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DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PODER CONSTITUINTE E SUA APLICABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 LA EVOLUCIÓN HISTÓRICA DEL PODER CONSTITUYENTE Y SU APLICABILIDAD EN LA CONSTITUCIÓN BRASILEÑA DE 1988 Pedro Luis Piedade Novaes RESUMO Não há como estudar o Direito Constitucional sem se fazer menção ao Poder Constituinte. Este é, pois, um passo inicial, um ponto de partida para o estudo da matéria de Direito Constitucional. O Poder Constituinte se trata, em apertada síntese, da manifestação soberana da suprema vontade política de um povo, social e juridicamente organizado, ou seja, o poder de elaborar uma Constituição, bem como de reformar a vigente. O Poder Constituinte não deve ser confundido com os poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário). Estes são instituídos pela Constituição, obra do poder constituinte, que poderia optar por outros, como já ocorreu na Constituição Brasileira de 1824, que previu a existência de um quarto poder, o Moderador. O poder constituinte está acima dos poderes constituídos, não devendo ser associado com nenhum deles. O presente trabalho visa dar uma noção geral do que seja o Poder Constituinte, sua origem histórica, suas características, espécies, a fim de propiciar uma apresentação ao estudo do Direito Constitucional e verificar sua aplicação na Constituição Federal Brasileira de 1988. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVES: PODER CONSTITUINTE. HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO. CLÁUSULAS PÉTREAS. RESUMEN No hay manera de estudiar el derecho constitucional sin hacer mención del poder constituyente. Por lo tanto, esto es un paso inicial, un punto de partida para el estudio de cuestiones de derecho constitucional. El poder constituyente es, en resunem, la manifestación suprema de la voluntad política soberana de un pueblo, social y jurídicamente organizado, o sea, el poder de elaborar una constitución y reformar la vigente. El poder constituyente no debe confundirse con los poderes establecidos (Legislativo, Ejecutivo y Judicial). Estos son establecidos por la Constitución, siendo el trabajo del poder constituyente, que podría optar por otros, como ha ocurrido en la Constitución brasileña de 1824, que tuvo la existencia de un cuarto poder, el moderador. El poder constituyente se compone arriba de los poderes establecidos, no debiendo asociarse con ningún de ellos. El presente trabajo pretende dar una noción general de lo que es el poder constituyente, sus antecedentes históricos, las características, las especies, para proporcionar una introducción al estudio del derecho constitucional y 5113

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DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PODER CONSTITUINTE E SUA APLICABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

LA EVOLUCIÓN HISTÓRICA DEL PODER CONSTITUYENTE Y SU APLICABILIDAD EN LA CONSTITUCIÓN BRASILEÑA DE 1988

Pedro Luis Piedade Novaes

RESUMO

Não há como estudar o Direito Constitucional sem se fazer menção ao Poder Constituinte. Este é, pois, um passo inicial, um ponto de partida para o estudo da matéria de Direito Constitucional. O Poder Constituinte se trata, em apertada síntese, da manifestação soberana da suprema vontade política de um povo, social e juridicamente organizado, ou seja, o poder de elaborar uma Constituição, bem como de reformar a vigente. O Poder Constituinte não deve ser confundido com os poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário). Estes são instituídos pela Constituição, obra do poder constituinte, que poderia optar por outros, como já ocorreu na Constituição Brasileira de 1824, que previu a existência de um quarto poder, o Moderador. O poder constituinte está acima dos poderes constituídos, não devendo ser associado com nenhum deles. O presente trabalho visa dar uma noção geral do que seja o Poder Constituinte, sua origem histórica, suas características, espécies, a fim de propiciar uma apresentação ao estudo do Direito Constitucional e verificar sua aplicação na Constituição Federal Brasileira de 1988.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVES: PODER CONSTITUINTE. HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO. CLÁUSULAS PÉTREAS.

RESUMEN

No hay manera de estudiar el derecho constitucional sin hacer mención del poder constituyente. Por lo tanto, esto es un paso inicial, un punto de partida para el estudio de cuestiones de derecho constitucional. El poder constituyente es, en resunem, la manifestación suprema de la voluntad política soberana de un pueblo, social y jurídicamente organizado, o sea, el poder de elaborar una constitución y reformar la vigente. El poder constituyente no debe confundirse con los poderes establecidos (Legislativo, Ejecutivo y Judicial). Estos son establecidos por la Constitución, siendo el trabajo del poder constituyente, que podría optar por otros, como ha ocurrido en la Constitución brasileña de 1824, que tuvo la existencia de un cuarto poder, el moderador. El poder constituyente se compone arriba de los poderes establecidos, no debiendo asociarse con ningún de ellos. El presente trabajo pretende dar una noción general de lo que es el poder constituyente, sus antecedentes históricos, las características, las especies, para proporcionar una introducción al estudio del derecho constitucional y

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para proporcionar una introducción al estudio del derecho constitucional así como la aplicación del poder Constituyente en la Constitución Federal de 1988.

PALAVRAS-CLAVE: PALABRAS LLAVE: PODER CONSTITUYENTE. HISTORIA DE LA CONSTITUCIÓN. CLÁUSULAS PETRAS

1. INTRODUÇÃO

Para analisar o Poder Constituinte, há que ser feito um breve histórico do mesmo.

Cumpre, primeiramente, asseverar que “a idéia da existência de um poder que estabelece a Constituição, ou seja, que estabelece a organização fundamental de um Estado, distinto dos estabelecidos pela Constituição, não obstante encontre raízes remotas na Antigüidade, surge tão-só no século XVIII, associada à idéia de Constituição escrita” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 3).

Desta forma, existe um consenso generalizado na doutrina pátria e do direito comparado que foi o Abade Emmanuel Joseph Sieyés quem em primeiro lugar sistematizou a idéia de Poder Constituinte em sua obra "Qu’est-ce que le tiers état?” (O que é o Terceiro Estado), publicada nos últimos meses de 1788 e os primeiros de 1789. Tal livro foi chamado por muitos como “o manifesto da Revolução Francesa”, posto que expõe reivindicações da burguesia, definindo-a como a nação e, conseqüentemente, titular do poder constituinte (1970).

Como observa Maurício Andreiuolo Rodrigues, “o revolucionário francês pretendia a um só tempo, deslegitimar o poder soberano, apertado nas mãos da monarquia, respaldada em duas classes, o clero e a nobreza; e em contrapartida, legitimar o poder à classe burguesa, ou seja, o Terceiro Estado” (2000, p. 56). Na verdade, “a concepção de Sieyés prende ao Estado a idéia de que ao mesmo é indispensável uma Constituição e que esta é obra de um poder anterior a ela própria - o Poder Constituinte. A Constituição deve ser feita pela nação - conjunto de cidadãos que pertencem à ordem comum, à qual se opõem as ordens privilegiadas” (RIBEIRO LOPES, 1993, p. 46/47).

Como pode observar, de acordo com o ensinamento do Abade Sieyés, a noção de Poder Constituinte é contemporânea à de Constituição escrita. Isto porque se imaginava, naquela época, que o texto escrito impediria governos absolutistas e atitudes detrimentosas aos direitos individuais.

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Não obstante, Michel Temer entende que “nada impede a cogitação de um Poder Constituinte em Estado de Constituição costumeira, como é o caso da Inglaterra (formada de costumes e textos escritos). O que há nestas, é permanente manifestação constituinte, na medida em que os hábitos vão-se sedimentando para corporificar o costume” (2000, p. 30).

Em linhas gerais, a idéia do Poder Constituinte surge na Revolução Francesa como instrumento que visava a limitação do poder estatal e a preservação dos direitos e garantias individuais. Claro que esta idéia de Poder Constituinte, de Sieyés, desenvolveu-se ao longo dos anos, sendo que algumas das indagações do Abade francês estão superadas. Entretanto, fica a sua obra para posteridade como o marco inicial do estudo do Poder Constituinte.

2. AS ESPÉCIES DE PODER CONSTITUINTE

Tradicionalmente, o Poder Constituinte classifica-se em originário e derivado. Este posicionamento é também conhecido como a visão dicotômica do Poder Constituinte. Em linhas gerais pode-se dizer que o Poder Constituinte Originário estabelece a Constituição de um novo Estado, organizando-o e criando os poderes destinados a reger os interesses de uma comunidade, ao passo que o Poder Constituinte Derivado pode se destinar à reforma do texto constitucional vigente (reformador) ou à instituição de constituições dos Estados-membros (decorrente).

2.1. DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

O Poder Constituinte Originário visa a criar o Estado, ou seja, é aquele que inaugura uma Constituição. Para Michel Temer, a idéia da produção de um novo Estado independe se advém de nova constituição proveniente de movimento revolucionário ou de assembléia popular. Segundo o referido autor “não importa a rotulação conferida ao ato constituinte. Importa a sua natureza. Se dele decorre a certeza de rompimento com a ordem jurídica anterior, de edição normativa em desconformidade intencional com o texto em vigor, de modo a invalidar a normatividade vigente, tem-se um novo Estado (2000, p. 33)”.

Segundo Jorge Miranda (2000), há que se fazer uma subdivisão no estudo do Poder Constituinte Originário no que se refere à sua ordem cronológica, visualizando a

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existência do Poder Constituinte Histórico Fundacional e o Poder Constituinte Revolucionário. Para o autor português, o primeiro é aquele que cria a primeira constituição de um Estado (Ex.: Constituição Brasileira de 1824), sendo que o segundo corresponde às Constituições posteriores de um Estado que já existente (Ex.: Constituição Brasileira de 1891 e posteriores).

O mesmo autor português distingue, ainda, o Poder Constituinte Originário em material e o formal. O Poder Constituinte Material Originário representa o próprio processo revolucionário, no ponto de vista sociológico, para criação da constituição, ou seja, pode ser tanto o povo na rua reivindicando a elaboração de uma constituição ou o golpe de estado dado por oposicionistas, dissolvendo um poder constituído. Ao explicar o poder constituinte material originário, Jorge Miranda define que “não é, com efeito, todos os dias que uma comunidade política adopta um novo sistema constitucional, fixa um sentido para a acção do seu poder, assume um novo destino; é apenas em tempos de “viragem histórica”, em épocas de crise, em ocasiões privilegiadas irrepetíveis em que é possível ou imperativo escolher” (2000, p. 77). Complementa que “poder constituinte eqüivale à capacidade de escolher entre um ou outro rumo, nessas circunstâncias” (2000, p. 77). Já o poder constituinte originário formal é o modo como será feita a nova Constituição Federal, que pode vir de uma Assembléia Constituinte (democracia) ou pelo Movimento Revolucionário (outorga). É o instrumento formal de criar uma Constituição, nos anseios do Poder Constituinte Originário material.

2.1.1. DA NATUREZA DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

Atualmente, individualizar a natureza do poder constituinte originário é tarefa dificílima, uma vez que existe divergência de pensamentos entre os positivistas e os jus naturalistas. Para os seguidores do jus naturalismo, o poder constituinte originário é um poder de direito natural de auto-organizar a sociedade. Portanto, o poder constituinte está imbuído dessa força jurígena limitadora, estando, assim, condicionado ao direito natural, que o informa. Segundo os positivistas, trata-se de um poder de fato, que se funda nele próprio sem qualquer parâmetro anterior. É um poder que não pertence ao mundo do direito, não tendo, assim, natureza jurídica. Por esse motivo, o poder constituinte é um poder social, na medida em que tem a atribuição de submeter seus atos à sociedade.

Existe, ainda, uma terceira posição, denominada de política, a qual é defendida por Paulo Bonavides (1997, p. 125 e seguintes). Para essa corrente o poder constituinte originário tem natureza extrajurídica, a qual o adequa ao plano essencialmente político, ou seja, cabe ao estudioso refletir e optar pelo modo através do qual pretende ver exteriorizada aquela atividade criadora. Trata-se, portanto, o Poder Constituinte Originário de uma faculdade meramente política.

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2.1.2. DA TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

A idéia da existência de um poder capaz de elaborar uma nova ordem constitucional para o Estado, faz com que surja uma grande indagação. Quem seria o titular deste poder constituinte e quem teria o condão de exercê-lo?

Segundo a concepção medieval, somente Deus tem uma potestas constituens. Tal afirmação advém da Epístola de São Paulo aos romanos (BÍBLIA, Romanos, v. 13, 1) que determina que non est enim potestas nisi a Deo, ou seja, não há, não existe poder que não venha de Deus. Na visão de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, esse texto da Epístola aos romanos foi interpretado durante muito tempo da seguinte maneira: “todo governo vem de Deus. Isso significa que foi Deus que escolheu para governar determinado povo em determinado tempo, A, B ou C. Era Deus que escolhia Carlos Magno, era Deus que escolhia Henrique IV, na França, Henrique II e assim por diante” (1999, p. 27).

Analisando o aludido texto bíblico, Santo Tomás de Aquino esclarece que a frase da Epístola aos romanos, para ser bem compreendida, deveria ser completada por: sed per populum - ou seja, não existe poder que não venha de Deus, mas pelo povo, através do povo. “Portanto, no pensamento de Santo Tomás de Aquino, é o povo, a comunidade, que estabelece esta ou aquela forma de governo. Toda comunidade, ao ser estabelecida, fixa as bases de seu governo” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 28).

Para o abade Emmanuel Sieyés, “o titular do Poder Constituinte é a nação, pois a titularidade do Poder liga-se à idéia de soberania do Estado, uma vez que mediante o exercício do poder constituinte originário se estabelecerá sua organização fundamental pela Constituição, que é sempre superior aos poderes constituídos, de maneira que toda manifestação dos poderes constituídos somente alcança plena validade se sujeitar à Carta Magna” (MORAES, 1999, p. 51).

Atualmente, “a opinião esmagadora predominante é a de que o supremo poder, num Estado, pertence ao povo; a soberania é do povo; portanto, o Poder Constituinte é do povo” (FERREIRA FILHO, p. 30).

2.1.3. DO EXERCÍCIO DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

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Fixando-se a ideia hoje consolidada de que o titular do poder constituinte originário é o povo, fica a indagação de quem teria a legitimidade de exercer tal poder. Em outras palavras, significa afirmar que existe uma diferenciação entre a titularidade e o exercício do Poder Constituinte, chegando-se à conclusão de que nem sempre o titular é o exercente deste poder.

Michel Temer analisa tal questão da seguinte maneira: “o titular seria o povo. Exercente é aquele que, em nome do povo, implanta o Estado, edita a Constituição. Esse exercício pode dar-se por vias diversas: a) pela eleição de representantes populares que integram” uma Assembléia Constituinte “, ou b) pela revolução, quando um grupo exerce aquele poder sem manifestação direta do agrupamento humano” (2000, p. 31).

Pode-se afirmar, portanto, que existem duas formas do exercício do poder constituinte: a autocrática e a democrática. “Nos regimes autocráticos, as Constituições são outorgadas, isto é, ganham vida sem que tenha havido participação dos governados. A constituição nasce de uma declaração unilateral, de cima para baixo. (...) No regime democrático exige, naturalmente, a participação dos cidadãos. O exercício do poder constituinte, nesta hipótese, é mais complexo diante dos percalços na organização da vontade popular, não obstante seja também, talvez por essa razão mesmo, mais legítimo” (RODRIGUES, 2000, p. 73).

Em suma, são duas formas básicas de expressão do poder constituinte originário: a) a Assembléia Constituinte (acepção francesa) ou Convenção (acepção norte-americana), que nasce da deliberação da representação popular devidamente convocada pelo agente revolucionário para estabelecer o texto organizatório e limitativo de poder; e b) a outorga, que é o estabelecimento da Constituição por declaração unilateral do agente revolucionário, que autolimita seu poder.

Finalmente, convém citar que a história política e jurídica brasileira já presenciou a forma de exercício de poder constituinte autocrático (outorga) nas Constituições de 1824, 1937 e 1967 e a democrática (Assembléia Constituinte) nas Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988.

2.1.4. DAS CARACTERÍSTICAS DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

O Poder Constituinte Originário caracteriza-se por ser inicial, ilimitado e incondicionado.

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É inicial porque não se funda em nenhuma ordem jurídica anterior. Ele inaugura uma ordem jurídica inédita, cuja força geratriz encontra fundamento nele mesmo. Sob este aspecto, Anna Cândida da Cunha Ferraz esclarece que o Poder Constituinte Originário “é inicial porque não se funda em qualquer outro poder de direito positivo, ao contrário dele derivam os demais poderes, na medida em que a ele cabe criar a Constituição, onde é a validade de todo o direito positivo” (1979, p. 33).

É ilimitado pois não encontra limite na ordem jurídica anterior, não tendo que respeitar os limites postos pelo direito positivo anterior. Vale mencionar que, doutrinariamente, existe uma divergência entre os autores internacionalistas e os constitucionalistas acerca do alcance desta característica do Poder Constituinte Originário (ser ilimitado).

Para os internacionalistas, a ordem internacional impõe limites ao direito interno (Teoria Monista Internacionalista) de modo que jamais poderia o Poder Constituinte Originário instituir normas constitucionais contrárias às normas supranacionais. Por exemplo, não poderia a nova constituição de um Estado prever o direito de voto apenas aos homens, o desmatamento de florestas, a violação de direitos humanos. Na mesma linha de raciocínio, os autores jusnaturalistas esclarecem que existe limite ao Poder Constituinte Originário, qual seja, aquele previsto no direito natural, o qual não pode ser maculado pela nova ordem constitucional. Na visão dos constitucionalistas, o que vale é a soberania do Estado e do povo (Teoria Monista Nacionalista e a Teoria Dualista) equivalendo dizer que o Poder Constituinte Originário não tem limites materiais para criar uma nova constituição. Aliás, o Supremo Tribunal Federal tem o entendimento de que não existe inconstitucionalidade advinda do Poder Constituinte Originário, pela sua característica de ser ilimitado. Pode-se, portanto, violar até direito adquirido (Recurso Extraordinário nº 94414/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DOU 19.04.85) e “não se admite controle concentrado ou difuso de constitucionalidade de normas produzidas pelo poder constituinte originário” (Agravo Regimental na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4097/DF, Relator Min. Cezar Peluzo, DOU 07/11/2008) (BRASIL, 2009b).

Finalmente, Jorge Miranda (2000, p. 75/76) entende que o Poder Constituinte Originário Formal é sempre limitado pelo Poder Constituinte Originário Material [1], uma vez que neste está presente a vontade estabelecida pela vontade popular. Assim, por exemplo, não poderia o Constituinte Originário de 1988 estabelecer Colégio Eleitoral para eleição de Presidente da República, já que o povo saiu nas ruas para pedir o voto direto para escolha de tal cargo político (Movimento das Diretas-Já, de 1984) [2].

Outra característica do Poder Constituinte Originário é que ele é incondicionado, pois não se submete a nenhum processo pré-determinado para se manifestar. Conforme

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expressa Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a manifestação do Poder Constituinte “não está sujeita a qualquer forma prefixada para manifestar a sua vontade; não tem ela que seguir qualquer procedimento determinado para realizar a sua obra de constitucionalização” (1999, p. 14).

2.2. DO PODER CONSTITUINTE DERIVADO

Existem duas modalidades de Poder Constituinte Derivado: um, chamado de Reformador, que tem a característica de modificar o texto constitucional vigente; outro, denominado de Decorrente, que estabelece a possibilidade dos Estados-membros de uma federação se auto organizarem através da elaboração de suas próprias constituições.

2.2.1. DO PODER CONSTITUINTE DERIVADO REFORMADOR

Sob o ponto de vista teórico, uma Constituição perfeita seria aquela que previsse todo o desenvolvimento futuro de uma sociedade, em todos os seus aspectos e segmentos possíveis, sem que houvesse a necessidade de mudanças em seu texto originário. Claro que no campo concreto a realidade é outra, uma vez que “cada Constituição integra tão-somente o status quo existente no momento de seu nascimento, sendo incapaz de prever o futuro” (LOPES, 1993, p. 115).

Neste sentido, “o poder constituinte derivado é decorrência do poder constituinte originário. É uma criação deste. Na verdade, existe porque o constituinte originariamente responsável pelo estabelecimento da Constituição reconhece que o seu trabalho, ainda que seja uma obra-prima, sofre susceptibilidades com o passar do tempo, posto se tratar, bem ou mal, de uma norma jurídica, cuja pertinência vinculante junto aos que por ela são regulados guarda relação direta com as numerosíssimas circunstâncias encontradas no meio em que ela tem eficácia, ou seja, sofre com a evolução do direito” (RODRIGUES, 2000, p. 77).

Desta forma, o Poder Constituinte derivado, que deve estar previsto na própria Constituição, é aquele que atua na evolução, ou seja, nas transformações sociais.

Pode-se dizer que existem dois métodos de se modificar o texto constitucional: a) o formal ou da reforma constitucional; e b) o informal ou da mutação constitucional. Formal é aquele que se projeta expressamente na Constituição, onde há um processo

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formal de mudança com regras de procedimento e cláusulas limitativas expressas (Ex.: artigo 60, CF/88). Informal é o que se produz através de uma “transformação na realidade da configuração do poder político, da estrutura social do equilíbrio de interesses, sem que essa dita transformação reduza-se no teor do documento constitucional. Vale dizer, o texto da Constituição permanece intacto” (LOPES, 1993, p. 128), como por exemplo, a mudança de interpretação jurisprudencial, de costumes, etc.

2.2.2. DO PODER CONSTITUINTE DERIVADO DECORRENTE

Trata-se da possibilidade que os integrantes de uma federação [3] têm de se auto-organizarem, em virtude de sua autonomia político-administrativa, através de suas respectivas constituições, sempre respeitando as regras limitativas estabelecidas pela Constituição Federal (BRASIL, 2009b).

Maurício Andreiuolo Rodrigues, entende que este poder “se preocupa com a organização dos Estados Federados através da elaboração de constituições estaduais próprias. Deixando de lado as reformas da Constituição, o poder constituinte decorrente viabiliza a organização do Estado Federal, na medida em que determina as regras a serem observadas pelos entes federados frente à Constituição que lhes deu sopro de vida” (2000, p. 79).

O artigo 11, do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988 estabelece que as Assembléias Legislativas deverão elaborar suas respectivas Constituições Estaduais, no prazo máximo de um ano, contados da promulgação da CF/88, obedecidos aos princípios desta. Quanto aos Municípios, o art. 29, caput, estabelece a possibilidade destes se auto-organizarem através da elaboração de Leis Orgânicas (BRASIL, 2009b).

Existe muita divergência acerca da posição dos municípios na República Federativa do Brasil, havendo entendimento de que suas Leis Orgânicas não têm força constitucional pelo fato de que o Poder Constituinte Decorrente é visto na perspectiva federativa, sendo que os municípios não fazem parte da Federação, uma vez que não possuem representação no Senado Federal. Não obstante, o próprio artigo 1º, CF expressamente declara que os Municípios estão incluídos na República Federativa do Brasil e, por conseguinte, as suas leis orgânicas fazem parte do Poder Constituinte Decorrente (BRASIL, 2009b).

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O fato da Lei Orgânica do Município ter força de Constituição é defendida por José Afonso da Silva, segundo o argumento de que “ela é ume espécie de constituição municipal. Cuidará de discriminar a matéria de competência exclusiva do Município, observadas as peculiaridades locais, bem como a competência comum que a Constituição lhe reserva juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal (art. 23). Indicará, dentre a matéria de sua competência, aquela que lhe cabe legislar com exclusividade e a que lhe seja reservado legislar supletivamente” (1992, p. 547).

Vale esclarecer que, a partir do próximo tópico, o objeto deste estudo será voltado mais ao Poder Constituinte Derivado Reformador. Portanto, as referências que fizermos sobre o Poder Constituinte Decorrente (apesar de também ser derivado) serão meramente incidentais.

2.2.3. DAS CARACTERÍSTICAS DO PODER CONSTITUINTE DERIVADO

O Poder Constituinte Derivado apresenta as seguintes características: é poder jurídico, subordinado ou limitado, derivado e condicionado.

É poder jurídico porque decorre de outro poder que lhe dá fundamento de validade. Desta forma, o Poder Constituinte Derivado existe somente se e nos termos do Poder Constituinte Originário.

É limitado ou subordinado porque se encontra “limitado pelas normas expressas e implícitas do texto constitucional, às quais não poderá contrariar, sob pena de inconstitucionalidade” (MORAES, 1999, p. 54). Pressupõe um limite de ação em diversos sentidos: material, temporal, circunstancial, procedimental, não podendo modificar a identidade do Poder Constituinte Originário.

É derivado, pois não inaugura nada. A ordem jurídica já foi iniciada pela Constituição, através do Poder Constituinte Originário, que é inicial. O Poder Constituinte derivado nasce da própria Constituição e, portanto, está compreendido na espécie de normas constitucionais, dado que se rege por uma delas.

É condicionado uma vez que o processo de alteração da constituição deve obedecer ao processo determinado para sua alteração (processo de emenda). Assim, para que se possa modificar a Constituição, algumas formalidades devem ser cumpridas,

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condicionando o procedimento. Em nosso, caso, a regra consiste na dificuldade maior da iniciativa (art. 60, I, II, III, CF/88), no quorum elevado em relação à lei ordinária, em dois turnos de votação, e na impossibilidade de reapresentação de projeto de emenda na mesma sessão legislativa, quando a lei ordinária pode ser reapresentada, desde que por pedido da maioria absoluta de qualquer das casas (BRASIL, 2009b).

2.2.4. DOS LIMITES DO PODER CONSTITUINTE DERIVADO

O poder de reforma do texto de uma Constituição encontra limites previstos explícita e implicitamente pelo próprio Poder Constituinte Originário, ao criar a nova ordem jurídica. Como limites explícitos ao poder de reformar a Constituição Federal, podemos destacar os seguintes: temporal, circunstancial, processual e material.

2.2.4.1. LIMITAÇÃO TEMPORAL

É aquele em que a reforma do texto constitucional é proibida por um prazo determinado. Essa proibição esteve presente no art. 174 da Constituição brasileira de 1824 [4] que proibia a sua alteração por quatro anos, a contar a partir da promulgação da Carta Maior. (BRASIL, 2009c)

O limite temporal de reforma de uma Constituição visa protegê-la “contra algumas tendências vencidas na fase constituinte que, muitas vezes, forçando a não aplicação de um determinado dispositivo constitucional visa eliminá-lo sob a aparência de sua inadequação social ou política” (LOPES, 1993, p. 143).

Exemplo de limitação temporal na Constituição Federal de 1988 é a regra prevista no artigo 60, § 5º, a qual impõe limite temporal ao Constituinte Reformador, uma vez que dispõe que “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa” (BRASIL, 2009b).

2.2.4.2. LIMITAÇÃO CIRCUNSTANCIAL

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São aquelas que buscam impedir a modificação da Constituição em certas circunstâncias especiais e anormais, visando garantir a tranquilidade social e os pilares fundamentais do Estado. Estão presentes no § 1º, art. 60, CF/88, que dispõe que não pode haver emenda constitucional na vigência de intervenção federal, estado de defesa ou de estado de sítio (BRASIL, 2009b).

Aliás, o motivo da proibição de reforma constitucional nestes casos é evidente. Como bem explicita Maurício Andreiuolo Rodrigues, “no caso de intervenção, por exemplo, o pacto federativo, princípio originário da Constituição, estaria, no mínimo, fragilizado. A decretação do estado de defesa bem que poderia ser o momento ideal para retaliações políticas. O mesmo ocorrendo com o estado de sítio. A verdade é que não se pode apostar a estabilidade de uma Constituição num momento conturbado como os descritos acima.(2000, p. 89)”.

Desta forma, somente em tempos de tranqüilidade social pode haver a reforma constitucional no âmbito da República Federativa do Brasil.

Um exemplo desta limitação circunstancial no Direito Comparado é o da Constituição Francesa: tanto o artigo 94 da Constituição Francesa de 1946, quanto o artigo 89, da Constituição Francesa de 1958, previam a limitação circunstancial de reforma constitucional quando o território nacional estivesse no todo ou em parte ocupado por tropas estrangeiras. “O dispositivo visa evitar a repetição do amargo episódio político ocorrido em julho de 1940 quando a França invadida pelo Exército Alemão, reformou as Leis Constitucionais da III República com parte do país ocupado e sob pressão militar estrangeira” (ROCHA, 2009).

2.2.4.3. LIMITAÇÃO PROCESSUAL

Os limites processuais visam condicionar o reformador constitucional a uma série de regras procedimentais específicas e incomuns para mudança do texto da Constituição vigente.

Esta limitação é característica das Constituições rígidas, nas quais os atos de alteração constitucional é mais rigoroso que o de leis ordinárias, garantindo a estabilidade do seu texto. Traduz também a idéia de democracia, uma vez que serão os representantes do povo que discutirão e decidirão as mudanças constitucionais através de votações no parlamento.

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Esta limitação processual está prevista no artigo 60, I, II e III c/c §§ 2º e 5º do texto constitucional de 1988, o qual prevê que “a Constituição poderá ser emendada mediante proposta (I) de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; (II) do Presidente da República; (III) de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros”. O § 2º, art. 60 dispõe que “a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. E, finalmente, o § 5º do mesmo artigo estabelece que “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa” (BRASIL, 2009b).

2.2.4.4. LIMITAÇÃO MATERIAL

Trata-se da proibição de alterar a Constituição em certas matérias, em certos pontos considerados fundamentais. A justificativa para tal proibição é que existe um conjunto de matérias que, por sua importância, ficam resguardadas e protegidas, não podendo ser objeto de emenda constitucional. Tratam-se das denominadas “cláusulas pétreas” previstas expressamente no artigo 60, § 4º, CF/88 e implicitamente no texto Constitucional.

Ressalte-se que “as cláusulas pétreas, ou ainda de garantia, traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profundas mudanças de identidade. É que, como ensina Hesse, a Constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental na medida em que impede a efetivação de um suicídio do Estado de Direito Democrático sob a forma de legalidade” (LOPES, 1993, p. 97).

Para Oscar Vilhena Vieira as “cláusulas pétreas” são vistas como normas superconstitucionais, uma vez que visualiza nelas a função de “servir como proteção não apenas ao cerne constitucional tradicionalmente protegido por cláusulas pétreas, afastada a proteção especial à República, mas ampliar a defesa dos direitos, da separação de Poderes e do voto, como elemento estruturante da democracia em relação ao poder constituinte reformador” (1999, p. 135).

As limitações materiais expressas estão previstas no § 4º e seus incisos I a IV, do artigo 60, CF/88, o qual prevê que não será objeto de deliberação a proposta de emenda

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tendente a abolir a (I) forma federativa de Estado; (II) o voto direto, secreto, universal e periódico; (III) a separação dos Poderes e (IV) os direitos e garantias individuais (BRASIL, 2009b).

Como o dispositivo constitucional reza que é proibida a reforma constitucional que vise abolir as matérias relacionadas no art. 60, § 4º, CF, podemos extrair a seguinte conclusão: é possível criar-se novas formas jurídicas que não sejam para eliminar, abolir, aniquilar os direitos expressamente citados no § 4º, art. 60, CF. Desta forma, é cabível, em tese, emenda constitucional tendente a melhorar a forma federativa de Estado ou a separação dos poderes constituídos ou aumentar os direitos e garantias (BRASIL, 2009b).

Quanto à primeira limitação material, que é aquela que proíbe reforma constitucional tendente em abolir a forma federativa do Estado, significa afirmar que não pode qualquer dos Estados-membros sair da República Federativa do Brasil. Isto porque o próprio art. 1º da Constituição Federal de 1988 expressamente esclarece que o Brasil é formado pela união indissolúvel de Estados e Municípios (BRASIL, 2009b).

Haveria a possibilidade de ser realizada uma reforma constitucional visando modificar as competências tributárias da União, Estados, Distrito Federal e Municípios? A princípio esta proposta seria impossível, pois estaria afrontando diretamente o artigo 60, § 4º, I CF. Entretanto, dependendo do alcance desta reforma, tal mudança constitucional pode ser aceita, como, por exemplo, se for no sentido de melhorar, aperfeiçoar a Federação, dando mais transparência à tributação, realizando-se uma efetiva Reforma Tributária. Tanto que a Emenda Constitucional nº 3/93 retirou da competência dos Municípios o Imposto sobre Vendas a Varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto óleo diesel sem que houvesse qualquer inconstitucionalidade nesta reforma constitucional (BRASIL, 2009b).

A segunda limitação material expressa no artigo 60, § 4º, CF é a referente ao voto direto, secreto, universal e periódico, a qual visa preservar a liberdade democrática e o sistema democrático. E nem podia ser diferente tal limitação, haja vista que o Brasil passou 21 anos sob ditadura militar e um dos fundamentos da CF/88 é garantir a ordem democrática.

Quanto ao voto direto, este não é absoluto, existindo algumas exceções previstas no próprio texto constitucional. Por exemplo, os representantes do Poder Judiciário não são eleitos diretamente pelo povo e sim por nomeação ou provimento em concursos de provas e títulos. Outra exceção ao voto direto é o caso excepcional de vacância do cargo de Presidente da República e de vice-presidente nos últimos dois anos de mandato, onde

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o Congresso Nacional escolherá, em eleição indireta, o presidente do país (art. 81, § 1º, CF/88). Se a vacância ocorrer nos dois primeiros anos, haverá eleição direta para Presidente da República (BRASIL, 2009b).

A terceira limitação material do artigo 60, § 4º, CF é aquela referente à separação dos poderes constituídos, a qual está expressamente prevista no artigo 2º do texto constitucional tratando, portanto, de um dos princípios fundamentais da Constituição de 1988. A separação de poderes, em linhas gerais é um sistema de garantia, para criar mecanismos em que os poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário) fiscalizam uns aos outros (Técnica dos Freios e Contrapesos), visando melhor aparelhar a Federação.

Poderia, neste sentido, ser implantado o sistema parlamentarista de governo no Brasil, através de Emenda Constitucional? Dois posicionamentos totalmente opostos: a) não, pois o parlamentarismo não é possível na nossa realidade constitucional, uma vez que estará enfraquecendo a separação de poderes e violando, conseqüentemente, a cláusula pétrea do artigo 60, § 4º e o artigo 2º, ambos da CF; b) sim, pois o parlamentarismo somente será possível através de plebiscito, onde o povo brasileiro decidirá pela sua implantação ou não. Ora, se o poder emana do povo e se este deseja o parlamentarismo, porque não realizar a sua vontade? Entendemos que a impossibilidade da implantação de sistema parlamentarista de governo é mais condizente com o que diz expressamente o artigo 60, §4º e o artigo 2º, ambos da CF, não havendo exceção a esta regra no texto constitucional.

A quarta limitação material expressa da Constituição Federal de 1988 é a que diz respeito aos direitos e garantias individuais, os quais estão previstos no artigo 5º, CF. Entretanto, o próprio artigo 5º, § 2º, CF estabelece que existem outros direitos e garantias individuais espalhados pelo texto constitucional e em tratados internacionais, significando dizer que o rol do artigo 5º é exemplificativo e não taxativo. Aliás, o Supremo Tribunal Federal já declarou que o princípio tributário da anterioridade (art. 150, III, “b”, CF) é um direito e garantia individual e, portanto, cláusula pétrea (BRASIL, 2009c).

Por outro lado, tal limitação material, nos moldes descrito no artigo 60, § 4º, IV, CF, não abrange todos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, já que, ao dispor o status de cláusula pétrea tão somente aos “direitos e garantias individuais”, o Poder Constituinte de 1988 não acobertou os direitos sociais (art. 6º a 11, CF), os direitos de nacionalidade (art. 12 e 13, CF), os direitos políticos (arts. 14 a 17, CF). Para Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, esta opção do poder constituinte de 1988, cria uma distinção entre os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, havendo “direitos fundamentais constitucionais garantidos e o sub-grupo de

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direitos “super-fundamentais”, os quais foram resguardados contra reformas constitucionais por constituírem parte das chamadas cláusulas pétreas” (2008, p. 56).

Para resolver essa questão e aparente injustiça do Constituinte de 1988, podemos vislumbrar, ainda, uma última limitação material: a implícita do poder de reforma da constituição, ou seja, visando proteger normas que não estão explicitamente detectadas no texto constitucional, mas que servem de fundamento de validade de uma Constituição e, por isso, não podem ser objeto de reforma. Neste sentido, dentro dessas cláusulas pétreas implícitas podemos encaixar as normas constitucionais que dizem respeito aos direitos fundamentais não abrangidos no artigo 60, §4º, IV CF (direitos sociais, políticos, de nacionalidade), bem como as normas concernentes ao titular do poder constituinte, as relativas ao titular do poder reformador e as referentes ao processo da própria emenda ou revisão constitucional.

Neste contexto, resta ainda uma última questão sobre as limitações materiais: o rol do artigo 60, § 4º da Constituição Federal pode ser modificado pelo Poder Constituinte derivado? Três entendimentos podem ser detectados acerca desta indagação: a) é possível desde que a Emenda Constitucional de reforma seja legitimada democraticamente, isto é, por plebiscito; b) é possível, sem a necessidade de plebiscito, uma vez que haverá uma discussão desta Emenda Constitucional por oito vezes (quatro na primeira emenda que suprimir o texto do artigo 60, § 4º, CF e mais quatro para segunda emenda que introduzir a inovação na Constituição); c) não é possível suprimir qualquer dos dispositivos do artigo 60, § 4º, CF pois advém da vontade do Poder Constituinte Originário, ou seja, em tese, pode ser acrescido o rol deste dispositivo constitucional, aumentando a sua proteção, mas nunca pode haver supressão do que está ali garantido. Este último é o argumento que coadunamos, pois advém da vontade do Poder Constituinte Originário. Assim, somente com o advento de uma nova Constituição Brasileira é que poderia, em tese, restringir o rol do artigo 60, § 4º, CF.

2.2.5. DA TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE DERIVADO

O Poder Constituinte Derivado é exercido pelo povo, em regra, de forma mediata, através de seus representantes. No caso da Constituição Brasileira de 1988, o Congresso Nacional, através de suas duas casas (Câmara dos Deputados e Senado Federal) tem a competência para o exercício do poder reformador, “confirmando a regra geral segunda a qual o poder constituinte derivado é levado a cabo pelo seu único titular – o povo – através de seus representantes eleitos” (RODRIGUES, 2000, p. 81).

2.2.6. DA REVISÃO CONSTITUCIONAL

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Dentro do estudo do Poder Constituinte, cabe analisarmos, ainda, a revisão constitucional, que está prevista em nosso texto constitucional no artigo 3º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual determina a revisão da CF/88 dentro de cinco anos de sua promulgação.

Para José Afonso da Silva, no contexto do Direito Constitucional, a expressão reforma é gênero na qual estão as seguintes espécies: revisão e emenda; esta significa a reforma parcial de uma Constituição, ao passo que aquela é uma reforma geral do texto constitucional (1992, p. 56).

Assim, a revisão constitucional do artigo 3º, ADCT compreende-se na possibilidade de alteração do texto constitucional por inteiro (geral), em reunião conjunta do Congresso Nacional, com a exigência, pura e simples, de maioria absoluta de seus membros para a aprovação das mudanças.

Muito se discutiu a respeito do alcance da revisão constitucional do art. 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ou seja, se poderia haver a alteração de todo o texto constitucional, inclusive as denominadas cláusulas pétreas do artigo 60, § 4º. Mais uma vez, houve três correntes doutrinárias a respeito deste assunto: a) corrente restritiva, que sustentava a idéia de que somente poderia ser modificado aquilo que foi objeto do plebiscito (forma e sistema de governo, art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); b) corrente extensiva, que defendia a idéia de que a revisão constitucional é uma extensão do Poder Constituinte Originário e, por esse motivo, a sua reforma seria ilimitada, atingindo as cláusulas pétreas; c) a última corrente fundamentou que a revisão constitucional teria força de Emenda Constitucional e, por esse motivo, não poderia haver alteração as cláusulas pétreas previstas no texto constitucional. Foi exatamente esta última corrente doutrinária que prevaleceu na revisão constitucional.

Ao contrário do que dispõe o artigo 284 da Constituição Portuguesa de 1976 (PORTUGAL, 2009)[5], a Brasileira não prevê revisões periódicas de seu texto, o que se conclui que o que o artigo 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estipulou foi a revisão da CF/88 em apenas um momento, o qual já se realizou em 1994 a 1995 com as seis emendas constitucionais de revisão, não havendo mais a possibilidade de ser reformada a Constituição Federal de 1988 com base neste artigo constitucional.

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Não obstante, para Manoel Gonçalves Ferreira Filho é possível a revisão constitucional de outra forma, sem invocar o art. 3º, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Segundo este autor, “não há impedimento jurídico à convocação de uma revisão constitucional, nos termos de Emenda adotada com a observância rigorosa do art. 60 da Constituição em vigor. E esta se fará mais livremente, se, nessa emenda convocatória, for revogado o § 4º do art. 60 da Lei Magna em vigor” (1999, p. 190). Sustenta esse posicionamento através do que enuncia o art. 28 da Declaração dos Direitos do Homem de 1793: “um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de mudar a Constituição. Uma geração não pode sujeitar a suas leis as gerações futuras” (DHNET, 2009).

3. CONCLUSÃO

O tema abordado neste trabalho, além de ser, do ponto de vista histórico, um marco inicial para o estudo do Direito Constitucional, é muito rico em detalhes e em exemplos, havendo um amplo campo de idéias para ser analisado e discutido.

Por essa razão, o objetivo aqui traçado foi apenas colocar, em linhas gerais, o que seja o Poder Constituinte, sua evolução histórica, suas características e espécies, para uma apresentação do que seja o Direito Constitucional.

Aliás, o tema Poder Constituinte é, a cada dia que passa, mais e mais estudado e debatido no âmbito do direito, haja vista os reflexos do Direito Comunitário Europeu e a internacionalização do direito como um todo (globalização), pondo em choque a máxima de que o Poder Constituinte Originário tem a característica de ser ilimitado.

Em suma, pode-se considerar que o estudo do Poder Constituinte é, de certa forma, o exercício da própria cidadania, uma vez que o titular deste direito, é o próprio povo.

REFERÊNCIAS

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________. Constituição Política do Império do Brazil de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em 28/04/2009c.

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VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. A Constituição e sua Reserva de Justiça. São Paulo: Malheiros, 1999

[1] Significado do que seja Poder Constituinte Originário Formal e Material. Vide intem 2.1.

[2] Não obstante, o artigo 81, § 1º, CF/88 prevê, excepcionalmente, a eleição para presidente da república através de colégio eleitoral.

[3] No caso brasileiro, os Estados-membros e os Municípios, por força do art. 1º, CF/88.

[4] “Art. 174. Se passados quatro annos, depois de jurada a Constituição do Brazil, se conhecer, que algum dos seus artigos merece roforma, se fará a proposição por escripto, a qual deve ter origem na Camara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte delles.”

[5] Artigo 284.º (Competência e tempo de revisão). 1. A Assembleia da República pode rever a Constituição decorridos cinco anos sobre a data da publicação da última lei de revisão ordinária; 2. A Assembleia da República pode, contudo, assumir em qualquer momento poderes de revisão extraordinária por maioria de quatro quintos dos Deputados em efectividade de funções;

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