da estaÇÃo carandiru a carandiru (do livro ao filme ... · figura 13- ilustração da capa do...

98
Eliana Maria Simoncelli Lalucci DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER MARÍLIA 2009

Upload: phamkhue

Post on 08-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Eliana Maria Simoncelli Lalucci

DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro

ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A

INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER

MARÍLIA

2009

Eliana Maria Simoncelli Lalucci

DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro

ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A

INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Comunicação da Universidade

de Marília, campus de Marília, para a obtenção

do título de Mestre em Comunicação – Área de

Concentração: Mídia e Cultura. Orientadora:

Professora. Dra. Elêusis Mirian Camocardi.

MARÍLIA

2009

Lalucci, Eliana Maria Simoncelli

Da Estação Carandiru a Carandiru(do livro ao filme)- Liberdade

interditada a insustentável dureza do ser./Eliana Maria Simoncelli Lalucci

-- Marília: UNIMAR, 2009.

97f.

Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Curso de

Comunicação da Universidade de Marília, Marília, 2009.

1. Comunicação- Mídia 2. Estação Carandiru 3. Filme- Denuncia

I. Lalucci, Eliana Maria Simoncelli

CDD -- 302.2

Eliana Maria Simoncelli Lalucci

DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro

ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A

INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER

BANCA EXAMINADORA

Orientadora: Drª Elêusis Miriam Camocardi

Examinador: ________________________________________________________________

Examinador: ________________________________________________________________

Examinador: ________________________________________________________________

Marília, 16 de dezembro de 2009.

Este trabalho é dedicado aos meus filhos e a minha neta, porque tiveram que conviver com minha ausência,

mesmo presente, durante esses anos de estudo.

AGRADECIMENTOS

Neste momento de conclusão e de realização, quero agradecer

a Móveis Ricre nas pessoas de Ana Cláudia Ribeiro

(Diretora Executiva) e José Carlos Ribeiro (Diretor

Presidente), empreendedores com os pés no chão e a cabeça no

futuro, que muito contribuíram para que eu pudesse chegar até aqui.

A vocês, muito obrigada pela confiança que em mim depositam

e por toda a força que venho recebendo ao longo desses anos de

trabalho e amizade.

Tenho muito que agradecer à minha orientadora, pessoa cuja

generosidade ao me acompanhar durante esta jornada foi da maior

importância. A ela agradeço o carinho amoroso com que me

conduziu, o respeito com as minhas limitações, tanto as físicas e

geográficas como as intelectuais, e principalmente a consideração e a

paciência em todos os momentos ao longo desses nossos anos de

convívio.

A você Elêusis, mais que uma orientadora, uma fada

madrinha, meus sinceros e calorosos agradecimentos.

LALUCCI, E. M. S. DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro ao filme):

LIBERDADE INTERDITADA A INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER. Marília, 2009,

f. 97.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de

Marília, campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Comunicação – Área de

Concentração: Mídia e Cultura.

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é realizar uma análise interpretativa do texto Estação Carandiru, de

Dráuzio Varella (1999), um texto do estilo jornalístico literário, e do processo de

Transcodificação do mesmo texto para a mídia cinema, cujo título é Carandiru, de Babenco et

al (2003), observando as convergência e divergências no processo. A análise norteia-se pelo

método hipotético-dedutivo e pela abordagem comparativa do texto verbal e sua adaptação

cinematográfica, observando o contexto sócio-cultural em que se sustenta a sociedade

brasileira contemporânea, e também pela compreensão do trânsito entre o real, o imaginário e

o simbólico, sua interação e/ou influência no cotidiano, avaliando a existência de uma tensão

entre a linguagem textual e a língua viva retratada no filme. Por estas vias, pode-se afirmar

que o livro Estação Carandiru é um livro-reportagem e Carandiru é um filme-denúncia.

Palavras-chave: Estação Carandiru. Livro-reportagem. Carandiru. Filme-denúncia.

Adaptação cinematográfica. Transcodificação. Realidade. Ficção. Comunicação. Mídia.

ABSTRACT

The objective of this research is to perform an interpretive analysis of text Carandiru Station, by Dráuzio Varella

(1999), a text style literary journalism, and the transcoding process of the same text to the media film, whose title

is Carandiru, by Babenco et al (2003), noting the convergence and divergence in the process. The analysis is

guided by the hypothetical-deductive method and the comparative approach of verbal text and its film

adaptation, noting the socio-cultural context which supports the contemporary Brazilian society, and also by

understanding the traffic between the real and the imaginary symbolic interaction and / or influence in daily life,

assessing the existence of a tension between the textual language and the language being portrayed in the movie.

For these routes, it can be said that the book Carandiru Station is a book-entry and Carandiru is a film-complaint. Keywords: Station Carandiru. Book-entry. Carandiru. Film-complaint. Film adaptation. Transcoding. Reality.

Fiction. Communication. Media.

Lista de Ilustrações

Figura 01 - Capa do livro Estação Carandiru ....................................................................... 11

Figura 02- Capa do filme Carandiru em DVD.......................................................................11

Figura 03- Ilustração nº 6 no jornal Folha online – Disponível em

http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/carandiru/, 28mar2008............................ 19

Figura 04- Preso confecciona barco – Ilustração nº 40 – do livro Estação Carandiru............ 23

Figura 05- Foto Pavilhão Quatro da Casa de detenção – Ilustração nº 23 do livro Estação

Carandiru.................................................................................................................................. 25

Figura 06- O cano que serve de chuveiro em cela coletiva do pavilhão oito – Ilustração

nº 8 do livro Estação Carandiru.............................................................................................. 27

Figura 07- O banheiro de xadrez – Ilustração nº 6 do livro Estação Carandiru.................. 31

Figura 08- Interior de cela – Ilustração nº 1 do livro Estação Carandiru............................ 33

Figura 09- Privada do tipo Francês, tapada com saco de areia. Ilustração

nº 7 do livro Estação Carandiru .............................................................................................. 35

Figura 10- Localização da Casa de Detenção – Ilustração do Livro Estação

Carandiru, p.08 ........................................................................................................................ 37

Figura 11- Pátio interno da Casa de Detenção – Ilustração nº 27 do livro Estação

Carandiru. ................................................................................................................................ 38

Figura 12- Casa de Detenção vista do alto – Ilustração nº 24 do livro Estação

Carandiru.................................................................................................................................. 38

Figura 13- Ilustração da capa do filme em DVD – Carandiru................................................ 54

Figura 14- Cena do Filme Carandiru retratando a chegada do médico a Casa de

Detenção................................................................................................................................... 57

Figura 15- Cena do filme em que o personagem seu Chico que confecciona balões

solta o balão no pátio da casa de detenção............................................................................... 60

Figura 16- Cena do filme onde acontece o show da artista Rita Cadillac.............................. 81

Figura 17- Detentos assistindo ao show de Rita Cadillac....................................................... 82

Figura 18- Detentos em cena após o massacre ocorrido na Casa de Detenção...................... 83

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1

1.1 Próxima parada – Estação Carandiru ............................................................................... 24

1.2 O casarão ........................................................................................................................... 27

1.3 Os pavilhões ...................................................................................................................... 28

1.3.1 Pavilhão dois .................................................................................................................. 28

1.3.2 Pavilhão quatro .............................................................................................................. 29

1.3.3 Pavilhão cinco ................................................................................................................ 30

1.3.4 Pavilhão seis ................................................................................................................... 31

1.3.5 Pavilhão sete .................................................................................................................. 32

1.3.6 Pavilhão oito .................................................................................................................. 33

1.3.7 Pavilhão nove ................................................................................................................. 34

1.4 O Barraco .......................................................................................................................... 35

CAPÍTULO 2

2.1 Olhar o passado para interpretar o futuro .......................................................................... 39

2.2 Teoria da Comunicação: Definições e Conceitos ............................................................. 39

2.3 Do olhar e narrar ao ouvir e ver, uma trajetória contundente ........................................... 42

2.4 Do humano sensível .......................................................................................................... 44

2.5 A construção social da marginalidade .............................................................................. 46

CAPÍTULO 3

3.1 Próxima parada – Estação Carandiru: uma grande reportagem ....................................... 50

3.1.1 Livro Reportagem Estação Carandiru..............................................................................50

3.2 Carandiru (o filme): uma grande denúncia ...................................................................... 54

3.3 Ficha técnica do filme e elenco ......................................................................................... 55

3.4 Tradução do Real .............................................................................................................. 57

3.4.1 O reencontro: laços afetivos entre os muros penitenciários ........................................... 59

3.4.2 Plataformas transitórias .................................................................................................. 60

3.4.3 O nem sempre vil metal ................................................................................................. 62

3.4.4 O espaço: um espelho mental ......................................................................................... 64

CAPÍTULO 4

Arte e vida se confundem e se completam .............................................................................. 69

4.1 A sétima arte em Carandiru: fantástico retrato da realidade ............................................ 70

4.2 A montagem como voz para o discurso imagético ........................................................... 71

4.3 A fotografia e a linguagem cinematográfica ..................................................................... 71

4.4 Onde ficção e realidade transparecem nos gêneros do cinema comercial ........................ 72

CAPÍTULO 5

5.1 Transcodificações: Estação Carandiru e Carandiru ........................................................ 77

5.2 Livro reportagem X obra cinematográfica ........................................................................ 78

5.3 O levante, o ataque e o rescaldo ........................................................................................ 84

5.4 Arte e superação da dor mental ......................................................................................... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 88

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 95

12

Figura 01 – Capa do livro Estação Carandiru

Figura 02 - Capa do filme Carandiru em DVD

13

INTRODUÇÃO

A vida humana, como a vivemos e entendemos, é possível, graças ao acúmulo das

experiências daqueles que nos precederam. Ao vivermos cada dia, acrescentamos nelas as

nossas experiências atuais. Centenas de gerações pretéritas contribuíram para o nível de

conhecimento ou grau de domínio do ambiente que hoje desfrutamos, principalmente por

meio da linguagem e de sua evolução (LÉVY, 2000).

Podemos afirmar que a linguagem é indispensável à vida humana e que estamos

imersos num mundo de comunicações. Desde as primeiras ferramentas ou do grito de alarme

do homem primitivo até a última pesquisa científica ou notícia veiculada na Internet, a

linguagem é o fenômeno indispensável à cooperação cultural e intelectual, e esta se constitui

no grande princípio da vida humana (LÉVY, 2000). No entanto, o homem contemporâneo vê-

se tentado a acreditar que a competição seja o princípio que rege a vida humana, porque

parece que a vida é uma luta individual, que somente os mais aptos sobreviverão (LASCH,

1983). Apesar dessa competição de superfície, há um grande substrato de cooperação, que é

aceito, admitido e praticado dentre os humanos, cuja convergência impulsiona o mundo para a

evolução.

Cabe ressaltar que a coordenação de esforços humanos geradores de cooperação

para resultados significativos e indispensáveis ao bom relacionamento da sociedade advém da

comunicação (FOUCAULT, 1987).

Ao contrário dos outros animais, os homens conferem significados e sentidos às

palavras e aos fenômenos do cotidiano. Dentre os sistemas de comunicação, os símbolos

lingüísticos são os mais importantes, seguidos das artes (GENETTE, 1970).

O comportamento simbólico de cada grupo humano é assimilado e transmitido de

forma que as experiências de apenas um membro podem servir àquela sociedade. Da mesma

14

forma que a linguagem, as expressões artísticas fazem parte de um sistema simbólico, cujos

símbolos, abstrações e idéias juntam-se para, por meio da obra de arte, expressar o conteúdo

da própria cultura (GENETTE, 1970).

A evolução e o progresso nos trouxeram ao terceiro milênio. A sensação é de que

não há precedentes para o que vivemos hoje na História. O passado remotíssimo dos homens

em condição de homo habilis até chegar a homo sapiens parece mágico, mas a verdade é que

existiram civilizações sucessivas que se irromperam, lançando-se à invenção da Terra, dos

deuses, e de um mundo infinito de significações, bem antes de nós, e não foi por meio de

mágica que o fizeram.

Um dos adventos mais importantes criados pelos homens foi a comunicação

escrita. Toda a história dos homens e das humanidades pôde ser contada por ela. O livro, que

antes do século XV era destinado aos poucos da classe dominante, com o advento da

Imprensa percorreu longas distâncias, chegando às mãos dos homens a história de sua

humanidade. Esta foi uma grande contribuição da tecnologia para a comunicação. Mas os

adventos tecnológicos prosseguiram em sua marcha de progresso, culminando na

representação por meio de imagens. Primeiro, o cinema, depois, a televisão: ambos trouxeram

a representação das letras em contextos reais, publicitários e ficcionais.

Os homens passaram a criar textos específicos para o cinema, e depois, à

televisão, mas também faziam e fazem adaptações de textos escritos especialmente ao livro

para esses novos veículos de comunicação. Assim, surgiu um novo leitor, uma nova

modalidade de leitura (OLIVEIRA, 1998).

Depois, os homens inventaram máquinas de jogos com imagens, os videogames.

Nova modalidade textual surge, adaptada a um novo leitor, que interage na trama por meio de

competências físicas e pessoais (CAÑIZAL, 2004; BATESON, 1990).

15

A escrita e a leitura tornaram-se também multimídia. O atual curso dos

acontecimentos converge para a constituição de novos meios de comunicação, de pensamento

e de trabalho para as sociedades humanas.

Neste trabalho pretendemos focar o livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varella,

publicado pela Companhia das Letras, em 1999, e o filme Carandiru, dirigido por Hector

Babenco (BABENCO et al, 2002) e apresentado ao público nacional e internacional em 2003.

O filme foi uma adaptação livre do livro e ambos produzidos na atualidade, com códigos

culturais reconhecidos, mas em linguagens diferentes.

Para se vislumbrar o quanto as leituras de Estação Carandiru (VARELLA, 1999)

e Carandiru (BABENCO et al, 2002) estiveram presentes na vida dos brasileiros, na época do

lançamento de ambos os textos, informamos que o livro ficou na lista dos mais vendidos

durante 168 semanas, segundo a revista Veja, e foram vendidos mais de 350.000 exemplares

até aquela data, e no dia da estréia do filme, em circuito nacional, 468.293 pessoas assistiram-

no (FERREIRA. http://jornal.valeparaibano.com.br/2003/04/15/viv01/carandir.html,

27mar2008; FERREIRA. http://pt.shvoong.com/books/non-fiction/249587-

esta%C3%A7%C3%A3o-carandiru/27mar2008).

Foi recorde histórico de público para um filme brasileiro

(http://www.webcine.com.br/notaspro/npcarand.htm, 28mar2008). E ainda, o filme, durante a

temporada de exibição nos cinemas brasileiros, foi visto por 4,6 milhões de pessoas

(http://www.sobrecarga.com.br/node/view/8038, 28mar2008). O livro Estação Carandiru

(VARELLA, 1999), na Bienal de 2.000 realizada no Rio de Janeiro, organizada pela Câmara

Brasileira do Livro, onde mais de 800 editoras expuseram mais de 110.000 títulos, esteve

entre os três mais vendidos pela editora que o publicou (BETTING.

http://www2.uol.com.br/JC/_2000/2804/job2804.htm,28mar2008;http://www1.folha.uol.com.

br/folha/ilustrada/ult90u33455.shtml, 28mar2008). Somando-se, obtemos 4.950.000 pessoas

16

em contato com as leituras, mas nos lembremos de que os livros circulam até hoje, como o

filme continua assistido via DVD. O Brasil possui 186 milhões de pessoas, segundo o censo

do IBGE realizado em 2006 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Demografia_do_Brasil,

28mar2008). Assim, entre 1999 e 2003, 2,66% da população brasileira esteve em contato

direto com as leituras do livro de Varella (1999) ou do filme de Babenco et al (2002), ou com

ambos. Sem contar os multiplicadores até a atualidade, haja vista que o produto desta

operação matemática não se pode calcular.

A área da Comunicação seja ela impressa ou cinematográfica é o assunto de nossa

dissertação.

Neste trabalho, propomos a realização de uma análise interpretativa de um livro

reportagem e seu processo de Transcodificação para o cinema. Desenvolveremos uma análise

do texto Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, demonstrando que sua narrativa é realizada

nos moldes textuais surgidos durante o período do “Novo Jornalismo” americano, o qual

introduziu a „Grande Reportagem‟ na literatura. Em seguida, analisaremos o filme, uma

adaptação livre do mesmo livro, que apresenta todas as características de um cinema-denúncia

e, para finalizar, faremos uma exposição das convergências e divergências observadas na

Transcodificação de uma mídia à outra.

Aqui, penetraremos no universo de Carandiru, filme dirigido e produzido por

Hector Babenco, cujo roteiro foi escrito por Hector Babenco, Victor Navas e Fernando

Bonassi (www.revistadecinema.com.br). O roteiro é uma adaptação da obra referida no

parágrafo anterior, para o cinema, realizando uma análise reflexiva sobre o espaço cênico e as

marcas reveladoras da voz dos excluídos sociais em confinamento penitenciário. Acreditamos

que a marginalidade em contexto e a vida reclusa revelarão como a comunicação humana

afeta as relações e como se estabelece a partir dos modelos de desenvolvimento implantados

pela sociedade capitalista.

17

Este estudo apresenta como proposta analisar a influência da ficção, embora o

livro esteja classificado como „não-ficção‟, na mídia cinema, em uma sociedade

contemporânea, que vive num período de destruição criativa de tudo que existe, ou seja, há

um esforço para desmontar toda a estrutura vigente e recriar algo novo. Assim, pretendemos

decodificar o universo simbólico das personagens apresentadas no livro e no filme,

ressaltando as transcodificações e intertextualidades, procurando signos e códigos comuns às

duas mídias. Nesta análise, visamos à compreensão do trânsito entre real, imaginário e

simbólico, sua interação e ou influência no cotidiano, avaliando a existência de uma tensão

entre a linguagem textual e a língua viva retratada no filme. O uso das gírias tanto no livro e

no filme remete a um vocabulário próprio dos detentos, à linguagem falada por eles após um

tempo na carceragem, transpõe os muros penitenciários e ganha as ruas, fazendo parte do

vocabulário dos que convivem com os presos e de outras pessoas.

Enfim, buscamos por meio dos recursos de comunicação como ciência, refletir

sobre a função da mídia nas relações humanas, compreendendo sua inserção na sociedade

capitalista.

Esta pesquisa foi conduzida pelo método hipotético-dedutivo e uma abordagem

comparativa do texto verbal e sua adaptação cinematográfica, focando o contexto sócio-

cultural em que se sustenta a sociedade brasileira contemporânea (CHANLAT, 1992).

Como meios para se realizar este trabalho analítico, fizemos pesquisa

bibliográfica e documental, acreditando que estas nos permitiriam obter informações

importantes para a base de dados que sustentam nossos apontamentos e conclusões.

Pretendemos inserir um procedimento que investigue os dois tipos de mídia – impressa e

audiovisual – como expressão da realidade, uma vez que esta realidade é provocadora de uma

dicotomia epistemológica básica, entre subjetividade e objetividade, tendo em vista que o

18

sujeito e o objeto são afirmados em sua importância e de maneira contraditória, sendo ambos

independentes entre si (LACAN, 1993).

As expressões dessa dicotomia são o empirismo e o racionalismo, os quais

manifestam a contraposição entre razão e realidade. Apesar disso, ambas buscam o mesmo

objetivo: a sistematização do real (LACAN, 1993).

O primeiro a buscar a superação desta dicotomia foi Kant. Este filósofo postula

que a razão organiza os conhecimentos objetivos, utilizando categorias a priori, ou seja,

subjetivas. No entanto, apesar de seu brilhantismo, Kant ainda mantém a dicotomia sujeito-

objeto, pois para ele o objeto real e pleno é impossível se alcançar pelas limitadas capacidades

da razão, portanto, está fora do sujeito e longe de ser atingido por ele (LACAN, 1993).

O livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, publicado em 1999 pela editora

Companhia das Letras, recebeu o Premio Jabuti, em 2000, como „livro do ano de não ficção‟.

Nele, o autor narra a própria convivência com mais de 7000 presos, como médico da Casa de

Detenção de São Paulo, localizada no bairro Carandiru, o maior presídio da América Latina

até então. Nesse espaço, em 1989, o médico Dráuzio Varella foi desenvolver um trabalho

voluntário de prevenção à AIDS com os detentos, que o fez durante doze anos consecutivos,

semanalmente. Ao narrar, o médico faz uso da crônica (subgênero narrativo, com caráter de

narrativa curta) sobre a sua convivência pessoal com os detentos e funcionários do local,

evidenciando a confiança que os presos depositaram nele ao longo do tempo.

O espaço onde se desenvolvem as crônicas foi construído na década de 1920. Era

um complexo arquitetônico com sete pavilhões, onde os detentos conviviam soltos durante o

dia e encarcerados nas respectivas celas durante a noite. Durante duas décadas, esse presídio

foi considerado como padrão de referência pelas autoridades jurídicas, por outras autoridades

nacionais e internacionais, estudiosos de filosofia e sociologia, entre outros. Nele, os detentos

trabalhavam durante o dia. Eles mesmos produziam o pão e os legumes que consumiam,

19

preparavam remédios, lavavam e passavam suas roupas, faziam atividades lúdicas e de

aprendizado escolar. A partir da década de 1940, a lotação ficou exagerada e os grandes

problemas surgiram. Embora o presídio tivesse passado por uma reforma em 1956, a fim de

melhorar as acomodações, o problema não foi resolvido porque mais e mais detentos foram

enviados, confirmando, ao longo do período, a superlotação. Os problemas, tanto para os

internos, visualizando o espaço dividido entre os detentos, como aos externos, aqui

considerados os pertinentes aos administradores da casa de detenção, aumentavam à medida

que crescia a já superlotação (E:\Estação Carandiru (3). htm, 28mar2008). Para se visualizar

o caráter dos problemas, citamos que os detentos ocupavam celas conforme seus status

econômicos ou sociais. Cada preso tinha que “comprar” o espaço com subterfúgios. Assim, os

detentos mais antigos determinavam onde os recém-chegados deveriam residir. O preço do

aluguel variava conforme as benfeitorias feitas na cela pelo dono dela (Varella, 1999).

Muitas rebeliões aconteceram. A última, em 1992, culminou no massacre de 111

detentos, praticado pelos policiais militares, embora fotos da época denunciem mais de 200

mortos, lembrando que no local residiam mais de 7.000 pessoas reclusas (E:\Estação

Carandiru (3).htm, 28mar2008).

20

Figura 03 – Ilustração nº 6 no jornal Folha online – Disponível em

http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/carandiru/, 28mar2008.

Todos no Carandiru eram condenados, mas para o médico Dráuzio Varella, eles

eram seus pacientes. Ao narrar os episódios em seu livro, envolvendo os condenados, o autor,

além dos fatos, descreve o espaço notadamente degradante e as leis internas estabelecidas

pelos próprios detentos para a convivência no local. É importante lembrar que o trabalho

desenvolvido pelo médico ocorreu em tempos de superlotação carcerária. O leitor encontra no

livro um narrador heterodiegético e extradiegético. Este narrador, que não é personagem,

adentra um espaço que não era o seu, mas ali foi porque estava autorizado pela sua profissão e

pelo caráter do trabalho a realizar, e assim as portas dos pavilhões foram-lhe abertas, como

também as „portas das memórias‟ dos detentos que lhe confiavam sua vida antes e durante a

21

prisão. Tais histórias são contadas, não por um médico, mas por um contador de „causos‟,

como um cronista daquele cotidiano odioso.

Ao alinhar as histórias ouvidas e vividas em um livro-reportagem, o médico-

escritor cria um painel trágico-cômico, revelador de uma grandiosidade humana que conduz o

leitor a territórios emocionais distantes das crônicas de medo e violência que impregnam a

maioria dos textos sobre as pessoas encarceradas e seus respectivos cárceres. As crônicas são

produtos do respeito e confiança que detentos e funcionários depositaram no médico,

revelando-lhe seus segredos e como a vida ali era estruturada. A diegese em Estação

Carandiru (VARELLA, 1999) é marcada pela tensão existente entre os conceitos de

disciplina e os de desvio, destacados em Foucault (1987), e observados no ambiente das

memórias de cada detento em cada história narrada pelo narrador. Contudo, o narrador não se

compromete com a veracidade dos relatos, o que pode ser uma maneira mais suave de tornar a

dura realidade impregnada de ficção e fantasia.

A história do filme Carandiru é uma livre adaptação do livro Estação Carandiru.

Ela se desenvolve por meio da personagem, que representa o médico Dráuzio Varella, que

fora realizar um trabalho de prevenção à AIDS entre os prisioneiros do maior presídio da

América Latina, a Casa de Detenção de São Paulo. Ao contar as histórias de cada um, ele vai

apresentando o quadro de violência nesse espaço, a superlotação carcerária, as instalações

precárias, a falta de assistências diversas, enfim, as faltas. Ao narrar, as denúncias ocorrem

cristalizadas nas imagens de um “inferno na Terra”, testemunhadas por ele com solidariedade,

organização e grande disposição para viver.

Narrados com uma linguagem que confere voz às personagens, tanto o livro como

o filme vão retratando a diversidade humana através do ponto de vista do narrador que, por

meio de depoimentos de presos sobreviventes, narra o massacre ocorrido no local a Casa de

Detenção de São Paulo, o Carandiru, em 1992.

22

As personagens e seus destinos são apresentados no filme: o diretor Pires, aquele

que “pisa em ovos” para administrar o presídio; Nego Preto, líder da massa encarcerada e juiz

das desavenças entre a coletividade reclusa; o Velho Chico, construtor de balões e prestes a

ganhar a liberdade; o bígamo Majestade, vivendo entre mulheres e assaltos; o filósofo Sem

Chance e seu romance com o travesti Lady Di. Esses são os principais personagens, mas é

importante destacar que o espaço, esse lugar aterrador, deve ser considerado o protagonista, e

que o ponto de vista apresentado, segundo o diretor do filme, é o dos detentos.

O enredo do filme foi montado como um “mosaico”; contudo, uma história se

conecta à outra, formando um grande caleidoscópio de uma das tragédias brasileiras, que é o

sistema de detenção penitenciária.

Para a composição do raciocínio que conduzirá o desenvolvimento deste trabalho,

expusemos o conteúdo dos objetos de estudo: Estação Carandiru e Carandiru, em dois

raciocínios distintos, mas convergentes.

No capítulo I apresentamos o espaço, que é o presídio, e seu funcionamento,

porque nesta narrativa ele é o elemento fulcral do enredo.

No capítulo II apresentamos os discursos teóricos e breves considerações sobre

seus conceitos, os quais sustentam as análises contidas neste trabalho e a metalinguagem de

suas composições.

No Capítulo III caracterizamos o gênero textual e a apresentação do meio em que

tal gênero surgiu, como também uma análise das estratégias do autor para envolver o leitor e

atingir seus objetivos.

Salientamos o contraponto das estratégias dos autores do livro e do filme para a

composição de suas obras.

Observamos os principais recursos utilizados pelo cinema na produção de um

filme, inserindo aspectos observados na realização de Carandiru.

23

No Capítulo IV apresentamos as semelhanças, igualdades e diferenças entre os

conteúdos do livro de Varella (1999) e do filme de Babenco et al (2002) no processo de

Transcodificação.

No Capítulo V desenvolvemos algumas reflexões oriundas do processo de

recepção das leituras aqui traduzidas em objetos de estudo.

24

Figura 04 - Preso confecciona barco – Ilustração nº 40 – do livro Estação Carandiru

25

CAPÍTULO 1

1.1 Próxima parada – Estação Carandiru

A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás;

mas só pode ser vivida olhando-se para frente. Soren Kierkegaard

A atual situação do sistema penitenciário é crítica e calamitosa. Essa realidade

incita considerações, posto que se trata de fato público e notório. São exemplos dessa trágica

realidade a superlotação dos presídios; a corrupção dos agentes carcerários; as faltas de

recursos com a reeducação do detento, da profissionalização do preso, de funcionários

especializados, não há separação dos reeducandos por grau de periculosidade; faltam recursos

no presídio; necessita-se de melhor remuneração para os funcionários, dentre outros fatores.

O aumento da criminalidade implica em aumento populacional nas prisões,

penitenciárias e casas de detenção, evidenciando a falência do sistema carcerário e a

dificuldade do Estado em atingir os objetivos atribuídos à pena, principalmente quanto à

reintegração do indivíduo no meio social.

A Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, foi construída

em 1956 para abrigar 3.250 presos. Nos seus últimos anos de existência abrigava mais de

7000 detentos. Em dezembro de 2002, quase todo o espaço foi implodido e transformado em

uma área esportiva. Situada no bairro do Carandiru, zona norte de São Paulo, a Casa de

Detenção abrigava todos os tipos de criminosos: assassinos, assaltantes, ladrões, golpistas,

estupradores, justiceiros, estelionatários, traficantes, entre outros.

26

“Cadeia é um lugar povoado de maldade”. (VARELLA, 1999, p. 13)

Figura 05 – Pavilhão Quatro da Casa de detenção –

Ilustração nº 23 do livro Estação Carandiru.

O conjunto presidiário era formado por nove pavilhões, cada um com cinco

andares, celas de portas maciças onde só se sabia o que se passava atrás delas ao abri-las.

O leitor adentra a Casa de Detenção pelo olhar do narrador, que o leva a um

passeio para conhecer a situação geográfica desta cidade-presídio. Ele nos convida a entrar,

passo a passo, ala a ala, e enquanto adentramos pelo portãozinho verde aberto para pedestres e

seguimos até à Administração, somos orientados pelos referenciais de cores e texturas, como

se estivéssemos olhando com os próprios olhos.

27

Como o próprio narrador nos explica – “A narrativa será interrompida pelos

interlocutores, para que o leitor possa apreciar-lhes a fluência da linguagem, as figuras de

estilo e as gírias que mais tarde ganham as ruas” (VARELLA, 1999, p.11).

Voltemos então à geográfica arquitetura dessa cidadela. O portão da rua leva ao

pátio do estacionamento e dali se vai à Ratoeira, um átrio gradeado com guichês de

identificação dos visitantes. Entre os guichês sai o corredor de acesso à sala do diretor geral

“ampla e cheia de luz” (VARELLA, 1999, p.14). Da Ratoeira, um portão interno se abria para

a Divinéia, pátio em forma de funil, onde, na parte estreita, está a sala de revista corporal, do

seu lado fica a copa da diretoria.

A Divinéia era o ponto final dos camburões que traziam e levavam os presos e

também tudo que entrava ou saia da cadeia. O trabalho de carga e descarga na Divinéia ficava

por conta dos detentos, que eram facilmente reconhecidos pela calça de cor bege. Somente

esta peça do vestuário era de uso obrigatório. Os cabelos deviam ser curtos, mas camisetas e

camisas eram de livre escolha. Proibia-se o uso de paletó assim como andar descalço, de peito

nu ou sem se barbear. Para os presos, a camiseta era soberana, mas não poderia ser vestida

nenhuma camiseta com propaganda de político, pois “pega mal no ambiente”. (VARELLA,

1999, p.16).

Na parte ampla do funil, que era a Divinéia, um paredão a fechava desenhado por

sonhos, atrás do qual se erguiam os andares superiores do pavilhão Seis, o central. Em seu

lado esquerdo existia um bosque, com um caminho que levava aos pavilhões Dois, Cinco e

Oito. Em oposição, ao lado da copa da diretoria, existia um canteiro de flores e uma pequena

fonte desativada. Desse lado encontrava-se o acesso aos pavilhões do lado direito. O da frente

era o pavilhão Quatro, seguido do Sete e do Nove. A enfermaria ficava no último andar do

pavilhão Quatro.

28

1.2 O casarão

“A detenção é um presídio velho e mal conservado. Os pavilhões são prédios cinzentos de

cinco andares (contando o térreo como primeiro), quadrados, com o pátio interno central, e a área

externa com a quadra e o campinho de futebol.” (VARELLA, 1999, p.16).

Figura 06 - O cano que serve de chuveiro em cela coletiva do

pavilhão oito – Ilustração nº 8 do livro Estação Carandiru.

As celas de ambos os lados eram separadas pela Galeria um corredor ao derredor

no andar. Assim, as celas da parte interna apresentavam janelas para o pátio interno e as da

parte externa, janelas para o lado. E, na face externa do prédio, os pavilhões são separados por

paredões e ligados pela Radial, um caminho amplo e asfaltado.

A entrada do pavilhão era coberta por grades em forma de gaiola, formada pelas

portas externas e internas que bloqueavam o acesso à escada e à galeria do térreo. Esse

29

procedimento era utilizado na entrada de todos os andares e pavilhões. Não existiam portas

elétricas. O sistema era controlado manualmente.

Poderíamos citar, como exemplo disso, a folclórica Rua Dez, que era apenas uma

parte da galeria em oposição à entrada. Os guardas não possuíam visão do que estava

acontecendo na entrada, por isso precisavam percorrer todo o caminho para lá chegar. A Rua

Dez era famosa porque nela ocorriam as disputas internas.

No térreo dos pavilhões ficavam os setores de apoio, tais como o de eletricidade,

de hidráulica, uma sala de atendimento médico, a carceragem com o arquivo dos presos, a

escolinha e as igrejas. (VARELLA, 1999, p.20).

1.3 Os Pavilhões

1.3.1 Pavilhão Dois – O mais tranqüilo

“Embora a arquitetura externa dos pavilhões seja semelhante, suas divisões

internas e a geografia humana são bem diferentes”. (VARELLA, 1999, p.21).

No pavilhão Dois a entrada da cadeia viviam os presos que cuidavam da

Administração: chefia, carceragem, serviço de som e refeitório dos funcionários. Os

presidiários, além de trabalharem nos setores de apoio do térreo, também exerciam atividades

na alfaiataria, na barbearia, no departamento de fotografia, na rouparia e na laborterapia.

Importante lembrar que a cada três dias trabalhados, o detento ganhava um dia de remissão da

pena. (VARELLA, 1999, p.21).

Nesse pavilhão, fazia-se a recepção do preso. Este, ao chegar à casa, era recebido

para o controle geral: o detento era registrado, fotografado e determinavam em que pavilhão

„residiria‟, além de trocar a sua roupa pela calça bege obrigatória e uma camiseta, e ter seus

cabelos cortados.

30

Depois de despersonalizado, o detento era recolhido na Triagem Um, uma cela de

32m². Às vezes estava lotada, dependendo do número de detentos recebidos no dia. Eles

passavam para a Triagem Dois no dia seguinte, porque precisavam aguardar a determinação

do local onde ficariam. Esses locais às vezes abrigavam mais de duzentas pessoas, as quais,

na maioria das vezes, eram transferidas de uma só vez. Esse pavilhão era mais tranqüilo,

porque detentos que se apresentavam com disponibilidade para o trabalho pediam para habitar

ali mesmo.

1.3.2 Pavilhão Quatro – Até eu queria morar ali ou Ali, ninguém sabe quem é, e quem

não é. (VARELLA, 1999, p.23).

Fica do lado oposto, simétrico ao Dois, contém menos de quatrocentos presos,

alojados em celas individuais, caso único na detenção; é o único pavilhão com elevador

funcionando. Inicialmente fora construído para ser utilizado como Departamento de Saúde e,

de fato, foi lá que funcionou a enfermaria geral no último andar, e as celas dos tuberculosos

no térreo.

No térreo também ficava a Masmorra*, guardada por uma porta maciça, com uma

placa proibindo terminantemente a entrada de qualquer pessoa não autorizada. O local foi

criado para a proteção dos marcados para morrer. Eram oito celas de um lado da galeria

escura e seis do outro, úmidas e superlotadas. O ambiente é lúgubre, infestado de sarna,

muquiranas e baratas. Durante a noite, ratos cinzentos passeavam pela galeria deserta. A

janela era lacrada por uma placa de ferro, impedindo a entrada de luz. O local não tinha

ventilação e um cheiro forte de aglomeração mantinha-se estagnado. Os homens mofavam em

vida, à espera de uma transferência para outro presídio.

(*) Transcrevemos como aparece no livro

31

Nesse pavilhão, em dias de sol no pátio, os paraplégicos podiam ser vistos em

suas precárias cadeiras de roda. No segundo andar existiam celas identificadas pela sigla DM,

destinadas aos doentes mentais, cuja rotulação era imprecisa, pois não existia serviço de

psiquiatria na Casa.

1.3.3 Pavilhão Cinco – “É a fábrica de faca da cadeia” ou “Artigo 213 – para onde vão os

estupradores”. (VARELLA, 1999, p.29).

O Cinco é o pavilhão vizinho do Dois e ficava do lado oposto do Quatro.

Apresentava o pior estado de conservação. As escadas possuíam degraus quebrados,

deteriorados, com fiação elétrica à mostra, percebiam-se nas paredes infiltrações devido aos

vazamentos e à água empoçada nos cabeçotes das lâmpadas que viviam queimadas. Nas

janelas eram hasteados mastros, e neles os detentos secavam suas roupas, fato que conferia ao

espaço aspecto de cortiço. Este era o pavilhão mais lotado, com cerca de 1600 homens.

(VARELLA, 1999, p.27).

No primeiro andar ficava a carceragem, a enfermaria, a sala de aula com uma

biblioteca muito pequena. Nesse espaço ficava também a Isolada, um conjunto de vinte celas

onde instalavam os presos capturados em contravenções locais, como porte de arma, de

bebida alcoólica, tráfico de drogas, desrespeito a funcionários ou planejamento de fuga. Eles

cumpriam trinta dias nesse lugar abafado, com as janelas lacradas como as da Masmorra, com

tranca dura e permanente, e nunca viam a luz do sol.

O segundo andar era habitado pelos presos integrantes da faxina, que eram

encarregados da limpeza geral e da distribuição das refeições; e mais os que trabalhavam nos

patronatos, no judiciário e entregando as sacolas de alimentos trazidas pelas famílias dos

colegas, durante a semana. Nem todos possuíam família que os visitasse.

32

O terceiro andar era conhecido como o dos estupradores e justiceiros, também

chamados “pés-de-pato”. Uniam esses dois grupos com objetivo de protegê-los contra

possíveis vinganças da massa carcerária.

No quarto andar moravam os que não conseguiram lugar melhor, junto de outros

que foram expulsos dos pavilhões devido a mau procedimento. Esse local existia grande

grupo de travestis.

No último andar, à direita, ficava a ala da Assembléia de Deus, o grupo

evangélico de presença mais forte na Casa. Vizinho dos crentes à esquerda, ficava o Amarelo,

um conjunto de segurança fechado 24 horas, para onde iam os detentos ameaçados de morte e

alguns que não tinham onde morar. Esse era o pavilhão dos sem-família, dos sem-teto e dos

“humildes”, por isso era o pavilhão mais „armado‟ da penitenciária.

1.3.4 Pavilhão Seis – “Uma alternativa para o Amarelo”. (VARELLA, 1999, p.30).

Figura 07– O banheiro de xadrez – Ilustração nº 6 do livro Estação Carandiru.

33

O pavilhão Seis era o único em posição central, pois ficava entre o Dois e o

Quatro. No térreo funcionava a Cozinha Geral, que fora desativada em 1995. O serviço

passou a ser terceirizado. As refeições eram servidas em marmitas descartáveis, conhecidas

como “quentinhas”. Mas as instalações permaneceram com suas enormes panelas de pressão,

azulejos quebrados e goteiras.

No segundo andar existia um auditório com capacidade para mais de mil pessoas,

onde funcionava um cinema que fora destruído em uma das rebeliões. Dele restou apenas um

grande salão com um palco de madeira elevado. Nesse andar e no terceiro funcionavam as

salas destinadas à Administração, com os serviços de vigilância e controle de disciplina, os

pertinentes ao departamento de esportes, as atividades do judiciário e uma diretoria de

valorização humana.

No quarto andar havia celas e no quinto existia um setor chamado MPS - medida

preventiva de segurança -, criado como alternativa para a superlotação do Amarelo. Então,

nesse quinto andar do pavilhão Seis ficavam alojados os nigerianos que faziam parte da

conexão do tráfico de cocaína, detidos no País e obrigados a cumprir pena.

1.3.5 Pavilhão Sete – “A fábrica de túneis”. (VARELLA, 1999, p.32).

Na Divinéia, em frente do pavilhão Seis, central, à direita, encontrava-se o

pavilhão Sete, vizinho do Quatro. Neste local ficava a maioria dos presos que trabalhavam.

No térreo, como em outros pavilhões, funcionava a burocracia: os setores do patronato e o de

manutenção, cujas tarefas manuais eram executadas pelos detentos. No segundo andar

moravam os detentos responsáveis pela faxina e nos demais andares os outros habitantes. No

quinto andar os que cumprem castigo.

34

No pátio havia uma quadra de esportes e dois campinhos de futebol. Neste, quase

não existia grama, mas era lugar para diversos campeonatos entre os detentos. O pavilhão fora

construído para ser utilizado para o trabalho, e as ocupações, os esportes e a relativa ausência

de superlotação manteriam o pavilhão em certa calmaria não fosse pela proximidade da

muralha, cujo subterrâneo era utilizado para possíveis fugas.

1.3.6 Pavilhão Oito – “Não age, reagem, só dão o bote quando pisam nele”. (VARELLA,

1999, p.34).

Figura 08 - Interior de cela – Ilustração nº 1 do livro Estação Carandiru.

O pavilhão Oito fazia parte do problemático „fundão‟, que era a união dos

pavilhões Oito e Nove. O pavilhão era quadrado como os outros, porém, enorme. As galerias

chegavam a ter quase cem metros de comprimento. No segundo andar ficavam as celas dos

faxineiros; nos andares de cima, as celas chamadas de xadrez, que convergiam para o pátio

35

interno. Cada cela abrigava cerca de seis homens. As que se voltavam para a fachada externa

do pavilhão podiam ser semicoletivas, albergando, cada uma, dois ou três homens.

No quinto andar havia oito celas de Castigo. No térreo, além das seções

burocráticas existia uma capela Católica, os templos da igreja Assembléia de Deus, da Igreja

Universal, da Deus é Amor e o Centro de Umbanda. No pátio do Oito havia uma quadra

esportiva e o maior campo de futebol da cadeia, onde se disputavam campeonatos internos e

com convidados visitantes, que são muito respeitados nessa ocasião.

Neste pavilhão havia “duchas”, lugares reservados para banho coletivo, e eram

considerados, por muitos detentos desafortunados como as suas „casas‟, porque não podiam

comprar seu espaço lá dentro.

A principal característica do pavilhão Oito era a paisagem humana. Nele

coabitavam reincidentes, aqueles que já saíram, mas voltaram para o complexo penitenciário.

Eram os mais conhecedores das leis da cadeia, por isso caracterizam esse pavilhão como a

segunda fase da educação, após o jardim-de-infância, pois era espaço daqueles cuja ficha

criminal era grande.

1.3.7 Pavilhão Nove – “São tudo cabeça de bagre, doutor. São os primários”.

(VARELLA, 1999, p.35).

O pavilhão Nove encontrava-se no fundo do complexo, fazendo parte do fundão

problemático e de sua estrutura arquitetônica. Embora fosse igual ao pavilhão Oito, no Nove

existiam duas celas de triagem com um número de presos que podia chegar a trinta em cada.

Eles dormiam „espremidos‟, com cuidado para não encostarem o rosto nos pés dos outros.

36

Havia poucas chances de eles encontrarem moradia melhor, pois o direito de

posse era dos detentos mais antigos. Os beliches de madeira que existiam nas celas foram

substituídos por camas de concreto, também chamadas de “pedra”.

Quando chegavam os detentos em triagem para o conhecimento do local, todos os

outros desciam para verificar se havia conhecidos para abrigarem ou desafetos para jurarem

de morte. Os funcionários consideravam o pavilhão Nove como o „pavilhão do encontro‟.

Podemos citar um paralelo feito por um detento, que cumpria pena há mais de

vinte anos, em relação aos pavilhões Oito e Nove: “Em nenhum dos dois pode pisar no ovo,

só que no Oito é você mesmo que coloca o ovo. No Nove, são os outros, e ainda espalham

sabonete no chão para escorregar”. (VARELLA, 1999, p.35).

1.4 O Barraco – “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, mas quando a gente

pega é problema”. (VARELLA, 1999, p.43).

Figura 09 – Privada do tipo Francês, tapada com saco de areia. Ilustração nº 7 do livro

Estação Carandiru.

37

O „barraco‟ era a denominação de uma cela ou xadrez, cujas dimensões variavam,

como descreve o narrador, entre algumas espaçosas individuais e outras onde se „espremem‟

sete, oito, vinte ou, como nas de triagem, sessenta homens.

A direção da Casa não tinha domínio sobre os “barracos” nos pavilhões maiores,

porque eram propriedades dos presos mais antigos. Estes o comercializavam conforme a

categoria, com valores que variavam de R$150,00 a R$200,00.

Toda cela tem um vaso sanitário velho, o “boi”, que termina em um buraco seco

por onde corre a descarga; alguns detentos jogavam água fervendo após o último utilizá-lo, à

noite; outros tampavam o buraco com plástico para evitar os cheiros ruins, baratas e ratos. Na

cela havia também uma pia e um chuveiro, ou um cano com saída de água.

Os beliches eram de alvenaria, denominados “pedra”, ou de madeira. O que ficava

acima de todos era chamado de “galhada”. Em todos os xadrezes havia um fogareiro, de

grande valia, pois muitos presos refaziam a comida que recebiam procedimento chamado de

“recorte”.

38

Figura 10 – Localização da Casa de Detenção – Ilustração do Livro Estação Carandiru, p.08

39

Figura 11 – Pátio interno da Casa de Detenção – Ilustração nº 27 do livro Estação Carandiru.

Figura 12 – Casa de Detenção vista do alto – Ilustração nº 24 do livro Estação Carandiru.

40

CAPÍTULO 2

2 Olhar o passado para interpretar o futuro

Alguns filósofos tinham imaginado que para começar uma

inquirição era apenas necessário formular uma questão ou escrevê-la num

papel, e recomendaram-nos mesmo que iniciássemos os nossos estudos

questionando tudo. Mas o mero fato de colocar uma proposição na forma

interrogativa não estimula a mente para que se afadigue em busca da crença.

Deve existir uma dúvida real e viva, e sem ela toda a discussão é ociosa.

(PIERCE, Charles Sanders. A fixação da crença. Popular Science Monthly

12 November 1877, p. 1-15)

Quando nos propusemos a analisar a Transcodificação da narrativa impressa

Estação Carandiru para a mídia cinematográfica Carandiru, tivemos a intenção de efetuar

uma análise do comportamento humano e o processo de comunicação, pois acreditamos como

muitos estudiosos do comportamento humano, que um e outro são inseparáveis, indissolúveis.

Um gera o outro. Sem comunicação, o comportamento social não existe. Uma comunicação

deficiente ou fragmentada torna deficiente e fragmenta o comportamento numa relação direta

e proporcional.

O que isso significa? Significa que a comunicação é fundamental para a

preservação e aprimoramento do comportamento humano. Sendo assim, a mídia é

poderosíssimo instrumento para ditar normas e conceitos que norteiam a vida em sociedade.

2.1 Teoria da comunicação: definição e conceitos

Jean Cloutier (1975) afirma que, “Para Colin Cherry, comunicação significa

"compartilhar elementos de comportamento ou modos de vida, pela existência de um conjunto

de regras"”. Já Berlo entende o processo de comunicação "como o processo pelo qual um

indivíduo suscita uma resposta num outro indivíduo, ou seja, dirige um estímulo que visa

41

favorecer uma alteração no receptor para suscitar uma resposta". Por sua vez, Abraham Moles

define comunicação "como o processo de fazer participar um indivíduo, um grupo de

indivíduos ou um organismo, situados numa dada época e lugar, nas experiências de outro,

utilizando elementos comuns". (Texto transcrito do livro "A era de EMEREC" de Jean

Cloutier, Ministério da Educação e Investigação Científica - Instituto de tecnologia Educativa,

1975).

Em comum entre esses autores encontramos a idéia de um processo interativo, no

qual os agentes buscam respostas diretas ou a participação direta de um indivíduo. Podemos

conceituar Comunicação sob vários aspectos: conceito biológico, sociológico, antropológico.

O vocábulo Comunicação vem do latim communis, que significa comum, o que

nos conduz à idéia de comunidade. Assim, podemos dizer que comunicação é o processo pelo

qual as pessoas podem compreender umas as outras, fazendo-se entender pela expressão do

pensamento, gerando, assim, um senso comum e a própria comunidade.

Como o próprio nome revela, o conceito biológico preza a parte física do processo

de comunicação, definindo-se por excelência pela atividade sensorial e nervosa do ser

humano, ou seja: a linguagem – em todas as suas formas de manifestação – é fruto do que se

passa no sistema nervoso do ser humano e sua expressão maior.

Sob esta ótica, têm-se a idéia da supremacia do ser humano sobre os demais seres

vivos, uma vez que, enquanto algumas espécies têm a necessidade de trocar informações

apenas para garantir a sobrevivência da espécie, retransmitir seus genes e assegurar sua

supremacia sobre o território escolhido, como exemplo garantindo fontes de água, alimento e

abrigo; o homem busca a comunicação intensa com seus semelhantes porque necessita

participar ativamente da sua própria evolução biológica.

Embora seja considerado um conceito parcial, temos, aqui, delineado, o esboço da

teoria da Inteligência Emocional, uma vez que o processo de comunicação não se resume em

42

impulsos e estímulos nervosos, mas se alia a outros componentes, como o emocional. Assim,

a comunicação alimenta emoções e as emoções podem ser interpretadas como reações

biológicas, já que provocam alterações físicas no organismo humano. E essas alterações

podem alterar a percepção da informação e, assim, determinar novos rumos para a

comunicação.

Pelo conceito sociológico afirma-se define que o papel da comunicação é o de

transmitir os significados entre pessoas para a sua integração na organização social. Assim,

podemos afirmar que o ser humano se vale da comunicação como forma de mediar sua

interação social, pois se vale dela para se manter em constante relação com o mundo,

utilizando códigos compreensíveis para todos aqueles que o rodeiam em sua comunidade. E

ressaltam os sociólogos: quanto mais intrincada a organização social do Homem, mais

fundamental se torna a comunicação para o bom funcionamento da comunidade.

Pelo conceito antropológico analisa-se a comunicação como veículo de

transmissão de cultura ou como formador da bagagem cultural de cada indivíduo.

Esse é um assunto de grande importância, haja vista o surgimento da cultura de

massa no século XX, transformando as formas de convivência do homem moderno. Os

antropólogos e comunicólogos não devem se esquecer de que sem o desenvolvimento da

comunicação não se poderia estudar o homem em suas origens.

Todos os conceitos abordados foram e são de extrema importância para um

trabalho que pretende analisar uma reportagem e um filme sobre um espaço que abriga

centenas de pessoas, privando-as do convívio social externo.

Chegamos ao ponto em que estabelecemos nossa fonte de origem: a linguagem

escrita adotada por Varella (1999) para traçar a trajetória de sua vivência dentro do então

maior presídio da América Latina, e a linguagem audiovisual, adotada por Babenco, para

transpor para o cinema a linguagem escrita de Varella (1999).

43

Surge, então, nossa primeira grande questão em busca do entendimento dos

efeitos da ficção na mídia, aqui, leia-se cinema: a transposição do signo da linguagem escrita

para a linguagem áudio-visual pode se isentar parcial ou totalmente da ação do autor da obra

no realizar a transposição? Ou o cineasta, ao adaptar um livro para as telas, tem o direito de

agir sobre a obra original em ponto de lhe alterar o conteúdo?

Antes de responder prontamente a tal questionamento, necessário se faz

reacendermos em nossa memória outros conceitos essenciais ao entendimento final que

buscamos.

No mundo globalizado em que vivemos, a comunicação é essencial à vida. Talvez

não seja possível compará-la à importância das primeiras tentativas de comunicação nas

origens da humanidade, mas em ambos os casos a comunicação significa sobrevivência. No

passado e no presente, comunicar-se é sobreviver.

[...]Procuro mostrar que a perda da liberdade e a restrição do

espaço físico não conduzem à barbárie, ao contrário do que muitos pensam.

Em cativeiro, os homens, como os demais grandes primatas, criam novas

regras com o objetivo de preservar a integridade do grupo. (VARELLA,

Dráuzio, Estação Carandiru, p.10)

2.2 Do olhar e narrar ao olhar e ouvir: uma trajetória contundente

Varella (1999) nos alerta para olhar um mundo pouco conhecido, ou mesmo

ignorado pela maioria da população. Sabia-se da existência desse mundo paralelo, imaginava-

se como seria, mas não há certeza sobre como funcionava e nem de que modo agiam seus

habitantes. Tal espaço foi apresentado ao leitor em crônicas sucessivas.

Como estratégia de composição do livro, Varella optou pelo discurso objetivo

possibilitando ao leitor mais tempo para absorver as informações contidas em Estação

44

Carandiru (1999). E não se pense em pouco esforço do leitor – mesmo que a estrutura do

livro esteja organizada em capítulos de rápida leitura. Neles há fragmentos da realidade atual

dos prisioneiros e flashbacks, apresentando verdadeiros mosaicos que formam um grande

caleidoscópio em planos simultâneos. Importante destacar que essa simultaneidade

certamente facilita a Transcodificação do texto em prosa para o roteiro de cinema. Embora

aparentemente fáceis de serem lidos, tais capítulos carregam a complexidade das personagens

retratadas.

Varella (1999) optou por apresentar as personagens que povoavam esse mundo

paralelo chamado sistema prisional, cujo maior representante foi justamente o presídio do

Carandiru – o maior da América Latina, enquanto esteve em atividade. Um mundo paralelo,

de hierarquia rígida, regras pétreas que puniam severamente seus infratores.

As páginas escritas por Varella (1999) ganham, em função de tal

desconhecimento generalizado, contornos de relato histórico, mesmo que não seja esta a

pretensão do autor.

Pode-se afirmar, sem medo de errar, que Varella (1999) descerrou cortinas que

mantinham o Carandiru apenas nos limites da imaginação. Ao descrever as personagens com

quem conviveu durante os doze anos de trabalho médico no interior do presídio, Varella

acendeu o lume sobre os subterrâneos de nossa própria sociedade, desvendando o mistério do

destino reservado àqueles que não compartilham de nossa convivência, mas estão fundados

nas leis de convivência social.

Os sutis laços que unem nosso mundo ao interior dos presídios foram percebidos.

O sistema e seus agentes diretos foram expostos, entendendo-se, aqui, o sistema de

comunicação interna, que cria dentro do presídio uma sociedade similar à nossa, mas cercada

por grades e muros. Tal como aqui, lá existe a hierarquia: aqueles que mandam e os que

obedecem. Tal como aqui, as tarefas são divididas e executadas, ainda que sob o peso de

45

ordens, muitas vezes, de aparência desumana.

Observa-se que mesmo o caráter desumano ganha outros contornos. O mundo que

existia dentro dos muros e celas de um presídio é diferente do mundo feito de casas, lojas,

apartamentos, ruas e avenidas. As esquinas de nosso mundo podem ser movimentadas ou

ermas, tranqüilas ou perigosas. As esquinas do mundo de um presídio são rotineiramente

ameaçadoras e guardam surpresas até mesmo nos dias mais tranqüilos.

O narrador se abstém de comentários e de julgar as personagens. Além de

descrever, ele dialogava com os habitantes daquele mundo, e por isso pôde revelar suas

fraquezas, seus crimes, seus temores, mergulhando nos mistérios da capacidade humana de se

reorganizar em um sistema funcional, sustentado por novos códigos de comunicação e novas

regras de comportamento.

O narrador leva ao leitor as informações que nele foram injetadas pelas

personagens com quem conviveu. O seu olhar é aquele do médico para o paciente: analítico,

sem julgamentos, observador acima de tudo. O julgamento é realizado pelo leitor, o receptor

da mensagem, o que decodifica o signo feito palavra. A história fica registrada e a

interpretação é a de quem a lê.

2.3 Do humano sensível

Deste ponto, parte-se para o que podemos designar de individualidade do escritor,

a partir do qual o autor abre caminho para a arte, pois que partindo de seu individualismo a

escrita vai alcançando o espírito e a alma humana e criando identificação com outros homens.

Como escreve Mendonça (1996):

46

[...] A atividade humana gera uma série de atos que, por serem

comuns a muitos indivíduos, perdem a filiação, e de simples manifestações

individuais se convertem em manifestações coletivas, impessoais, acabando

por adquirir um automatismo que lhe retira toda qualidade vital. São estes

atos que, depositados no fundo das consciências, lhe transmitem esse perfil...

Ora é neste poder natural de contínuo renascimento, nesta mocidade

insuperável, que reside a virtude universalista das almas individuais. (1996,

p. 36).

Em sua narrativa - depoimento jornalístico, o narrador de Estação Carandiru

(VARELLA, 1999) vai revelando personagens e histórias de vida, convidando o leitor a

mergulhar em aventuras de tecidos variados, que permitem entrever a alma humana em seus

heroísmos e abjeções, evidenciando a verdade dos impulsos que não permanecem

aprisionados nem escondidos.

Mediante um realismo enriquecido de simplicidade e sinceridade, descortinam-se

ao leitor as perspectivas das emoções e raciocínios de cada personagem nas suas sinceras

psicoses.

Entrevemos, através das narrativas múltiplas e paradoxais, expressões de emoção

e sentimento que se universalizam no enriquecimento das experiências humanas, mesmo em

face de todas as dissidências e divergências humanísticas. Comandado por razão e emoção,

como tudo na vida, o narrador foi recriando o mundo através do filtro da sua individualidade,

sem exacerbar as aberrações, as monstruosidades ou mesmo a vulgaridade do cotidiano.

Podemos perceber no enquadramento literário o processo estilístico do autor, que

se mostra simples, limpo, despido de fraseologias de efeito e fiel à linguagem dos

personagens revelados, não desviando o leitor do jogo dramático de cada história narrada. O

desajuste permanente, a inaptidão para viver no mundo e a violência das situações são

suficientes para abdicar de efeitos que não os autênticos que a vida aí impõe.

A narrativa despida de adornos recria o cotidiano vulgar, quando a relação

humana não se ajusta à sintonia pacífica de convívio; o diálogo retratado entre as personagens

47

aponta a existência da incompatibilidade.

Necessário se faz o retorno a Mendonça (1996):

[...] o certo é que não nos compreendemos: nem a nós nem aos

outros. Tudo porque estamos neste mundo. [...] porque é no mais agudo

sentimento da humilhação extrema; ou ao cabo das experiências da

devassidão; ou nos irredutíveis conflitos das mais opostas, violentas,

complexas solicitações; ou nos mais delirantes momentos de terror

insondável; [...] ou no auge de certos estados anteriores e posteriores a um

crime; ou nas mais obscuras manifestações da chamada loucura lúcida..., em

suma é porque é naquilo a que os pobres homens chamam doença – que o

outro mundo se nos abre. (1966, p. 55)

A narrativa de Varella (1999) apresenta vidas cheias de situações ignóbeis, em

que a prostituição, os roubos e a loucura se fundem para produzir uma substância rica de

verdade e de vida. Ele escreve reproduzindo espantosas situações de pessoas desnudas, que

revelam a alma humana no que têm de maravilhoso e terrificante, com peculiar simplicidade

em seu processo estilístico enquadrando os problemas abrigados entre os muros daquela

cidade-presídio.

2.4 A construção social da marginalidade

A desagregação familiar, um lar com pais bêbados, a fome e a miséria, constroem

um ser marginal? Nós construímos a marginalidade? Ou o homem, isolando-se da família, do

ambiente de trabalho, do grupo social a que pertence busca caminhos diferentes, aventuras

que se transformam em desventuras que o levam à marginalidade?

Por que um homem se torna marginal?

À ditadura do consumo juntam-se, em coro, as ditaduras econômica e política,

construindo uma realidade ameaçadora e caótica, em que status e identidade adquirem a

mesma dimensão e o ser se traduz pelo ter, provocando uma transformação completa na vida

48

das pessoas e das sociedades, delimitando e determinando os interesses culturais.

Com o desenvolvimento industrial e a concentração dos valores e do poder

econômico nas mãos da elite as classes trabalhadoras e todos os cidadãos de baixo poder

aquisitivo, tiveram a vez e a voz garroteadas.

Nesse sentido, a narrativa de Varella (1999) está orientada para o campo dos

grupos escancarando os processos e as singularizações, liberando novos territórios

existenciais para nos instigar a pensar.

Hoje, há uma produção de subjetividade hegemônica capitalista que propõe um

sujeito consumidor ocupado e o tempo todo submetido ao ideal do que deveria ser, há uma

potência instituinte em todo sujeito que também se vê capturado pelos códigos que são dados.

Impossível não entrar num mundo pronto, sem sermos marcados por isso.

Quando prisioneiros contam sua história, aí já se configura a “construção da

marginalidade” de cada um – seja filme, ou seja, livro.

O homem faz parte da natureza, é um animal, com a diferença específica da

racionalidade, e uma das principais questões atuais é a de como ultrapassar a cisão sujeito

racional-objeto tão determinante do nosso modo de ser.

Habitamos em um espaço diferenciado como espécie animal, uma vez que

alteramos e transformamos a natureza em função da nossa sobrevivência. O rompimento com

a sucessão natural está na raiz da condição humana; o homem é capaz de arbitrar sobre seus

atos por causa de um espaço e de uma liberdade que lhe são próprios.

Jung (1971) já afirmava, há mais de cinqüenta anos, que a desordem é

prerrogativa exclusiva do homem, cuja consciência e livre arbítrio podem se desligar de sua

natureza e raízes animais. Nesta particularidade está a base de toda cultura e também da

doença psíquica.

Assim como o neo-realismo na literatura portuguesa exibe a realidade miserável

49

dos grupos desfavorecidos e esmagados pelos mais favorecidos, como afirma Mendonça “a

verdade pungente do suor alugado”. (1996)

A narrativa de Varella exibe um mal social dolorosamente humano, expondo

problemas humanos com lirismo e audácia, revelando a história da miséria humana,

provocando simpatia e sentimento de compreensão no leitor. A realidade sombria dilui-se em

momentos de sonho, de coragem e de verdades narradas, convergindo para uma variedade de

tipos sócio-psicológicos identificados nas personagens que habitam o presídio.

Com a fidelidade à linguagem das personagens, o autor vai revelando a gênese

emocional e a realidade das relações humanas, em sua profundidade, como linha mediatriz

condutora do processo dialético das relações, e que, pouco a pouco, revela a imensa solidão

do homem.

A narrativa caminha o tempo todo pelo tênue fio da realidade, mas de uma

realidade que não é a nossa, que explicita um modo de viver que não coincide com o nosso. É

a que passa na rua ao lado, que não é alheia, embora possamos permanecer surdos a esse

clamor porque tememos ouvi-lo.

No jogo narrativo, a originalidade descritiva e a sinceridade retrataram as

personagens em suas intimidades, conferindo-lhes vida e verdade à obra. Varella (1999)

sintetiza nessa narrativa, em estilo claro e objetivo, de código lingüístico comum, as

complexidades do humano e seus problemas, penetrando no desconhecido espaço interior do

ser, onde se entrelaçam o bem e o mal. A simplicidade do estilo reforça a simplicidade da vida

cotidiana, cuja diegese encerra uma problemática profundamente humana, que na maioria das

vezes é insolúvel.

Desta forma, reconhecemos a narrativa literária de Varella (1999) para descrever

as experiências pelas quais passou em sua atividade na Penitenciária do Carandiru: o teor

acentuadamente ideológico transformado e preocupado com a comunicação de uma

50

mensagem. E os ciclos da vida, no presente, recriam constantemente o passado.

51

CAPÍTULO 3

3.1 Próxima parada - Estação Carandiru: uma grande reportagem

"Triste Época! Mais fácil desintegrar um átomo que um

preconceito". Albert Einstein

O espaço descrito é o foco central do livro-reportagem, Estação Carandiru, que

conta os relatos de dez anos de convivência do médico Dráuzio Varella com os ocupantes do

presídio.

São histórias contadas para um médico oncologista, que desenvolveu um trabalho

voluntário de prevenção à AIDS no Presídio, registradas no livro Estação Carandiru e

adaptadas para cinema no filme Carandiru, uma produção que mobilizou, sob direção de

Hector Babenco, atores e técnicos, que se tornou sucesso de bilheteria por todo o Brasil. Foi

por meio desse livro-reportagem e da sua adaptação para o cinema que o sistema carcerário e

os problemas para os quais as autoridades não encontraram soluções que, a sociedade pôde

conhecer esse mundo abjeto e implodido, cujo espaço se transformou em área de lazer e

desportos.

3.1.1 Livro-reportagem Estação Carandiru

Um livro-reportagem é um produto cultural contemporâneo. Ele penetra em

campos desprezados ou superficialmente tratados pelos veículos jornalísticos periódicos,

recuperando para o leitor alguns elementos não encontrados nesses meios de comunicação. O

livro-reportagem avança as fronteiras do jornalismo, extrapolando os limites convencionais

que ele próprio se impõe. De abordagem diferenciada, esse veículo revitaliza a forma da

52

produção jornalística cotidiana, principalmente quando apresenta, com todo seu arsenal de

possibilidades, a grande reportagem. (LIMA, 1993)

O jornalista Edvaldo Pereira Lima O que é livro-reportagem – (1993) explica que

esse veículo exerce uma função recicladora da prática jornalística, porque ousa incorporar

contribuições conceituais e técnicas provenientes de áreas como a literatura e a história. O

livro-reportagem surge da necessidade de um aprofundamento maior dos acontecimentos.

(LIMA, 1993)

O jornalismo contemporâneo reveste-se da função de relatar os fatos e

acontecimentos que têm repercussão pública e de divulgar, de forma noticiosa, informações à

população para que ela tenha conhecimento do que ocorre à sua volta. Em alguns casos, o

relato avança para tentar explicar a causa ou as causas da ocorrência focalizada em cada

mensagem jornalística ou, ainda, ousa sugerir os desdobramentos futuros, ou seja, as

conseqüências ou desdobramentos dos acontecimentos. (LIMA, 1993)

O autor-narrador nos envolve com sua obra, onde ficção e realidade se misturam,

produzindo no leitor-receptor uma variada gama de emoções que vão desde a indignação com

as situações que os personagens vivem até a simpatia pelas histórias relatadas.

Em síntese, é para isso que serve basicamente o livro-reportagem: para estender o papel

do jornalismo contemporâneo, fazendo avançar as baterias de explicações para além do terreno que

estaciona a grande reportagem na imprensa convencional. Mais ainda, o livro-reportagem transcende

as concepções norteadoras do jornalismo atual. Tem potencial para assumir posturas experimentais.

Tem pique suficiente, se trabalhado de forma adequada, para fazer nascer a vanguarda de um

jornalismo realmente afinado com as tendências mais avançadas do conhecimento humano

contemporâneo. Em outras palavras, o livro-reportagem poderá ser a ponta-de-lança para o

desenvolvimento de um jornalismo holístico, que busca uma abordagem contextual e dinâmica da

realidade. (LIMA, 1993,p.57)

53

A grande reportagem em forma de livro surgiu com o new journalism

(manifestação de um momento do Jornalismo Literário), que apresenta um instrumental de

expressão sofisticado e um elevado potencial de captação do real. O new journalism nasce nos

Estados Unidos por volta das décadas de 1960 e 1970 para satisfazer uma necessidade de

muitos jornalistas: o sonho de escrever um grande romance. Assim Tom Wolfe (1976) explica

no livro El Nuevo Periodismo, acrescentando que havia uma espécie de hierarquia na

literatura, cujo status de romancista era o objetivo maior a se atingir.

Embora não seja reconhecido como um movimento literário pelos próprios

protagonistas, foi assim que o new journalism entrou para a história. Uma vez batizado e

reconhecido como fenômeno, o new journalism adquiriu um caráter de legitimidade e,

portanto, passou a ser pesquisado e conceituado por diversos autores, tais como Tom Wolfe

(1976) e Edvaldo Pereira Lima (1993). Além disso, essa manifestação do jornalismo abriu

espaço para as publicações periódicas e livro-reportagem, resgatando a tradição do jornalismo

literário.

No livro Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e

da literatura, (LIMA, 2004) coloca três fatores que distinguem o livro-reportagem das demais

publicações classificadas como livro. São elas:

a) Quanto ao conteúdo, o objeto de abordagem de que trata o livro-reportagem

corresponde ao real, ao factual. A veracidade e a verossimilhança são fundamentais.

b) Quanto ao tratamento, compreendendo a linguagem, a montagem e a edição do

texto, o livro-reportagem apresenta-se como eminentemente jornalístico.

c) Quanto à função, o livro-reportagem pode servir a distintas finalidades típicas

do jornalismo, que se desdobram desde o objetivo fundamental de informar, orientar e

explicar. (LIMA, 2004, p.137)

54

Como podemos perceber, o livro-reportagem trabalha sua narrativa de uma

maneira extensiva, defendendo um conjunto de princípios ou exercendo a abordagem

multiangular de uma questão, à procura de sua variedade de causas e conseqüências, e de

distintos pontos de vista a respeito. Permitindo várias formas de abordagens, um livro-

reportagem dá ao autor a escolha da forma e do assunto que quer abordar, oferecendo-lhe

liberdade.

Portanto, o livro-reportagem nasce da inquietude do jornalista que tem algo a

dizer, com profundidade, e que não encontra espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de

trabalho, isto é, na imprensa cotidiana.

Estação Carandiru, foi escrito em linguagem objetiva, clara, sóbria e elegante

apesar de seu caráter de denúncia social. Seu status é de livro-reportagem, porque reporta à

vida dos detentos que se abrigavam no maior presídio do País, a Casa de Detenção de São

Paulo, incluindo o real e a verdade, aquilo que o jornalismo atual tanto busca, enfatizando o

cotidiano de vida miserável e o grau de subsistência dos que viveram ali.

A grandeza do livro está na temática que liberou as vozes existentes atrás dos

muros do presídio. Após o conhecido massacre de 1992, a Casa de Detenção gritava através

de seu concreto. O livro possibilitou aos que ficam do lado de fora dos muros ouvir as vozes

das pessoas detidas.

No presídio existiam normas criadas pelos detentos que deviam ser rigorosamente

cumpridas. Qualquer transgressão era castigada com espancamento e, dependendo do caso,

até com a pena de morte, tornando–se os prisioneiros seus próprios juízes e algozes, tendo

como base as próprias leis.

O narrador relata o seu relacionamento com presos e funcionários, e como médico

dispõe-se a tratá-los individualmente, mesmo em condições pouco propícias. Na obra são

55

abordados mais os aspectos sociológicos e as nuances psicológicas que os problemas ligados

à área médica.

Sua pesquisa de prevenção à AIDS trouxe-lhe a oportunidade de conhecer um

lugar habitado por aqueles que praticaram algum tipo de maldade, onde não se conhece, na

maioria das vezes, a verdade. A vida nessa penitenciária caracterizava–se como um mundo

diferente no contexto de mundo dos cidadãos livres.

3.2 “Carandiru” (filme): uma grande denúncia

Figura 13 –

Ilustração da capa

do filme em DVD

– Carandiru

56

3.3 Ficha técnica do filme e elenco

As informações foram retiradas do site:

http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/carandiru/carandiru.as, em 11 de abril de

2008.

Título original Carandiru

Gênero Drama

Duração 146 minutos

Lançamento no Brasil 2002

Distribuição Sony Pictures Classics / Columbia Tristar do Brasil

Direção Hector Babenco

Roteiro Hector Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas

Produção HB Filmes, Globo Filmes e Columbia Tristar do Brasil

Co-produtores Flávio R. Tambellini e Fabiano Gullane

Direção de produção Caio Gullane

Produtor associado Daniel Filho

Coordenação de pós-produção Alessandra Casolari

Música André Abujamra

Som direto Romeu Quinto

Edição de som Elisa Paley e Miriam Biderman

Fotografia Walter Carvalho – ABC

Direção de arte Clóvis Bueno

Figurino Cristina Camargo

Edição Mauro Alice

Maquiagem Gabi Moraes

Casting Vivian Golombek

Site www.carandiru.com.br

57

Elenco

Nome do ator ou atriz Nome da personagem

Luiz Carlos Vasconcelos Médico

Milton Gonçalves Chico

Ailton Graça Majestade

Maria Luísa Mendonça Dalva

Aída Lerner Rosirene

Rodrigo Santoro Lady Di

Genaro Camilo Sem Chance

Floriano Peixoto Antônio Carlos

Ricardo Blat Claudioniro

Vanessa Gerbelli Célia

Leona Cavalli Dina

Wagner Moura Zico

Caio Blat Deusdete

Júlia Ianina Francineide

Sabrina Greve Catarina

Lázaro Ramos Ezequiel

Gabriel Braga Nunes Sérgio

Ivan de Almeida Nego Preto

Milhem Cortaz Pereira

Dionísio Neto Lula

Antônio Grassi Seu Pires

Rita Cadillac Ela mesma

Enrique Diaz Gilson

Robson Nunes Dadá

Bukassa Detento locutor

André Ceccato Barba

José de Paiva Charuto

Luís Miranda Paulo Boca

Marcelo Palmares Coelho

Nill Marcondes Pimenta

Regis Santos Mário Cachorro

Roberto Áudio Escovão

Sabotage Fuinha

Sérgio Loraza Gordo

Sílvio Roberto Baiano

Val Pires Furabolo

Walter Breda Antônio

Maurício Marques Namorado de Dalva

Oscar Magrini Homem 2

Marcelo Escorel Homem 1

Luciano Quirino Guarda

Emboscada Valdir 17

Vera Mancini (não especificado no site)

Ângela Corrêa (não especificado no site)

58

Figura 14 - Cena do Filme Carandiru retratando a chegada do médico a Casa de Detenção

3.4 Tradução do Real

Babenco et al (2002), ao adaptar a obra de Varella (1999) da mídia escrita para a

mídia cinema, elaborou a transposição inserindo uma linguagem na outra, transpõe os signos

subjetivamente. Recebeu a mensagem escrita de Varella e retransmitiu-a sob a forma de

signos audiovisuais. Nessa Transcodificação, muito das qualidades dos signos originais foram

abandonados a fim de transmitir as várias histórias na linguagem e tempo do cinema.

No livro o narrador apresentava as personagens de forma distanciada, com pouco

envolvimento emocional, não os classificando conforme o crime cometido e que os conduziu

ao Carandiru, a direção no filme foi incisiva na „romantização‟ das personagens,

especialmente quando obrigados a fundir mais de uma personagem como forma de “encaixar”

a obra de Varella no “tempo padrão” da linguagem cinematográfica. Se um livro pode ser lido

em semanas, um filme deve ser visto em um tempo médio de duas horas de projeção.

59

Possivelmente esteja nisso a essência da „romantização‟, fato que, em alguns

momentos, apresenta-se como uma Transcodificação não totalmente fiel ao livro, tal como

ocorre com a personagem “Lady Di”, interpretada pelo ator Rodrigo Santoro. Esta

personagem inexiste no livro, mas foi inspirada em Veronique, que existe no presídio em

foco.

A essência da obra de Varella (1999) é mantida pelo cineasta, mas os detalhes que

constroem o filme podem ser questionados quanto à fidelidade. Existe preocupação em

retratar o mais fielmente possível o cenário e as situações narradas pelo médico. É nisso que

reside o impacto visual da obra de Babenco. Cenas como a lavagem das escadarias internas,

com sua enxurrada de detritos, causa um misto de espanto e repugnância, visto que superam

aquilo que se pode imaginar quando da leitura dos capítulos que relatam o levante, o ataque e

o rescaldo.

As próprias cenas do massacre, quando 111 detentos foram executados,

aproximam-se de uma reconstituição histórica ou um documentário sobre o episódio que

chocou a sociedade brasileira.

No entanto, o texto de Varella (1999) não tem a pretensão de fazer uma

transcrição dos fatos. O narrador descreve os acontecimentos sob a ótica de quem os viveu do

lado de fora. Varella narra o que ouviu, pois não presenciou a invasão. Seu relato baseia-se na

experiência vivida pelas personagens com as quais conversou após o episódio, ou seja, nos

acontecimentos narrados pelos presos.

Babenco (2002) reinterpreta visualmente aquilo que Varella contou que lhe

contaram. Já é um terceiro foco sobre o mesmo fato. A „romantização‟ é perceptível, porque o

filme foi feito décadas depois do massacre. Não há como negar que o cineasta agiu sob o

impacto emocional de recriar uma realidade cruel.

Ao transpor o livro de Varella para a linguagem audiovisual, Babenco permitiu-se

60

reinterpretar a obra do médico. Criou signos reinterpretando signos.

3.4.1 O reencontro: laços afetivos entre os muros penitenciários

Buscamos reconhecer os valores ideológicos que norteiam as relações sociais, em

que as forças do inconsciente, além dos fatores econômicos, emotivos e racionais, expressam

os fatos simbólicos da vida nessa sociedade.

Escolhemos como corpus deste estudo um olhar sobre a iconografia e analisar

apenas as simbologias contidas na cena em que seu Chico, um detento, recebe a visita de seus

filhos (contada no capítulo do livro com o subtítulo de Reencontro). Nesta cena os objetos e

sua disposição no espaço cênico formam ícones que incitam à construção de vínculos

produtores de sentido, levando o espectador a um mundo interior de nostalgia e

reminiscências, e a atmosfera semântica remete a uma dimensão paradoxalmente oposta

àquela encerrada entre os muros penitenciários.

Ao fixarmos o olhar no espaço que se define pela determinação dos objetos,

encontramos um hipertexto onde se produz uma narrativa cujos signos são referenciais de um

ambiente familiar que ultrapassa os limites, sugerindo algo que enternece a fria realidade dos

confinados, um punctum – “como uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem

lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver”, preenchendo todo o espaço semiótico

que envolve a cena, como nos aponta Barthes, (2001, p. 51).

Podemos perceber os elementos intermediários que se articulam e que provêm de

contextos sócio-culturais extremamente distintos, como signos, cujos significados

fragmentam o sujeito/espectador, remetendo-o a um contexto cuja significância invade tanto a

memória individual quanto a coletiva, que compreende a distinção entre conjuntos de códigos

como perspectivas de citações e uma miragem de estrutura, está claro em Cañizal (2004, p.29):

61

Nesse feixe de ressonâncias simbólicas, não me parece descabido, portanto, que cada uma

das partes em que se fragmentam os sujeitos das enunciações enunciados se vincule, tanto no ato de

escritura quanto de leitura, a significados diferentes.

Atrai-me a idéia, de que a pluralidade de vozes forma, quando estes se entrelaçam, um

texto, um tecido cujas urdiduras possibilitam a identificação de significantes-chaves.

O entendimento da palavra “voz” pode ser não só ressonância, mas algum

fragmento imagético. Dialogar também se refere a quando os enunciados de um signo

ressuscitam outros enunciados de signos que a ele subjazem.

Nesse contexto, as imagens responsáveis pela mediação também dialogam com o

telespectador, trazendo-lhe à memória imagens cujo colorido e simplicidade ressoam nessa

cena de Carandiru, como se denunciassem a presença de algo que falta.

3.4.2 Plataformas transitórias

Figura 15 – Cena do filme em que o personagem seu Chico que confecciona balões solta o balão no

pátio da casa de detenção.

O que a câmera capta é a representação do movimento se intrometendo entre o

62

mundo tido como real e aquele das aparências, que denotam as reminiscências do real, tanto

quanto as ideologias do inconsciente. Enveredando pelas trilhas onde cinema e literatura se

aproximam, entrelaçando as mãos, as narrativas no livro Estação Carandiru (VARELLA,

1999) são planos a serem montados em filme e que formam, por si, uma totalidade

significativa.

Os vários planos narrativos nessa reportagem caracterizam a vida dessa gente que

habita o presídio, e o capítulo do livro sobre o reencontro sustenta nosso olhar reflexivo sobre

esta cena no filme.

Enquanto na reportagem o autor descreve sucintamente a cena, a inventividade do

diretor no filme vai enriquecendo, com detalhes, as cenas.

De uma cena estática, em plano geral, surge a ação e seus elementos que se

revelam aos poucos no passeio panorâmico da câmera, acrescentando novos elementos na

medida em que o enquadramento vai compondo toda a paisagem do local, de maneira que

compõe um todo significativo.

No discurso cinematográfico, as narrativas se enriquecem com o jogo de câmera e

com a montagem que utiliza a elipse, fazendo surgir, com os cortes em flashbacks, a história

do sujeito, fato que possibilita ao espectador penetrar no universo subjetivo de cada

personagem. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.12).

No primeiro encontro marcado, os filhos de seu Chico não aparecem. Isso levou o

carcereiro a fazer um comentário, fato que provocou a ira de seu Chico, que reagiu com

agressividade. Ato contínuo ocorre. Então, o corte espaço-temporal e a continuidade mostram

seu Chico sendo colocado em cela solitária. A elipse verificada encurta o caminho. (LEONE

& MOURÃO, 1993, p.12).

Sabemos que todos os elementos que constituem um plano são reunidos a partir

da intenção do diretor, nada ocorre por acaso e neste foi dirigido para propor uma leitura

63

ideológica ao espectador, muitas vezes reforçada não apenas pelo enquadramento da câmera,

como também pela elipse. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.15).

Os planos, as seqüências e a montagem mostram a realidade, mas, ao fazê-lo,

conferem-lhe uma significação. Com isso queremos dizer que a montagem articula três etapas

distintas, a saber: o roteiro, a realização e a organização dos planos. (LEONE & MOURÃO,

1993, p.15).

Por meio deles, o cineasta apresenta a sua visão subjetiva e objetiva de mundo.

3.4.3 O nem sempre vil metal

O cinema é rico manancial didático, cujas potencialidades ainda não foram

exploradas em toda a sua extensão e valor.

Essa mídia é hoje uma comunicadora de mitos, a mais ágil e, talvez, aquela que

tenha uma linguagem mais próxima das representações pictóricas da vida mental, tanto no

plano da vigília como no da vida onírica. Por definição os mitos estão para a coletividade

como os sonhos para o indivíduo. Ainda que se mantendo virtual nos filmes, a imagem ganha

objetivação e um certo grau de realidade. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.16).

Uma observação mais acurada permitirá estabelecer certas conexões entre os

mitos que sustentaram a cultura de uma época e o êxito de certas películas (embora essa

comparação não pertença a nosso objeto de estudo), nas quais algumas tragédias modernas

ganharam maior transparência, filmes estes que deixam marcas por que exprimem e esgrimem

temas da história. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.12).

Ao longo da história da humanidade, o aparecimento do dinheiro introduz uma

ruptura no mercado da troca direta de objetos – o escambo. Torna-se o instrumento universal

das trocas comerciais e sofre uma nova transformação, passando de meio a fim, tornando-se

64

tão presente no cotidiano de nossas vidas que perdemos a noção de seus limites. Depois de se

transformar em mercadoria, o dinheiro converte quem o possui em mercadoria ou o deseja

para acumulação e posse. (ENRIQUEZ, 1990).

Não são apenas as experiências de gratificações da sensorialidade que produzem o

momento estético. As manifestações da inteligência e da criatividade levam também a esse

tipo de encantamento estético, fundamental na existência humana na determinação do

aplauso, da opção e do desejo de desfrutar e possuir. (ENRIQUEZ, 1990).

A posse de dinheiro confere outros limites críticos conhecidos, tais como o de

acrescentar o temor às perdas e o de aumentar a desconfiança nos relacionamentos, pois existe

uma suspeita constante de que o outro possa ser um interesseiro. (ENRIQUEZ, 1990).

Um outro aspecto é o da degradação, o dinheiro avilta a qualidade da relação

humana quando pretende se tornar capaz de substituir o sentimento amoroso em seu mais

amplo sentido. (ENRIQUEZ, 1990).

Fizemos alguns apontamentos sobre a questão social e do papel do dinheiro na

sociedade porque ele está claramente presente nos aspectos que revelam a tramas dos

personagens tanto no livro quanto no filme.

O filme Carandiru (BABENCO et al, 2002), a cada cena, torna mais clara a

transgressão do respeito pela condição humana, de onde um sistemático e engenhoso processo

de demolição da dignidade se apresenta junto da informação dos crimes e delitos que

constituem a história das personagens.

Enfim o reencontro de seu Chico com os filhos acontece, monta-se o cenário e ele

recebe-os no pátio externo do presídio.

Um corte da câmera e percebemos a sensibilidade do encarregado e do diretor do

presídio que permitem que esse encontro avance na tarde, como nos mostra a câmera,

envolvendo em seu passeio o percurso do sol rumo ao poente.

65

O enredo, no filme, está construído em dois tempos: presente e passado. No tempo

presente, o médico-autor conta os episódios vistos por ele em contato com os presos. Ele é um

autor homodiegético sem ser autodiegético, pois apenas ouve os presos, assim, narra como

primeira pessoa testemunha do objeto narrado. Estas crônicas são narradas intramuros na casa

de detenção. No tempo passado, o tempo das memórias, as personagens marram suas histórias

extramuros em flashbacks. Os episódios do passado delas é narrado conforme a

individualização do sujeito, que opta pelas recordações de um tempo que é só dele e no

contexto histórico em que vive. Mas observamos que as duas histórias são narradas em tempo

cronológico no instante em que se fixam. Observamos que, na essência, as histórias se

assemelham e se mesclam em diferentes momentos de sua tessitura dramática.

3.4.4 O Espaço: um espelho mental

“A disjunção entre o espaço e o tempo preparou o caminho para

uma outra transformação, estreitamente relacionada com o desenvolvimento

da telecomunicação: a descoberta da simultaneidade não espacial. [...] Em

períodos históricos mais antigos a experiência da simultaneidade – isto é, de

eventos que ocorrem “ao mesmo tempo” – pressupunha uma localização

específica onde os eventos simultâneos podiam ser experimentados.

Simultaneidade pressupunha localidade: “o mesmo tempo” exigia “o mesmo

lugar”. Com o advento da disjunção entre espaço e tempo trazida pela

telecomunicação, a experiência da simultaneidade separou-se de seu

condicionamento espacial. Tornou-se possível experimentar eventos

simultâneos, apesar de acontecerem em lugares completamente distintos. Em

contraste com a concretude do aqui e agora, emergiu um sentido de “agora”

não mais ligado a um determinado lugar. A simultaneidade ganhou mais

espaço e se tornou finalmente global em alcance. (THOMPSON, 2002, p.36

– 37)

Em épocas passadas, a compreensão que as pessoas tinham de lugares distantes e

do passado era baseada na troca de conteúdos simbólicos nas interações pessoais. Atualmente,

a difusão dos produtos e situações cotidianas na mídia não eliminou a função das tradições

orais e diretas de comunicação, mas superou-a em eficácia e eficiência. Thompson (2002)

66

apresenta isso assim:

O desenvolvimento dos meios de comunicação criou assim o

que agora descrevemos como uma “historicidade mediada”: nosso sentido do

passado e de como ele nos alcança se torna cada vez mais dependente da

expansão crescente de um reservatório de formas simbólicas mediadas. A

tradução oral e a interação face a face continuam a desempenhar um papel

importante na elaboração de nossa compreensão do passado, mas elas

operam em conjunto com um processo de compreensão que se serve cada

vez mais do conteúdo simbólico presente nos produtos das indústrias da

mídia. (THOMPSON, 2002 – p.38)

Influindo nessa compreensão do lugar e do passado, a mídia altera a percepção

dos grupos e das comunidades, dificulta a manutenção do sentimento de partilha de uma

história, já que altera nossa capacidade de compartilhar de uma trajetória comum no espaço e

no tempo.

Nas sociedades primitivas a maioria dos indivíduos dependia da terra para a sua

sobrevivência. Nas modernas, o sistema fabril e urbano modificou o espaço e até mesmo a

sincronização do tempo. O progresso concebido pelas teorias sociais de evolução está criando

um enorme vazio entre os horizontes constantemente em mudanças e as expectativas quanto

ao futuro. (LEVI – STRAUSS, 1976)

Sob a influência da Semiótica, muitas reflexões transformaram-se em críticas

culturais, demonstrando preocupações em relação aos “textos”, não apenas aos literários, mas

também quanto aos filmes, programas de TV, anúncios e outros produtos midiáticos. (LEVI –

STRAUSS, 1976)

Os produtos da mídia são recebidos por indivíduos que estão sempre situados em

contextos sócio-históricos específicos e que se caracterizam por meio das relações de poder,

até certo ponto estáveis, e com acessos diferentes aos diversos recursos disponíveis, ao

interpretar as formas simbólicas, os indivíduos as incorporam na compreensão que têm de si

mesmos e dos outros, apropriando-se de uma mensagem, assimilando-a e incorporando-a na

67

própria vida. É trazer a mensagem aos contextos e circunstâncias em que a vivemos e que

geralmente são bem diferentes daqueles em que a mensagem foi produzida (FOUCAULT,

1987).

Em Carandiru (BABENCO et all, 2002), evidencia-se a subjetividade e a

onipresença do diretor no texto cinematográfico. A interação com o receptor se processa na

descrição do espaço e das personagens, principalmente com seu Chico. A realidade e a ficção

estão tão intimamente ligadas que somos compelidos a sentir as dores e contentamentos que

as personagens experimentam.

Quando se trata do sistema de signos que compõe a mídia cinema, (FLORY,

2005) em seu estudo sobre o filme Lisbela e o prisioneiro, afirma que: “Cada filmagem cria

um produto próprio com características próprias, como um conjunto de notas que dão forma à

sinfonia, o trabalho da câmera, os planos tanto gerais quanto de profundidade, a montagem

dos eventos e a edição do filme é que constituem o produto final como resultado de um

trabalho de equipe que integra as diversas visões deste grupo numa só partitura”.

Configurando-se a diegese, o filme subverte o texto literário, já que nele se inclui

uma cena de agressão: seu Chico agride o carcereiro que zomba de sua frustração quando do

primeiro reencontro com a família e esta não comparece. A indisciplina e o desrespeito

levaram-no à cela solitária, um cubículo apertado e escuro. No texto literário narra-se que o

detento volta com o carcereiro ao pavilhão, sem trocar palavras.

A descrição que o filme faz deste personagem, seu Chico, mostra-nos um senhor

quieto, que constrói balões coloridos e cuja aparência nem de longe se assemelha à de um

matador ou bandido cruel.

Desta forma, vemos confirmada a proposição de que o homem é um ser dialético,

que se desenvolve a partir de antagonismos e contradições, portanto, o conflito é o espelho da

sua vida nas relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo. (LACAN, 1993)

68

O que vemos na cena do reencontro com a família é a interferência do cineasta,

reconstituindo, na tela, um espaço com a clara intenção de nos sensibilizar para aquele drama

humano, motivando o espectador à compreensão e identificação de seus cuidados de pai

zeloso, faz-se o uso de signos arbitrários para ativar o que Roland Barthes denomina de

consciência simbólica (1981). Configura-se, então, uma dialética de linguagem e espaço que

constroem uma mesma fala.

O espaço cênico ultrapassa as origens estéticas e ou psicológicas e entra na ordem

semiológica, assumindo ora o papel do significado ora o do significante (LACAN, 1993). O

corte e a montagem na representação do espaço tornam-se sua voz, como nos aponta Genette:

“As metáforas espaciais constituem, pois, um discurso de

alcance quase universal, já que delas nos servimos para falar de tudo,

literatura, política, música, e é o espaço que constitui sua forma, nisto que

lhe fornece mesmo os termos de sua linguagem. Existe então um significado

que é o objetivo variável do discurso, e um significante, que é o termo

espacial. (...) Trata-se pois, aqui, de um espaço conotado, manifestado mais

que designado, falante mais que falado, que se trai na metáfora como o

inconsciente se revela num sonho ou num lapsus. (GENETTE, 1970, p.101)

Isso só é possível quando focamos o problema da significação, tanto na literatura

quanto no cinema, seguindo o pensamento do próprio Barthes descrito em Genette: “Homo

significans: o homem fabricador de signos, liberdade que os homens têm de tornar as coisas

significantes, o processo propriamente humano pelo qual os homens dão sentido às coisas”

(GENETTE, 1970, p.182).

Quando trabalha a espacialidade, tanto diretor quanto roteirista criam relações

virtuais, porém, estas fazem parte de um nível estrutural lógico e, portanto, mantêm uma

equivalência em sua construção imagética.

De posse do texto, o diretor direciona-se para a criação do espetáculo, ou seja, a

„geografia cinematográfica‟, (LEONE & MOURÃO, 1993, p.23). definida por eles como

resultante da combinação de planos, a estrutura das personagens no espaço do cenário é

69

complexa e se compões de diversas necessidades para a fluência narrativa

No embricamento das artes a tela se torna o espaço plástico que será o suporte

formal da narrativa.

70

CAPÍTULO 4

4.1 Arte e vida se confundem e se completam

O mais importante da vida não é a situação em que estamos,

mas a direção para a qual nos movemos. Oliver W. Holmes

O cinema tem sua origem na França, em 1895, quando os irmãos Lumière

apresentaram para um pequeno público um aparelho que permitia a obtenção de fotografias

animadas, que chamaram de cinematógrafo.

O Dicionário de Comunicação define cinema como: “Registro e impressão de

imagens em movimento. Conjunto dos métodos e técnicas empregados para este fim, a

cinematografia”. (RABAÇA; BARBOSA, 1987). “Salles (1992) afirma sobre isso que:

Tratava-se, portanto, de um processo mecânico e não se podia, de forma alguma, falar em arte

a propósito do resultado obtido”.

Nos primórdios, usava-se o cinema para registro de peças teatrais e

documentários. O que se estabelecia não era somente a arte do cinema, mas a possibilidade

extraordinária das suas aplicações a quase todos os campos das outras artes. Com a

implantação da fala, o cinema desenvolveu-se de modo que originou sua própria linguagem.

Entre muitas descobertas e invenções, tais como os efeitos de câmera e

aperfeiçoamento da linguagem cinematográfica, na segunda década do século XX,

consolidou-se a indústria do cinema nos Estados Unidos, dando espaço a grandes atores, que

logo depois se tornariam “estrelas”.

A indústria do cinema se estabeleceu no início dos anos 20,

pensando o filme como uma mercadoria. O estrelismo foi uma das armas

mais fortes das grandes empresas cinematográficas, servindo também para o

enriquecimento da linguagem tanto na sofisticação fotográfica dos closes das

estrelas, quanto no apelo do erotismo de atores e atrizes. (TUNER,1997).

71

O cinema, ao longo dos anos, ganhou uma visão mais direta e imediata da

realidade, a linguagem tornou-se mais coloquial e espontânea. Já na década de 1960, o

realismo leva ao filme documentário e ao cinema verdade, possibilitando uma relação direta

do espectador com o real, como se a personagem olhasse nos olhos do espectador.

Foram tão grandes a evolução tecnológica cinematográfica e sua industrialização

que o cinema ganhou efeitos cada vez mais requintados de computador. E nos dias atuais, a

cinematografia busca a produção de filmes que estabeleça uma integração da platéia com o

conteúdo e com a própria realidade.

“O cinema de hoje parece apontar um caminho de renovação. A

estória é deixada em segundo plano, dá-se mais importância a um enfoque

complexo dos problemas do homem no mundo. A relação do filme com a

platéia pode ser conseguida até mesmo pelo incômodo provocado pela

duração da ação que não faz evoluir o enredo. Os progressos técnicos podem

aumentar as possibilidades de se dizer as coisas” (BRIGGS e BRUKE,

2004).

4.2 A sétima arte em Carandiru: fantástico retrato da realidade

O cinema traz para a grande tela o diálogo das ruas, das pessoas comuns,

apropriando-se dos cortes, das elipses, dos flashbacks, produzindo ações simultâneas em

tempos diferentes. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.30).

Dentre os elementos da linguagem cinematográfica que podemos ver no trabalho

produzido por Babenco (2002), como diretor do filme, é a marcação de cenas, a passagem de

um plano a outro nas relações entre personagens no quadro, ou de um enquadramento a outro,

as cenas curtas, determinando mudanças de plano, ritmos e seqüências, ressaltando em seus

recursos narrativos a violência num discurso imagético que evidencia a montagem, a direção e

a fotografia de um cinema denúncia.

72

4.3 A montagem como voz para o discurso imagético

Compreende-se a montagem como narrativa essencialmente cinematográfica, seja

em sua concepção tradicional ou nas diferentes formas que sua evolução concebe. Nela,

permite-se a fidelidade entre roteiro e realidade, o uso e o abuso de recursos estilísticos, a

fragmentação desconstrutiva de uma narrativa perpassada por trucagens de ciclo narrativo ou

inversões de tempo. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.36).

O cinema comercial contemporâneo usa a montagem como a forma de ordenar o

material captado, trabalhando cada momento do roteiro a seu gosto, de modo pode

reestruturar um texto com propriedades despercebidas no material escrito que motivou o

filme. Uma cena de um filme pode marcar na mente do espectador com força eternizadora.

(LEONE & MOURÃO, 1993, p.37).

Em outros momentos, a montagem descreve, em discurso analéptico, os

acontecimentos sucessivos que levaram os personagens a habitar o presídio. Dessa forma, a

montagem é a referência para a concepção visual do mundo cinematográfico.

4.4 A fotografia e a linguagem cinematográfica

A fotografia pode ser trabalhada como meio de criar o discurso imagético,

possibilitando uma identidade para o discurso fílmico, mesmo que ela ocorra em função do

filme. A união da fotografia e da montagem é que cria o universo imagético. (LEONE &

MOURÃO, 1993, p.64).

A conotação só aparece pela intervenção humana por meio de efeitos fotográficos,

de iluminação e ou incidência angular. No cinema se faz presente e necessária uma

73

semiologia da denotação, pois um filme é feito com muitas e diferentes fotografias. (LEONE

& MOURÃO, 1993, p.65).

Um filme começa com uma idéia ou um argumento, que se transforma

num roteiro. Este é a parte escrita que contém as cenas e os diálogos, e assim, como no texto

literário, o roteiro vai conduzindo as cenas, as seqüências, os diálogos e as personagens que

fazem parte da história que se quer contar. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.15).

Uma grande parte do valor e da mensagem de um filme está na forma como a

história é contada, na escolha dos atores e da equipe técnica, como também dos recursos

materiais e financeiros que se tem para a produção. No trabalho captado pela câmera percebe-

se a magia do cinema. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.15).

Dessa forma, a arte cinematográfica tornou-se uma linguagem utilizada como

meio de relatar e veicular idéias, adquirindo um caráter sintáxico e se firmando como meio de

comunicação, informação e denúncia.

O cinema, graças a sua natureza específica, distingue-se dos outros meios de

expressão culturais pelo seu enorme poder de retratar fotograficamente a realidade. As

pessoas, situações e coisas atingem diretamente a imaginação e a representação que expressa

o significante, reproduz exatamente a informação conceitual que veicula, cunhando, assim, o

significado e recriando no espectador as três instâncias psíquicas que constroem a realidade: o

real, o imaginário e o simbólico. (GENETTE, 1970, p.101)

4.5 Onde ficção e realidade transparecem nos gêneros do cinema comercial

O cinema comercial está classificado em gêneros como forma de organizar

estruturalmente o leque de ações dos personagens e o desenvolvimento do roteiro. Podemos

identificar os gêneros como Drama, Comédia, Aventura e Suspense. Cada um desses gêneros

74

necessita de recursos técnicos apropriados, como imagens definidas, movimentos de câmera,

trilha sonora e efeitos especiais, dentre outros, que colaborem à comunicação da trama e

atinjam o espectador, produzindo reações sensoriais.

Considerada a base da linguagem cinematográfica, a imagem reproduz a realidade

que lhe é apresentada e constitui uma percepção objetiva, suscitando, no espectador, um

sentimento de realidade, mesmo que esteja captando apenas um determinado aspecto da visão

de seu realizador.

A imagem oferece uma visão artística da realidade, cuja aceitação e interpretação

dependem do contexto criado pela montagem fílmica para transmitir sentido associado à

concepção mental do espectador. Esta é determinada pelo seu contexto sócio-histórico-

cultural. É importante que se atente para o comportamento adotado pela câmera em relação

aos personagens da trama, ainda que ela pareça estar silenciosa, pois que os modos como a

câmera dispõe para qualificar a realidade são múltiplos e nem sempre imediatamente

compreensíveis. Isso nos aponta para o papel criador da câmera como agente de registro da

realidade e de criadora da realidade fílmica.

A evolução da técnica cinematográfica liberou a câmera de se manter num ponto

fixo, modificando, assim, o ponto de vista de uma mesma cena. A câmera tornou-se tão móvel

como o olhar do ser humano. Em verdade, ela tornou-se um narrador. Por meio dela o diretor

apresenta e impõe os mais diversos pontos de vista e em diferentes posições. (LEONE &

MOURÃO, 1993, p.66).

O americano David W. Griffith foi o primeiro a utilizar close, a montagem

paralela, o suspense e os movimentos de câmera. Estes vários recursos, assim como os

enquadramentos, os diversos tipos de planos e os ângulos de filmagem criam e condicionam a

expressividade da câmera em seu papel criador de imagens. (LEONE & MOURÃO, 1993,

p.35).

75

Os enquadramentos constituem o primeiro aspecto da função criadora da câmera

em seu registro da realidade. É a composição do conteúdo da imagem na maneira como o

diretor organiza o que o espectador assiste na tela. Em Carandiru, na cena do massacre, o

enquadramento vai, devagar, configurando a narrativa de um cinema-denúncia, modificando o

ponto de vista do espectador. Há uma perspectiva de enquadramento do espaço que produzirá

os efeitos dramáticos de compaixão e indignação em qualquer ser humano diante do horror

que a câmera revela.

O plano consiste nas tomadas de cena, na extensão compreendida entre dois

cortes. Os planos têm como objetivo corroborar com a percepção e a clareza da narrativa.

Através dos diferentes planos, os segmentos de imagem vão focalizando ora os cenários e

atores à distância, ou seja, um plano de conjunto ou panorâmico; ou atores e objetos mais

próximos; ou enfatizando o rosto, um pormenor, isto é, quando uma parte do corpo ou do

objeto é mostrada a distância curtíssima; e todos esses elementos são de grande importância

para enfatizar aspectos psicológicos das personagens e aspectos narrativos do filme. (LEONE

& MOURÃO, 1993, p.18).

Os ângulos de filmagem intensificam as ações e reações das personagens, assim,

podemos ver o uso da plongée e da contra-plongée, além do enquadramento inclinado. Em

nosso objeto de estudo, o filme, podemos ver a filmagem de cima para baixo. Esta tende a

diminuir o indivíduo, podendo provocar sensação de esmagamento, opressão, aumentando a

percepção e a tensão dramática na atribuição de sentido psicológico, o plongée. A contra-

plongée também intensifica as reações diante da situação dramática, mas ocorre quando o

tema é filmado de baixo para cima, provocando sensação de superioridade, exaltação e

aumentando a visão do indivíduo. Ainda na categoria de ângulos, o enquadramento inclinado

é o efeito que mostra o ponto de vista de alguém que não está na posição vertical, o que leva o

espectador a acreditar que a personagem sobe por uma escada ou caminho muito íngreme,

76

levando algo muito pesado, e sugere também uma impressão sentida pelo personagem como

inquietação ou desequilíbrio. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.67)

Outra categoria de análise é obtida dos movimentos da câmera: Referência – de

onde tirei essas classificações?

a) Panorâmica, cujos movimentos se dão em rotação vertical, horizontal ou

obliqua, que podem chegar a 360º;

b) Travelling, movimentos para frente, para trás e para as laterais com a câmera

colocada sobre um suporte móvel;

c) Dolly ou Grua, câmera colocada na extremidade de um braço móvel sustentado

por uma plataforma de rodas ou ajustável num veículo, que pode executar movimentos muitos

fluídos em diferentes posições;

d) Câmera na mão, que é a movimentação da câmera através de deslocamentos do

operador, sem ajuda de instrumentos de suporte; e a

e) Steadycam, câmera fixada ao corpo do operador mediante uma armação, sendo

ao mesmo tempo isolada por um sistema de amortecedores que permite o máximo de

mobilidade. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p. 67-68)

Os movimentos da câmera provocam sensações e reações no espectador,

restituindo-lhe parte do papel de agente participativo do enredo e permite a cada indivíduo

acompanhar o desenrolar da trama. As descrições e imagens realçam elementos materiais e

psicológicos da narrativa. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.69)

Existem outros elementos fílmicos não específicos que participam da criação da

imagem e do universo da filmagem, mesmo sem pertencer exclusivamente ao cinema. Com o

avanço da tecnologia, a iluminação passou a ser utilizada e explorada em todos os estilos de

filme, produzindo efeitos mágicos, trágicos e mesmo mirabolantes. A cor pode proporcionar à

cena um considerável valor psicológico e dramático, sua utilização bem compreendida pode

77

significar não apenas a reprodução da realidade na tela, mas ocupar uma função expressiva e

metafórica. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.69)

O figurino é um outro elemento que faz parte do manancial de recursos

expressivos dessa fábrica de sonhos chamada cinema. Sua utilização pela sétima arte é

identificada como: realista, quando compatível com a realidade histórica; para-realista, se

inspirado na moda da época, mas estilizado; e simbólico, cuja intenção é traduzir caracteres,

tipos sociais e ou estados de alma. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.70)

O cenário cinematográfico contém tanto as paisagens naturais quanto as

construídas e sua função é contextualizar a tonalidade moral ou psicológica da ação.

A elipse constitui-se num importante elemento na produção do cinema. Seu uso

sugere um acontecimento ou uma ação. Esse é um dos recursos mais impressionantes de

poder do cinema: a sugestão. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.70)

As metáforas e símbolos são recursos muito utilizados no cinema. Há sentido para

tudo que é mostrado na tela, explícito e implícito. Na maioria das vezes as figuras de

linguagem apontam a uma significação por meio das reflexões do receptor, provocando uma

relação dialética entre ele o filme. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.71).

A música e o som são elementos incorporados no cinema. Eles são, na atualidade,

componentes essenciais às produções cinematográficas em função de seu valor dramático e

forte apelo emocional exercidos no espectador. Além disso, evidenciam lugares e

acontecimentos. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.71)

A montagem constitui o fundamento mais específico da linguagem fílmica: é a

ordenação dos planos do filme em uma combinação de ordem e duração. O filme Carandiru

começa pelo conteúdo que está apresentado na metade da narração em relação ao livro, e vai

nos revelando, através do jogo de câmeras, o presente e o passado em flashbacks ou

analepses. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.74)

78

CAPÍTULO 5

5.1 Transcodificações: De Estação Carandiru a Carandiru

Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há

ninguém que explique e ninguém que não entenda. Cecília Meireles

O filme Carandiru (BABENCO et al, 2002) é uma livre adaptação do livro-

reportagem Estação Carandiru, de Dráuzio Varella (1999). É uma produção brasileira que

retrata a vida dos detentos no maior presídio da América Latina, também chamado de

Carandiru, que já foi desativado.

A obra foi adaptada ao cinema. A produção do filme mobilizou, sob direção do

cineasta Hector Babenco, atores e técnicos de primeira linha, transformando-se em sucesso de

bilheteria por todo o Brasil.

Embora no filme se procure a fidelidade aos fatos narrados no livro-reportagem, é

preciso destacar que foram utilizados elementos próprios do cinema, estabelecendo uma nova

linguagem e visão sobre o assunto.

No decorrer da história, o narrador tece nas vozes das personagens muitas

reflexões, tais como a importância do uso de preservativos nas relações sexuais, sobre o

tráfico de drogas dentro e fora do presídio, as relações humanas existentes intramuros de um

presídio. Assim, ele mostra que o visto em Carandiru é o enredo de histórias verídicas, que

infelizmente são realidade no Brasil.

O roteiro do filme se mantém quase fiel ao livro, apresentando algumas

características importantes, mas destacamos a linguagem: as principais “falas” das

personagens são adaptações de trechos descritos pelos presos.

79

No filme, o cineasta adicionou ficção às pequenas narrativas das reportagens,

recurso que pode ter sido utilizado para dar ritmo à trama e histórias que são contadas através

de imagens.

Mesmo que o cinema tenha características e linguagens completamente diferentes

da obra literária, a trama dos dois textos aqui objetos de estudo evidencia a necessidade de

prevenção quanto a AIDS e os relatos sobre o massacre de 1992.

5.2 Livro-reportagem X obra cinematográfica

O livro-reportagem começa apresentado uma noção de tempo e espaço para o

leitor se situar e entender como e onde se localiza o Carandiru. Já o filme começa in média-

res, mostrando uma briga entre os detentos, momento em que o líder dos presos e o diretor do

presídio são apresentados.

Na obra escrita, foi realizada a apresentação da infra-estrutura do presídio

Carandiru, descrevendo os pavilhões, os moradores de cada um deles e também as funções de

cada setor do local, a fim de aguçar o imaginário do leitor. A obra cinematográfica também

apresenta essas características do Carandiru, mas de forma superficial, já que o telespectador

vê as cenas.

Varella (1999) apresenta algumas histórias que lhe foram contadas pelos presos.

Ele as conta detalhando o cotidiano de cada um e contando como cada personagem foi parar

atrás das grades. Já no filme (BABENCO ET AL, 2003), algumas histórias foram agrupadas,

fugindo um pouco do enredo do livro. Com isso a trama ganhou ritmo e, de acordo com suas

características, foi realizada a adaptação por meio das imagens. As histórias são simuladas e o

foco da câmera incide sobre os detentos que contam as próprias versões dos fatos.

80

O livro Estação Carandiru, em alguns capítulos, destaca um problema de saúde

pública existente em espaços de reclusão, como um presídio, que é a AIDS. Como também

destaca a necessidade de um trabalho de prevenção dessa doença sexualmente transmissível.

Lembramos que esse era o motivo principal da presença do médico, Dráuzio Varella, no

presídio. Um desses capítulos é dedicado a Rita Cadillac, que foi escolhida a musa dos

detentos mediante uma votação interna. Por meio dessa personagem Varella explora a questão

da sexualidade e da prevenção contra o vírus HIV. O filme Carandiru utilizou duas formas

para dar destaque à questão da AIDS no presídio:

1) utilizou-se do carisma de um ator de renome, Rodrigo Santoro, para interpretar

uma travesti, para sensibilizar o telespectador e dar destaque à campanha contra AIDS.

2) adaptou o capítulo sobre a Rita Cadillac, dando ênfase às relações sexuais dos

presos, ao uso de drogas e troca constante de parceiros, usando para isso a figura da artista,

um símbolo sexual para os detentos.

O desfecho, tanto jornalístico como cinematográfico, aparece da mesma forma: o

massacre de detentos pela Polícia Militar de São Paulo. A diferença ocorre apenas em função

do formato das mídias: o livro-reportagem descreve o massacre, no qual morreram 111

detentos. Já o filme, através das imagens, faz a simulação do que ocorreu em 2 de outubro de

1992 na Casa de Detenção. Lembramos que ambas as obras narram o massacre sob o ponto de

vista dos presos sobreviventes e de seus relatos sobre o episódio trágico. Assim, observamos

que as diferenças existentes acontecem pelo modo inerente de cada obra se narrar. No filme,

as histórias são narradas pelas personagens, encadeadas pela narração do médico, mas de

forma romanceada. No livro, a narração e a descrição são feitas pelo narrador homodiegético,

disfarçado de heterodiegético e extradiegético, porque ele, explicitamente, não faz parte da

narrativa como personagem protagonista. Mas isso é uma representação de um narrador

implicitamente intradiegético, homodiegético e autodiegético. Portanto, ele é intradiegético

81

porque está na história de vida dos presidiários na atualidade e não está alheio ao tempo

presente deles nem ao passado, e podemos afirmar que está na história dos presos como estes

estão em sua no tempo presente. Ele também é autodiegético, pois para narrar as memórias

dos outros foi preciso ter contato direto com os detentos, ou seja, a história é a dele, pelo

menos nos dias em que trabalhava em prol dos presidiários; e ainda, o trabalho que ele

desenvolvia no presídio é algo próximo da condição de herói épico. Ele, um sujeito livre de

culpas, estava num ambiente impróprio, para o objetivo sublime de livrar aquela sociedade

carcerária de uma doença que dizima o ser humano. E homodiegético porque ele escreveu a

própria história ao narrar as crônicas dos presos. Então, ele era o ser humano no lugar errado,

mas respeitado por todos os que, de certo modo, não respeitaram a sociedade, e ainda assim

estavam assistidos por alguém que cuidava da saúde deles, respeitando-os, sem censurá-los.

Por isso esse narrador reveste-se de herói, de protagonista. Ele cedeu a voz às personagens, e

sobre isso não nos esqueçamos de o autor está onipresente naquilo que escreve, que

representa. (GENETTE, 1970 E BAKHTIN, 1997)

Mas, em verdade, sob o ponto de vista figurativo e da representação num plano

maior, lembramos que o espaço é o grande astro na teia de construção dessa narrativa, tanto

no livro como no filme. Ele é aterrador, aterrorizante em muitas das vezes.

Em relação à representação do real, o cinema conferiu mais dinâmica à história,

desviando-se parcialmente do enredo do livro, mas trouxe, por meio de imagens concretas,

uma descrição mais realista, mesmo que um pouco „romanceada‟, da vida humana no

presídio. Já no livro-reportagem, o autor pretendeu ser fiel aos fatos, com o objetivo de

retratar a realidade, mas se considerarmos que a narrativa passa pelos olhos do narrador, não

podemos afirmar que seja fiel aos fatos. Outro poderia contá-la bem diferente!

82

Estabelecemos, aqui, uma comparação entre as duas obras (livro e filme),

apontando o processo de criação dos enredos por meio de algumas personagens, consideradas

importantes por nós, visualizando as semelhanças e as diferenças quanto à história delas:

Charuto: o livro descreve o amor avassalador de um malandro, o Charuto, por

uma prostituta; o filme faz a junção de duas histórias para adaptar essa parte. No cinema, o

nome do malandro é Majestade, que é casado com duas mulheres. Uma delas é a prostituta

referida no livro.

Nego-Preto: era um dos líderes dentro da cadeia. Foi preso por roubar uma

joalheria e logo em seguida matar o parceiro do assalto. Em relação a este o filme é fiel ao

livro, e ainda utiliza as “falas” dos detentos para dar ritmo à história.

Figura 16 – Cena do filme onde acontece o show

da artista Rita Cadillac

Lula: ladrão de longa carreira. Chegou ao presídio por roubar bancos e por usar

drogas. Dentro da prisão era um dos chefes que comandavam o tráfico. Lula usava

principalmente crack e morreu de overdose. A história de Lula se altera no filme: aqui ele

aparece como assassino e traficante. No desenrolar da trama, Lula começa a freqüentar uma

igreja evangélica, sofre de problemas mentais e se suicida.

83

Seu Chico: era assassino. Pai de três filhos, abandonado pela mulher. Cumpre

quinze anos de uma pena de quarenta e quatro anos. No filme, seu Chico é um velho

apaixonado por balões.

Deusdete e Mané: Os dois cresceram juntos. Mané de baixo, como é chamado no

livro, envolveu-se com o crime e foi preso, e Deusdete era um rapaz esforçado e trabalhador.

Foi preso por defender-se e vingar sua irmã que havia sido molestada por dois rapazes,

matou-os e foi preso. Na prisão os dois se reencontraram e moravam na mesma cela. Mane,

certo dia, cansado de ouvir sermões de Deusdete, assassinou o amigo cruelmente enquanto

dormia, despejando-lhe uma panela de água fervendo. Um grupo de presos que ficou

revoltado com esse ato de Mane e o assassinou. O filme conta a história da mesma forma,

dando ênfase à descrição contida no livro: do assassino bom, Deusdete, que foi parar nessa

vida por culpa do acaso, e o malandro, Mané, que se envolve com o crime por opção.

Figura 17 – Detentos assistindo ao show de Rita Cadillac.

Rita Cadillac: foi realizado um concurso de cartazes de prevenção a AIDS, e

como prêmio seriam pagos mil dólares convertidos em maços de cigarro, a moeda local. Rita

Cadillac, eleita pelos presos como “musa” do Carandiru, foi, em uma tarde de festa, entregar o

84

prêmio aos vencedores. Foi uma balburdia só, mas nesse evento aproveitou-se para fazer uma

campanha de prevenção a Aids dentro da penitenciária. No filme foi preparada uma grande

festa, que contou com a presença de Rita Cadillac. Durante a comemoração ela dançou e

arrancou suspiros dos detentos. E ainda, utilizou uma garrafa para ensinar os presos a

colocarem camisinha. Nesse evento foi realizada a campanha de prevenção à Aids.

Os travestis: A trajetória deles é marginal, vêm todos da camada mais pobre, são

identificados como perigosos, independente do que tenham feito para estarei detidos. No

presídio ficam, geralmente, em celas especiais, mas há travestis espalhados pela penitenciária.

Essa temática é tratada no filme de forma diferenciada pelo diretor Hector Babenco. A

história contada no filme é de um travesti, de nome Lady Dy, interpretada por Rodrigo

Santoro, que além de apoiar a campanha de prevenção a AIDS, casa-se com um dos detentos,

o Sem-chance.

Figura 18 – Detentos em cena após o massacre ocorrido na Casa de Detenção.

Sem-Chance: Dizia que não era ladrão, mas foi condenado em doze anos e oito

meses de prisão por crime de latrocínio. O filme mostra o presidiário “Sem-Chance” de uma

85

outra forma. Rapaz novo, bom moço, e em “Carandiru” era o ajudante de Dráuzio Varella na

enfermaria. No desenrolar da trama casa-se com o travesti Lady Dy. E durante o filme utiliza

um jargão que justifica seu apelido, “Comigo é Sem-Chance”.

Sobre as visitas íntimas: começaram nos anos de 1980. Os presos improvisavam

barracas nos pátios dos pavilhões nos dias de visitas. Nessa parte do livro os detentos contam

como funcionam essas visitas e o respeito de cada companheiro para com a esposa, amasiada

ou namorada do outro. O filme trata o assunto das visitas íntimas de forma superficial, ou

melhor, mostra a festa que é realizada em um dia de visita no presídio.

5.3 O levante, o Ataque e o Rescaldo

Era uma tarde de futebol, enfrentavam-se os times Furacão 2000 e o Burgo

Paulista, uma disputa pelo campeonato interno. Durante a partida, dois presos brigaram em

um dos pavilhões. O motivo da briga ninguém sabe. Tantas são as teses defendidas que por

isso se desconhece o real motivo da briga. Esse tumulto foi crescendo e gerou uma grande

confusão dentro do presídio. Os detentos colocaram fogo em colchões, quebraram o que

podiam e fizeram alguns companheiros de reféns. A tropa de choque da Polícia Militar foi

acionada. Ela entrou no presídio atirando indiscriminadamente. Mais tarde, isso ficaria

conhecido como o massacre do Carandiru, no qual morreram 111 presos, no dia 2 de outubro

de 1992. O filme conta a mesma versão dos fatos. A única diferença está no formato, no qual

o livro descreve aguçando a imaginação do leitor e o cinema usa imagens como representação

do real.

O livro-reportagem de Varella (1999) e o filme de Babenco et al (2002) contam a

história do Carandiru apresentando suas particularidades no formato, conteúdo e na

linguagem. Por isso o filme Carandiru, em diversas razões, aborda algumas questões

86

apresentadas no desenrolar da trama de maneira diferente do livro-reportagem. Pode-se

justificar as mudanças pelo formato, porque a linguagem do cinema apresenta várias

diferenças em relação ao livro reportagem.

Mesmo assim, as duas obras abriram os portões da Casa de Detenção de São

Paulo para as pessoas que estavam trancadas no lado de fora. Todas puderam entrever um

pouco mais desse universo desconhecido pela sociedade, podendo visitar os corredores, as

celas e as pessoas que fizeram o Carandiru funcionar durante anos.

Esse sofrimento poderia ser minorado ou evitado se fossem outras as

circunstâncias sociais, econômicas, políticas, culturais, e se a evolução global da mente

humana o permitisse. Mas, como cavaleiros do apocalipse, os problemas permanecem a nos

desafiar, se apresentando como catástrofes aterradoras que varrem a superfície do planeta.

Eles não são fenômenos naturais, mas provocados pelos desvios do próprio processo de

formação e organização do mundo humano. Isso podemos atribuir, sem erro, à nossa

imaturidade, irresponsabilidade, incompetência ou gosto pela destruição.

De fato, o panorama se mostra estarrecedor: violência, criminalidade, selvageria,

escravidão e extermínio, pobreza e fome, guerras e corridas armamentistas, destruição do

meio ambiente, analfabetismo, exclusão social, desperdício de recursos naturais, poder

exorbitante da mídia, manipulação da mente, corrupção, terrorismo, fanatismo religioso,

colonialismo interno das nações, desumanização do trabalho, uso antiético da ciência e da

tecnologia, desemprego e recessão, perda da identidade humana pessoal e cultural, miséria

espiritual, enfim, uma deterioração geral da qualidade de vida.

Isso também se faz presente nas artes, e o chamado cinema-denúncia nos leva ao

contato catártico com esta realidade tão concreta quanto dolorosa. É o que Carandiru

(BABENCO et al, 2002) nos traz: a visão dos excluídos e marginalizados naquilo que os torna

pessoas comuns, ou seja, todos nós sentimos, sonhamos, sofremos, lutamos, carregamos

87

alegrias e tristezas.

Mobilidade psíquica é a fluidez e a versatilidade dos movimentos da mente

vividos como experiência emocional. É a experiência consciente de que há uma disposição

fluida na mente, que pode ser descrita como um estado em que, longe de saturar seus

processos anímicos conscientes, a pessoa permite que eles ocorram de modo flutuante,

abandonando-se à experiência, deixando-se levar por ela. Assim, dizemos que a mente se

encontra desprendida, solta e livre.

Essa leveza e liberdade normalmente se contrapõem à sensorialidade da mente.

Como sensorialidade entendemos a mente se prendendo a padrões mais ou menos definidos

de experiências, reagindo em conformidade com um filtro conhecido de antemão e que

determina de modo condicionado a relação com a realidade externa e com a psíquica. Tal

filtro é constituído de experiências acumuladas que se configuram em verdadeiro substrato de

continuidade e se interpõem às novas experiências.

A pessoa passa a ser uma prisioneira efetiva das representações congeladas da

realidade, em vez de estabelecer um contato real. Nesse estado, a mente se acha saturada por

seu próprio sistema de representações.

5.4 Arte e superação da dor mental

Por meio da arte podemos vivenciar nossos conflitos internos: nas personagens

nossas dores e lutas são mais fáceis de encarar, nosso cotidiano torna-se mais leve quando

sabemos que acontece na vida como acontece na arte. O cinema nos possibilita a catarse e a

superação da dor mental, porque sabemos que não somos os únicos que sofrem, que nossos

dramas são compartilhados e por vezes são menores que os de outrem.

O momento atual desaparece no mesmo instante em que é vivido. Somos o

88

homem de sempre que caminha solitário nas brumas dos séculos. O presente de nossa

existência inscreve-se nesse imenso caminhar, nada é tão fugaz nem tão cheio de vida.

Se a mente é permeável à dimensão da realidade, revelando-se intuitivamente,

então podemos dizer que a verdade do homem está no coração da eternidade e no fundo de

nós mesmos dormita um ser que anseia pela luz de cada coisa. Nada é mais essencial a uma

sociedade que a classificação de suas linguagens (BARTHES, 1970, p.209).

Como conceito a tradução vem sendo efetuada desde tempos remotos, e durante

muito tempo, foi avaliada de forma muito rígida e dualista, em termos de certo ou errado, fiel

ou livre, literal ou criativa. Hoje se considera a tradução como uma transformação,

conferindo-lhe ainda o estatuto de criação. (DINIZ, 1999, p.27).

De acordo com (DINIZ, 1999, p.149), o estudo de adaptações ou traduções exige

a análise de sua função dentro do contexto. É necessário verificar se o filme se apresenta

explicitamente como tradução/adaptação de texto anterior ou se é avaliado, pelos críticos e

pelo público, pelos seus méritos como um bom filme ou apenas pelo rótulo de adaptação de

determinada obra ou autor.

89

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro conta a história de um médico que trabalhou durante 14 anos no maior

presídio do Brasil, o filme retrata numa livre adaptação essa mesma história. Um longo

caminho foi percorrido em dois sistemas semióticos diferentes, que são essas duas mídias, o

texto escrito e cinematográfico.

As conclusões alcançadas nos mostram que o elemento a ser transposto de um

texto para outro é a cultura, em todos os aspectos que a modificam: tempo, espaço físico,

histórias, correntes artísticas. (DINIZ, 1999, p.166).

Ninguém escreve, adapta ou traduz, sem reformular o assunto. (DINIZ, 1999,

p.167), assim podemos auferir que na Transcodificação do livro Estação Carandiru para o

filme Carandiru uma nova história se faz, apreendida e conduzida pelas mãos do cineasta, que

a busca a partir da descrição do narrador-escritor.

O que é o homem? Muitos se fazem esta pergunta e procuram a resposta

percorrendo diferentes caminhos. Um destes é a trilha da ciência, mas ao se depararem com a

chegada no ponto crucial, recuam, porque é vereda tortuosa, inóspita e exaustiva. Contanto,

esta trilha, algumas vezes, por recompensa, concede ao viajante uma paisagem clara e serena.

Isso é um estímulo para prosseguir nesta jornada.

Nossa decisão de realizar uma pesquisa sobre a tradução de uma mídia e mais

precisamente sobre a obra de ficção transposta para a mídia cinema, por meio de análise das

transcodificações e transposições delas, surgiu ao conhecer os textos de Dráuzio Varella

(1999) e do produtor e diretor de cinema, Hector Babenco (2002), sobre a Casa de Detenção

de São Paulo, o Carandiru.

90

As pessoas tendem a ver o mundo de maneira antropomórfica, ou seja, projetando

suas próprias qualidades, sentimentos e desejos a seres e objetos, compreendendo o mundo

através de suas vivências, fantasias e imaginação.

A observação avalia e valida a compreensão e assim surge a ação. Cabeça e

coração têm papel fundamental neste processo. A palavra e o pensamento são

importantíssimos à compreensão. Segundo Lacan (1993), “A elucidação falada é a mola do

progresso”.

O conhecimento é construído por meio de uma colagem que liga as peças, as

quais, se isoladas, não fazem sentido. A emoção desempenha a função de juntar as partes

nessa construção. O universo emocional encontra o racional. O mundo espiritual e o mundo

do pensamento são feitos de razão, sentimento e vontade.

A linguagem serve como órgão do pensamento, da consciência e da reflexão.

Somente ela permite instituir ordem no mundo e operar os atos de reflexão e de consciência

sobre o mundo e as impressões sensíveis. A palavra é presença e ausência da coisa, ela

designa a coisa e a coloca em sua ordem de realidade, servindo de ponto de apoio, um ponto

de referência possível.

Resumindo, a linguagem RE-PRODUZ a realidade. “É pela linguagem e nela que

o homem se constitui como sujeito, porque a consciência de si só é possível se ela se provar

em contraste com o Tu. Esta é a dialética eu-tu, definindo os sujeitos pela oposição mútua,

que funda a subjetividade. É a condição da tomada de consciência de si como entidade

distinta. Portanto, a linguagem, atualizando a relação das pessoas, permite o retorno sobre si

como individualidade distinta e possibilita, então, a comunicação inter-humana”. (LEMAIRE,

1979)

91

Ainda, segundo Lacan (1993), o humano não adquire sua individualidade, sua

singularidade senão sob condição de se inserir na ordem simbólica que governa e especifica a

humanidade.

Para a Psicanálise, o desenvolvimento e a conseqüente saúde mental se processa

na articulação de três instancias: o Real, o Imaginário e o Simbólico.

O real é o corpo, o inseparável. O Imaginário é a consciência, a ponte entre o real

e o simbólico, onde se mantêm os conteúdos trabalhados e em condições de serem acessados.

O Simbólico é o inconsciente, onde permanecem os conteúdos ainda não elaborados.

O homem, como descobriu Lacan, está sujeito às leis da ordem simbólica. O

simbólico é a ordem que faz a grandeza do homem e dá supremacia sobre o animal, podendo

também ser a causa da alienação humana.

A alienação é o fato de ceder uma parte de si mesmo a outro si, isto é, tornar-se

estranho a si mesmo, cativo de outro. O alienado vive fora de si, prisioneiro da imagem de seu

ego ou da imagem do ideal. Vive do olhar do outro sobre si e o ignora. O desconhecimento é

obnubilação da imagem de si e do outro.

Nosso estudo teve como objetivo analisar as transcodificações entre texto literário

e filme. Nesse processo houve crescimento e autotransformação, mas também perda e

fragmentação dos referenciais, tal como descreve Berman (2000, p.15): “Ser moderno é

encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria [...] transformação das

coisas ao redor mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que

sabemos, tudo o que somos”.

No começo do século XXI, as pessoas partilham a sensação de viver uma era de

inovações e rupturas que as levará a algo novo. Na passagem do século XX para o XXI as

transformações estão consolidadas e abarcam todo o mundo, espalhando-se e se

fragmentando em diferentes linguagens.

92

A desestruturação, destrutividade e fragmentação são as características mais

marcantes da contemporaneidade, que representa apenas uma parte do modernismo. Segundo

Baudelaire (apud HARVEY, 1992, p. 22): “A modernidade é o transitório, o fugidio, o

contingente; é uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável”. A pós-modernidade

ficou apenas com o transitório e fugidio, deixando de lado o imutável.

O tema da opressão que se presentifica num espaço de confinamento onde seres

humanos lutam para preservar sua vida física e mental, onde morte e loucura se insinuam

como perspectiva para todos, onde despersonalização e desumanização reduzem o homem a

bicho, impele a busca de se compreender as contradições presentes no processo de

comunicação humana.

Buscamos decodificar o universo simbólico dos personagens apresentados no

livro e no filme, ressaltando as transcodificações e intertextualidades, procurando signos e

códigos comuns às duas mídias.

Buscamos compreender o trânsito entre real, imaginário e simbólico, sua interação

e/ou influência no cotidiano, avaliando a existência de uma tensão entre a linguagem textual e

a língua viva retratada no filme.

A busca que se empreendeu foi a de, através dos recursos da comunicação como

ciência, encontrar as divergências e convergências entre as obras estudadas, bem como

compreender o papel dos meios de comunicação de massas neste processo.

Esta realidade é provocadora de uma dicotomia epistemológica

básica entre subjetividade e objetividade, tendo em vista que tanto o

sujeito quanto o objeto são afirmados em sua importância e de maneira

contraditória, tendo ambos independência entre si.

As expressões desta dicotomia são o empirismo e o racionalismo que

manifestam a contraposição entre razão e realidade. Apesar da oposição

93

existente entre estas posturas, ambas buscam o mesmo objetivo: a

sistematização do real.

A interpretação dos conteúdos manifestos realizada por nós foi apresentada nos

capítulos da dissertação, entretanto, aqui reforçamos as considerações sobre os signos

analisados conforme a compreensão que tivemos: o livro de Dráuzio Varella (1999), Estação

Carandiru, a nós sugere se tratar de uma grande reportagem e o filme Carandiru, de Hector

Babenco et al (2002) nos revela um cinema-denúncia.

Mesmo pertencendo a sistemas semióticos diferentes, as duas linguagens trazem

em comum em seus signos a pluralidade e a ambigüidade; os dois textos são submetidos à

criatividade e à subjetividade de seus autores-narradores.

Remete o leitor a um mundo imaginário que, por sua vez, obedece ao contexto

histórico, social e cultural vivido por ele. O enredo e os personagens são a força que

movimentam o texto, estabelecendo entre todos os elementos constituintes da obra uma

inextricável interação, compondo uma só entidade. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E.

2006, p.117).

O discurso fílmico decorre de uma série de procedimentos técnicos como

enquadramentos, ângulos, definições de planos, sonorização e montagem, que é o

procedimento que seleciona e articula os planos, definindo toda a narrativa. (ANTONELLI,

C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.118).

Na Transcodificação, o diretor acrescenta algumas cenas e situações não descritas

pelo autor, embora tenha mantido a idéia central, a maioria dos personagens e das indicações

cênicas.

O ritmo, configurado pela montagem, sofreu variações em função da intensidade

dramática das cenas, o que resultou em fator positivo, visto que ele dá a tônica da tensão ou

relaxamento ao espectador.

94

O uso da elipse foi uma constante durante todo o transcorrer do filme, de forma

evidente e eficiente, não deixando nenhum detalhe sem continuidade, sendo possível ao

espectador entender tudo o que aconteceu, ainda que não tenha sido apresentado na tela.

(ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.119).

As mudanças temporais e espaciais foram elucidadas com a montagem seqüencial

dos planos e da movimentação da câmera, alternando planos gerais, primeiros planos e

tomadas nas variadas direções dinamizando o filme. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E.

2006, p.119).

Tanto uma como a outra mídia permitem cada um vivenciar as histórias, o leitor

do texto escrito pode visualizar Estação Carandiru da maneira que quiser, enquanto no filme,

a história aparece de forma definida.

95

Há vários caminhos para se chegar ao

coração.

Alguns são tão difíceis que nos

transformam em criaturas pequenas, fracas,

covardes.

Outros são perigosos, nos deixando

ansiosos, desequilibrados, doentes.

Há caminhos ilusórios, que nos

esvaziam o peito a cada passo dado.

Há caminhos ideais, que vão

revelando nossa impotência durante o trajeto.

Seguindo estas trilhas, podemos

recolher constatações, conclusões e talvez o

mais importante, uma visão global do

itinerário pessoal.

Apesar então, dos caminhos mágicos

que se tornam trágicos, dos caminhos especiais,

que não duram mais, das experiências

decepcionantes, que nos mostram como éramos

melhores antes, vamos reconhecendo e

compreendendo a verdadeira rota que leva ao

coração de cada um de nós!

Eliana M. S. Lalucci

96

REFERÊNCIAS:

ABREU, Antônio Suárez. A Arte de Argumentar. Cotia – São Paulo, Ateliê Editorial, 2003.

ANTONELLI, Cristina A. Z. & CAMOCARDI, Elêusis M. Interfaces Midiáticas: do teatro

ao cinema. São Paulo. Arte & Ciência, 2006.

BABENCO, Hector, Carandiru- HB Filmes, Sony Pictures Classics, Columbia Tristar, Globo

Filmes e BR Petrobrás. Filme baseado no livro Estação Carandiru de Drauzio Varella, Brasil,

2002.

BATESON, Patrick et al & CHOMSKY, Noam. Formas de Comunicação. Org. de D. H.

Mellor. Lisboa. Teorema. 1990.

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 14 Ed. São Paulo, Pensamento-Cultrix, 2001.

________________. O óbvio e o obtuso. Lisboa. Edições 70, 1981.

________________. Crítica e Verdade. São Paulo. Perspectiva, 1970.

BRETON, Philippe. A Utopia da Comunicação. Lisboa. Instituto Piaget. 1992.

CAETANO, Kati Eliana & CAÑIZAL, Eduardo Peñuela (orgs.). O Olhar à Deriva – mídia,

significação e cultura. São Paulo. Annablume, 2004.

CAMOCARDI, Elêusis M. & FLORY, Suely F. V. Estratégias de Persuasão. São Paulo. Arte

& Ciência, 2003.

CHANLAT, Jean – François. O Indivíduo na organização: Dimensão Esquecida. São Paulo,

Atlas, 1992

COMPARATO, Doc. Da Criação ao Roteiro. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

CONTRERA, Malena S. O Mito na Mídia. São Paulo. Annablume, 1996.

DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. São Paulo. Cultrix, 1988.

_______________. As estruturas Antropológicas do Imaginário. Lisboa. Presença, 1989.

ECO, Umberto.Semiótica e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Ática, 1991.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 1991.

ENRIQUEZ, Eugêne. Da Horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1990.

EPSTEIN, Isaac. O Signo. 3ª Ed. São Paulo, Ática, 1990.

FLORY, Suely F. V. Narrativas ficcionais: da literatura às mídias audiovisuais. São Paulo.

Arte & Ciência, 2005.

FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987.

97

FREUD, Sigmund. Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

GENETTE, Gerard. Figuras. São Paulo. Perspectiva, 1970.

GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição (trad. Ana Claudia de Oliveira). São Paulo.

Hacker, 2002.

HOHLFELDT, Antonio (org.) Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. 3

Ed. Petrópolis. Vozes, 2003.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1999.

KRISTEVA, Julia. Introdução a semanálise. São Paulo. Perspectivas. 1974.

LACAN. Jacques. “O Avesso da Psicanálise”. O Seminário. Vol. 17. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1993.

LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo: a vida americana numa era de esperanças

em declínio. Rio de Janeiro. Imago, 1983.

_________________. O Mínimo Eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo.

Brasiliense, 1986.

LEMAIRE, Anika. Jacques Lacan – Uma Introdução. Rio de Janeiro, Campus, 1979.

LEMOS, WINCK & DIMANTAS - Maria Alzira Brum Lemos, João Baptista Winck e

Hernani Dimantas - Os intelectuais e a cibercultura: além de apocalípticos e integrados -

Revista espaço acadêmico - nº 33 - fevereiro de 2004

(www.espacoacademico.com.br/033/33clemos.htm, acessado em 15/07/2004).

LEONE, Eduardo & MOURÃO, Maria Dora. Cinema e Montagem. São Paulo. Ática, 1993.

LEVI – STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro. Edições Tempo

Brasileiro. 1976.

LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva – Por uma Antropologia do Ciberespaço. São Paulo.

Loyola, 2000.

MARCONDES, Fº. Ciro. Quem Manipula Quem?. Petrópolis, Vozes, 1991.

MCLUHAN, Marshall & FIORE, Quentin. O Meio São as Massa-gens. Rio de Janeiro,

Record, 1969.

MARCONI, Marina de A. & PRESOTTO, Zélia M. N. Antropologia – uma introdução. São

Paulo, Atlas, 1992.

NETO, Antonio Fausto. Comunicação e Mídia Impressa. São Paulo, Hacher Editores, 1999.

OLIVEIRA, Valdevino Soares de. Literatura Esse Cinema com Cheiro. São Paulo. Arte &

Ciência, 1998.

98

PEIRCE, Charles S. Semiótica. 2ª Ed. São Paulo, Perspectiva, 1995.

______________.Semiótica e filosofia. Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. São

Paulo. Cultrix, 1972.

PONTY, M. Merleau. Fenomenologia da Percepção. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1971.

ROCHA, Everardo. O Que é Mito. São Paulo, Brasiliense, 1985.

SANTAELLA, Lúcia. O Que é Semiótica. São Paulo, Brasiliense, 1983.

_____________. A teoria geral dos signos:semiose e autogeração. São Paulo. Ática, 1995.

SAUSSURE. Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 24ª Ed. São Paulo, Pensamento-

Cultrix, 2002.

THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade – Uma teoria social da mídia. Petrópolis.

Vozes, 2002

TRINCA, Walter. O Espaço Mental do Homem Novo. São Paulo. Papirus, 1997.

VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.