da terra ao azul - ulisboarepositorio.ul.pt/bitstream/10451/28500/2/ulfba_tes_998.pdf · 2018. 6....
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
DA TERRA AO AZUL
A prática da paisagem, elo entre a natureza e o espírito
João Rodrigues Dias Gama
Dissertação
Mestrado em Pintura
Dissertação orientada pela Professora Doutora Ana Mata
2016
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DECLARAÇÃO DE AUTORIA
Eu, João Rodrigues Dias Gama, declaro que a presente dissertação de mestrado intitulada
“Da Terra ao Azul”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O
conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na
bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou
indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.
O Candidato
Lisboa, 10 de Novembro de 2016.
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Resumo
A paisagem natural surge enquanto referente e tema de reflexão neste projecto.
Proponho como título “Da terra ao azul”, uma expressão que remete para o viver real e
idílico da paisagem - que é a base em que trabalho. Este é um projecto teórico-prático
no qual a experiência pessoal com os lugares naturais conduziu a uma concretização em
pintura, ou seja, esta dissertação fundamenta-se numa experiência prática que surgiu de
uma vivência pessoal. É desta que deriva a componente teórica também essencial.
“Da terra ao azul”, é uma reflexão que retrata, em síntese, o desenvolvimento deste
projecto onde a obra brota da terra e do sonho. A terra (a paisagem concreta) e o azul (o
sonho), demonstram ser elementos que se interligam - e desses depende o processo
criativo que me inspira a pintar. A paisagem natural assume aqui um papel importante
enquanto meio de pensar um modo de estar.
Será a vontade de conhecer e pensar artisticamente a natureza algo intemporal no
decurso da história? Porque é que, nos dias de hoje, é pertinente abordar, numa obra, a
busca intensa pelos lugares naturais? É a procura da paisagem um exotismo?
Estas foram questões que o desenvolvimento do meu trabalho suscitou e, portanto, às
quais me propus responder, mesmo que parcialmente, nesta reflexão em torno das obras
que vim a produzir.
Palavras-chave: Paisagem, Pintura, Ancestral, Serenidade, Sonho
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Abstract
The natural landscape emerges as a referent and theme of reflection in this project. I
propose as the title "From the earth to the blue", an expression which refers to real life
and idyllic into the landscape - that is the basis on which work. This is a theoretical-
practical project in which personal experience with natural places has led to a realisation
in painting, i.e., this dissertation is based on a practical experience that arose out of a
personal experience. It is this which derives the theoretical component is also essential.
"From the Earth to the blue", is a reflection that portrays, in summary, the development
of this project where the work comes from the earth and the dream. The earth (the
concrete landscape) and blue (the dream), prove to be elements that are interconnected -
and these depend the creative process that inspires me to paint. The natural landscape
has an important role as a means of thinking a way of being.
Is the desire to know and to think artistically nature something timeless in the course of
history? Why, nowadays, it is pertinent to address, in a work of art, the intense search
for natural places? Is the demand of the landscape an exoticism? These were questions
that the development of my work has raised and, therefore, to which I have proposed to
respond, even partially, this reflection on the works that I have come to produce.
Keywords: Landscape, Painting, Ancestral, Serenity, Dream
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Agradecimentos
A realização deste projecto tornou-se possível graças ao apoio e incentivo que os meus
pais me proporcionaram para que eu pudesse dar continuidade aos estudos. A eles, o
maior dos agradecimentos.
O acompanhamento, o apoio, e o incentivo que recebi da professora Ana Mata foram
essenciais no decurso deste projecto. É apaziguador e gratificante ser orientado por
alguém que compreende as minhas aspirações, que sabe dar uma palavras amiga e
criticar construtivamente sempre que é necessário. Desde o início, neste mestrado,
reconheci na Ana a competência, a boa vontade, a vocação, e uma sensibilidade rara.
Estou-lhe grato pelo apoio e amizade que recebi.
Agradeço, também, aos amigos mais próximos que compreendem o valor que a pintura
tem para mim, que me incentivam a continuar a pintar mostrando-se abertos ao diálogo
e partilha de ideias.
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Índice
Introdução……………………………………………………………………………….6
I. Ao (re)encontro da paisagem natural……………………………………………….8
I.1 - Casos de intemporalidade…….…………………..…………………………10
I.2 - Porquê pintar……………………………………………………..………….16
II. Perante a natureza……………………………………………...…………………19
II.1 - Lugares naturais (ou sagrados)……………………………………………..20
II.2 - O geomonumento………………………………………………………..…48
III. Sonho…………....……………………………………………………………….64
III.1 – Recordação………………………………………………………………..68
III.2 – Sonhos…………………………………………………………………….72
IV. Serenidade………...……………………………………………………………..89
Considerações finais……………………………………………………………………95
Referências……………………………………………………………………………..98
Índice de ilustrações……………………………………………………………..……101
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Introdução
“Da terra ao azul” é um título que expõe a relação entre a vivência real e o sonho. O
termo terra remete, não somente para a cor e solidez das paisagens beirãs que exploro,
como, também, para a terra enquanto lugar de origem de onde brotam as obras e onde
assenta quem sonha. O azul evoca o plano do sonho e do inalcançável, sendo uma das
cores mais difíceis de encontrar e reproduzir. O azul é também referência ao céu
inalcançável em direcção ao qual brotam as sementes que a vida gera. Tendo a base, é
preciso o sonho para erguer a construção.
A terra surge como símbolo da solidez, na qual, assenta quem sonha. O momento de
sonhar, se não tiver uma base que o sustente, desfalece por si só. Por outro lado, o
projecto artístico que desenvolvi, assenta nesses elementos acima referidos: na terra e
no sonho. Esses são os pontos fulcrais na definição da minha pintura. Trabalho a partir
de fotografias que recolho nos passeios que realizo pelo campo - na zona de Castelo
Branco e, também, a partir de recordações de sonhos que desenho logo após acordar.
Nos dias em que não é satisfeita a necessidade interior de viver a natureza, quando estou
imerso na cidade e sem a possibilidade de contacto com a mesma, surgem sonhos (em
parte lúcidos) onde viajo e exploro paisagens inusitadas.
O trabalho que desenvolvo depende, por um lado, de uma necessidade de um enraizar e,
por outro, do sonho que confere direção e impulsiona o desenvolvimento de algo (a
obra) a partir das raízes.
Por se tratar de um projecto que brota de uma vivência pessoal, pensado essencialmente
através da expressão plástica e da interacção com a paisagem, menciono, em primeiro
plano, o carácter prático deste trabalho. Os autores e artistas, que me propus a estudar,
foram escolhidos consoante a relevância que tiveram, ao inspirarem o meu trabalho e
enriquecerem os meus conhecimentos. Mais do que evocar textos teóricos, ou fazer um
estudo sobre artistas, esta dissertação tem como objectivo dar a conhecer uma
experiência de pintura. Por meio do relato do percurso que levou à criação das obras,
pretendo que essas sejam compreendidas e dadas a conhecer em profundidade.
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A estrutura da dissertação segue uma ordem semelhante àquela que é a ordem natural do
meu processo criativo, onde a experiência na natureza antecede o sonho e as visões
interiores. As obras serão apresentadas mediante a ordem cronológica e organizadas por
conjuntos segundo as afinidades internas que as agrupam (em acordo com o processo
que as originou). A reflexão organiza-se da seguinte maneira:
No primeiro capítulo: apresento referências num percurso histórico que visa demonstrar
a intemporalidade da paisagem. Posteriormente, debruço-me sobre o porquê de pintar.
No segundo capítulo: refiro o meu processo de trabalho, descrevendo os lugares que
inspiram a prática da pintura e apresentando as obras desenvolvidas, sobre as quais
reflete o texto. No terceiro capítulo: refiro uma breve noção do que poderá ser a pintura
de sonhos, nomeando alguns dos artistas que a desenvolveram; apontarei também a
importância da fotografia e da pintura na capacidade de recordar fisicamente, fixando a
imagem do sonho; seguidamente, apresento o processo através do qual trabalho; reflito
o “porquê” e “como” surge o sonho e, por fim, apresento as pinturas que criei –
relacionando-as com as obras do segundo capítulo. No quarto capítulo, partindo da obra
de Martin Heidegger Serenidade, elaboro uma reflexão sobre a ideia de serenidade que
relaciono com o processo através do qual concebo a pintura.
Esta dissertação engloba a descrição de uma experiência com lugares naturais num
processo que conduz às pinturas. Para dar conta desta vivência criativa o discurso que
surgiu naturalmente foi o narrativo.
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I. AO (RE)ENCONTRO DA PAISAGEM NATURAL
O encontro e reencontro com a natureza parte de uma vontade espontânea de cumprir
um destino definido por paixões interiores. Seria imprudente afirmar a necessidade de
representar a paisagem apenas como vontade de resistir às tendências dominantes do
panorama da arte actual. Defende-se aqui uma necessidade de resistência a modas do
tempo e, também, a ética de uma fidelidade a um caminho próprio. Trata-se uma
resistência necessária para manter algo que confere sentido à vida e que faz parte da
nossa origem. Assim, a atitude de resistir não é a motivação maior para um paisagista
proliferar na sua prática mas, antes, a consequência de uma necessidade interior.
Assumir a necessidade de um reencontro e conciliação com a natureza e com as raízes,
implica seguir uma liberdade que vai em contramão com a rotina comum e não garante
a acomodação a que estamos habituados. (No momento em que nos entregamos à
solitude não é fácil fugir dos nossos instintos, daquilo que somos, nem da vontade
interior. Essa manifesta-se com maior intensidade.)
A busca pelo natural, a necessidade de o contemplar e, consequentemente, de o tornar
memória, é algo derivado de uma sociedade sedentária. Não é por acaso que as
manifestações mais prolíferas de representação da natureza se deram no ocidente (na
Europa) e oriente (na China), onde a sua pintura foi sendo explorada e experienciada
intensamente. Dessa forma, foram-se desenvolvendo, não somente as técnicas de
representação mas, também, a sensibilidade de olhar a paisagem que, no decorrer dos
séculos, foi acumulando valor enquanto objecto de contemplação. Consequentemente,
por causa do desenvolvimento da indústria, a pintura e o contacto com a natureza
despertaram desejos de conservação e protecção.
A ideia de paisagem enquanto intemporal e a necessidade de reconciliação com a
natureza é expressa nos dois sub-capítulos que se seguem da seguinte maneira:
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No primeiro sub-capítulo: são apresentados exemplos de artistas que desenvolveram a
paisagem enquanto tema intemporal e a forma como essa relação, homem – natureza,
coexiste nos dias actuais. No segundo sub-capítulo: a partir de um poema que escrevi,
sobre o “porquê” de pintar, surge uma reflexão sobre a necessidade interior de continuar
e afirmar essa prática.
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I. 1 - Casos de intemporalidade
Aqui, refiro artistas e obras que, no seu conjunto, manifestam a intemporalidade na
pintura paisagística. Mesmo sendo de tempos diversos, entre eles podem-se encontrar
afinidades, não puramente na abordagem, mas na atitude que conduz a que se envolvam
e vivam a natureza enquanto força vital e inspiração. Tal força de vontade e paixão pela
prática (expressa na obra desses artistas) induz a motivação que gera a continuação do
desenvolvimento da pintura. A partir de uma ideia que tomei da pintura chinesa –
enquanto forma de pintar capaz de revelar a essência dos elementos naturais, reflito
como essa ideia está presente na pintura do ocidente. Esta reflexão toma como ponto de
partida a pintura oriental e centra-se na pintura europeia (no romantismo).
Aponto, seguidamente, alguns momentos centrais na exploração e definição da prática
da paisagem como o séc. X, na China, o Renascimento de Dürer, o Romantismo de
Caspar David Friedrich.
Em meados do séc. X, na China, na dinastia Song, houve uma proliferação e
desenvolvimento do género da paisagem sob a influência do neo-confucionismo1.
Pintores como Guo Xi e Fan Kuan desenvolveram, não somente a técnica (usos da
mancha, técnica da escova) como uma visão mais apurada e focada na essência por
detrás das formas dos elementos naturais. Não se tratava da representação mimética
como nós a conhecemos. Neste caso, a obra do pintor leva-nos a compreender a ordem e
relação que existe entre as formas naturais aparentemente caóticas e aleatórias. Por
outro lado, surpreendentemente, a pintura concilia o pintor com a natureza e promove o
equilíbrio necessário na busca pela longevidade. Mesmo formalmente, a pintura chinesa
mostra o equilíbrio da representação do objecto em si e, também, da representação da
sua essência. O claro-escuro surge descomprometido da função de representar com
naturalismo e opera no sentido de tornar as formas apreensíveis para o olhar que se
torna desperto para lhes captar o espírito. Trata-se de uma prática que exige solidão da
parte do artista e uma vontade de (re)conciliação com o natural. Tal prática viria a surgir
1 Filosofia com inspiração budista e taoista, que se afasta da superstição em benefício da razão, ao
conceber a relação do homem com o universo. http://www.iep.utm.edu/neo-conf/
11
mais tarde (de um modo diferente), na Europa, a partir da Renascença, tendo o seu
apogeu no Romantismo.
No caso ocidental, no Renascimento emergente nos países do norte da Europa que aos
poucos se distanciavam da tradição medieval, surgiu um dos mais consagrados artistas,
Albrecht Dürer. Foi um artista pioneiro ao produzir uma obra na qual transparece a sua
individualidade. Enquanto que, em muitos dos seus contemporâneos, era difícil saber
quem era o autor apenas olhando a obra, no caso de Dürer é possível reconhecê-lo
facilmente, sem a necessidade de uma legenda. Os auto-retratos de Dürer, as suas
aguarelas executadas em viagens, abrem caminho para uma arte onde o artista, a sua
vida e visão do mundo são o tema central. Algo que é oposto à arte promovida pelas
elites da época, onde os temas religiosos e mitológicos prevalecem como conteúdo das
obras.
As aguarelas do artista centravam-se, por vezes, na representação de pormenores
considerados banais. Que artista do séc. XVI se lembraria de representar
minuciosamente, numa aguarela, um bocado de prado? Esse é um exemplo entre vários,
de elementos, aparentemente banais, que são destacados em pinturas impressionantes e
belas. No que se refere à paisagem são conhecidos estudos de rochas, árvores, bosques e
vistas.
Nessas pinturas livres nem sempre se reconhece a altura do dia em que Dürer terá
observado as vistas. Por um lado, representam com nitidez os vários elementos da
paisagem, por outro, apresentam uma iluminação difusa que realça a essência dos
elementos que a constitui. Esse facto, de certa forma, lembra o que antes referi acerca da
pintura oriental. O que vemos são formações rochosas e árvores que em muito diferem
daquelas que, com propósito decorativo, eram realizadas na pintura renascentista. Existe
da parte do artista a vontade de querer apreender e compreender as formas e elementos
que constituem, depois, a paisagem como um todo.
Além de Dürer, são diversos os exemplos de artistas que deram continuidade á prática
paisagística no ocidente. O desenvolvimento da pintura de gênero, nos Países Baixos,
no séc. XVII, permitiu o florescimento de uma pintura independente de temas
mitológicos ou religiosos. Foi nesse contexto que surgiu o paisagista Jacob Van
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Ruisdael que denota um olhar naturalista. Mais tarde no começo séc. IXX, o pintor
inglês John Constable inspirava o início de uma nova escola, a Escola de Barbizon,
onde a pintura (iniciada em plein air) beneficiava da observação directa da natureza.
Paralelamente, nesse mesmo século, estabelecia-se o Romantismo com o contributo de
diversos artistas: o poeta Novalis, a pintura de Caspar David Friedrich, John Robert
Cozens, Turner, Beethoven através da música (Sexta sinfonia – Pastorale). Esses foram
alguns dos nomes de pioneiros do romantismo que trouxeram para a arte a sua paixão
pela natureza - e a afirmaram como um tema independente (e não menos válido que os
outros temas). Nesses artistas a natureza era concebida como expressão sublime do
Divino.
Comparando a prática pictórica ocidental com a pintura chinesa que referi ao inicio, é
possível notar que a prática da paisagem oriental, mesmo tendo como base um contexto
diverso e filosofias diferentes das europeias, de alguma forma tem analogias com a
prática paisagística dos pintores românticos que se originou em finais do séc. XVIII.
Nos pintores românticos predominava a concepção da paisagem enquanto forma de unir
a sua visão interior à contemplação do real. Produzem-se assim obras capazes de
representar estados de espírito, sonhos e imagens, que são fruto de um espírito que
buscava, ora o intemporal, ora uma retrospectiva do passado e, consequentemente, um
estado visionário capaz de proferir revelações sobre o destino do homem. Apesar das
diferenças, tal como na prática oriental, esta concepção romântica permite que o artista -
após absorver a alma do lugar natural, na solidão - condense os vários momentos da
observação numa pintura só. Caspar David Friedrich foi pioneiro na legitimação de uma
prática pictórica que, através da união das imagens da retina com as que brotam de uma
sensibilidade interior, deu primazia à expressão singular e visão do artista no campo da
paisagem. Era comum Friedrich juntar vários estudos feitos a lápis de cor perante a
natureza e, a partir desses, compor a pintura final. Isto acontecia num atelier onde as
janelas se encontravam parcialmente cobertas para que entrasse apenas a luz necessária,
evitando-se assim que as imagens do exterior pudessem ser uma distracção para a
actividade criativa2.
2 WOLF, Norbert - Caspar David Friedrich: 1774-1840 : O pintor da quietude. p. 6
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Mostra-se evidente um interesse pela busca da natureza nas pinturas de Friedrich. As
suas paisagens, ao invés de representarem fielmente o lugar, representam mais a sua
essência, um sentido de aura que deixaram no pintor. Existe um sentimento religioso
expresso na hierarquia dos elementos naturais e na referência a cultos primitivos e
pagãos que transparecem a crença e tentativa de alcançar a vida além da vida. (Na
pintura Dólmen na Neve (fig. 1), que aparenta ser uma paisagem comum de um cenário
de Inverno, onde três carvalhos circundam uma rocha, é possível perceber o seu sentido
quando se traduz os elementos em símbolos: os carvalhos denotam longevidade e
regeneração da vida que resiste perante a morte que a cerca, enquanto que o túmulo
megalítico remete para vida espiritual que sucede a vida terrena. Existe diversidade
mesmo nas referências espirituais que podem ser cristãs ou remeter para cultos
primitivos. Tudo isso é retratado em lugares isolados com mínimas referências à
presença humana. De repente é como se a ilusão de que somos gigantes se apagasse de
um momento para o outro. O ser surge imerso na paisagem entre o caos e a ordem, entre
a luz e a penumbra, entre a vida e a morte, mas no estado em que sempre esteve:
sozinho e entregue ao mundo, imerso no universo.
O contexto oposto, o da civilização, o da cidade, surge na pintura romântica enquanto
catarse. Devido à envolvência exaustiva no meio citadino, as almas mais sensíveis
facilmente se apercebem que algo está em falta, mais ainda quando é evidente que as
consequências do excesso de cidade contribuem para a banalização dos mais variados
vícios e solicitações que podem distrair o homem da reflexão. Perante tal visão, a cidade
Fig. 1 – Caspar David Friedrich, Dólmen na Neve, 1807
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apresenta-se como um lugar de decadência e corrupção que afasta o ser da sua origem,
enquanto o distrai.
Não é por acaso que a temática do fim do mundo é recorrente em vários pintores do
romantismo. A pintura de John Martin The Great Day of his Wrath (fig. 2), baseada na
narrativa do Apocalipse bíblico, terá sido motivada por um contexto onde o artista
observou o rápido crescimento da cidade e da indústria londrina. É visível na pintura a
terra a abrir-se, entre terramotos e tempestades, e a engolir massas rochosas colossais e
cidades. Assim cumpre a pintura uma função catártica, quando simula na imaginação do
observador aquilo que poderão ser as consequências do desenvolvimento da
humanidade que suga a vitalidade natureza. Neste caso, a própria terra se vinga e engole
os Homens que outrora dela brotaram. Mostra-se uma espécie de limpeza para repor o
equilíbrio. Ao contrário do que se passa nos dias actuais, no séc. XVIII a ideia de
sustentabilidade não provocaria metade do fascínio na imaginação de uma pessoa leiga
do que a ideia de uma sociedade de progresso e desenvolvimento tecnológico constante.
Hoje, ocorrem com frequência debates sobre o ambiente, pois sofremos as
consequências da alienação num mundo onde cada vez mais se depende da tecnologia e
Fig. 2 – John Martin, The Great Day of His Wrath, 1851 - 1853
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onde habitar nos centros urbanos é a regra geral. O Homem que nasce em cidades não
se considera uma dádiva da natureza. Ou seja, no contexto actual, é muito difícil tomar a
paisagem natural como uma origem à qual pertencemos – e cai-se no facilitismo de a
reduzir a wallpapers e fotografias de parede que a tornam num objecto exótico. Para
algumas pessoas o contacto com a natureza é apenas possível ao fim de um ano de
trabalho, num regime de férias, algo sentido como uma espécie de prémio ganho.
Podemos constatar o exotismo quando, perante a imagem de uma paisagem que
desconhecemos (quase) na totalidade, sentimos curiosidade e fascínio face à novidade.
Esse fenómeno não é integralmente semelhante ao que ocorre na romantização de um
lugar, a qual implica alguma experiência e vivência do mesmo. Nas palavras de
Novalis,“tudo o que é visto à distância transforma-se em poesia: montanhas distantes,
pessoas distantes, acontecimentos distantes; tudo se torna romântico"3. Romantizar a
paisagem implica observá-la à distância, recordá-la com nostalgia e reconhecer que a
natureza é dotada de um espírito próprio do qual fazemos parte. A distância permite-nos
converter os lugares naturais em objectos de contemplação e poesia.
No entanto, a poética e as imagens não são suficientes enquanto substitutas da
experiência em falta e, portanto, surge a necessidade consequente de um reencontro com
a paisagem. Um (re)encontro que há muito existe ao longo da história como procurei
manifestar nos exemplos apresentados. É evidente que há algo de essencial e intemporal
na procura humana da paisagem.
3 http://www.comesaunter.com/2012/01/novalis-georg-philipp-friedrich-freiherr-von-hardenberg-on-
distance-and-the-romantic.html [12/06/16]
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I. 2 – Porquê pintar?
Pintar desafoga o excesso.
Abre o olho da mente.
Raspa o resquício do ego.
Liga a floresta ao espírito.
Compensa alguma ausência.
Despe a mente e a consciência.
Pinta-se porque se ama.
Amar é humano.
Vale a pena a arte.
Vale enquanto há consciência.
Mas se morre a lucidez?
Quando morre, tudo é névoa.
Não me interessa pintar o vago.
É um abismo incerto e perigoso.
Nele vagueia a alma sem cuidados.
Perdida, perdida em triste euforia alienada.
Enquanto houver lugares sem excessos,
horizontes expressos,
e árvores para abraçar,
faz sentido pintar!
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Este poema, escrito antes de iniciar esta dissertação, surgiu perante a questão que me foi
colocada “porquê a paisagem?”. Questão essa que, de certa forma, me incentivou a
expor este amor incondicional pela natureza que é algo que exprimo na pintura. O
poema mostra a pintura enquanto prática que está dependente da experiência e da
vivência que a tornam possível.
Tentar responder à questão “porquê a paisagem?” não é muito diferente da tentativa de
apresentar respostas à razão de viver, passear, respirar, etc. No caso da pintura, na
ausência de uma resposta que a justifique universalmente, como podemos nós afirmar
que essa prática não faz o menor sentido – e que não deve ser continuada?
Existem causas diversas que nos impelem a pintar, mas o desconhecimento
dessas não constitui razão para desvalidar o acto pictórico. É difícil justificar a obra no
momento em que ela surge. Somente com o tempo e observação se percebe com clareza
o que nela está implícito.
Desta forma, encaro a pintura como uma construção viva que se vai revelando e não
apenas como uma mera ideia à priori. Para que a pintura nasça, primeiro, é preciso
viver e respirar o aroma da terra e dela colher os frutos. Não bastam apenas as ideias e
imagens, as quais se revelam ser insuficientes no processo criativo. Sem a experiência
dos pinhais, das serras e dos trilhos incertos que serpenteiam como rios, sem as
memórias da infância, as tardes livres a explorar os cabeços e barrocais solitários, a
cheirar a natureza… sem isso, a vida, tal como o acto de pintar, seria vazia de sentido e,
em muito, incompleta e insuficiente. Restaria apenas a inspiração dos sonhos e a
saudade do campo.
É indispensável que haja florestas às quais possa ligar o espírito, árvores que suscitem a
vontade de as abraçar e de a elas me unir para aprender sobre o equilíbrio em que
sustêm o corpo dinâmico que baila entre o sonho e a vida – entre a terra e o azul. Da
união da natureza interior com a natureza exterior brota o impulso criativo, que, não
somente enriquece o mundo do espírito, como também o concretiza em obra.
Não trabalho a paisagem em torno de si própria, apenas enquanto ideia formal, trabalho
– a enquanto manifesto de experiências e memórias. Deambulo rumo àquilo que amo,
ao que por mim chama, assumo a minha identidade. Pinto porque tenho raízes que se
expandem e delas brota a árvore que medra rumo ao céu vácuo. Do movimento das
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pinceladas, entre a intuição e o rigor, torna-se presente o que antes estava em falta,
preenche-se uma ausência. Reflectem-se, também, as inquietações e calmas
premonições de um espírito vivo (aberto para a vida). Neste caso, a pintura não se limita
ao rigor de representar. Trata-se, nela, de (re)viver a calma, a cor, densidades e energias
da floresta.
Assim, o acto de pintar não se limita apenas à exploração formal da paisagem enquanto
referente, mas é, também, uma forma activa de recriar a sua essência. Esta, no quadro,
conserva uma vida autónoma (o resultado do amor entre dois mundos – o interior e o
exterior) que irradia e contamina com a sua aura. Para esse fim, não basta apenas
recorrer ao efeito visual ou fantástico. A eficácia da obra assenta também no espanto
que desperta em torno de si (contrário à rotina), assenta na transmissão de sentimentos
únicos que o pintor experimenta4 e nas questões que suscita. Numa obra, neste caso,
numa paisagem, quando esta é fruída e pintada com verdade, com unicidade, ao ser uma
parte resultante de um fluxo criativo, passa a conter em si essa vida e aura vivida na
natureza, tornando-se num organismo vivo.
4 Na obra O que é a arte? Tolstoi defende a verdadeira arte surge quando o artista experimenta um
sentimento único e o transmite em obra. O autor chega a ir mais longe: considera falsa a arte que
representa apenas as elites e o seu modo de vida desfasado da realidade - e dá voz aos sentimentos
“comuns” do povo. TOLSTÓI, Lev – O que é a arte? [1897]
19
II - PERANTE A NATUREZA
A busca do intemporal, a vontade ancestral de um reencontro com os lugares naturais e
a expansão da consciência perante o ambiente e o universo que nos rodeiam, são
algumas das motivações interiores que nos levam até à Natureza. No entanto, os
resultados dessa busca interior mostram-se diversos consoante a nossa sensibilidade e
capacidade. O cientista estuda as possibilidades de melhorar a relação entre Homem e
Natureza, o promotor de turismo ecológico tenta sensibilizar turistas e o leigo tenta ser
auto-suficiente e cuida da terra que lhe pertence. Por seu lado, o artista almeja a criação
de obras que expressem e transmitam essa paixão e desejo de religação com a natureza.
Nos sub-capítulos que se seguem, reflito uma relação pessoal perante a natureza que
conduz a obras. No primeiro sub-capítulo são referidos os lugares naturais que
inspiraram em mim a prática da pintura. Narro a forma como os experiencio e registo
apresentando um processo criativo. No segundo sub-capítulo, é abordado o valor
monumental das rochas – que nomeio de geomonumentos – as quais revelam a história
natural, definindo um modo de olhar a natureza. Nesse sub-capítulo, apresento algumas
das minhas pinturas – retratos de rochas – inspiradas nessa acepção da pedra enquanto
elemento perene.
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II. 1 - Lugares naturais (ou sagrados)
A natureza, segundo a ciência e os ecologistas, é indispensável à existência e
subsistência dos seres vivos que nela habitam. Do conhecimento e uso dos seus recursos
depende o nosso progresso enquanto civilização, no entanto, torna-se imperativo saber
explorar a natureza respeitando o seu equilíbrio de modo a permitir a sua regeneração.
Esta é uma noção aceite hoje pelo senso-comum, muitas vezes compreendida apenas na
teoria, carecendo, no entanto, de acções concretas.
Do ponto de vista do artista, a natureza pode ser um referente, a realidade e Vida em si.
A natureza exterior, a natureza interior… várias são as possibilidades a explorar. É
comum haver nos artistas (salvo as excepções) uma sensibilidade à contemplação e a
consciência da necessidade da preservação da paisagem natural. No entanto, quando se
trata de desenvolver uma obra, não são muitos os que a tomam como referente ou
objecto de inspiração. O contexto onde se produz a arte exerce a sua influência, mesmo
que indirecta.
As artes, na sua maioria, estabelecem-se, produzem-se e discutem-se no contexto
urbano. Dentro desse contexto, ao artista, não passam despercebidas as questões e
dilemas da actualidade, a contaminação mediática, os últimos acontecimentos, a
assimilação do global e de valores puramente epocais, relacionados com “modas”.
Nesta realidade, a paisagem natural é apenas uma gota num oceano imenso de outros
assuntos igualmente válidos, entre os quais, há sempre uns que são mais abordados e
outros esquecidos, consoante as inquietações actuais. Se é no meio citadino que se
forjam os discursos sobre a arte é natural que o produto, a pintura, de alguém que surge
na natureza, tenha um tom dissonante e surja com estranheza. Questiono se não existirá
um certo preconceito.
Para um pintor, escolher seguir o caminho de paisagista, implica, muitas vezes, que haja
motivação, inspiração, vocação e uma paixão que desperte no artista maior interesse e
vontade de explorar esse referente, mais do que qualquer outro – e isto acima de todos
21
os restantes temas e assuntos. No meu caso - e isso verifica-se neste projecto – fui
conduzido ao meu modo de pensar por ter nascido em Castelo Branco, uma pequena
cidade a partir da qual é fácil aceder (seja a pé ou de bicicleta) às zonas rurais de campo
e quintas da sua periferia. Por ser uma cidade situada num planalto, é fácil ver-se o
campo e as serras que definem o horizonte. Seria, portanto, precipitado e infundado
afirmar que o meu interesse pela paisagem se desenvolveu, no acaso, ao revirar as
páginas de um qualquer livro de História de Arte.
Junto também o facto de viver na zona limítrofe da cidade. Os passeios no campo com a
família foram marcantes na minha infância. Todos os fins-de-semana, às vezes também
durante a semana, passeávamos de carro até um lugar a que chamávamos “o pinhal”,
que fica a cerca de 10 km da cidade, situado no cimo de um planalto e com vista para o
vale do rio Ocreza. Era um lugar onde a liberdade se fazia sentir, entre brincadeiras com
os irmãos, o andar de bicicleta nos caminhos de cabras ou o subir às árvores e explorar a
geografia do lugar. Quando a criatividade falava mais alto, moldava esculturas de lama
e palha, fazia desenhos riscando as pedras planas de xisto e fabricava, de um modo
experimental, tintas de terra e pedra moída. Gostava incondicionalmente desse lugar
predilecto, da mesma forma que o principezinho gostava da única flor que conheceu no
seu pequeno planeta, por mais belas que fossem as rosas da Terra.
Lembro-me de ter oito anos e de receber uma câmara descartável pelo Natal. Na altura
guardei-a apenas para fotografar a paisagem do pinhal. Fotografei, além das vistas
convencionais, formações de xisto invulgares observadas de vários ângulos (incluindo a
perspectiva que via do cimo das rochas). Algumas imagens ficaram em contraluz - onde
o regato do vale brilha ofuscante. Ainda hoje recordo essas primeiras fotos (que
infelizmente se perderam) com bastante nostalgia. Guardo o pinhal na memória e, por
vezes, sonho com esse lugar.
“O pinhal”, situado na zona de Vilares-de-Baixo (uma pequena aldeia), mostra uma
paisagem típica e rude, como se espera encontrar no interior rural. Zonas de pinhal
crescem espontaneamente nas colinas íngremes e, entre elas, algumas azinheiras e
olivais abandonados entre as estevas e rosmaninho (que deixam o perfume em quem lá
passa). Estas paisagens formam em mim a imagem mental de uma paleta de verdes e
castanhos, por vezes pardacentos, que a luz do entardecer torna mais vivos.
22
A lembrança que guardava de cada passeio inspirava-me a desenhar, ainda em criança,
desenhos de anfíbios e insectos que observava, pormenores de árvores e rochas e a
fisionomia dos regatos que representava em mapas que esboçava representando esse
lugar. Quando desenhava usava a imaginação a partir das memórias, ou seja, as
recordações do “pinhal” e o mundo imaginário (em torno dele criado) misturavam-se.
Era algo que eu desenvolvia de livre vontade.
Esse lugar, para mim, não é apenas natural, é um lugar sagrado onde a natureza se une
ao espírito, desperta os sentidos e a imaginação. Tal dá-se com equilíbrio, sem os
excessos da cidade. Num lugar pequeno como este há sempre algo por ver, viver e
observar. A pintura também vive dessa busca constante por “algo mais” que anseia ser
visto, sentido, expresso e pensado nas diversas cores, da paleta à tela. Assim se
caracteriza essa pequena floresta que molda a imaginação, atenua a ansiedade, serena a
alma e torna-se na sua íntima expressão quando a traduzo em obra.
O tal lugar da infância, um bosque típico, no qual ergui as raízes, foi e continua a ser
uma inspiração e um critério que uso quando escolho (mesmo que intuitivamente)
aquilo que pinto. Esta escolha define a forma como actualmente concebo a pintura e a
paisagem num percurso que considero em constante amadurecimento.
Esta busca intensa pela natureza é uma atitude que costumo procurar na obra de outros
pintores ao longo do tempo. Muitos pintores lidaram com a paisagem e confrontaram-na
na hora de trilhar um caminho. No decurso da história esta ligação mostrou-se em vários
artistas, por exemplo: Claude Lorrain, Jacob van Ruinsdael, John Robert Cozens,
Caspar David Friedrich, Thomas Cole, Albert Bierstadt, etc. No entanto, houve artistas
que, além do interesse por desenvolver a paisagem, demonstraram uma vontade interior
de pintar inspirados pelas paisagens da terra-natal e assumiram, sem complexo, esse
lado (a origem rural) nas suas obras. Cézanne pintou parte considerável de sua obra
influenciado pela paisagem de Provença, tendo também produzido variadas telas que
retratam a Montanha de Saint Victoire. Constable, durante o seu percurso artístico,
mostrou interesse por pintar a paisagem que o rodeava – e muitas de suas telas retratam
a paisagem do condado de Suffolk onde nasceu. O próprio, em 1821, terá escrito:
«associo a minha “despreocupada” infância a tudo o que existe nas margens do Stour.
23
Foi o que fez de mim um pintor – e eu estou grato, quero dizer, pensei tudo aquilo como
quadros antes mesmo de pegar num lápis.»5 Faço minhas estas palavras.
Artistas como Constable e Cézanne são a prova de que é possível conceber uma pintura
baseada nas origens, na terra e nas raízes, e edificar, assim, uma obra com profundidade.
Cada paisagista, na sua época, expressa naquilo que pinta: revelando que viveu aquele
lugar, entre o paraíso e o inferno, que o respirou. Revelando, também, a sua serenidade
e inquietação, seguindo uma intuição que só a maturidade e continuidade da obra
ajudam a explicar; concebendo uma reflexão e visão do seu tempo, que demonstra o seu
lugar no mundo, uma atitude visionária. Por vezes, os artistas reconhecem e assumem as
suas raízes e sentimento que desenvolveram perante o lugar onde cresceram e vêem na
paisagem a expressão da sua natureza interior. Essas são apenas algumas das
motivações diversas que levam um artista a enveredar pelo caminho da paisagem.
Motivações nas quais me revejo.
Nestes últimos anos tenho-me debruçado, com mais foco, na exploração deste projecto a
pintura como forma de expressar a ligação que sinto ter com a natureza, motivado pelo
ancestral desejo de a ela retornar. É algo, um sentimento, que expresso pictoricamente
em suportes tradicionais como a tela e o papel mas, também, em suportes naturais como
a ardósia e fragmentos de xisto, como mostrarei de seguida.
5 Os Grandes Artistas (Neoclassicismo, Romantismo e Realismo) - Constable, Claude Lorrain, Courbet,
Whistler. p.6
24
Fig. 3 - O pinhal, 2015. Fotografia digital
Fig. 4 - O pinhal, 2015. Fotografia digital.
25
Tendo por princípio um desejo de autenticidade, pinto a partir de fotografias que
obtenho em lugares que conheço e onde estive pessoalmente. De outra forma, uma
imagem, mesmo sendo espectacular, se não for vivenciada, corre o risco de ser apenas
um esquema de cores vazio. Considero essencial construir a pintura através da
percepção directa do referente, do lugar. Por esse motivo, antes de chegar a uma pintura,
exploro e passeio livremente com a câmara, sem premeditar registar determinado tipo
de fotografia. Depois, passado o dia, revejo as imagens e, entre as que não me passam
indiferentes, edito várias - já a pensar na possibilidade de as poder pintar. Entre as
imagens já preparadas, antes de alguma ser esboçada na tela, existe hesitação entre uma
ou outra. Só depois se inicia a pintura. Tudo começa com um simples passeio, que pode
durar até ao fim da tarde – a fase que considero predilecta para a captação das imagens
pela particularidade e intensidade das cores.
Durante estes últimos dois anos os passeios de bicicleta tornaram-se mais frequentes e
inspiradores. Voltei a sentir a liberdade oferecida pela livre mobilidade. Em geral,
desloquei-me por estradas e trilhos para o campo e pequenas aldeias a cerca de 5 km a
10 km da cidade, sobretudo para o vale do Rio Ocreza (onde se situa “o pinhal”) e para
a zona dos Maxiais.
Retomando os meus gestos da infância, além de pintar em tela, comecei também a usar,
como suporte, rochas de xisto planas. Esse processo não foi novo para mim, pois
recuperava algo que já fizera antes, com a diferença de que, enquanto na altura
desenhava animais e plantas, agora usava a rocha para nela revelar a paisagem. Por ser a
pedra um elemento próprio do solo, assumi que para representar a terra, bastava apenas
pintar o céu na ardósia e deixar por pintar o resto que por si só contém as cores originais
da terra.
26
Fig. 5 – Fragmento de céu e terra, 2015. 10 x 15 cm. Óleo sobre xisto.
Fig. 6 – Pinhal solitário, 2015. 10 x 15 cm. Óleo sobre xisto.
27
Fig. 7 – Azul e Terra, 2015. 10 x 15 cm. Óleo sobre xisto.
Fig. 8 – Brisa, 2015. 10 x 15 cm. Óleo sobre xisto.
28
Fig. 9 – Mato, 2015. 10 x 15 cm. Óleo sobre xisto.
Fig. 10 – Neblina, 2015. 5 x 15 cm. Óleo sobre xisto.
29
Após ter experimentado pintar as lascas de xisto, ocorreu-me fazer o mesmo mas em
lugares naturais. Conforme pensava nessa possibilidade, vinha-me à ideia lugares onde
poderia fazer intervenções. Lembrei-me de pinhais nos quais havia florações de xisto,
muros em ruínas, terrenos de cultivo abandonados… Pensei nessas hipóteses e decidi
experimentar um processo mais imprevisível de pensar a pintura.
Fig. 11– Quadro, 2015. Intervenção na natureza. Acrílico sobre xisto.
30
Fig. 12 – Céu na terra, 2015. Intervenção na natureza. Acrílico sobre xisto.
Fig. 13 – Céu na terra (pormenor), 2015. Intervenção na natureza. Acrílico sobre xisto.
31
Fig. 14 – Sem título, 2015. Intervenção na natureza. Acrílico sobre madeira.
Fig. 15 – Queda, 2015. Intervenção na natureza. Acrílico
sobre xisto.
32
As imagens anteriores apresentam intervenções directas na paisagem que assumem a
manipulação das caraterísticas do espaço, conjugando a natureza com o artifício (neste
caso a tinta). O céu – e a sua representação artificial através da cor – fundem-se gerando
uma só imagem na qual, por vezes, se confundem. Dessa forma a tinta confere falsa
leveza e invisibilidade a formas densas e presentes, como as rochas e as árvores, neste
caso. A obra surge do contraste entre a representação do céu azul e a presença perene da
pedra. Isso é também exemplo de que conceber a paisagem diretamente na natureza gera
uma experiência onde a intuição e a reflexão se conjugam. Deixa de existir aquele
momento perturbador de separação do contacto com a natureza com o momento em que,
finalmente, se trabalha a paisagem no estúdio. Assim, as ideias manifestam-se
diretamente na experiência com o real.
Pensar a pintura directamente a partir dos lugares permitiu-me ver o processo criativo
de uma forma menos linear. A forma como procurei esses locais também me conduziu à
reflexão. Sendo que eram lugares a cerca de 5 km da cidade, percorridos por caminhos
de terra com pouco movimento, foi possível observar um percurso, de forma lenta e
detalhada, tendo-se tornado esta viagem uma busca serena. Durante o percurso para um
destino, com atenção, descobrem-se outros caminhos e lugares a conhecer, outras
formas e enquadramentos. Dessa forma expande-se a noção de espaço e as raízes que
alimentam a imaginação. Por esse motivo, mais tarde, depois destas intervenções na
natureza, senti a necessidade de tentar usar este processo também para beneficiar a
pintura que até então realizara no atelier. Era uma necessidade de proximidade que
carecia de uma solução – que viria a encontrar mais tarde.
Os passeios e recolha de registos, que levei a cabo no verão de 2015, levaram-me ao
campo com mais frequência e a captar as dinâmicas dos fenómenos e cores dos
elementos naturais. Consequentemente, comecei a identificar-me menos com a paleta de
cores saturadas que antes usava e à qual me restringia. Por ter voltado a esse contacto
com o natural, o sentimento que antes era de saudade (vindo de alguém que
desesperadamente queria reunir-se com a paisagem) deixou de ter o mesmo peso pois
comecei a sentir mais dentro de mim a vida das florestas, rios, rochas íngremes e a
imaginação a fluir. Antes, ao acentuar as cores com saturação, estava a reduzir a minha
visão do lugar a uma mera impressão expressiva. E, assim, reduzia a rocha, a árvore, a
nuvem a meros objectos exóticos e apelativos, quando, na verdade, são elementos que
33
valem pela sua presença única (e por vezes monumental) que lhes é característica.
Concluí que não estava a exprimir aquilo que pretendia e passei, por isso, o resto das
férias sem pintar e apenas a observar o que via enquanto estava imerso nos passeios.
Conforme dei continuidade a esses momentos, em que disfrutava daquilo que observava
de forma espontânea e sem compromisso, fui ganhando uma nova percepção da
paisagem. Enquanto antes via os lugares e os momentos do dia de forma mais
fragmentada, depois passei a relacionar os lugares que ia conhecendo entre si, formando
um mapa, e observei a mudança lenta da luz do dia para a noite de forma mais atenta.
Voltei a experienciar situações que há anos não experimentava. Passei a captar as
fotografias em momentos específicos e tornei o processo algo mais cíclico e fluido.
Observei com detalhe as nuances que separam o dia da noite. Deambulei pelos pinhais
às vezes só com a luz estelar, em dias de lua nova. Não sentia a menor ansiedade nestes
dias intensos, estava livre, com o espírito mais estável e sereno. Repetidamente
questionei: sem tudo isto, se a vida fosse apenas a sociedade, a cidade e o Homem, que
sentido teria vivê-la?
O que se passou nesse Verão despoletou em mim a vontade de voltar a pintar, só que,
desta vez, de uma forma mais fluida e segura. Não sabia exatamente que imagens iria
começar a pintar, nem visualizava qual seria o resultado, apenas tinha que pintar para
dar continuidade no atelier a tudo o que vivi nesse Verão. Comecei a esboçar sobre
novas telas, imagens recolhidas que escolhi de forma intuitiva. Desta vez, optei por
trabalhar também em telas de pequeno formato, procurando produzir um trabalho mais
íntimo, sem a pretensão de o tornar vistoso. Mesmo a paleta de cores tornou-se mais
simples e pintar deixou de ser uma busca feroz pelas cores puras e florescentes, para
passar a incluir cores mais neutras (sem recorrer ao preto).
As pinturas que aqui apresento foram motivadas pelo que absorvi. Revelando várias
situações, diferentes perspectivas são apresentadas: seja uma visão territorial,
contemplativa, ou um olhar liberto… Em geral, verifico uma tendência para a
contemplação, algo que implica um deixar-se levar pela experiência em si, sem a
necessidade de premeditar um resultado ideal.
34
Assim, a imprevisibilidade torna-se um factor determinante num processo onde
presenciar a passagem do tempo (no lugar) é indispensável para que o pensamento
pictórico se inicie. Tenho isso em conta quando, após iniciar um passeio, deixo que o
instinto me guie junto com o olhar, por entre os pinhais, no momento em que registo
algumas fotografias. Sem essa experiência – esse intocável imprevisível - uma imagem
pouco é em substância para me motivar a levar a cabo uma pintura.
Também não me basta que a fotografia seja impressionante. É necessário, primeiro, que
essa evoque um sentimento e momento singular que experimentei espontaneamente e
onde o olhar se mostrou livre. “ Para mim, as fotografias de paisagem (…) devem ser
habitáveis e não visitáveis. (…) Este desejo não é nem onírico (…) nem empírico (…);
ele é fantasmático, liga-se a uma espécie de visão que parece levar-me para a frente,
para um tempo utópico, ou levar-me para trás, para não sei que parte de mim mesmo
(…)”6, escreveu Roland Barthes. Seguindo a sua ideia, procuro lugares “habitáveis”
como “o pinhal” da minha infância – o tipo de lugar e região onde se poderia
permanecer uma vida e a partir dele gerar as obras mais variadas. Uma ideia que vai ao
encontro da experiência, pois, recentemente, nas tardes em que passeio de bicicleta,
costumo observar que os lugares que me cativam a permanecer – seja uma vista, um
pinhal, um ribeiro ou uma aldeia – são aqueles que evocam essa habitabilidade e,
consequentemente, levam à pintura. A existência do lugar antecede o artista e todos
aqueles que antes o habitaram, exploraram, antecede os que reconheceram a sua beleza
e nele manifestaram o seu carácter. Por isso esse lugar torna-se sagrado.
6 BARTHES, Roland – A Câmara Clara. p.62
35
Fig. 16 – Serra da Estrela, 2015. 40 x 50 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 17 – Serra de Gata, 2016. 30 x 40 cm. Acrílico sobre tela.
36
Fig. 18 – Sem título, 2016. 20 x 30 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 19 – Sem título, 2015. 50 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
37
Fig. 20 – Sem título, 2016. 50 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 21 – Sem título, 2016. 40 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
38
Fig. 22 – Sem título, 2016. 40 x 60 cm. Acrílico sobre Tela.
Fig. 23 – Sem título, 2016. 30 x 40 cm. Acrílico sobre tela.
39
Fig. 24 – Sem título, 2016. 50 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 25 – Depois das chamas, 2016. 40 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
40
Além desse lado contemplativo e intemporal (presente em vistas, retratos de rochas,
caminhos em terra e pinhais), algumas pinturas apresentam sinais do tempo presente
que reflectem o estado do interior rural. Situações essas sugeridas nas pinturas
reproduzidas acima, onde se vêem árvores despidas e mortas outrora por um incêndio;
muros prestes a colapsar em propriedades abandonadas; um pequeno montado onde o
terreno, ocupado por densas estevas e tojos, poderá sujeitar-se a futuros incêndios;
eucaliptais indiscretos; alguns pinheiros isolados que se estabeleceram na terra pobre e
sujeitos a pragas descontroladas. Observar situações como estas é algo que, de certa
forma, me preocupa e, por vezes decepciona: ver que a paisagem é concebida e
explorada apenas segundo uma perspectiva económica a curto prazo e considerando as
conveniências do momento. É comum ver-se o campo como algo “menor” - que só vale
quando gera riqueza imediata e, dessa forma, descartar-se a preocupação de o conservar
e de gerar benefícios a longo prazo para as populações e para o ambiente. A forma
como a natureza é tratada, e mesmo a relevância (ou irrelevância) que tem no campo das
artes, reflecte muito sobre os valores de uma sociedade.
Os lugares que percorro, em maior ou menor grau, estão sujeitos a infortúnios. Na zona
dos Machiais, de solos pobres e propriedades ao abandono, os poucos pinheiros
solitários, sujeitos ao abate, aos incêndios e às lagartas, vão sendo substituídos pela
cultura intensiva do eucalipto. Mesmo “o pinhal” da minha infância não saiu imune ao
recorrente fogo posto. Em 2009, um incêndio destruiu mais de 50% da floresta.
Pinheiros e azinheiras (algumas centenárias) arderam por completo. Os poucos
pinheiros que restaram foram abatidos e a zona tornou-se, em maioria, num deserto de
estevas e tojos. Recentemente, tais terrenos foram lavrados e deram lugar a um novo
eucaliptal. Esse foi um acontecimento que, de certa forma, me revoltou. Entristeceu-me
ver num estado arruinado o lugar das minhas inspirações e recordações mais positivas.
Esse sentimento foi explorado numa pintura (figura 25) que retrata uma pequena parcela
de terreno, junto a um pequeno ribeiro, uma pequena região abandonada, com as árvores
secas e mato descontrolado. Continuarei a revelar a minha consciência destes lugares
em futuros quadros.
41
Trabalhar pictoricamente a paisagem, a terra e as origens, levou-me, também, a
continuar a pintura em ardósias de xisto mas, agora, pintadas também com pigmentos
naturais de rochas moles desfeitas num almofariz, ou seja, minérios que podem ser
misturados com acrílico transparente. Daí resulta uma tinta natural mas de fácil fixação.
Tal esforço obedeceu a uma tentativa de pintar paisagem com os elementos que a ela
pertencem (como as rochas neste caso) e teve os seus resultados positivos, sobretudo
porque foram imprevisíveis.
A tinta de xisto, que geralmente aplico em ardósias e papel, foi também utilizada numa
das pinturas acima referidas (figura 23) para modelar a forma das pedras representadas
dentro da tonalidade cinzenta. Outra tinta, também utilizada nas ardósias e desenhos, foi
a tinta do cogumelo Pisolithus tinctorius, tradicionalmente usado para tingir têxteis, mas
Fig. 26 – A terra onde se situava “o pinhal”, 2016. Fotografia digital.
42
funcional, quando usado como tinta de aguarela ou misturado ao acrílico. Essa tinta
permite, dentro de uma gama de castanhos, obter transparências e gradações de cor
subtis ao ser um pigmento natural bastante fino.
Fig. 27 – Malhoeira, 2016. 10 x 15 cm. Acrílico sobre xisto.
43
Fig. 28 – Azinheira, 2016. 10 x 15 cm. Acrílico sobre xisto.
Fig. 29 – Azul e Terra, 2016. 15 x 20 cm. Acrílico sobre xisto.
44
Desse processo resultaram as pinturas acima que, mesmo denotando uma representação
mais livre, em essência seguem os temas antes mencionados. É representado, não
somente a vegetação natural mas, também, rochas e marcos territoriais de xisto (figuras
27, 28 e 29) que mostram a intervenção humana. Na figura 29 um dos marcos
territoriais está pintado de azul (a única cor artificial aplicada na pedra). Nesta pintura
representei uma das intervenções que realizei no ano passado. Aqui, a cor azul dá a
ilusão de imaterialidade e leveza, num material denso como a rocha (tal como acontece
na imagem da instalação original). No entanto, enquanto que, na situação real, o azul
está em harmonia com os verdes da paisagem (mesmo que de forma artificial), o azul
pintado na ardósia castanha-avermelhada contrasta com a tonalidade quente do fundo e
destaca mais a artificialidade da sua presença. Tal não ocorre por acaso, o azul do céu é
uma cor que raramente se encontra na natureza.
Fig. 30 – Leonardo da Vinci, A virgem dos rochedos, 1494
- 1508
45
Historicamente, o azul terá sido uma das últimas cores a ser reconhecida e descrita
como distinta das outras. A descoberta do pigmento (a partir do lápis-lazúli)7 terá
permitido a possibilidade de representar a cor, sendo possível distingui-la
conscientemente de outras, e atribuir-lhe um nome. A igreja católica ao atribuir à
imagem de Maria um manto azul, contribuiu para que a cor se tornasse presente na
consciência a nível colectivo, com associações a uma ideia de pureza, espiritualidade e
infinito.
Na obra A virgem dos rochedos (figura 30), de Leonardo da Vinci, aquilo que mais se
destaca, além dos corpos em si, é o uso selectivo do azul. Aparece na paisagem de
fundo e nas vestes que contrastam com o castanho sóbrio e ligeiramente avermelhado
dos rochedos. O azul demonstra ser uma cor aprazível à vista.
O azul celeste costuma estar presente na minha paleta. Só há pouco tempo tenho vindo a
desvendar a razão dessa preferência. O azul celeste sempre foi a minha cor favorita –
talvez por ser uma tonalidade calmante que se destaca em relação às outras, sem ferir a
vista. Reflectindo, acredito que a minha experiência na natureza, e a influência da
cultura, contribuíram para que a escolha dessa cor fosse também simbólica.
Intuitivamente, costumo associar o azul à paz, à serenidade e ao sonho. Esse rectângulo
azul pintado no xisto sóbrio - no meio da representação de uma paisagem igualmente
sóbria - abre uma porta para outra dimensão, uma janela para o imaginário prestes a
revelar a sua natureza própria na tonalidade serena, algo próximo do sonho. Essa pedra
é, pelo menos até agora, a pintura que melhor reúne, numa síntese, o azul e a terra, o
sonho e o real, o claro-escuro e contraste entre cores frias e quentes.
Sempre tive um interesse pela exploração de contrastes entre valores opostos: algo que
se revela na conjugação que faço com as cores complementares, através das quais
estabeleço a dinâmica cromática da presença dos elementos naturais na pintura.
Costumo transpor para a pintura as chamadas “cores fisiológicas” definidas por Goethe
como próprias do olhar. Na Doutrina das cores8, este autor estabelece a distinção entre
as cores fisiológicas (que dependem da interpretação que o olhar realiza ao processar o
7 https://www.dunnedwards.com/colors/specs/posts/the-history-and-science-behind-the-color-blue
8 GOETHE – Doutrina das cores.
46
estímulo), as físicas (intrínsecas aos objectos) e as químicas (incomuns na natureza e
fabricadas artificialmente). É comum, para mim, a constatação das cores fisiológicas
quando, ao passear à luz amarela-alaranjada do entardecer, noto como as sombras
projectadas pelas árvores e penedos de granito se apresentam azuis. No entanto, quando
o olhar, ao invés de observar o conjunto da paisagem, se aproxima e se fixa apenas na
sombra projectada pela rocha, a sombra revela ser incolor e já não aparenta mais uma
tonalidade azul. Tal ocorre pois o olhar, ao interpretar os estímulos que recebe,
organiza-os por contrastes e oposições. Assim se estabelece visualmente que de uma luz
quente segue-se uma sombra fria. Também importa notar a influência que, no conjunto,
a luz azul, irradiada pela atmosfera, tem na cor das sombras. Torna-se mais óbvia a
presença dessas leis que regem o olhar quando se constata que, no pôr-do-sol, na
paisagem de Marte, onde a atmosfera é avermelhada, a luz do sol se apresenta azul e
pálida. A cor constitui uma natureza quase-própria que une e concilia o olhar com o
universo.
Outro ponto importante da Doutrina das cores é a referência que faz à visão humana, ao
referir como o olho tenta reconhecer e encontrar na natureza a totalidade do espectro
cromático naquilo que lhe é observável. Não é por acaso que o arco-íris é considerado
universalmente belo pois representa, em síntese, as cores visíveis numa gradação
harmoniosa, sem que haja quebra entre as tonalidades. O gosto geral por pinturas com
um claro-escuro e jogo de cores complementares bem elaborado é derivado deste
fenómeno, no qual o olho tenta buscar a totalidade das suas possibilidades (a
conjugação dos opostos)9. A Doutrina explica também porque é que uma pedra de xisto
policromado não passa despercebida ao olho que a encontra nos amarelos-torrados, nos
castanhos-vermelhos e cinzentos frios, ou seja, entre todas as cores visíveis. Tinha a
ideia de que existia xisto azul, no entanto, desde que comecei a experimentar fazer
pigmentos, a desfazer no almofariz as amostras que, no contexto do pinhal, me pareciam
azuis, o mais próximo do azul que consegui foi obter um tom cinza, ligeiramente frio
quando comparado com os cinzentos quentes. Tal deve-se ao fenómeno das “cores
fisiológicas” antes descrito.
9 A obra Vesuvius in eruption, with a view over the islands in the bay of Naples, do artista Joseph Wright
of Derby, além de monumental e invulgar, revela o referido, como tive a possibilidade de presenciar. Do
lado esquerdo da tela, o magma avermelhado, que parece estar vivo, escorre e solta fagulhas, literalmente,
prestes a saírem da pintura. No lado direito, em tons azuis, é a vista para o mar que é realçada pela luz
pálida da lua cheia. Esta obra é um exemplo de aplicação dos princípios descritos na Doutrina, sendo
óbvio o jogo das complementares (laranja-avermelhado e azul).
47
A cor tem também uma relação próxima com os símbolos que a usam, operando,
também, na percepção. O facto de recorrer com frequência a uma paleta de tonalidades
frias está ligado ao sentimento de paz, de serenidade e, também, de uma rara euforia.
Imprimo nas pinceladas, mais do que a aparência, o estado de espírito que me desperta o
lugar. Apesar de ser dominante uma paleta fria, recorro ao contraste entre cores
complementares no sentido de destacar os elementos naturais que, entre si, formam uma
hierarquia: a terra e as rochas sólidas em tonalidades neutras ou quentes, a vegetação em
tons verdes em afinidade com o azul do céu. Este é um padrão geral que verifico quando
observo em conjunto as várias telas e não uma regra rígida que sigo, uma vez que
valorizo uma dinâmica. No entanto, um significado não está de todo ausente, mesmo
quando a escolha de um enquadramento se mostra mais instintiva e menos premeditada.
A paisagem, por se tratar de uma forma de perspectivar a natureza à imagem humana,
funciona como espelho do carácter de quem a busca e manifesta. “Nada é mais moral do
que uma paisagem. Se a alma é uma escolhida, todas as metáforas secundárias que
advêm dela vão encontrar-se sob a sua dependência – os maus sentimentos são ervas
daninhas que se têm de arrancar, trigo e joio, aveia sã ou estéril, espíritos loucos ou
disciplinados, sombras frescas ou fingidas, alturas da vida e das estações, regatos
exauríveis como a inspiração, água que repousa e pedra que rola (…)”10
, refere Anne
Cauquelin no texto A invenção da paisagem. Quando evocamos a cor, a serra
ascendente, a planície, a árvore velha, evocamos a paisagem – a qual é composta por
elementos, símbolos e metáforas e, entre todos os dados, estabelece-se uma coerência
interna. Harmonia por afinidade, contraste por oposição – há uma linguagem que
aprendemos por via indirecta, um saber que mesmo os mais leigos aplicam sem saber.
Na vivência da natureza evocam-se símbolos adquiridos e formam-se símbolos novos.
Estes podem tornar-se numa linguagem, num código colectivo, num filtro através do
qual vemos e damos a ver.
10
CAUQUELIN, Anne – A invenção da paisagem. p.117.
48
II. 2 - O geomonumento
Quando se fala em geomonumento, o termo evoca, não somente o monumento em si
mas, também, a sua especificidade enquanto formação natural reveladora de um passado
geológico (geo), a marca de um registo sobre a Terra. O geomonumento revela uma
história que nos antecede e que pode ser desvendada numa floração rochosa, no leito de
um rio, por exemplo.
No momento em que se reconhece, numa formação natural, um valor monumental,
surgem implícitos valores estéticos, éticos e científicos. Na estética inclui-se a
contemplação do natural que remete para a nossa origem – e que é capaz de serenar e
equilibrar sentidos. As rochas são, também, objectos de variadas concepções simbólicas
relacionadas com a experiência que o homem tem com o espaço; os valores éticos
sobressaem quando reconhecemos que certos monumentos naturais, pela sua revelação,
unicidade e identidade cultural devem ser preservados/ intocados; no campo científico
estas formas rochosas destacam-se pois detêm informação sobre a formação e mutação
da Terra (antes e depois da nossa origem enquanto espécie humana).
Por uma questão de foco, a abordagem ao geomonumento tomará essencialmente uma
perspectiva estética. É possível aclarar o que interessa apontar: uma simbólica do
monumento natural; a ideia de pedra como suporte de pintura; a relação do
geomonumento com o sagrado; e a pedra enquanto símbolo da origem, ao ser um
elemento relacionado com uma noção de queda e ascensão da civilização. Este
interesse, aparentemente desviado dos temas artísticos, surge numa relação directa com
o meu projecto de pintura. Sobretudo com aquilo que me desperta o olhar. Aqui foco
aquilo que se pode considerar como um elemento de edificação da civilização: a pedra.
Quando me debruço sobre uma questão relacionada com o intemporal, como a
monumentalidade na natureza, estou a reflectir sobre o meu trabalho plástico, a
compreender melhor o que essa prática envolve, questionando o seu significado. Como
referi no subcapítulo anterior, as experiências no pinhal motivaram-me a tomar a
49
paisagem como referente e a insistir na obstinação dessa prática. Junto a isso a
curiosidade de observar as cores dos elementos naturais e a necessidade de ter um
elemento de recordação dessa experiência. Nesse sentido fui colecionando, também,
amostras de xisto com diferentes variações de cor e textura. Trata-se de uma memória
mais estimulante e concreta que a fotografia. Ao analisar que, já na minha infância,
colecionava pequenas ardósias de xisto policromado para conservar a recordação de um
pinhal predilecto, pode-se deduzir um interesse marcado por esta forma de monumento.
Tal revela a existência de um critério que hierarquiza os materiais: escolhi um material
permanente e denso, como a pedra, para simbolizar uma memória intensa e duradoura.
As rochas constituem o esqueleto da terra, são o elemento mais permanente e resistente
à passagem do tempo (como nós o entendemos). Cem anos - na história da Humanidade
- representam um conjunto de mudanças e rupturas. Em termos geológicos - na
perspectiva da história natural - pouco significam. As rochas, como as conhecemos,
antecedem a existência e evolução do Homem – existem independentes da nossa
presença. Tratam-se de um elemento de mutação lenta.
Quando observo actualmente “o pinhal” da infância, verifico que o desaparecimento da
floresta, devido ao incêndio, alterou radicalmente a forma da paisagem. Esta, após a
plantação do eucaliptal, tornar-se-á num lugar irreconhecível e antagónico à memória
bucólica e pitoresca que conservo. No entanto, independentemente da mudança e
destruição, nesse lugar, as florações de xisto colossais permanecem tal como sempre as
encontrei, simbolizam e relembram-me a memória de um lugar que hoje existe apenas
no imaginário. A rocha é o único elemento que preservou a forma original e
permaneceu imune à destruição do fogo. É o testemunho concreto que sobrou de um
paraíso que hoje não existe.
Nas pinturas reproduzidas seguidamente (nas figuras 31 e 32) retrato formações
rochosas, enquanto prova viva da permanência perante as fatalidades que sofre a
natureza. Estas rochas, resistentes à acção humana, constituem a antiga base que
sustenta os bosques, são de resistência. Uma dessas formações de xisto que pintei
(figura 32), foi também uma estrutura natural, onde, em criança, brincava aos castelos.
De facto, essas rochas de xisto têm a forma primitiva do arquétipo da fortaleza - e era
50
também em cima delas que descansava, sentado a contemplar a vista em redor e a
passagem lenta do dia. Era uma espécie de refúgio.
Fig. 31 – Sem título, 2015. 30 x 40 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 32 – Miradouro-fortaleza, 2016. 60 x 90 cm. Acrílico sobre tela.
51
Associar a rocha à fortaleza, não é uma visão fantasiosa. A própria natureza mostra
algumas situações que vão ao encontro dessa forma de pensar. Na periferia de Castelo
Branco, a caminho de Idanha-a-Nova, entra-se numa zona onde o granito é dominante e
onde alguns carvalhais se mantêm nos terrenos que antes eram usados para cultivo e
pastagem. Verifica-se que nas partes do terreno não-cultiváveis, ocupadas por rochas de
granito, sobrevivem os carvalhos (geralmente agrupados) e alguns sobreiros. Essa terra
mais rochosa, entre os penedos, constitui um refúgio para as poucas árvores. Outro
exemplo: nas Portas de Ródão, nos cabeços rochosos mais íngremes, mantém-se uma
floresta mais selvagem (de desenvolvimento espontâneo) inacessível à presença
humana. Vê-se como as rochas protegem algumas árvores.
A pedra pode ser vista de várias perspectivas: a geológica, que a caracteriza como um
objecto da história natural; ou a arqueológica, que vê na pedra um meio através do qual
o homem edificou a civilização, a cultura e a religião (algo notório a partir do
sedentarismo). O “Dicionário dos Símbolos”11
, explica a sua simbólica do ponto de
vista universal – afirma-se que a pedra erguida é símbolo de fertilidade e o dólmen uma
habitação dos antepassados. As restantes associações, presentes nesse dicionário,
apresentam-se diversas: a pedra bruta é um símbolo da liberdade e a pedra talhada é
símbolo da servidão; a pedra bruta enquanto perfeição do estado primordial. Segundo os
Omahas12
, por exemplo, uma pedra negra representa a tempestade, enquanto que um
seixo translúcido é o símbolo do poder da água.
O caso dos Omahas, que vêem na pedra negra a representação e símbolo da tempestade,
traz implícita a noção de paisagem (sendo a tempestade um fenómeno meteorológico
colossal que interfere no espaço natural) e relembra-me, de certo modo, a associação
que estabeleço entre o desenho natural das rochas de xisto e a paisagem. Relacionar a
pedra com a montanha, ver numa ardósia a representação de um céu, envolve a
associação e relação entre objecto e experiência: é a imaginação a trabalhar a
informação cruzada. Desta articulação despertam os símbolos. Não é por acaso que se
atribuem nomes às rochas com formas peculiares: Pedra do Urso, Portas de Ródão,
Portas de Almourão, Penedo Mosqueiro, etc.
11
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos símbolos : mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. 12
Os Omaha são uma tribo nativo-americana que reside actualmente no nordeste do Nebraska e em
Iowa ocidental , nos Estados Unidos. https://www.britannica.com/topic/Omaha-people
52
Seja o valor sentimental, a experiência enquanto geradora de símbolos, as associações e
metáforas presentes no modo como atribuímos nomes a rochas com formas invulgares e
imponentes, tudo isto demonstra, em si, uma noção de paisagem. Através desta – uma
operação de linguagem que constrói a percepção mediante certos critérios –
reconhecemos dentro do vulgar o peculiar e projectamos uma estrutura do pensamento
na natureza que nos envolve. O valor estético que atribuímos aos elementos naturais
contribui para a consciência e conservação do geomonumento.
Quando um lugar reúne vários geomonumentos, seja formações rochosas invulgares ou
pontos de interesse geológico, estamos perante um geossítio. Por exemplo,
recentemente, em Castelo Branco, o Barrocal, constituído por penedos de granito com
formas raras e carvalhal, foi recentemente considerado um geomonumento e, também
um geossítio.
Neste caso, existe um interesse do pondo de vista ecológico e, também, geológico.
Trata-se de uma paisagem invulgar e rara junto a uma cidade onde a rocha-mãe é o
xisto. Um interesse estético entra também nesta equação. A curiosidade que a forma dos
penedos desperta em quem por lá passeia e explora o sítio é evidente.
Outro ponto interessante de observar, também relacionado com o que observo neste
lugar é a tendência que os passeantes manifestam de parar no cimo do monte, de
subirem os penedos e aí se sentarem a observar a vista e descansar. Algo que não
acontece na parte baixa do barrocal, raramente frequentada. O simbolismo da rocha
sólida, geo-sítio, está implícito no acto quase automático de, no cimo do monte,
subirmos ao penedo para nos sentarmos, sentindo-nos no ponto central do território.
Reduz-se assim uma vulnerabilidade perante a natureza e reorganiza-se o caos num
panorama. Por outro lado, o acto, surge como acção contemplativa de reconhecimento
da real dimensão do Homem inserida no universo colossal. A obra O viandante sobre
um mar de névoa (figura 33), de Caspar David Friedrich, retrata essa visão que concilia
a dimensão humana perante a imensa dimensão natural, o lugar do Ser na Natureza.
53
Fig. 34 – Sem título, 2016. 40 x 30 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 33 – Caspar David Friedrich, O viandante
sobre um mar de névoa, 1818.
54
Decerto a experiência ancestralmente partilhada e vivida no confronto com os
elementos naturais, levou ao surgimento dos símbolos, arquétipos e figuras da
linguagem como hoje a conhecemos. No momento em que reconhecemos um lugar,
uma forma natural, como sendo especial e tendo valor estético, está presente essa
intuição, esse conhecimento ancestral que nos foi transmitido a um nível indirecto
inconsciente. Assim como, no passado, louvámos figuras míticas e heróis que
destingimos entre os demais, através de monumentos, também herdámos a capacidade
de projectar a nossa visão na natureza e de reconhecer o que nela há de excepcional,
aquilo que se destaca entre os restantes elementos, como os geomonumentos.
Essa monumentalidade que só os elementos naturais podem moldar, tem sido um tema
recorrente da minha pintura. Demorei algum tempo a seguir essa motivação de retratar
as rochas, talvez por preconceito. Até recentemente, tomei o geomonumento como um
assunto pouco relevante para a pintura. Agora compreendo a importância do
monumento natural na definição da forma como concebo a paisagem, tendo em conta
um valor sentimental (no caso do “pinhal”) e, também, um valor cultural.
Essa mudança de perspectiva surgiu num período de férias em Castelo Branco (em
Agosto de 2015). Tinha por objectivo passear e recolher registos de lugares, vistas,
Fig. 35 – Sem título, 2015. 30 x 40 cm. Acrílico sobre tela.
55
árvores e rochas. Nesses dias, além de descobrir novos trilhos entre os pinhais, recolhi
imagens de xisto em lugares onde máquinas perfuraram a rocha para a construção de
estradas e terraplanagens. Nesse limiar da zona industrial, consegui os registos
fotográficos mais inesperados: os de lugares onde o xisto quebrado revela a sua
geometria quadrangular, assumindo formas que lembram montanhas. Num desses
terrenos consegui a captação fotográfica de situações (figuras 36 e 37) onde, em
primeiro plano, aparece uma rocha alaranjada de xisto que lembra a montanha e, no
segundo plano, a silhueta azul das serras que dominam o horizonte. Uma situação que
gera, não só o contraste entre cores mas, também, entre diferentes escalas. Existe nestas
imagem uma duplicidade de sentidos: a da serra representada na forma da rocha e da
serra real. É o mesmo elemento (pedra) observado em escalas e distâncias diferentes que
se fundem numa só imagem. Esse processo de observação lembra o método de artistas
como Joachim Patinir13
(figura 38) que, baseando-se na forma das rochas, a partir
dessas representava nas pinturas cenários de montanhas usando a perspectiva
atmosférica. Uma forma de reinterpretar a escala dos elementos, algo que mais tarde
aplicaria na composição de futuras telas.
13
Joachim Patinir (1480 – 1524) foi um pintor flamengo do Renascimanto, especializado em paisagem e
motivos históricos.
Fig. 36 – Rocha quebrada, 2015. Fotografia digital.
56
Fig. 37 – Rocha quebrada, 2015. Fotografia digital.
Fig. 38 – Joachim Patinir, São Jerónimo no deserto, 1520.
57
Assim surgiu a rocha-montanha nas pinturas que aqui apresento. Algo derivado de uma
intuição sentida no momento em que deambulo no campo e seguindo a impulsão de
fotografar, de várias maneiras, rochas específicas que surgem à vista durante um
passeio. Aconteceu-me, várias vezes, ir passear de bicicleta apenas a partir do
entardecer, quando os contrastes entre a sombra e a luz dourada são mais evidentes. Por
várias vezes captei imagens de rochas em contraluz, no momento do pôr-do-sol, ou,
então, iluminadas pela sua luz difusa e alaranjada. Tenho sentido uma rara paixão por
essa situação marginal entre o dia e a noite, em que nenhum dos dois é dominante.
Nestas pinturas (figuras 39, 40 e 41) captei esse momento que, analisado
posteriormente, revela contrastes de várias ordens: contrastes em termos cromáticos,
formais e simbólicos (na hierarquia dos elementos naturais). Está implícita, de certo
modo, a lei das cores complementares da visão (que Goethe expõe na Doutrina das
Cores).
58
Fig. 39 – Sem título, 2015. 90 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
59
Fig. 40 – Sem título, 2015. 90 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
60
Fig. 41 – Sem título, 2016. 90 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
61
Do passeio, à escolha das fotos, até à pintura final, predominou a intuição. No entanto,
quando acabei a pintura (figura 39) e a comecei a observar, senti a estranheza de estar
perante algo inédito que esperava ser compreendido e lido. Associava a algo surrealista
essas rochas, mas inquietava-me reduzir e colocar a pintura em “gavetas”, em
denominações. Isso afastava-me da essência dessa paisagem. Surreal? Não, pelo
contrário, esse sol, as rochas, o momento foi bem real e experienciado. Somente após a
observação dos dias seguintes comecei a compreender o que evocava tal situação
representada. A paisagem apresenta a saída do dia - do sol - por detrás das montanhas e
da rocha, e a ascensão da noite que surge do lado das sombras – precisamente do lado
da rocha que a pintura apresenta em contraluz. O sol, tapado pela rocha, mas ainda
sobre o horizonte, é sugerido pelos raios que escapam entre as nuvens. É a sombra que
domina grande parte da paisagem.
Na pintura representada na figura 40, concebida em simultâneo, é apresentada uma
situação inversa à da figura 39. Aqui, a monumentalidade da rocha é realçada pelos
últimos raios de sol em contraste com o céu por detrás, prestes a tornar-se nocturo. Tal
como na figura anterior, a rocha vertical e monumental permanece estática perante a
passagem para a noite e apenas reflecte as alterações da luz. Apenas muda a luz e altera-
se a percepção do espaço que permanece o mesmo.
Esta pintura (figura 41), semelhante em conteúdo às representadas nas figuras 39 e 40,
apresenta um outro caso: após o sol se pôr, apenas as nuvens revelam tonalidades de luz
– e a forma escultural da rocha-montanha é sugerida pela luz azul e difusa que o céu
ainda reflete. A rocha está perto de se tornar escuridão, a sua forma dilui-se e converte-
se na expressão de uma certa inquietação – prestes a tornar-se numa montanha viva de
metamorfoses.
62
O desejo de representar a rocha no seu valor simbólico, espiritual e enquanto objecto de
expressão, motivou, também, a elaboração das paisagens (figuras 42 e 43) com uma
composição mais simples, embora dentro do mesmo registo das figuras anteriores. A
pintura (figura 42) reproduz a ideia de rocha-montanha mas, desta vez, é uma pedra de
xisto, dispersa e isolada no solo, sem que nenhum outro elemento possa dar uma noção
da sua real escala. Na pintura representada na figura 43, uma cascata seca revela a
aparência quadrangular e firme da rocha que sustém a terra ante a força do rio, agora
inócuo. As árvores - assentes no solo estável - são única forma dinâmica na pintura.
Fig. 42 – Rocha-montanha, 2016. 60 x 40 cm. Acrílico sobre tela.
63
Fig. 43 – Cascata seca, 2016. 60 x 40 cm. Acrílico sobre tela.
64
III. SONHO
No decurso deste estudo desenvolvi também a paisagem de modo a incluir o que
passava no imaginário. Refiro-me a paisagens que se expressam de dentro para fora, nos
meus sonhos. Estes sonhos são, por vezes lúcidos, possibilitam viagens por paisagens
inusitadas que registo nos meus cadernos, através de desenhos e de descrições escritas
sobre os mesmos. Neste caso, as imagens são resgatadas da memória (com a máxima
fidelidade possível) após acordar e, depois, convertidas em pinturas. As pinturas
resultantes desse processo, quando observadas enquanto conjunto, não diferem muito
entre si - e em muito se relacionam com as que pinto a partir da observação do natural.
São poucos os desenhos ou pinturas de sonhos que nos chegaram até hoje, ou seja, é
uma abordagem que raramente se encontra no decurso da História de Arte. É uma
prática pouco usual, até ao séc XX, embora se tenha notado em alguns momentos, em
variadas épocas, de forma esporádica. Por outro lado, essas poucas obras, por serem
concebidas a partir de uma vontade livre e espontânea, são livres de pretensões.
Exemplo disso é a aguarela Visão de um sonho (figura 44), de Albrecht Dürer, que
retrata um sonho apocalíptico do artista no qual a Terra é inundada por grandes massas
de água que caem do paraíso. É uma aguarela rápida, feita com poucas pinceladas,
Fig. 44 – Albrecht Dürer, Visão de um sonho, 1525.
65
difusa, uma síntese. Dürer, logo que acordou perturbado, pintou-a, acrescentando-lhe
uma descrição escrita do sonho.
Fora esse caso invulgar presente na obra de Dürer, outros artistas que se seguiram,
apesar de não terem sido pintores de sonhos nesse sentido literal, desenvolveram uma
pintura de carácter visionário capaz de captar o imaginário. Francisco de Holanda
produziu várias aguarelas fantasiosas, baseadas em temas religiosos, das quais se
destaca o tema da Criação do Mundo, onde a Terra é representada como se fosse vista
do Espaço – algo peculiar tendo em conta o seu surgir em pleno séc. XVI. No séc.
XVIII nasce William Blake, ilustrador e poeta visionário, que afirmou ter tido a sua
primeira visão, de uma árvore repleta de anjos, aos dez anos de idade. Os temas de
inspiração bíblica, junto às suas ideias visionárias, foram motivo de inspiração para
Blake no decurso da sua obra e vida. Outro ponto a considerar é a semelhança que se
pode encontrar entre as aguarelas de William Blake e as de Francisco de Holanda, seja a
nível de expressão ou nos temas. Nelas pode-se testemunhar a intemporalidade de temas
presentes numa consciência colectiva – um mundo inteligível. Apesar das semelhanças
entre ambos os artistas, mediante a ausência de provas, não é possível afirmar que Blake
sabia da existência de Francisco de Holanda. Existe apenas a evidência de que ambos
inspiraram-se em temas religiosos.14
14
http://observador.pt/especiais/a-desenhar-o-cosmos-ha-4000-anos/
Fig. 45 – Francisco de Holanda, De
Aetatibus Mundi Imagines, 1573.
66
A expressão do imaginário a um nível mais pessoal, na pintura, ganha mais ênfase a
partir do romantismo. Foram vários os artistas que iniciaram e deram continuidade a
uma pintura que vive do imaginário e dispensa a representação directa. Caspar David
Friedrich foi pioneiro ao demonstrar a pintura de paisagem como forma de abrir e
revelar a visão do espírito. Francisco de Goya pintou retratos, que, mais do que a
aparência, mostram a natureza interior dos modelos retratados – as qualidades e
fraquezas. O artista Arkhip Kuindzhi, pintou paisagens que aliam a percepcão sensível à
expressão de estados interiores, mediante uma pincelada difusa que esboça uma
luminescência idílica. Kuindzhi pintou vários quadros onde é comum surgirem
situações de entardecer (entre o dia e a noite) tratadas geralmente numa composição
triangular. As pinturas de Kuindzhi mostram uma paisagem intemporal - marginal, e um
artista de espírito livre que, à margem das vanguardas e movimentos artísticos, foi capaz
de trilhar um percurso solitário e afirmar uma pintura independente.
Mais recentes, e também influentes até aos nossos dias, evocam-se as obras de Marc
Chagall, Giorgio de Chirico e Salvador Dalí que transformaram a pintura num meio
capaz de expressar as revelações do inconsciente. Estas manifestam-se sob a forma de
imagens e símbolos que se relacionam entre si. Chagall concebe, na pintura, imagens
oníricas e fantasiosas baseadas em lembranças da cidade onde nasceu. Chirico foi
pioneiro na exploração de uma pintura metafísica que é definida pelos ambientes
oníricos e atemporais, nos quais, interligam-se e relacionam-se símbolos, fragmentos e
referencias históricas. Dalí transformou a tela num terraço onde se despejam e ligam
entre si as formas que brotam com espontaneidade do inconsciente para a imaginação.
Foi um dos primeiros artistas a legitimar a pintura enquanto exploração do inconsciente
e a abrir assim um caminho de novas possibilidades de descoberta e exploração do
sonho no campo das artes.
No campo da psicologia, Freud denunciava falta de conhecimento e estudos sobre o
assunto. No seu tempo escreveu a Interpretação dos Sonhos (em 1900), no sentido de
colmatar essa lacuna e conseguiu deixar assim um importante contributo para a
psicologia mas, também, para o campo das artes. Salvador Dalí foi um dos artistas que
melhor aplicou, numa prática artística, as teorias Freudianas. Essa relação entre a arte e
psicanálise permitiu conceber uma arte profunda e introspectiva e, também, tornou
possível representar a natureza do inconsciente.
67
Entretanto, o sonho, do ponto de vista científico, fica ainda por desvendar. Apesar dos
avanços actuais da ciência, não é possível explicar de forma precisa o seu
funcionamento, o que é exactamente, assim como ainda não existe uma definição exacta
sobre que dimensão ocupa na consciência. Por um lado, os sonhos são vistos pela
ciência como alucinações (o que explica apenas uma parte do processo e não abrange a
sua totalidade), por outro, alguns espíritas, praticantes de meditação ou pessoas que
sofrem acidentes críticos, relatam experiências extracorpóreas, visões e sonhos lúcidos.
A natureza dos sonhos permanece indeterminada.
Neste projecto, a abordagem que faço das imagens oníricas continua a da reflexão sobre
a minha pintura, sendo essa uma abordagem necessariamente pessoal e introspectiva.
Junto a uma leitura simbólica das obras, pretendo também referir a ligação entre a
pintura de sonhos e as obras que apresentei no primeiro capítulo.
68
III. 1 - Recordação
A necessidade de recordar os sonhos, seja na totalidade ou apenas em fragmentos,
surge-me com regularidade. Sempre tive a curiosidade de desvendar e tentar perceber
como funcionam e, por isso, ainda hoje os desenho. Mais recentemente o meu interesse
foi desperto quando, há cerca de seis anos, tive os primeiros sonhos lúcidos – sonhos
nos quais a consciência permanece desperta. Foi então que primeiro os desenhei,
esboçando-os a grafite.
O primeiro sonho lúcido que tive, algures em 2009, foi um tanto peculiar, lembro-me
ainda da última parte. Nele, estava a explorar um planeta sem atmosfera e de superfície
vermelha com algumas crateras. Fui, entretanto, acordado pelo som de um comboio de
madrugada (o que não é comum acontecer). Na altura, ao acordar, abri apenas um olho e
vi o quarto meio-escuro com umas frestas de luz a passar entre as persianas, enquanto
que no outro olho fechado (tapado pela almofada) continuava a ver o sonho passado no
planeta vermelho. A partir desse dia, mais sonhos lúcidos ocorreram (sem que se tivesse
tornado um fenómeno regular).
Outro fenómeno, este mais recorrente, ocorre-me antes de entrar no sonho, e num estado
em que ainda tenho parte da consciência desperta. Nesses momentos é comum
surgirem-me imagens de paisagens imaginárias (convincentes ao ponto de parecerem
reais) que observo de olhos fechado e que passam como slides - onde cada imagem dura
uns segundos e, logo a seguir, se desvanece, transformando-se noutra paisagem... até
que entro no sono.
Desde então, a prática de desenhar estas imagens nocturnas foi-se tornando mais
frequente. Curiosamente também comecei a sonhar com a prática da fotografia, o que
me ajudou a relembrar melhor as partes do sonho que me interessava representar. Por
vezes sonhava que estava numa excursão rumo às paisagens serranas, reparava que me
tinha esquecido de trazer a câmara e sonhava que observava obsessivamente a paisagem
para a guardar na memória. Isso coincidiu com o momento em que comecei a passear
69
mais com uma nova câmara reflex, que me permitia explorar técnicas mais variadas. A
câmara que eu usava começou a aparecer nessas viagens idílicas. Regra geral, nos
momentos dos sonhos em que estava numa paisagem que queria recordar ao máximo,
sonhava que a fotografava de vários ângulos e, logo a seguir, acordava com uma
recordação detalhada daquilo que imaginei fotografar. Acordava, ora quando, no sonho,
estava inquieto porque a câmara não funcionava ou, então, quando me sentia eufórico
por estar perante um lugar paradisíaco, não sabendo o que fotografar primeiro.
A câmara, neste caso, funciona como uma espécie de programa virtual que opera na
imaginação e, perante o cenário altamente mutável do sonho, simula uma câmara que
congela algumas das cenas que a consciência anseia reter. O acto de fotografar implica a
selecção de parte da cena que percepcionamos (sendo impossível captar a totalidade).
Como tal, fazemos a síntese e seguimos noções de composição, na escolha dos planos,
por exemplo, ou quando fazemos o enquadramento que, no fundo, significa enquadrar:
converter em quadro. Nesse gesto está implícita a atitude de organizar e esclarecer,
numa ordem, os elementos que percepcionamos, ou seja, organizamos uma selecção do
que queremos dar a ver. Anne Cauquelin, em A invenção da paisagem15
, partilha uma
perspectiva semelhante quando explica o quadro enquanto veduta que, racionalmente,
através a hierarquia dos planos, da perspectiva e da escolha dos elementos a dispor,
organiza o quadro e apresenta-o como uma totalidade que tenta abranger os quatro
elementos (de alguma forma simbolizados). De certa forma, o mesmo processo, usado
na pintura e na fotografia, é reproduzido virtualmente como forma de recordar e
congelar na memória (enquanto imagens) as cenas dos sonhos. A reprodução virtual do
enquadramento fotográfico – enquanto técnica – contribui também para organizar, sob a
forma de paisagem, a natureza caótica e alterável das formas que brotam do
inconsciente. Assim, a recordação torna-se em algo mais perceptível e não apenas numa
impressão confusa (ao acordar). Torna-se uma recordação que, caso não seja
relembrada, descrita e transposta em imagem, corre o risco de dissolver-se e ser
esquecida. Damos conta de uma ideia, facto e sentimento quando esse é analisado na
consciência que, posteriormente, forma uma imagem – um símbolo.
15
CAUQUELIN, Anne – A invenção da paisagem.
70
Mesmo a perspectiva é, também, uma forma através da qual organizamos outros
símbolos, ideias e impressões num espaço ou quadro imaginário. Uma forma que se
revela eficaz, quando quem a domina tem um imaginário rico e sabe o que pretende
transformar em pintura. Por vezes atrevo-me a dizer: os artistas renascentistas, que já
dispunham de uma técnica e pensamento capaz de produzir uma pintura
maioritariamente imaginária, teriam uma imensa capacidade de recordar e pintar os
sonhos e criar obras, quem sabe, de grande relevância. Isto é, de certa forma, uma
especulação - nessa época não se valorizava essa prática introspectiva, muito menos se
pensava a representação de sonhos como um assunto pertinente à arte e a psicanálise
estava longe de ser descoberta.
A excepção à regra foi Albrecht Dürer, como comecei por referir, no seu esboço em
aguarela de um sonho apocalíptico. De resto, existem representações de cenas
puramente fantasiosas e imaginárias, de Hieronymus Bosch, por exemplo, ou a peculiar
Torre de Babel de Bruegel. No entanto, estas imagens não se podem considerar
representações de sonhos – são o resultado de imaginários vivos, feitos por pintores
capazes de simular, na pintura, uma realidade que não existe. Na verdade, a perspectiva,
na pintura renascentista, foi usada mais para organizar numa aparência real as paisagens
idealizadas do imaginário do que, propriamente, para copiar o real. A pintura de género
que se desenvolveu nos países-baixos foi a excepção à pintura idealizada que imperou
até ao romantismo.
Um outro artista que é importante voltar focar nesta reflexão acerca da representação de
sonhos é Salvador Dalí. Artistas como Leonardo da Vinci, Johannes Vermeer e Diego
Velásquez inspiraram a obra de Salvador Dalí, não apenas a nível temático, mas, acima
de tudo, na técnica. Basta observar as pinturas de Dalí para se perceber que, apesar de
representarem imagens e símbolos do inconsciente – que se relacionam e fundem entre
si – nelas, o uso da perspectiva atemosférica mostra-se rigoroso e as formas (por mais
disformadas que sejam) apresentam uma nitidez pura. Ter o método e a técnica permitiu
ao artista transpor para a tela, com clareza, um mundo interior (do inconsciente) que,
para o observador mais desatento, pode parecer um universo confuso. Contudo, Dalí
encontra uma forma de o enquadrar, compor e, ao mesmo tempo, consegue manter a
interacção entre os símbolos e formas que o compõem.
71
O caso de Dalí vai ao encontro daquilo que procuro na pintura. Considero essencial o
estudo da sua técnica - e o seu aprofundamento - pois essa constitui um meio através do
qual a comunicação e transmissão (das imagens idílicas) se mostram mais fluentes. A
técnica e a sua extensão virtual – enquanto câmara imaginária que opera nos sonhos –
permitem que a pintura, mesmo que expressiva e não planeada, beneficie de nitidez e
concisão que facilitam a sua posterior leitura e compreensão.
72
III. 2 - Sonhos
Os sonhos que aqui vou apresentar, derivam, à semelhança de um reflexo, da
experiência que desenvolvo na natureza, ou seja, podem ser considerados uma extensão
da pintura que apresentei no capítulo anterior. Quando a vontade ancestral de regressar
aos lugares naturais não é possível de se concretizar, por estar ocupado nas rotinas da
cidade, nessa altura, costumo sonhar com paisagem natural e com “o pinhal” da infância
com mais frequência.
Compensar uma realidade em falta, torna-se parcialmente possível ao sonhar. Essa é, de
facto, uma das várias funções dos sonhos. Freud define esse processo como resultado de
vários factores: um sonho pode ser a repetição daquilo que se passa na vida quotidiana,
na vigília; pode ser a tentativa do inconsciente de comunicar à consciência os seus
conflitos internos e desejos recalcados que pretende realizar; pode servir para
compensar uma experiência em falta; pode derivar de estímulos sensoriais (como o
calor, o frio, ou a sede) que podem surgir durante o sono. Na obra A interpretação dos
sonhos16
, é estabelecida a divisão da psique da seguinte forma e ordem: o Id representa
os processos primitivos do pensamento; o Ego surge entre o Id e o Superego e concilia
as necessidades primitivas com as crenças éticas e morais; o Superego representa os
pensamentos éticos e morais interiorizados. Freud defende que o Superego tende a
censurar as revelações do inconsciente que causam ansiedade e contradizem as crenças
éticas e morais interiorizadas. Por esse motivo, para as revelações do inconsciente se
poderem manifestar, essas, transformam-se em símbolos, imagens, e criam a partir
dessas um ambiente distractivo para nos afastar dos sentimentos que elas nos despertam.
Dessa forma, quando acordamos, rapidamente esquecemos o que sentimos e ficamos
apenas com vagas imagens do ambiente do sonho.
Nos sonhos, os símbolos que se geram dizem respeito à experiência de cada um. Alguns
símbolos, como a casa enquanto representação do ser humano, podem ser considerados
16
FREUD, Sigmund - A interpretação dos sonhos.
73
universais. Por esse motivo, a análise psicanalítica dos símbolos depende, não
significado que lhes é normalmente atribuído mas, sim, dos sentimentos que esses
suscitam em cada um de nós – essa é uma matéria-base da psicanálise. São os
sentimentos que o recalque tenta ocultar que, durante o processo de censura, resultam
em cenas confusas e em constante metamorfose, ou seja, esquecemos ao acordar os
aspectos que consideramos absurdos. O filme Um Cão Andaluz17
, de Luís Buñuel e
Salvador Dalí, revela essa passagem entre episódios diversos mas que, entre si, são
desconexos. A narrativa não deve ser interpretada como uma história ou sequência
lógica. São revelações – um fluxo de sentimentos e desejos que a censura transforma em
cenas, sentimentos e desejos que se realizam secretamente.
A abordagem que faço dos sonhos, neste projecto, mostra-se mais livre e selectiva –
sendo, no fundo, uma abordagem adequada ao trabalho artístico que desenvolvo.
Ultimamente tenho registado fragmentos de sonho mais lúcidos em torno da relação que
tenho com a natureza e que, de algum modo, reflectem desejos que nem sempre consigo
concretizar. São fragmentos e cenas de sonhos que, por serem do mesmo tema e terem
como base aspirações semelhantes, formam um conjunto – uma floresta viva – de
pinturas que, entre si, têm coerência. Um tipo de organização e estrutura que lembra a
do filme Sonho, de Akira Kurosawa18
, que nele apresenta episódios baseados em sonhos
que teve desde criança até à idade adulta. No filme, a relação entre o homem e a
natureza assume-se como o tema principal e, nos sonhos, são evocadas: lendas
japonesas, as consequências da guerra, os perigos da energia nuclear na natureza, a
visão que tinha Vincent van Gogh da paisagem ou a renúncia à tecnologia, em prol da
saúde no ambiente e do espírito, isto no sonho, A vila dos moinhos. Identifico-me nessa
abordagem, sendo que não trato o sonho como um todo a analisar, pois interessa-me
coleccionar partes e construir aos poucos um tecido vivo de relações. Trata-se de uma
atitude selectiva que se reflecte mesmo no método de recordação dos sonhos – a câmara
imaginária – que regista a paisagem acima dos restantes assuntos. Dessa forma,
apazigua-se (em parte) a ausência do campo na rotina diária, por outro lado, há uma
manutenção contínua da inspiração que convida a pintar.
17
BUÑUEL, Luís; DALÍ, Salvador - Um Cão Andaluz. 18
KUROSAWA, Akira - Sonho.
74
Porque a memória dos sonhos se pode dissipar quando me concentro noutros assuntos,
após acordar desenho as imagens mentais em esboços rápidos. Neles misturo o desenho
com palavras que descrevem os restantes detalhes da imagem. Detalhes como: as cores
dos elementos, a direcção da luz, o tempo e o clima e, por vezes, a cor das sombras
(figura 46). As paisagens de sonho costumam evocar, ora diferentes alturas do dia ou,
então, apresentam-se difusas, sem que seja possível definir uma fonte de luz ou ponto
de observação. Depois de escolhidos os desenhos e as ideias mais concisas, elaboro as
pinturas, as quais partem das recordações que, para mim, têm significado e relação com
aquilo que busco.
Fig. 46 – Desenho de um sonho, 2015, 10 x 15 cm. Caneta sobre papel.
Fig. 47 – Geoformas, 2016. 40 x 50 cm. Acrílico sobre tela.
75
Desde que dei início a esta prática noto, no sonho, a capacidade condensar os esquemas
de enquadramento e perspectiva ideais que costumo buscar na observação da natureza: a
montanha-nuvem a pairar no cume da montanha rochosa monumental (figura 48), a
vista aérea contemplativa a partir do alto do monte, rochas com formas peculiares
(algumas lembram o xisto), lugares idealizados que lembram “o pinhal” e uns raros
lugares exóticos.
Os elementos, na sua ordem simbólica e hierárquica, aparecem sintetizados e explícitos
num sonho pintado. Facilmente se encontra o arquétipo da montanha, a árvore-nuvem, a
vista onde as árvores abrem um espaço para se poder mirar o horizonte, a floresta que
forma um túnel, etc. Arquétipos que tornam estas imagens imaginárias em paisagens
universais que facilmente remetem para vários lugares (consoante quem observa) mas
sem possuir a geografia de nenhuma região específica. Montanhas… quais?.. e de onde?
São um arquétipo gerado por acumulação de várias formas numa só. Geomonumentos
ideais acompanhados de serenidade: parecem-me a terra a revelar um sentido oculto na
aparência.
Fig. 48 – Nuvem-montanha, 2016. 27 x 35 cm. Acrílico sobre tela.
76
Fig. 49 – Sem título, 2016. 50 x 60 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 50 – Sem título, 2016. 30 x 40 cm. Acrílico sobre tela.
77
Fig. 51 – Manhã, 2016. 40 x 50 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 52 – Sem título, 2016. 27 x 35 cm. Acrílico sobre tela.
78
Fig. 53 – Geoforma, 2016. 27 x 35 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 54 – Harmonia azul, 2016. 20 x 30 cm. Acrílico sobre tela.
79
Fig. 55 – Passagem, 2016. 35 x 27 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 56 – Pinhal, 2016. 35 x 27 cm. Acrílico sobre tela.
80
Fig. 57 – Sem título, 2016. 40 x 30 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 58 – Sem título, 2016. 40 x 30 cm. Acrílico sobre tela.
81
Fig. 59 – Sem título, 2016. 20 x30 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 60 – Sem título, 2016. 30 x 24 cm. Acrílico sobre tela.
82
Fig. 61 – Carvalho velho, 2016. 40 x 30 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 62 – Fraternidade, 2016. 40 x 30 cm. Acrílico sobre tela.
83
Em algumas destas pinturas (figuras 61 e 62) baseei-me num sonho passado na minha
casa antiga, onde estava numa escrivaninha a folhear livros antigos. Na altura fiquei
admirado quando, num desses pequenos livros plastificados, de poucas páginas,
observei ilustrações digitais (ao estilo da ilustração científica) que retratavam florestas
intocadas, montanhas e vistas do planeta Terra do espaço. As imagens tinham a data de
1994 e lembro-me de questionar se nessa altura já se faziam ilustrações digitais.
Retratavam as paisagens com cores quase puras (sem se tornarem propriamente
saturadas) e numa paleta em tons de azul. Esta tonalidade dava um ar de um anoitecer
que cobria as montanhas e os velhos carvalhos de uma paz rara – um adágio azul. O que
também me impressionou foi ver, numa dessas ilustrações, a representação daquilo que
seria o corpo espiritual do planeta Terra (que continha uma forma semelhante à da Terra
física só que mais brilhante e vibrante). Na imagem via-se que o seu núcleo transmitia
uma luz branca incandescente que enviava fluxos de energia para todos os pontos da sua
Fig. 63 – Desenho de um sonho, 2016. 10 x 15 cm. Caneta sobre papel.
84
superfície (figura 63). Durante o sonho, além da alegria e curiosidade ao descobrir esse
livro, fiquei com a sensação de estar perante uma espécie de saber milenar. Ao acordar e
lembrar-me desse episódio, limitei-me a fazer desenhos, enquanto sentia uma nostalgia
por esse livro e pelas imagens que jamais poderia voltar a rever. Apenas restam essas
memórias. Por vezes penso que este sonho tentava revelar a crença, em mim oculta, de
que também a natureza, o Universo, possuem energias e corpos espirituais que se
interligam. Inexplicavelmente acredito – como se de alguma forma pudessem ser
possíveis – nessas imagens e ideias.
Por vezes, costumo sonhar que vejo quadros, desenhos e fotografias com
enquadramentos invulgares de paisagem. No entanto, é raro que um conteúdo de
carácter espiritual se manifeste nessas imagens. Regra geral, nos últimos sonhos, foi
comum imaginar que encontrava fotografias analógicas e antigas de paisagens parecidas
aos lugares da infância. Nesses sonhos conseguia entrar nas fotografias (como se elas
fossem janelas abertas) e permanecer nesses lugares que despertavam os mesmos
sentimentos do pinhal – a mesma calma, alegria interior e paz – mas, mais intensos que
na vigília. Costumo sonhar várias vezes com o percurso que faço até ao pinhal mas
encontro sempre alterações na paisagem, várias versões. Essa revelação de lugares
parecidos ao pinhal (mas diferentes) incentivam a ideia de que, dentro da mesma região,
há sempre outros pedaços de um paraíso perdido por descobrir – lugares semelhantes
que podem preencher (mesmo que em parte) o vazio que deixou esse pinhal que já foi e
não mais voltará. Restam, por agora, apenas as memórias mais resistentes, como as
árvores altas que escaparam às chamas. Estas pinturas (nas imagens seguintes),
baseadas num pinhal ideal, revelam mais sobre a permanência da raiz que me liga às
origens, diferindo das primeiras pelo seu carácter mais particular e menos refém dos
arquétipos e símbolos. São uma tentativa de ressuscitar a experiência e sentimentos
primitivos que estão na base daquilo que me levou enveredar pela pintura da paisagem.
85
Fig. 64 – Sem título, 2016. 27 x 35 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 65 – Azinheira velha, 2016. 27 x 35 cm. Acrílico sobre tela.
86
Fig. 66 – Nocturno, 2016. 40 x 50 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 67 – O meu pinhal, 2016. 40 x 50 cm. Acrílico sobre tela.
87
Fig. 68 – Sem título, 2016. 20 x 20 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 69 – Sem título, 2016. 20 x 20 cm. Acrílico sobre tela.
88
Fig. 70 – Rebento, 2016. 25 x 35 cm. Acrílico sobre tela.
Fig. 71 – Horta, 2016. 25 x 35 cm. Acrílico sobre tela.
89
IV. SERENIDADE
Martin Heidegger foi um filósofo alemão fundamental na reelaboração do problema do
Ser, dando assim um importante contributo para a ontologia. Debruçou-se, também,
sobre a problemática e essência da obra de arte.
No texto Serenidade, o filósofo aborda um problema seu contemporâneo, apontando um
desequilíbrio - entre o pensamento que medita e o pensamento que calcula - que
condiciona a abertura do Homem à serenidade. Tal abordagem surge de uma reflexão
que Heidegger elabora no contexto da comemoração do 175º aniversário do nascimento
do compositor Conradin Kreutzer, comemoração essa que ocorreu em 1955. O livro,
que contém o registo de um discurso público engloba, também, o texto onde podemos
ler uma conversa entre um investigador, um erudito e um professor.
Heidegger refere a Serenidade como a capacidade de encontrar um equilíbrio entre o
pensamento que medita e o pensamento que calcula. A Serenidade consiste em aceitar a
técnica, os objectos tecnológicos, mas deixando-os repousar em si próprios, como algo
que não é absoluto. Dessa forma é possível viver em sintonia com um mundo
globalizado e, ao mesmo tempo, manter as raízes e a ligação às origens, à terra natal.
O entendimento da ideia de Serenidade elaborado por Heidegger, e o seu modo de
relacionar questões sobre o Ser e a arte, veio aclarar o pensamento que há algum tempo
detinha a respeito do rumo que o meu projecto artístico estava a tomar.
A leitura de Serenidade levou-me a compreender melhor, não somente a legitimidade
do meu projecto, como também me explicou muito sobre as recentes mudanças que
observei na minha forma de pintar.
A partir do momento em que assumi, segundo Heidegger, que o (re)encontro com a
natureza é a base para edificar a obra artística, deixei que a intuição cumprisse o dever
90
de me guiar na busca e escolha das imagens, sem me basear em ideais e expectativas.
Esse é um dos pontos que leva à serenidade. Trata-se de um estado que se alcança
quando, ao trilhar um caminho, deixamos que as coisas venham ao nosso encontro, sem
esperarmos encontrar apenas o que desejamos (ou não), aceitando o que está além do
limite da vontade. Para se alcançar esse estado, a representação racional e dicotómica
torna-se obsoleta. Representar mentalmente pressupõe tornar imaginável algo a partir de
referências já conhecidas. Tentar representar a serenidade afasta-nos dela, pois converte
em objecto aquilo que, na verdade, é um estado de espírito. “A serenidade em relação às
coisas e a abertura ao segredo são inseparáveis. Concedem-nos a possibilidade de estar
no mundo de um modo completamente diferente.”19
É, no entanto, possível que um projecto de pintura, não representando esse estado, seja
o resultado de uma busca serena, podendo despoletar a reflexão em torno da disposição
necessária para o alcançar, e podendo, também, deste modo, conduzir quem a vê a um
estado de serenidade.
É, neste mundo dominado pela técnica, como diria Heidegger, importante saber dizer
“simultaneamente sim e não aos objectos”20
do nosso quotidiano, deixando-os repousar
em si próprios. No fundo, trata-se de usar os objectos sem nos definirmos a partir deles
e sem mesmo definirmos a nossa essência enquanto humanos, ou seja, sem cair no
pensamento de entender o Homem como um ser cuja sua função é viver através da
técnica para a aperfeiçoar. Na pintura trata-se de não tomar as técnicas (tradicionais e
modernas) e fórmulas de pensamento como uma finalidade. Neste caso, uso a técnica
como meio através do qual penso a pintura, ou seja, não como uma finalidade em si,
mas como algo que me faz pensar na minha existência e abrir novos caminhos. Na
minha pintura encontro uma forma de ligar a floresta ao espírito.
Por esse motivo não me limito a assumir a capacidade de representação da fotografia
como a forma final da minha obra. Esse começo é apenas uma forma de registo, sobre o
qual começo a esboçar a ideia.
19
HEIDEGGER, Martin – Serenidade, p. 25.
20
Ibid., p. 24.
91
Seria pertinente se me perguntassem porque é que eu não retrato a minha vontade de
percorrer e explorar os campos apenas através da fotografia - que é imediata e poupa
trabalho. Apesar de curiosa, tal pergunta descarta a hipótese de se perceber que é nesse
trabalho, que poderia ser poupado, que surge a livre possibilidade de exploração mais
profunda das cores e formas e sentidos que essas evocam. A pintura é o acto de
continuar a pensar e aprofundar em torno de uma ideia ou forma - e não se restringe à
representação, mesmo quando representa. Se na fotografia revelo como observo, na
pintura, além disso, revelo de que forma reflito sobre o que vejo, o que penso e o que
sinto.
Quem vê a rocha de xisto apenas através da imagem fotográfica não nota como é a
geometria natural por detrás da mesma, nem sabe da forma como o xisto lasca quando é
quebrado e laminado. Quem vê a imagem não percebe a presença única de cada
elemento da paisagem, seja uma rocha ou uma nuvem, que pode ser mais, ou então
menos, estático e mutável.
A pintura vem acrescentar aquilo que a fotografia não é capaz de mostrar pois esta é
apenas, e no máximo, um esboço da ideia que precisa de ser mais pensada e elaborada
pelo acto de pintar. Dessa forma, a pintura, além de exprimir uma linguagem mais
peculiar (que diz respeito ao pintor), exprime a presença que cada elemento demonstra
na paisagem - e revela mais sobre a experiência particular de fruir o lugar e a forma de o
recordar (e contemplar). Uma mancha aguada coberta de outras manchas mais nítidas e
realçadas com alguns contornos de pinceladas impressas com vigor, revelam muito mais
sobre a solidez e presença de uma rocha do que a simples representação fotográfica.
Mesmo o aspecto mais simples, o recorte dos planos, fica mais explícito quando
transposto para uma pintura. Tais questões, mesmo que mais técnicas, reforçam o que
pretendo transmitir quando pinto: a relação íntima com o lugar. A entrega à pintura é,
no meu entender, uma atitude íntima e intimista, e é “algo mais”. Um “algo mais” que
significa saber que estive próximo de me expressar e dizer o que pretendia e que não
deixei as ideias suspensas e incompletas pois, ao pintar, considero que reflecti e que
concretizei por meio de algo essa reflexão. Em muitos casos a fotografia fica muito
aquém daquilo que pretendo assumir como resultado final.
92
Pintar torna-se numa negação ao imediato e uma tentativa de evitar produzir imagens
cristalizadas. Trata-se de almejar produzir uma pintura onde a contemplação e imagens
interiores (como as dos sonhos) quase se confundem, uma pintura que se torna num
organismo vivo e onde cada tela, recordação e imagem são uma parte de seu todo que
aos poucos vai sofrendo uma metamorfose.
Fig. 72 – Serenidade, 2016. 90 x 70 cm. Acrílico sobre tela.
93
Uma pintura que recentemente intitulei de Serenidade (figura 72) concretiza a ideia de
fundir o sonho (mesmo que apenas simbólico) e a realidade. No momento em que
concluí essa tela - que sugeria algo de solene – não sabia em que capítulo deste estudo a
enquadrar. Tal aconteceu no momento em que estava ainda a escrever parte deste
capítulo dedicado à Serenidade. Conforme reflectia sobre essa ideia de Serenidade,
automaticamente, vinham-me à mente imagens do campo que costumava observar
durante o percurso de carro para “o pinhal” – principalmente recordações do vale da
Ribeira da Líria que fica a meio do caminho. E, consequentemente, essa pintura,
Serenidade (inspirada num passeio de bicicleta que fiz até à Ribeira da Líria), ocupou
também o meu pensamento sem que eu quisesse.
Sabendo-se que não há uma representação para a serenidade, não posso negar que o vale
da Líria, isolado, junto às suas formações de xisto e de alguns salgueiros que moldam o
leito, transmite uma certa serenidade, segundo a minha percepção. A pintura torna isso
claro. Mostra os elementos naturais numa hierarquia e espontaneidade onde cada um
manifesta a sua presença e qualidades intrínsecas: a rocha de xisto, constituída de planos
verticais que apontam para o céu como uma catedral, na permanência que lhe é habitual;
um pinheiro jovem, em baixo, alinhado à rocha; a vegetação de arbustos, esboçada em
pinceladas difusas, a balançar com o vento enquanto cresce incerta; os dois pinheiros
solitários velhos, entre o céu e a terra, são uma metáfora da forma humana e, na
simbologia oriental, remetem para a fidelidade conjugal (algo que, tal como a árvore,
resiste e adapta-se à passagem do tempo); e a nuvem, esse castelo no ar, contém em si o
poder da metamorfose, podendo-se alterar ou dissipar. Perante esses fenómenos e
elementos descritos, não é possível conceber exactamente qual a forma que tomará o
lugar quando moldado na passagem do tempo. A serenidade tem uma característica
semelhante: é um estado que não leva a uma imagem cristalizada. Mesmo sendo a
pintura um reflexo da noção e do sentido que confiro à vida, essa sugere em si – dentro
de um conjunto de elementos que pode parecer previsível – a metamorfose inesperada
num lugar onde os pinheiros - fixos nas suas raízes – medram ao céu e bailam entre o
sonho e a vida. As árvores confirmam-me a intuição de me “deixar levar” por um
caminho contínuo, medrar, e seguir um fluxo entre “o pensamento que medita e o
pensamento que calcula” – sem ter que estar preso a nenhum dos dois, mas sem negar
ambos.
94
Nessa pintura que materializa a minha experiência com o lugar, descobri (muito após a
sua conclusão) a paisagem que mais remete para o sentimento de serenidade. Contudo,
como já afirmei, não é a imagem da serenidade em si, mas uma consequência dessa.
Nem mesmo a posso tomar como um símbolo universal desse estado irrepresentável,
mas assumo que, num mundo onde partilhamos linguagens em comum, haja a
possibilidade de esta pintura poder corresponder (parcialmente) a um arquétipo.
95
Considerações finais
Este projecto, Da terra ao azul, permitiu, não apenas a exposição da prática da
paisagem, mas também o seu aprofundamento e reflexão. Escrever sobre as minhas
obras envolveu o desafio – no fim compensador – de esclarecer o que me leva à pintura,
pensando qual o seu conteúdo, a sua paixão, e qual a direcção que essa segue no
contexto actual. Dessa forma, foi possível esclarecer que, a prática da paisagem, mais
do que um tema interessante, é uma forma de estar perante a vida e uma busca interior
motivada por uma vontade ancestral.
No texto escrito foram relacionados dois pontos essenciais de reflexão: o regresso à
natureza, na pintura de paisagem, e a prática de representação do sonho (no qual a
paisagem reaparece quando dela estou ausente). É um ciclo onde a expêriencia e o
sonho se complementam mutuamente. As obras apresentadas refletem essa
interdependência. Por essa razão apresentei-as na seguinte sequência: primeiro as
pinturas baseadas em lugares naturais, o geomonumento e, por fim, o sonho. As pinturas
de paisagens, recolhidas ao longo de vários passeios, refletem uma experiência com a
natureza, motivada por uma vontade ancestral. Nos retratos de rochas é estabelecida a
ponte entre o dia e a noite, na qual, desperta-se a visão interior. Nos sonhos,
intensificam-se os sentimentos e ocorre, no imaginário, um reencontro com a natureza.
Após o sonho, na vigília, encontro renovada a vontade de reencontrar-me com o natural.
Dessa forma, repete-se e renova-se um ciclo presente na vida e no processo criativo. É
uma experiência que lembra os Hinos à noite21
. Enquanto que Novalis reencontra nos
sonhos a amada perdida em vida, eu reencontrei “o pinhal” que as chamas consumiram.
Entre os encontros e reencontros com a paisagem, essa é moldada pelo olhar, pela
imaginação e, por sua vez, torna-se numa força inspiradora que desencadeia a pintura. É
um fenómeno que deriva de uma vontade interior, e não de modas ou ideias
estabelecidas. Trata-se de uma espécie de obstinação que é intrínseca ao ser humano e
21
NOVALIS - Os Hinos à noite.
96
que se manifestou ao longo das épocas. Vários foram os artistas que, não somente pelo
génio, mas também graças a uma certa obstinação, deixaram o seu contributo na pintura
paisagista. Caspar David Friedrich, John Constable, Albert Bierstadt, e Paul Cézanne,
esses foram alguns dos artistas que me influenciaram e que revelam que a prática da
paisagem é, não um mero exotismo, mas antes resultado de um amor incondicional para
com a Natureza, na qual o pintor vê reflectido o seu espírito, dela colhendo os seus
frutos.
Pintar a paisagem natural não é uma atitude de resistência ao fazer artístico dos nossos
dias. Não se pode definir a contemporaneidade como uma vanguarda ou princípios
específicos que marginalizam a pintura paisagista. Pelo menos assim deveria ser, no
mundo actual, onde a arte deve ser livre. Aquilo que define o contexto artístico actual é
a diversidade de possibilidades, válidas e pertinentes ao tempo presente, dentro das
quais se inclui a paisagem que, mesmo pintada de modo tradicional, continua a revelar o
olhar inédito e o espírito singular de quem a pinta. O esquema da paisagem,
independente do meio tecnológico e cultural que o apresenta, revela-se como um campo
neutro dentro do qual o artista pode explorar os seus valores. É uma dimensão
intemporal que continuará a ser desenvolvida e imortalizada no pensamento humano
dentro das mais variadas áreas. Assim sendo, toda a pintura de paisagem, a anterior e a
actual, é necessariamente contemporânea.
No entanto, nos dias actuais, há ainda algum preconceito na forma, por vezes
depreciativa, de olhar o paisagista sensitivo. Em Portugal ainda existe o costume de ver
a pintura de paisagem como um passatempo domingueiro. A paisagem natural, a um
nível mais figurativo e sensível, raramente é representada em exposições e considerada
com seriedade. Quando um paisagista expõe o seu trabalho numa mostra colectiva,
existe a tendência de ver a pintura como uma curiosidade ou como algo exótico. Esse
desinteresse e indiferença existem num país onde as florestas estão ao abandono, mal
cuidadas, e onde os resultados de uma educação ambiental não são expressivos.
Segundo Martin Heidegger, num mundo globalizado, com a tecnologia e os média, é
comum o desenraizamento, não apenas em quem habita as grandes cidades mas,
também, naqueles que permanecem na terra natal. Somente por meio da serenidade
podemos colmatar esse vazio, encontrando um equilíbrio. Tal implica aceitar a técnica,
97
os objectos tecnológicos, mas deixando-os repousar em si próprios como algo que não é
absoluto. No tempo actual, é imperativo recuperar uma visão mais abrangente da
Natureza que não a coloque num plano secundário como algo que apenas serve para
satisfazer a economia e a tecnologia.
Também a produção artística carece de serenidade. O reencontro com a paisagem
natural, que referi ao longo desta dissertação, é algo em constante progresso e mutação,
como uma árvore. Tal prática opõe-se ao imediato e exige tempo para as obras se
gerarem e amadurecerem. Estas pinturas adquiriram, para mim, uma aura quase própria
e estão intimamente ligados à minha existência. Não existiriam se não existissem as
florestas, as serras, as memórias do pinhal da infância. Dessa forma apresento uma
pintura que reflecte sobre uma forma de perspectivar a natureza, como também
promove o auto-conhecimento. A experiência revela-se, aqui, primordial e jamais
poderá ser colonizada e substituída pela informação. Talvez por essa razão, não pinto a
partir de fotos que não me pertencem, e raramente me baseio em imagens instantâneas
de viagens (por mais inusitadas que sejam). As imagens que incitam à pintura são as de
lugares que já conheço com alguma profundidade e que convidam à minha
permanência. Por esse motivo, penso dar continuidade a este projecto e organizar os
meios de que disponho de modo a poder pintar mais em plein air, reduzindo assim a
dependência da imagem fotográfica. Imagino “sereno” esse habitar – pintando – no
natural.
98
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FERREIRA, Marta Leite – Como é que se pinta um sonho? Os grandes pintores
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Índice de ilustrações
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David-Friedrich-Dolmen-in-the-Snow-3-.JPG
Fig. 2 – John Martin, The Great Day of His Wrath, c. 1851 - 1853 [Consult.2016-08-21]
in wikipedia.org Disponível em
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/50/John_Martin_-
_The_Great_Day_of_His_Wrath_-_Google_Art_Project.jpg
Fig. 3 – Fig. 29 – Imagens do autor referentes ao trabalho prático desenvolvido.
Fig. 30 – Leonardo da Vinci, A virgem dos rochedos, c. 1494 – 1508 [Consult. 2016-09-
02] in wikipedia.org Disponível em
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/49/Leonardo_da_Vinci_Virgin_of_
the_Rocks_(National_Gallery_London).jpg
Fig. 31 – Fig. 32 - Imagens do autor referentes ao trabalho prático desenvolvido.
Fig. 33 – Caspar David Friedrich, O viandante sobre um mar de névoa, c. 1818
[Consult.2016-09-10] in wikipedia.org Disponível em
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b9/Caspar_David_Friedrich_-
_Wanderer_above_the_sea_of_fog.jpg
Fig. 34 – Fig. 37 – Imagens do autor referentes ao trabalho prático desenvolvido.
Fig. 38 – Joachim Patinir, São Jerónimo no deserto, c. 1520 [Consult. 2016-09-19] in
wikipedia.org Disponível em
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_St_Jerome_in_the_Desert_-_WGA17100.jpg
102
Fig. 49 – Fig. 43 - Imagens do autor referentes ao trabalho prático desenvolvido.
Fig. 44 – Albrecht Dürer, Visão de um sonho, c. 1525. [Consult. 2016-09-29] in
blogs.scientificamerican.com Disponível em
https://blogs.scientificamerican.com/blogs/assets/illusion-
chasers/Image/durer_dream_vision2.jpg
Fig. 45 – Francisco de Holanda, De Aetatibus Mundi Imagines, c. 1573. [Consult. 2016-
09-29] in wordpress.com Disponível em
https://tendimag.files.wordpress.com/2012/03/fhfol06r.jpg
Fig. 46 – Fig. 72 – Imagens do autor referentes ao trabalho prático desenvolvido.