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CuUuca PropÕe-se esta revista fazer cultura: o que mais lhe importa, por isso mesmo, é tentar conceber uma idéa clara do que seja a final a cultura autêntica, evitando o erro em que costumam cair a maioria dos indivíduos que «sabem coisas»: o erro de confundirem a ver- dadeira cultura com o que é precisa- mente o contrário dela, a saber: a mera divulgação de conhecimentos, a simples transmissão a leitores e discípulos dos resultados a que chegaram os verda- deiros cientistas, os verdadeiros filóso- fos, os verdadeiros críticos. Não está a cultura no saber as coisas, mas numa certa maneira de saber as coisas; numa certa maneira de as apre- ciar e de as ver. Há quem saiba muito e não seja culto; há quem saiba pouco e o seja muito. Reside a cultura essen- cialmente na forma, e não na quantidade do conhecer; tam pouco na variedade do conhecer; tam pouco na novidade do conhecer. A cultura é algo essencial- mente activo: é uma gimnástica espiri- tual; é um trabalho do espírito sobre si próprio; é um esforço de elucidação e de compreensão perfeita, de harmonia mental, de exacto aprofundamento das nossas próprias idéas, de coordenação e coerência das concepções. O homem que empreende a acessão à cultura não é como um cesto que recebe produtos: é como uma máquina a elaborar maté- rias, excitada para isso por outra má- quina (o indivíduo culto que lhe serve de mestre); não se parece com o cida- dão pacato que lê pacatamente no seu periódico o resultado do desafio de fute- bol, da partida de ténis, da corrida de cavalos ou de regata: é sim como o aprendiz de futebol ou de ténis, de equi- tação ou de remo; é um homem que pelo modelo de um verdadeiro mestre exerce de facto o seu espírito crítico, o seu dom inato de esclarecer idéas, a sua faculdade de concatenar noções. Essen- cialmente activo, o homem que se cul- tiva não recebe só: Labora. Que la- bora ele? Que matéria prima? — O seu próprio espírito. Vulgarizar conhecimentos? Não digo que não. E' coisa útil. Mas digo que por si próprio não é cultura; que pode ser, até, o contrário dela. A divulgação dos conhecimentos só é cultura quando ela é feita da maneira culta, quere dizer: com o máximo possível de elucidação

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Page 1: CuUuca - dspace.uevora.pt · coisas»: o erro de confundirem a ver ... do conhecer. A cultura é algo essencial ... por si próprio não é cultura; que pode ser, até, o contrário

CuUuca PropÕe-se esta revista fazer cultura:

o que mais lhe importa, por isso mesmo, é tentar conceber uma idéa clara do que seja a final a cultura autêntica, evitando o erro em que costumam cair a maioria dos indivíduos que «sabem coisas»: o erro de confundirem a ver­dadeira cultura com o que é precisa­mente o contrário dela, a saber: a mera divulgação de conhecimentos, a simples transmissão a leitores e discípulos dos resultados a que chegaram os verda­deiros cientistas, os verdadeiros filóso­fos, os verdadeiros críticos.

Não está a cultura no saber as coisas, mas numa certa maneira de saber as coisas; numa certa maneira de as apre­ciar e de as ver. Há quem saiba muito e não seja culto; há quem saiba pouco e o seja muito. Reside a cultura essen­cialmente na forma, e não na quantidade do conhecer; tam pouco na variedade do conhecer; tam pouco na novidade do conhecer. A cultura é algo essencial­mente activo: é uma gimnástica espiri­tual; é um trabalho do espírito sobre si próprio; é um esforço de elucidação e de compreensão perfeita, de harmonia mental, de exacto aprofundamento das

nossas próprias idéas, de coordenação e coerência das concepções. O homem que empreende a acessão à cultura não é como um cesto que recebe produtos: é como uma máquina a elaborar maté­rias, excitada para isso por outra má­quina (o indivíduo culto que lhe serve de mestre); não se parece com o cida­dão pacato que lê pacatamente no seu periódico o resultado do desafio de fute­bol, da partida de ténis, da corrida de cavalos ou de regata: é sim como o aprendiz de futebol ou de ténis, de equi­tação ou de remo; é um homem que pelo modelo de um verdadeiro mestre exerce de facto o seu espírito crítico, o seu dom inato de esclarecer idéas, a sua faculdade de concatenar noções. Essen­cialmente activo, o homem que se cul­tiva não recebe só: Labora. Que la­bora ele? Que matéria prima? — O seu próprio espírito.

Vulgarizar conhecimentos? Não digo que não. E' coisa útil. Mas digo que por si próprio não é cultura; que pode ser, até, o contrário dela. A divulgação dos conhecimentos só é cultura quando ela é feita da maneira culta, quere dizer: com o máximo possível de elucidação