela. Mas apossibilidade que agora se

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insinuava, de que um daquelesvultos poderia ser o de Terence,arrancou-a daquela melancólicaletargia. Ficou tão inquieta quantoestivera antes de se sentar. Nãoconseguia mais ver o mundocomo uma cidade espalhadaabaixo dela. Em vez disso, ele serecobria com uma febril névoarubra. Rachel voltara ao estadoem que estivera o dia todo.Pensar não era escapatória. Omovimento físico era o únicorefúgio, entrando e saindo de

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quartos, entrando e saindo dasmentes das pessoas, procurandonem ela sabia o quê. Por issolevantouse, empurrou a mesa paratrás e desceu as escadas. Saiupela porta do saguão e dobrandoa esquina do hotel encontrou- seentre as pessoas que avistara dajanela. Mas devido ao vasto soldepois dos corredoressombreados e à substância daspessoas vivas depois dos sonhos,o grupo lhe aparecia comespantosa intensidade, como se a

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superfície poeirenta tivesse sidoremovida de todas ascoisas,deixando apenas arealidade e o instante. Pareciauma imagem imprimida no escuroda noite. Vultos brancos,cinzentose roxos espalhavam-se no verde;mesas redondas dobráveis; nomeio, a chama da chaleira fazia oar tremer como uma vidraçadefeituosa; uma maciça árvoreverde pairava sobre todos elescomo se fosse uma força móvelcristalizada. Quando se

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aproximava, ela pôde ouvir a vozde Evelyn repetindomonotonamente.

– Aqui... aqui... cachorrinho,venha cá. – Por um momento nadaparecia acontecer; estava tudoparado, imóvel, e então elapercebeu que uma das figuras eraHelen Ambrose; e a névoacomeçou a baixar.

O grupo reunira-se de modointeiramente aleatório;uma mesade chá junto de outra mesa de chá,espreguiçadeiras servindo para

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ligar dois grupos. Mas mesmo adistância podia-se ver que Mrs.Flushing, ereta eimperiosa,dominava o grupo.Falava com veemência paraHelen do outro lado da mesa.

– Dez dias numa tenda de lona– dizia. – Sem conforto. Se quiserconforto, não venha. Masacredite, se não vier, vai searrepender pelo resto da vida. Asenhora vai? Nesse momentoMrs. Flushing avistou Rachel.

– Ah, aí está a sua sobrinha.

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Ela prometeu. Você vem,nãovem? – Tendo adotado o plano,ela o perseguia com a energia deuma criança.Rachel tomou seupartido, ansiosamente.

– Claro que vou. E vocêtambém, Helen. E Mr. Peppertambém. Sentando-se, percebeuque estava rodeada por genteconhecida, mas Terence nãoestava entre eles. De váriosângulos, pessoas começaram adizer o que pensavam da excursãoproposta. Segundo algumas, seria

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quente demais, mas as noitesseriam frias; segundo outras, asdificuldades estariam emconseguir um barco e falar oidioma. Mrs. Flushing rejeitoutodas as objeções, devidas aohomem ou à natureza, anunciandoque seu marido ajeitaria tudo.

Enquanto isso Mrs. Flushingexplicava calmamente a Helenque na verdade a excursão era umassunto simples;levava nomáximo cinco dias; e o local...uma aldeia nativa... certamente

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valia a pena ser vista antes de elavoltar à Inglaterra. Helenmurmurou alguma coisa ambígua,e não se comprometeu com umaresposta nem outra.

Mas o chá incluía gentediferente demais para queflorescesse uma conversageneralizada; do ponto de vistadeRachel, tinha a grandevantagem de que ela quase nãoprecisava falar. Do outro lado,Susan e Arthur estavamexplicando a Mrs. Paley que

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tinham sugerido umaexcursão;tendo entendido isso,Mrs. Paley deu o conselho de umavelha viajante, de que deviamlevar legumes emconserva,casacos de pele e pócontra insetos. Ela debruçava-separaMrs. Flushing e sussurravaalgo que pelo piscar de seusolhosprovavelmente se referia ainsetos. Helen estava recitando“Dobre de sino pelo bravo” paraSt. John Hirst, aparentemente paraganhar uma moeda de seis pence

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que estava sobre a mesa;enquanto Mr. Hugling Elliotimpunhasilêncio no seu setor daplatéia, com sua fascinanteanedotasobre Lord Curzon e abicicleta do estudante. Mrs.Thornbury tentava lembrar onome de um homem que poderiater sido um outro Garibaldi e queescrevera um livroque todosdeviam ler; e Mr. Thornburylembrou que tinhaum par debinóculos às ordens de quemquisesse.Enquantoisso, Miss

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Allan murmurava, com a curiosaintimidade quesolteironas porvezes assumem com cães, ao fox-terrier queEvelyn finalmenteinduzira a aproximar-sedeles.Partículasminúsculas depoeira ou pólen de flores caíamsobre ospratos, sempre que osramos acima suspiravam. Rachelparecia ver e ouvir um pouco detudo aquilo quase como umriosente os raminhos que caemdentro dele e enxerga océu acima,mas os olhos dela estavam vagos

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demais para ogosto de Evelyn.Ela foi até lá e sentou-se no chão,aos pésde Rachel.

Então? – perguntou de repente.– Em que está pensando?

Em Miss Warrington –respondeu Rachelimpensadamente, porque tinha dedizer alguma coisa. Na verdadevia Susan murmurando a Mrs.Elliot enquanto Arthur a fitavacom absoluta confiança no seupróprio amor.Rachel e Evelyncomeçaram a escutar o que Susan

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dizia.– Há as ordens a dar, os

cachorros, o jardim e ascriançasque chegam para seremensinadas – sua voz prosseguiaritmicamente, como se conferisseuma lista –, meu tênis, o povoado,cartas a escrever para papai e milpequenas coisas que nãoparecemmuito; mas nunca tenho ummomento para mim, equando voupara a cama estou com tanto sonoque durmo antes de a cabeçatocar o travesseiro. Além disso

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gosto deestar bastante comminhas tias... eu sou uma grandechata,não sou, tia Emma? – Elasorriu para a velha Mrs. Paley,que,de cabeça um poucoinclinada, contemplava o bolocom especial afeto. – E papai temde ter muito cuidado com o frionoinverno, o que significa muitacorreria, porque ele não secuida,e nem você, Arthur! E assim tudovai se acumulando!

Sua voz também se acumulava,num brando êxtase de satisfação

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com sua vida e sua próprianatureza. De repente, Rachelsentiu uma intensa repulsa porSusan, ignorando tudo o que erabondoso, modesto e até patéticonela.Pareceu-lhe insincera ecruel; viu-a ficar gorda eprolífica,os bondosos olhos azuisaguados e desbotados, o rubordas faces congelado numa rede decanais secos.

Helen virou-se para ela:– Você foi à igreja? –

perguntou. – Ganhara seus seis

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pence e parecia aprontar-se parair embora.

– Sim – disse Rachel. – Pelaúltima vez – acrescentou.

Preparando-se para botar asluvas, Helen deixou cair uma.

– Você não vai? – perguntouEvelyn pegando uma das luvascomo se quisesse guardá-la.

– Está mais do que na hora deirmos – disse Helen. – Não vêcomo todo mundo está ficandocalado... ?

Um silêncio baixara sobre

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todos, causado em parte por umdesses acidentes na conversa eem parte porque viam alguém seaproximando. Helen não podiaver quem era,mas mantendo osolhos fixos em Rachel, observoualgo que a fez dizer a si mesma:“Então é Hewet”. Vestiu as luvascom uma curiosa sensação daimportância do momento. Depoislevantou-se, pois Mrs. Flushingtambém vira Hewet e estavaexigindo informações sobre rios ebotes, mostrando que toda a

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conversa voltaria àquele tema.Rachel seguiu-a, e caminharam

em silêncio pela alameda. Apesardo que Helen vira e entendera, asensação mais importante em suamente agora era curiosamenteperversa; se fosse naquelaexcursão, não poderia tomarbanho; o esforço lhe pareciagrande e desagradável.

– É tão ruim estar junto depessoas que quase nem seconhece – comentou. – Pessoasque não querem ser vistas nuas.

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– Você não pretende ir? –perguntou Rachel.

Mrs. Ambrose irritou-se com aintensidade com que Racheldissera aquilo.

– Não pretendo ir e nãopretendo não ir –respondeu.Estava cada vez maisvaga e indiferente.

– Afinal, atrevo-me a dizerque vimos tudo que há para sever; e há o aborrecimento de iraté lá, e não importa o que digam,provavelmente vai ser

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terrivelmente desconfortável. Poralgum tempo Rachel nãorespondeu, mas cada frase queHelen dizia aumentava suaamargura.Finalmente elaexplodiu:

– Graças a Deus, não soucomo você, Helen! Às vezes achoque você não pensa, nem sente,nem se importa, nem faz nadasenão existir! Você é como Mr.Hirst. Vê que as coisas estãoruins e orgulha-se de dizer isso. Éo que chama de ser honesta; na

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verdade isso é ser preguiçosa, serchata, ser nada. Você não ajuda;liquida com as coisas.

Helen sorriu como seestivesse gostando do ataque. – Eentão? – indagou.

– Para mim, isso parece umacoisa ruim... só isso – respondeuRachel.

– Possivelmente – disseHelen.

Em qualquer outra épocaRachel provavelmente ficariacalada diante da franqueza de sua

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tia, mas naquela tarde não estavadisposta a ficar quieta porconsideração a ninguém. Queriadiscutir.

Você só vive pela metade –continuou.

Foi porque não aceitei oconvite de Mrs. Flushing? –perguntou Helen. – Ou vocêsempre acha isso?

Naquele momento, Rachelachou que sempre vira em Helenos mesmos erros, desde aprimeira noite a bordo do

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Euphrosyne, apesar de sua belezae apesar de sua magnanimidade edo amor deles.

– Ah, é só que, o que há comtodo mundo? – exclamou.

– Ninguém sente nada...ninguém faz nada senão magoaros outros! Acredite, Helen, omundo é mau. É uma agonia viver,querer...Nisso ela arrancou umpunhado de folhas de um arbustoe as esmagou para podercontrolar-se.

– As vidas dessa gente –

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tentou explicar –, a falta deobjetivo, a forma de viverem.Vai-se de uma a outra dessaspessoas, e é sempre a mesmacoisa. Nunca se consegue denenhuma delas o que se quer.

Seu estado emocional e suaconfusão teriam feito dela umapresa fácil se Helen quisessediscutir ou arrancar confidências.Mas em vez de falar ela caiu numsilêncio profundo enquantoseguiam andando. Sem objetivo,trivial, sem sentido, ah não... o

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que vira no chá tornavaimpossível acreditar nisso. Aspequenas piadas, a tagarelice,astrivialidades da tarde tinham-sedesenrolado diante de seus olhos.Debaixo dos afetos e rancores,das uniões e separações, grandescoisas aconteciam, coisasterríveis,porque eram tãograndes. Seu senso de segurançaestava abalado, como se debaixode gravetos e folhas mortas elativesse visto o movimento de umacobra. Parecia-lhe que se

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permitia um momento deprorrogação, um momento de faz-de-conta, e depois, novamente, aprofunda lei irracional seafirmava, moldando-os todosconforme sua vontade, criando edestruindo.

Ela olhou para Rachelcaminhando a seu lado, aindaamassando as folhas na mão eabsorvida em seus própriospensamentos. A jovem estavaapaixonada, e Helen sentiu umaprofunda compaixão por ela. Mas

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controlou-se, arrancou-se dessespensamentos e pediu desculpas.

– Lamento muito, mas se souchata, é meu jeito e não temremédio. – Se era um defeitonatural, ela encontrou um remédiofácil, pois disse que achava oesquema de Mr.Flushing muitobom, precisando apenas de umpouco de análise, o que pareciater sido feito quando chegaramem casa. A essa altura tinhamcombinado que se mais algumacoisa fosse dita, aceitariam o

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convite.

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20

Quando analisadaminunciosamente por Mr.Flushing e Mrs. Ambrose, viu-seque a excursão não era nemperigosa nem difícil. Tambémviram que nem ao menos era algoinusitado. Todo ano, nessaestação, ingleses formavamgrupos que navegavam num vaporum trecho rio acima, atracavam,olhavam a aldeia nativa,compravam várias coisas dosnativos e voltavam sem prejuízo

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de mente e corpo. Quandodescobriram que seis pessoasrealmente desejavam a mesmacoisa, logo fizeram todos osarranjos.

Desde o tempo de Elizabethmuito pouca gente vira o rio, enada fora feito para mudar suaaparência diferenciando-odaquilo que fora visto pelosviajantes elisabetanos. O tempode Elizabeth distava do momentopresente apenas por um lapsocomparado com os séculos que

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haviam passado desde que aságuas corriam entre aquelasmargens, e as verdes matasabundavam, e as árvorespequenas cresciam formandoimensas árvores retorcidas esolitárias. Mudando apenas com amudança do sol e das nuvens, averde massa ondulante estava aliséculo após século, e a águacorrera entre suas margensincessantemente, às vezeslavando terra, e por vezescarregando ramos de árvores,

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enquanto em outras partes domundo uma cidade se erguia dasminas de outra cidade, e homensnas cidades se haviam tornadocada vez mais articulados ediferentes entre si. Poucosquilômetros desse rio eramvisíveis do topo da montanhaonde algumas semanas antes ogrupo do hotel fizera opiquenique. Susan e Arthurtinham-no visto quando sebeijavam, e Terence e Rachelquando se sentavam ali falando

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em Richmond, e Evelyn e Perrottcaminhando por ali, imaginandoque eram grandes capitãesenviados para colonizar o mundo.Tinham visto a ampla massa azulvarando a areia onde corria para

o mar, e a massa verde deárvores mais acima, finalmenteescondendo suas águas. Aintervalos nos primeiros 30quilômetros mais ou menos, haviacasas espalhadas nas margens;aos poucos as casas tornavam-secabanas, e mais adiante não havia

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nem cabanas nem casas, masárvores e capim, vistosunicamente por caçadores,exploradores, ou mercadoresmarchando ou navegando, masnão se estabelecendo nunca.

Deixando Santa Marina cedode manhã, rodando 30quilômetros e cavalgando 13, ogrupo, finalmente composto porseis ingleses, chegou à margemdo rio quando caía a noite.Avançaram facilmente entre asárvores – Mr. e Mrs. Flushing,

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Helen Ambrose, Rachel, Terencee St.

John. Os cavalinhos cansadosentão pararam automaticamente eos ingleses desmontaram. Mrs.Flushing andou pela margem dorio, eufórica. O dia fora longo equente,mas ela gostara davelocidade e do ar livre; deixarao hotel que odiava e gostava decompanhia. O rio passavaredemoinhando na escuridão;podiam apenas distinguir a suavesuperfície móvel das águas; o ar

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estava cheio do som do rio.Pararam no espaço vazio entre osenormes troncos,e lá fora uma luzverde movendo-se livrementeacima e abaixo mostrava-lhesonde o vapor em que deveriamembarcar os aguardava.

Quando todos estavam noconvés, viram que era um barcomuito pequeno, que balouçousuavemente embaixo deles poralguns minutos, depois deslizoumacio pelas águas. Pareciamestar se dirigindo para o coração

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da noite,pois as árvoresfecharam-se na frente deles epodiam escutar ao redor, por todaparte, o farfalhar de folhas. Agrande treva teve o seu efeitohabitual, removendo todo desejode comunicação, fazendo suaspalavras soarem pequenas efrágeis; depois de caminhar aoredor do convés três ou quatrovezes, juntaram-se num grupo,com grandes bocejos, olhando omesmo local de profundaescuridão nas margens.

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Murmurando muito baixo, no tomrítmico de alguém meio sufocado,Mrs. Flushing começou aimaginar onde iriam dormir, poisnão podiam dormir no andarinferior, não podiam dormir numburaco cheirando a óleo, nempodiam dormir no convés, nãopodiam... ela deu um grandebocejo. Era como Helen previra;a questão da nudez já surgira,embora estivessem meioadormecidos e quase invisíveisuns aos outros. Com ajuda de St.

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John ela estendeu um pano epersuadiu Mrs. Flushing de quepoderia tirar as roupas atrás delee que ninguém se importaria sepor acaso alguma parte dela,oculta por 45 anos, ficasseexposta ao olho humano. Jogaramcolchões no chão,providenciaram mantas, e as trêsmulheres deitaram-se juntas aosuave relento.

Os cavalheiros, tendo fumadoalguns cigarros, jogaram aspontas acesas no rio e

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contemplaram por algum tempo asondulações que agitavam a águanegra lá embaixo; despiram-setambém e deitaram-se na outraextremidade do barco. Estavammuito cansados, e a treva osseparava como uma cortina. A luzde um lampião caía sobrealgumas cordas, umas poucastábuas do convés e a amurada dobarco, mas além disso havia umatreva única, nenhuma luz atingiaos rostos deles, nem as árvoresque se erguiam aos montes nas

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margens do rio.Logo Wilfrid Flushing dormia,

e Hirst também. Só Hewet estavaacordado, olhando para o céu. Omovimentosuave e as formasnegras que passavam incessantesdiantede seus olhos não odeixavam pensar. A presença deRacheltão perto dele ninava seuspensamentos. Estando tãopróxima dele, a poucos passos,do outro lado do barco,tornavaimpossível pensar nelacomo teria sido impossível vê-la

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seestivesse parada bem pertodele, cara a cara. Dealgumaforma estranha, o barcoidentificava-se com ele, e assimcomo teria sido inútil para elelevantar-se e tentar pilotarobarco, era inútil tentar lutar maiscontra a força de seus própriossentimentos. Estava sendoarrastado cada vez mais paralonge de tudo o que conhecia,deslizando sobrebarreiras,passando de marcos para dentrode águas desconhecidas enquanto

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o barco deslizava sobre a maciasuperfície do rio. Numa profundapaz, envolvido numainconsciência mais profunda doque aquela em que estivera hámuitas noites, ele se deitava noconvés observando os toposdasárvores mudarem de posiçãorapidamente diante docéu,arqueando-se, baixando eerguendo-se, imensas, até quepassou dessas visões parasonhos, onde estava deitadoàsombra de vastas árvores,

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olhando o céu.Quando acordaram na manhã

seguinte, tinham subidoum trechoconsiderável rio acima; à direitaficava uma alta margem amarelade areia com tufos de árvores, àesquerdaum pântano com longosjuncos e altos bambus trêmulos notopo dos quais, balouçandolevemente, pousavam pássarosdeum verde e um amarelo vivos.A manhã era quente equieta.Depois do café juntaramcadeiras e sentaram-se na proa

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numsemicírculo irregular. Umtoldo sobre suas cabeçasprotegiaos do calor do sol, e abrisa que o barco provocavaroçava-ossuavemente. Mrs.Flushing já estava colocandomanchas elistras na sua tela, acabeça inclinando-se ora para umlado,ora para outro, como umpássaro nervosamentebicandogrãos; os outros tinhamlivros, folhas de papel oubordadosnos joelhos, para osquais olhavam intermitentemente,

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voltando a fitar o rio à frente.Num momento Hewet leu alto umtrecho de um poema, mas onúmero de coisas móveisfaziadesvanecerem-se por completosuas palavras. Ele paroude ler, eninguém falava. Moviam-se sob oabrigo das árvores.Ora um bandode pássaros vermelhosalimentava-se numadas ilhotas àesquerda, ora mais uma vez umpapagaio azul everde voava deárvore em árvore, aos gritos. Àmedida que avançavam a

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paisagem ficava mais selvagem.As árvores e a vegetação baixapareciam estrangular-semutuamente junto ao chão, numaluta múltipla, enquanto aqui e aliuma árvoremagnífica se erguiacomo uma torre sobre as demais,sacudindo seu tênue guarda-solverde no ar. Hewet voltou aolharseu livro. A manhã estavatão pacífica quanto fora anoite,apenas muito estranhaporque estava claro e podia verRachel,ouvir sua voz, estar perto

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dela. Sentia que estava àespera,como se estivesseestacionado entre coisas quepassavam acima dele, em tornodele, vozes, corpos de pessoas,pássaros, esó Rachel esperavacom ele.Olhava para ela àsvezes,como seela devesse saberque esperavam juntos, sendolevados em frente juntos, sempoderem oferecer nenhumaresistência.

Voltou a ler seu livro:“Quem quer que seja você que

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me segura em sua mão,há umacoisa sem a qual tudo será inútil”.

Um pássaro deu um risoselvagem, um macaco riasatisfeito com uma perguntamaliciosa, e as palavras delebruxulearam e apagaram-se comofogo que sucumbe ao solescaldante.

Aos poucos, enquanto o rio seestreitava e as altas mar-gens deareia baixavam cobertas de densoarvoredo, podiam-se escutar ossons da floresta.Tudo ecoava

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como num grande salão. Haviagritos súbitos; depois longosespaçosde silêncio, como umacatedral quando a voz de ummenino cessou e o eco aindaparece povoar os lugares maisremotos do teto. Uma vez Mr.Flushing levantou-se, faloucomum marinheiro e até anunciou quedepois do almoço o barco parariae poderiam andar um pouco pelafloresta.

– Há trilhas por toda parteentre as árvores ali – explicou. –

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Ainda não estamos muito longe dacivilização.

Examinou a pintura da esposa.Educado demais para elogiá-laabertamente, contentou-se emcortar metade do quadro com amão e fazer um floreio no ar coma outra.

– Meus Deus! – exclamouHirst olhando em frente. – Nãoacham que é incrivelmentebonito?

– Bonito? – perguntou Helen.Parecia uma estranha e pequena

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palavra, o próprio Hirst e elamesma tão pequenos, que ela seesqueceu de responder.Hewetsentiu que devia falar.

– É daqui que os elisabetanospegaram seu estilo – meditou ele,olhando fixo a profusão de flores,folhas e prodigiosos frutos.

– Shakespeare? Eu odeioShakespeare! – exclamou Mrs.Flushing; e Wilfrid respondeuadmiravelmente:

– Acho que você é a únicapessoa que se atreve a dizer isso,

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Alice. – Mas Mrs. Flushingcontinuou pintando.Não pareciadar muito valor ao elogio domarido e pintava com firmeza, àsvezes murmurando um gemido ouuma palavra semi-audível.Amanhã estava muito quente.

– Olhem para Hirst! –sussurrou Mr. Flushing. Sua folhade papel escorregara para oconvés, a cabeça dele estavajogada para trás e ele roncavaprofundamente.

Terence pegou a folha de

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papel e estendeu-a diante deRachel. Era uma continuação dopoema sobre Deus que elecomeçara na capela; era tãoindecente que Rachel nãoentendeu a metade, embora visseque era indecente. Hewetcomeçou a preencher palavrasonde Hirst deixara lacunas, maslogo parou; seu lápis rolou noconvés. Aos poucos,aproximaram-se mais e mais damargem do lado direito, de modoque a luz que os cobria se tornou

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definitivamente verde, caindo poruma sombra de folhas verdes,eMrs. Flushing deixou de lado seuesboço e ficou em silêncioolhando em frente. Hirst acordou;depois foram chamados para oalmoço, e enquanto comiam ovapor parou, um pouco longe damargem. O bote que vinha areboque atrás deles foi levadopara o lado, e as damas foramauxiliadas para entrar.

Para proteger-se contra otédio, Helen pôs um livro de

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memórias debaixo do braço, eMrs. Flushing sua caixa de tintas;assim equipados, foramdepositados na praia, na margemda floresta.

Não tinham andado mais doque poucas centenas de jardas aolongo da trilha que corriaparalela ao rio, quando Helendisse achar o diaintoleravelmente quente. A brisado rio cessara, e uma atmosferaquente e úmida, densa de odores,vinha da floresta.

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Vou me sentar aqui – anunciouela, apontando o tronco de umaárvore que caíra há muito tempo eagora estavacoberta detrepadeiras entrelaçadas e cipósparecendo correias. Sentou-se,abriu seu guarda-sol e olhou o riolistradopelos caules das árvores.Virou-se de costas para asárvoresque desapareciam nasombra negra atrás dela.

Eu até que concordo – disseMrs. Flushing, passando adesmontar sua caixa de tintas. Seu

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marido ficou vagando por ali,procurando um ângulointeressante paraela. Hirst limpouum espaço no chão ao lado deHelen esentou-se com grandedeterminação, como se nãotencionasse mexer-se, a não serdepois de falar com ela longotempo. Terence e Rachel ficaramparados sozinhos,sem ocupação.Terence viu que chegara a hora,como estava predestinado, masembora percebesse isso,estavatotalmente calmo, e dono

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de si mesmo. Preferiu ficar al-guns momentos falando comHelen, persuadindo-a alevantar-se do seu assento. Rachel uniu-sea ele aconselhando-a a ir junto.

– De todas as pessoas que jáconheci – disse ele –, a senhora éa menos aventureira. Podia estarsentada em um banco no HydePark. Vai ficar sentada aqui atarde toda? Não vai caminhar?

– Ah, não – disse Helen, agente só precisa usar os olhos.Está tudo aqui... tudo – repetiu

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numa voz sonolenta. – O que vaiganhar caminhando?

– Vão estar com calor eintratáveis na hora do chá, e nósestaremos frescos e gentis –objetou Hirst. Nos seus olhos,enquanto os erguia, apareciamreflexos verdes e amarelos do céue dos ramos, tirando-lhes suaintensidade, e ele parecia pensarcoisas que não dizia. Assimconseguiram que Terence eRachel propusessem caminhar nafloresta juntos; lançando um olhar

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um ao outro, viraramse e seafastaram.

– Até logo! – gritou Rachel.– Até logo. Cuidado com as

cobras – respondeu Hirst.Ajeitou-se mais confortavelmente sob asombra da árvore caída e docorpo de Helen. Quando partiram,Mr.Flushing os chamou.

– Temos de partir em umahora. Hewet, por favor,lembre-sedisso. Uma hora.

Quer fosse feito pelo homemou por algum motivo preservado

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pela natureza, havia um trilholargo atravessando afloresta emângulo reto com relação ao rio.Parecia um caminho paraveículos numa floresta inglesa,exceto que osarbustos tropicaiscom suas folhas parecendoespadas cresciam dos lados, e ochão estava coberto de umamassa informe e mole em vez decapim, respingada deflorezinhasamarelas. Quandopassaram para a profundeza dafloresta,a luz ficou mais débil, e

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os rumores do mundo comumforam substituídos pelos estalos esuspiros que sugerem ao viajantenuma floresta que ele estácaminhando no fundo do mar. Atrilha estreitou-se e dobrou; erabeirada por densas trepadeiras,que se enroscavam em nós deárvore em árvore, e arrebentavamaqui e ali em flores vermelhascomformato de estrela. Ossuspiros e estalos acima eramrompidos vez por outra pelo gritodissonante de algum

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animalespantado. A atmosfera eraabafada e o ar lhes chegava emlânguidos bafos de perfume. Avasta luz verde era rompidaaqui eali por um sol redondo de umamarelo puro, que caíanuma fendano imenso guarda-sol verde noalto, e nessesespaços amarelosborboletas vermelhas e pretasgiravam epousavam. Terence eRachel quase não falavam.

Não apenas o silêncio pesavasobre eles, mas ambos estavamincapazes de construir

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pensamentos. Havia entre elesalgo que precisava ser falado. Umdeles tinha de começar, mas qualseria? Então Hewet apanhou umafruta vermelha e jogou-a o maisalto que pôde. Quando caísse,elefalaria. Ouviram o tatalar degrandes asas; ouviram a fruta cairentre as folhas e depois bater comum som abafado. O silênciovoltou a ser profundo.

– Isso assusta você? –perguntou Terence quando o somda fruta caindo morrera

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totalmente.– Não – respondeu ela. – Eu

gosto. – Ela repetiu: – Eu gosto. –Ela andava rápido, mais ereta doque de costume.Houve uma outrapausa.

Gosta de estar comigo? –perguntou Terence.

Sim, com você – respondeuela.

Ele ficou calado por ummomento. O silêncio pareciarecobrir o mundo.

– É isso que sinto desde que a

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conheci – respondeu ele.– Somos felizes juntos. – Ele

não parecia estar falando, nem elaouvindo.

– Muito felizes – respondeuela.

Continuaram caminhandosilenciosos algum tempo.Seuspassos inconscientementeaceleraram.

Nós nos amamos – disseTerence.

Nós nos amamos – repetiu ela.Então o silêncio foi rompido

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pelas suas vozes fundidas em tonsestranhos e pouco familares, quenão formavam palavras.Caminhavam mais e maisdepressa; pararamsimultaneamente, agarraram-sepelos braços e depois, sol-tando-se, caíram no chão. Sentaram-selado a lado. Do fundo vinhamsons fazendo uma ponte sobre osilêncio deles; ouviram ofarfalhar de árvores e um bichograsnando num mundo remoto.

– Nós nos amamos – repetiu

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Terence procurando o rosto dela.Seus rostos estavam muito

pálidos e quietos, e não disseramnada. Ele teve medo de beijá-laoutra vez.Aos poucos ela foi seaproximando e recostou-se nele.

Nessa posição ficaramsentados algum tempo. Ela disseuma vez:

– Terence.E ele respondeu: – Rachel.– Terrível... terrível... –

murmurou ela depois de outrapausa, mas dizendo isso pensava

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tanto no persistente chapinhar daágua quanto em seu própriosentimento. Viu que corriamlágrimas pelas faces deTerence.O movimento seguinteveio da parte dele. Parecia terpassado um tempo muito longo.Ele pegou seu relógio de bolso.

– Flushing disse uma hora.Caminhamos mais do que meiahora.

– E vamos levar isso paravoltar – disse Rachel levantando-se muito devagar. Quando estava

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de pé estendeu os braços erespirou fundo,meio suspiro,meiobocejo.Parecia muito cansada.Suas faces estavam brancas.

Para que lado? – perguntou.Lá – disse Terence.Começaram a voltar pela

trilha musgosa. Os estalidos esuspiros prosseguiram lá no alto,além dos gritos desafinados dosanimais. As borboletas aindagiravam nas manchas de solamarelas. No início Terence tevecerteza do caminho, mas quando

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caminhavam foi tendodúvidas.Tiveram de parar pararefletir e depois voltar e começarmais uma vez, pois embora eletivesse certeza da direção do rio,não tinha certeza de atingir oponto onde deixaram os outros.Rachel o seguia, parando quandoele parava, virando-se quando elevirava, sem saber o caminho,semsaber por que ele parava ouvirava.

Não quero me atrasar porque...– ele pôs uma flor nas mãos dela,

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e os seus dedos agarraram-nacalmamente.

Estamos tão atrasados... tãoatrasados... terrivelmenteatrasados... – repetia ele como sefalasse no sono. – Ah...está certo.Aqui dobramos.

Viram-se novamente na trilhalarga, como um caminho numafloresta inglesa, de onde haviampartido quando deixaram osdemais. Caminharam em silêncio,como pessoas caminhando nosono, estranhamente conscientes

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vez por outra do peso de seuscorpos. Então de repente Rachelexclamou:

– Helen!No espaço ensolarado na

margem da floresta viram Helen,ainda sentada no tronco deárvore, vestido muito branco aosol, com Hirst ainda apoiado nocotovelo ao seulado. Pararaminstintivamente. À vista dosoutros não conseguiramprosseguir. Pararam de mãosdadas um minuto ou dois,

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calados. Não suportavam veroutras pessoas.

– Mas temos de prosseguir –insistiu Rachel finalmente, nocurioso tom de voz embotado emque ambos estiveram falando;com grande esforço obrigaram-sea cobrir a curta distância entreeles e o casal sentado no tronco.Quando se aproximaram, Helenvirou-se e olhou para eles.Olhou-os por algum tempo semfalar, e quando chegaram maisperto disse tranqüilamente:

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– Encontraram Mr. Flushing?Ele foi procurar vocês.Achou quedeviam estar perdidos, embora eulhe dissesse que não estavam.

Hirst deu meia volta e jogou acabeça para trás de modo queolhava os ramos que seentrecruzavam no ar em cima.

– Bem, valeu a pena oesforço? – disse, meiodevaneando.

Hewet sentou-se no capim aolado dele e começou a abanar-se.

– Quente.

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Rachel equilibrou-se perto deHelen na ponta do tronco.

Muito quente.Vocês parecem exaustos –

disse Hirst.– Aquelas árvores são

assustadoramente fechadas –comentou Helen apanhando seulivro e agitando-o para limpá-lode talos de capim seco quecaíram entre as páginas. Depoisficaram todos calados, olhando orio que passava redemoinhandodiante deles, até que Mr. Flushing

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os interrompeu. Irrompeu dasárvores a cem metros à esquerda,exclamando bruscamente:

– Ah, afinal encontraram ocaminho. Mas é tarde... muitomais tarde do que tínhamoscombinado, Hewet.Estava umpouco aborrecido, e na qualidadede líder da expedição, inclinava-se a ser ditatorial. Falavadepressa, usando curiosaspalavras ásperas e sem sentido.

– Naturalmente emcircunstâncias anormais atrasar-

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se não teria importância – disse–, mas quando se trata de fazer oshomens cumprirem o horário...

Ele os reuniu e os fez desceraté a margem do rio onde o boteesperava para levá-los até ovapor.

O calor do dia estavadiminuindo e diante de suasxícaras de chá os Flushingficaram comunicativos.Terenceachou, enquanto os ouviafalar, que a existênciaprosseguiaagora em dois níveis

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diferentes. Aqui estavam osFlushing falando, falando emalgum lugar alto no ar acima dele,e elee Rachel tinham caído juntosno fundo do mundo. Mascom algoda franqueza de uma criança,Mrs. Flushing também tinha oinstinto que leva uma criança asuspeitardaquilo que os adultosdesejam deixar oculto. FixavaTerence com seus vivos olhosazuis e dirigia-se especialmente aele. O que faria, quis saber, se obote batesse numarocha e

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afundasse?– O senhor se interessaria por

qualquer coisa além de salvar aprópria pele? E eu, meinteressaria? Não, não – ela ria –nem um pouquinho... não me diga.Há só duas criaturas pelas quaisuma mulher comum se interessa:seu filho e seu cachorro; nãocreio que sejam sequer duascriaturas. Nós lemos muito sobreo amor... por isso é que a poesia étão enfadonha. Mas o queacontece na vida real,hein? Isso

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não é amor! – exclamou ela.Terence murmurou alguma coisaininteligível. Mr.Flushing, porém,recuperara sua urbanidade.Fumando um cigarro respondeu àesposa.

– Alice, você tem de lembrarsempre que teve uma educaçãomuito pouco natural... inusitada,eu diria. Eles nãotiveram mãe –explicou abandonando parte daformalidadedo seu tom – e pai...ele era um homem muitoencantador,não tenho dúvidas,

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mas só se interessava por cavalosdecorrida e estátuas gregas.Conte-lhes sobre o banho, Alice.

– No pátio dos estábulos –disse Mrs.Flushing.– Coberto degelo no inverno.Tínhamos deentrar; se não éramos surrados.Os fortes viveram... os outrosmorreram. O que sechamasobrevivência dos maisadaptados... um plano excelente,atrevo-me a dizer, quando se tem13 filhos!

E tudo isso no coração da

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Inglaterra, e no século XIX! –exclamou Mr. Flushing, virando-se para Helen.

Eu trataria meus filhosexatamente da mesma maneira, seos tivesse – disse Mrs. Flushing.

Cada palavra soava bem nítidaaos ouvidos de Terence;mas o queestavam dizendo, com quemestavam falando equem eram elas,aquelas pessoas fantásticas,destacadas emalgum lugar no alto,no ar? Agora que tinham bebidoseuchá, levantaram-se e

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debruçaram-se na amurada dobarco. O sol se punha, e a águaestava escura e rubra. O rioalargara-se de novo; estavampassando por uma ilhazinhainstalada como uma cunha escurano meio da torrente. Duas grandesaves brancas tingidas por luzesvermelhas postavam-se ali emsuas pernas longas, parecendopernas de pau,e nada se imprimiana praia da ilha, exceto as marcasesqueléticas das patas das aves.Os ramos das árvores na mar-gem

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pareciam mais retorcidos eangulosos do que nunca, e o verdedas folhas era sombrio masrespingado de ouro.Então Hirstcomeçou a falar, inclinado sobrea amurada.

– A gente se senteterrivelmente esquisito, nãoacham?

– queixou-se. – Essas árvoresdão nos nervos... é tudo tãodoido. Sem dúvida, Deus é louco.Que pessoa normal poderia terconcebido uma selva dessas,

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povoando-a de macacos ecrocodilos? Eu ficaria louco sevivesse aqui... completamentelouco.

Terence tentou responder, masMrs. Ambrose respondeu em seulugar. Pediu-lhe que olhasse amaneira como as coisas seaglutinavam – olhar as coressurpreendentes,as formas dasárvores. Parecia estar protegendoTerence da abordagem dos outros.

– Sim – disse Mr. Flushing – ena minha opinião, aausência de

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população a que Hirst objeta éexatamente otoque significativo.Você precisa admitir, Hirst, queumaaldeiazinha italiana atévulgarizaria a cena toda, tirariadelaessa sensação de vastidão...senso de grandeza elementar. –Ele fez um gesto em direção dafloresta e parou por um momento,contemplando a enorme massaverde que agorase silenciava. –Acho que isso nos faz parecerbastante pequenos... a nós, masnão a eles. – Ele fez um aceno de

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cabeça na direção do marinheiroque se debruçava a seulado,cuspindo no rio. – E isso, euacho, é o que minha mulhersente,a superioridade essencial docamponês...Protegido pelaspalavras de Mr. Flushing quecontinuava argumentandoeducadamente com St. John,persuadindo-o, Terence puxouRachel de lado, apontandoostensivamente para um grandetronco de árvore retorcido quecaíra e estava metido pela metade

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na água. Queria de qualquer jeitoestar perto de Rachel, mas viuque não conseguia dizer nada.Podiam escutar Mr. Flushingfalando,ora sobre sua esposa, orasobre arte, ora sobre o futuro dopaís, pequenas palavras semsentido flutuando alto no ar.Comoestava começando a esfriar,ele foiandar no convés com Hirst.Fragmentos de seu diálogochegavam distintos quandopassavam... arte, emoção,verdade, realidade.

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– Tudo isto é verdade ou ésonho? – murmurou Rachelquando tinham passado.

– É verdade, é verdade –respondeu Terence.

Mas a brisa ficou mais frescae houve um desejo geral demovimento. Quando o grupo sereorganizou sob a proteção demantas e casacos, Terence eRachel estavam em pontosopostos do círculo e não podiamconversar.Mas quando baixou aescuridão, as palavras dos outros

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pareciam enroscar-se e sumircomo cinzas de papel queimado,deixando-os sentados,perfeitamente quietos, no fundodo mundo. Eram varados de vezem quando por frêmitos derefinada alegria, e depois ficavamapaziguados outra vez.

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21

Graças à disciplina de Mr.Flusing, chegaram aos locaiscertos do rio nas horas certas, equando na manhã seguinte, depoisdo café, as cadeiras foramnovamente postas numsemicírculo na proa, a lanchaestava a poucos quilômetros doacampamento nativo que era olimite de sua viagem. Quando sesentou. Mr.Flushing aconselhou-os a ficar de olho na margemesquerda, onde logo passariam

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por uma clareira onde havia umacabana em que Mackenzie, ofamoso explorador, morrera defebre há uns dez anos, quasedentro da civilização –Mackenzie, repetiu ele, o homemque penetrou no interior mais doque qualquer outra pessoa atéagora. Os olhos deles voltaram-separa lá, obedientes. Os olhos deRachel nada viam. Formasamarelas e verdes, é verdade,desfilavam diante deles, mas elaapenas sabia que uma era grande,

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outra pequena;não sabia que eramárvores. Essas ordens de olharpara cá e para lá a irritavam,como interrupções irritam umapessoa absorvida em seuspensamentos, embora ela nemestivesse pensando em nada.Estava aborrecida com tudo o quese dizia e com os movimentossem objetivo dos corpos daspessoas, pois pareciam interferi-la e impedi-la de falar comTerence. Logo Helen a viu fitandomal-humorada um laço de

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cordame, sem se esforçar paraescutar. Mr. Flushing e St.Johnestavam metidos numa conversamais ou menos constante sobre ofuturo do país do ponto de vistapolítico e o grau em que já foraexplorado; os outros, com pernasesticadas, ou queixos apoiadosnas mãos, olhavam tudo emsilêncio.

Mrs. Ambrose olhava eescutava obedientemente, mas pordentro era vítima de um estado dealma inquietante difícil de

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atribuir a alguma causa. Olhandopara a praia como Mr. Flushingpedia, ela achava o paísbelíssimo, mas também alarmantee opressivo. Não gostava desentir-se vítima de emoções quenão sabia classificar,e certamentequando a lancha deslizava mais emais em frente, sob o sol quenteda manhã, foi dominada por umaemoção irracional. Não sabiadizer se a causa era a floresta tãopouco familiar, ou algo menosdefinido. Sua mente deixou o

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cenário e ocupou-se comansiedades em relação a Ridley,seus filhos, coisas distantes,como velhice, pobreza e morte.Hirst também estava deprimido.Aguardara essa excursão como aum feriado, pois uma vez longedo hotel certamente aconteceriamcoisas maravilhosas; em vezdisso, nada acontecia, e estavamsofrendo mais desconfortos,restrições e constrangimentos doque nunca. Isso naturalmente sedava porque tiveram

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expectativas: sempre hádesapontamentos. Ele culpavaWilfrid Flushing, tão bem trajado,todo formal; culpava Hewet eRachel. Por que não falavam?Olhou para eles, sentados,calados e recolhidos em simesmos, e essa visão oaborreceu. Supôs que estivessemnoivos, ou quase noivos, mas emvez de ser pelo menos românticoou excitante, isso era tão chatoquanto tudo o mais; também oaborrecia pensar que estivessem

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apaixonados. Aproximou-se deHelen e começou a contar-lhecomo fora desconfortável suanoite, deitado no convés, oraquente demais, ora frio demais, eas estrelas tão claras que nãoconseguia dormir. Ficara deitadoacordado a noite toda, pensando,e quando a luz fora suficientepara ver, escrevera 20 linhas doseu poema sobre Deus, e ohorrível era que praticamenteprovara que Deus existia. Nãonotou que a estava provocando e

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prosseguiu, imaginando o queaconteceria se Deus existisse...

– Um velho senhor de barba ecamisola azul comprida,extremamente difícil edesagradável, como deve ser?Pode sugerir uma rima? Deus,meus, hebreus...tudo usado; eoutras?

Embora ele falasse de modobastante habitual, Helen podia tervisto, se o tivesse encarado, queeleestava impaciente eperturbado. Mas não pôde

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responder porque Mr. Flushingexclamou “Ali!” e eles olharam acabana na margem, um localdesolado com uma grande fendano telhado, o chão ao redoramarelo, com restos de fogueirasespalhados e latas enferrujadasabertas.

– Foi aqui que encontraramseu cadáver? – exclamou Mrs.Flushing, inclinando-se na suaansiedade por ver o local ondemorrera o explorador.

– Acharam seu corpo, suas

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peles e seu caderno de notas –respondeu o marido. Mas logo aembarcação os levara dali,deixando o lugar para trás.Estavatão quente que quase nem semexiam, exceto para apoiar-se nooutro pé ou para acender umfósforo.Seus olhos concentravam-se na margem, cheios dos mesmosreflexos verdes, e seus lábios secomprimiam de leve como se ascoisas que estivessem vendoprovocassem pensamentos;apenas os lábios de Hirst se

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moviam intermitentes, quando,meio inconscientemente, eleprocurava rimas para Deus.Fossem quais fossem ospensamentos dos outros, ninguémdisse nada por bastantetempo.Estavam tão acostumadosao paredão de árvores dos doislados, que olharam para cima,surpresos, quando a luzsubitamente se alargou e asárvores acabaram.

– Isso quase lembra um parqueinglês – disse Mr. Flushing.

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Na verdade, não poderia terhavido maior mudança.Nas duasmargens do rio havia um espaçolivre, gramado e plantado, pois adoçura e a ordem sugeriamcuidados humanos, com graciosasárvores no topo de outeiros. Atéonde conseguiam olhar, aquelegramado erguia-se e baixava como movimento ondulante de umantigo parque inglês. A mudançade cenário sugeria naturalmenteuma mudança de posição,grata aquase todos eles.Levantaramse e

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inclinaram-se na amurada.– Podia ser Arundel ou

Windsor – continuou Mr. Flushing– se fosse tirado aquele arbustode flores amarelas; e, por Deus,olhem só!

Fileiras de flancos marronspararam por um momento edepois saltaram, desaparecendoda vista com movimento de quemestivesse pulando por cima deondas.

Por um momento nenhum delespodia acreditar que realmente

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tivessem visto animais vivos aoar livre – uma manada de veadossilvestres –, e a visão despertouuma excitação infantil neles,dissipando sua melancolia.

– Nunca na vida vi nada maiordo que uma lebre! – exclamouHirst com genuína excitação. –Que burro fui por não trazerminha Kodak!

Pouco depois a lancha foiparando, e o capitão explicouaMr. Flushing que seria agradávelpara os passageiros daremum

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passeio pela praia; se quisessemvoltar em uma hora, eleos levariaà aldeia; se preferissem caminhar– era só uns doisquilômetrosadiante – ele os esperaria noatracadouro.

Depois de acertarem isso,foram largados na praia mais umavez: os marinheiros, pegandopassas e tabaco, inclinaram-sesobre a amurada e observaram osseis ingleses de casacos evestidos tão estranhos naqueleverde saírem andando. Uma piada

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nada adequada provocou risos,então viraram-se e deitaram-se àvontade no convés.

Assim que chegaram em terra,Terence e Rachel reuniram-se, umpouco à frente dos demais.

– Graças a Deus! – exclamouTerence respirando fun-do. –Finalmente estamos sozinhos.

– E se continuarmos na frentepodemos conversar – disseRachel. Mesmo assim, emborasua posição alguns metros à frentedos demais lhes proporcionasse

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dizer tudo o que quisessem,ficaram em silêncio.

– Você me ama? – disseTerence depois de algum tempo,rompendo penosamente osilêncio. Falar ou ficar calado eraum esforço, pois quando estavamquietos tinham uma consciênciaaguda da presença do outro, maspalavras eram ou muito banais oumuito compridas.

Ela deu um murmúrioinarticulado, que terminava:

– E você?

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– Sim, sim – respondeu ele.Mas havia tantas coisas a seremditas, e agora que estavamsozinhos parecia necessárioaproximarem-se ainda mais esuperarem uma barreira quecrescera desde a última vez emque se falaram.Era difícil,assustador, estranhamenteembaraçoso. Num momento eleestava lúcido; no outro, confuso.

– Agora vou começar docomeço – disse, resoluto.

– Vou dizer-lhe o que já devia

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ter dito antes. Em primeiro lugar,nunca estive apaixonado poroutras mulheres, mas já tiveoutras mulheres. Além dissotenhograndes defeitos. Sou muitopreguiçoso, temperamental... –Apesar da exclamação dela, eleinsistia. – Vocêprecisa conhecer opior em mim. Sou lascivo. Soudominado por um senso defutilidade... incompetência.Eununca deveria ter pedido você emcasamento. Soubastante esnobe;sou ambicioso...

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– Ora, nossos defeitos! –exclamou ela. – Que importameles? Depois indagou: – Eu estouapaixonada?... isso é estarapaixonada?... vamos nos casar?

Dominado pelo encanto de suavoz e de sua presença,exclamou:

– Ah, Rachel, você é livre.Para você, o tempo não vai fazerdiferença, nem o casamento,nem...

As vozes dos outros atrásdeles ficavam flutuando, maispróximas, mais distantes, e o riso

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de Mrs. Flushing ergueu-se, claro.– Casamento? – repetiu

Rachel.Os gritos renovaram-se atrás,

prevenindo-os de que estavamdemasiado à esquerda.Melhorando seu curso, elecontinuou:

– Sim, casamento. – Asensação de que não podiam seunir antes de que ela soubesse detudo a seu respeito fez com quevoltasse a explicar-se:

– Tudo o que tem sido ruim em

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mim, as coisas com que tive delidar... as outras...Ela murmuroualguma coisa, analisou suaprópria vida,mas não conseguiudescrever como via isso agora.

– E a solidão! – prosseguiuele. Uma visão de estar andandocom ela nas ruas de Londressurgiu diante de seus olhos –Vamos dar caminhadas juntos –disse ele. A simplicidade da idéiaos aliviou, e pela primeira vezriram.Teriam gostado de atrever-se a andar de mãos dadas, mas a

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consciência de olhos fixos nelesainda não os deixara.

– Livros, pessoas, paisagens...Mrs. Nutt, Greeley,Hutchinson... –murmurou Hewet.

A cada palavra, a névoa queos envolvera, fazendo-osparecerirreais um para o outro, desde atarde anterior, desfazia-se umpouco mais, e seu contato ficavacada vez maisnatural. Através damormacenta paisagem sulina,viam o mundo que conheciammais claro e mais vivo do que

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antes.Como naquela ocasião nohotel em que ela se sentaranajanela, o mundo mais uma vezse organizava debaixo doseuolhar, muito nitidamente, e emsuas verdadeiras proporções.Lançava um olhar curioso aTerence, de tempos emtempos,observando seu casaco cinza esua gravata púrpura;observando ohomem com quem passaria oresto da vida.

Depois de um desses olharesela murmurou:

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– Sim, eu estou apaixonada.Não há dúvida; estou apaixonadapor você.

Mesmo assim continuavamdesconfortavelmente separados;tão unidos quando ela falava, queparecia não haver divisão entreeles, e no momento seguinte,separados e distantes outra vez.Sentindo isso dolorosamente, elaexclamou:

– Vai ser uma luta.Mas olhando para ele

percebeu, pela forma de seus

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olhos, pelas linhas em torno desua boca e por outraspeculiaridades, que ele lheagradava, e acrescentou:

– Quando eu quiser brigar,tenha compaixão. Você é melhorque eu; muito melhor.

Ele devolveu seu olhar esorriu, percebendo, como elafizera, as pequenasparticularidades que a tornavamencantadora. Era sua parasempre.

Superada essa barreira,

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inumeráveis delícias jaziam àfrente deles.

Eu não sou melhor –respondeu ele. – Só sou maisvelho, mais preguiçoso; umhomem, não uma mulher.

Um homem – repetiu ela, e umestranho sentimento de posse adominou; pareceu-lhe que agorapodia tocá-lo; estendeu a mão etocou de leve sua face. Os dedosdele seguiram o caminho dosdela, e o toque da sua mão sobreo próprio rosto trouxe novamente

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o arrebatador sentimento deirrealidade. Aquele corpo deleera irreal; o mundo todo erairreal.

– O que aconteceu? – começouele. – Por que lhe pedi que secasasse comigo? O que foi?

– Você me pediu emcasamento? – espantou-seela.Afastaram-se um do outro, enenhum dos dois podia lembrar oque fora dito.

– Estávamos sentados no chão– lembrou ele.

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– Sentados no chão –confirmou ela. A lembrança desentarem no chão parecia uni-losde novo, e continua-ram andandoem silêncio, suas mentes às vezesfuncionando com dificuldade, àsvezes cessando de funcionar, seusolhos somente percebendo ascoisas ao redor. Agoraelevoltaria a tentar contar-lhe seusdefeitos e a dizer porque aamava; e ela descreveria o quesentira num momento ou outro, ejuntos interpretariam seu

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sentimento.Tão belo era o som desuas vozes que aos poucos quasenem ouviam as palavraspronunciadas. Longossilênciossurgiram entre suaspalavras, que já não eramsilênciosde confusão e luta, massilêncios repousantes em quepensamentos triviais se moviamcom facilidade. Começaram afalar naturalmente de coisascomuns, das flores e das árvores,que cresciam vermelhas como asflores dos jardins lá em casa, e se

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inclinavam e torciamcomo obraço de um velho deformado.

Muito suave e tranqüilamente,quase como o sanguecantando emsuas veias, ou a água da torrentecorrendo sobre as pedras, Rachelteve consciência de um novosentimento dentro dela. Imaginoupor um instante o que seria,edepois disse a si mesma, comuma pequena surpresaaoreconhecer em sua própriapessoa uma coisa tão famosa:

– Isso é a felicidade, eu acho.

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– E disse alto para Terence: –Isso é felicidade. E na seqüênciade suas palavras, ele respondeu:

– Isso é felicidade – eacharam que os sentimentosnasceram em ambos ao mesmotempo. Por isso começaramadescrever como sentiam isso eaquilo, o que era parecido e o queera diferente, pois os dois erammuito diferentes.

Vozes gritando atrás deles nãoos atingiam nas águas em queagora estavam mergulhados. A

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repetição do nome de Hewet, emsílabas breves e separadas, foipara eles como oestalo de umgalho seco ou o ruído de umpássaro. Com agrama e a brisasoando e murmurando ao seuredor,eles nemrepararam que ofarfalhar da grama era cada vezmais forte enão cessava quando abrisa parava. Uma mão caiu sobreo ombro de Rachel como ferro;podia ter sido um raio docéu. Elacaiu sob esse golpe, e o capimfustigou seus olhose encheu sua

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boca e orelhas. Através dos talosondulantes viu uma figura grandee informe contra o céu. EraHelen.Rolando de um lado aoutro, vendo apenas florestasdeverde e depois o alto céu azul,ela estava sem fala e quasesemsentidos. Finalmente ficou quieta,todos os capinstremendo ao seuredor com seus própriosarquejos. Sobreela apareceramduas grandes cabeças, de umhomem euma mulher,Terence eHelen.

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Os dois estavam corados,ambos rindo e movendo oslábios; juntaram-se e beijaram-seno ar acima dela.

Fragmentos de palavrasdesceram até ela nochão.Pensououvi-las falar deamor e depois de casamento.Levantando-se e sentando, elatambém percebeu o corpo maciode Helen, seus braços fortes eacolhedores, e afelicidadeinchando e diminuindo numa ondavasta. Quando isso acabou e o

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céu se tornou horizontal, e a terrase abriu plana dos dois lados, eas árvores ficarameretas, ela foi aprimeira a perceber a pequenafileira defiguras humanas paradapacientemente a distância. Poruminstante não conseguiu lembrarquem eram.

– Quem são eles? – perguntou,e depois lembrou-se.Alinhando-se atrás de Mr. Flushing, tiveramo cuidado de deixar pelo menostrês metros de distância entre aponta da bota dele e a beira da

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saia dela.Ele os conduziu por um trecho

verde junto à mar-gem do rio,depois através de um arvoredo, epediulhes que notassem sinais dehabitações humanas, o capimescurecido, os troncos de árvorecalcinados, e ali,entre as árvores,estranhos ninhos de madeiraunidos em arco onde as árvoresse afastavam, a aldeia que era ameta de sua jornada.

Pisando com cuidado,observaram as mulheres

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agachadas no chão, movendo asmãos, trançando palha ouamassando alguma coisa emtigelas. Mas depois de olharempor um momento sem seremdescobertos, foram avistados, eMr. Flushing, avançando para ocentro da clareira, passou a falarcom um homem magro emajestoso, cujos ossos ecavidades imediatamente fizeramas formas do inglês pareceremfeias e pouco naturais. Asmulheres não deram atenção aos

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estranhos, mas suas mãos pararampor um instante e seus longosolhos estreitos deslizaram,fixando-se sobre eles com aimobilidade e inexpressidade dosque estão afastados dos demaismuito além do alcance da fala.Suas mãos voltaram a mover-se,mas o olhar fixo continuava.Seguia os estranhos enquantoandavam, espiavam dentro dascabanas onde puderam distinguirarmas encostadas no canto,tigelas no chão, varas de bambu;

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na penumbra, encaravam-nos osolhos solenes dos bebês;velhastambém espiavam. Enquantoandavam por ali, o olhar osseguia, passando por suas pernas,corpos, cabeças, curiosamentehostis, como uma moscarastejando no inverno. Quandoabriu seu xale e descobriu o seiopara oferecê-lo aos lábios dobebê, os olhos de uma mulher nãodeixaram o rosto deles, emborase movessem pouco à vontadesob o seu olhar, e finalmente se

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viraram não querendo mais ficarali parados olhando para ela.Quando lhes ofereciam doces,estendiam grandes mãosvermelhas para pegá-los, e osingleses sentiram-se desajeitadoscomo soldados de casacos justosentre aquelas pessoas suaves einstintivas. Mas logo a vida daaldeia passou a não lhes dar maisatenção; tinham sido absorvidospor ela. As mãos das mulheresvoltaram a ocupar-se com palha;seus olhos baixaram. Se se

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moviam, era para apanhar algumacoisa na cabana, ou para pegaruma criança que se afastava,ouatravessar o lugar equilibrandouma jarra na cabeça;se falavam,era para gritar alguma coisaáspera e ininteligível. Vozeserguiam-se quando se batia numacriança, e morriam de novo;vozes erguiam-se numa cançãoque deslizava um pouquinhoacima, abaixo e voltava à mesmanota,grave emelancólica.Procurandose,

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Terence e Rachel reuniram-sedebaixo de uma árvore. Pacífica,e até bela no começo, a visão dasmulheres que tinham desistido deolhar para eles agora os deixavafrios e melancólicos.

– Bem – suspirou Terence porfim –, isso aqui nos faz parecerinsignificantes, não é?

Rachel concordou. Assimseria para todo o sempre,disseela, aquelas mulheres sentadasdebaixo de árvores,as árvores e orio. Viraram-se para outro lado e

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começaram a andar entre asárvores, apoiando-se um nosbraços do outro sem medo deserem descobertos. Não tinhamido longe quando começaram aassegurar-se mais uma vez de quese amavam, eram felizes, estavamcontentes; mas por que era tãodoloroso estar apaixonado, porque havia tanta dor na felicidade?

A visão da aldeia na verdadecuriosamente afetara a todos,embora de formas diferentes. St.John deixara os demais e

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caminhava lentamente para o rio,imerso emseus pensamentos,amargos e infelizes, pois sentia-se sozinho; e Helen, paradasozinha no espaçoensolaradoentre as mulheresnativas, tinha pressentimentos dedesgraça. Os gritos de animaisestranhos soavam aosseusouvidos, quando disparadosdos troncos das árvores paraascopas. Como pareciam pequenosaqueles vultos movendo-se entreas árvores! Ela teve uma

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consciência aguda de pequenosmembros, veias finas, a delicadacar-ne de homens e mulheres, quese rompe tão facilmentee deixa avida escapar, comparada àquelasenormes árvores e profundaságuas. Um ramo que cai, um péque escorrega, e a terra osesmaga ou a água os afoga.Pensandonisso, ela mantinha osolhos ansiosamente sobre osnamorados, como se pudesseassim protegê-las de seu destino.Virando-se, viu os Flushing ao

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seu lado.Falavam sobre as coisas que

tinham comprado e discutiam seeram realmente antigas, e se nãohavia aqui e alisinais deinfluência européia. Helentambém foi interpelada. Fizeram-na olhar um broche e depois umpar de brincos. Mas o tempo todoela os culpava por terem vindonaquela excursão, por terem-seaventurado longe demais, ex-pondo-se tanto. Depois animou-see tentou falar, mas empoucos

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minutos estava vendo o quadro deum barco viradonum rio daInglaterra ao meio-dia. Eramórbido, ela sabia,imaginarcoisas dessas; mesmo assimprocurava entre as árvores osvultos dos outros, e sempre queos via, mantinha osolhos fixosneles, para protegê-las dadesgraça.

Mas quando o sol baixou e ovapor virou e começou a navegarde volta para a civilização,novamente seus receios se

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acalmaram. Na semi-escuridão ascadeiras do convés e as pessoassentadas nelas eram vultosangulosos,a boca indicada por umminúsculo ponto aceso, o braçomovendo-se para cima e parabaixo com um cigarro ou charutolevado aos lábios e baixado denovo. Palavras cruzavam aescuridão, mas, sem saber ondecairiam, pareciam sem substânciae sem energia. Profundos suspirosouviam-se regularmente, emboracom alguma tentativa de suprimi-

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las, e vinham da grande formabranca que era Mrs. Flushing. Odia fora longo e muito quente, eagora que todas as cores estavamapagadas, o frio ar noturnoparecia comprimir brandos dedossobre as pálpebras, fechando-as.Algum comentário filosófico,aparentemente dirigido a St. JohnHirst, errou seu destino e ficoususpenso no ar até ser engolfadopor um bocejo e ser consideradomorto, sinal para mexerem pernase murmurarem coisas a respeito

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de sono. A massa branca moveu-se, por fim, estendeu-se edesapareceu; depois de algumasvoltas e passos St. John e Mr.Flushing se retiraram deixandotrês cadeiras ainda ocupadas portrês corpos silenciosos. A luz quevinha de um lampião alto nomastro e de um céu pálido comestrelas, deixavam-nos com formamas sem feições; e, mesmonaquela escuridão, o afastamentodos outros fazia com que sesentissem muito próximos uns dos

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outros, pois pensavam a mesmacoisa. Por algum tempo ninguémfalou; então Helen disse com umsuspiro:

– Então vocês dois estão muitofelizes?

Como se fosse lavada pelo ar,sua voz soou mais espiritual ebranda do que de costume. Apouca distância,vozesresponderam:

– Sim.Pela escuridão ela olhava os

dois tentando distinguilas. O que

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tinha para dizer? Rachel estavaagora fora da sua guarda. Sua vozpodia atingir os ouvidos dela,mas nunca mais chegaria tãolonge como há 24 horas. Mesmoassim parecia necessário falarantes de ir para a cama.Queriafalar, mas sentia-se estranhamentevelha e deprimida.

– Você percebe o que estáfazendo? – perguntou. – Ela éjovem, vocês dois são jovens, e ocasamento... – ela interrompeu-se.Mas imploraram que continuasse,

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com tal seriedade nas vozes comose desejassem ardentemente seuconselho, e ela acrescentou:

– Casamento! Bem, não éfácil.

– É o que queremos saber –responderam,e ela achou queagora estavam se entreolhando.

– Depende de vocês dois –afirmou. Seu rosto estava voltadopara Terence; embora ele quasenão a pudesse divisar, acreditavaque suas palavras realmentemostravam um desejo de

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conhecê-lo melhor. Ele ergueu-sede sua posição reclinada e passoua contar-lhe o que ela queriasaber. Falava tãodespreocupadamente quantopodia para remover a depressãodela.

– Tenho 27 anos e ganho cercade 700 libras ao ano – começou.– Tenho de modo geral um bomtemperamento, excelente saúde,embora Hirst detecte umatendência para gota. Bem, edepois, acho que sou muito

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inteligente.– Ele fez uma pausa esperando

confirmação.Helen concordou.– Embora, infelizmente, meio

preguiçoso. Pretendo deixar queRachel faça bobagens sequiser,e...De modo geral asenhora me acha satisfatório emoutros aspectos? – perguntou eletimidamente.

– Sim, gosto do que sei devocê – respondeu Helen.

– Mas... sabe-se tão poucacoisa.

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– Vamos morar em Londres e...– De repente, a uma voz,perguntaram se ela não os achavaas pessoas mais felizes que jáconhecera.

– Psiu – disse ela. – Lembrem.Mrs. Flushing está

atrás de nós. Então ficaramcalados, e Terence e Rachelsentiram instintivamente que suafelicidade a deixara triste;embora ansiosos por continuaremfalando de si mesmos não ofizeram.

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– Falamos demais de nósmesmos – disse Terence.

Diga-nos...Sim, diga-nos... – ecoou

Rachel. Estavam querendoacreditar que todo mundo eracapaz de dizer alguma coisamuito profunda.

O que posso lhes dizer? –refletiu Helen, falando mais parasi mesma, num estilo tortuoso, doque como profetisa dando umamensagem. Forçou-se a falar.

Afinal, embora eu ralhe com

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Rachel, não sou muito mais sábiaque ela. Sou mais velha, é claro,estou na metade do caminho, evocês só começando. Écomplicado...às vezes, eu acho,decepcionante; as coisas grandesnãosão talvez tão grandes quantose esperava... mas éinteressante... Ah, sim, vocêscertamente vão acharinteressante... E é assim pordiante. – Perceberam aprocissãode árvores negras paraas quais, até onde se

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conseguiadivisar. Helen olhavaagora. – E há prazeres onde nãoseesperava que existissem (vocêtem de escrever ao seupai), evocês vão ser muito felizes, nãotenho dúvida.Mas preciso ir paraa cama, e se forem espertos vãomeseguir em dez minutos,portanto... – ela levantou-se epostou-se diante deles, quase semfeições e muito grande – boanoite. – Ela passou para trás dacortina.

Depois de ficarem sentados

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em silêncio a maior parte dos dezminutos que ela lhes concedera,levantaram-se e debruçaram-sesobre a amurada. Abaixo deles aságuas macias e pretas deslizavammuito rápidas e silenciosas. Afagulha de um cigarro apagou-seatrás deles.

– Linda voz – murmurouTerence. Rachel concordou.Helen tinha uma linda voz.Depois de um silêncio elaperguntou olhando o céu:

– Estamos no convés de um

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vapor num rio da América doSul? Eu sou Rachel e você éTerence? O grande mundo negrojazia ao redor deles.Enquantoiamsendo levados suavemente aolongo dele, pareciadotado deimensa densidade e duração.Podiam discernir topos deárvores pontudos e topos deárvores rombudos e redondos.Erguendo os olhos acima delas,fixavam-nos nas estrelas e naborda pálida do céu acimadasárvores. Os pontinhos de luz

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congelada infinitamentedistantesatraíram seus olhos emantiveram-nos fixos, de modoque parecia que se passava muitotempo, e sentiram-se a umagrande distância, quando maisuma vezperceberam suas mãosagarrando a amurada e seuscorpos separados, imóveis, ladoa lado.

– Você me esqueceu totalmente– queixou-se Terence pegando obraço dela e começando acaminhar no convés. – E eu nunca

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me esqueço de você.– Ah não – sussurrou ela, não

esquecera, apenas as estrelas... anoite... a escuridão...

– Você parece um passarinhomeio adormecido noninho,Rachel. Está adormecida. Estáfalando no sono.

Meio adormecidos emurmurando palavrasfragmentadas, pararam no ângulofeito pela proa do barco,quedeslizava rio abaixo. Um sinotocou na ponte de comando e

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ouviram o chapinhar da água quese afastava em ondinhas dos doislados; um pássaro assustado nosonograsnou, voou para a árvoremais próxima, e tudo ficoucaladode novo. A escuridão derramava-se profusamente e os deixavaquase sem sentimento de vida, anão serpor estarem parados ali,juntos, na escuridão.

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22

A escuridão caia, maslevantava-se de novo, e a cadadia que se espalhava amplamentesobre a terra separandoosdaquele estranho dia na floresta,em que tinham sido forçados adizer um ao outro o que queriam,esse desejo deles era reveladoaos outros, e nesse processotornou-se um pouquinho estranhopara eles próprios.Aparentementenão acontecera nada de inusitado;tinham ficado noivos. O mundo,

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que consistia em sua maior parteno hotel e na villa, demonstroualegria pelo fato de que duaspessoas fossem se casar e deixou-os saber que não esperava queparticipassem do trabalho defazer o mundo prosseguir,mas quepodiam ficar ausentes por algumtempo. Por isso deixaram-nossozinhos até sentirem o silêncio,como se brincando numa vastaigreja alguém tivesse fechadouma porta diante deles. Foramlevados a caminhar sozinhos, a

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sentar-se sozinhos, a visitarlocais secretos onde as floresnunca tinham sido colhidas e asárvores eram solitárias. Nasolidão conseguiam expressaraqueles desejos belos masexcessivamente vastos, que eramtão estranhamente incômodos aosouvidos de outros homens emulheres – desejos de um mundo,assim como o seu próprio mundode duas pessoas lhes parecia ser,onde todos se conhecessemintimamente e julgassem uns aos

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outros pelo que era bom, jamaisbrigando porque era perda detempo.

Falavam sobre esses temasentre os livros, ao sol ou sentadosquietos à sombra de uma árvore.Já não ficavam embaraçados nemmeio sufocados com significadosque não podiam manifestar; nãotinham medo um do outro,nemeram mais como viajantesdescendo um rio turbulento,deslumbrados com súbitasbelezas; acontecera o inesperado,

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mas ainda assim o comum eraamável, e em muitas coisaspreferível ao extático emisterioso, pois eraagradavelmente sólido e exigiaesforço, e naquelas condiçõesesforço era mero encantamento.

Enquanto Rachel tocava piano,Terence sentava-se junto delaocupado, o que se mostrava poruma eventual palavra escrita alápis, em descrever o mundocomo lhe aparecia agora que ele eRachel iam se casar. Era sem

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dúvida um mundo diferente. Olivro chamado Silêncio não seriamais o mesmo. Então ele largavao lápis, olhava fixamente emfrente, pensando em que aspectoso mundo afinal estava diferente,talvez tivesse mais solidez maiscoerência, mais importância, maisprofundidade. Às vezes até a terralhe parecia muito profunda; nãocavada em morros e cidades ecampos, mas amontoada emgrandes massas. Olhava pelajanela, às vezes dez minutos a

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fio;mas não queria uma terra semseres humanos. Gostava dos sereshumanos – achava que gostavamais deles do que Rachel. Láestava ela, balançando-seentusiasmada sobre sua música,esquecida dele – mas gostavadessa qualidade nela. Gostava daimpessoalidade que provocavanela.Por fim,tendo escrito umasérie de breves frases com pontosde interrogação, ele comentoualto:

– Mulheres... sob o título

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“Mulheres” eu escrevi: “Nãomais vaidosas do que os homensrealmente; na base dos maioresdefeitos está a falta de confiançaem si mesmas. Falta de apreçopelo próprio sexo tradicional oubaseada em fatos? Toda mulherde coração não é tanto umadevassa mas uma otimista, porqueelas não pensam”. O que achadisso, Rachel? – Ele parou com olápis na mão e uma folha de papelno joelho.Rachel não disse nada.Escalava mais e mais a íngreme

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espiral de uma sonata deBeethoven, como uma pessoasubindo por uma escadariaarruinada, no começoenergicamente, depois avançandomais laboriosamente os pés,comesforço, até não poder subir maise voltar numa corrida pararecomeçar novamente, bemembaixo.

– “É moda hoje em dia dizerque mulheres são mais práticas emenos idealistas do que homens,que têm considerável capacidade

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de organização, mas não senso dehonra”... Pergunta: o que significao termo masculino “honra”?... aque correspondente no seu sexo?Hein?

Atacando novamente a suaescadaria, Rachel negligencioumais essa oportunidade derevelar os segredosdo seu sexo.Na verdade, avançara tanto nabusca da sabedoria que permitiaque esses segredosrepousassemintocados; pareciaestar reservado a uma futura

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geraçãodiscuti-losfilosoficamente.

Esmagando um acorde finalcom a mão esquerda, elaexclamou por fim, girando evirando-se para ele:

– Não, Terence, não adianta;aqui estou eu, a melhor música daAmérica do Sul, sem falar emEuropa e Ásia, e não posso tocaruma nota porque você está na salame interrompendo a cadasegundo.

– Você não parece entender

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que é isso que procuro fazer hámeia hora – comentou ele. – Nãotenho objeção a melodias simplese bonitas... na verdade acho queajudam muito minha composiçãoliterária, mas esse tipo de coisaaí parece antes um infelizcachorro velho girando nas patastraseiras, na chuva.Ele começou avirar as pequenas folhas de papelespalhadas na mesa, trazendocongratulações dos amigos deles.

– “... todos os votos possíveisde toda a felicidade possível” –

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leu ele. – Correto, mas não muitovívido, não?

– É pura bobagem! – exclamouRachel. – Pense em palavrascomparadas com sons! –prosseguiu ela. – Pense emromances, peças de teatro ehistórias... – Pousada nabeira damesa, ela remexeudesdenhosamente os volumesvermelhos e amarelos. Pareciaestar na posição dedesprezar todoo saber humano. Terence tambémoscontemplou.

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– Meu Deus, Rachel, você lêlixo! – exclamou ele. – E tambémestá atrasada no tempo, minhaquerida. Hoje em dia ninguémsonha ler essas coisas... peçassobre problemasantiquados,pungentes descriçõesda vida no Extremo

Oriente... ah não, jáliquidamos com tudo isso. Leiapoesia, Rachel, poesia, poesia,poesia!

Apanhando um dos livroscomeçou a ler em voz alta,com

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intenção de satirizar os latidosbreves e ásperos do inglês doescritor; mas ela não prestouatenção e, depois de um intervaloem que ficou refletindo,exclamou:

– Terence, você alguma vezachou que o mundo se compõeinteiramente de vastos blocos dematéria e que não somos nadasenão manchas de luz... – elaergueu os olhos para as manchasde sol agitando-se no tapete esubindo pela parede – como

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essas?– Não – disse Terence. – Eu

me sinto sólido; imensamentesólido; as pernas de minhacadeira podiam estar enraizadasnas entranhas da terra. Mas emCambridge, eu me lembro, haviaocasiões em que se caía emridículos estados de meio comapelas cinco da manhã. Hirst fazisso agora, eu acho... ah não,Hirst não faria isso.Rachelcontinuou:

– No dia em que chegou seu

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bilhete convidando-nos para opiquenique, eu estava sentadaonde você está agora,pensandonisso; será que consigo pensar denovo? Será que o mundo mudou?E se tiver mudado, quando vaiparar de mudar, e qual é o mundoreal?

– A primeira vez que a vi –começou ele – você me pareceuuma criatura que tinha vivido todaa sua vida entre pérolas e ossosvelhos. Suas mãos eram úmidas,lembra? E você não disse uma

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palavra até eu lhe dar um pedaçode pão; então você disse “Sereshumanos!”

– E eu achava você... umpedante – recordou ela. – Não,não é bem assim. Havia asformigas que roubavam a língua,e eu achei você e St. John comoaquelas formigas...muito grandes,muito feios, muito cheios deenergia, com todas as suasvirtudes nas costas. Mas quandolhe falei,gostei de você...

– Você se apaixonou por mim

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– corrigiu ele. – Estavaapaixonada por mim o tempotodo, só que não sabia.

– Não, eu nunca me apaixoneipor você – afirmou ela.

– Rachel... que mentira... vocênão ficava aqui sentada olhandopara a minha janela?... não ficavaandando pelo hotel feito umacoruja no sol?

– Não – repetiu ela. – Nuncame apaixonei, se apaixonar-se é oque as pessoas dizem que é, é omundo quemente, e eu que digo a

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verdade. Ah, que mentira...quementira!

Ela amassou um punhado decartas de Evelyn M., deMr.Pepper,de Mrs.Thornbury,deMiss Allan e de SusanWarrington. Era estranho,pensando em como essas pessoaseram todas diferentes, quetivessem usado quase as mesmasfrases ao congratulá-la pelonoivado.

O fato de qualquer dessaspessoas jamais ter sentido o que

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ela sentia, nem pudesse senti-lo,ou até ter direito de sequer fingirpor um instante que era capazdisso, deixava-a tão consternadaquanto aquela cerimônia na igrejaou o rosto da enfermeira. E, senão sentiam nada, por queestariam fingindo? Asimplicidade e arrogância edureza da juventude dela, agoraconcentrada numa só centelha,porcausa do seu amor por ele,deixava Terence perplexo;estarnoivo não tinha esse efeito sobre

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ele. O mundo estava diferente,mas não dessa maneira; ele aindaqueria as coisas que semprequisera, em especial queria maisque antes a companhia das outraspessoas. Tirou as cartas da mãodela e protestou:

– Naturalmente são absurdas,Rachel; naturalmente dizemcoisas apenas porque outros asdizem, mas mesmo assim, quemulher simpática é Miss Allan;não pode ne-gar isso;eMrs.Thornbury também;ela teve

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filhos demais,acredite, mas semeia dúzia deles entraram no maucaminho em vez de subireminfalivelmente ao topo... ela nãotem uma espécie de beleza?... desimplicidade elementar comodiria Flushing? Ela não pareceantes uma grande árvore velhamurmurando ao luar, ou um riocorrendo e correndo e correndo?Por falar nisso, Ralph foinomeado governador das IlhasCarroway... o mais jovemgovernador; muito bom, não é?

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Mas Rachel estava incapacitadade entender que a vasta maioriados assuntos do mundoprosseguia sem se ligar por um sófio ao destino dela própria.

– Eu não quero ter 11 filhos –afirmou; – não quero ter os olhosde uma velha. Ela olha a gente decima a baixo,de baixo a cima,como se a gente fosse um cavalo.

– Temos de ter um filho etemos de ter uma filha – disseTerence largando as cartas –porque, sem falar na inestimável

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vantagem de serem nossos filhos,eles seriam muito bem-educados.– Passaram a fazer um esboço daeducação ideal, como sua filhadesde a infância seria levada acontemplar um grande cartãoquadrado pintado de azul, parasugerir pensamentos de infinitude,pois as mulheres eram criadaspráticas demais; e seu filho...seria ensinado a rir dos grandeshomens, isto é, de homensnaturalmente bem-sucedidos,homens que usavam fitas e

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chegavam ao topo. Ele não separeceria de jeito nenhum(acrescentou Rachel) com St.John Hirst.

Terence então professou amaior admiração por St.JohnHirst. Detendo-se em suas boasqualidades, convencia-seseriamente delas; tinha uma mentecomo um torpedo, declarou,dirigido contra a falsidade. Ondeestaríamos todos nós sem ele e osiguais a ele? Sufocados entreervas daninhas; cristãos,

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fanáticos... ora, a própria Rachelseria escrava com um leque paracantar canções para os homensquando se sentissem sonolentos.

– Mas você nunca vai aceitarisso! – exclamou ele. – Porqueapesar de todas as suas virtudesvocê não se importa nem vai seimportar nunca, com todas asfibras do seu ser com a busca daverdade! Não tem respeito pelosfatos, Rachel; você éessencialmente feminina.

Ela não se deu ao trabalho de

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negar isso, nem achou bom daraquele único argumentoirrespondível contra os méritosque Terence admirava. St. Johndissera que ela estava apaixonadapor ele; ela jamais perdoariaisso; mas o argumento não teriaimportância para um homem.

– Mas eu gosto dele – disseela e pensou que também tinhapena dele, como se tem penadessas pessoas infelizesque estãode fora do cálido e misteriosoglobo cheio demudanças e

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milagres em que nós mesmos nosmovemos;achava que devia sermuito enfadonho ser St. JohnHirst.

Ela resumiu o que sentia porele dizendo que não o beijaria seele quisesse, o que não era nadaprovável.Como se devessealguma desculpa por Hirst, pelobeijo que ela lhe atribuíra,Terence protestou:

– E comparado a Hirst eu souum perfeito palhaço.

Nisso o relógio bateu doze

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horas em lugar de onze.– Estamos desperdiçando a

manhã... eu devia estarescrevendo meu livro, e vocêdevia estar respondendo a essascartas.

– Só nos restam 21 manhãsinteiras – disse Rachel.

– E meu pai vai chegar em umou dois dias.

Mesmo assim ela puxou umacaneta e um papel, e começou aescrever laboriosamente “Minhacara Evelyn...”

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Enquanto isso Terence lia umromance que outra pessoaescrevera, processo que achavaessencial para a composição doseu próprio livro. Por um lapsode tempo considerável nada seescutou senão o tiquetaquear dorelógio e o rabiscar intermitenteda caneta de Rachel, que produziafrases bastante semelhantes àsque ela mesma condenara. Elaprópria estava espantada comisso, pois parou de escrever eergueu os olhos;olhou para

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Terence, mergulhado na poltrona,olhou as diferentes peças demobília, sua cama no canto, avidraça mostrando ramos de umaárvore recheados de céu, escutouo relógio, e espantou-se com oabismo que jazia entre tudo isso esua folha de papel. Haveria umaépoca em que o mundo fosse unoe indivisível? Mesmo comTerence – quão distantes podiamestar, como ela sabia pouco doque se passava no cérebro delenaquele instante! Então concluiu

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sua frase, que era desajeitada efeia, e afirmou que ambosestavam “muito felizes e vamosnos casar provavelmente nooutono e esperamos viver emLondres, onde esperamos que nosvisite quando voltarmos”.Escolhendo “afetuosamente”,depois de mais algumaespeculação, em vez de“sinceramente”,ela assinou acarta e começava outra comobstinação quando Terencecomentou, citando de seu livro:

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– Escute isso, Rachel. “Éprovável que Hugh” (é o herói,um literato) “não tivessepercebido na época de seucasamento, não mais do que ojovem de talentos e imaginaçãogeralmente percebe, a natureza doabismo que se-para asnecessidades e desejos do machodas necessidades e desejos dafêmea... No começo foram muitofelizes. A caminhada pela Suíçafora um período de alegrecompanheirismo e estimulantes

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revelações para ambos. Bettymostrara ser a camarada ideal...Tinham gritado Amor no vale umpara o outro sobre as encostasnevadas do Riffelhorn”(e assimpor diante...vou saltar asdescrições)...“Mas em Londres,depois do nascimento domenino,tudo mudara. Betty erauma mãe admirável; mas nãolevou muito tempo para descobrirque a maternidade, como as mãesda classe média alta entendemessa função, não absorvia todas

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as suas energias. Ela era jovem eforte, com membros saudáveis ecorpo e cérebro precisandourgentemente de exercício...” (Emsuma, ela começou a dar chás.)...“Entrando tarde depois dessasingular conversa com o velhoBob Murphy no seu quartoenfumaçado e recheado de livros,com o som do tráfego zumbindoem seus ouvidos, e o nevoentocéu de Londres tragicamenterecobrindo sua mente... ele achouchapéus de mulher espalhados

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sobre seus papéis. Lenços demulher, absurdos sapatinhosfemininos e sombrinhas novestíbulo... Depois começaram aaparecer as contas... Ele tentoufalar-lhe francamente. Encontrou-a deitada na grande pele de ursopolar do quarto de dormir dosdois, meio despida, pois iamjantar com os Green em WiltonCrescent, a luz avermelhada dalareira fazendo faiscar e piscar osdiamantes nos seus braços nus, ea deliciosa curva do seu seio...

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visão de adorável feminilidade. Eperdoou-lhe tudo.” (Bem,isso vaide ruim a pior, e finalmente, cercade 50 páginas depois, Hugh pegauma passagem de fim de semanapara Swanage e “fica andandopelas planícies de Corfe”... Aquihá umas 15 páginas mais oumenos que vamos saltar. Aconclusão é ...) “Eram diferentes.Talvez num futuro distante, depoisde gerações de homens teremlutado e falhado, como ele agoratinha de lutar e falhar, as mulheres

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fossem, na verdade, o que elaagora pretendia ser... uma amiga ecompanheira... não a inimiga e aparasita do homem.”

– No final Hugh volta para suaesposa, coitado dele. Eraseudever, como homem casado. MeuDeus, Rachel – concluiu ele –,será que vai ser assim quando noscasarmos? Em vez de responderela perguntou:

– Por que as pessoas nãoescrevem sobre o que realmentesentem?

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– Ah, essa é a dificuldade! –suspirou ele, empurrando o livrode lado.

– Bem, então, como seráquando formos casados? Quecoisas as pessoas sentem?

Ela parecia duvidar.– Sente-se no chão e deixe-me

olhar para você –comandou ele. Repousando o

queixo no joelho dele,ela o fitava.Ele examinava, curioso:

– Você não é linda – começou– mas gosto do seu rosto. Gosto

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do jeito que seu cabelo cresce atéum ponto, e dos seus olhostambém... eles nunca vêem nada.Sua boca é grande demais, e suasfaces seriam melhores se fossemmais coloridas. Mas o que eugosto no seu rosto é que ele fazimaginar que diabo você estápensando... e me faz querer fazerisso... – ele fechou o punho esacudiu-o tão perto dela que elarecuou – porque agora vocêparece ter vontade de estourarmeus miolos. Há momentos em

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que,se estivéssemos paradosjuntos num rochedo, você mejogaria no mar.

Hipnotizada pela força dosolhos dele nos seus, ela repetiu:

– Se estivéssemos paradosjuntos num rochedo...

Ser jogada no mar, ser lançadade um lado para o outro e levadapelas raízes do mundo... a idéiaera incoerentemente bela. Elalevantou-se de um salto ecomeçou a mover-se pelo quarto,inclinando-se e empurrando de

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lado cadeiras e mesas como seestivesse singrando as águas.Elea observava com prazer;Rachel parecia estar abrindocaminho para si mesma e lidandotriunfantemente com osobstáculosque impedissem a passagem dosdois pela vida.

– Mas realmente parecepossível! – exclamou ele. –Embora eu sempre tenha pensadoque era a coisa mais improváveldo mundo... vou estar apaixonadopor você a vidatoda, e o nosso

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casamento vai ser a coisa maisexcitante quejá se fez! Nuncateremos um momento de paz... –Ele a pegou nos braços, quandoela passou, e lutaram paraverquem vencia, imaginando umarocha e o mar em torvelinhoabaixo deles. Finalmente ela foilançada ao chão, onde ficoudeitada, arquejando e pedindomisericórdia.

Eu sou uma sereia! Eu seinadar! – Então o jogo acabou. Ovestido dela se rasgara;

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estabelecida a paz, ela pegouagulha e linha e começou aremendá-lo.

E agora – disse ela – fiquequieto e fale-me do mundo; fale-me de tudo o que já aconteceu, eeu lhe direi...vamos ver, o queposso lhe dizer?... vou lhe falarde Miss Montgomerie e a festa norio. Sabe, ela ficou com um pé napraia e outro no barco.

Tinham já passado muitotempo relatando assim um para ooutro o curso de suas vidas e as

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personalidades deseus amigos eparentes; logo Terence não apenassabia oque se esperava que astias de Rachel dissessem emcadaocasião, mas também comoeram decorados seus quartosdedormir e que tipo de toucasusavam. Podia manter um diálogoentre Mrs. Hunt e Rachel, econduzir um chá incluindo oReverendo William Johnson eMiss Macquoid,os cientistascristãos, tudo bem próximo darealidade. Masconhecera muito

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mais pessoas e tinha muito maishabilidade narrativa do queRachel, cujas experiências eramem geral curiosamente infantis eengraçadas, de modo que aelacabia escutar e fazer perguntas.

Ele não apenas lhe relatava oque acontecera, mas o que sentirae pensara, e esboçava retratos doque outros homens e mulheresdeveriam pensar e sentir que afascinavam, de modo que ficoumuito ansiosa por voltar àInglaterra, cheia de gente, onde

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poderia parar nas ruas econtemplá-las. Segundo ele,também, havia uma ordem,umpadrão que tornava a vidarazoável, ou se essa palavra eratola, profundamente interessante,pois às vezes parecia possívelcompreender por que as coisasaconteciam como aconteciam. Enem as pessoas eram tãosolitárias e incomunicáveis comoela pensava. Ela devia procurarvaidade – pois vaidade era umaqualidade comum – primeiro em

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si mesma e depois em Helen, emRidley, em St. John,todos tinhamuma parcela disso... encontrariaisso em dez entre cada dozepessoas que conhecesse; e umavez ligados por esse laço, ela nãoos julgaria separados epoderosos, mas praticamente semnotabilidade, e passaria a amálosquando descobrisse que erambem parecidos com ela mesma.Se negasse isso, teria de defendersua crença de que seres humanoseram tão variados quanto os

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animais no zoológico, que tinhamlistras e crinas, e chifres ecascos; assim, repassando toda alista dos seus conhecidos edesviando-se para anedota, teoriae especulação, passaram aconhecer-se. As horas corriamdepressa, parecendo-lhes cheiasaté à borda. Depois da solidão deuma noite, estavam sempreprontos a recomeçar.

As virtudes que um dia Mrs.Ambrose pensava existirem nodiálogo franco entre homens e

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mulheres, na verdade existia paraos dois, embora não na medidaem que ela prescrevia. Bem maisdo que sobre a natureza dosexo,estendiam-se sobre anatureza da poesia, mas umdiálogo ilimitado aprofundava ealargava a clara visãosingularmente estreita de umamoça. Em troca do que Terencelhe contava, ela aguçava nele umatal curiosidade e sensibilidade napercepção, que ele chegava aduvidar se o benefício advindo de

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muita leitura e vivência era ounão igual ao que advinha doprazer e da dor. O que Rachelganharia com a experiência,exceto uma espécie de ridículoequilíbrio formal, como o de umcachorro treinado na rua? Terencecontemplava o rosto dela,imaginando como se pareceriadentro de 20 anos, quando osolhos estivessem mais foscos, e afronte mostrasse aquelaspequenas rugas persistentes quepareciam mostrar que os de

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meiaidade encaram algo difícilque os jovens nãoenxergam.Imaginou o que seriapara ambos o difícil. Depois seuspensamentos voltaram-se para avida deles na Inglaterra.

A idéia da Inglaterra eraencantadora, pois juntos veriamde outro modo as coisas antigas;seria a Inglaterra em junho, ehaveria noites de junho no campo;e os rouxinóis cantando nasveredas, para onde poderiam sairquando o quarto ficasse muito

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quente; e haveria planíciesinglesas brilhando de água,repletas de vacas imperturbáveise nuvens baixas sobre as colinasverdes. Sentado com ela noquarto, ele desejava muitas vezesestar de volta no auge da vida,fazendo coisas com Rachel.

Ele foi até a janela eexclamou:

– Deus, como é bom pensarem trilhas, veredas lamacentas,com cardos e sarças, everdadeiros campos cobertos de

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capim, e terreiros com porcos evacas e homens caminhando aolado de carroças, com forcados...não há nada que se compare aisso... veja a pedregosa terravermelha e o claro mar azul, e asresplandecentes casas brancas...como a gente se cansa disto! E oar sem uma mancha ou ruga. Eudaria tudo por um nevoeiro domar.

Rachel também estiverapensando no interior inglês: aterra plana desenrolando-se até o

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mar, as florestas e longas estradasretas, onde se pode caminharquilômetros sem ver ninguém, asgrandes torres de igreja, ascuriosas casas apinhadas novales, as aves, o crepúsculo e achuva caindo contra as vidraças.

Mas Londres,o lugar éLondres – continuou Terence.Olharam juntos o tapete, como sea própria Londres pudesse servista ali, deitada no chão, comtodas as suas tor-res e pináculosemergindo da fumaça.

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De modo geral, o que eu maisgostaria neste momento –ponderou Terence – seria estarcaminhando pela Kingsway, juntodaqueles grandes cartazes,vocêsabe, e dobrar entrando noStrand. Talvez eu fosse olhar aPonte de Waterloo por ummomento. Depois caminharia aolongo do Strand passando pelaslojas com todos aqueles livrosnovos e atravessaria a pequenaarcadaentrando no Temple.Sempre gostei daquela

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quietudedepois da agitação. Vocêde repente ouve seusprópriospassos bastante fortes. OTemple é muito agradável.Achoque eu iria ver se conseguiaencontrar o bom velho Hodgkin...o homem que escreve livrossobre VanEyck, você sabe.Quando deixei a Inglaterra, eleestavamuito triste por causa dasua gralhadomesticada.Suspeitava de queum homem a envenenara. Edepois,Russel vive no andar

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seguinte. Acho que vocêgostariadele. Tem paixão porHandel. Bem, Rachel – concluiuele afastando a visão de Londres–, vamos estar fazendo isso juntosdentro de seis semanas, e seráentão meadosde junho... e junhoem Londres... meu Deus!Comotudo isso é bom!

– E sabemos que vamos tertudo isso – disse ela. – Não queesperemos muito... apenas andarpor ali e olharas coisas.

– Apenas mil libras por ano e

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liberdade total – respondeu ele.Quantas pessoas em Londres vocêacha quetêm isso?

– E agora você estragou tudo –queixou-se ela. – Agora temos depensar nas coisas horríveis. Elaolhou de mau humor para oromance que uma vez lhe causaratalvez uma hora de desconforto,de modo que nunca mais o abriramas o deixara na mesa;eventualmente olhava para elecomo algum monge medievalguardava uma caveira ou um

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crucifixo para lembrá-lo dafragilidade do corpo.

– É verdade,Terence –perguntou ela –,que as mulheresmorrem com insetos rastejandosobre seus rostos?

– Acho que é muito provável –disse ele. – Mas você tem deadmitir, Rachel, que é tão raropensarmos em qualquer coisaalém de nós mesmos que umaferroada de vez em quando é atéagradável.Acusando-o de umcinismo que era tão ruim quanto o

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sentimentalismo, ela deixou suaposição ao lado dele e ajoelhou-se sobre o peitoril da janela,retorcendo as borlas da cortinaentre os dedos. Estava dominadapor um vago sentimento deinsatisfação.

– O que é tão desagradávelneste país – exclamou ela – é oazul... céu azul sempre, mar azul.É como uma cortina... todas ascoisas que se quer estão doladode lá. Eu quero saber o queacontece atrás dela.Odeio essas

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divisões, você não odeia,Terence? Uma pessoa totalmenteno escuro a respeito de outrapessoa. Eu gostei dos Dalloway eeles se foram. Nuncamais irei vê-los. Simplesmente subindo numnavionós nos separamosinteiramente do resto do mundo.

Quero ver a Inglaterra ali...Londres ali... toda sortede gente...por que não se poderia? Por queteríamosde nos fechar sozinhosnum quarto?

Enquanto falava assim, em

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parte para si mesma ecomcrescente vaguidão, pois seu olhofora atraídopor um navio queentrava na baía, ela não notouqueTerence parara de olhar emfrente, satisfeito, e agora aencarava com olhar penetrante edescontente. Rachel pareciacapaz de isolar-se dele e viajarparalugares desconhecidos ondenão precisava dele. Essaidéia odeixou enciumado.

– Às vezes acho que você nãoestá apaixonada por mim e nunca

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estará – disse ele energicamente.Ela vi-rou-se, surpresa, ouvindosuas palavras.

– Eu não a satisfaço comovocê me satisfaz – prosseguiu ele.– Há algo em você que nãoconsigo entender. Você não mequer como eu a quero... estásempre querendo alguma coisa amais.Ele começou a caminharpelo quarto.

– Talvez eu peça demais –continuou. – Talvez não sejarealmente possível ter o que eu

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quero. Homens e mulheres sãodiferentes demais. Você não podeentender... não entende...

Foi até onde ela estavacontemplando-o em silêncio.

Rachel achou o que ele diziatotalmente verdadeiro,ela queriamuito mais coisas do que o amorde um ser humano – o mar, o céu.Virou- se novamente e olhou oazul distante, tão liso e serenoonde o céu encontrava o mar. Nãoera possível querer somente umser humano.

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Ou é só essa droga denoivado? – prosseguiu ele.

Vamos nos casar aqui, antes devoltarmos... ou é um risco grandedemais? Temos certeza de quequeremos nos casar um comoutro?

Começaram a caminhar peloquarto mas, emboraseaproximassem muito um dooutro, tinham o cuidado denão setocar. Estavam esmagados pelasua condição semremédio. Eramimpotentes; jamais se amariam o

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bastante para superar todas essasbarreiras, e nuncapoderiamsatisfazer-se commenos. Percebendo isso comintolerável lucidez, ela parou nafrente dele e exclamou:

– Então, vamos romper.As palavras fizeram mais uni-

los do que qualquer quantidadede argumentos. Como estivessemà beira de um precipício,agarraram-se um ao outro.Sabiam que não podiam seseparar; por doloroso e terrível

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que fosse, estavam ligados parasempre. Silenciaram, e al-gumtempo depois sentaram-seagarrados. Apenas estar tãopróximos os acalmava; sentando-se lado a lado as barreirasdesapareciam, e era como se maisuma vez o mundo fosse sólido einteiro, como se, de algum modoestranho, tivessem ficado maisfortes e maiores.

Passou-se muito tempo até semexerem, e quando o fizeram foicom grande relutância. Postaram-

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se diante do espelho e tentaramassumir, com uma escova, aaparência de quem nada tivessesentido a manhã toda,nem dornem felicidade. Mas sentiramcalafrios vendo-se no espelho,pois em vez de grandes einseparáveis, na verdade erambem pequenos e separados, avastidão do espelho deixando umespaço enorme para refletiroutros objetos.

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23

Mas escova alguma era capazde remover totalmente aexpressão de felicidade deles, demodo que quando desceram asescadas, Mrs. Ambrose não pôdetratá-los como se tivessempassado a manhã de um modo quese comentasse com naturalidade.Sendo assim, ela juntou-se àconspiração do mundo que osconsiderava incapacitados paraos assuntos da vida, golpeadospela intensidade dos seus

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sentimentos indispondo-os com avida, e quase conseguiu tirá-losdo pensamento.

Refletiu que fizera tudo queera preciso nas questões práticas.Escrevera muitas cartas eobtivera o consentimento deWilloughby. Refletira tantas vezessobre as perspectivas de Mr.Hewet, sua profissão, seunascimento, sua aparência etemperamento, que quaseesquecera como ele era naverdade. Quando se lembrava, ao

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olhar para ele, imaginavanovamente como seria, e depois,concluindo que fosse como fosseestavam felizes, não pensou maisnaquilo.

Seria mais proveitoso pensarno que aconteceria em três anos,ou no que poderia ter acontecidose Rachel tivesse de conhecer omundo sob orientação do pai. Elaera sincera o suficiente parasaber que o resultado poderia sermelhor... quem sabia? Ela nãoescondia de si mesma que

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Terence tinha defeitos. Achava-ocalmo demais, tolerante demais,assim como ele a achava umpouco dura... não, ela não eratolerante. Em algumas coisaspreferia St. John; masnaturalmente esse não combinariacom Rachel. Sua amizade com St.John estava estabelecida, poisembora passasse de irritação ainteresse revelando suasinceridade, gostava dacompanhia dele. Levava-a parafora daquele mundinho de emoção

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e amor. Entendia os fatos.Supondo que a Inglaterra derepente fizesse algum movimentopara um desconhecido porto noMarrocos, St. John saberia o quehavia por trás disso, e escutá-loengajado com o marido dela numadiscussão sobre as finanças e oequilíbrio do poder dava-lhe umestranho sentimento deestabilidade. Respeitava osargumentos dele sem lhes darsempre atenção, tanto quantorespeitava uma sólida parede de

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tijolos, ou um daqueles imensosedifícios da municipalidade que,embora componham a maior partede nossas cidades, foramconstruídos dia após dia, anoapós ano, por mãosdesconhecidas. Gostava desentar-se e escutar, e ficava umpouco aliviada quando o casal denoivos, depois de mostrar suaprofunda indiferença, esgueirava-se para fora da sala e era vistodespetalando flores no jardim.Não que tivesse ciúme deles, mas

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invejava o grande futurodesconhecido que estava diantedeles. Passando de umpensamento desses a outro, elaagora andava da sala de estar àsala de jantar com frutas nasmãos. Às vezes parava paraendireitar uma vela que seentortava com o calor, oumodificava algum arranjo rígidodemais das cadeiras. Tinha razõespara suspeitar que Chailey andarase equilibrando no topo da escadade mão com um espanador úmido

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durante a ausência deles; a salanunca mais fora inteiramente amesma. Voltando da sala de jantarpela terceira vez, percebeu queuma das poltronas agora estavaocupada por St. John. Ele sedeitava para trás,olhossemicerrados, parecendo comosempre curiosamente fechado numbelo terno cinza e protegidocontra a exuberância de um climaestrangeiro, que poderia aqualquer momento tomar certasliberdades com ele.Os olhos dela

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pousaram nele suavemente edepois passaram sobre suacabeça. Por fim ela ocupou acadeira diante da dele.

– Eu não queria vir aqui –disse ele por fim. – Mas fuirealmente levado a isso... EvelynM. – murmurou.Então endireitou-se e começou a explicar comirônica solenidade como aqueladetestável mulher estavaquerendo casar-se com ele.

– Ela me persegue pelo hotel.Esta manhã apareceu na sala de

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fumar. Tudo o que pude fazer foipegar meu chapéu e fugir. Nãoqueria vir, mas não podia ficar eenfrentar outra refeição com ela.

– Bem, temos de aproveitarisso – respondeu Helenfilosoficamente. Estava muitoquente, e eram indiferentes aqualquer quantidade de silêncio,de modo que se recostaram emsuas poltronas e ficaramesperando que algo acontecesse.Tocou o sino para o almoço, masnão houve som de movimentos na

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casa. Havia novidades? perguntouHelen; alguma coisa nos jornais?St.John sacudiu a cabeça. Ah sim,recebera uma carta de casa, desua mãe, descrevendo o suicídioda copeira.Chamava-se SusanJane; entrara na cozinha certa tar-de, dizendo que queria que acozinheira guardasse seudinheiro; tinha 20 libras de ouro.Depois foi comprar um chapéu.Voltara às cinco e meia dizendoque tinha tomado veneno. Apenastiveram tempo de levá-la para a

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cama e chamar um médico antesde ela morrer.

Então? – perguntou Helen.Haverá um inquérito – disse

St. John.Por que ela fez aquilo? Ele

deu de ombros. Por que aspessoas se matam? Por que asclasses inferiores fazem as coisasque fazem? Ninguém sabia.Ficaram sentados em silêncio.

– Faz 15 minutos que o sinotocou e eles não desceram – disseHelen finalmente. Quando

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apareceram, St. John explicou porque fora necessário vir almoçarali. Imitou o tom entusiástico deEvelyn quando o encontrara nosalão de fumar.

– Ela acha que nada pode sertão fascinante quanto matemática,de modo que lhe emprestei umlivro grande, em dois volumes.Vai ser interessante ver o que elavai fazer com isso.

Rachel agora podia permitir-se rir para ele.Lembroulhe oGibbon; ainda tinha o primeiro

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volume por aí; seele assumisse ainstrução de Evelyn, issocertamente se-ria um teste; ouviradizer que Burke, sobre arevoluçãoamericana... Evelyndevia ler os dois ao mesmotempo.Depois que St. Johnacabou com o argumento delaesatisfez sua fome, passou acontar-lhes que o hotel ferviadeescândalos, alguns dos maisespantosos, que tinhamacontecidona ausência deles; na verdade eleestava bastante dedicado a

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estudar a sua própria espécie.– Evelyn M. por exemplo...

mas isso me foi dito emconfiança.

Bobagem! – objetou Terence.Você também ouviu a respeito

do pobre Sinclair?– Ah sim, ouvi a respeito de

Sinclair. Ele se retirou para a suamina com um revólver. Escrevediariamente a Evelyn que estápensando em se matar. Eu lheafirmei que ele nunca na vida foitão feliz, e de modo geral ela se

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inclina a concordar comigo.– Mas depois ela se enredou

com Perrott – continuou St. John.– E tenho motivos para pensar,por algo que vi no corredor, quetudo não é como devia estarsendo entre Arthur e Susan. Háuma moça recém-chegada deManchester. Seria bom serompessem, eu acho.A vida decasados será algo horrendodemais para se imaginar. Ah, ouviclaramente a velha Mrs. Paleydizendo as mais horríveis pragas

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quando passei pelo seu quarto dedormir. Dizem que ela tortura acriada... é quase certo que sim.Pode-se ver pela expressão dosseus olhos.

– Quando você tiver 80 anos ea gota atormentar, estarápraguejando como umcavalariano – comentou Terence.

– Estará muito gordo, muitomal-humorado, muitodesagradável. Não podemimaginá-lo... careca como umovo,com calças frouxas, uma

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gravatinha de bolinhas e umapança? Depois de uma pausaHirst comentou que a pior infâmiaainda estava por ser contada. Edirigiu-se a Helen.

– Eles expulsaram a prostitutaa pontapés. Uma noite enquantoestávamos fora,aquele velhoidiota do Thornbury estavatrotando bem tarde peloscorredores. (Ninguém parece ter-lhe perguntado por que ele estavade pé.) Ele viu a Signora LolaMendoza, como é chamada,

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atravessar o corredor decamisola. Na manhã seguintecomunicou suas suspeitas a Elliot,e Rodriguez foi até a mulher edeu-lhe 24 horas para deixar olocal. Ninguém parece terinvestigado a verdade da história,nem perguntado a Thornbury eElliot o que tinham com isso;fizeram tudo inteiramente comoqueriam. Proponho que assinemosuma circular e procuremosRodriguez juntos, insistindo numainvestigação completa. Alguma

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coisa tem de ser feita, nãoconcordam?

Hewet comentou que nãopodia haver dúvida quanto àprofissão da dama.

Mesmo assim – acrescentou –é uma grande vergonha,pobremulher; só que não vejo o que sepoderia fazer...

Concordo com você, St. John– explodiu Helen. – Émonstruoso. O moralismohipócrita dos ingleses faz ferveromeusangue.Um homem

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quefezfortuna nocomérciocomoMr.Thornbury deve ser duasvezes pior que uma prostituta.

Ela respeitava a moral de St.John, que levava mais a sério doque qualquer outra pessoa, eentrou numa discussão com ele arespeito dos passos que deviamser dados para reforçar o pontode vista de ambos sobre o que eracorreto. A discussão causoualgumas declaraçõesprofundamente melancólicas denatureza geral. Afinal, quem eram

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eles, que autoridade tinham... quepoder contra a massa desuperstição e ignorância? Eramos ingleses, naturalmente; deviahaver algo errado no sangueinglês.Assim que se conhecia uminglês de classe média, sentiaseuma aversão indefinível; assimque se via a meia-lua marrom decasas sobre Dover, a mesmasensação sobrevinha. Masinfelizmente, acrescentou St.John,não se pode confiar nessesestrangeiros...

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Foram interrompidos por sonsde discussão na outra ponta damesa. Rachel apelou para sua tia.

Terence diz que temos detomar chá com Mrs.Thornburyporque ela foi muito bondosa,mas não vejo por quê; na verdadeeu preferia deixar cortar minhamão em pedaços... imaginem só!Os olhos de todas aquelasmulheres!

Bobagem, Rachel- respondeuTerence. – Quem quer olhar paravocê? Você está é consumida de

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vaidade! Você é um monstro deconvencimento! Certamente,Helen, você devia ter-lheensinado a esta altura que ela nãoé nenhuma pessoa importante...nem bela, nem bem vestida, nemconhecida por elegância, intelectoou postura. Uma visão maiscomum do que você – concluiuele –, exceto pelo rasgo em seuvestido, nunca existiu. Mas, sequiser, fique em casa. Eu vou.

Ela apelou novamente à tia.Não era o fato de ser encarada,

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explicou, mas as coisas quecertamente as pessoas diriam.Especialmente as mulheres.Gostava de mulheres, mas emmatéria de emoção eram comomoscas no açúcar. Certamenteiriam lhe fazer perguntas. EvelynM. diria “Você está apaixonada?É bom estar apaixonada?” E Mrs.Thornbury... seus olhos aexaminariam de cima a baixo, decima a baixo... tinha calafriospensando nisso. Na verdade oisolamento de suas vidas desde o

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noivado a deixara tão sensívelque não estava exagerando seucaso.

Encontrou uma aliada emHelen, que passou a expor-lhe suavisão da raça humana, enquantocontemplava complacente apirâmide de frutas variadas nocentro da mesa. Não que fossemcruéis, ou quisessem machucar,ou que fossem extremamentebrutas, mas sempre achava que apessoa comum tem tão poucaemoção em sua vida que o cheiro

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dela em vidas alheias é comocheiro de sangue nas narinas deum cão sabujo.Entusiasmando-sepelo tema, continuou:

– Assim que alguma coisaacontece... pode ser umcasamento, um nascimento oumorte... de modo geral preferemque seja morte... todo mundo quernos ver.Insistem em nos ver. Nãotêm nada a dizer; não dão amínima para nós; mas temos de irao almoço, chá ou jantar, e se nãovamos somos condenados. É o

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cheiro de sangue – continuou. –Não as culpo; apenas, se eu puderevitar, não terão o meu!

Olhou em torno como setivesse convocado uma legião deseres humanos, todos hostis edesagradáveis, que rodeavam amesa, bocas abertas querendosangue e fazendo-a parecer umailhazinha de país neutro no meiode um país inimigo.

As palavras dela despertaramseu marido, que estiveramurmurando ritmicamente,

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observando seus convidados, suacomida e sua esposa com olhosora melancólicos, ora ferozes,segundo o destino da dama na suabalada. Ele interrompeu Helencom um protesto.Odiava até aaparência de cinismo nasmulheres.

– Bobagem, bobagem –comentou abruptamente.

Terence e Rachel olharam-sesobre a mesa, o que significavaque quando fossem casados nãose portariamdaquele jeito. A

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entrada de Ridley na conversateve um efeito estranho. Elatornou-se imediatamente formal epolida. Teria sido impossívelfalar com facilidade sobrequalquer coisa que lhes viesse àcabeça e pronunciar apalavra“prostituta” tãosimplesmente quanto qualqueroutra palavra. A conversa dirigiu-se para literatura e política, eRidleycontou histórias sobre aspessoas notáveis que conheceranajuventude. Essa conversa tinha a

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natureza de uma arte, e aspersonalidades e informalidadesdos jovens foram silenciadas.Quando se levantaram para partir,Helen parou porum momentoapoiando os cotovelos na mesa.

– Vocês estiveram sentadosaqui quase uma hora – dis-se – enão notaram meus figos, nemminhas flores, nem o jeito como aluz entra aqui, nem nada. Eu nãoestive escutando porque estavaolhando para vocês. E estavamlindos; queria que ficassem aqui

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sentados para sempre.Ela os conduziu para a sala de

visitas, onde pegou seubordado, ecomeçou novamente a dissuadirTerence de caminhar até o hotelnaquele calor. Mas quanto maisela o dissuadia, mais ele estavadeterminado a ir. Ficou irritado eobstinado. Houve momentos emque quase tiveram raivaum dooutro. Ele queria outras pessoas;queria que Rachel asvisse comele. Suspeitava de que Mrs.Ambrose não tentariadissuadi-la

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de ir. Estava aborrecido com todoaquele espaço,sombra e beleza, eHirst, reclinado, segurando umarevista.

Eu vou – repetiu. – Rachel nãoprecisa ir a não ser que queira.

Se você for, Hewet, eugostaria que investigasse sobre aprostituta – disse Hirst. – Olhe –acrescentou –, vou andar metadedo caminho com você.

Para grande surpresa deles,levantou-se, olhou o relógio debolso e comentou que, como

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passava meia hora do almoço, ossucos gástricos tinham tido tempobastante para funcionar; explicouque estava experimentando umsistema que envolvia brevesmomentos de exercíciointercalados com intervalos maislongos de repouso.

– Estarei de volta às quatro –comentou com Helen – quandovou me deitar no sofá e relaxartodos os meus músculoscompletamente.

– Então você vai, Rachel? –

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perguntou Helen. – Não vai ficarcomigo?

Ela sorriu, mas talvezestivesse triste.

Estava triste ou realmenterindo? Rachel não pôde dizer esentiu-se muito desconfortávelentre Helen e Terence. Depoisvirou-se, dizendo apenas que iriacom Terence desde que só elefalasse.

Uma faixa estreita de sombracorria ao longo da estrada que eralarga o bastante para dois, mas

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não para três.Por isso St. John ficou um

pouco atrás do casal, e adistância entre eles foiaumentando aos poucos.Caminhando com vistas àdigestão e com um olho norelógio, ele de tempos em temposcontemplava o par à suafrente.Pareciam tão felizes, tãoíntimos, embora caminhassemlado a lado como qualquerpessoa. Viravam-se de leve umpara o outro de vez em quando, e

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diziam algo que ele pensava sermuito particular. Estavamdiscutindo o caráter de Helen, eTerence tentava explicar por queela o aborrecia tanto às vezes.Mas St. John pensou que estavamdizendo coisas que ele não deviaescutar, e ficou pensando no seupróprio isolamento. Aquelaspessoas eram felizes; de algumaforma ele as desprezava porficarem felizes com tantasimplicidade, e de outra maneirainvejava-as. Era muito mais

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notável do que aquelas duaspessoas, mas não era feliz. Aspessoas nunca gostavam dele; àsvezes até duvidava se Helengostava dele. Ser simples, capazde dizer com simplicidade o quesentia, sem a terrível inibição queo dominava, e que lhe mostravaseu próprio rosto e palavraseternamente num espelho, issovaleria quase o mesmo quequalquer outro dom, pois fazia aspessoas felizes.Felicidade,felicidade, o que era felicidade?

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Ele nunca era feliz. Viaclaramente demais os pequenosvícios,enganos e imperfeições davida, e, vendo-os, parecialhehonesto comentá-los. Sem dúvidaera por isso que as pessoas emgeral não gostavam dele e sequeixavam de que era semcoração e amargo. Certamentenunca lhe diziam coisas que elequeria ouvir, que era simpático ebondoso, e que gostavam dele.Mas era verdade que metade dascoisas duras que dizia a respeito

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dos outros eram ditas porqueestava infeliz ou magoado.Masadmitia que muito raramentedissera a alguma pessoa que seimportava com ela, e quando foraexpansivo geralmente searrependera depois. Seussentimentos com relação aTerence e Rachel eram tãocomplicados que ele jamaisconseguira dizer que estavacontente porque iriam se casar.Via tão claramente os defeitosdeles e a natureza inferior de

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grande parte de seu sentimentomútuo, e esperava que seu amornão durasse.Olhou-os de novo, e,muito estranhamente, pois estavaacostumado a pensar queraramente via alguma coisa, avisão deles o encheu de umaemoção simples de afeto,em quehavia alguns traços decompaixão. Afinal, o queimportavam as falhas daspessoas, comparadas com o quehavia de bom nelas? Resolveuque agora lhes diria o que estava

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sentindo. Apressou seu passo ealcançouos exatamente quandochegavam à encruzilhada onde ocaminho se reunia à estradaprincipal. Pararam quietos ecomeçaram a rir para ele,perguntando se seus sucosgástricos... mas ele osinterrompeu e começou a falarmuito rápido e rígido:

– Lembram aquela manhãdepois do baile? – perguntou. –Estávamos sentados aqui, vocêsfalavam bobagens e Rachel fazia

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montinhos de pedras. Eu de minhaparte tive, num lampejo, arevelação de toda a vida. – Eleparou por um segundo,e apertouos lábios fortemente. – O amorparece-me explicar tudo. Assim,de modo geral, estou muitocontente porque vocês dois vãose casar. – Depois virou-sebruscamente, sem olhar para eles,e caminhou de volta à villa.Sentia-se a um tempo exaltado eenvergonhado por ter dito assim oque sentia. Provavelmente

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estavam rindo dele,provavelmente o achavam idiota;e afinal, realmente teria dito oque sentia?

Era verdade que riram quandoele se fora, mas a discussão sobreHelen, que se tornara bastanteáspera,cessou, e tornaram-seapaziguados e amáveis.

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24

Chegaram ao hotel no começoda tarde, de modo que a maiorparte das pessoas estava deitadaou sentada em seus quartoscalada, e Mrs. Thornbury, emboraos tivesse convidado para o chá,não aparecia em lugar algum. Porisso, sentaram-se no saguãosombrio, quase vazio e repassadodos leves sons farfalhantes de arsoprando num grande espaçodesocupado. Sim, aquela poltronaera a mesma em que Rachel se

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sentara na tarde em que Evelynaparecera, e era aquela a revistaque estivera olhando,aquele omesmo quadro, o quadro de NovaYork à luz dos lampiões. Comoera esquisito... nada tinhamudado.

Aos poucos, algumas pessoascomeçaram a descer as escadas epassar pelo saguão; naquelapenumbra seus vultos tinham umaespécie de graça e beleza,embora fossem todosdesconhecidos. Às vezes

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passavam direto para o jardim, àsvezes paravam alguns minutos,inclinavam-se sobre as mesas ecomeçavam a folhear jornais.Terence e Rachel observavamatravés das pálpebrassemicerradas...os Johnson, osParkey, os Bailey, os Simmon, osLee, os Morley; os Campbell, osGardiner. Alguns vestiam roupabranca e traziam raquetes debaixodo braço, uns eram baixos, outrosaltos, uns apenas crianças, ealguns podiam ser empregados,

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mas todos tinham sua posição, seumotivo para andarem uns atrásdos outros no saguão, seudinheiro, seu lugar, fosse qualfosse. Terence desistiu decontemplá-las, pois estavacansado; fechando os olhos, ficoumeio adormecido na cadeira.Rachel observou as pessoas maisalgum tempo; estava fascinadapela segurança e graça de seusmovimentos, pela maneirainevitável como pareciam ir unsatrás dos outros, hesitar, passar e

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desaparecer. Mas algum tempodepois seus pensamentoscomeçaram a vagar, e pensou nobaile que se realizara naquelesalão, só que então parecera bemdiferente.Olhando em torno,quase não acreditava que fosse omesmo aposento. Parecera tãodespido, tão claro e tão formalaquela noite, quando entraramnele, saindo da escuridão;também estivera apinhado compequenos rostos excitados sempreem movimento, pessoas vestidas

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de cores tão brilhantes e tãoanimadas que nem pareciampessoas reais, nem se sentia quefosse possível falar com elas. Eagora o salão estavapenumbroso,quieto, e belaspessoas silenciosas passavam porele,pessoas a quem se podiadirigir e dizer o quedesejasse.Ela sentia-sesurpreendentemente segurasentada em sua poltrona, capaz derever não apenas a noite do baile,mas todo o passado, terna e bem-

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humorada como se tivesse giradonum nevoeiro longo tempo eagora pudesse ver exatamentepara onde se dirigira. Pois osmétodos pelos quais chegara àsua atual posição lhe pareciammuito estranhos, e a coisa maisestranha neles era não ter elasabido aonde a estavam levando.Essa era a coisa estranha, que nãose sabia aonde se estava indo,ouo que se queria, e se seguiacegamente, sofrendo tanto emsegredo, sempre despreparada e

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espantada e sem saber de nada;uma coisa levava a outra, e aospoucos alguma coisa se formavado nada, e assim se chegavafinalmente àquela calma, àquelacerteza, e era esse processo queas pessoas chamavamviver.Talvez,então,todo mundosabia, como ela sabia agora,aonde estavam indo; e as coisasse formavam num padrão, não sópara ela mas para todos, e nessepadrão estavam o contentamento eo sentido de tudo. Olhando para

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trás podia ver que algum tipo desentido aparente existia nas vidasde suas tias, na breve visita dosDalloway, a quem jamais veria denovo, e na vida do seu pai.

O som de Terence respirandoprofundamente enquantocochilava confirmava a calma deRachel. Não estava sonolenta,embora não visse as coisas muitonitidamente, mas, como asimagens passando pelo saguão setornassem cada vez mais vagas,achava que todos sabiam

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exatamente aonde estavam indo, ea sensação da segurança delas aenchia de conforto. Naquelemomento estava tão desligada edesinteressada como se já nãotivesse nenhum destino a cumprirna vida, e achou que agorapoderia aceitar qualquer coisaque viesse sem ficar perplexapela forma como apareceria.Oque havia para se temer ou comque se espantar na perspectiva davida? Por que essa visão dascoisas a abandonaria outra vez?

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O mundo na verdade era tãovasto, tão hospitaleiro e, afinal decontas, tão simples.“O amor”,dissera St. John, “parece explicartodas as coisas”. Sim, mas não oamor na forma de amor entrehomem e mulher, de Terence porRachel. Embora se sentassem tãojuntos, tinham deixado de serpequenos corpos separados;tinham deixado de lutar e desejar-se.Parecia haver paz entre eles.Podia ser amor, mas não era oamor de homem por mulher.

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Através de seus olhos meiofechados Rachel observavaTerence deitado na sua cadeira;sorriu vendo como sua boca eragrande, seu queixo pequeno, seunariz curvado como umescorregador com uma saliênciana ponta. Naturalmente, comaquela aparência, era preguiçosoe ambicioso, cheio de caprichos edefeitos.Lembrou-se de suasbrigas, especialmente comotinham brigado a respeito deHelen naquela tarde, e pensou em

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quantas vezes ainda discutiriamnos 30, 40 ou 50 anos em queviveriam juntos na mesmacasa,apanhando trens juntos,aborrecendo-se por serem tãodiferentes. Mas tudo isso erasuperficial e nada tinha a ver coma vida que continuava sob osolhos, a boca e o queixo, poisaquela vida era independentedela, e independente de tudo omais. Assim também, emborafosse se casar com ele e vivercom ele por 30, 40 ou 50 anos, e

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discutir e ficar junto dele, eraindependente dele; eraindependente de tudo o mais.Mesmo assim, como dissera St.John, era o amor que a faziaentender isso, pois nunca sentiraessa independência, essa calma eessa certeza antes de se apaixonarpor ele, e talvez também issofosse amor. Ela não queria nadamais.

Por talvez dois minutos MissAllan estivera a distânciacontemplando o casal reclinado

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tão pacificamente em suaspoltronas. Não conseguia decidirse iria perturbá-las ou não; então,parecendo lembrar-se de algumacoisa, atravessou o saguão. Osom de sua aproximação acordouTerence, que se endireitou eesfregou os olhos. Ouviu MissAllan falando com Rachel.

Bem – estava dizendo ela –,isso é muito bom. Muito bom,realmente. Ficar noivo pareceestar na moda. Não é toda horaque dois casais que nunca se

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tinham visto antes decidem secasar. – Fez uma pausa e sorriu,parecendo não ter mais nada adizer, de modo que Terence selevantou e perguntou se eraverdade que ela terminara seulivro. Alguém lhe dissera que elarealmente o terminara. O rostodela iluminou-se; vi-rou-se paraele com uma expressão maisanimada do que o habitual.

Sim, acho que posso dizerhonestamente que terminei –disse. – Isto é, omitindo

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Swinburne... Beowulf aBrowning... eu pessoalmentegosto dos dois ‘bês’. Beowulf aBrowning – repetiu. – Acho que éo tipo de título que pode chamaratenção numa banca de livros deestação ferroviária.

Estava muito orgulhosa de terconcluído seu livro,pois ninguémsabia quanta determinação foranecessária para fazê-lo. Elatambém achava que era um bomtrabalho e, levando em contacomo estivera ansiosa em relação

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ao seu irmão quando o escrevera,não pôde resistir a falar-lhes umpouco mais a respeito.

– Devo confessar – prosseguiu– que se eu soubesse quantosclássicos existem na literaturainglesa e como são prolixososmelhores – deles, jamais teriaentrado nesse empreendimento.Só se permitem 70 mil palavras,vocês sabem.

Só 70 mil palavras! –exclamou Terence.

Sim, e é preciso dizer alguma

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coisa sobre todos eles– acrescentou Miss Allan – é o

que acho tão difícil, dizer algodiferente sobre cada um. – Entãoachou que já falara o bastantesobre si mesma e perguntou setinham vindo para participar dotorneio de tênis. – Os jovensestão muito entusiasmados.Começa em meia hora.

Seu olhar benevolente pousavasobre os dois. Depois de umapausa breve comentou,olhandopara Rachel como se tivesse

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lembrado algo que serviria paradistingui-la dos outros.

– Você é a pessoa notável quenão gosta de gengibre.

– Mas a bondade do sorriso noseu rosto bastante gasto ecorajoso fez com que sentissemque, embora dificilmente fosserecordá-los como indivíduos, eladepusera sobre eles o ônus danova geração.

– E nisso eu até concordobastante com ela – disse uma vozatrás deles. Mrs. Thornbury

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escutara as últimas palavrassobre não gostar de gengibre. –Na minha mente isso se associa auma horrenda tia nossa (coitada,ela sofria muitíssimo, por issonão se devia chamá-la dehorrenda) que costumava nos dargengibre quando éramospequenos, e nunca tínhamoscoragem de dizer que nãogostávamos. Tínhamos de cuspirtudo nas moitas... ela tinha umacasa grande perto de Bath.

Começaram a atravessar o

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saguão lentamente, quandopararam sob o impacto de Evelyn,que esbarrou neles como se,correndo escada abaixo paraalcançá-los, suas pernas tivessemescapado ao controle.

– Bem – exclamou ela, comseu entusiasmo habitual, pegandoRachel pelo braço –, eu acho issouma coisa esplêndida! Adivinheique ia acontecer, desde ocomecinho! Vi que vocês doiseram feitos um para o outro.Agora precisam me contar tudo a

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respeito... quando vai ser, ondevão morar... vocês dois estãoextremamente felizes?

Mas a atenção do grupopassou para Mrs. Elliot, quepassava por eles com seusmovimentos ansiosos masincertos, carregando nas mãos umprato e uma bolsa de água quentevazia .

Teria passado por eles, masMrs. Thornbury foi até ela einterpelou-a.

– Obrigada, Hughling está

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melhor – respondeu à pergunta deMrs.Thornbury. – mas ele não éum doente fácil. Quer saber suatemperatura, fica ansioso, e senão se conta começa a desconfiar.Você sabe como são os homensquando estão doentes! Enaturalmente aqui não temos osinstrumentos adequados, emboraele pareça muito desejoso eansioso por ajudar – ela baixou avoz num tom misterioso –, o Dr.Rodriguez não é um médicoapropriado. Se o senhor viesse

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visitá-lo, Mr. Hewet, sei que elese animaria... deitado ali na camao dia todo... e às moscas... Maspreciso procurar Angelo... acomida aqui... naturalmente, comum doente, a gente quer que tudosaia especialmente bem. – Ecorreu à procura do chefe dosgarçons.A preocupação de cuidardo marido impusera umaexpressão lamentosa à sua fronte.Estava pálida e parecia infeliz,mais ineficiente do que decostume e seus olhos passavam

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mais vagos ainda de um ponto aoutro.

– Coitada! – exclamou Mrs.Thornbury. Contou-lhes que poralguns dias Hughling Elliotandara doente e que o únicomédico disponível era irmão doproprietário, pelo menos oproprietário dizia isso, cujo títulode médico era suspeito.

Eu sei como é horrível ficardoente num hotel – comentouThornbury, mais uma vezconduzindo Rachel ao jardim. –

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Passei seis semanas de minha lua-de-mel com tifo em Veneza. Masmesmo assim ainda as consideroalgumas das semanas mais felizesde minha vida. Ah, sim dissepegando o braço de Rachel –,você se julga feliz agora, masisso não é nada comparado àfelicidade que vem depois. Easseguro-lhe que ainda no fundodo coração invejo vocês jovens!Vocês se divertem muito mais quenós, acreditem. Quando lembro,quase nem acredito como as

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coisas mudaram. Quando éramosnoivos, eu não podia nem passearsozinha com William... alguémtinha de estar sempre no mesmoaposento que nós... eu acho quetinha de mostrar todas as cartasdele aos meus pais!...emboratambém gostassem muito dele. Naverdade posso dizer que oconsideravam um filho. Éengraçado pensar como eramseveros conosco, quando vejocomo mimam os seus netos!

A mesa estava mais uma vez

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posta debaixo da árvore,etomando seu lugar diante dasxícaras de chá, Mrs.

Thornbury convidou e acenoucom a cabeça até reunir um bomnúmero de pessoas, Susan, Arthure Mr. Pepper que estavampasseando por ali esperando ocomeço do torneio. Uma árvoremurmurejante, um rio brilhandoao luar,as palavras de Terencevoltaram à lembrança de Rachelsentada tomando chá e escutandoas palavras que fluíam tão leves,

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tão bondosas e com uma maciezargêntea.Aquela vida longa etodos aqueles filhos tinham-nadeixado muito suave; pareciamter removido marcas deindividualidade, deixando apenaso que era velho e maternal.

– E as coisas que vocês moçosainda vão ver! – continuou Mrs.Thornbury. Ela incluiu todos elesem sua previsão, ela incluiu todoseles em sua maternidade, emborao grupo incluísse William Peppere Miss Allan, dos quais

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seimaginaria que já haviam vistoboa parte do panorama. – Quandovejo como o mundo mudoudurante a minhavida, não vejolimite para o que poderáacontecer nospróximos 50 anos.Ah, não, Mr. Pepper, nãoconcordonada com o senhor – elariu, interrompendo o comentáriomelancólico dele, de que ascoisas iam sempre de mala pior. –Eu sei que deveria sentir isso,mas acho que nãosinto. Eles vãoser pessoas muito melhores do

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que nós.Certamente tudo vaiprovar isso. Ao meu redorvejomulheres, mulheres jovens,mulheres compreocupaçõesdomésticas de todasorte, saindo e fazendo coisasquenós nem pensaríamos serempossíveis.

Mr. Pepper a achavasentimental e irracional como sãotodas as velhas, mas seu jeito detratá-lo como se fosse um velhobebê rabugento deixava-o aomesmo tempo espantado e

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encantado, e ele apenas pôderesponder com uma caretacuriosa, que era mais um sorrisodo que uma cara feia.

– E continuam sendo mulheres– acrescentou Mrs. Thornbury.Dão muito aos seus filhos.Quandodisse isso, ela sorriu para Susan eRachel.Elas não gostaram deserem incluídas no mesmo grupo,mas ambas sorriram um poucoacanhadas; Arthur e Terencetambém se entreolharam. Ela osfazia sentir que estavam ambos

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juntos no mesmo barco, e olharampara as mulheres com quem iamse casar, comparandoas. Erainexplicável que alguém quisessecasar-se com Rachel, incrível quealguém estivesse disposto apassar a vida com Susan; mas,por mais estranho que parecesse acada um o gosto do outro, nenhumdos dois tinha má vontade paracom o outro por esse motivo; naverdade ambos se estimavammais ainda por causa de suaescolha excêntrica.

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– Preciso realmente dar-lhe osparabéns – comentou Susanquando se inclinava sobre a mesapara pegar a geléia.

Parecia não haver motivo parao mexerico de St.John sobreArthur e Susan. Queimados de sole vigorosos, sentavam-se ali ladoa lado com suas raquetes sobre osjoelhos, não falando muito, masdando leves sorrisos o tempotodo. Através de suas finasroupas brancas era possível veras linhas de seus corpos e pernas,

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as lindas curvas de seusmúsculos, a magreza dele e ascarnes dela, e era natural pensarnas crianças fortes e de carnesrijas que teriam. Seus rostos nãoeram belos, mas tinham olhosclaros e aparência de grandesaúde e resistência, pois pareciaque o sangue jamais deixaria decorrer nas veias dele ou derepousar, calmo e profundo, nasfaces dela. Os olhos dos dois nomomento estavam mais brilhantesdo que de costume e tinham a

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expressão peculiar de prazer econfiança que parece estar nosolhos dos atletas, pois estiveramjogando tênis, e eram ambosexcelentes no jogo.

Evelyn não falara, masestivera olhando de Susan paraRachel. Bem... ambas tinham sedecidido muito facilmente, tinhamfeito em poucas semanas o quepor vezes ela pensava jamaispoder fazer. Embora fossem tãodiferentes, achou que podia verem cada uma a mesma expressão

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de contentamento e plenitude, amesma maneira calma, os mesmosmovimentos vagarosos. Era essalentidão, a confiança e ocontentamento que ela odiava,pensou. Moviam-se tão devagarporque não eram isoladas, masuma dupla, Susan ligada a Arthur,e Rachel a Terence, e por causadaquele único homem tinhamrenunciado a todos os demais, aomovimento e a todas as coisasreais da vida. Tudo bem com oamor e com aquelas

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aconchegantes casas com cozinhaem baixo e quarto de crianças emcima, tão fechadas e absorvidasem si como ilhazinhas nastorrentes do mundo. Mas ascoisas reais eram sem dúvida ascoisas que aconteciam, as causas,as guerras, os ideais, quesucediam no grande mundo lá forae continuavam independentesdessas mulheres, que se tornaramtão belas e quietas para seushomens. Ela as examinouacuradamente. Naturalmente

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estavam felizes e satisfeitas, masdevia haver coisas melhores doque aquilo.

Certamente podia se chegarmais perto da vida, podia sedivertir mais e sentir mais do queelas jamais sentiriam. Rachel,especialmente, parecia tãojovem... o que poderia saber davida? Ela ficou inquieta e,levantandose, foi sentar-se aolado de Rachel. Lembrou-a deque prometera unir-se ao seuclube.

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– O problema é que talvez eunão seja capaz de começar atrabalhar seriamente até outubro.Acabo de receber uma carta deuma amiga cujo irmão está aserviço em Moscou. Querem queeu fique com eles, e como estãono meio de todas as conspiraçõese dos anarquistas, estou pensandoem parar a caminho decasa.Parece excitante demais. –Ela queria fazer Rachel ver comoera excitante. – Minha amigaconhece uma moça de 15 anos

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que foi mandada para a Sibériapara sempre, apenas porque aapanharam mandando uma carta aum anarquista. E a carta nem eradela. Eu daria tudo que tenho nomundo para ajudar numarevolução contra o governo russo,e isso vai acontecer.

Olhou de Rachel para Terence.Os dois estavam um poucocomovidos ao vê-la, lembrandocomo ultimamente tinham ouvidopalavras más a seurespeito.Terence perguntou-lhe

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qual era o seu esquema, e elaexplicou que ia fundar um clube –um clube para fazer coisas, fazê-las de verdade. Ficou muitoanimada enquanto falava, poisprofessou estar certa de que 20pessoas – não, dez seria obastante se fossem ousadas –interessadas em fazer coisas, emvez de falar sobre elas, poderiamacabar com quase todo o mal queexistia. O que era preciso eramcérebros. Ao menos pessoas comcérebro – naturalmente quereriam

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uma sala, uma boa sala, depreferência em Bloomsbury, ondepudessem encontrar-se uma vezpor semana...

Enquanto ela falava, Terencepodia ver os traços de juventudeque iam murchando no seu rosto,as linhas que estavam sendomarcadas pela fala e pelaexcitação em torno de sua boca eolhos, mas não teve penadela;olhando naqueles olhosbrilhantes, um tanto duros e muitocorajosos, viu que ela não tinha

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pena de si mesma, nem sentiaqualquer desejo de trocar suavida pelas vidas mais refinadas eordenadas de pessoas como elepróprio e St. John, embora, com opassar dos anos, a luta se tornassecada vez mais dura.Talvez porémela se estabelecesse; talvez afinalde contas se casasse com Perrott.Enquanto sua mente estava meioocupada com

o que ela dizia, ele pensou noprovável destino dela, as levesnuvens de fumaça escondendo um

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pouco o seu rosto aos olhos dela.Terence fumava, Arthur

fumava e Evelyn fumava, demodoque o ar estava cheio da névoa edo perfume debom tabaco. Nosintervalos em que ninguém falava,ouviam bem distante o murmúrioabafado do mar, quandoas ondasse quebravam tranqüilamenteespalhando napraia uma beiradade água e recuando paraquebraremse de novo. A fria luzverde caía entre as folhas deárvore, e havia crescentes suaves

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e diamantes de sol sobre ospratos e a toalha de mesa. Depoisde observá-los todospor algumtempo em silêncio, Mrs.Thornbury começou a fazerperguntas bondosas a Rachel.Quando iamtodos voltar? Ah,estavam esperando o pai dela.Ela devia estar querendo ver opai – haveria muita coisa acontar-lhe, e (ela olhou comsimpatia para Terence) eleficariatão feliz, estava certa disso. Anosatrás, prosseguiu, talvez dez ou

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até vinte anos, lembrava de terconhecido Mr. Vinrace numa festae, impressionada com o rostodele, diferente dos rostos comunsque se vêemem festas, perguntaraquem ele era; tinham-lhe ditoqueera Mr. Vinrace, e ela semprerecordava o nome –nome nadacomum – e ele estava com umasenhora de aparência muito gentil,mas era uma daquelasterríveisfestas apinhadas de genteem Londres,em queninguémconversa – as pessoas

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ficam apenas se olhando –, eembora tivesse apertado a mão deMr. Vinrace, provavelmente nãotinham dito nada. Ela suspirou umpouquinho lembrando o passado.

Então voltou-se para Mr.Pepper, que estava muitodependente dela, de modo quesempre escolhia sentarse pertodela e escutava o que ela dizia,embora raramente fizesse algumcomentário pessoal.

– O senhor que conhece tudo,Mr. Pepper – disse ela –, digamos

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agora como aquelas maravilhosasdamas francesas administram osseus salões? Fazemos algoparecido na Inglaterra, ou osenhor acha que há algum motivopara não podermos fazer?

Mr. Pepper alegrou-se empoder explicar muitodetalhadamente por que nuncatinha havido um salãoinglês.Havia três motivos, e erammuito bons, disse ele. Quando iaa uma festa, como às vezes eraobrigado a fazer para nãoofender

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ninguém – sua sobrinha, porexemplo, casara-seoutro dia –,ele caminhava até o meio da sala,dizia “Ha!

Ha!”o mais alto quepodia,pensava ter cumprido seudevere ia embora. Mrs.Thornbury protestou. Ia dar umafestaassim que voltasse para casae todos seriam convidados;elacolocaria gente para observarMr. Pepper e se o apanhassemdizendo “Há! Há!” ela... ela fariaalguma coisa horrívelcontra ele.

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Arthur Venning sugeriu quedeveria prepararum tipo desurpresa, por exemplo, o retratode uma simpática velha em gorrode renda escondendo um jato deáguafria, que a um sinal seriaespirrado contra a cabeçadePepper; ou então uma cadeiraque o dispararia a 20 metrosdealtura assim que se sentasse nela.

Susan riu. Terminara seu chá;estava muito contente porquejogara tênis brilhantemente eporque todo mundo era tão

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simpático; começava a achar bemmais fácil conversar e manterdiálogo, mesmo com gente beminteligente, pois pessoasinteligentes não a assustavammais.Até Mr. Hirst, de quem nãogostara quando o conhecera,nãoera desagradável; e, coitado,sempre parecia tão doente; talvezestivesse apaixonado; talveztivesse gostado de Rachel – elanão se espantaria se fosse isso; outalvez Evelyn – naturalmente estaera muito atraente para os

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homens. Inclinando-se paradiante, ela prosseguiu a con-versa. Disse achar que festaseram tão aborrecidasprincipalmente porque os homensnão querem se vestirdireito;mesmo em Londres, disse,surpreendia-se ao ver como aspessoas não achavam necessáriovestir-se para anoite;evidentemente se não sevestiam em Londres, muito me-nos no interior. Era realmente umaborrecimento na época de Natal,

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quando havia bailes de caçada eos cavalheiros usavam beloscasacos vermelhos, mas Arthurnão ligava para bailes, de modoque talvez nem fosse ao baile nasua cidadezinha do interior. Elaachava que em geral pessoas quegostam de um esporte não ligampara outro, embora seu pai fosseuma exceção. Mas ele eraexceção em tudo – um excelentejardineiro, sabia tudo sobrepássaros e animais, e erasimplesmente adorado por todas

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as velhas da aldeia, e ao mesmotempo o que mais apreciava eraum livro. Sempre se sabia ondeencontrá-lo; estava no seu estúdiocom um livro. Provavelmenteseria um livro muito, muito velho,alguma coisa antiga e bolorentaque ninguém mais sonharia ler.Ela costumava dizer-lhe que teriasido um rato de biblioteca se nãotivesse família de seis pessoaspara sustentar; e seis filhos,acrescentava ela, confiando deum jeito encantador na simpatia

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universal, não deixavam muitotempo para ninguém se tornar umrato de biblioteca.

Ainda falando em seu pai, dequem se orgulhava muito, elaergueu-se porque Arthur, olhandoo relógio, achou que estava nahora de voltar novamente para aquadra de tênis. Os outros não semexeram.

Estão muito felizes! – disseMrs.Thornbury olhando para elescom ar benevolente. Rachelconcordou; pareciam tão seguros

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de si mesmos; pareciam saberexatamente o que queriam.

Você acha que eles estãofelizes? – murmurou Evelyn aTerence num tom cheio dealusões, esperando que eledissesse que não achava; mas emvez disso ele disse que tambémtinham de ir... ir para casa, poisandavam sempre atrasados paraas refeições, e Mrs. Ambrose,que era muito severa eescrupulosa, não gostava disso.Evelyn segurou a saia de Rachel e

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protestou. Por que tinham de ir?Ainda era cedo, e ela tinha tantascoisas a lhes dizer.

– Não – disse Terence –,temos de ir porque caminhamosdevagar. Paramos para olhar ascoisas, e conversamos.

– Do que falam? – perguntouEvelyn, ao que ele riu e disse quefalavam de tudo.Mrs. Thornburyfoi com eles até o portão,atravessando a relva e o cascalhocom muita lentidão e graça,falando o tempo todo sobre

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pássaros e flores. Disse-lhes quedesde que a filha se casaracomeçara a estudar botânica;eramaravilhoso, quantas flores ali eela nunca vira, embora tivessevivido no interior a vida toda eela tinha 72 anos. Era uma boacoisa ter uma ocupação bastanteindependente das outras pessoas,disse, quando se ficasse velha.Mas o estranho era que a gentenunca se sentia velha.Ela sempresentia que tinha 25, nem um dia amais nem um dia a menos, mas,

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naturalmente, não se podiaesperar que outras pessoasconcordassem com isso.

– Deve ser maravilhoso ter 25e não apenas imaginar que se tem25 – disse ela olhando de um paraoutro com seu olhar suave eclaro. – Deve ser muito, muitomaravilhoso mesmo. – Ficouparada falando com eles noportão por um longo tempo;parecia relutar em deixá-lospartir.

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25

A tarde estava muito quente,tão quente que as ondasquebrandona praia soavam como o repetidosuspiro dealguma criaturaexausta, e mesmo no terraçodebaixo deum toldo as lajesestavam quentes, e o ar dançavaperpetuamente sobre o capimcurto e seco. As flores vermelhasnas bacias de pedra murchavamde calor,e os botõesbrancos, quepoucas semanas antes eram tãomacios egrossos, agora estavam

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secos e com as pontasretorcidasamarelas. Só as plantasrígidas e hostis do sul, cujasfolhas carnudas pareciam crescerem espinhos dorsais,aindaestavam eretas e desafiando o solpara que as dobras-se. Estavaquente demais para se falar, e nãoera fácilencontrar um livro queresistisse ao poder do sol.Muitostinham sido tentados elargados, e agora Terenceestavalendo Milton em voz alta,porque dizia que as palavras de

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Milton tinham substância e forma,de modo que nãoera precisocompreender o que ele dizia;bastava escutaras palavras;podia-se quase manipulá-las.

Há uma doce ninfa nãolonge daqui,

Leu ele,

Que com curva úmida fazondular a doce torrente doSevern. Sabrina é seu

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nome, virgem pura;Erafilha de Locrino, Querecebera o cetro de seu paiBruto.

As palavras, apesar do queTerence dissera,pareciamcarregadas designificado e talvez por isso fossedolorosoescutá-las; soavamestranhas; significavam coisasdiferentesdo que usualmentesignificam. Rachel, pelo menos,nãoconseguia prestar atenção

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nelas, mas seguia estranhosdesvios de pensamento sugeridaspor palavras como“curva”,“Locrino”e “Bruto”,quetraziam visões desagradáveisdiante de seusolhos,independentemente de seusentido.Devidoao calor e ao arque dançavam, o jardim tambémpareciaesquisito... as árvorespróximas ou distantes demais, esuacabeça quase certamentedoía.Ela não estava certa,porissonão sabia se devia dizer a

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Terence agora ou deixá-loseguirlendo. Decidiu queesperaria que ele chegasse ao fimdeuma estrofe e, se naquela alturaela virasse a cabeça de umlado aoutro e doesse indubitavelmenteem qualquer posição, diria commuita calma que estava com dorde cabeça.

Bela Sabrina,Ouça de onde está sentadaSob a onda vítrea, fria etranslúcida,

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Tecendo em trançasretorcidas de lírios,Seu cabelo solto cor deâmbar, gotejante,Ouça pela honra do seuamadoDeusa do lago de prata,Ouça e salve!

Mas sua cabeça doía; doía,para qualquer lado que virasse.

Sentou-se ereta e dissedecidida:

– Estou com dor de cabeça,

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então vou entrar. Ele estava nametade do verso seguinte, maslargou

o livro na mesma hora.– Está com dor de cabeça? –

repetiu ele.Por uns momentos ficaram

sentados entreolhandose emsilêncio, de mãos dadas. Duranteesse tempo os sentimentos dele deconsternação e catástrofe foramquase fisicamente dolorosos;pareceu ouvir ao seu redor umtremor de vidro partido que, ao

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cair na terra, o deixou sentado empleno ar. Mas no fim de doisminutos, notando que ela nãopartilhava de sua consternação,mas estava antes bastantelânguida e de pálpebras maispesadas do que de costume, elerecuperou-se,chamou Helen eperguntou o que deviam fazer,pois Rachel estava com dor decabeça.

Mrs. Ambrose não seperturbou, mas aconselhouquefosse para a cama e

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acrescentou que sua cabeçadoeria seficasse sentada o tempotodo sem repousar nem sairdocalor, mas que umas poucashoras na cama a curariamtotalmente. Terence sentiu umalívio irracional com essaspalavras, assim como estiverairracionalmente deprimidomomentos antes. O espírito deHelen parecia ter muito emcomumcom o implacável bom senso danatureza, que vingava aimprudência com uma dor de

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cabeça e, como o bom senso danatureza, era algo confiável.

Rachel foi para a cama;deitada no escuro por um longotempo, mas, finalmente,acordando de uma espécie desono transparente, viu as janelasbrancas à sua frente e lembrouque algum tempo atrás fora para acama com dor de cabeça e queHelen dissera que teria passadoquando acordasse. Por isso achouque estava boa outra vez. Aomesmo tempo a parede à sua

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frente era de um branco dolorosoe curvava-se de leve em vez deestar reta e plana.Virando osolhos para a janela, não ficoutranqüila com o que viu. Omovimento da persiana quando seenchia de ar e inflava de levepara fora, arrastando a corda noassoalho com um pequeno somrastejante, pareceu-lhe assustadorcomo um bicho no quarto. Elafechou os olhos, e o latejar na suacabeça foi tão forte que cadalatejo parecia bater um nervo,

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fincando uma pequena ferroadade dor na sua testa. Podia não sera mesma dor de cabeça, mas suacabeça certamente doía. Virou-sede um lado para outro, esperandoque a frieza dos lençóis acurasse,e quando abrissenovamente os olhos o quartoestaria como de costume.Depoisde um número considerável detentativas vãs, ela decidiuresolver o assunto. Saiu da camae parou ereta,segurando-se numabola de latão na cabeceira da

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cama.De início gelada, acabeceira logo ficou quente comoa palma de sua mão, e as doresem sua cabeça e em seu corpo, ea instabilidade do chão, provaramque seria bem mais insuportávelficar de pé e caminhar do queficar na cama, e voltou a deitar-se; embora no começo a mudançaa refrescasse,o desconforto dacama logo ficou tão grande quantoo de estar de pé. Aceitou a idéiade que teria de ficar na cama odia todo, e quando deitou a

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cabeça no travesseiro, renunciouà felicidade do dia.

Quando Helen entrou uma ouduas horas depois, interrompeude repente as palavras alegresque ia dizendo, pareceu espantar-se um segundo e, depois deassumir uma calma artificial, nãoteve dúvidas de que Rachelestava enferma. Isso se confirmouquando a casa toda ficousabendo,quando alguéminterrompeu uma canção quecantava no jardim e quando

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Maria, trazendo água, passou pelacamacalada, olhos baixos. Foipreciso superar toda a manhãetoda a tarde; de vez em quandoRachel fazia um esforçoparapassar para o mundo comum, masvia que seu calor edesconfortotinham cavado um abismo entreseu mundo e aquele, comum, eque não era possível atravessar.Num momento a porta abriu-se, eHelen entrou com um homenzinhomoreno que tinha – foi a coisaprincipal que Rachelnotou nele –

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mãos muito peludas. Estava tontae com umcalor insuportável, ecomo ele parecesse tímido eobsequioso, quase não se deu aotrabalho de responder-lhe,emboraentendesse que era um médico.Noutro momento, a porta se abriue Terence entrou muitosuavemente, sorrindo um sorrisofixo demais para sernatural,conforme ela percebeu.Sentou-se e falou com ela,acariciando suas mãos, até queficou impossível para ela

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continuar deitada na mesmaposição e se virou; quando olhoude novo Helen estava a seu lado eTerence se fora. Não tinhaimportância; ela o veria amanhãquando ascoisas voltassem aonormal. Sua ocupação principaldurante o dia foi tentar lembrar osversos:

Sob a onda vítrea, fria e

translúcida.Tecendo em tranças retorcidas

de lírios,

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Seu cabelo solto cor de âmbar,gotejante,

e esse esforço a preocupavaporque os adjetivos insistiam emcolocar-se nos lugares errados.

O segundo dia não foi muitodiferente do primeiro,exceto quesua cama se tornara muitoimportante, e omundo de fora,quando tentava pensar nele,parecia cadavez mais afastado. Aonda vítrea, fria e translúcidaestava quase visível diante dela,

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encrespando-se no pé da cama,ecomo era de um frio refrescanteRachel tentava manter opensamento fixo nela. Helenestava ali, e esteve ali o diatodo;às vezes dizia que era hora doalmoço, às vezes queera hora dochá; mas no dia seguinte todos osmarcos estavam borrados e omundo exterior estava tão distantequeos diferentes sons,como sonsde pessoas passando na escada ede gente caminhando no andar decima, só podiamser relacionados

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com sua causa com grandeesforço de memória. Lembrar oque sentira, fizera ou pensara trêsdiasantes era algo muitoremoto.Por outro lado,cadaobjeto noquarto e a própriacama,e seu corpo com seus váriosmembros e diferentes sensações,eram cada dia mais importan-tes.Ela estava totalmenteisolada,incapaz de comunicar-secom o resto do mundo, isoladae só com seu corpo.

Assim passavam-se horas e

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horas, sem avançar nada durante amanhã, ou poucos minutoslevavam do dia claro àsprofundezas da noite. Certo diaquando anoitecia e o quartoparecia muito penumbroso,porque era crepúsculo ou porqueas cortinas estavamfechadas,Helen lhe disse:

– Há uma pessoa que vaipassar a noite sentada aqui comvocê. Você se importa? Abrindoos olhos, Rachel não viu Helen,mas uma enfermeira de óculos,

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cujo rosto lembrava vagamentealgo que vira uma vez. Vira-a nacapela.

– A enfermeira McInnis –disse Helen. A enfermeira tinhaum sorriso fixo como todo mundoe disse que não haviamuita gentecom medo dela. Depois deesperar um momento, as duassumiram e, virando-se notravesseiro, Rachel acordou nomeio de uma daquelasintermináveis noites quenãoterminam em 12 horas, mas

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avançam para outras cifras:13, 14e assim por diante até chegarem a20, a 30 e então 40.Percebeu quenão há nada para evitar que asnoites façamisso se quiserem. Auma grande distância, uma mulheridosasentava-se de cabeçainclinada; Rachel soergueu-se deleve eviu consternada que amulher jogava cartas à luz de umavelaescondida por uma folha dejornal. A visão tinha algodeinexplicavelmente sinistro; elaficou aterrorizada e gritou;

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amulher largou suas cartas e veioatravessando o quarto,protegendo a vela com as mãos.Chegando mais e maispertoatravés do grande espaço doquarto, ela finalmente parousobrea cabeça de Rachel e disse:

– Não está dormindo? Deixe-me ajeitá-la maisconfortavelmente.

Ela largou a vela e começou aarranjar as roupas de cama.Rachel espantou-se porque amulher que estivera sentada

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jogando cartas numa caverna anoite toda tinha mãos muito frias,e encolheu-se quando a tocaram.

Olha aí – disse a mulher –, temum dedão ali em embaixo! – econtinuou a ajeitar as roupas decama.Rachel não percebeu que odedo do pé era seu.

Você tem de ficar deitadaquietinha – continuou a mulherporque se ficar quieta sentirámenos calor e se remexer muitovai ficar com mais calor, e nãoqueremos que fique ainda mais

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quente do que já está. Parouolhando para Rachel um tempoenorme.

– E quanto mais quieta ficar,mais cedo estará boa – repetiuela.

Rachel ficou de olhos fixos nasombra pontiaguda no teto,e todaa sua energia concentrou-se emquerer que essa sombrasemovesse. Mas a sombra e amulher pareciam eternamentefixossobre ela. Rachel fechou osolhos. Quando os abriu de novo,

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tinham-se passado várias horas,mas a noitecontinuava,interminável.A mulherainda jogava cartas,apenas agoraestava sentada num túnel debaixode um rio, e a luz estava numapequena arcada na parede acimadela. Ela gritou “Terence!” e asombra pontuda mais uma vezmoveu-se através do teto,quandoa mulher se ergueu com umimenso movimento vagaroso, eambas se postaram quietas acimadela.

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– É tão difícil manter você nacama quanto foi difícil manter Mr.Forrest na cama – disse a mulher–, e ele era um cavalheiro tãoalto.

Para se livrar daquela terrívelvisão estacionária,Rachel fechouos olhos de novo, e estavacaminhando num túnel debaixo doTâmisa, onde haviamulherezinhas disformes sentadasem arcadas jogando cartas,enquanto os tijolos da paredeexsudavam umidade, que se

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cristalizava em gotas eescorregava pela parede. Mas asvelhas mulherezinhas tornaram-seHelen e a enfermeira McInnis,algum tempo depois, paradasjuntas na janela sussurrando,sussurrando incessantemente.

Enquanto isso, fora do quartodela, os sons, os movimentos e asvidas dos outros na casa seguiamna comum luz do sol, através dacomum seqüência de horas.Quando,no primeiro dia de suaenfermidade, uma terça-feira,

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ficou claro que ela não ficariatotalmente boa, pois suatemperatura era muito alta,Terence ficou ressentido atésexta-feira, não contra ela, mascontra a força exterior a eles queos estava separando. Contou umnúmero de dias que quasecertamente ficariam estragados.Percebeu com uma estranhamistura de prazer e aborrecimentoque, pela primeira vez na vida,dependia tanto de outra pessoa,que sua felicidade estava a cargo

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dela. Os dias eram totalmentedesperdiçados com coisas triviaise imateriais, pois depois de trêssemanas de tal intensidade eintimidade, todas as ocupaçõeshabituais ficavaminsuportavelmente sem graça esem sentido. A ocupação menosintolerável era falar com St. Johnsobre a enfermidade de Rachel,discutindo cada sintoma e seusignificado, e quando esse temaestava exaurido, discutindo todasorte de doenças, o que as

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causava ou curava.Duas vezes por dia ele ia

sentar-se com Rachel, e duasvezes por dia acontecia a mesmacoisa. Ao entrar no quarto, quenão era muito escuro, ondepartituras se espalhavam comosempre, assim como os seuslivros e as cartas,eleimediatamente se animava.Vendo-a, ficava totalmentereassegurado. Ela não pareciamuito doente. Sentado a seu ladocontava-lhe o que andara fazendo,

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usando sua voz natural para falar-lhe, apenas alguns tons maisbaixo do que de costume. Masdepois de sentar-se ali cincominutos, ficava mergulhado namais profunda tristeza. Ela nãoera mais a mesma, ele nãoconseguia restabelecer a antigarelação; embora soubesse que erauma bobagem,não podia impedir-se de desejar trazê-la de volta,fazê-la recordar, e quando issofalhava desesperava-se. Sempreconcluía, ao deixar o quarto dela,

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que era pior vê-la do que não aver, mas aos poucos, quando odia prosseguia, o desejo de vê-lavoltava e tornava-se quaseinsuportável.

Na manhã de quinta-feira,quando Terence entrou no quartodela, sentiu o usual aumento deconfiança. Ela virouse e fez umesforço para lembrar certos fatosdo mundo queestava a tantosmilhares de quilômetros dedistância.

– Você veio do hotel? –

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perguntou ela.– Não, agora estou hospedado

aqui – disse ele. – Acabamos dealmoçar e chegou acorrespondência. Há um maço decartas para você... cartas daInglaterra.

Em vez de dizer que queriavê-las, como ele esperava, elapor algum tempo não disse nada.

Está vendo, já vão elasrolando do alto do morro parabaixo – disse ela de repente.

Rolando, Rachel? O que você

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viu rolando? Não há nadarolando.

A velha com a faca – disseela, não falando com Terence emespecial e olhando algum pontoalém dele.

Como ela parecia fitar umvaso na prateleira do outro ladodo quarto, ele levantou-se epegou o vaso.

– Agora não podem mais rolar– disse alegremente.Mesmo assimela ficou deitada olhando fixopara o mesmo ponto, não

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prestando mais atenção nele,embora falasse com ela. Terenceficou tão profundamente infelizque não suportou ficar sentadojunto dela, e saiu caminhando atéencontrar St. John, que estavalendo o Times na varanda. St.John largou o jornalpacientemente e escutou tudo oque Terence tinha a dizer sobre odelírio. Era muito paciente comTerence. Tratava-o como a umacriança. Na sexta-feira não sepodia negar que a doença não era

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mais um acesso que passaria emum dia ou dois; era umaenfermidade real e exigia muitaorganização e atenção de pelomenos cinco pessoas, mas nãohavia por que ficarem ansiosos.Em vez de cinco dias, a doençaduraria dez. Diziam queRodriguez comentara havervariedades conhecidas dessaenfermidade. Rodriguez pareciapensar que estavam tratando adoença com ansiedadedesnecessária. Suas visitas eram

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sempre marcadas pela mesmademonstração de confiança; nassuas entrevistas com Terence elesempre rejeitava as perguntasansiosas e detalhadas com umaespécie de floreio que pareciadizer que estavam todos levandoaquilo a sério demais.Curiosamente ele não queriasentar-se.

– Febre alta – disse olhandofurtivamente peloquarto eparecendo mais interessado nosmóveis e nobordado de Helen do

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que em qualquer outra coisa.– Neste clima, espera-se febre

alta. Não precisam ficaralarmados com isso. Nós nosguiamos pelo pulso(deu umabatidinha no próprio pulso) e opulso continua excelente.

Depois disso fez mesura edesapareceu. A entrevista foraconduzida laboriosamente pelosdois lados em francês, e isso,aliado ao fato de que ele eraotimista e de que Terencerespeitava a profissão médica,

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tornava-o menos crítico do que seencontrasse o médico emqualquer outra situação.Inconscientemente tomava o ladode Rodriguez contra Helen, queparecia ter um preconceitoirracional em relação a ele.

Quando chegou sábado estavaevidente que as horas do diatinham de ser mais bemorganizadas. St. John ofereceuseus préstimos; disse que nãotinha nada para fazer e podia bempassar o dia na villa se pudesse

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ser útil. Como se estivesseminiciando uma expedição difíciljuntos, dividiram entre si astarefas, escrevendo um esquemaelaborado de horas numa grandefolha de papel, que foi afixada naporta da sala de estar. A distânciada cidade e a dificuldade deconseguir coisas raras, comnomes desconhecidos, doslugares mais inesperados, tornavanecessário pensar com muitocuidado, e acharaminesperadamente difícil fazer as

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coisas mais simples mas práticasque se exigiam deles, como se,sendo muito altos, tivessem deinclinar-se e arranjar diminutosgrãos de areia num desenho nochão.

A tarefa de St. John eraapanhar da cidade o que fossepreciso, de modo que Terenceficava sentado as longas horasdecalor sozinho na sala de estar,junto da porta aberta, à escuta dequalquer movimento lá emcima,ou de um chamado de Helen.

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Ele sempre se esquecia de baixaras persianas, demodo que ficavasentado à luz do sol, o que oincomodavasem ele saber direitopor quê.O aposento ficavaterrivelmente sufocante edesconfortável. Havia chapéusnas cadeiras efrascos deremédios entre livros. Ele tentavaler, mas os livros bons eram bonsdemais, e os ruins eram ruinsdemais, e a única coisa que podiasuportar era o jornal que, comsuaspolíticas de Londres e

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atividades das pessoas deverdade queestavam dandojantares festivos e fazendodiscursos, pareciaum pequenopano de fundo de realidade paraaquilo que deoutra forma seriapuro pesadelo. Então, bemquando suaatenção estava fixadana letra impressa, vinha umchamadobrando de Helen, ouMrs. Chailey trazia algo que erasolicitado lá em cima, e elecorria para lá sem ruído, demeias, epunha o jarro na mesinha

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abarrotada de jarros e xícarasqueficava do lado de fora daporta do quarto de dormir. Ou sepudesse pegar Helen ummomento, perguntava:

– Como é que ela está?– Bastante inquieta... De modo

geral, acho que mais calma.A resposta podia ser uma ou

outra.Como de costume ela parecia

esconder algo que nãodizia, eTerence estava consciente de queeles discordavamentre si, e, sem

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dizer isso em voz alta, discutiam.Mas Helen estava preocupada eapressada demais para conversar.

A tensão de escutar, o esforçode fazer arranjos práticose ver ascoisas funcionarem semproblemas, absorvia todaaenergia de Terence. Envolvidoem seu longo e terrível pesadelo,ele nem tentava pensar em comoaquilo acabaria.

Rachel estava doente; era isso;ele precisava cuidar paraquehouvesse remédios e leite, e

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que as coisas estivessem a postosquando necessárias. Opensamento cessara; aprópriavida estava parada.Domingo foi bem pior do que foraosábado, simplesmente porque atensão era cada dia umpoucomaior, embora nada mais tivessemudado. Os sentimentosseparados de prazer, interesse edor, que se combinam para formaro dia comum,estavammergulhados numasensaçãoarrastada de sórdida infelicidade

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e profundo tédio. Ele nuncaestivera tão entediado desde queo deixaramfechado sozinho noquarto de criança quandopequeno. Avisão de Rachel comoestava agora, confusa eindiferente,quase apagara a visãodela como fora um dia, há muitotempo; ele quase nem conseguiaacreditar que tinham sidofelizes,ou noivos, pois que emoçõeshavia, o que existiapara sersentido? A confusão cobria cadavisão e cada pessoa, e ele parecia

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ver St. John, Ridley e as pessoasque vinham vez por outra do hotelpara saber notícias, atravésdeuma névoa; as únicas pessoasnão escondidas nessa névoaeramHelen e Rodriguez, porquepodiam dizer-lhe algodefinidosobre Rachel.

Mesmo assim, o dia seguiu daforma habitual. A certas horasentravam na sala de jantar, equando se sentavam ao redor damesa, falavam sobre coisas semimportância. St.John geralmente

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tratava de começar a conversa eevitar que se esvaísse.

– Descobri um jeito para fazerSancho passar pela casa branca –disse St. John no almoço dedomingo. – É só enfiar um pedaçode papel no seu ouvido, aí elesalta por uns 100 metros, masdepois disso anda bastante bem.

Sim, mas ele quer milho. Vocêdevia cuidar para que tenha seumilho.

Não confio muito nesse troçoque lhe dão. E Angelo parece um

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moleque sujo.Depois houve um longo

silêncio. Ridley soprou algunsversos de poesia e comentou,como para esconder que o tinhafeito:

– Muito quente, hoje.Dois graus mais que ontem –

disse St. John. – Fico imaginandode onde vêm essas nozes – disse,tomando uma noz do prato egirando-a nos dedos,contemplando-a com curiosidade.

Acho que de Londres – disse

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Terence, também olhando a noz.Um homem de negócios

competente faria fortuna aqui empouco tempo – continuou St. John.– Acho que o calor faz algumacoisa esquisita com o cérebro daspessoas. Até os ingleses ficam umpouco esquisitos. Seja como for,são pessoas com quem não dápara lidar. Fizeram-me esperartrês quartos de hora na farmáciaesta manhã, sem nenhum motivo.

Houve outra pausa longa,depois Ridley perguntou:

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– Rodriguez parece satisfeito?– Bastante – disse Terence

com determinação. A coisa só temde seguir seu curso.

Ridley deu um suspiroprofundo. Tinha realmente penade todo mundo, mas ao mesmotempo sentia uma falta enorme deHelen, e estava um pouco irritadocom a presença constantedaqueles dois rapazes.

Voltaram todos para a sala deestar.

– Olhe aqui, Hirst – disse

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Terence – não há nada parafazerdurante duas horas. – Eleconsultou a folha de papelafixadana porta. – Vá deitar-se. Euespero aqui. Chaileyestá sentadacom Rachel enquanto Helenalmoça.

Era pedir muito a Hirst dizerque saísse sem ter visto Helen.Aqueles rápidos vislumbres deHelen eram as únicas tréguas natensão e tédio, e muitas vezespareciam compensar osdesconfortos do dia, embora ela

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não tivesse muito a lhes dizer.Porém, como estavam juntosnuma campanha, decidiraobedecer.

Helen desceu muito tarde.Parecia alguém que ficara sentadalongo tempo no escuro. Estavapálida, mais magra e a expressãode seus olhos era atormentadaembora decidida. Almoçoudepressa, indiferente ao queestava fazendo. Esquivou-se dasperguntas de Terence efinalmente, como se ele nem

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tivesse falado, encarou-o com atesta um pouco franzida e disse:

– Terence, não podemoscontinuar assim. Ou vocêencontra outro médico, ou terá dedizer a Rodriguez que não venhamais e eu mesma dou um jeito.Não adianta ele dizer que Rachelestá melhor; ela não está melhor:está pior.

Terence sofreu um choqueterrível, como aquele quesentiraquando Rachel dissera “Estoucom dor de cabeça”.Acalmou-

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se,refletindo que Helen estavaesgotada,e ficoufirme nessaopinião pelo seu obstinadoentendimento deque nessadiscussão ela estava do ladooposto ao seu.

Você acha que ela correperigo?- indagou.

Ninguém pode continuar tãodoente dia após dia – respondeu.

Helen olhava para ele e falavacomo se estivesse indignada comalguém.

– Muito bem. Vou falar com

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Rodriguez esta tarde– disse ele. Helen subiu as

escadas imediatamente.Nada podia abrandar a

ansiedade de Terence.Nãoconseguia ler, nem sentar-sequieto, e sua sensação desegurança estava abalada, apesarde ter decidido queHelenexagerara e que Rachel nãoestava muito doente. Masqueriaque uma terceira pessoacontinuasse sua crença.

Assim que Rodriguez desceu

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ele indagou:– Bem, como está ela? Acha

que está pior?– Não há nenhum motivo para

ansiedade, acredite...nenhum –respondeu Rodriguez no seufrancês execrável, sorrindoinseguro, e fazendo o tempo todopequenos movimentos como sequisesse afastar-se.

Hewet postou-se firmementeentre ele e a porta.Estavadecidido a verificar que tipo dehomem era aquele. Sua confiança

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nele sumiu quando o contemploue viu sua insignificância, suaaparência suja, seu jeito evasivo,seu rosto peludo e poucointeligente. Era estranho quenunca tivesse notado isso antes.

– Naturalmente não vai fazerobjeção se pedirmos

que consulte outro médico? –perguntou.O homenzinho ficouabertamente ofendido.

Ah! – gritou. – Não temconfiança em mim? Temobjeçãoao meu tratamento? Quer que eu

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desista do caso?De jeito nenhum – respondeu

Terence.– Mas numa doençagrave como essa... Rodriguez deude ombros.

Eu lhe asseguro que não égrave. O senhor está ansiosodemais. A jovem não estágravemente doente, e eu soumédico. Naturalmente a senhoraestá apavorada... –disse em tomdesdenhoso. – Entendo issoperfeitamente.

– O nome e endereço do outro

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médico é... ? – continuou Terence.– Não há outro médico –

respondeu Rodriguez carrancudo.– Todo mundo tem confiança emmim. Olhe! Vou lhe mostrar. Elepegou do bolso um maço develhas cartas e começou a revirá-las como se procurasse uma quecontestasse as suspeitas deTerence. Enquanto procuravacomeçou a contar uma históriasobre um lorde inglês que tinhaconfiado nele... um grande lordeinglês, cujo nome infelizmente

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esquecera.– Não há outro médico no

lugar – concluiu ele, aindarevirando as cartas.

– Esqueça – disse Terencelacônico. – Eu mesmo vouinvestigar. Rodriguez colocou ascartas de volta no bolso ecomentou:

– Muito bem. Não façoobjeções.

Ele arqueou as sobrancelhas,deu de ombros como se repetisseque estavam levando aquela

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doença demasiado a sério, quenão havia outro médico, edeslizou para fora da saladeixando a impressão de quesabia que não confiavam nele ede estar cheio de rancor.

Depois disso Terence nãopôde mais ficar no andartérreo.Subiu, bateu na porta de Rachel eperguntou aHelen se podia vê-laalguns minutos. Não a viraontem.Ela não objetou e foisentar-se na mesa junto da janela.

Terence sentou-se ao lado da

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cama. O rosto de Rachel estavamudado. Parecia inteiramenteconcentrada no esforço decontinuar viva. Seus lábiosestavam repuxados, as facesencovadas e vermelhas, mas nãouma cor de saúde. Seus olhos nãoestavam inteiramente cerrados, aparte inferior do brancoaparecendo, não como seestivesse enxergando, mas comose apenas estivessem abertos porela estar cansada demais parafechá-los. Quando ele a beijou,os

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olhos abriram-se totalmente. Masela apenas viu uma velhacortando com uma faca a cabeçade um homem.

– Está caindo! – murmurouela. Depois virou-se para Terencee perguntou, ansiosa, algumacoisa sobre um homem commulas, que ele não conseguiuentender. – Por que é que ele nãovem? Por que ele não vem? –repetiu.Terence ficouconsternado, pensando nohomenzinho sujo lá embaixo

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cuidando de uma enfermidadedaquelas,e instintivamente virou-se para Helen, que estava lidandocom uma mesa junto da janela eparecia não entender como eleestava chocado. Ele levantou-separa sair, pois não agüentavamais escutar; seu coração batiarápida e dolorosamente com ira einfelicidade. Quando passou porHelen, ela lhe pediu na mesmavoz triste, pouco natural edeterminada, que apanhasse maisgelo e mandasse encher de leite

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fresco o jarro diante daporta.Depois de atender a essespedidos ele foi procurar Hirst.Exausto e com muito calor, St.John adormecera numa cama, masTerence o acordou sem escrúpulo.

– Helen acha que ela está pior– disse. – Não há dúvida de queestá terrivelmente doente.Rodriguez não adianta nada.Temos de conseguir outro médico.

– Mas não há outro médico –disse Hirst sonolento, sentando-see esfregando os olhos.

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– Não seja idiota! – exclamouTerence. – Claro que háoutromédico, e se não houver você temde achar um. Devia ter sido feitodias atrás. Vou descer para selarum cavalo. –Ele não conseguiaparar quieto em nenhum lugar.Emmenos de dez minutos St.Johnestava indo a cava-lo para acidade, no calor escaldante, paraprocurar um médico, com ordensde encontrá-lo e trazê-lo para acasa,ainda que tivesse de ser numtrem especial.

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– Devíamos ter feito isso diasatrás – repetiaHewet,indignado.Quando voltoupara a sala de estar, encontrouMrs.Flushing parada muito eretano meio da sala, vinda da cozinhaou do jardim sem se anunciar,como as pessoas andavamfazendo naqueles dias.

– Ela está melhor? – perguntouMrs. Flushing bruscamente. Nemtentaram dar-se as mãos.

– Não – disse Terence. – Semudou, acham que foi para

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pior.Mrs. Flushing pareceu pensarpor um momento ou dois, olhandodireto para Terence o tempo todo.

– Escute – disse, falando emmovimentos nervosos –, é semprepor volta do sétimo dia que secomeça a ficar ansioso. Acho queo senhor andou aqui sentadosozinho preocupando-se. Achaque ela está mal, mas qualquerpessoa entrando com olhar lúcidoveria que está melhor.Mr. Elliotteve febre e está bem agora –disse ela num ímpeto. – Não foi

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nada que ela apanhou naexcursão. O que é isso, unspoucos dias de febre? Certa vezmeu irmão teve 26 dias de febre.E numa semana estava de novocaminhando. Só lhe dávamos leitee araruta...

Nisso Mrs. Chailey entroucom um recado.

– Está vendo... ela vaimelhorar – disse Mrs.Flushingnum arranco quando elesaiu da sala. Sua ansiedade empersuadir Terence era enorme, e

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quando ele a deixou semdizernada, ficou aborrecida einquieta; não gostava de ficar,masnão podia ir. Andava de salaem sala procurando alguémcomquem conversar, mas todos osaposentos estavam vazios.

Terence subiu as escadas,entrou no quarto para receber asordens de Helen e olhou paraRachel, mas não tentou falar comela. Parecia vagamente conscienteda presença dele, mas issoparecia perturbá-la, e ela virou-

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se de costas para ele.Por seis dias estivera

esquecida do mundo lá fora,porque era preciso toda a atençãopara seguir as visões quentes,vermelhas e rápidas quepassavam incessantementediantede seus olhos. Sabia que era deenorme importânciaprestaratenção a essas visões e entenderseu sentido, masestava sempreatrasada para ouvir ou ver algoque explicasse aquilo tudo. Porisso, os rostos – o rosto de Helen,

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o daenfermeira, o de Terence e odo médico – que eventualmente seimpunham muito próximos delaeram preocupantes, porquedistraíam sua atenção, e ela podiaperder aresposta para tudoaquilo. Mas na quarta tarde derepente ela foi incapaz dedistinguir o rosto de Helen dasprópriasvisões; seus lábiosabriram-se quando ela se inclinousobrea cama e começou abalbuciar coisas ininteligíveiscomo oresto. Todas as visões

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ligavam-se a uma trama, umaaventura qualquer, algumaescapada. A natureza do queestavam fazendo mudavaincessantemente, emborahouvesse sempre um motivo portrás, que ela desejaria muitoentender. Ora estavam entreárvores e selvagens, ora no mar;oraestavam no topo de altastorres; ora saltavam de lá;oravoavam. Mas assim que acrise estava por acontecer,alguma coisa invariavelmente

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escapava no cérebro dela,demodo que todo o esforço tinhade recomeçar. O calorerasufocante. Por fim os rostosafastaram-se; ela caiu numprofundo poço de água viscosa,que depois fechou-se sobre suacabeça. Nada via ou ouvia senãoum tênue som pulsante, que era osom do mar rolando sobre suacabeça.Seus atormentadores ajulgavam morta, mas nãoestavamorta, e sim enroscada nofundo do mar. Lá jazia, às

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vezesvendo a escuridão, às vezesluz, e de vez em quando alguém avirava para o outro lado no fundodo mar.

Depois que St. John passaraalgumas horas sob o calor do sollutando com nativos evasivos emuito falastrões, extraiu ainformação de que havia ummédico francês que no momentoestava em férias nas montanhas.Diziam que era praticamenteimpossível encontrá-lo. Com suaexperiência do país St.John achou

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improvável que um telegramafosse mandado ou recebido; mastendo reduzido a distância dacidadezinha da montanha, onde ooutro estava hospedado, de 160para 50 quilômetros, e tendocarrugem e cavalos, partiuimediatamente para apanhar omédico. Conseguiu encontrá-lo eforçou o homem contrariado adeixar sua jovem esposa e voltarimediatamente. Chegaram à villana terça ao meio-dia.

Terence saiu para recebê-los,

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e St. John ficou chocado vendoque no intervalo o outroemagrecera visivelmente;estavapálido também; seus olhospareciam estranhos.

Mas a fala lacônica e asmaneiras dominadoras e fechadasdo Dr. Lesage os impressionaramfavoravelmente, embora fosseóbvio ao mesmo tempo queestava aborrecidíssimo com tudoaquilo. Descendo as escadas eledeu suas instruções enfaticamente,mas não lhe ocorreu dar-lhes uma

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opinião, ou pela presença deRodriguez, que era a um tempoobsequioso e malicioso, ouporque estava certo de que jásabiam o que havia para saber.

– Claro – disse, dando deombros quando Terence lheperguntou se ela estava muitodoente. Ambos experimentaramcerta sensação de alívio quando oDr. Lesage se foi, deixandoorientações explícitas eprometendo voltar em poucashoras; mas infelizmente a

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animaçãodeles os levou a falarmais do que de costume, efalando brigaram. Brigaram porcausa da estrada, a PortsmouthRoad.St. John disse que eraasfaltada onde passa porHindhead, eTerence sabia tãobem quanto sabia seu próprionome que não era asfaltadanaquele trecho. Durante a brigadisseram um ao outro algumascoisas muito ásperas,e o resto dojantarocorreu em silêncio,rompido apenas por um

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comentárioocasional meioabafado de Ridley.

Quando escureceu e oslampiões foram trazidos,Terencesentia-se incapaz decontrolar mais tempo suairritação. St.John foi para a camanuma exaustão completa,dandoboa-noite a Terence de ummodo mais afetuoso do que ocostumeiro por causa da briga, eRidley retirou-se comseus livros.Sozinho, Terence ficoucaminhando peloquarto e parou

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diante da janela aberta.As luzes acendiam-se uma

depois da outra na cidade láembaixo; estava muito pacífico efresco no jardim, de modo que eledesceu para o terraço. Parado alina escuridão, podendo ver apenasas formas das árvores na fina luzcinzenta, ele foi dominado por umdesejo de escapar dali, de acabarcom aquele sofrimento, deesquecer que Rachel estavadoente. Permitiu-se esquecer tudoaquilo. Como se um vento que

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tivesse soprado forte o tempotodo cessasse de repente, aansiedade, a tensão e a afliçãoque o tinham pressionadopassaram.Parecia plantado numespaço de ar puro,numa ilhazinha,sozinho; estava livre e imune àdor. Não importava se Rachelestava bem ou doente; nãoimportava se estavam separadosou juntos; nada importava... nadaimportava. As ondas batiam napraia longe dali, e o vento levepassava pelo ramos das árvores,

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parecendo rodeálo de paz esegurança, com trevas e nada.Certamente o mundo de discórdia,aflição e ansiedade não era omundo real, mas aquele sim, omundo abaixo do mundosuperficial, de forma que,acontecesse o que acontecesse,estava-se seguro. A quietude e apaz pareciam enrolar seu corponum lençol fino e frio, acalmandotodos os nervos; sua mentepareceu mais uma vez expandirsee voltar ao natural.

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Mas depois de ficar assimalgum tempo, um ruído dentro dacasa o despertou; virou-seinstintivamente e entrou na sala. Avisão do aposento iluminado porlampiões trouxe de voltaabruptamente tudo o que eleesquecera, e ficou parado por uminstante, incapaz de se mexer.Lembrou tudo, a hora, até ominuto, o ponto a que tinhamchegado, e o que estava por vir.Amaldiçoou-se por fazer de contapor um minuto que as coisas eram

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diferentes do que eram. Agora eramais difícil do que nuncaenfrentar a noite.

Incapaz de ficar na sala vazia,saiu e sentou-se nasescadas ameio caminho do quarto deRachel. Ansiavapor alguém comquem falar, mas Hirst estavadormindoe Ridley também; nãohavia ruído no quarto deRachel.O único rumor na casa eraChailey mexendo-se na cozinha.Por fim houve um farfalhar nasescadas mais acima, e a

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enfermeira McInnis desceusoltando as abotoaduras de seuspunhos, preparando-se para avigília danoite. Terence ergueu-see a fez parar. Quase nãofalaracom ela, mas era possívelque lhe confirmasse a crença,queainda persistia na mente dele, deque Rachel nãoestivessegravemente enferma. Ele lhe dissenum sussurro que o Dr. Lesageestivera ali e o que dissera.

– Então, enfermeira –sussurrou –, por favor diga-me

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sua opinião. Acha que ela estámuito doente? E corre al-gumperigo?

– O doutor disse... – começouela.

– Sim, mas eu quero suaopinião. A senhora temexperiência em muitos casoscomo esse?

– Mr. Hewet, eu não poderialhe dizer mais do que o Dr.Lesage – respondeu elacautelosamente, como sesuaspalavras pudessem ser

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usadas contra ela. – O caso ésério,mas pode ter certeza de queestamos fazendo tudo oquepodemos por Miss Vinrace. –Ela falava com uma certa auto-aprovação profissional. Mastalvez percebesse que nãoestavasatisfazendo o rapaz, que aindabloqueava seu caminho, poismoveu-se um pouco mais paracima na escada eolhou pelajanela, de onde podiam ver a luasobre o mar.

– Se o senhor me perguntar –

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começou ela num estranho tomfurtivo –, eu nunca gosto do mêsde maio para os meus pacientes.

– Maio? – repetiu Terence.– Pode ser fantasia minha, mas

não gosto de ver ninguém adoecerem maio – continuou ela. – Ascoisas parecem dar errado emmaio. Talvez seja a lua. Dizemque a lua afeta o cérebro, nãodizem, senhor?

Ele fitava-a mas não podiaresponder. Como todos os outros,quando se olhava para ela, ela

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parecia encolher-se e tornar-seinsignificante, maliciosa e nãoconfiável.

Ela esgueirou-se do lado delee desapareceu.

Embora tivesse ido para seuquarto, ele não conseguiu nemtirar as roupas. Por longo tempocaminhou de um lado a outro, edepois, inclinando-se para forada janela,fitou a terra que jaziatão escura diante do azul maispálido do céu. Com um misto demedo e ódio, olhou os esguios

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ciprestes negros ainda visíveis nojardim e escutou os estalidos echiados conhecidos que mostramque a terra estava quente. Todasessas visões e ruídos pareciamsinistros, hostis e agourentos; osnativos, a enfermeira, o médico ea terrível força da própria doençapareciam estar conspirandocontra ele. Pareciam unir-se noesforço de extrair a maiorquantidade de sofrimentopossível dele.Terence nãoconseguia acostumar-se com a

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dor, era uma revelação para ele.Nunca entendera antes que portrás de toda ação, por trás da vidade todo dia, existe a dor, quietamas disposta a devorar; eleparecia capaz de ver o sofrimentocomo uma fogueira subindo emespirais sobre a borda de todaação, devorando as vidas dehomens e mulheres. Pela primeiravez pensou com compreensão empalavras que antes tinham lheparecido vazias; a luta pela vida;a dureza da vida. Agora sabia

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pessoalmente que a vida é dura echeia de sofrimento. Olhou asluzes espalhadas da cidade láembaixo e pensou em Arthur eSusan,ou em Evelyn e Perrottaventurando-seinadvertidamente,expondo-se,pela sua felicidade,a umsofrimento como aquele. Como seatreviam a amar-se, ficouimaginando.Como se atrevera elepróprio a viver como tinhavivido,rapidamente e sempreocupação, passando de uma

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coisa a outra, amando Rachelcomo amara? Nunca mais sesenti-ria seguro; nunca maisacreditaria na estabilidade davida,nem esqueceria queprofundezas de dor jaziamdebaixo da pequena felicidade edas sensações de contentamento esegurança. Parecia-lhe, quandorecordava, que sua felicidadenunca fora tão grande quanto eraagora sua dor.Sempre houveraalgo imperfeito na felicidadedeles, algo que desejavam sem

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conseguir. Fora fragmentária eincompleta porque eram tãojovens e não sabiam o queestavam fazendo.

A luz da sua vela bruxuleousobre os ramos de uma árvorediante da janela e, quando o ramobalançou na escuridão, apareceuna mente dele a imagem de todo omundoque jazia fora da janela;pensou no imenso rio e naimensafloresta, nas vastasporções de terra seca e planurasde marque circundavam a terra;

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do mar o céu erguia-se íngremeeenorme, e o ar inundava oespaço entre céu e mar. Comodevia ser vasta e escura essanoite exposta ao vento; e em todoesse imenso espaço era estranhopensar como erampoucas ascidades, e como eram pequenosos anéis de luz, ou vaga-lumesque imaginava espalhados aqui eali, entreas pregas ondulantes eincultas da terra. E nessascidadeshavia homenzinhos emulherezinhas, minúsculos. Ah,

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era absurdo, pensando nisso,sentar-se ali num quartinho,sofrendo e preocupando-se.O queimportava qualquer coisa?Rachel, uma criatura minúscula,deitada doente ali, abaixo dele, eali no seu quartinho ele sofrendopor conta dela. Aproximidade e apequenez de seus corpos nessevasto universo pareciam-lheabsurdas e ridículas. Nadaimporta, repetiu ele; não tinhampoder nem esperança. Eledebruçouse no peitoril da janela

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pensando, até quase esquecer otempo e o lugar. Mesmo assim,embora estivesse convencido deque era absurdo e ridículo, de queeram pequenos e sem esperança,nunca perdeu a sensação de quede alguma forma essespensamentos eram parte de umavida que ele e Rachel viveramjuntos.

Talvez devido à mudança demédico, Rachel pareceu estarbastante melhor no dia seguinte.Embora Helen parecesse

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terrivelmente pálida e consumida,a nuvem que estivera pairandotodos aqueles dias sobre os olhosdela parecia erguer-se um pouco.

– Ela falou comigo – dissevoluntariamente. – Perguntou quedia da semana era, e estavanatural.

Depois, de repente, semnenhum aviso ou razão aparente,as lágrimas vieram aos seus olhose rolaram pelas suas faces. Elachorava quase sem alteração nasfeições,sem tentar interromper-se,

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como se não soubesse quechorava. Apesar do alívio que aspalavras dela lhe davam, Terenceficou consternado com a visão;então tudo cedera? Não havialimites para o poder dessaenfermidade? Tudo iria ruirdiante dela? Helen sempre lheparecera forte e decidida, e agoraparecia uma criança. Ele a pegounos braços e ela se agarrou a elecomo uma criança, chorandoquieta e mansamente sobre seuombro. Depois controlou-se e

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enxugou as lágrimas;era umabobagem portar-se daquelejeito,disse.Muita bobagem,repetiu, quando não podia haverdúvidas de que Rachel estavamelhor. Pediu a Terence queperdoasse sua tolice. Parou naporta, voltou e beijou-o sem dizernada.

Nesse dia realmente Rachelestava consciente do quesepassava ao seu redor. Chegara àsuperfície daquelepoço escuro evisguento, e uma onda parecia

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balançá-lapara cima e para baixo;ela cessara de ter qualquervontade própria; deitava-se nacrista da onda conscientedealguma dor, mas principalmentede fraqueza. A ondaerasubstituída por uma encosta demontanha. Seu corpotornou-se umfloco de neve derretendo, sobre oqual seusjoelhos se erguiam emimensas montanhas nuas deossosexpostos.Era verdade quevia Helen e via seuquarto,mastudo estava muito

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pálido e semitransparente. Àsvezespodia ver através da paredea sua frente.Àsvezes,quandoHelen saía, pareciair tão longe que os olhos deRachelquase não a podiam seguir.O quarto também tinhaumesquisito dom de expandir-see, embora empurrasse suavoz omais longe possível, às vezes elase tornava um pássaro e fugia,não sabia se jamais atingiria apessoa comquem estava falando.Havia imensos intervalos ou

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lacunas,pois as coisas aindatinham poder de aparecervisíveisna sua frente, entre ummomento e outro; às vezes levavauma hora para Helen erguer obraço, parando demoradamenteentre cada movimento brusco, edespejar remédio. O vulto deHelen inclinando-se parasoerguê-la nacama pareciagigantesco, e baixava sobre elacomo umteto que caía. Mas porum longo espaço de tempoelaapenas ficava deitada

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consciente de seu corpoflutuandopor cima da cama, e suamente recolhida num canto remotodo corpo, ou escapando eesvoaçando pelo quarto.Todas asvisões eram um esforço, mas a deTerence era o maior de todos,porque forçava Rachel a reunirmente ecorpo no desejo derecordar alguma coisa. Nãoquerialembrar; ficava perturbadaquando as pessoastentavaminterferir na sua solidãoque ria estar sozinha. Não

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querianada mais no mundo.Embora ela tivesse chorado,

Terence observou queHelen tinhamais esperança, e sentiu algoparecido comtriunfo; nadiscordância entre eles, Helendera o primeiro sinal de queadmitia estar errada. Ele esperouque oDr. Lesage descesse naquelatarde com considerávelansiedade, mas com a mesmacerteza no fundo da mente de quelogo os forçaria todos a ver queestavam errados.

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Como sempre, o Dr. Lesageera severo e muito lacônico emsuas respostas. Diante dapergunta de Terence, “Ela parecemelhor?” ele respondeu, olhando-o de um jeito peculiar:

– Ela tem uma chance deviver.

A porta fechou-se e Terencecaminhou até a janela.Encostou atesta na vidraça.

– Rachel – repetia para simesmo. – Ela tem uma chance deviver. Rachel.

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Como podiam ser ditas essascoisas de Rachel? Alguém ontemseriamente acreditara que Rachelestivesse morrendo? Estavamnoivos há quatro semanas.Há 15dias ela estava perfeitamentebem. O que poderiam ter feito 15dias para a levarem daqueleestado aeste? Estava acima dacapacidade dele entender oquequeriam dizer comentando queela tinha uma chance deviver,sabendo, como ele sabia, queestavam noivos.Virou-se, ainda

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envolvido na mesma névoa triste,e caminhou para a porta. Derepente, ele viu tudo. Viu oquarto,o jardim e as árvores movendo-seno ar, que podiam continuar semela; ela podia morrer. Pelaprimeiravez desde que elaadoecera, recordou exatamentecomoela se parecia e comogostavam um do outro. Aintensafelicidade de senti-la pertomisturava-se com uma ansiedademais intensa do que a que jásentira. Não podiadeixá-la

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morrer; não podia viver sem ela.Mas depois deuma lutamomentânea, a cortina caiu denovo, e ele não via nem sentianada claramente. Tudocontinuava, continuava ainda, domesmo modo que antes. Excetoporuma dor física quando seucoração pulsava e pelo fato dequeseus dedos estavam gelados, elenão percebia queestava ansioso.Dentro de sua mente, parecia nãosentirnada por Rachel ouqualquer outra pessoa ou coisa

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nomundo. Prosseguia dandoordens, combinando coisascomMrs. Chailey, escrevendo listas;de vez em quandosubia asescadas e sem ruído botava algona mesa dianteda porta de Rachel.Naquela noite o Dr. Lesagepareciamenos severo do quehabitualmente.Voluntariamenteficou algunsminutos e, dirigindo-se a St. Johne Terence igualmente, como senão recordasse qual dos doiseranoivo da moça, disse:

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– Acho que esta noite o estadodela é muito grave.

Nenhum deles foi para a camaou sugeriu que o outro fosse.Sentaram-se na sala montandoguarda com a porta aberta. St.John arrumou uma cama no sofá, equando estava pronta insistiu comTerence para que se deitasse ali.Começaram a discutir a respeitode quem devia deitar-se no sofáou sobre algumas cadeirascobertas com mantas. St. Johnfinalmente persuadiu Terence a

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deitar-se no sofá.– Não seja idiota, Terence. Se

não dormir, você apenas vai ficardoente. Meu velho... – St. Johncomeçou e parou abruptamente,receando ser sentimental. Sentiaque estava à beira das lágrimas.

Começou a dizer o que estavaquerendo dizer hámuitotempo,que tinha pena deTerence,que gostava dele,quegostava de Rachel. Ela saberia oquanto gostava dela?Disseraalguma coisa, quem sabe

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perguntara? Ele estava muitoansioso por dizer isso, masconteve-se pensando que afinaleraegoísmo; de que adiantavaaborrecer Terence fazendo-ofalarnessas coisas? Ele já estavameio adormecido, mas St.Johnnão conseguiu dormir.Pensou, deitado no escuro, se aome-nos alguma coisa acontecesse,se ao menos essa tensãoacabasse.Não se importava com oque acontecesse,desde quesedesfizesse a sucessão daqueles

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dias difíceis e tristes; não seimportaria se ela morresse.Sentia-se desleal por não seimportar, mas parecia não termais sentimentos.

Toda a noite não houvechamado ou movimento, exceto oabrir e fechar da porta do quartode dormir lá em cima uma vez.Aos poucos a luz voltou aoaposento desarrumado. Às seis oscriados começaram a mexer-se;às sete todos arrastaram-se para acozinha lá embaixo; e meia hora

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depois, o dia recomeçou maisuma vez.

Mesmo assim não era igualaos dias que tinham passadoantes, embora fosse difícil dizerem que consistia a diferença.Talvez parecessem estar todosesperando alguma coisa. Haviacertamente menos coisas a fazerdo que de costume. Pessoaspassavam pela sala – Mr.Flushing,Mr.eMrs.Thornbury.Falavam em tombaixo como quem se desculpa,

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recusavam sentar-se e ficavam depé um tempo considerável,embora só pudessem dizer, “Háalguma coisa que se possafazer?”, e não havia nada.

Sentindo-se estranham entedesligado de tudo aquilo,Terencerecordou que Helen lhe disseraque, não importa

o que aconteça com a gente, éassim que as pessoas se portam.Estaria certa ou errada? Eleestava pouco interessado emsaber. Punha as coisas de lado em

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sua mente, como se outro diafosse pensar nelas, não agora. Anévoa da irrealidade ficava maise mais densa, e por fim produziuuma sensação de embotamento emtodo o seu corpo.Era o seucorpo? E aquelas eram realmentesuas mãos?

Naquela manhã também pelaprimeira vez Ridleyachouimpossível sentar-se sozinho emseu quarto. Estavamuitodesconfortável no térreo, e comonão soubesse o queestava

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acontecendo, estava o tempo todoestorvando. Masnão queria sairda sala. Inquieto demais para lere semnada a fazer, começou acaminhar pela sala recitandopoesia num tom baixo. Ocupando-se de vários modos,oradesfazendo embrulhos, oradesarrolhando garrafas, oraescrevendo ordens, o som dacanção de Ridley e a batida doseupasso entravam na mente deTerence e de St. John na manhãtoda como um estribilho mal

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compreendido.

Lutaram erguendo-se elutaram abaixando-se,Lutaram enfurecidos equietos:O demônio que cega osolhos dos homens,Nessa noite fez suavontade.

Como cervos exauridos,entre as ervas,Tombaram algum tempo

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para repousar...

Ah, é insuportável! –exclamou Hirst, e depoiscontrolou-se como se tivesserompido um acordo. Terencearrastava-se escada acimarepetidamente para ver seconseguia notícias de Rachel, masas únicas notícias eram muitofragmentárias; ela bebera algumacoisa; ela dormira um pouco;pareciamais calma. Da mesmamaneira o Dr. Lesage apegava-se

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apormenores,exceto umavez,quando deu espontaneamenteainformação de que acabara deser chamado paracertificar,cortando uma veia nopulso, que uma velha senhora de85 anos estava morta.Tinha pavorde ser enterrada viva.

É um pavor – comentou ele –que geralmente vemos nos muitovelhos e raramente nos jovens. –Ambos expressaram interessepelo que estava contando;parecia-lhes muito estranho.

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Outra coisa estranha naquele diafoi que todosesqueceram oalmoço até bem tarde; então Mrs.Chailey osserviu, e tambémparecia estranha porque usava umvestido estampado engomado, esuas mangas estavam enroladasatéacima dos cotovelos. Pareciaporém tão esquecida de suaaparência como se tivesse sidoacordada por um alarmedeincêndio à meia-noite,esquecendo sua reserva ecompostura; falava com eles em

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tom bastante familiar, como setivesse sido sua babá e os tivessesegurado nus no colo. Elalhesassegurou várias vezes queprecisavam comer.

A tarde assim encurtadapassou mais depressa do queesperavam. Uma vez Mrs.Flushing abriu a porta, masvendo-os fechou-a depressa; outra vezHelen desceupara apanhar algumacoisa, mas parou quando deixou oquarto para ver uma carta que lhefora endereçada. Paroupor um

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momento revirando-a, e aextraordinária e tristebeleza desua postura chocou Terence domodo como ascoisas o chocavamagora: como se algo tivesse deserposto de lado em sua mente,para ser pensado depois.Quasenão falavam, a discordância entreeles pareciasuspensa ouesquecida.

Agora que o sol da tardedeixara a fachada da casa,Ridleycaminhava pelo terraço repetindoestrofes de um longo poema,

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numa voz contida massubitamente sonora. Fragmentosdo poema entravam pela janelaaberta sempre que ele passava.

Peor and BaalimForsake their Temples dim,With that twice batter’dGod of PalestineAnd mooned Astaroth...

O som dessas palavras eraestranhamente incômodo para osdois rapazes, mas tinham de

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suportá-la. Quando o anoitecercomeçou e a luz vermelha docrepúsculo rebrilhava longe nomar, a mesma sensação dedesesperoatacou Terence e St.John quando pensaram que odiaquase acabara e estava por viroutra noite. Uma luzacendendo-sedepois da outra na cidade láembaixo produziu em Hirst umarepetição do seu terrível erepulsivodesejo de ter umcolapso e soluçar. Então Chaileytrouxelampiões. Explicou que

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Maria, abrindo uma garrafa,foratão tola que cortara seu braçoseriamente, mas que elapuserauma atadura; era ruim quandohavia tanto trabalho a fazer. Aprópria Chailey estava mancandopor causa do reumatismo nos pés,mas parecia-lhe perda detempodar atenção à carneindisciplinada de criados. Anoiteavançava. O Dr. Lesage chegouinesperadamente eficou lá emcima muito tempo. Desceu umavez e bebeuuma xícara de café.

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– Ela está muito doente –respondeu à pergunta de Ridley.A essa altura não parecia maisaborrecido, estava grave eformal, mas ao mesmo tempocheio de consideração, o que nãotinha antes. Subiu outra vez. Ostrês homens sentaram-se juntos nasala de estar. Ridley agora estavabem quieto, e sua atenção pareciadespertada.Exceto por pequenosmovimentos meio involuntários eexclamações logo controladas,estavam à espera, em silêncio

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absoluto. Era como se finalmenteestivessem reunidos face a facecom algo definitivo.

Eram quase onze horas quandoo Dr. Lesage apareceu na sala.Aproximou-se deles muitodevagar e não falou logo.Primeiroolhou para Terence, e disse:

– Mr. Hewet, acho que agora osenhor deve subir.

Terence levantou-seimediatamente, deixando osdemais sentados com o Dr.Lesage parado entre ambos,

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imóvel.Chailey estava no corredor

repetindo sem parar: – É umamaldade, é uma maldade...

Terence não lhe deu atenção;ouvia o que ela estava dizendo,mas não tinha sentido em suamente. Subindo as escadas diziapara si mesmo:

– Isso não aconteceu comigo.Não é possível que isso tenha meacontecido.

Olhou curiosamente suaprópria mão no corrimão. As

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escadas eram muito íngremes, epareceu levar longo tempoparavencê-las. Em vez de sentirpungentemente como de-via. Nãosentia nada. Abrindo a porta, viuHelen sentada aolado da cama.Havia luzes veladas na mesa, e oquarto, embora parecesse cheiode muitíssimas coisas, estavamuitoarrumado. Havia um cheiroleve e não desagradável dedesinfetantes. Helen ergueu-se edeu-lhe sua cadeira em silêncio.Quando passaram um pelo outro,

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seus olhos encontraram-se numolhar peculiar, e ele espantou-secom a extraordinária clareza dosolhos dela, e a profunda calmaetristeza que vinham deles.Terence sentou-se ao lado dacamae um momento depois ouviu aporta fechar-se suavemente àssuas costas. Estava sozinho comRachel, e um leve reflexo dosentimento de alívio quecostumavam sentirquandoficavam juntos sozinhosapoderou-se dele. Olhoupara

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Rachel. Esperava ver nela algumaterrível mudança,mas não havianenhuma.

Parecia muito magra, até ondeele podia ver muito cansada, masera a mesma que sempre fora.Mais que isso,ela o via e oconhecia. Sorriu para ele e disse:

-Olá, Terence.A cortina que fora baixada

tanto tempo entre elesdesapareceu imediatamente.

– Então, Rachel – respondeuele na sua voz de sempre, e ela

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abriu bem os olhos e sorriu comseu sorriso conhecido. Ele abeijou e pegou sua mão.

– Tem sido tudo um terror semvocê – disse ele.

Ela ainda o contemplava esorria, mas logo uma leveexpressão de fadiga ouperplexidade apareceu nos seusolhos, e ela os fechou de novo.

– Mas quando estamos juntos,somos perfeitamente felizes –disse ele, ainda segurando a mãodela.

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Com a luz fraca eraimpossível detectar qualquermudança no rosto de Rachel. Umaimensa sensação de pazdominouTerence,de modo que não queriamexer-se nemfalar. A terríveltortura e irrealidade dos últimosdias tinham passado, e ele agoraestava numa perfeita paz ecerteza. Sua mente começou atrabalhar naturalmente de novo ecom grande leveza.Quanto maisficava ali sentado,maisprofundamente consciente estava

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da paz que invadiacada canto desua alma. Uma vez susteve arespiração eescutou atentamente;ela ainda respirava. Elecontinuoualgum tempo pensando;pareciam estar pensandojuntos;ele parecia ser Rachel eele próprio; depois escutoudenovo; não, ela deixara derespirar. Tanto melhor – aquiloeraa morte. Não era nada; era deixarde respirar. Era felicidade, erafelicidade perfeita. Agora tinhamo que sempre quiseram ter, a

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união que fora impossívelenquantoestavam vivos.Inconsciente de estar pensando oupronunciando alto as palavras,ele disse:

– Nunca houve duas pessoastão felizes como nós fomos.Ninguém amou como nósamamos.

Pareceu-lhe que sua completaunião e felicidadeenchiam oquarto com círculos que seampliavam cadavez mais. Ele nãotinha nenhum desejo não

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realizadono mundo. Ambospossuíam o que não lhespoderiaser tirado.

Ele não percebeu que alguémtinha entrado no quarto, massentiu, momentos ou horas depois,um braçoatrás dele.

Os braços estavam ao seuredor. Não queria ter braços aoseu redor, e as misteriosas vozessussurrantes o incomodavam.Largou sobre a colcha a mão deRachel, agora fria, levantou-se desua cadeira e foi até a janela. As

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janelas não tinham cortinas, emostravam a lua e uma longatrilha prateada na superfície dasondas.

– Ora – disse ele no seu tomde voz normal –, olhem a lua. Háuma auréola ao redor da lua.Amanhã vai chover.

Os braços, fossem de homemou mulher, estavam novamente aoredor dele; e o empurravamlevemente paraa porta. Virou-se,caminhou firmemente à frentedosbraços, consciente de que se

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divertia um pouquinho comaforma como as pessoas seportavam apenas porque alguémtinha morrido. Ele iria, sequeriam isso, mas nadaquefizessem poderia perturbar a suafelicidade.

Quando viu o corredor diantedo quarto, e a mesa com asxícaras e os pratos, de repenteentendeu que havia um mundo noqual nunca mais veria Rachel.

– Rachel! Rachel! – gritou ele,tentando empurrálas e voltar para

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ela. Mas impediram-no eempurraram-no pelo corredor,para um quarto longe dela.Noandar de baixo puderam ouviras batidas de seus pés no chão,enquanto lutava por libertar-se;duas vezes ouviram-no gritar:

– Rachel, Rachel!

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26

Por mais duas ou três horas alua despejou sua luz no arvazio.Sem nuvens que a impedissem,caía diretamente ejazia quasecomo geada sobre o mar e a terra.Durante essashoras o silêncio nãofoi rompido, e o único movimentoeracausado pelas árvores e ramosque se mexiam de leve, e depoisas sombras jazendo sobre osespaços brancos de terra tambémse mexeram. Nesse profundosilêncio apenas seouvia um som,

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o som de uma respiração levemas contínua,que nunca cessava,embora nunca aumentasse nemdiminuísse. E continuou depoisque os pássaros começaram avoarde ramo em ramo; podia serouvido atrás das primeiras notasagudas de suas vozes. E continuoutodas as horas,quando o Lesteclareou, quando ficou vermelho equandoum azul tênue tingiu o céu,mas quando o sol se levantouelecessou, dando lugar a outros sons.

Os primeiros que se ouviram

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foram gritos inarticulados,parecendo gritos de filhos dosmuito pobres, gente que estavamuito fraca ou sofrendo. Masquando o sol subiu acima dohorizonte, o ar que estivera fino epálido ficou cada vez mais rico equente, e os sons da vidatornaram-se mais fortes, ousadose imperiosos. Aos poucos afumaça começou a subir em ondassobre as casas, adensando-selentamente até ficarem redondas eretas como colunas, e em vez de

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bater em cortinas pálidas ebrancas, o sol bateu em janelasescuras, atrás das quais haviaprofundidade e espaço.

O sol subira há muitas horas, ea grande cúpula de ar estavaaquecida e cintilando com osfinos fios dourados do sol, antesque qualquer pessoa se movesseno hotel. O hotel postava-se,branco e maciço, na luz da manhã,meio adormecido com aspersianas baixadas.

Por volta das nove e meia

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Miss Allan entrou no saguão emuito devagar caminhou até amesa onde estavam os jornaisdamanhã, mas não estendeu a mãopara apanhar nenhum;ficou paradaquieta, pensando, com sua cabeçaum poucoinclinada sobre osombros. Parecia curiosamentevelha, e pelo seu jeito, um poucoencolhida e muito sólida, podia-sever como seria quando fosserealmente velha, como se sentariadia após dia em sua cadeiraolhando em frente placidamente.

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Outras pessoas começaram aentrar no saguão e apassar porela,mas ela não falou comninguém nem asolhou;finalmente,como se fossepreciso dizer algumacoisa,sentouse numa cadeira eolhou quieta e fixamente emfrente.Sentia-se muito velha essamanhã, e também inútil, como sesua vida tivesse sido um fracasso,dura e trabalhosa, sem motivoalgum. Não queria continuarvivendo, mas sabia

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quecontinuaria viva. Era tão forteque ficaria muitovelha.Provavelmente chegaria aos80, e ainda tinha 50; portantotinhamais 30 anos para viver. Revirouas mãos no colo econtemplou-ascom interesse, suas velhas mãos,que tinhamtrabalhado tanto porela. Não parecia haver muitosentidoem tudo aquilo; a gentecontinuava, claro, a gentecontinuava... Ergueu os olhos eviu Mrs, Thornbury parada aoseulado com linhas na testa e

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lábios abertos como se fossefazer uma pergunta.

Miss Allan antecipou-se:– Sim. Ela morreu esta manhã

bem cedo, por volta das três.Mrs. Thornbury deu uma pequenaexclamação, apertou os lábios, eas lágrimas vieram aos seusolhos. Através deles olhou osaguão, que agora estava cheio degrandes faixas de sol, gruposdespreocupados de pessoasparadas ao lado das sólidascadeiras e mesas. Pareciam-lhe

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irreais, ou pessoas inconscientesde que vai acontecer uma grandeexplosão ao seu lado. Mas nãohouve explosão e continuaramparadas perto das cadeiras emesas. Mrs. Thornbury já não asvia, mas, atravessando-as comose não tivessem substância, via acasa, as pessoas na casa, oquarto, a cama no quarto e afigura da morta deitada inerte noescuro debaixo dos lençóis.Quase podia ver a morta. Quasepodia escutar as vozes dos

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enlutados,– Eles estavam esperando

isso? – perguntou afinal.MissAllan apenas pôde sacudir acabeça.

– Não sei de nada – respondeu–, exceto o que a criadade Mrs.Flushing me contou. Ela morreuesta madrugada.

As duas mulheresentreolharam-se com um olharcalmo e significativo; sentindo-seestranhamente atordoada,eprocurando não sabia bem o quê,

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Mrs. Thornbury subiu asescadaslentamente e caminhou emsilêncio pelos corredores,tocando a parede com os dedoscomo se precisasse guiar-se.Camareiras passavam bruscas dequarto em quarto, mas Mrs.Thornbury as evitou; quase nemas via; pareciam pertencer a outromundo. Ela nem ergueu osolhosquando Evelyn a interpelou.Era evidente que Evelyn andarachorando e, quando olhou paraMrs. Thornbury, começou a

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chorar de novo. Juntas meteram-se num nicho de janela e ficaramem silêncio. Finalmenteformaram-se palavrasfragmentadas entre os soluços deEvelyn:

– Foi uma coisa tão perversa –soluçava ela –, tão

cruel... eles estavam tãofelizes. Mrs. Thornbury dava-lhepalmadinhas no ombro.

– Parece duro... muito duro –disse ela, parando e olhando alémda colina, para a villa dos

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Ambrose; as janelas estavamfaiscando ao sol, e ela pensou emcomo a alma damorta teriapassado por aquelas janelas.Alguma coisa deixara o mundo.Parecia-lhe tão estranhamentevazio.

– Mas ainda assim, quantomais velha se fica – continuouela, os olhos recuperando mais doque seu brilho habitual –, maiscerta se está de que há um motivo.Como se poderia continuar, senão houvesse um motivo?

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Perguntava a alguém que não eraEvelyn, cujos soluços estavam seacalmando.

– Tem de haver um motivo –disse ela. – Não pode ser tudo sóum acidente. Pois foi umacidente... isso não precisava teracontecido, nunca.

Mrs. Thornbury deu umsuspiro profundo.

– Mas não devemos pensarassim – acrescentou –, vamosesperar que eles também nãopensem assim. Não importa o que

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tivessem feito, acabaria assim.Essas doenças horríveis...

– Não há motivo... nãoacredito que haja motivo al-gum!– irrompeu Evelyn, baixando apersiana e deixando-a voltar comum pequeno salto.

– Por que essas coisasacontecem? Por que aspessoasdevem sofrer? Euacredito sinceramente – continuouela, baixando um pouco a voz –que Rachel está no céu,masTerence... De que adianta tudo

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isso? – perguntou depois.Mrs.Thornbury sacudiu a cabeça umpouco, mas não respondeu, eapertando a mão de Evelyn seguiupelocorredor. Impelida por umforte desejo de escutar algumacoisa, embora não soubesseexatamente o que haviapara ouvir,ela ia para o quarto dos Flushing.Quandoabriu a porta deles, sentiuque interrompera algumadiscussão entre marido e mulher.Mrs. Flushing estava sentada decostas para a claridade, e Mr.

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Flushing estavaparado perto deladiscutindo e tentando persuadi-lade alguma coisa.

– Ah, aqui está Mrs.Thornbury – começou ele comalgum alívio na voz. –Naturalmente a senhora já ouviu.Minha mulher sente-seresponsável de alguma forma.Insistiu com a pobre Miss Vinracepara que fosse à excursão. Tenhocerteza de que vai concordarcomigo que é muito irracionalsentir isso. Nós nem sabemos...

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na verdade acho muitoimprovável... que ela tenhaapanhado lá sua enfermidade.Essas doenças... além disso,estava decidida a ir. Teria idoquer você pedisse quer não,Alice...

Não diga isso, Wilfrid – disseMrs. Flushing, sem se mexer nemtirar os olhos do ponto noassoalho onde estavam pousados.– De que adianta falar? De queadianta... ? – ela calou-se.

Eu vinha perguntar – disse

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Mrs.Thornbury dirigindo-se aWilfrid, pois não adiantava falarcom sua mulher.

Há alguma coisa que o senhoracha que se poderia fazer? O paidela chegou? Alguém poderia irver?

Naquele momento o desejomais intenso dela era sercapaz elefazer alguma coisa por aquelaspessoas infelizes – vê-las,tranqüilizá-las –, ajudá-las. Erahorrível estar tão longe delas.Mas Mr. Flushing sacudiu a

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cabeça;achava que agora não –mais tarde talvez alguém pudesseajudar. Nisso Mrs. Flushinglevantou-se rígida, voltouascostas para eles e caminhou parao quarto de vestir.Enquantocaminhava podiam ver o peitodela erguendo-se e abaixando-selentamente. Mas a sua dor erasilenciosa. Ela fechou a portaatrás de si.

Sozinha ela cerrou os punhos ecomeçou a bater com eles noencosto de uma cadeira. Parecia

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um animal ferido. Odiava amorte; estava furiosa,indignada,ofendida com a morte,como se ela fosse uma criaturaviva. Recusava-se a entregar seusamigos à morte. Não sesubmeteria às trevas e ao nada.Começou a caminhar de um ladopara outro, punhos cerrados, semtentar reter as lágrimas rápidasque corriam pelas suasfaces.Sentou-se quieta por fim,mas não se conformava.Quandoparou de chorar, parecia

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obstinada e forte.No quarto ao lado, enquanto

isso, Wilfrid falava comMrs.Thornbury com maisliberdade agora que sua esposanão estava ali.

– Isso é o pior nesses lugares– disse ele. – As pessoas seportam como se estivessem naInglaterra, e não estão. Nãoduvido de que Miss Vinraceapanhou essa infecção na própriavilla. Provavelmente se expunha amuitos riscos que podiam ter-lhe

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passado essa doença.É absurdodizer que ficou doente conosco.Seele não estivesse sinceramentetriste por causa deles, estariaofendido.

– Pepper me contou –prosseguiu – que saiu da casaporque os achava desleixados.Disse que nunca lavavam direitoseus legumes. Pobre gente! É umpreço terrível a pagar. Mas é só oque vejo aqui, toda hora, todahora... as pessoas parecemesquecer que essas coisas

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acontecem, e quando acontece,ficam surpresas.

Mrs. Thornbury concordoucom ele que tinham sido muitopouco cuidadosos e que não haviamotivo para pensar que a moçaapanhara a febre naexcursão;depois de falar sobreoutras coisas por algum tempo,elao deixou e continuou tristementepelo corredor até seu próprioquarto. Devia haver algum motivopara que essas coisasacontecessem, pensou ao fechar a

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porta. Só que no começo não erafácil entender o que era.Pareciatão esquisito – tão inacreditável.Ora, há apenas três semanas – háapenas quinze dias viraRachel;quando fechava os olhospodia quase vê-la agora, amocinha quieta e tímida que ia secasar. Pensou em tudo o que teriaperdido se tivesse morrido com aidade de Rachel, os filhos, a vidade casada, as inimagináveisprofundezas e milagres que,olhando para trás, lhe pareciam

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ter estado com ela dia após dia,ano após ano.A sensação depasmo que tornara difícil pensaraos poucos cedia a uma sensaçãooposta; ela pensava muito rápidae claramente, e considerandotodas as suas experiências,tentavaconferir-lhes uma espécie deordem.Havia sem dúvida muitosofrimento, muita luta, mas demodo geral certamente umequilíbrio de felicidade –certamente a ordem prevalecia.Nem as mortes de jovens eram as

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coisas mais tristes da vida,realmente – eles eram poupadosde tanta coisa; ficavam com tantacoisa intacta. Os mortos – elaevocou os que tinham morridocedo, por acidente – eram belos;muitas vezes ela sonhava com osmortos.E um dia o próprioTerence passaria a sentir... elalevantou-se e começou acaminhar inquieta pelo quarto.

Para uma mulher de sua idade,era muito inquieta,e para alguémcom sua mente clara e rápida,

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estavainusitadamente perplexa.Não conseguia acalmar-secomnada, de modo que ficou aliviadaquando a portase abriu. Foi atéseu marido, pegou-o nos braços,beijou-o com intensidadeincomum, e quando se sentaramjuntos começou a afagá-lo einterrogá-lo como seele fosse umbebê, um bebê velho, cansado ebriguento. Não lhe contou sobre amorte de Miss Vinrace, pois issoapenas o perturbaria, e ele jáestava aborrecido. Tentou

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descobrir por que ele estava tãoinseguro. Política novamente? Oque estava fazendo aquelagentemedonha?

Passou a manhã todadiscutindo política com seumarido, e aos poucos ficouprofundamente interessada noqueestavam dizendo. Mas volta emeia o que estavamdizendoparecia-lhe estranhamente vaziode significado.

No almoço várias pessoascomentaram que os visitantes do

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hotel estavam começando a irembora: havia cada dia menosgente. Havia só 40 pessoas noalmoço, em vez das 60 de antes.Assim julgou a velha Mrs. Paleyolhando em torno com seus olhosdesbotados, quando se sentou àsua mesa junto da janela. Seugrupo em geral consistia em Mr.Perrott e Arthur e Susan; hojeEvelyn também almoçava comeles.

Estava inusitadamente contida.Tendo notado que seus olhos

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estavam vermelhos e sabendo arazão, os outros esforçavam-sepor manter entre si uma elaboradaconversação. Ela tolerou isso poralguns minutos; apoiando os doiscotovelos na mesa e deixando asopa intocada exclamou derepente:

– Não sei como vocês sesentem, mas eu simplesmente nãoconsigo pensar em outra coisa!Os cavalheiros murmuraram,compreensivos, e pareciamgraves. Susan respondeu:

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-Sim, não é realmente umhorror? Quando se pensa em quemoça simpática ela era... acabarade ficar noiva.isso não podia teracontecido... parece trágicodemais.

Ela olhou para Arthur, comose ele pudesse ajudá-la com algomais adequado.

– Coisa muito dura – disseArthur laconicamente. – Mas foiuma coisa muito tola de se fazer...subir aquele rio. – Ele balançavaa cabeça. – Deviam ter sido mais

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espertos. Não se pode esperarque damas inglesas andem debarco como nativos aclimatados.Eu pensei vagamente em avisá-los no chá naquele dia, quandoestavam discutindo o caso. Masnão adianta dizer esse tipo decoisa... só deixa as pessoasirritadas... e nunca faz diferença.

A velha Mrs. Paley, até alisatisfeita com sua sopa, nessemomento, levando a mão aoouvido, mostrou que que-riasaber o que estavam dizendo.

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– Tia Emma, a senhora ouviu,a pobre Miss Vinrace morreu dafebre – informou Susaneducadamente. Não podia falaralto em morte, nem com sua vozhabitual, de modo que Mrs. Paleynão entendeu uma palavra. Arthurveio em socorro.

– Miss Vinrace está morta –disse ele com toda a clareza. Mrs.Paley apenas inclinou-se umpouco para ele e perguntou:

– Ãhn?– Miss Vinrace está morta –

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repetiu ele. Só enrijecendo osmúsculos em torno da boca eleconseguia evitar de cair narisada, e forçou-se a repetir umaterceira vez: – Miss Vinrace... elamorreu. Sem falar na dificuldadede escutar as palavras certas,osfatos que estavam fora de suaexperiência cotidiana levavamalgum tempo para chegar àconsciência de Mrs.Paley.Parecia haver um peso sobre seucérebro, impedindo, embora nãoprejudicando, seu funcionamento.

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Ela sentou-se de olhos vagos porao menos um minuto antes deentender o que Arthur queriadizer.

– Morta? – disse vagamente. –Miss Vinrace morta? Meu Deus...isso é muito triste. Mas nãolembro absolutamente qual delasera ela. Parece que conhecemostantagente nova aqui. – Olhoupara Susan procurando ajuda. –Uma moça morena e alta, quasebonita, bastante morena?

– Não – disse Susan. – Ela

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era... – então desistiu,desesperada. Não adiantavaexplicar que Mrs. Paley estavapensando na pessoa errada.

– Ela não devia ter morrido –continuou Mrs. Paley.

– Parecia tão forte. Mas aspessoas ficam bebendo essa água.Nunca entendo por quê. Pareceuma coisa tão simples dizer-lhesque botem uma garrafa de águamineral no quarto. É só essecuidado que eu tomo, e estive emtoda parte do mundo, posso

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dizer... mais de uma dúzia devezes na Itália... mas gente jovemsempre acha que sabe mais edepois paga o preço.Pobrezinha... sinto muito por ela.– Mas a dificuldade de espiar umprato de batatas e servir-se de umbocado agora concentrava suaatenção.Arthur e Susansecretamente esperavam que otema fosse abandonado, poisparecia haver algo desagradávelnessadiscussão. Mas Evelyn nãoestava disposta a esquecê-lo.

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Porque as pessoas nunca falavamdas coisas importantes?

– Eu acho que o senhor nãoliga a mínima! – disse elavirando-se bruscamente para Mr.Perrott que estivera todo o temposentado quieto.

– Eu? Ah, sim, eu ligo –respondeu ele desajeitado,mascom evidente sinceridade. Asperguntas de Evelyn o deixavamcom uma sensação dedesconforto.

– Parece tão inexplicável –

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continuou Evelyn. – Quero dizer,a morte. Por que ela teve quemorrer, e não eu ou você? Fazapenas 15 dias estava aquiconosco. Em que você acredita? –perguntou a Mr. Perrott. –Acredita que as coisas continuam,que ela estará em algum lugar...ou acha que é tudo apenas umjogo... e que quando morremosnos transformamos em nada?Estou certa de que Rachel nãomorreu.

Mr. Perrott teria dito quase

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tudo que Evelyn queria dele, masafirmar que acreditava naimortalidade da alma estava alémde suas forças. Ficou sentadoquieto, mais enrugado do que decostume, esfarelando seu pão.

Pensando que Evelyn agoralhe perguntaria em que eleacreditava, depois de uma pausaequivalente a um ponto final,Arthur começou um tópicointeiramente diferente.

Supondo que um homemescrevesse e lhe dissesse que

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quer cinco libras porqueconheceu seu avô, o que vocêfaria? Foi assim. Meu avô...

Inventou um tipo de fogão –disse Evelyn. – Sei tudo sobreisso. Tínhamos um na estufa, paraaquecer as plantas.

Nem sabia que eu era tãofamoso – disseArthurdeterminado a elaborar aqualquer custo aquela história.

Bem,o velho,um dos melhoresinventores do seu tempo etambém bom advogado, morreu

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como de costume,sem testamento.Fielding, seu empregado, afirmasempre, não sei com que direito,que meu avô queria fazeralgo porele. O pobre velhote tenta algunsinventos seus,vive em Penge, emcima de uma tabacaria. Já ovisitei lá.A questão é... devonegar isso ou não? O que diz oespírito abstrato da justiça.Perrott? Lembre, eu mesmo nãofuibeneficiado com um testamentode meu avô, nem tenho comoconferir a veracidade dessa

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história.– Não sei muita coisa sobre o

espírito abstrato da justiça –disse Susan sorrindo complacentepara os demais. – Mas estou certade uma coisa... ele vai ganharsuas cinco libras!

Mr. Perrott passou a dar suaopinião, e Evelyn insistiu em queele era escrupuloso demais, comotodos osadvogados, pensando naletra e não no espírito, enquantoMrs. Paley pedia para ficarinformada, entre os pratos,sobre o

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que todos estavam dizendo. Oalmoço passousem um intervalode silêncio, e Arthur parabenizou-sepelo tato com que conseguiraabrandar a discussão.

Quando deixavam a sala, acadeira de rodas de Mrs. Paleypor acaso bateu nos Elliot, queestavam entrando. Interrompidospor um momento, Arthur e Susanestimaram a melhora de HughlingElIiot – ele estava no térreo pelaprimeira vez, ainda com arcadavérico –,e Mr. Perrott

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aproveitou para dizer algumaspalavras em particular a Evelyn.

– Haveria oportunidade de vê-la esta tarde,por volta detrês emeia, digamos? Estarei no jardim,junto da fonte.

O grupo dissolveu-se antes deEvelyn responder.Mas quando osdeixou no saguão, ela o encarouvivamente e disse:

– O senhor disse três e meia?Para mim está bem.

Correu para cima, naexaltação espiritual e

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animaçãoque a perspectiva deuma cena emocional sempredespertava nela. Não tinha dúvidade que Mr. Perrott a pediriaemcasamento novamente,e sabia quenessa ocasião deviaestarpreparada para uma respostadefinitiva, pois partiriadentro detrês dias. Mas não conseguiadecidir-se. Era muito difícil,poistinha um desgosto natural porqualquercoisa final e definitiva;gostava de continuar, emfrente...sempre, sempre. Estava

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indo embora, por isso estendiaasroupas lado a lado sobre acama. Observou quealgumasestavam muito velhas.Pegou uma foto de seus pais, eantesde guardá-la na caixasegurou-a por um minuto.Rachelolhara aquele retrato. Derepente a pungente sensaçãodapersonalidade de alguém, queàs vezes continua preservadanascoisas que possuiu ou manuseou,dominou-a; sentiuRachel com elano quarto; era como se estivesse

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num navio no mar, e a vidacotidiana fosse tão irreal como apaisagemna distância. Mas aospoucos a sensação da presençadeRachel se foi, e não conseguiamais percebê-la, pois malaconhecera. Mas aquela sensaçãomomentânea a deixou deprimida ecansada. O que tinha feito de suavida? Que futuro havia à suafrente? O que era faz-de-conta, oque era real?Essas propostas,alusões e aventuras eram reais, oua satisfação que vira nos rostos

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de Susan e Rachel era mais realdoque qualquer coisa que elaprópria jamais sentira?

Preparou-se para descer, meiodistraída, mas seus dedosestavamtão bem treinados que faziam otrabalho quase sozinhos. Quandoestava realmente descendo asescadas o sangue começou acircular por seu corpo tambémpor suaprópria conta, pois suamente estava muito embotada.

Mr. Perrott a aguardava. Naverdade, depois do almoço

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descera direto para o jardim eestivera andando de um lado paraoutro no caminho mais de meiahora, num estado de tensão aguda.

– Estou atrasada como sempre– exclamou ela ao vê-la.

– Bem, tem de me perdoar; eutinha de fazer as malas...

Verdade! Parece que vai havertempestade! E aquilo é umnovovapor na baía, não é? – Elaolhava a baía onde um vaporlançara âncora, com fumaça aindapairando sobre ele,enquanto um

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tremor negro e rápido percorriaas ondas. –Dá até para esquecercomo é a chuva.

Mas Mr. Perrott não prestavaatenção no vapor ou no tempo.

– Miss Murgatroyd – começoucom seu formalismo habitual –, eulhe pedi que viesse até aqui porum motivo muito egoísta, receio.Não creio que precise certificar-se mais uma vez dos meussentimentos; mas como está indoembora em breve, senti que nãopoderia deixá-la ir sem

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perguntar-lhe... tenho algummotivo para ter esperança de quevenha a gostar de mim?

Ele estava muito pálido eparecia incapaz de dizer maisalguma coisa.

O pequeno jorro de vitalidadeque entrara em Evelyn quandocorrera escadas abaixo já se fora,e ela sentia-se impotente. Nãohavia nada a dizer; ela não sentianada.Agora que ele realmente aestava pedindo em casamento,nassuas palavras gentis de pessoa

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idosa, ela sentia por ele aindamenos do que antes.

– Vamos sentar e conversar arespeito – disse, bastanteinsegura.

Mr. Perrott seguiu-a até umbanco verde recurvado debaixode uma árvore. Olharam a fonte àsua frente, que há muito deixarade jorra. Evelyn ficava olhando afonte em vez de pensar no que iadizer; a fonte sem água pareciasímbolo de sua própria vida.

– Naturalmente eu gosto do

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senhor – começou, falando muitodepressa. – Eu seria grosseira senão gostasse. Acho que o senhor éuma das pessoas mais simpáticasque já conheci, e uma dasmelhores também.Mas eu queria...queria que não gostasse de mimdesse jeito. Tem certeza do quesente? – Naquele momento eladesejou sinceramente que eledissesse não.

– Toda a certeza – disse Mr.Perrott.

– Sabe, não sou tão simples

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como a maioria das mulheres –continuou Evelyn. – Acho que euquero mais.Não sei direito o quesinto.Ele sentava-se junto dela.contemplando-a, sem dizer nada.

– Às vezes acho que não estáem mim gostar muito de umapessoa só. Alguma outra pessoaseria muito melhor esposa para osenhor. Posso imaginá-lo muitofeliz com outra mulher.

– Se acha que há algumachance de que um dia venha agostar de mim, ficarei bem

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contente em esperar – disse Mr.Perrott.

– Bem... não há pressa, há?-disse Evelyn. – Digamos que voupensar em tudo e lhe escrevodizendo tudo quando voltar?Estou indo a Moscou;vouescrever de Moscou.

Mas Mr. Perrott insistia.– A senhorita não pode me dar

nenhuma idéia? Não peço umadata... isso seria pouco sensato. –Ele parou,olhando para a trilha decascalho.Como ela não

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respondesse logo, ele prosseguiu.– Sei muito bem que não sou...

que não tenhomuito a oferecer-lheem mim mesmo, ou em minhascircunstâncias. E esqueço queisso tudo não pode parecer para asenhorita o mesmo milagre queparece amim. Até conhecê-la eutinha seguido meu caminhomuitoquieto... somos os dois gentemuito quieta, minha irmã e eu...bem contente com minha sorte.Minha amizade com Arthur era acoisa mais importante na minha

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vida. Agora que a conheci, tudoissomudou. A senhorita parececolocar tanto espírito emtodas ascoisas. A vida parece contertantas possibilidades com que eujamais sonhei.

– Isso é esplêndido! –exclamou Evelyn agarrando amão dele. – Agora o senhor vaivoltar e começartoda a sorte decoisas, e fazer um nomeimportanteno mundo; e vamoscontinuar sendo amigos,nãoimporta o que venha a

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acontecer... seremosgrandesamigos, não?

– Evelyn! – murmurou ele derepente, tomando-a nos braços ebeijando-a. Ela não se aborreceu,embora lhe causasse poucaimpressão.Quando se endireitoude novo, ela disse:

– Não vejo por que nãocontinuarmos amigos...emboraalgumas pessoas não entendam. Eamizades fazem grande diferençanão fazem? São o tipo da coisaque é importante na vida, não é?

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Ele a encarava com umaexpressão desnorteadacomo senão entendesse de verdade o quedizia. Comconsiderável esforçoele controlou-se, ergueu-se edisse:

– Agora acho que lhe disse oque sinto,e apenas acrescentareique posso esperar o tempo quevocê quiser.

Sozinha, Evelyn andou de umlado para outro no caminho. Oque então era importante? O quesignificava tudo aquilo?

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27

Toda aquela noite as nuvens seacumularam até se fechareminteiramente sobre o azul do céu.Pareciam estreitar o espaço entreterra e céu, de modo que nãohavia espaço como o ar circularlivremente; as ondas tambémestavam achatadas e rígidas comose estivessem sendo contidas. Asfolhas nos arbustos e árvores nojardim estavam bem juntas, e asensação de pressão e contençãoera aumentada pelos breves sons

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de gorjeios que vinham de insetose aves.

Tão estranhas eram as luzes eo silêncio, que o agitadoburburinho de vozes quehabitualmente enchia a sala dejantar à hora das refeições tinhamlacunas bem nítidas, e duranteesses silêncios o tilintar de facasem pratos se tornava audível. Oprimeiro rufo do trovão e aprimeira gota pesadaatingindo avidraça causaram um pequenomovimento.

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– Está chegando! – disseramsimultaneamente em muitaslínguas diferentes.

Então houve um silêncioprofundo, como se o trovãotivesse se recolhido sobre simesmo. As pessoas começavam acomer outra vez quando um soprode ar frio atravessou as janelasabertas erguendo toalhas de mesae saias,uma luz lampejou seguidaimediatamente pelo estouro de umtrovão bem acima do hotel. Achuva veio com ele, chiando

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forte, e imediatamente houvetodos aqueles sons de janelassendo fechadas e portas batendoviolentamente, que acompanhamuma tempestade.

De repente o aposento ficoubem mais escuro, pois oventoparecia trazer ondas de escuridãosobre a terra.Ninguém tentoucomer por algum tempo, e ficaramsentados olhando para o jardim láfora, com os garfos no ar.Agorasó relâmpagos eram freqüentes,iluminando os rostos como se

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fossem fotografados,surpreendendo-os emexpressõestensas e nada naturais. O estouroseguia logo depois, violento.Várias mulheres meio que selevantavamde suas cadeiras esentavam-se outra vez, mas ojantar continuou, inseguro, comolhos no jardim. Os arbustosestavam desgrenhados eesbranquiçados, e o vento ospressionava tanto que pareciaminclinar-se para o chão. Osgarçons tinham de chamar a

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atenção dos que jantavam paraospratos; e os que jantavamtinham de chamar a atençãodosgarçons, pois estavam todosabsortos olhando a tempestade.Como o trovejar não mostrassesinais de afastar-se, maspareciacompacto exatamente acimadeles, e os relâmpagoscaíssemdireto no jardim todas as vezes,uma sensação dedesconfortávelmelancolia substituiu a primeiraexcitação.

Terminando muito depressa

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sua refeição, as pessoasreuniram-se no saguão onde sesentiam mais seguras elo queemqualquer outro lugar, porquepodiam afastar-se das janelas, eembora ouvissem o trovão, nãopodiam ver nada. Ummenininhofoi levado ela dali nos braços damãe, soluçando.

Enquanto a tempestadecontinuava, ninguém pareciaquerer sentar-se, mas reuniram-seem pequenos grupos debaixo daclarabóia central, onde ficaram

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numa atmosfera amarela, olhandopara cima. Volta e meia seusrostos ficavam brancos quando orelâmpago brilhava, e finalmentevinha um estouro terrível fazendoas vidraças da clarabóiaerguerem-se nos caixilhos.

– Ah! – exclamavam váriasvozes ao mesmo tempo.

– Alguma coisa foi atingida –disse uma voz de homem.A chuvadesabou. Agora a chuva pareciaextinguir os relâmpagos e ostrovões, e o saguão ficou quase

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escuro.Depois de um ou dois minutos

em que nada se ouvia senão obater da água contra asvidraças,houve umadiminuiçãosensível do som efinalmente a atmosfera ficou maisclara.

– Passou – disse outra voz.Imediatamente todas as luzes

elétricas foram acesas erevelaram um grupo de pessoastodas de pé, todas erguendorostos bastante tensos para a

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clarabóia, mas quando se viramna luz artificial, viraram-seimediatamente e começaram a seafastar. Por alguns minutos achuva continuou martelando naclarabóia e os trovões derammais uma ou duas sacudidas; eraevidente pela claridade e pelotamborilar agora leve da chuva notelhado que o grande oceanoconfuso de ar viajava para longedeles, passando sobre suascabeças, bem alto, com suasnuvens e suas varas de fogo, em

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direção do mar. O edifício, queparecera tão pequeno no tumultoda tempestade, ficou equilibradoe espaçoso como sempre.

Quando a tempestade seafastou, as pessoas no saguãodohotel sentaram-se; e com umaconfortável sensação de alívio,começaram a contar históriassobre grandes temporais, o queconstituiu a grande distração danoite.

O tabuleiro de xadrez foitrazido, e Mr.Elliot, que usava um

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cachecol em vez de um colarinhoem sinal de sua convalescença,mas que de estava bastantenormal,desafiou Mr. Pepper paraum torneio final. Ao redor delesjuntou-se um grupo de damas compeças de bordado.Ou na falta debordado, com romances, parasupervisionar o jogo, comoestivessem cuidando de doismenininhos que jogavam bola degude. De vez em quandoolhavamo tabuleiro e faziam algumcomentário animador para os

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cavalheiros.Mrs. Paley estava logo

adiante, com cartas arrumadas emlongas fileiras à sua frente,eSusan sentada perto dela,paraacompanhar sem corrigir, e oshomens de negócios e váriaspessoas cujos nomes ninguémconhecia estendiamse em suaspoltronas com jornais no colo. Aconversa nessas circunstânciasera muito leve,fragmentária eintermitente, mas o salão estavacheio da indescritível agitação da

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vida. De vez em quando amariposa que agora era de asascinzentas e corpo lustroso zumbiasobre as cabeças deles e batia nalâmpada com um baque.

Uma jovem largou seubordado e exclamou:

– Pobre criatura! Seria melhormatá-la. – Mas ninguém parecia,disposto a levantar-se e matar amariposa. Viam-na disparar delâmpada a lâmpada porqueestavam confortáveis e nãotinham nada a fazer.

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No sofá ao lado dos jogadoresde xadrez, Mrs. Elliotensinava umum novo ponto de tricô a Mrs.Thornbury,de modo que suascabeças ficaram muito juntas, e sósedistinguiam pela velha touca derenda que Mrs. Thornbury usava ànoite. Mrs. Elliot era perita emtricô,e recebeu com evidenteorgulho um elogio por isso.

– Acho que todas temosorgulho de alguma coisa –disse –,e eu tenho orgulho do meu tricô.Acho que issoé de família. Todas

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nós tricotamos muito bem. Tiveum tio que tricotou suas própriasmeias até a morte... e faziaissomelhor do que qualquer de suasfilhas, o queridovelho. Masadmiro-me de que você, MissAllan, que usatanto seus olhos,não pegue um tricô de noite.Sentiriaum tal alívio,eu diria...umtaldescanso para os olhos...easfeiras de caridade apreciam tantoessas coisas. – Suavoz caiu notom brando meio consciente deuma tricotadeira perita; as

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palavras fluíam suavemente. –Por mais que eu faça, sempretenho onde aproveitá-lo, o que éumconforto, pois assim sinto quenão estou desperdiçando meutempo...

Abordada assim, Miss Allanfechou seu romance e observou asoutras placidamente por algumtempo.Finalmente disse:

– Certamente não é naturaldeixar sua esposa porqueela estaapaixonada por você. Mas isso...até onde entendo... é o que o

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cavalheiro da minha história vaifazer.

– Ts, ts, isso não soa nadabem... não, nada natural –murmuraram as tricotadeiras emsuas vozes absortas.

Mas é mesmo assim o tipo delivro que as pessoasconsiderammuito inteligente – acrescentouMiss Allan.

Maternidade... de MichaelJessop, presumo – interveio Mr.Elliot, pois nunca resistia atentação de falar enquanto jogava

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xadrez.Sabe – disse Mrs. Elliot um

momento depois –, nãoacho queas pessoas hoje em dia escrevambons romances... não tão bonscomo costumavam ser, dequalquer modo.

Ninguém se deu ao trabalho deconcordar ou discordar. ArthurVenning, que andava por ali, àsvezes dando uma olhada no jogo,às vezes lendo uma página derevista, agora olhou Miss Allan,que estava quase adormecida, e

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disse brincando:– Uma moeda pelos seus

pensamentos, Miss Allan.Os outros ergueram os olhos.

Ficaram contentes por não terfalado com eles. Mas Miss Allanrespondeu sem hesitação:

– Eu estava pensando no meutio imaginário. Todo mundo nãotem um tio imaginário? continuouela. – Eu tenho um... um velhocavalheiro absolutamenteencantador. Está sempre medando coisas. Às vezes é um

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relógio de ouro; às vezes umacarruagem e uma parelha; àsvezes um lindo cottage na NewForest; às vezes uma passagempara o lugar que mais quero ver.

Todos ficaram pensandovagamente nas coisas quedesejavam. Mrs. Elliot sabiaexatamente o que queria:queriaum filho, e aquela ruguinhahabitual acentuouse na sua fronte.

– Somos pessoas de tanta sorte– disse ela olhando

o marido. – Nós realmente não

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temos desejos. – Dizia isso emparte para convencer-se, em partepara convencer outras pessoas.Mas a entrada de Mr. eMrs.Flushing a impediu deimaginar até onde ia suaconvicção; eles vieram pelosaguão e pararam juntodotabuleiro de xadrez. Mrs.Flushing parecia maisdesorientada do que nunca. Umagrande madeixa de cabelo pretocaía sobre sua testa, as facesestavam pintadascom vermelho

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escuro e gotas de chuvadepunhammanchinhas sobre elas.

Mr. Flushing comentou queestiveram no telhado olhando atempestade.

– Foi uma vista magnífica –disse. – Os relâmpagos iamaté omar iluminando as ondas e osnavios bem longe. Nãoimaginamcomo as montanhas tambémestavam lindas, com aquelas luzese grandes massas de sombra.Tudoacabou agora.Ele deslizou paradentro de uma poltrona,

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interessado na luta final do jogo.– E vão partir amanhã? – disse

Mrs.Thornbury olhando Mrs.Flushing.

– Sim – respondeu ela.– Na verdade não se lamenta

partir – disse Mrs.Elliot,assumindo um ar deansiedade tristonha – depois detoda essa doença.

– A senhora tem medo demorrer? – perguntouMrs.Flushing, sarcástica.

– Acho que todos temos medo

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disso – disse Mrs. Elliot, comdignidade.

– Eu acho que nesse assuntotodos somos covardes – disseMrs. Flushing, esfregando a faceno encosto da cadeira. – Estoucerta de que eu sou.

– Nem um pouquinho! – disseMr. Flushing virandose, pois Mr.Pepper levava muito tempopensando na sua jogada. – Não écovardia querer viver, Alice. É oreverso da covardia.Pessoalmente, eu gostaria de

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viver 100 anos...desde que, éclaro, com pleno uso de minhasfaculdades.Pense em todas ascoisas que estão por acontecer? –É isso que eu sinto – concordouMrs. Thornbury. – As mudanças,as melhorias, as invenções... e abeleza. Sabem, às vezes sinto quenão suportaria morrer e deixar dever as coisas lindas ao meu redor.

– Certamente seria muitoaborrecido morrer antes dedescobrirem se existe vida emMarte – acrescentou Miss Allan.

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– A senhora realmente acreditaque há vida em Marte? –perguntou Mrs. Flushing, agoravirando-se pela primeiravez comvivo interesse para ela. – Quemlhe diz isso? Alguém que sabe?Conhece um homem chamado... ?Aqui Mrs. Thornbury largou seutricô, e uma expressão de extremasolicitude apareceu em seusolhos.

– Aqui está Mr. Hirst – disseela calmamente. St. Johnacabavade entrar pela porta. Estava

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bastante desgrenhadopelo vento,suas faces terrivelmente pálidas,encovadas e coma barba porfazer. Depois de tirar o casacoele ia passar diretopelo saguãopara subir até seu quarto, mas nãopodia ignorara presença de tantaspessoasconhecidas,especialmente quandoMrs. Thornbury se ergueu e foiaté ele, estendendo-lhe amão.Mas o choque do aposentoiluminado e quente, com avista detantos seres humanos alegres

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sentados juntos à vontade, depoisda caminhada na chuva, noescuro, e os longosdias de tensãoe horror, dominaram-nocompletamente.Ele viuMrs.Thornbury e não conseguiufalar.

Todo mundo estava calado. Amão de Mr. Pepper pairava sobreo seu cavalo.

Mrs. Thornbury conduziu Hirstaté uma cadeira,sentou-se ao ladodele, e com lágrimas nos olhosdisse com doçura:

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– O senhor fez tudo pelo seuamigo.

Sua ação os fez voltar a falarcomo se nunca tivessem parado, eMr. Pepper concluiu a jogadacom seu cavalo.

– Não havia nada a fazer –disse St. John, falando muitodevagar. – Pareceimpossível...Ele passou a mãosobre os olhos como se um sonhose interpusesse entre ele e osoutros, impedindo-o de ver ondeestava.

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– Aquele pobre rapaz – disseMrs. Thornbury, com lágrimasrolando pelas faces.

– Impossível – repetiu St.John.

– Ele teve o consolo desaber...? – comentou muito deleve Mrs. Thornbury.

Mas St. John não respondeu.Ele deitou-se na sua poltrona,vagamente divisando os outros,vagamente ouvindo o que diziam.Estava terrivelmente cansado,e aluz e o calor, os movimentos das

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mãos, as brandas vozescomunicativas o acalmaram;davam-lhe uma estranha sensaçãode quietude e alívio. Sentadoali,imóvel, essa sensação tornou-se uma profunda felicidade. Semqualquer sentimento dedeslealdade com Terence eRachel, ele cessou de pensar nosdois. Os movimentos e vozespareciam juntar-se, vindos dediferentes partes da sala, ecombinar-se num padrão diantedos olhos dele; estava contente

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por sentar-se ali em silêncioobservando esse desenho formar-se, olhando para aquilo que quasenem via.

O jogo era realmente bom, eMr. Pepper e Mr. Elliotestavamcada vez mais empenhados. Mrs.Thornbury,vendo que St. John nãoqueria falar, voltou ao seu tricô.

– Relâmpagos de novo! –exclamou Mrs. Flushingderepente.Uma luz amarelalampejou diante da janela azul,epor um segundo viram as árvores

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verdes lá fora. Ela foiaté a porta,abriu-a e parou em meio aorelento.

Mas a luz era apenas umreflexo da tempestade queacabara. A chuva cessara, asnuvens pesadas foram sopradasdali e o ar estava fino eclaro,embora névoasvaporosasestivessem sendoimpelidas rapidamente diante daluz. Océu era mais uma vez de umazul profundo e solene, e aformada terra era visível no fundo

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enorme, escura, sólida,arqueando-se na massapontiaguda da montanha, aqui ealicom as minúsculas luzes dasvillas nas encostas. O arquesoprava,o rumorejar dasárvores,a luz que lampejava aquie aliespalhando uma vastaclaridade sobre a terra encheramMrs.Flushing de exultação. Seupeito erguia-se e descia.

– Esplêndido! Esplêndido! –murmurava. Depois vi-rou-separa o saguão e exclamou numa

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voz imperiosa: – Venha aquiver,Wilfrid. É maravilhoso.

Alguns moveram-sevagamente; alguns selevantaram;alguns largaram suasbolas de lã e começaram ainclinarse para apanhá-las.

Para a cama... para a cama –disse Miss Allan.

Foi a jogada com a sua rainhaque o entregou, Pepper –exclamou Mr. Elliot triunfante,juntando as peças com a mão elevantando-se. Ganhara o jogo.

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– O quê? Pepper finalmentederrotado? Parabéns! – disseArthur Venning, que empurrava acadeira de rodas da velha Mrs.Paley para a cama.

Todas essas vozes soaramgratas aos ouvidos de St.Johndeitado meio adormecido, masvivamente consciente de tudo aoseu redor. Diante de seus olhospassava uma procissão deobjetos, pretos e indistintos,figuras de pessoas apanhandoseus livros, suas cartas, seus

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novelos de lã,seus cestos detrabalho; e passando por ele, umaapós a outra, iam para a cama.

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