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Da Melanésia à antropologia: reflexões sobre as contribuições antropológicas de Roy Wagner e Marylin Strathern e suas mútuas influências e aproximações Bruna Triana – PPGAS/USP 1 Resumo: Neste artigo, procuramos analisar as principais ideias dos antropólogos Roy Wagner e Marylin Strathern. Ambos trouxeram grandes contribuições para a antropologia, posto que provocaram as definições consagradas da disciplina, isto é, buscaram novas conceitualizações, alcances teóricos e pressupostos metodológicos para o trabalho de campo. Assim, num primeiro momento apresentamos os trabalhos de cada antropólogo, e, num segundo momento buscamos observar as influências e aproximações entre suas obras, especialmente a influência do trabalho de Wagner na obra O Gênero da Dádiva, de Strathern. Palavras-chave: Teoria antropológica, Roy Wagner, Marylin Strathern, invenção, socialidade. From Melanesia to anthropology: reflections on the anthropological contributions of Roy Wagner and Marylin Strathern, and their mutual influences and approaches Abstract: In this paper we seek analyze the main ideas of the anthropologists Roy Wagner and Marilyn Strathern. Both 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP). E-mail: [email protected].

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Da Melanésia à antropologia: reflexões sobre as contribuições antropológicas de Roy Wagner e Marylin Strathern e suas mútuas influências e aproximações

Bruna Triana – PPGAS/USP1

Resumo: Neste artigo, procuramos analisar as principais ideias dos antropólogos Roy Wagner

e Marylin Strathern. Ambos trouxeram grandes contribuições para a antropologia, posto que

provocaram as definições consagradas da disciplina, isto é, buscaram novas conceitualizações,

alcances teóricos e pressupostos metodológicos para o trabalho de campo. Assim, num

primeiro momento apresentamos os trabalhos de cada antropólogo, e, num segundo momento

buscamos observar as influências e aproximações entre suas obras, especialmente a influência

do trabalho de Wagner na obra O Gênero da Dádiva, de Strathern.

Palavras-chave: Teoria antropológica, Roy Wagner, Marylin Strathern, invenção,

socialidade.

From Melanesia to anthropology: reflections on the anthropological contributions of Roy Wagner and Marylin Strathern, and their mutual influences and approaches

Abstract: In this paper we seek analyze the main ideas of the anthropologists Roy Wagner

and Marilyn Strathern. Both anthropologists have brought significant contributions to

anthropology, since they led the major definitions of the discipline, that is, they search for

new conceptualizations, and a wider scope for theoretical and methodological assumptions to

the fieldwork. So, first we present the work of each anthropologists, and at a second moment

we observe the influences and similarities between their works, especially the influence of

Wagner in the work The Gender of the Gift, by Strathern.

Key words: Anthropological theory, Roy Wagner, Marilyn Strathern, invention, sociality.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP). E-mail: [email protected].

Wagner: primeiros trabalhos, principais ideias

O antropólogo norte-americano Roy Wagner, em sua etnografia Habu, de 1972, lança

as ideias de metáfora e ideologia, que estão carregados de associações em nossa cultura

acadêmica ocidental2. Em Wagner, esses conceitos são tomados com outros sentidos, ainda

que, observando com cuidado, sejam sentidos condizentes com alguns dos seus significados

possíveis, embora não os dominantes. Metáfora, em suma, passa a ideia de extensão e

deslocamento de significados para novos contextos, ou seja, procura dar o sentido de inovação

sobre os significados da cultura, e, com efeito, denota uma relação nova entre o elemento

significado e o sistema de significados de uma cultura. Os conjuntos de metáforas que já não

remetem à sua associação ou deslocamento de contexto, por já serem de uso habitual, formam

uma ideologia.

Since ideologies are made up of metaphors, any metaphoric innovations made upon them in effect metaphorize what is already a metaphor. And yet, since ideologies express the central propositions or tenets of a culture, the most significant innovations in the culture will take the form of metaphors involving them. When a metaphor is used in the formation of another metaphor in this way, the relation signified by the former is employed as a context for the latter. This use of a relation to produce another relation brings about a dialectical interaction between the meanings involved. […]

The ordinary process by which metaphors “decay” into lexical signifiers is contained and turned inward upon itself in a dialectic of this sort; the innovative emphasis of one metaphor in such a situation occurs at the expense of the relation signified by the other. As a result, the opposed metaphors or ideologies that make up the dialectic form stable axis across which the change necessary to the formation of meaning takes place, and the consequent meanings stand in a relationship of serial contradiction to each other (Wagner, 1972: 7).

Essas ideias foram mais trabalhadas epistemologicamente em A invenção da cultura

(2010a), de 1975, estendendo o alcance teórico dessas noções ao optar, neste livro, pelos

termos invenção e convenção. Com esses conceitos, Wagner (2010a) se propõe a repensar

nosso entendimento de cultura, alteridade e antropologia. A noção de invenção se refere a um

componente positivo e esperado da vida social: afirmar que algo é uma invenção significa

afirmar seu caráter constitutivo, relacional e, metodologicamente, envolve as maneiras como

pensamos e construímos a antropologia, a cultura e o outro. Dessa forma, para Wagner

(2010a: 23): “realidades são o que fazemos dela, não o que elas fazem de nós ou o que nos

fazem fazer”.

2 O conceito de metáfora vem da linguística. Roman Jakobson (s.d.) conceitua metáfora como o deslocamento de contexto de um signo. Em Wagner, a metáfora mantém uma relação forte com seu uso mais geral, próximo à definição de Jakobson. Já o termo ideologia carrega muitas acepções. Basta remontarmos à tradição teórica de Karl Marx. Sobre a noção de ideologia, ver: Chauí (2001) e Eagleton (1997). Em Wagner, esse conceito refere-se a outro sentido, à ideia grega propriamente dita; sendo, portanto, um conceito utilizado de maneira diferente e afastado do marco teórico marxiano.

Wagner está preocupado, em A invenção da cultura, com o contexto de trabalho de

campo e de produção do conhecimento antropológico – uma preocupação já apregoada em

Habu –, bem como em compreender os processos de simbolização que envolvem a produção

da cultura. Nessa medida, Wagner compreende que “cultura” é o termo que os antropólogos

inventaram para dar conta do choque com a alteridade. Ele conclui que é a diferença que

precipita a cultura, e que fazer antropologia é comparar antropologias3. Ao argumentar que os

antropólogos inventam a cultura que vão estudar, o antropólogo norte-americano está

afirmando que eles devem dar inteligibilidade à diferença que encontraram em campo a partir

dos termos de sua própria cultura. O conceito de invenção implica, nessa medida, uma

“dialética sem síntese” entre convenção e invenção, sendo esta última um aspecto inerente a

todo ato humano.

Dessa forma, o argumento que o antropólogo “inventa” a cultura que estuda significa

que ele generaliza suas experiências, vivências e impressões em termos que façam sentido em

sua própria cultura (Wagner, 2010a: 61). O importante é ressaltar e elucidar os termos da

invenção: rejeitar a arrogância antropológica, descrever a criatividade nativa – mas sem torná-

la um sistema fixo –, deixando clara a mediação de nossos termos, ou seja, que essa invenção

da cultura do outro é controlada pelas convenções que embasam as pesquisas acadêmicas

ocidentais, tais como premissas, métodos, dados etc. A convenção é um controle e um apoio

para que a invenção faça sentido e seja compreensível. Isso, porque, para serem comunicados,

os símbolos devem ser primeiro compartilhados, o que gera a necessidade de

convencionalizar as invenções, metáforas, inovações, para dar inteligibilidade ao mundo.

Contudo, essa convencionalização do mundo não engessa a invenção; ao contrário, a instiga e

a estimula ainda mais.

A necessidade da invenção é dada pela convenção cultural e a necessidade da convenção cultural é dada pela invenção. Inventamos para sustentar e restaurar nossa orientação convencional; aderimos a essa orientação para efetivar o poder e os ganhos que a invenção nos traz (Wagner, 2010a: 96).

Dentro dessa perspectiva, compreendemos melhor o intuito de Wagner ao afirmar e

dispor tal necessidade nos termos de uma dialética sem síntese entre os dois polos: convenção

e invenção4. A noção de dialética é fundamental aqui, pois dá a ideia de solidariedade: esses

3 Wagner (1972) se refere à “arrogância” antropológica, que se atribui a tarefa de descrever a criatividade de uma cultura, utilizando para tanto os recursos criativos de sua ciência, e descrevendo um sistema fixo, imutável. Uma das implicações metodológicas do conceito de invenção, tal como discutido por Wagner (2010a), é justamente esse reconhecimento: colocar nativo e antropólogo no mesmo plano epistemológico. 4 Apesar de também ser um conceito carregado, especialmente por sua formulação hegeliana e marxiana, Wagner (2010a: 96) observa que seu emprego de dialética é mais próximo da ideia grega, referindo-se a “uma tensão ou alternância, ao modo de um diálogo, entre duas concepções ou pontos de vista simultaneamente

polos não se excluem mutuamente, mas complementam-se. Dessa maneira, as metáforas,

invenções e significados contrastantes só assumem a forma de um paradoxo se pensarmos a

cultura como um sistema, ignorando a dialética que a opera (Wagner, 1972: 10). Seguindo

essa linha de argumentação, um antropólogo deve tornar plausível a invenção da cultura

nativa segundo as convenções acadêmicas da qual faz parte.

Para Wagner (1972), a inovação é um deslocamento de significados de um contexto já

habitual para outro. Porém, para o antropólogo norte-americano (2010a: 40), o caráter

inventivo das ações não é consciente, isto é, o indivíduo que está criando “não pode estar

consciente dessa intenção simbólica ao perfazer os detalhes de sua invenção, pois isso

anularia o efeito norteador de seu ‘controle’ e tornaria sua invenção autoconsciente”. Segundo

Wagner (2010a: 40), as invenções orientam-se por uma imagem de realidade. Nessa medida,

uma etnografia ou uma pintura não meramente descrevem o objeto ou aquilo que figuram.

Nesses casos, há uma simbolização que está conectada com a intenção do antropólogo ou do

pintor.

O “controle”, seja o modelo do artista ou a cultura estudada, força o representador a corresponder às impressões que tem sobre ele, e no entanto essas impressões se alteram à medida que ele se vê mais e mais absorto em sua tarefa. Um bom artista ou cientista se torna uma parte separada de sua cultura, que se desenvolve de modos inusitados, levando adiante suas ideias mediante transformações que outros talvez jamais experimentem. [...] E é por isso que vale a pena estudar outros povos, porque toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com nossa própria cultura (Wagner, 2010a: 41).

O “controle” da invenção é estendido por meio de analogias, aproximações e

metaforizações que vão incorporando novas articulações cada vez mais abrangentes, “de

modo que um conjunto de impressões é recriado como um conjunto de significados”

(Wagner, 2010a: 41). Nesse sentido, o antropólogo norte-americano (2010a: 40) explica que

[...] nosso entendimento tem necessidade do que lhe é externo, objetivo, seja este a própria técnica, como na arte “não objetiva”, ou objetos de pesquisa palpáveis. Ao forçar a imaginação do cientista ou do artista a seguir por analogia as conformações detalhadas de um objeto externo e imprevisível, sua invenção adquire uma convicção que de outra forma não se imporia. A invenção é “controlada” pela imagem da realidade e pela falta de consciência do criador sobre o fato de estar criando. Sua imaginação – e muitas vezes todo o seu autogerenciamento – é compelida a enfrentar uma nova situação; assim, como no choque cultural, ela é frustrada em sua intenção inicial e levada a inventar uma solução.

Na introdução de Habu, Wagner (1972) apresenta uma parábola sobre o dia do

julgamento final, no qual Deus convocaria todos os artistas que tentaram representar as

criaturas do mundo e os desafiaria a dar vida às suas criações. O ponto em que Wagner, e

contraditórios e solidários entre si”.

também nossa análise, quer enfocar não é tanto o da representação, mas sim o da criação.

Wagner utiliza essa parábola para observar a arrogância presente nos trabalhos de artistas,

cientistas, pintores e antropólogos que buscam criar algo exterior e/ou estranho mediante sua

própria criatividade. O antropólogo norte-americano quer atentar para a questão da invenção

criativa de outra cultura, trabalho do antropólogo, em relação à necessidade de se respeitar,

também, a criatividade nativa. Logo, não é uma questão acerca de uma possível concepção

“dêitica” de criação que está sendo colocada, tampouco de comparação realista entre

representação e representado. O que está em pauta nessa discussão, na verdade,

[...] é como as pessoas criam suas próprias realidades e como criam a si mesmas e suas sociedades por meio destas, mais do que a questão de saber o que são essas realidades, como se originaram ou como se relacionam com aquilo que “realmente” está ali (Wagner, 2010a: 195).

Se, primeiramente, Wagner enfrenta, pelo menos em A invenção da cultura, a

invenção cultural explorando a criação dialética do significado, nos capítulos finais do livro,

ele coloca o problema do funcionamento da dialética quando ela é mediada. Assim, nossa

tradição cultural ocidental medeia a dialética por meio de relações e expressões coletivizantes

e, dessa maneira, cria e compreende o mundo – que, conforme explica o antropólogo, é

fundamentalmente dialético – em termos lineares e racionais. Isto é, o mundo no ocidente é

construído a partir de conexões causais, negando e mascarando os aspectos contraditórios e

paradoxais do pensamento e da cultura. Nessa medida, “a diferenciação e a contradição são

racionalizadas e ‘inseridas no sistema’ como ‘meios’ para um ‘fim’ único, monolítico – uma

vida melhor, um governo mais democrático, uma espécie humana mais forte e assim por

diante” (Wagner, 2010a: 194).

Destarte, os controles convencionais da cultura ocidental são relativizados, e isso

porque nos agarramos à nossa Cultura, acima de todas as tentativas de reinventá-la: “não

remodelamos nossa Cultura de tempos em tempos e caímos num limbo de recriação porque a

amamos” (Wagner, 2010a: 106). Para o antropólogo norte-americano, por cultuarmos nossa

própria Cultura, não há nada que detenha a progressiva relativização dos controles, e os

esforços, nesse sentido, tomam a forma de uma inversão dos controles culturais, que, segundo

Wagner, podem ser vistas nos grandes eventos históricos, como as Cruzadas, na ascensão da

ciência empírica, nas Revoluções Francesa e Americana, nas guerras mundiais, entre outros.

Segundo Wagner (2010a), os eventos históricos, as descobertas científicas, os ideais

de racionalidade e liberdade foram menos acréscimos ao que chamamos conhecimento, e

muito mais precedentes e precursores de um tipo de invenção do eu em relação ao mundo.

Sendo assim, Wagner (2010a: 192) afirma que, em nossa moderna cultura ocidental, “as

tarefas e os papéis da vida ‘cotidiana’ se tornam cada vez mais coletivizados (facilitando o

uso do dinheiro nas trocas e sendo facilitados por tal uso) e assimilados a uma ‘Cultura’

comum”. Isso ocorre porque os controles convencionalizados utilizados em nossa invenção de

mundo se tornam cada vez mais diferenciados, forçando-nos a esforços cada vez mais

enérgicos em busca de controlar nossa orientação coletivizante em direção a um “fundo

cultural comum”.

Essa autocriação e automotivação da Cultura ocidental moderna é inerentemente

instável. As soluções coletivizantes são construídas por um senso de urgência cada vez maior,

e servem para criar o mundo do dado e do incidente individuais sob formas sempre mais

exigentes. Ou seja, a sociedade é desafiada por suas próprias criações: os fatos da história e da

ciência, as necessidades das minorias, a integração de espaços, etc. Assim, “cada fracasso

motiva um esforço coletivizante mais amplo” (Wagner, 2010a: 201).

Por outro lado, o processo de gradual relativização dos controles de nossa Cultura,

pelo fato de mediarmos a dialética de forma coletivizante, racional e linear, leva ao também

progressivo processo de esgotamento de nossos símbolos, que entram em colapso em seu

contínuo uso. Portanto, precisamos sempre forjar novas articulações simbólicas para

conseguir reter a orientação convencional que nos possibilita o próprio significado. É essa

necessidade que impulsiona a “cultura interpretativa”, bem como os diversos esforços

políticos e econômicos para controlar a crescente relativização do eu e da sociedade:

movimentos de contracultura, guerras intermitentes pelo mundo, movimentos sociais, blocos

econômicos, etc. Tanto na propaganda quanto na política, os produtos e ideias (leis, medidas

econômicas e de segurança) são vendidos ao serem objetificados por meio de certos estilos de

vida, ou seja, esses produtos e discursos são investidos com poder e excitação, de modo a

passar esse poder para o cotidiano, renovando e recriando seus significados. E é dessa

reinterpretação constante que vive nossa cultura.

[...] uma Cultura “naturalizada” e particularizada e uma natureza organizada e sistematizada fazem parte de um mundo altamente relativizado, cuja distinção crucial entre “o que fazemos” e “o que somos” vem sendo substancialmente erodida e desmantelada pela troca de características. [...] A frustração engendrada por tal mundo, que não pode nem realizar nem criar seus próprios significados de forma efetiva, rapidamente se resolve numa apatia motivacional quanto à Cultura e à sua percepção tradicional do “eu” e numa profunda reação de antipatia diante de soluções tradicionais, numa necessidade de “fazer algo a respeito das coisas” (Wagner, 2010a: 115).

Strathern: críticas, conceitos e métodos de O Gênero da Dádiva

A obra The Gender of the Gift ([1988] 2006), da antropóloga inglesa Marilyn

Strathern, é, sem dúvida, um dos textos mais fundamentais da antropologia contemporânea, e,

mais especificamente, vale ressaltar, da antropologia contemporânea inspirada pelo

feminismo. Baseando-se numa ampla bibliografia, tanto do feminismo como da antropologia

– que dão suporte ao seu “experimento narrativo” –, Strathern alcança outra resposta à crise

da representação na antropologia, que não aquela encontrada por Marcus, Clifford, entre

outros da geração “pós-moderna”, posto que a antropóloga aposta nas generalizações e nas

comparações, assumindo, assim, os riscos embutidos nessa postura. Esse embasamento

teórico permite a autora articular as abordagens feministas e antropológicas, arriscando uma

“etnografia das práticas ocidentais de conhecimento” nos primeiros capítulos; e expondo, ao

longo do livro, o que ela acredita ser “as práticas de conhecimento melanésias”, de modo a

reconsiderar, a partir disso, questões feministas – a dominação masculina – e antropológicas –

a comparação (Strathern, 2006: 21).

Contrapondo o conhecimento antropológico, o pensamento feminista e o material

melanésio, o livro propõe uma discussão de temas clássicos da antropologia, submetendo à

crítica os pressupostos e os conceitos que informam muitos dos debates das ciências sociais

ocidentais. Essa estratégia, que podemos chamar de triangulação, consiste em cruzar esses

três campos de conhecimento e visa demonstrar que o tema do gênero possibilita o

questionamento dos pressupostos e metáforas mais básicas da antropologia, bem como do

próprio feminismo. O núcleo dessa “experiência de pensamento”, que é o que melhor define

O Gênero da Dádiva, está na crítica da autora sobre as “análises antropológicas

convencionais” acerca do tema da dádiva que, indiretamente, atingem o tema do gênero. Seu

objetivo, com isso, é apreciar os dados (sociais e culturais) por meio dos quais a antropologia

e o feminismo se estabelecem; e, para tanto, é necessário contextualizar, primeiro, os supostos

das questões priorizadas pelos dois campos.

Ora, ao colocar esses campos em confronto, a autora busca não apenas questionar a

dicotomia, tão naturalizada, de dádiva/mercadoria, mas também ir atrás de uma ainda anterior

e mais fundante das ciências sociais: a dicotomia indivíduo/sociedade. O questionamento dos

pressupostos mais básicos das ciências sociais tem o escopo de mostrar como esses supostos

são tomados como autoevidentes. Strathern procura explorar essas dicotomias, ou metáforas,

essenciais e tomadas como dadas no pensamento científico: indivíduo/sociedade;

dádiva/mercadoria; nós/eles. Nesse sentido, a antropóloga propõe um “diálogo interno à

linguagem de análise”: admite as premissas dos escritos anteriores sobre a Melanésia como

provenientes de um modo de conhecimento particular – e sabendo-se dentro desse modo, pois

Strathern não pretende excluir-se, quer dizer, olhar “de fora” o material. Ou seja, a autora

almeja tornar visível o próprio funcionamento de sua narrativa, e, com efeito, explorar seu

“próprio potencial reflexivo”. “Assim, minha narrativa opera através de várias relações ou

oposições; ao eixo nós/eles, acrescento dádiva/mercadoria e os pontos de vista

antropológico/feminista” (Strathern, 2006: 33). Demonstrar o funcionamento e explorar

reflexivamente esses polos permite analisar e contextualizar cada prática de conhecimento.

Desse modo, observamos que a antropóloga assume o projeto feminista de questionar

o modo pelo qual o imaginário de gênero estrutura conceitos, categorias analíticas, assim

como deslocar preconceitos e pressupostos já amplamente estabelecidos. Porém, Strathern vai

além desse projeto e coloca o feminismo sob a mira da contextualização, pois, tendo em vista

que o feminismo tem suas raízes na sociedade ocidental, é indispensável contextualizar

também os pressupostos desse pensamento. Nessa medida, o questionamento dos

pressupostos e categorias analíticas por meio das quais o gênero, a dádiva e a sociedade na

Melanésia têm sido interpretadas é embasado, antes, no próprio questionamento dos

pressupostos e categorias analíticas da antropologia e do feminismo. Isso, porque, para

descrever as práticas de conhecimento melanésias, Strathern considera necessário, primeiro,

analisar nossas próprias práticas de conhecimento.

Compreendemos, então, a insistência em interrogar pressupostos que nos são tão

básicos e autoevidentes – como o conceito de sociedade, que, para a antropóloga inglesa, é

uma ficção sociológica tomada como realidade nativa. “A idéia de ‘sociedade’ parece um

bom ponto de partida, simplesmente porque ela própria, como uma metáfora para

organização, organiza muito da maneira pela qual os antropólogos pensam” (Strathern, 2006:

37). Mas, só porque esse conceito fundamenta nossa forma de pensar não significa que ele

organize todas as formas de pensar, lembra Strathern – alerta este sinalizado, antes, por

Wagner ([1974] 2010b). Strathern (2006: 39) salienta, nesse sentido, que “nossas próprias

metáforas refletem uma metafísica profundamente enraizada, com manifestações que

emergem em todas as espécies de análises”, o que, em certa medida, explica nossa fixação em

encontrar nos outros nossas dualidades explicativas do mundo: natureza/cultura;

indivíduo/sociedade; parte/todo.

Logo, o esforço comparativo lançado no livro busca torcer o sentido de ambos os

termos colocados em comparação, visando não necessariamente chegar a universais, mas,

mais fundamentalmente, mostrar as diferenças. Ou seja, não se trata tão e somente de partir de

uma base comum, mas sim de comparar, justamente para perceber as diferenças e equívocos.

No entanto, a estratégia antropológica da comparação não escapa da crítica de Strathern; a

autora retoma a utilização desse método na antropologia para demonstrar como a comparação

é ainda possível na disciplina, e, além disso, para revelar sua intenção ao se apropriar dessa

metodologia: estabelecer conexões parciais entre antropologia e feminismo, entre dom e

mercadoria. Tal exercício de pensamento assume ainda outros riscos. Conforme já dissemos, a

autora rejeita de imediato a saída pós-moderna e aposta na possibilidade em falar do outro,

ainda que isso acarrete a necessidade de depurar os conceitos ocidentais que são utilizados na

descrição e na análise, e admitir, assim, que seu texto é uma ficção, contudo, uma ficção

controlada (Strathern, 2006: 31).

A inovação que Strathern traz ao tratar do tema da dádiva na Nova Guiné é pensar essa

questão como uma ação distinguida pelo gênero. Se a dádiva é um tema clássico na disciplina,

antes mesmo de Mauss e seu célebre ensaio, a antropóloga demonstra como essa troca é

tomada, na antropologia, como dada: circulam-se artigos de diversos tipos entre os agentes

que a realizam; e o poder envolvido nessa troca está no controle do evento e dos bens. Nessa

perspectiva convencional, o comportamento da troca é visto como neutro. Strathern vai,

então, introduzir o elemento de gênero nesta ação: a troca de dádivas na Melanésia não é um

comportamento neutro, mas, ao contrário, marcado pelo gênero.

É preciso ter cuidado nas análises antropológicas, sobretudo quando lidam com

imaginários que também dão grande importância ao gênero, pois existem, nessas análises,

possibilidades de imprecisões e confusões na interpretação das relações entre homens e

mulheres. Portanto, para a antropóloga, é essencial a discussão das premissas nas quais se

baseiam os escritos sobre a Melanésia, pois estes são, sabidamente, pertencentes a um modo

particular de conhecimento e explicação (a saber, o ocidental). Esse cuidado é importante,

visto que um dos objetivos de Strathern é perceber e demonstrar como as ciências sociais

ocidentais beneficiam e favorecem certos interesses na vida social; e o empenho do livro é,

deste modo, entender os interesses presentes em nossa cultura científica ocidental para, de

maneira análoga, imaginar os tipos de interesses presentes em outras culturas.

Nesse sentido, a intenção de Strathern é demonstrar que gênero não é uma identidade

global unitária. “A individualidade da identidade sexual é uma questão cultural nas sociedades

ocidentais. As preocupações com a performance sexual, hetero ou homo, fazem com que o

comportamento erótico seja uma fonte significativa de autodefinição” (Strathern, 2006: 103).

Ou seja, para o ocidente, a identidade de gênero é permanente, inscrita no sexo. Nesse

sentido, é importante salientar que, “o interesse pela identidade como um atributo da pessoa

individual é um fenômeno ocidental [...]. O modelo de papéis sexuais deriva, por sua vez, de

certas suposições culturais a respeito da natureza da ‘sociedade’” (Strathern, 2006: 104). Por

isso, continua a autora, é importante ser claro acerca de quanto queremos ou não tornar nossas

as preocupações dos melanésios quanto a essas questões, pois não é certo que entenderemos

suas suposições de gênero só por compreender a orientação das pessoas em ser homem ou

mulher. Na Melanésia, o gênero é um operador categórico, que distingue situações, corpos e

partes de corpos. O gênero é, portanto, uma estética que está, inclusive, por trás da ação – a

ação da troca, por exemplo, envolve sempre gênero. Dessa forma, o gênero é mais que a

relação homem e mulher, ele é analógico. As pessoas são compreendidas numa forma

marcada pelo gênero, todavia esse é um estado, e não uma identidade.

Detenhamo-nos nesse ponto. Segundo Strathern (2006: 275), “o gênero se evidencia

através do que os melanésios percebem como as aptidões dos corpos e mentes das pessoas, o

que estes contêm dentro de si e os seus efeitos sobre os outros”. Assim, cada melanésio possui

capacidades que podem ser acionadas na interação, “o ser ‘masculino’ ou o ser ‘feminino’

emerge como um estado unitário holístico sob circunstâncias particulares” (Strathern 2006:

43). São essas capacidades de fluidez, e seus efeitos sobre os outros, que são evidenciadas por

meio do gênero. A manifestação das identidades depende das circunstâncias, da forma

assumida por aquele com quem se está interagindo. Essa mutabilidade resulta de um

pensamento que justapõe, e não que classifica. Nesse sentido, as relações de gênero na

Melanésia não são aquelas entre homens e mulheres, mas entre as próprias relações: as

formas transformáveis de pessoas, que podem aparecer como singulares ou múltiplas

(Piscitelli, 1994: 216-217).

Vale ainda ressaltar alguns conceitos fundamentais que Strathern mobiliza na

evocação da vida social melanésia. Isso, porque, dos poucos conceitos com os quais estamos

familiarizados, a antropóloga os articula de maneira que eles possam adquirir outro alcance

analítico. A autora, para apresentar o modo de conhecimento e a vida social melanésias, torce,

por exemplo, nossa significação de pessoa e agente:

A pessoa, ele ou ela, é construída da perspectiva das relações que a constituem; ela as objetifica, sendo assim revelada por essas relações. O agente é construído como aquele, ou aquela, que age em virtude dessas relações, sendo revelado ou revelada por suas ações. Se uma pessoa, encarada do ponto de vista de suas relações com os outros, é um agente, o agente é a pessoa que empreendeu a ação tendo em consideração aquelas relações (Strathern, 2006: 400).

Outros conceitos fundamentais apresentados são o de ação – entendida como efeito,

como performance; gênero – as conceitualizações que as pessoas fazem embasadas nas

diferenças do imaginário sexual, categorização essa que marca as mais variadas ações da vida

social; e o conceito de socialidade, presente na obra do antropólogo Roy Wagner, e proposto

como uma alternativa ao conceito de sociedade. Socialidade estaria atento à criação e

manutenção de relações sociais, que organizam diversas formas de interação individuais e

coletivas, mas não pressupõe unificação. Com efeito, o conceito de socialidade é mais geral

que o de sociedade, dando ênfase na matriz relacional que constitui a vida das pessoas, pois

estas não estão prontas, mas são constituídas por relações. Tendo em consideração essas

afirmações acerca do conceito de socialidade – e sabendo de sua utilização também por

Wagner –, podemos observar que ambos os antropólogos têm interesse na relação.

Strathern e Wagner: apontamentos sobre as influências e aproximações

Após essas considerações sobre os dois autores melanesistas, passamos agora a

levantar alguns pontos de contato e de influência entre Roy Wagner e Marilyn Strathern

dentro d’O Gênero da Dádiva. Como Wagner, e profundamente influenciada por ele,

Strathern também trata de diferentes modos de pensamento e reflexividade, sem cair, no

entanto, na armadilha “pós-moderna” de falar só sobre si mesmo. Atentos às críticas pós-

coloniais – e Strathern, também, às críticas feministas –, esses autores propõem-se a falar,

descrever e analisar o outro, e, mais precisamente, as maneiras pelas quais esses outros

descrevem e concebem o mundo. Além disso, os dois antropólogos, cujo campo etnográfico é

a Melanésia, arriscam generalizações e comparações, ainda que com particularidades

metodológicas. Em meu entender, uma das diferenças é que Wagner é mais ousado ao propor

uma teoria geral da simbolização, n’A invenção da cultura ([1975] 2010a), ainda que a

proposta de Strathern não seja menos ambiciosa e complexa.

Tanto em Habu (1972) como n’A invenção da cultura, notamos que Wagner concentra

sua atenção na dialética cultural entre invenção e convenção, mostrando e descrevendo o

funcionamento dessa dialética nos dois tipos de simbolização daí decorrentes (diferenciante e

coletivizante). Já Strathern, orientada pelas ideias de Wagner, procura entender a estética do

gênero e a metáfora da dádiva como práticas de conhecimento dos melanésios; essas ideias

quanto à troca também caem em duas formas de ação (personificação e reificação), que são

aproximadas, pela própria autora, às tipificações sobre a simbolização de Wagner. Notamos,

por exemplo, as diferenças e aproximações de ordem metodológica: Strathern deixa claro o

funcionamento de sua estratégia analítica, expõe os eixos de sua interpretação, seu método de

triangulação e seu esforço comparativo na intenção de questionar os pressupostos ocidentais

enraizados e lançados aos melanésios nas ciências sociais. Wagner, mormente n‘A invenção

da cultura, anterior à obra da antropóloga inglesa, inova também na metodologia: seu método

e suas proposições são também novos, no sentido de redefinir a própria noção de cultura e

ampliar a de invenção, abrangendo, assim, os entendimentos da própria prática etnográfica e

antropológica. Nesse sentido, Wagner afirma que

[...] o estudo da cultura é cultura, e uma antropologia que almeje ser consciente e desenvolver seu senso de objetividade relativa precisa se avir com esse fato. O estudo da cultura é na verdade nossa cultura: opera por meio de nossas formas, cria em nossos termos, toma emprestado nossas palavras e conceitos para elaborar significados e nos recria mediante nossos esforços. Todo empreendimento antropológico situa-se portanto numa encruzilhada: pode escolher entre uma experiência aberta e de criatividade mútua, na qual a “cultura” em geral é criada por meio das “culturas” que criamos com o uso desse conceito, e uma imposição de nossas próprias preconcepções a outros povos (Wagner, 2010a: 46).

A crítica de Strathern à antropologia convencional, que ela exemplifica e analisa em

relação ao tema da dádiva, está calcada nesse mesmo argumento epistemológico do qual fala

Wagner – só que a antropóloga inglesa busca, também, outra fonte para embasar sua crítica: o

feminismo. É essa argumentação, presente na citação de Roy Wagner, que perpassa as

formulações de Strathern acerca da antropologia que não questiona seus pressupostos, que os

toma como dados e os procura em outros povos, sem se preocupar em saber, primeiro, se

esses pressupostos realmente são encontrados ou são problemas para essas populações.

A questão primordial nessa problematização dos pressupostos mais básicos das

ciências sociais, como o de sociedade, passa não apenas por essa crítica, mas também pelo

reconhecimento da “criatividade humana”, o que envolve um passo crucial, ético e teórico, e

que

[...] consiste em permanecer fiel às implicações de nossa presunção da cultura. Se nossa cultura é criativa, então as “culturas” que estudamos, assim como os outros casos desse fenômeno, também têm de sê-lo. Pois toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, negando-lhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós (Wagner, 2010a: 46).

Fundamentada em Wagner, Strathern (2006: 68-69) explica e continua a crítica à disciplina

antropológica:

Wagner (1975) observou que os ocidentais estão prontos a reconhecer a criatividade e inventividade na maneira pela qual outras culturas elaboram sua vida social, mas imaginam que elas assim o fazem em referência aos mesmos fatos da natureza nos quais se baseia a inventividade ocidental. Infelizmente, os antropólogos muitas vezes vão ainda além disso e, na interpretação dos sistemas simbólicos de outros povos, supõem que as referências desses mesmos construtos ideacionais são também as que informam as suas próprias invenções. Entretanto, com base nessa dupla recomendação, parece que a busca do exótico deve ser seguida em virtude das mesmas razões pelas quais ela é usualmente desdenhada. Por abandonar o terreno em que se situa a noção de “sociedade”, a saber, que as convenções sociais deveriam ser entendidas em primeiro lugar como maneiras de solucionar problemas universais da existência humana.

Pensando em vários de seus textos, como Habu (1972), “Analogic Kinship” (1977),

“Existem grupos sociais na Nova Guiné?” ([1974] 2010b), mas fundamentalmente em A

invenção da cultura (2010a), observamos que Wagner inova e provoca a antropologia

ocidental realizada até então em suas proposições e também no nível metodológico, no

sentido de que procura redefinir a própria noção de cultura e ampliar a de invenção,

abrangendo, assim, os entendimentos da própria prática etnográfica e antropológica. A crítica

de Wagner à antropologia convencional perpassa as formulações da antropologia que não

questiona seus próprios pressupostos, que os toma como dados e os procura em outros povos,

sem se preocupar em saber, primeiro, se esses pressupostos realmente são encontrados ou são

problemas para essas populações.

Logicamente, a crítica de ambos não se refere unicamente às ciências sociais, e em

particular à antropologia. Essa crítica é endereçada às ciências ocidentais em geral, que, com

vistas a completar seu projeto, considerado – paradoxalmente – intrinsecamente inacabado,

geram uma necessidade de inovação totalizadora, e também incompleta. Conforme sintetiza

Wagner (2010a: 98), o funcionamento da ciência ocidental em sua necessidade de invenção

gera um problema motivacional, uma compulsão, uma “obsessão coletivizadora”, completa

Strathern (2006: 50), e, portanto, suscita uma cultura de contínua frustração.

Aplicamos as ordens convencionais e as regularidades da nossa ciência ao mundo dos fenômenos (“natureza”) para poder racionalizá-lo e compreendê-lo, e no processo a nossa ciência se torna mais especializada e irracional. Simplificando a natureza nós assumimos sua complexidade, e essa complexidade aparece como uma resistência interna à nossa intenção. A invenção inevitavelmente confunde as distinções da convenção ao relativizá-las (Wagner, 2010a, p.98).

Dando voz às constatações de Wagner, aparentes no trecho supracitado, Strathern

observa que a análise antropológica, isto é, seu modo sistemático de trabalhar com os dados

que recolhe em campo, é sua própria inimiga. Por isso a preocupação dos dois autores em

tornar visíveis suas argumentações e procedimentos, o que Strathern denominará de trabalhar

“no limite da linguagem”:

A linguagem analítica parece criar-se a si própria como cada vez mais complexa e mais distante das “realidades” dos mundos que ela procura retratar, e não menos das linguagens nas quais os próprios povos as descrevem. A compreensão do quão diversos e complexos são esses mundos parece ser um artifício da análise, a criação de mais dados para torná-la mais trabalhosa. Há, portanto, uma inerente sensação de artificialidade no conjunto do exercício antropológico – a qual induz à aparente solução de que o que se deveria fazer é visar à simplicidade, restaurar a clareza da compreensão direta (Strathern, 2006: 32).

A frustração, a “necessidade de fazer algo a respeito”, o “progresso em nome do qual

vivemos, um progresso que precisa constantemente inflar, exagerar e criar ‘o velho’ como

parte da apresentação ‘do novo’” (Wagner, 2010a: 116), gera essa “obsessão coletivizadora”.

Assim, tendo em vista essas críticas e argumentações, podemos compreender o ensejo da

adoção do princípio do “como se” em ambos os autores aqui discutidos. Wagner utiliza esse

procedimento já em Habu (1972), mas o pensa mais elaboradamente como princípio

metodológico n’A invenção da cultura (1975), expondo a definição da antropologia como “o

estudo do homem ‘como se’ houvesse cultura” (Wagner, 2010a: 38). Esse procedimento

aparece antes em Leach, na etnografia Sistemas políticos da Alta Birmânia (1996); mas

Wagner o retoma e redefine:

Se a cultura fosse uma “coisa” absoluta, objetiva, “aprender” uma cultura se daria da mesma forma para todas as pessoas [...]. Mas as pessoas têm todo tipo de predisposições e inclinações, e a noção de cultura como uma entidade objetiva, inflexível, só pode ser útil como uma espécie de “muleta” para auxiliar o antropólogo em sua invenção e entendimento. Para isso, e para muitos outros propósitos em antropologia é necessário proceder como se a cultura existisse na qualidade de uma “coisa” monolítica, mas para o propósito de demonstrar de que modo um antropólogo obtém sua compreensão de um outro povo, é necessário perceber que a cultura é uma “muleta” (Wagner, 2010a: 36).

Ou seja, é preciso ter consciência dos pressupostos e de suas utilizações ao longo da

invenção e compreensão de outros povos. Como explicamos anteriormente, para Wagner, a

antropologia denomina seu choque com a alteridade de cultura, um termo que lhe é familiar e

que auxilia o pesquisador em campo a compreender e, dessa maneira, a controlar sua

experiência com o outro. A antropologia, então, é essa invenção de cultura, tanto no sentido

amplo como no restrito.

O efeito dessa invenção é tão profundo quanto inconsciente; cria-se o objeto no ato de tentar representá-lo mais objetivamente e ao mesmo tempo se criam (por meio de extensão analógica) as idéias e formas por meio das quais ele é inventado. O “controle”, seja o modelo do artista ou a cultura estudada, força o representador a corresponder às impressões que tem sobre ele, e no entanto essas impressões se alteram à medida que ele se vê mais absorto em sua tarefa (Wagner, 2010a: 41).

Para considerar os princípios aos quais se balizam as categorizações e as relações de

gênero, Strathern não abre mão desse procedimento, pensando, como Wagner, na necessidade

de, na síntese buscada por intermédio da análise, esclarecer as técnicas e estratégias utilizadas

na argumentação.

A idéia de “análise” faz parte do argumento. Grande parte do material deste livro apóia-se na exegese simbólica, isto é, na elucidação daquilo que uma antropologia mais antiga chamaria de representação das pessoas sobre si próprias, em seus valores e expectativas e nos significados que elas dão a artefatos e eventos. O procedimento analítico aparece, pois, como de tipo decodificador. Não se está levando a cabo um procedimento decodificador que os melanésios também seguiriam se desejassem trazer a tona um mapa total de sua construção de sentidos. [...] A decodificação nativa, assume, por assim dizer, a forma de transformação ou inovação simbólica (Strathern, 2006: 46).

Dessa forma, se os melanesistas pecaram pelo holismo e hoje se voltam para a história,

conforme demonstra a antropóloga; ela, Strathern, prefere deliberadamente se lançar num

exercício de pensamento que mantenha a análise como uma espécie de ficção controlada, se

valendo de metáforas e de um diálogo interno à linguagem, a fim de conservar a

complexidade dos fenômenos.

Nessa perspectiva, Strathern procura pensar o simbolismo sexual como metáfora –

ressaltando que este conceito foi usado como intercambiável com o conceito de signo, e não

em contraste com o signo mesmo, como demonstrará Wagner (1978); nesses termos, a

estratégia epistemológica era assim formulada para concordar “com um esforço que via a

construção do masculino e do feminino como concebida com referência ao que os homens e

as mulheres faziam/eram” (Strathern, 2006: 121). Esse modelo constrói os conceitos

articulados à dominação como um benefício; logo, não consegue explicar os imperativos que

caracterizam a diferença e nem os exemplos das associações positivas das mulheres com a

vida ritual (Strathern, 2006: 152). Por isso, a antropóloga inglesa prefere a formulação que

compreende o gênero como demarcando diferentes tipos de atuação. Embasada em Wagner

(2010b), ela afirma: “As pessoas impactam [impinge] umas às outras de maneira diferenciada,

e imaginar âmbitos de eficácia ‘masculinos’ e ‘femininos’ torna-se uma maneira de trazer à

tona esses diversos tipos” (Strathern, 2006: 152).

Ao questionar a “sociedade” como um conceito que soluciona problemas universais da

existência humana, e ao abandonar o terreno em que se situa essa noção, Strathern atenta que

este conceito é também um mecanismo de criação de problemas.

Esta é a outra face do modelo que vê as pessoas individuais como tendo que resolver os problemas apresentados por seu envolvimento num contexto particular. Nos termos desse modelo, a sociedade pode superar as diferenças naturais entre indivíduos, mas, ao fazê-lo presenteia-os com problemas peculiares aos contextos em que estão envolvidos e com os quais têm de lutar, como têm de fazer com respeito a tantas óbvias diferenças na condição humana. Nesse sentido, as sociedades colocam problemas igualmente para os homens e para as mulheres. No mínimo, portanto, deveríamos abandonar a metáfora tecnológica que imagina a sociedade como um mecanismo que “produz” coisas a partir dos recursos naturais com vistas a ampliar o potencial humano e deixar aberta a questão relativa a todos os problemas humanos serem ou não os mesmos (Strathern, 2006: 69).

Desde 1950, a antropologia melanesista, formada pelos cânones africanistas, descobriu

nas terras altas da Nova Guiné grupos locais e de descendência, diretamente influenciados por

modelos africanistas. A crítica de Strathern a essa antropologia está fortemente calcada no

artigo de Wagner ([1974] 2010b): “Existem grupos sociais nas terras altas da Nova Guiné?”.

Segundo o antropólogo (2010b), o debate melanesista centrou-se em torno da questão da

solidariedade grupal entre os membros de entidades políticas organizadas, reconhecidas pelos

antropólogos segundo seus modelos; e as atividades consideradas como “processos” (rituais e

relações) compunham essa questão. Strathern (2006: 93), então, retoma o alerta de Wagner:

“Como observa Wagner (1974), os antropólogos começaram, por conseguinte, a tornar seus

os problemas dos habitantes das Terras Altas”. Por isso a crítica veemente dos dois

antropólogos ao conceito de sociedade imputado aos outros.

Em que espécie de contextos culturais as autodescrições das pessoas incluem uma representação delas próprias como uma sociedade? Mas a questão é absurda se supomos que o objeto de estudo é “tudo o que está inscrito na relação de familiaridade com o meio conhecido, a apreensão sem questionamento do mundo social que, por definição, não reflete sobre si próprio” (Bourdieu, 1977, p.3, grifo removido). [...] O que se torna notável, por conseguinte, é

que isso seja admitido como verdadeiro em grande parte da pesquisa antropológica sobre formas simbólicas, a facilidade com que se argumenta que as pessoas possuem uma representação da “sociedade”. Essa suposição em nome dos outros é, certamente, uma presunção por conta dos observadores que “sabem” que pertencem a uma sociedade (Strathern, 2006: 35).

Dessa presunção antropológica, já nos falava Wagner. De acordo com nossos

pressupostos, a sociedade pode ser entendida como “aquilo que conecta os indivíduos entre si,

as relações entre eles. Assim, concebemos a sociedade como uma força ordenadora e

classificadora e, nesse sentido, como uma força unificadora que reúne pessoas que, de outra

forma, se apresentariam como irredutivelmente singulares” (Strathern, 2006: 40). Nesse

sentido, podemos compreender a adoção do conceito de socialidade por ambos os autores aqui

discutidos, tendo em vista sua maior abrangência e sua ênfase na relação.

Como, então, os povos das terras altas da Nova Guiné criam sua socialidade? Quais são os “fatos”, tais como os nativos os fazem? Eles têm a “sociedade como problema” e uma solução sistêmica para ela, ou seus problemas são concebidos de forma totalmente diferente, relacionando-se apenas indiretamente ao agrupamento social? (Wagner, 2010b: 245).

E segue:

Termos como “clã” e “comunidade” podem ser formas úteis de se referir a esses agrupamentos associativos, contanto que tenhamos em mente que esses termos geralmente denotam associações bastante “não intencionais” e não tentemos transformá-los em representações de nossas próprias corporações e organismos conscientemente sócio-políticos. Eles são a socialidade e a relação humana sem distinções inerentes, e é por isso que as pessoas precisam elas mesmas estabelecer distinções, embora, é claro, também eliciem a socialidade no ato de estabelecê-las. Nesse aspecto, são o oposto de nossas formas ocidentais, em que as pessoas formam grupos por meio da participação deliberada e, assim, eliciam distinções de “classe” e “nacionalidade” (Wagner, 2010b: 249).

Desses apontamentos, Strathern (2006: 153) sintetiza: “a socialidade é vista como

baseadas nas relações entre indivíduos, nas construções sociais e culturais dos indivíduos ou

das pessoas sexuadas (homens e mulheres) cuja individualidade ou caráter sexual se encontra

além da construção”. Pelo exposto, notamos a preferência e a influência sobre Strathern das

formulações, conceitos, argumentações e estratégias de Roy Wagner. O antropólogo se

propõe a analisar a motivação humana num nível radical. Nesse intento, que começou em

Habu (1972) e foi potencializado epistemologicamente n’A invenção da cultura, Wagner

(2010a: 17) compreende que

[...] todas as simbolizações dotadas de significado mobilizam a força inovadora e expressiva dos tropos ou metáforas, já que mesmo símbolos convencionais (referenciais), os quais não costumamos pensar como metáforas, têm o efeito de “inovar sobre” (isto é, “ser reflexivamente motivados em contraste com”) as extensões de suas significações para outras áreas.

Strathern elege Wagner como autor fundamental em seu exercício de pensamento

porque, como ela mesma observa, a posição teórica de Wagner “envolve simultaneamente as

tendências ocidental e melanésia, com a idéia de que um símbolo é tanto uma expressão

convencional, artificial, de algo já (inventado) existente por si próprio, como o desejo

inventivo de extrair das relações e das pessoas as capacidades inatas (convencionadas) que

nelas se encontram” (Strathern, 2006: 265).

Strathern está embasada na dialética entre convenção e invenção, nos modos de

simbolização coletivizante e diferenciante, que envolvem a simultaneidade, ou seja, o que

existe é a predominância de um dos modos à custa da ocultação do outro, também presente na

ação. Segundo as ficções da antropóloga britânica, a relação convenção/invenção assemelha-

se às relações pessoa/coisa, mercadoria/dádiva, no sentido de que uma contextualiza a outra,

pois derivam de práticas simbólicas.

O contraste é, por certo, uma técnica que elaboramos para fazer com que as suposições de outros “apareçam” com alguma autonomia em nossos relatos. Os capítulos que se seguem apóiam-se em algumas das técnicas de Wagner, aludindo também à sua etnografia sobre as Terras Altas. Pois continua presente a necessidade de tais artifícios, assim como de críticas desse tipo, em virtude da tenecidade da intervenção de nossas próprias metáforas (Strathern, 2006: 266).

Notamos, nesse trecho, a identificação de Roy Wagner como arcabouço teórico-

metodológico da obra, especialmente da segunda parte d’O gênero da dádiva. Se, como a

própria autora esclarece, a primeira parte pode ser entendida como uma etnografia das

práticas de conhecimento ocidentais, na busca de exorcizar nossas metáforas e pressupostos,

demonstrá-las e torcê-las, visando, ao trabalhar nesse limite, deslocá-las; a segunda parte se

preocupa “com uma diferença antropologicamente concebida entre as culturas melanésia e

ocidental, dando voltas à linguagem de uma para apresentar a outra” (Strathern, 2006: 447). A

segunda parte descreve, portanto, técnicas na conceituação das relações sociais comuns a

algumas culturas das terras altas; ou seja, trata-se de uma etnografia das práticas de

conhecimento melanésias. Strathern (2006: 332) inicia essa discussão aprofundando as

potencialidades da improvisação e invenção, fundamentada em Wagner, e continua os

próximos capítulos atenta aos níveis e consequências epistemológicas dessa posição. Com

isso, argumenta que as coisas, na Melanésia, não aparecem por si mesmas, mas precisam ser

constrangidas à existência pela ação das pessoas, e esse encadeamento trabalha criando

indivíduos como agentes e relações como causas de eventos.

Considerações Finais

Deste modo, tendo em conta o que discutimos até aqui, observamos que Wagner não

opera com dicotomias, mas com coexistência. Logo, Strathern busca neste antropólogo a

inspiração necessária para demonstrar que o pensamento melanésio opera com justaposição, e

não com classificações. Se Wagner trabalha com as categorias de diferenciação e

coletivização, Marilyn Strathern os transforma em personificação e reificação.

Onde os objetos assumem a forma de pessoas, as ações e atividades revelam necessariamente a pessoa como, por sua vez, um microcosmo de relações sociais. O que se torna oculto são as técnicas de reificação, os pressupostos convencionais através dos quais a revelação funciona. No entanto, tais convenções têm amplas conseqüências para a condução da vida das pessoas. [...] Entendo por objetificação a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação (Strathern, 2006: 267).

Ora, o próprio conceito de objetificação aparece, antes, em Wagner (2010a: 85-86):

“Invenção”, o “signo” da diferenciação, é o obviador [obviator] dos contextos e contrastes convencionais; de fato, seu efeito total de fundir o “sujeito” e o “objeto” convencionais, transformando um com base no outro, pode ser rotulado “obviação” [obviation]. Conferir ou receber associações de um contexto para o outro é uma conseqüência desse efeito, a qual proponho chamar de objetificação. [...] Uma simbolização convencional objetifica seu contexto díspar ao conferir-lhe ordem e integração racional; uma simbolização diferenciante especifica e concretiza o mundo convencional ao traçar distinções radicais e delinear suas individualidades. Mas como a objetificação é simplesmente o efeito da fusão ou obviação dos contextos sobre cada um deles [...], os dois “tipos” de objetificação são necessariamente simultâneos e recíprocos: o coletivo é diferenciado ao mesmo passo que o individual é coletivizado.

Strathern apropria-se, nesse sentido, da definição de simbolização diferenciante,

própria ao modelo de ação e de simbolização melanésia para Wagner, e aplica-a às suas

argumentações. Na interação, a necessidade de diferenciar é premente, mas ela só se tornará

visível de fato se ocorrer “dentro” das convenções corretas. Assim sendo, continua a

antropóloga (2006: 273), “a objetificação de relações como pessoas transforma-as

simultaneamente em coisas, na medida em que as relações só são reconhecidas se assumem

uma forma específica”. Como tais formas de objetificação são convencionalmente limitadas,

elas podem ser lidas como formas reificadas: contém em si a evidência do resultado

produtivo. Prossegue, então, Strathern (2006: 273) comparando as formas ocidentais e

melanésias, no estilo wagneriano:

[...] há um número muito pequeno de formas (convencionais) que servirão como evidência de que as relações foram assim ativadas. Elas precisam apresentar certos atributos. Estabelecer atributos, a natureza das coisas não é o foco explícito dessas operações simbólicas, mas está presente como uma técnica operatória implícita. Portanto, de nosso ponto de vista, a operação oculta sua base convencional. A objetificação requer necessariamente o assumir uma forma; o conhecimento precisa ser tornado conhecido numa maneira específica. Os ocidentais apreendem como simbólica a relação entre um item e aquilo que ele “expressa” [...]. Já os melanésios personificam relações [...] e, ao invés, precisam fazer aparecer a forma. Pois um corpo ou uma mente, para estar em posição de extrair um efeito de outrem, de evidenciar poder ou capacidade, precisa manifestar-se numa maneira concreta específica, que se torna, então, o gatilho indutor. Isso só pode ser feito por meio da estética apropriada.

Ora, o argumento de Strathern procurou, ao longo do livro, e, mais especificamente,

em sua segunda parte, explicitar a natureza das relações de gênero na Melanésia e as

consequências delas para homens e mulheres. Para tanto, a autora utilizou-se do contraste

entre o que denominou de personificação das relações manifestas e as técnicas de ocultação

(reificação) que determinam as formas mais adequadas por meio das quais essas relações

serão reconhecidas. Nesse raciocínio, a hipótese de Strathern (2006: 285) é que o “gênero

funciona como um instrumento de reificação, apresentando as ‘coisas’ (efeitos e eventos), por

assim dizer, como as pessoas supõem que elas devam afigurar-se”. A replicação (um dos

modos de reificação) é uma forma estética através da qual aparecem os dois modos de

personificação (troca mediada e não-mediada). Em última instância, a natureza das relações

são convenções estéticas, e o que as pessoas fazem é tornar visíveis as distinções.

“A troca transforma as relações das pessoas umas com as outras em objetos (pessoas),

de tal modo que a capacidade de criar ou ampliar certas relações representa a capacidade de

ativar quaisquer delas” (Strathern, 2006: 327). Embasada fortemente em Wagner (1977; 1972)

– usando, inclusive, o exemplo Daribi para falar da replicação –, a antropóloga inglesa atenta

que são as relações que diferenciam; a troca, nesse sentido, é essencial, pois, é no processo de

personificação que as pessoas são separadas pelas relações sociais entre elas.

Outro foco de influência fortemente marcado é a utilização do texto Analogic Kinship

(1977), de Wagner. Ao discutir eventos, atos, performances que se apresentam no singular,

Strathern (2006: 404) entende o agente como um cotovelo: “as causas são pontos de

referência para o agente que se constitui num pivô, num cotovelo que combina dentro de si

múltiplas perspectivas”. Esse cotovelo de relações é singular, cada evento transforma as

múltiplas causas de sua ocorrência numa ocasião particular. Ou seja, as relações aparecem

como causa do evento, e estão presentes, tornando o evento singular. Em suma, o evento

subsume o agente em sua capacidade como pessoa ao julgamento de outrem, um julgamento

que é estético. Essa argumentação deriva do processo que Wagner chama de “parentesco

analógico”:

As relações (as pessoas) são análogas umas às outras [...]. Mas as ações das pessoas transformam-nas em eventos únicos, de modo que uma relação pode também deslocar outra. Elas se tornam particularizadas. [...] A ativação de relações específicas em cada ocasião significa que a capacidade do agente é, desse modo, particularizada. Nesse sentido, não é replicada, mas vem à tona apenas com respeito a um outro específico, e a relação decorrente assume uma forma dual ou de sexo cruzado. Uso um exemplo de parentesco, pois são as relações desse tipo que eu definiria como baseadas em parentesco. O agente age no sentido de diferenciar essas relações e fazê-las “aparecer”, mas a forma assumida pela diferenciação é uma forma já dada. Enquanto esposa, uma mulher só pode agir como esposa; caso contrário deixa de “sê-lo”. Há, nesse sentido, uma priorização das relações que o agente pode apenas reencenar. Não é preciso dizer que tal diferenciação prévia não é inata, mas é vista sempre como resultado de atos diferenciadores específicos anteriores [...] (Strathern, 2006: 406-407).

Como a própria autora assume, somos confrontados, n’O gênero da dádiva, com uma

verdadeira pletora de termos. Utilizando termos seus (replicação, substituição), de Wagner

(objetificação, diferenciação, invenção e convenção, analogia), e outros com significados

fortemente carregados no pensamento ocidental de outra forma e em outro contexto analítico

(como seu uso de reificação, gênero, ação, agente e pessoa), Strathern os considera, todos,

como pontos privilegiados por meio dos quais se podem pensar os demais. Troca mediada e

não mediada, convenção e invenção, replicação e substituição, personificação e reificação,

socialidade, pessoas: cada um desses termos possibilita refletir sobre o outro termo; ele é um

ponto de partida para expansões, contrastes e contrações um dos outros (Strathern, 2006:

282).

As metáforas de desconstituição ocorreram com freqüência ao longo de minha exposição: destacamento, eliminação, divisão. Eles se verificaram em resposta à ficção de convenção/invenção, introduzida no capítulo 7, e às proposições de Wagner (1978) sobre as práticas de conhecimento melanésias. O conhecimento não é “construído” numa forma: as formas são desmontadas para revelar sua composição. A análise melanésia, se é que assim se pode chamá-la, conduz os indivíduos a testar seus efeitos sobre os outros, a experimentar suas capacidades, improvisando e inovando, pois as capacidades só podem ser conhecidas segundo a maneira pela qual são reveladas. Mas o que os agentes revelam com isso é a sua constituição como pessoas. Tais processos de desconstituição não resultam, como se poderia supor, numa coleção de fragmentos; resultam numa singularidade concebida como uma unidade interna (Strathern, 2006: 419-420).

Enfim, se o livro parece ser repleto de hesitações, de “como se”, “por assim dizer”,

“talvez”, essas oscilações foram propositais, ou melhor, parte fundamental da estratégia

analítica adotada pela autora, que é, como vimos, embasada nos escritos de Roy Wagner. A

autora busca, nessa medida, ressaltar, mostrar a diferença que é, essa sim, base para seu

método comparativo. Por conseguinte, a análise apresentada n’O gênero da dádiva não

procura situar-se como a apresentação das “ideias melanésias”, tampouco se apoia numa

descrição supostamente “fenomenológica” dos fatos e das coisas “tal como aparecem aos

atores”. Ao contrário, a obra de Marilyn Strathern assume seu ponto de vista e suas

preocupações antropológicas e feministas, logo, ocidentais, do que poderiam ser as ideias

melanésias caso elas se aparecessem nesses termos. Ela mesma resume seu intento:

[...] tentei comunicar as práticas de conhecimento melanésias como se elas fossem uma série de análises que possibilitam explanações sobre a maneira segundo a qual as coisas poderiam ser. [...] Procurei mais propriamente expandir as possibilidade metafóricas de nossa própria linguagem de análise. Isso significou analisar as metáforas elas mesmas, nesse caso derivadas da ciência social ocidental, como se elas pudessem ser decompostas, desmontando-as para reutilizar seus componentes. Significou também conjugar uma narrativa da vida melanésia que, sendo sintética, é também, nesse sentido, uma ficção (Strathern, 2006: 445-446).

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