curtis allen - como interpretar a biblia

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“O livro de Curt Allen sobre como interpretar a Bíblia é maravilhosamen­te prático e claro, dando aos fiéis princípios básicos para a compreensão da Palavra de Deus. Ele enfatiza, corretamente, que todo o cristão pode entender a Bíblia. Não é necessário ser um acadêmico ou um pregador nem conhecer grego e hebraico para entender as Escrituras. Sem dúvida, somos auxiliados por professores e acadêmicos, mas podemos compreender a Bíblia por nós mesmos e comprovar tudo o que os outros dizem sobre as Escrituras. Allen também mostra que a Bíblia é cristocêntrica. Só estare­mos lendo a Bíblia corretamente se estivermos vendo em suas páginas Jesus Cristo, nosso Senhor crucificado e ressurreto. Ao mesmo tempo, a Bíblia não deve apenas ser compreendida, mas vivenciada em nosso cotidiano. Recomendo com imenso prazer este livro acessível, cristocêntrico e prático sobre como interpretar as Escrituras.”

T h o m a s R . S c h r e i n e r , Professor de Interpretação do Novo Testamento, Southern Baptist Theological Seminary,

onde ocupa a renomada cadeira James Buchanan Harrison.

“Corajoso. Real. Direto. Isso é o que você encontrará no livro de Curt Allen sobre interpretação bíblica. E é disso que precisamos, pois livros vagos, pesados e abstratos sobre interpretação bíblica não conseguem atingir o objetivo para o qual foram escritos — ensinar e nos inspirar a ler, interpre­tar e aplicar a Bíblia. Se for exatamente isso que você deseja, leia este livro.”

T h a b i t i A n y a b w i l e , autor; pastor da First Baptist Church, Grand Cayman; membro do Conselho da organização The Gospel Coalition.

COMO INTERPRETAR

A BÍBLIA I

D ados In ternacionais de C atalogação na Publicação (C IP ) (C âm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Alien, CurtisComo interpretar a Bíblia: princípios práticos para

entender e aplicar a palavra de Deus / Curtis Allen Tradução Carlos Lopes. — São Paulo: Vida Nova, 2012 .

Título original: Education or imitation?: Bible interpretation for dummies likes you and me.

ISBN 978-85-275-0508-6

1. Bíblia — Autoridade, testemunhas etc.2. Bíblia — Crítica e interpretação 3. Bíblia — Teologia I. Título.

12-10600 C D D - 220.61

índices para catálogo sistemático: 1. Bíblia: Introdução 220.61

Curtis A

llen

t r a d u ç ã o Ca r l o s l o p e s

V id a n o v a

Copyright ©2012, Curtis AllenTítulo original: Education or Imitation? Bible Interpretation for Dummies Like You and MeTraduzido a partir da l .a edição em inglês, e impresso com permissão da Cruciform Press, 10926 Pleasant ACRES DRIVE, ADELPHI, MD, 20783, EUA. www.cruciformpress.com

l.a edição: 2012

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA,

Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br | [email protected]

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

Todas as citações bíblicas, salvo indicação contrária, foram extraídas da versão Almeida Século 21.

ISBN 978-85-275-0508-6

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

COORDENAÇÃO EDITORIAL Marisa K. A. de Siqueira Lopes

REVISÃO Rosa Ferreira

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Sérgio Siqueira Moura

REVISÃO DE PROVAS Ubevaldo G. Sampaio

DIAGRAMAÇÃO SK Editoração

A m inha esposa Betsy e aos nossos filhos Santiago, Giovanni e Mateo. E à família de m inha igreja, a Rocha!

Que possamos conhecer a Bíblia o suficiente para im itar Jesus.Curtis Alien

SUMÁRIO

Um Por que a interpretação é tão im p o rtan te ........ 11Aquilo que você não conhece pode matá-lo

Dois Do jardim para a seara.......................................... 29Uma breve história da má interpretação

Três Jesus, o in térprete .................................................. 45A interpretação se relaciona mais com imitação do que com educação

Quatro Da interpretação à aplicação............................... 61Jesus, os fariseus e o sábado

Cinco Da eu-logia para a teologia................................... 75Reconhecendo os obstáculos à interpretação

Um

POR QUE A INTERPRETAÇÃO É TÃO IMPORTANTEAquilo que você não conhece pode matá-lo

Eu estava sentado na sala de m eu apartamento, repleto de fumaça, em Laurel, Maryland, observando Jerry e José. Eles eram típicos rapazes de Nova York e chamavam a atenção de algumas pessoas do m eu bairro.

O restante de nós, na sala, autodenominava-se “a segunda geração” ou simplesmente “a Geri’.1 Nós éramos a mais nova geração ativa de bandidos de rua na região de Washington. Todos nós éramos criminosos por natureza e a m aioria de nós criminosos aos olhos da lei. Drogas, armas, tráfico, crimes vio­lentos, algemas, identificação criminal, acusação criminal, júri e prisão faziam parte de nossa vida. Naquela época, Washington era conhecida como a capital do assassinato nos Estados Unidos, e com razão.

Em bora fosse um dos mais conhecidos traficantes de drogas da área, eu era um dos poucos da Gen que ainda não tinha sido preso. Ganhava m ilhares de dólares por semana vendendo crack e cocaína para pessoas de todos os lugares.

'D o inglês “génération”. (N. do E.)

Eu m e orgulhava disso e tam bém por todos os “irmãos” me respeitarem. Eu tam bém os respeitava. Aprendi m uito sobre como ganhar a vida e como sobreviver com esses caras.

O utra coisa que eu respeitava neles era a habilidade que tinham de ler as pessoas. Eu mesmo era muito bom nisso, como dizemos nas ruas: “M alandro conhece malandro”. Você respeita aqueles que são como você. Eu confiava a eles a m inha própria vida. Fizemos muitas coisas juntos. Vendemos e con­sumimos drogas, trocam os tiros com gangues rivais, viajamos para vários lugares apenas para gastar dinheiro com algumas garotas, gravamos muitas músicas de rap e vivíamos uns nos apartamentos dos outros. Éramos um a família.

Não confiávamos em ninguém, apenas uns nos outros, e este era o motivo de eu estar um pouco surpreso ao ver o respeito com que José e Jerry estavam sendo tratados. Nós nem conhecíamos esses dois caras. M inha mãe “D” os encontrou na rua e os levou para nosso apartamento. Eu não gostei, pois ali vendíamos crack e fumávamos maconha. Isso sem m encionar que policiais disfarçados estavam sempre à espreita se passando por usuários e traficantes de drogas. Eles tinham prendido alguns dos nossos e só isso já nos fazia ficar sempre desconfiados daqueles que realmente não conhecíamos.

Q uando vi m inha mãe chegando com Jerry e José, escon­di rapidamente as armas, as drogas e outras coisas. No balcão da cozinha, bem à vista, havia suficiente parafernália de coisas ilegais para garantir um a busca de drogas pela polícia federal. Fiquei irritado com m inha mãe por ser tão estúpida ao trazer esses caras que não conhecíamos para nosso apartamento e por não nos avisar com antecedência, para ter certeza de que está-

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POR QUE A INTERPRETAÇÃO É TÃO IMPORTANTE

vamos “limpos”. Caso não estivéssemos, e Jerry e José fossem policiais disfarçados, m inha virgindade em não “ter sido preso ainda” teria term inado.

Escondi tudo que pude no quarto dos fundos e saí para encontrar Jerry e José. Pensei que seria apenas um encontro do tipo olá/até logo, mas, com o passar do tempo, ficou claro que eles não iriam a lugar algum. A sala estava cheia de fumaça de m aconha enquanto ouvíamos histórias e mais histórias sobre o Bronx. Jerry e José eram realmente uns caras engraçados, com um sotaque bem mais gozado do que as histórias que eles con­tavam. O sotaque porto-riquenho de José m isturado com as gírias de W ashington me faziam rir, mesmo quando ele não estava tentando ser engraçado.

Depois de algum tempo, eles começaram a falar de coisas mais sérias. Jerry, que parecia ser o líder, começou dizendo que podia nos arrum ar quilos de cocaína por um preço que parecia m uito bom para ser verdade. Naquela época, quase todo m un­do podia com prar crack, mas todos queriam colocar as mãos em cocaína pura, pois você poderia transform á-la — adicionar outras coisas a ela — ou ainda torná-la mais forte para o usuá­rio, mais desejável nas ruas por ser um a coisa especial, ou sim ­plesmente mias rentável a você como traficante. Eu sabia que, se pusesse as mãos em um quilo, eu a transform aria em outra droga para torná-la o m elhor produto nas ruas. Uma vez que você conseguisse a reputação de ter aquela “bomba”, poderia vender gelo para esquimós.

Enquanto Jerry falava, eu prestava atenção nos meus cole­gas. Estava tentado a ler como eles os estavam lendo, e me pare­cia que Jerry os tinha nas palmas das mãos. No início suspeitei,

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

mas depois relaxei, pois meus colegas, a quem respeitava pelo discernimento adquirido pela vivência nas ruas, estavam acre­ditando naquilo que Jerry e José diziam. Quando estava quase dando a luz verde de aprovação para esses dois caras, percebi que um olhava para o outro. Não era uma coisa óbvia, mas cha­m ou m inha atenção. O olhar parecia comunicar algo que não era muito bom. Pelo menos, algo não muito bom para mim e meus colegas. Olhei novamente para meus amigos para ver se eles tinham notado. Todos eles se comportavam como se estivessem fazendo negócios como de costume. Eu não. Fingi que estava tudo bem, mas minhas antenas estavam ligadas e apontadas diretamente para Jerry e José.

Enquanto o tempo passava, a conversa parecia se transfor­m ar em um incompreensível murm úrio. Quanto mais maco­nha eu fumava, mais cansado ficava. Adormeci. Na manhã seguinte, acordei com uma dor enorm e em um dos lados do corpo por ter dorm ido em uma posição desconfortável.

Jerry, José e m inha mãe tinham ido embora. Eu estava meio tonto pela ressaca da m aconha e por não ter dormido direito. Olhei por toda a sala para ver se havia algo suspeito, mas tudo parecia normal. Fui para o quarto dos fundos para checar se as coisas que eu tinha escondido na noite anterior ainda estavam ali. Estavam. Fiquei aliviado. Então me lembrei da troca de olhares entre Jerry e José. Comecei a pensar se eu não estava exagerando.

Eu não estava.A maior parte da semana seguinte fiquei fora do aparta­

mento, de modo que não vi Jerry e José, mas soube que eles estiveram por perto. Uma semana se passou. Então, um belo

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POR QUE A INTERPRETAÇÃO É TÃO IMPORTANTE

dia, eu estava no apartam ento com os outros caras quando Jerry e José apareceram. Desta vez, m inha mãe não estava com eles. Lembro de ter pensado: Uau, não passou nem uma sema­na para que esses caras aparecessem aqui sozinhos. Eu sabia que eles tinham um apartamento no mesmo condomínio de prédios, assim parecia evidente que iríamos vê-los com frequência.

Estávamos sentados na sala, e decidi não ficar muito lou­co, pois Jerry e José ainda estavam mexendo com m eu sexto sentido. Sem o efeito da droga, ficava mais e mais claro para m im que alguma coisa não estava certa com esses caras. Eu sabia que eles não estavam disfarçados, mas achava que fossem “quentes” — o tipo de pessoa no subm undo do crime que tende a cham ar atenção indesejada, por exemplo, da polícia, para si mesma. Eu era um criminoso e, até agora, um crim inoso de sucesso. A última coisa que eu queria era ter pessoas a meu lado que fossem “quentes”.

A tarde se transform ou em noite e Jerry perguntou se gos­taríamos de ir a uma boate com eles. Eu odiava boates, pois achava que elas eram perda de tempo e dinheiro. Sem m en­cionar toda aquela conversa fiada que você teria que ter para conseguir o telefone de uma garota e tentar arrastá-la para seu apartamento. Até porque você não consegue conversar com um a garota com o som naquela altura. Se precisasse de uma segunda razão para não ir, era porque eu tinha certeza de que Jerry e José se constituíam, realmente, num problema. Alguns de meus amigos disseram que iriam, e achei estupidez da parte deles. Será que eles não percebiam a falsidade na linguagem corporal de Jerry e José? Esses dois caras eram quentes. Andar por aí com eles poderia acabar em prisão ou coisa pior.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Jerry e José se foram, prom etendo voltar às 8h30. Tão logo partiram , eu disse a meus amigos que eles eram estúpidos por pensar em ir à boate com esses garotos. Por 45 m inutos nós discutimos sobre o que pensávamos deles e se realmente con­fiávamos neles para deixá-los na com panhia de nossa gangue, a Gen. Estávamos divididos. As 8h eu saí para trabalhar. Quando voltei, uma hora depois ou mais, fiquei contente em ver que ninguém tinha ido à boate.

Na m anhã seguinte estávamos todos contentes.Manhã de sábado. A t v de nosso apartamento, como de

costume, estava ligada. Notícia de última hora. Cobertura ao vivo. Reconhecemos a rodovia que passava nas proximidades de nosso apartamento. Todos os olhos estavam fixos na tela da t v .

A polícia estadual de Maryland tinha recebido um cham a­do sobre um tapete suspeito enrolado no acostamento da rodo­via. Quando um policial se dirigiu ao local, ele notou cabelo humano saindo por uma das extremidades do rolo. Enroladas no tapete, estavam três mulheres entre 19 e 25 anos. Elas foram assassinadas a tiros, enroladas no tapete e jogadas no acosta­mento da rodovia.

Eu já tinha visto um monte de coisas estúpidas até aquele dia. Havia participado de tiroteios, assaltos, tráfico de drogas e outros acontecimentos que tenho até vergonha de dizer. Acha­va que nada mais me afetaria. Eu estava errado. Todos nós está­vamos. Coletivamente, a Gen tinha presenciado tantos males que seus participantes tinham dificuldade de dem onstrar suas emoções. Mas definitivamente compartilhamos do horror daquele mom ento enquanto assistíamos à t v . N inguém disse nada por quase 10 minutos. Eu quebrei o silêncio.

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— Não sei não, cara. Espero que não tenham sido aqueles dois que mataram as garotas — eu disse, balançando a cabeça, acreditando que tinham sido eles.

A resposta foi o silêncio, mas não posso dizer se meus amigos concordavam comigo. Talvez estivessem apenas cho­cados pelo fato do assassinato ter acontecido tão perto de casa. Foi quando percebi que a qualquer m om ento a polícia estaria vasculhando toda a vizinhança, e não seria apenas um a visita de rotina.

Teríamos que parar de trabalhar. Toda a área estava ferven­do para que continuássemos vendendo drogas em nosso aparta­mento. Decidi que tinha que me afastar de todos por alguns dias. Segui meus instintos e deixei o apartamento. Alguns dias depois, fiquei sabendo que Jerry e José eram os autores do assassinato. Eles tinham matado as garotas. Jerry contou para minha mãe tudo que acontecera, e minha mãe nos contou.

Eles tinham ido à boate aquela noite, encontraram as três garotas e as levaram para seu apartamento, o quarto prédio depois do nosso. Após ter usado drogas e bebida, Jerry quis levar um a das garotas para a cama. Ela disse não. Ele tentou inúmeras vezes, e a cada vez ela se recusava de forma veemente. Pouco depois, as garotas exigiram que eles as levassem de volta para o clube, para que pudessem pegar seus carros. Eles colo­caram as garotas em um a perua, dirigiram por algum tempo, saíram por uma estrada deserta e as mataram. Depois, enro­laram as três garotas m ortas em um tapete e as jogaram no acostamento de um a rodovia.

Enquanto ouvia a história, eu lembrava dos olhares que eles trocaram em nosso apartamento. Sabia que havia alguma

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

coisa neles que eu não gostava. Sabia que eles eram problema. Eu apenas não sabia o tipo de problema.

Um mês após os assassinatos, a polícia estava fechando o cerco sobre Jerry e José. Jerry, com medo de ser preso, matou José. Três meses depois, a polícia prendeu Jerry e o acusou do assassinato das três garotas.

Jerry foi enviado para uma prisão onde o irm ão de uma das garotas estava preso. Esse cara era um gângster, e isso sig­nificava apenas um a coisa: para Jerry, colocar os pés naquela prisão era o mesmo que pegar o passaporte para o inferno.

A MÁ INTERPRETAÇÃO PODE MATÁ-LO

Até hoje fico pensando sobre o que teria acontecido se eu tives­se ido à boate com Jerry e José. Com certeza não teria partici­pado de tudo que aconteceu naquela noite, mas isso não teria muita importância. Ainda assim eu teria sido cúmplice dos três assassinatos apenas por estar na companhia daqueles dois caras. M inha vida seria completamente diferente; facilmente poderia ter chegado ao fim.

Cada vez que penso sobre isso, sou levado àquela troca de olhares entre Jerry e José. E, depois, lembro como interpre­tei aquela troca de olhares. Percebi alguma coisa na linguagem corporal dos dois que fez com que eu não confiasse neles, e hoje atribuo totalmente aquela percepção à soberana m iseri­córdia de Deus.

Se eu não tivesse percebido aquela troca de olhares ou a tivesse interpretado de forma inadequada, não teria perce­bido todas as outras coisas que me levavam a ser tão caute­loso. Sei que m inha interpretação sobre quem eram Jerry e

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POR QUE A INTERPRETAÇÃO É TÃO IMPORTANTE

José salvou m inha vida, e talvez a de alguns de meus amigos. M inha interpretação levou à aplicação — eu me com portei de form a diferente devido às m inhas percepções daquilo que era verdade e daquilo que não era. É sempre assim que acontece. O que você vê, pensa ou sente orienta o que você faz. Se você achar que descer algum a rua pode ser perigoso, então sua aplicação provavelm ente será: Eu não descerei essa rua! A interpretação é um m odo de vida para qualquer um, a qualquer mom ento.

Há muitas formas de interpretação. Nós explicamos, expo­mos, julgamos, e deciframos todas as coisas ao nosso redor para tentar dar sentido ao mundo. Interpretamos o choro de um bebê para saber se é hora de amamentá-lo ou se é hora de dormir. Interpretamos a linguagem corporal para ver se a pessoa com quem estamos nam orando realmente gosta de nós. Interpretamos o tom de voz para saber se alguém está bravo conosco. Interpretamos e-mails e mensagens de texto com base na pessoa, no meio de comunicação e no conteúdo. O ponto de exclamação pode ser um sinal de que a pessoa está indignada ou um sinal de alegria, dependendo de como o interpretarmos.

Não podemos viver sem interpretar. Todos nós interpre­tamos e tomamos decisões para agir com base em nossas inter­pretações. Tais atos representam nossa aplicação.

A vida, de certo modo, é simples assim. Somos criaturas que interpretam tudo e, depois, agimos de um modo que repre­senta a resposta a essa interpretação. Esse é o motivo pelo qual frequentemente odiamos ficar confusos. Quando você está confuso, não pode interpretar os acontecimentos com clareza e, assim, não sabe o que fazer. Será que devo ficar ou correr? Devo

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

chorar ou sorrir? Devo dizer sim ou não? Essas são perguntas de interpretação e aplicação.

A interpretação e a aplicação estão sempre ligadas — mas nem sempre perfeitamente ligadas. Fazer uma interpretação cuidadosa redunda no melhor início para fazer a aplicação correta e, quanto mais adequada for sua interpretação, prova­velmente mais apropriada será sua aplicação. O que significa realmente a expressão “olhando em retrospecto”? Significa o perfeito conhecimento de um acontecimento após sua ocor­rência. É a reinterpretação de um evento com base em um novo conhecimento — conhecimento que poderia ter mudado nossa aplicação para melhor, se tivéssemos tido o beneficio de conhecê-lo antes.

Mas é possível — e algumas vezes muito fácil — fazer uma interpretação sólida e, depois, escolher a aplicação inadequada. Essa é a batalha que enfrentamos continuamente como cristãos em um mundo decaído. Baseados na herança que recebemos de Adão e Eva, temos em nós a natureza pecaminosa que nos afasta dos processos da correta interpretação seguida da corre­ta aplicação. Mesmo quando interpretamos corretamente Deus e sua Palavra, o pecado nos domina, im pedindo que façamos a aplicação esperada por Deus. Muitas vezes evitamos reconhe­cer a verdade para depois aplicá-la de forma correta.

Essa é um a batalha invisível, e é por isso que precisamos de um livro que nos fale sobre ela. Neste livro, espero fornecer uma perspectiva útil e inspiradora de como interpretar e apli­car a Escritura. Pode ser uma perspectiva sobre a qual você nunca tenha ouvido falar.

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POR QUE A INTERPRETAÇÃO É TÃO IMPORTANTE

INTERPRETAÇÃO COMO IMITAÇÃO

Para muitos cristãos a palavra “interpretação”, quando aplicada à Bíblia, pode ter um a conotação negativa. Não é isso que o pastor fa z antes de pregar? Não é o que fazem os comentaristas antes de escrever? Não são muitos que dizem, mas é comum pensar que isso não é para você, que esse negócio de interpre­tar é reservado para os poucos que ascenderam às alturas da clareza de pensamento. O restante de nós está restrito a um lugarzinho na terra dos limitados, tentando apenas ter meia hora de reflexão silenciosa.

Gostaríamos de saber o que essas pessoas sabem e as adm iramos por seu conhecimento bíblico. Ficamos impressio­nados com sua busca árdua por instrução e imaginamos que não temos tempo nem desejo de fazer o que elas fazem.

É exatamente esse o problema. A interpretação bíblica tornou-se algo muito exclusivo.

Quais personagens aparecem em sua mente quando você pensa nos grandes intérpretes bíblicos? Será que aparecem as imagens dos pais da igreja, de Crisóstomo e Agostinho? Talvez as de Lutero, Calvino e Spurgeon? Alguns intérpretes contem ­porâneos como Piper, Sproul, Carson e Keller definitivamente serão os primeiros da lista. Você pode ir ainda mais fundo e dizer: o apóstolo Paulo — boa escolha.

Devo observar um a coisa aqui. Quando pensamos nos “intérpretes bíblicos”, em que realmente pensamos? Em inte­ligência brilhante e treinamento. Mesmo sem estar conscien­tes disso, enxergamos a interpretação como algo associado a um a excelente educação, a uma inteligência fora do com um e a

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

um dom particular de sabedoria e discernimento. Mas gostaria de argum entar que a interpretação bíblica não está ligada em primeiro lugar a um a boa instrução ou a algum dom especial. E, para fazê-lo, gostaria de m ostrar como podem os aprender sobre a interpretação bíblica com a pessoa mais óbvia, que nunca aparece na lista dos nossos melhores intérpretes.

Quase sempre nos esquecemos de mencioná-lo: Jesus.O maior intérprete da Palavra de Deus é Jesus, o Cristo —

e ele convida todos aqueles que nele creem a imitá-lo.Como cristãos, percebemos que se espera que imitemos

nosso Salvador (Ef 5.1). Mas como seria essa imitação? Sabe­mos que não podem os imitar sua morte pelos pecados. Morrer na cruz seria algo muito doloroso para nós. Jesus foi capaz de expiar nossos pecados por nunca ter pecado, de m odo que reti­ramos isso da lista. Além dessa exceção óbvia, pode-se dizer que somos chamados a imitar Cristo em quase tudo — só que de uma forma diferente, pois não somos membros da Trinda­de. Vamos dar dois rápidos exemplos.

A realização de milagres. Jesus fez muitos milagres extraordinários. Isto é, ele interferiu na realidade, m udando uma condição para outra. Ele m udou a condição de Lázaro de m orto para vivo. Transformou a água em vinho. Transformou uma assustadora tempestade em um belo dia para se navegar

de barco.Por meio de nós, o tempo todo, algumas vezes de maneira

grandiosa, outras vezes de forma sutil, Deus muda as coisas do mundo para melhor. Ocasionalmente, algo que um cristão faz em Cristo ou por meio dele poderia ser chamado de milagre, mas na maioria das vezes é chamado somente de vida — uma

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POR QUE A INTERPRETAÇÃO É TÃO IMPORTANTE

vida na qual Deus está ativamente envolvido. Assim, é desse jeito simples que podem os imitá-lo.

A resistência a Satanás. Jesus ficou cara a cara com Satanás no deserto, lutando para resistir à tentação. Quando você e eu resistimos à tentação, essa resistência parece quase uma épica batalha cósmica. Espero nunca encontrar o demônio pessoal­mente e espero que você também não o encontre, mas lutar contra o pecado é outra área na qual somos chamados, de for­ma clara, a imitar Jesus.

Podemos dizer o mesmo em relação a como Jesus con­fiou no Pai, como era devotado à oração, como seu com porta­mento sempre glorificou o Pai e como fez muitas outras coisas. Devemos im itar Jesus em todas essas áreas. Mas nessa grande e complexa questão da imitação, vamos analisar as coisas de uma maneira um pouco diferente.

Jesus é o único mediador entre Deus e o homem. Por causa disso, você pode dizer que Jesus enfrenta dois caminhos ao mes­mo tempo: o caminho em direção a Deus Pai, no lugar do ser humano, e o caminho em direção ao ser humano, para nos apro­ximar de Deus Pai. Durante seu ministério terreno, em todas as coisas que fez com sua face “de homem” (os milagres, a vida de oração constante, o ensino e tudo o mais), Jesus concentrou real­mente sua atenção em duas coisas: evangelismo e discipulado.

Jesus passou a maior parte de seus três anos de ministério público, como está registrado nos Evangelhos, pedindo às pes­soas para que cressem nele — evangelizando — e ensinando aos novos fiéis como viver — discipulando. Na verdade, tudo que Jesus fez em seu ministério público serviu para um desses dois objetivos básicos — os mesmos objetivos que ele nos deixou na

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

forma da Grande Comissão. É por isso que todos os fiéis, para imitarem a Deus, são chamados a evangelizar e discipular, pois, em última análise, essa foi a vida de Jesus.

No entanto, há muito mais.O evangelismo e o discipulado são o início e o fim do

ministério de Jesus. O que estava no meio? O que quero dizer é: Quais foram os meios que produziram o fim? A resposta pode ser mais simples do que você imagina.

A interpretação da Palavra de Deus, falada e aplicada, foi o principal meio utilizado por Jesus. Foi assim que ele evan­gelizou e foi assim que ele discipulou. Se reduzirmos todos os milagres e ensinamentos de Jesus à sua essência, nós o encon­traremos interpretando a Palavra de Deus e aplicando esse ensinamento à vida real. Nesse processo, ele nos deu algu­mas ideias claras de como as pessoas, especialmente aquelas que nele creem, devem interpretar a Escritura. Ele nos deixou algumas trilhas para seguirmos. Mas muitos se perdem pelo caminho — para esses, a interpretação das Escrituras está mais relacionada à instrução do que à imitação.

A maioria dos cristãos se satisfaz deixando a interpreta­ção para seu pastor ou para os comentaristas. Não há nenhu­ma dúvida de que os comentários podem ser ferramentas úteis. Eu os uso e os aprecio, mas, quando leio comentários, às vezes penso: eu jamais extrairia o que eles extraíram dessas palavras. Esses comentaristas são muito inteligentes e, às vezes, podem ser até mesmo intimidantes.

Queremos entender a Escritura corretamente, e os com en­tários podem nos ajudar a fazê-lo, mas essa é a questão. Será que um diploma de uma boa escola bíblica ou um curso de pós-

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POR QUE A INTERPRETAÇÃO É TÃO IMPORTANTE

graduação em um bom seminário são os únicos caminhos para interpretar corretamente a Escritura? Você realmente acredita que foi isso que Deus determinou? E nós, será que ficaremos paralisados até lermos os comentários de alguns estudiosos? Acho que não. Pelo menos não de acordo com Jesus. Entre as coisas que Jesus espera que façamos está imitá-lo na correta interpretação da Bíblia.

Sejamos im itadores de Deus — sejamos intérpretes, como Jesus.

Embora a tarefa não seja fácil, m inha esperança é que você possa encontrar neste pequeno livro um bom início. Precisamos de algum auxílio, pois teremos de lidar não apenas com as nossas inseguranças sobre a interpretação correta da Bíblia, mas tam ­bém estaremos cercados por uma cultura de má interpretação.

Análises políticas, financeiras, metereológicas e esportivas regularmente exemplificam más interpretações das informa­ções disponíveis. E um sinal dos tempos o fato de que muitos normalmente podem estar errados e não ficam nem um pou­co embaraçados em relação a isso. Como sociedade, parecemos estar muito mais interessados na confiante declaração de uma opinião do que em saber se tal opinião está correta. Adoramos as declarações vazias e pretensiosas de políticos, astros do cinema, colunistas, ativistas e de todos aqueles que gostam de aparecer.

Em 2011, algumas pessoas que pareciam ser genuina­mente cristãs acreditaram com sinceridade que o m undo iria acabar. Elas chegaram a essa conclusão por terem confiado na interpretação da Escritura de um biblista chamado Harold Camping. Esse homem, que trabalhou no rádio durante mais de cinquenta anos, fez um a aplicação de sua interpretação que

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

resultou em maluquices e tolices lamentáveis. Por um lado, Camping espalhou cartazes de rua alertando sobre o fim do mundo, e muitos de seus seguidores deixaram seus empregos, abandonaram suas posses e acabaram ficando seriamente desi­ludidos em relação à sua fé quando o Dia do Juízo não acon­teceu. Por outro lado, os não-cristãos, tirando proveito desse espetáculo, passaram a ter mais razões para zombar do cristia­nismo. Eu não posso culpá-los.

Nada disso teria acontecido sem uma interpretação equi­vocada associada a uma crença não expressa entre muitos cris­tãos de que a interpretação bíblica é tarefa apenas de alguns.

ANTES DE CONTINUARMOS

Para começar, deixe-me tentar esclarecer alguns potenciais pontos de confusão. Não estou tentando dizer que analisar a interpretação e a aplicação que alguém faz da Escritura é uma coisa simples. Há todos os tipos de motivações pecaminosas ligadas a como fazemos o que fazemos. Nenhum desses peca­

dos e erros são novidade:

• Podemos aceitar a má interpretação por ignorância, confusão, má compreensão, ensino inadequado ou sim ­plesmente por suprimir nossa consciência.

• Podemos interpretar mais ou menos corretamente e depois fazer a aplicação de forma incorreta.

• Em geral aderimos a um tipo de interpretação sem sequer refletir. Apenas reagimos com base no quanto ficamos entusiasmados com aquilo.

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POR QUE A INTERPRETA^AO E TAO IMPORTANTE

• Podemos até mesmo escolher a antiga rebelião e sim ­plesmente rejeitar a autoridade da Bíblia, mas mesmo essa opção é um tipo de má interpretação, pois, quando rejeito a Escritura, ponho meu próprio julgamento aci­ma da autoridade da Palavra de Deus.

Também não estou dizendo que fazer a interpretação cor­reta seja a resposta para todas as coisas, ou que a interpreta­ção correta é o propósito central da Escritura, ou que podem os reduzir a fé cristã ao fato de estarmos lendo determ inada pas­sagem de forma precisa. Mas estou dizendo duas coisas:

1. Sem uma boa interpretação como parte im portante de nossa rotina, não poderemos viver como Jesus nos cha­mou a viver. Não é possível.

2. A interpretação deve envolver aquilo que outros dizem e ensinam sobre a Escritura, mas fazer uma boa inter­pretação é, em ultima análise, responsabilidade nossa.

Nos próximos quatro capítulos deste livro tentarei defen­der um argumento:

A interpretação da Escritura, seguida da aplicação correta, é a

m elhor m aneira de nos tornarm os semelhantes a Deus. Não é

um a questão de instrução. É um a questão de imitação.

Jesus dem onstrou como todos os fiéis devem interpretar a Palavra de Deus. Nós perdemos de vista essa preciosa realidade

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

e confiamos a outros essa responsabilidade. Certamente o ensi­no contínuo das Escrituras na igreja por parte dos que foram chamados e capacitados a fazê-lo é absolutamente fundam en­tal. Na verdade, tal ensino faz parte do exemplo que Jesus nos deixou. Além disso, a instrução pode ser útil e não deve ser minimizada nem desvalorizada. Estou simplesmente dizendo que o pêndulo foi longe demais, o que teve implicações sérias e negativas para a vida cotidiana dos fiéis. Todo cristão deveria ser capaz de interpretar a maior parte da Palavra de Deus sim­plesmente seguindo o modelo que Jesus nos deixou.

Contudo, antes de chegarmos a esse ponto, devemos ver o quanto é com um e o quanto é realmente prejudicial a má inter­pretação. Ela é a adversária que espera por nós.

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Dois

DO JARDIM PARA A SEARAUma breve história da má interpretação

No filme O livro de Eli, Denzel Washington representa o papel de Eli, um nômade misterioso e solitário em um mundo devas­tado pela guerra nuclear. Parece que a Eli foi dado um livro, e ele o transporta do que sobrou de todo o território dos Estados Unidos para um destino que somente ele conhece. Em determ i­nado ponto, o livro é roubado, e Eli e uma jovem companhei­ra fazem de tudo para recuperá-lo (ele abre mão de sua solidão por um tempo, pois a garota realmente é muito bonita). Durante uma intensa cena de ação, Eli arrisca sua vida para salvar a garo­ta. A essa altura todo mundo sabe que o livro misterioso carre­gado por Eli é a Bíblia. Quando a garota lhe pergunta por que ele tinha salvado sua vida, ele responde com aquilo que tinha aprendido na Bíblia. “Você deve fazer pelos outros aquilo que quer que eles façam por você. Pelo menos, foi isso que aprendi.”

Mais adiante no filme, percebemos que Eli tinha m em o­rizado toda a Bíblia. Assim, depois de decorar 800 mil pala­vras, muitas delas relacionadas à ideia de um Deus soberano e transcendente — que executa seu plano para redim ir a hum a­nidade de um destino que faria a devastação nuclear parecer a Disneylândia sem aquelas filas enormes e com um a comida

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muito melhor —, qual é a grande verdade à qual Eli chegou? O que ele “extraiu disso”? A Regra de Ouro.

Sim, sim, sim, eu sei que é apenas um filme, é só Hollywood fazendo o seu papel. Mas, nessa cena, a arte imita a vida. Ela é um triste retrato de como frequentemente se faz um a m á inter­pretação da Bíblia.

A ORIGEM DA MÁ INTERPRETAÇÃOA má interpretação, de uma maneira ou de outra, pode ser vista em todos os atos de desobediência à Palavra de Deus. E, como todas as outras coisas na criação, a má interpretação teve seu iní­cio. Na verdade, ela é tão antiga quanto a humanidade. Desde o início da Bíblia somos apresentados à má interpretação. No final da Bíblia, temos uma visão de como será quando todos os traços da má interpretação forem removidos e, finalmente, veremos e conheceremos a Deus como ele realmente é. Entre o início e o final, a Bíblia se ocupa de confrontar e corrigir a má interpreta­ção e, em seguida, de tentar identificar e aplicar de forma ade­quada a boa interpretação. Poderíamos dizer que seguir a Deus em seu projeto de boa interpretação e boa aplicação é a tarefa de vida de todo cristão. Os riscos são altos. De Adão e Eva a Harold Camping, as consequências da má interpretação têm sido catas­tróficas. A Escritura nos fornece detalhes explícitos da catástro­fe, com evidências suficientes para julgarmos a má interpretação por toda a vida. O pior desses atos é o primeiro deles — o maior e mais trágico erro de interpretação da humanidade.

Ora, a serpente era o mais astuto de todos os anim ais do cam ­

po que o Se n h o r Deus havia feito. E e la disse à m ulher: Foi

assim que Deus disse: Não comereis de nenhum a árvore do

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DO JARDIM PARA A SEARA

jardim? Respondeu a m ulher à serpente: Do fruto das árvores

do jardim podem os comer, mas do fruto da árvore que está

no meio do jardim , disse Deus: Não comereis dele, nem nele

tocareis; se o fizerdes, morrereis. Disse a serpente à mulher:

Com certeza, não morrereis. Na verdade, Deus sabe que no dia

em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis

como Deus, conhecendo o bem e o mal. Então, vendo a m ulher

que a árvore era boa para dela comer, agradável aos olhos e

desejável para dar entendim ento, tom ou do seu fruto, com eu e

deu dele a seu marido, que tam bém comeu (Gn 3.1-6).

Sua interpretação controla sua m aneira de viver. A per­gunta presente no coração de todos — Qual o significado da vida? — é uma pergunta sobre a autoridade da interpretação. Antes de o pecado entrar no mundo, você poderia dizer que a única fonte interpretativa a partir da qual a vida deveria ser vis­ta foi entregue por Deus. Havia apenas uma fonte de interpre­tação. Isso é o que torna Gênesis 3 tão trágico, mas tam bém tão interessante, pois, quando a serpente apareceu, Deus deixou de ser a única fonte de interpretação da realidade.

Não sabemos quanto tempo Adão e Eva viveram no ja r­dim como casal antes de cometerem o primeiro pecado. As palavras do texto se movem com muito mais rapidez do que o desenrolar dos acontecimentos. Somente Deus sabe quan­to tem po foi, mas todos nós sabemos o resultado: a prim eira vez na Bíblia em que vemos seres hum anos interpretando as palavras de Deus, eles o fazem de forma trágica e totalmente equivocada. A má interpretação mudou para sempre o curso da existência humana. Deus já não era a realidade que controlava

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

o ser humano; ele já não era a fonte de interpretação à qual a humanidade recorria.

Nessa passagem há essencialmente duas interpretações: a de Deus e a de Eva, a qual foi influenciada por Satanás. A inter­pretação de Deus é santa, clara, precisa e direta, ao passo que a de Eva é pecaminosa, imprecisa, egoísta e falsa.

Satanás começa fazendo a Eva uma pergunta interpretati- va: “Foi assim que Deus disse: Não comereis de nenhum a árvo­re do jardim ?”.

Eva responde citando a Deus de form a totalmente equi­vocada. Esse foi o primeiro exemplo de má interpretação. Eva alega que Deus dissera que do fruto das árvores do jar­dim poderiam comer, mas não do fruto da árvore que esta­va no meio do jardim: “Não comereis dele, nem nele tocareis; se o fizerdes, morrereis”. O problema é que Deus nunca disse exatamente isso. A citação equivocada pode ser a forma mais grosseira e flagrante de má interpretação, mas não deixa de ser má interpretação. O que Deus realmente disse ao homem foi: “Podes comer livremente de qualquer árvore do jardim, mas não comerás da árvore do conhecim ento do bem e do mal; porque no dia em que dela comeres, com certeza m orrerás” (Gn 2.16,17). Deus não disse a eles para que não tocassem na árvore e certamente não lhes disse que, se tocassem, morreriam, ou seja, que teriam a mesma pena que se comessem de seu fruto.

Satanás voltou com duas mentiras. Primeiro, ele tenta o entendimento de Adão e Eva acerca da justiça de Deus. Quando diz que Deus não traria a m orte como resultado da desobe­diência, ele sutilmente nega a autoridade de Deus em punir o pecado e desafia a posição de Deus sobre o que é certo e errado.

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Satanás também eleva a aposta ao oferecer o poder da inter­pretação independente. Quando Satanás disse: “sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”, ele ofereceu a Adão e Eva um falso poder de interpretação. Em português claro, ele os enganou. Ofereceu a eles uma horrível interpretação de Deus, sabendo que, no mínimo, as consequências seriam graves.

Não fica claro se Satanás sabia o que aconteceria se eles comessem do fruto. Mas fica claro que ele conhecia Deus. Ele sabia que Deus faz o que ele diz, no entanto ofereceu a Adão e Eva um a má interpretação do Criador e do papel deles como criaturas. O que é realmente impressiona é que ele ofereceu a Adão e Eva tudo o que eles já tinham. Eles já eram como Deus (pois ele os tinha criado à sua imagem, Gn 1.26) e já tinham tudo de que precisavam para saber sobre o bem e o mal.

Você se recorda do que Deus disse repetidas vezes sobre a criação? Ele tinha declarado que a criação era boa. No jardim, estava claro que Deus era bom, que sua criação era boa e que obedecer a ele era bom. Tudo que estivesse fora desse círculo não era bom; era mau.

Assim, Satanás tentou Adão e Eva servindo-se de uma dupla interpretação do que Deus tinha dito: ele questionou a justiça de Deus e a suficiência de sua definição de bem e mal, de certo e errado.

Há uma lição, aqui, que se aplica a muitos exemplos de interpretação. Adão e Eva confiaram não apenas na interpreta­ção que a serpente fez (das palavras de Deus), mas tam bém na própria interpretação que fizeram (das alegações de Satanás). Eles tinham de confiar em si mesmos para determ inar que a serpente estivesse certa e Deus, errado. Eles confiaram em sua

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própria habilidade de escolher entre uma e outra interpretação. Na verdade, antes de Eva pegar o fruto, o homem já tinha assu­mido autoridade “como a de Deus” para escolher entre o certo e o errado.

QUEM PODE ESCOLHER?

O primeiro pecado foi a arrogância na interpretação. Desde então, a humanidade tem sofrido da constante praga da arrogân­cia — a arrogância de agir com base em sua própria visão do que é certo e do que não é. Adão e Eva escolheram assumir uma falsa autoridade para interpretar e separar o certo do errado. Você e eu geralmente escolhemos agir com base nessa mesma autori­dade falsa. De certo modo, nós realmente nos tornamos como Deus, mas isso não passa de uma imitação barata e ordinária.

Essa questão da autoridade — o que é bom e o que é mau e quem pode decidir a respeito disso — é uma questão perigosa. Em última análise, o que está em jogo é uma compreensão ver­dadeira ou falsa da Palavra de Deus. Sempre que acrescenta­mos algo ou desconsideramos a Palavra de Deus, estamos em essência dizendo que temos autoridade sobre o próprio Deus e que somos os únicos árbitros da verdade.

Normalmente, todos nós fazemos interpretações e aplica­ções em nosso próprio benefício (esse é o motivo de sempre haver três lados de uma mesma história: o seu lado, o meu lado e o lado de Deus). Quando nos beneficiamos de nossa própria interpretação, é difícil mudar. Não que a m udança seja difícil. A mudança em si não é difícil. O desejo de mudar é que é difícil. A maioria das pessoas não deseja interpretar as coisas de forma diferente. Elas não querem m udar — se acreditarem que são

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beneficiadas por um a interpretação equivocada. Como Eva, acreditamos na distorção criada pela serpente. Acreditamos que as consequências de nossas ações pecaminosas não serão assim tão ruins como Deus disse que seriam. Esse é e sempre será basi­camente o mesmo engano e a mesma má interpretação.

Nossa interpretação define nossa realidade prática. Como intérprete, Deus definiu a realidade para Adão e Eva bem antes da Queda. Sem paixões concorrentes, sem propósitos confli­tantes. Mas esse padrão interpretativo não desapareceu junto com a inocência de Adão e Eva. Ele ainda existe, ainda se aplica e ainda afeta fundam entalm ente quem somos nós hoje. Esse m odo de interpretação perfeito não é muito fácil de discer­nir, mas ainda é a Verdade. Como veremos mais adiante neste livro, esse foi o motivo de Jesus ter ensinado a interpretação e a aplicação corretas da Palavra de Deus como principal meio de completar sua missão de salvar.

VARIAÇÕES SOBRE O TEMA

Vamos aprender a partir de alguns exemplos de má interpre­tação. Primeiro observaremos como Saul cedeu sob pressão. Depois veremos como Satanás é especialista em interpretar a Palavra de Deus fora de seu contexto. Finalmente, vamos m os­trar o que há de melhor no assunto, os super-heróis vestidos com a capa da má interpretação, a Liga dos Extraordinários Enganadores — isso mesmo, os fariseus.

O rei Saul

Os capítulos 10 a 15 de 1 Samuel mostram a realidade da má interpretação e suas consequências. Os israelitas rejeitam a Deus

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como rei, preferindo alguém que pudessem ver. O povo queria um rei que se parecesse mais com os reis das nações vizinhas do que ser governado pelo Rei que criara todas aquelas nações.

Deus atende a seu pedido e, por meio do profeta Samuel, escolhe Saul. Mas a obediência de Saul imitaria a arrogância de Adão. O fato de Saul cair da graça revela sua má interpretação do conceito de graça.

Depois de Saul ter sido escolhido rei, Samuel lhe diz estas palavras: “Tu descerás antes de m im para Gilgal, e eu descerei ao teu encontro para oferecer holocaustos e sacrifícios de ofer­tas pacíficas. Esperarás sete dias, até que eu chegue e te declare o que deverás fazer” (ISm 10.8). Essas instruções foram dadas no contexto de outros acontecimentos que, juntos, provavam que Saul tinha sido escolhido por Deus para ser o rei de Israel e que Deus estava usando Samuel como seu porta-voz.

Por um determinado período, tudo correu bem. Saul começou a ter grandes vitórias militares contra os mais tem i­dos inimigos de Israel. No capítulo 13, Saul e seu filho Jônatas reuniram um pequeno grupo de soldados e se dirigiram para o acampamento dos filisteus, atacando-os e derrotando-os com facilidade. A nação de Israel celebrou a vitória, reunindo-se ao redor de Saul enquanto ele tocava a trom beta em triunfo. Mas, quando os filisteus reuniram um grande exército para se vin­gar de Israel, os israelitas entraram em pânico e se espalharam, ficando cada um por si.

Seguindo as instruções de Samuel, Saul se dirigiu a Gilgal. Ali, como lhe fora dito, ele esperou sete dias por Samuel. Mas o sétimo dia veio e se foi, e o que Saul esperava que acontecesse não aconteceu: Samuel não apareceu para oferecer holocaustos

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e ofertas pacíficas a Deus em nome de Saul. Implícitas nessas ofertas estariam às bênçãos de Deus sobre Saul e sobre a nação de Israel em tempos de crise, mas Samuel não pôde ser encon­trado em lugar nenhum , e o exército dos filisteus se aproxi­mava em grande número, como o da “areia que está à beira do m ar” (ISm 13.5).

Saul ficou apavorado. Ele procurou relembrar tudo aqui­lo que o profeta Samuel o tinha instruído a fazer. Olhou ao redor de forma frenética, esperando que Samuel aparecesse. Os segundos pareciam horas. Os filisteus estavam prontos para atacar os judeus; já estavam tão perto, que Saul podia até sentir o cheiro deles. A confiança de Israel estava desmoronando, e foi assim que Saul decidiu agir.

Saul tomou as ofertas e apresentou-as a Deus. Quando ter­minou, Samuel se aproximou, parecendo não estar nada satisfeito.

Samuel perguntou: Que fizeste? Saul respondeu: Vi que o exér­

cito estava me abandonando e se dispersando, e que tu não

chegavas no tem po determ inado, e que os filisteus já estavam

reunidos em Micmás, então eu disse: Agora os filisteus me ata­

carão em Gilgal, e eu ainda não busquei o favor do Se n h o r .

Assim me senti pressionado e ofereci o holocausto. Então Samuel

disse a Saul: “Agiste loucamente; não obedeceste ao m andam en­

to que o Se n h o r , teu Deus, te ordenou. O Se n h o r teria confir­

m ado o teu reino sobre Israel para sempre (ISm 13.11-13).

Esse é um exemplo de interpretação pobre da Palavra de Deus que espelha Gênesis 3. Antes que Saul se colocasse em condição de pecar, teve que convencer a si mesmo que o que

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faria estava mais certo do que errado. Ele teve de convencer a si mesmo que tinha uma “boa razão” para o que estava prestes a fazer, embora o fizesse contrariando as instruções de Deus.

Nós não sabemos exatamente o que Saul pensou. Não sabemos detalhes de seu conflito interior. Mas sabemos que forçou a si mesmo a fazer algo que, a princípio, parecia real­mente uma má ideia. Saul chegou a uma interpretação da Pala­vra de Deus que abriria a porta para que ele a desobedecesse.

A natureza exata do pecado de Saul não fica muito clara. Alguns estudiosos dizem que está relacionada a 1 Samuel 10.8 e ao fato de que apenas os sacerdotes tinham autoridade para oferecer sacrifícios a Deus. O utros acreditam que tem a ver com outra ordem não registrada na Bíblia. As duas hipóteses são possíveis. Em ambos os casos, a decisão de Saul de desobe­decer à ordem de Samuel para esperá-lo foi ruim — tão ruim

que lhe custaria seu reinado.Por trás de cada pecado há uma interpretação equivocada

da Palavra de Deus. E essa interpretação equivocada levou Saul a pecar contra Deus. Mais tarde voltaremos a Saul, mas agora vamos considerar outro exemplo de má interpretação.

Satanás

Para mim, logo após a falha de Adão e Eva, o segundo pior exemplo de interpretação da Escritura, e talvez da história, é a do episódio em que Satanás tenta Jesus. A velha serpente está de volta e, em Mateus 4, vemos que Satanás conhece a Palavra de Deus. Ele a conhece m elhor do que você, eu e seu teólogo favorito. Provavelmente ele a tenha m em orizado em todas as línguas humanas, inclusive aquelas para as quais a

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Bíblia ainda nem foi traduzida. E eu lhe garanto que a com ­preensão que ele tem dela é m uito m aior e mais profunda que a do personagem Eli, de Denzel W ashington, recitando a Regra de Ouro.

Satanás conhece extremamente bem a Bíblia, não por reverência a Deus, mas por querer nos confundir, assim como tentou fazer com Jesus no deserto. Satanás é mestre na arte de nos tentar com a má interpretação da Palavra de Deus e, em Mateus 4, podemos ver como ele faz isso.

Essa cena é bem irônica, se levarmos em consideração quem está falando com quem. Satanás usa a Palavra de Deus para tentar aquele que é a própria Palavra de Deus! Parece lou­cura, mas isso m ostra o quanto nosso inimigo pode ser “pira­do” de vez em quando.

Ao tentar levar Jesus, ou nós mesmos, a interpretar a Pala­vra de Deus de forma equivocada, um a das maiores armadilhas na caixa de ferramentas de Satanás consiste em retirar a Pala­vra de Deus de seu contexto para poder distorcê-la. Em Mateus 4, encontramos Satanás fazendo três esforços para tentar levar Jesus a pecar. Em um deles, Satanás tenta utilizar a Escritura para fazer com que Jesus lhe obedeça. Citando Salmos 91.11,12, o diabo incita a Jesus a pular do pináculo do templo:

Então o Diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o na parte mais

alta do templo e disse-lhe: Se és Filho de Deus, lança-te daqui

abaixo; porque está escrito:

Aos seus anjos dará ordens a teu respeito; e eles te sus­

ten tarão com as m ãos, para que não tropeces em pedra

algum a (M t 4.5,6).

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Aqui, Satanás relembra a Jesus a Escritura, ao citá-la sem levar em conta todo o conselho de Deus. Jesus não se impres­siona, para dizer o mínimo. Mesmo depois de 40 dias no deser­to sem alimento e água, ele é sábio o bastante para saber que Satanás está sendo desonesto.

Como Jesus conhecia todo o conselho de Deus, ele expõe a interpretação de Satanás pelo que ela realmente é: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus” (Mt 4.7). O reló­gio marca as doze badaladas. O jogo acabou. Apenas o diabo não sabe disso.

A interpretação equivocada pode ser encontrada por toda a Escritura, mas Adão, Eva, Saul e Satanás são apenas alguns dos culpados. Há muito mais espaço no trem da má interpretação, e os fariseus andam por seus corredores, recolhendo as passagens.

Os fariseusDurante toda a vida terrena de Jesus, ninguém negligenciou tanto a Palavra de Deus quanto os fariseus. Eles eram os pasto­res da época (nenhum a ofensa, eu também sou pastor). Eram muito respeitados e com frequência temidos, e faziam por onde. Eram pessoas que supostamente se baseavam na Bíblia, mas acabavam indo muito além dela.

Aos fariseus eram confiadas a interpretação e a expli­cação da Palavra de Deus. Toda semana, na sinagoga, eles deveriam ler e interpretar a Lei e os Profetas para os filhos de Abraão. Eles escolhiam um texto, liam esse texto em voz alta e davam um a perspectiva sobre ele. Mas o legado dos fariseus é que a perspectiva que ofereciam da Escritura acabava por se tornar um conjunto de regras legalistas. Assim, na verdade, eles distorciam essas regras e as utilizavam para reinterpretar

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a Escritura, de m odo que o israelita típico entendia a Bíblia como sendo algo totalm ente voltado para o legalismo.

A mesma tendência de olhar para a Bíblia, interpretá-la erroneam ente e depois voltar e olhar para as Escrituras à luz da própria interpretação falsa encontra-se no centro do legalismo que assolou o povo de Deus desde o princípio.

A lei de Moisés foi dada por Deus para revelar a incapa­cidade da hum anidade de obedecer a Deus. O modo como os israelitas, por toda a sua história, se afastaram de Deus em vez de se converterem a ele, foi evidência de um d n a espiritual que prova sua culpa. A rebelião se tornou a identidade dos israeli­tas. O juízo, sua condição diária.

O surpreendente é que os fariseus não conseguiam enten­der isso. Aqueles que receberam a tarefa de interpretar o Antigo Testamento ao povo para quem ele fora escrito não consegui­ram entender o argumento fundamental nele contido. (O que, ironicamente, apenas comprova ainda mais esse argumento.)

Os fariseus não apenas acreditavam ser possível obedecer à Lei, eles pensavam que era um ato de fidelidade a Deus acres­centar mais regras a ela! O que é pior, esses homens tinham o incrível talento de dizer aos outros o que fazer, quando eles mesmos não o faziam. Aliada à sua má interpretação da lei mosaica, os fariseus deram um passo além e fingiram que outras partes da lei não existiam. A má interpretação combinada à observação e à aplicação seletivas fazia desses homens verda­deiros hipócritas. Q uando Jesus veio, olhou para eles e decidiu convidá-los para participar de um novo jogo. Ele não apenas m udou as regras, mas alterou todo o jogo.

Ali estava um grupo de homens responsáveis por dizer ao povo escolhido de Deus como deveriam ler, interpretar e

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seguir a Palavra de Deus. Eles foram capazes de construir um sistema que os exaltava, oprimia o povo, interpretava Deus de forma equivocada e impedia qualquer possibilidade de oposi­ção. Não foi à toa que Jesus os expôs.

Não é de surpreender, dado o papel dos fariseus como supostos guardiões da Verdade, que os conflitos que Jesus teve com eles tenham sido fundamentalmente sobre interpretação. As ações fluem do entendimento. A aplicação flui da interpre­tação. Os fariseus sabiam disso tão bem quanto Jesus. Assim, o conflito fundam ental entre eles era que os fariseus esperavam que Jesus agisse mais como eles e Jesus esperava que os fariseus agissem mais como Deus.

Esses conflitos específicos que Jesus teve com os fariseus podem parecer distantes de nós, pois não pertencemos à cul­tura do judaísmo do segundo templo. Em certos casos, eu não tinha a menor ideia sobre o que Jesus e os fariseus discutiam. E difícil relatar os detalhes de suas discussões, mas é fácil relatar a batalha que está por trás da interpretação.

Mateus 12.1-14 contém dois grandes exemplos. Nos dois casos, a questão da interpretação implica o que é e o que não é lícito fazer no sábado. Mas a verdadeira questão é quem tem auto­ridade para interpretar a Escritura, como e por quê. Fica óbvio, nessa passagem, que Jesus está dando oportunidade aos fariseus de defenderem o ponto de vista do legalismo, de modo que ele possa reverter a situação e trazer à tona a verdade sobre o assunto.

Duas questões são abordadas nessa passagem:

• Se você estiver cam inhando por um campo de cereais no sábado, a lei de Moisés permite que colha algumas espigas e as coma enquanto caminha?

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DO JARDIM PARA A SEARA

• Se alguém estiver sofrendo fisicamente e for sábado, a lei de Moisés lhe dá permissão para tentar curar a pessoa?

Os fariseus acreditavam que a resposta para as duas per­guntas fosse não. Mas eles não baseavam suas respostas às per­guntas naquilo que a lei de Moisés de fato dizia especificamente sobre o sábado ou naquilo que ela ensinava em geral sobre a natureza e o propósito do sábado. Jesus, porém, baseava-se na Lei. Ele menciona algumas passagens do Antigo Testamento e lança uma bomba falando sobre como ele tem toda a auto­ridade sobre o sábado. Jesus é o grande intérprete. Ele vai ao coração da Palavra de Deus.

Mas isso não era bom o suficiente para os fariseus. Talvez a preocupação deles fosse a de não falhar miseravelmente em cum prir a lei de Deus ou talvez eles realmente pensassem que entendiam melhor a lei de Deus do que qualquer pessoa, e por isso faziam listas que “explicavam” o que as pessoas deveriam ou não fazer para ser piedosas. A interpretação dos fariseus, na verdade, tornava-se a “palavra de Deus”, pois as pessoas acre­ditavam que era isso que Deus queria que fizessem, enquanto a verdadeira Palavra de Deus era colocada de lado.

PREPARANDO-SE PARA ENCONTRAR OINTÉRPRETE

Você alguma vez já parou para pensar sobre o motivo de os Evangelhos darem tanta atenção aos fariseus? Será que não é para que nós, cristãos, sempre que nos reunimos, possamos falar como eles eram maus sem correr o risco de fazer fofo­ca? Não acredito nisso. As lições do Novo Testamento sobre os

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

fariseus se apresentam de tal m odo que podem os concluir uma coisa: não somos muito diferentes deles.

Interpretação é como vivemos a vida a cada m om en­to de cada dia. O mais im portante tipo de interpretação é o que entendemos ser o conteúdo, a autoridade e o propósito da Bíblia e, portanto, quem entendemos ser Deus. Mas, como os fariseus, todos nós podemos tender a confiar mais em nossa interpretação dessas coisas do que na própria Bíblia.

Interpretar não é o mesmo que saber o que está escrito na Bíblia. Como parte de seu treinamento, os fariseus decoravam a maior parte do Antigo Testamento e, mesmo assim, eles o enten­diam de uma forma totalmente equivocada. Por não consegui­rem entender corretamente o Antigo Testamento, os fariseus também não conseguiam entender a Deus corretamente — e isso, em ultima análise, é o grande perigo da má interpretação.

Como o meteorologista ou o homem do tempo da t v

erram constantemente em suas previsões, mas continuam a fazê-las todos os dias com confiança e um grande sorriso no rosto, podem os agir com a segurança de verdadeiros idiotas sobre nossa interpretação da Escritura. Mas não precisamos mais agir dessa maneira. A despeito de toda má interpreta­ção que nos cerca, há lugar para regozijo. O Filho de Deus, o intérprete por excelência, chegou e nos ensina a interpretar sua Palavra corretamente. Não precisamos viver na escuridão teológica sobre a Bíblia. A estrutura interpretativa perdida no jardim do Éden ainda está disponível para nós. Deus Filho veio para que pudéssemos recuperar um correto entendim ento de Deus, um correto relacionamento com Deus e a correta inter­pretação de sua santa Palavra.

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Três

JESUS, O INTÉRPRETEA interpretação se relaciona mais com imitação do que com educação

A interpretação correta da Palavra de Deus é difícil, mas possí­vel. Mais do que isso, é uma tarefa que Deus espera de seu povo e um processo tão antigo quanto a origem da própria Escritura.

Para nos dar o Antigo e o Novo Testamentos, Deus inspi­rou homens a escrevê-los. O próprio processo de escrita envol­ve certa dose de interpretação (divinamente inspirada), e as palavras que foram escritas incluíam um a série de ordenanças de Deus para que aplicássemos e obedecêssemos à Palavra. Isso nos diz que todo o paradigma da interpretação correta que leva à aplicação correta é um dom essencial e fundamental de Deus para seu povo. Tanto que esse dom veio sob a forma de uma pessoa chamada Jesus, o Cristo.

Você alguma vez já pensou sobre o motivo de Jesus ser cham ado de a Palavra de Deus? Dentre tantas outras maneiras que poderiam descrever o Filho de Deus, por que usar o ter­mo Palavra? Por que o Criador do universo veio a nós como a Palavra de Deus viva? Há vários m odos de responder a essas perguntas, e este livro é muito pequeno para responder a todas, m as vamos considerar alguns.

COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

João 1 nos diz algumas coisas interessantes sobre Jesus. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus [...] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, pleno de graça e de verdade; e vimos a sua glória” (Jo 1.1,14).

O que fica óbvio aqui é que Jesus, desde o princípio, tem sido a Palavra de Deus que é Deus. O term o grego que João utiliza aqui é Logos, que significa palavra ou discurso. Sabemos que Deus não tem princípio, portanto “no princípio” é uma referência temporal a criaturas atemporais, algo para nos aju­dar a processar a importância da identidade de Jesus: diferen­temente de tudo que possa existir, Jesus tem sido desde sempre. Isso também nos relembra que Jesus foi e é o sustentador de toda a criação.

A Palavra de Deus é vida e cria vida. A Palavra não tem fim, do mesmo modo que não tem princípio. A Palavra de Deus é inimiga da morte e irá derrotá-la. Sei perfeitamente que isso tudo é um tanto poético e misterioso, mas como o fato de Jesus ser essa Palavra pode estar relacionado à nossa discussão sobre interpretação?

Para responder a essa pergunta, devemos lembrar que todas as coisas foram criadas por meio da Palavra. Gênesis nos diz que o sol, as aves e as ervas do campo foram chamados à existência. Tudo isso veio a existir pela Palavra de Deus e é sustentado pela mesma Palavra. Em suas atividades diárias, os seres criados não interagem com a Palavra, exceto simples­mente em resposta a ela. Não há questionamento ou resistên­cia, pois esses seres não fazem nenhum tipo de interpretação.

Quando Deus criou o homem, porém, algo novo entrou em cena: a interpretação tornou-se possível e, com ela, também

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JESUS, 0 INTÉRPRETE

a possibilidade de falsa interpretação, oposição consciente, recusa, rebelião e rejeição. Diferentemente de todo o restante do m undo natural, Deus concedeu o livre-arbítrio ao homem, e livre-arbítrio requer a habilidade de interpretar, avaliar, pesar e escolher — não apenas responder de acordo com as leis natu­rais ou com o instinto.

INTÉRPRETES DO ALFA E ÔMEGA

Nós fomos criados à imagem de Deus. Fomos criados para pensar e interpretar. Somos as únicas criaturas da face da Terra que interpretam a Palavra de Deus. Nós a ouvimos, refletimos sobre seu significado e agimos com base em nossos pensam en­tos e conclusões.

Isso é crítico para o entendim ento de Jesus como Logos ou Palavra, na passagem de João 1. Somos intérpretes por desígnio de Deus, de modo que os atos mais sublimes e significativos de interpretação em que nos engajamos são nossas próprias inter­pretações da Palavra de Deus. Na época do Novo Testamento, isso coloca Jesus — o Verbo de Deus — como nosso principal objeto de interpretação. Nós interpretamos quem é Jesus, o que ele disse e o que suas palavras significam e, então, determ ina­mos como reagirem os à interpretação que fizemos.

Antes da encarnação, o principal foco de interpretação era a Palavra de Deus escrita e falada. Em Gênesis 3, essa Palavra foi mal in terpretada e mal aplicada. Isso trouxe o pecado para o mundo. Hoje, a Palavra de Deus corretamente interpretada e aplicada é a única co isa que levará os pecadores em segurança para fora deste m undo.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Assim, você poderia dizer que João 1 é simplesmente a melhor metade de Gênesis 1. É uma eterna repetição, uma representação da verdade e outra chance para a hum anidade interpretar a Palavra de Deus de form a correta e agir em con­formidade com ela. Gênesis coloca em ação uma série de acon­tecimentos que resultariam na lei de Moisés, mas João 1 revisa esses mesmos princípios para revelar Cristo neles, resultando em algo bem melhor: a salvação através de Jesus, a Palavra. João nos m ostra o grande pacote no qual o plano de Deus estava contido: Jesus, a Palavra, o princípio e o fim da criação, o prim eiro e o último.

JESUS, INTÉRPRETE E OBJETO DA ESCRITURA

Jesus é o principal intérprete da Escritura, pois é o principal objeto da Escritura. Somente Jesus sabe o que a Escritura quer dizer, pois ela fala sobre ele. Q uando esteve na terra, Jesus pre­gava uma mensagem para que as pessoas se arrependessem e cressem nele. Ele não era tím ido nem vago a respeito de quem era, do que estava fazendo ou do motivo de fazê-lo.

Como mencionei no capítulo 1, poderíamos dizer que o foco da vida de Jesus estava no evangelismo e no discipulado, os quais ele levou adiante ao comunicar a interpretação correta e ao fazer a correta aplicação da Palavra de Deus. Essa realidade é frequentemente descartada quando se trata de imitar aquilo que Jesus fez, mas, por incrível que pareça, muitas das coisas mais surpreendentes registradas na Escritura não são os milagres, e sim as ocasiões em que Deus explica sua própria Palavra para o povo e, a seguir, mostra a ele como aplicá-la. Esse é o padrão do discipulado cristão e uma das principais maneiras pelas quais

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JESUS, 0 INTÉRPRETE

deveríamos imitar nosso Senhor. A interpretação e aplicação da Palavra de Deus são de suma importância para Jesus.

Em quase todas as ocasiões em que vemos Jesus interpre­tando a Palavra escrita de Deus, ele cita e explica as Escrituras e, a seguir, oferece um a aplicação. Em Mateus 5, durante o famoso Sermão do Monte, Jesus interpreta e aplica a Palavra de Deus utilizando esse processo por cinco vezes, começando nos versículos 21, 27, 33, 38 e 43. Em cada caso, seu ponto de partida para unir os m undos da interpretação e da aplicação é a expressão “ouvistes que foi dito”:

Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo que

todo aquele que olhar com desejo para um a m ulher já cometeu

adultério com ela no coração. Se o teu olho direito te faz tro ­

peçar, arranca-o e joga-o fora; pois é m elhor para ti perder um

dos teus m em bros do que ter todo o corpo lançado no inferno.

Se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e joga-a fora; pois

é m elhor para ti perder um dos teus m em bros do que ir todo o

corpo para o inferno (Mt 5.27-30).

O que está acontecendo aqui?

• Versículo 27: Jesus cita a Palavra de Deus.• Versículo 28: Jesus interpreta corretam ente a Palavra

de Deus.• Versículos 29,30: Jesus dá aplicação à Palavra de Deus.

Esse padrão foi vital no ministério terreno de Jesus. Q uan­do somos chamados para ser imitadores de Deus, devemos

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

considerar que a interpretação correta da Palavra de Deus é um elemento essencial do chamado — quer tenhamos recebi­do educação teológica quer não.

Em Mateus 5.17, Jesus identifica a razão pela qual ele pode fazer essas declarações do tipo “ouvistes que foi dito”: “Não penseis que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cum prir”. Jesus é bem claro. Ele veio cum prir a Lei. Por ser o principal objeto da lei, por padrão ele também é o principal

intérprete da Lei.

REQUISITOS PARA COMPREENDER A ESCRITURA

Observemos algo de forma específica na vida e ministério de Jesus e de forma geral na Palavra de Deus: o treinam ento for­mal na Palavra de Deus nunca foi estabelecido como um requi­sito para a compreensão exata da Palavra de Deus. Na verdade, a maioria das pessoas com treinam ento formal na Palavra de Deus rejeitou Jesus em sua época. Mesmo entre cristãos, o trei­namento teológico não resulta necessariamente em uma afei­ção genuína por Deus ou até mesmo em uma boa aplicação. O conhecimento do coração não decorre, necessariamente, do conhecimento intelectual.

Uma mensagem não verbalizada no mundo evangélico é que algum tipo de treinamento formal — seja ele em um a esco­la bíblica seja em um seminário — é necessário se quisermos ter uma compreensão precisa da Palavra de Deus. Mas, quan­do olhamos para a Palavra de Deus, os únicos requisitos pare­cem ser a fé e a presença do Espírito Santo de Deus em nossa vida. O prenúncio da Nova Aliança apresentada em Jeremias 31.33,34 diz:

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JESUS, 0 INTÉRPRETE

Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois

daqueles dias, diz o S e n h o r : Porei a m inha lei na sua m ente

e a escreverei no seu coração. Eu serei o seu Deus, e eles serão

o m eu povo. E não ensinarão mais cada um a seu próximo,

nem cada um a seu irmão, dizendo: Conhecei o S e n h o r ; po r­

que todos me conhecerão, do mais pobre ao mais rico, diz o

S e n h o r . Porque perdoarei a sua m aldade e não me lembrarei

mais dos seus pecados.

Essa é a descrição de todo aquele que está em Cristo. Podemos interpretar a Palavra de Deus o suficiente para viver um maravilhoso relacionamento com ele. E isso sem qualquer treinam ento formal! Não me entenda mal. Eu também acredito que o treinamento no estudo teológico é bastante útil, espe­cialmente se você tem um chamado para ensinar a Palavra de Deus. No entanto, perdem os de vista a verdade fundamental de que todos somos chamados a ser como Jesus. Temos interpre­tado muito mais pela educação do que pela imitação, o que não parece ser a intenção de Deus ou sua exigência. O exemplo dos habitantes de Bereia, no Novo Testamento, certamente indica que todo cristão precisa examinar a Escritura com a máxima seriedade (At 17.11); mas verificar aquilo que lhe foi ensinado é um a coisa, ao passo que um processo prolongado da educa­ção formal é outra completamente diferente.

Todos os cristãos são chamados a ser leitores, intérpretes, evangelistas e discipuladores. E a interpretação correta da Palavra é fundam ental para tudo e para todos.

Esse é o motivo de Jesus frequentemente perguntar sobre os hábitos de leitura das pessoas.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

ACASO NÃO LESTES?

Quando faziam perguntas a Jesus sobre a vida — sobre a apli­cação da Palavra —, ele norm alm ente respondia: “Acaso não lestes?” Em Mateus 12, versículos 5 a 8 em particular, após os fariseus acusarem Jesus e seus discípulos de violarem o sábado, Jesus questiona as respostas dos fariseus ao lembrá-los de sua má interpretação da Palavra de Deus:

Acaso não lestes o que Davi fez quando ele e seus com panhei­

ros tiveram fome? Como ele entrou na casa de Deus, e com eles

comeu os pães consagrados, o que não lhe era perm itido comer,

nem a seus companheiros, mas somente aos sacerdotes? Ou não

lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo infrin­

gem o sábado e ficam sem culpa? Mas eu vos digo que aqui está

quem é m aior do que o templo. Se, porém, soubésseis o que sig­

nifica: Quero misericórdia, e não sacrifícios, não condenaríeis

os inocentes. Porque o Filho do homem é Senhor do sábado.

O que podem os ver aqui? Por nossa causa, por causa dos discípulos que estavam ali, naquele dia, por causa dos próprios fariseus, Jesus estava expondo as fraquezas da visão que os fari­seus tinham da Escritura, ao apresentar uma visão correta. Eleo faz ao fornecer insights em quatro áreas — duas que diziam respeito à Lei e duas que diziam respeito a Deus. Olharemos para esses insights como respostas a quatro perguntas:

• O que significa alguma coisa ser ilegal?

• O que torna alguma coisa ilegal no sábado?

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JESUS, 0 INTÉRPRETE

• Qual seria a visão correta de Deus em relação ao sábado?

• Qual é a relação de Deus com o sábado?

Jesus trata da interpretação que os fariseus faziam da Palavra de Deus sobre o sábado abordando diretamente a apli­cação que dela faziam. Ele usa duas ilustrações, uma da história de Israel e outra do que acontece no templo a cada sábado.

Ofereço a você a oportunidade de sentar-se na prim eira fileira para observar e aprender a se aprim orar como intérpre­te, à custa dos fariseus.

O que significa alguma coisa ser ilegal?

Ele, porém, lhes disse: Acaso não lestes o que Davi fez quando

ele e seus com panheiros tiveram fome? Como ele entrou na

casa de Deus, e com eles comeu os pães consagrados, o que

não lhe era perm itido comer, nem a seus companheiros, mas

som ente aos sacerdotes? (Mt 12.3,4).

A prim eira ilustração que Jesus oferece nos leva de volta mais de mil anos atrás, até Davi, em 1 Samuel 21.1-6.

Jônatas tinha avisado a Davi que Saul — pai de Jônatas e rei de Israel — estava tentando matá-lo (lSm 20); assim, Davi fugiu para Nobe, para salvar sua vida. Ele entrou no tabernáculo e ali encontrou Aimeleque, o sacerdote de Saul, a quem pediu pão. O único pão disponível era o pão da consagração, norm al­mente doze filões colocados no lugar santíssimo como oferta de agradecimento a Deus. Cada filão representava uma das doze tribos de Israel; juntos, os filões simbolizavam o relacionamento

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

da aliança de Israel com Deus. Todos os sábados, os filões eram substituídos por outros mais frescos, e o sacerdote se alimentava dos mais antigos. O pão era considerado consagrado e era reser­vado para “Arão e seu filhos” — isto é, para aqueles que eram sacerdotes. Mas Davi não era um sacerdote, nem seus homens.

Tecnicamente, portanto, com er do pão consagrado era uma clara violação da porção cerimonial da lei de Moisés, e isso certamente violaria a interpretação que os fariseus faziam da lei na época de Jesus. O próprio Jesus reconheceu isso. No entanto, parece que esse fato não desagradou a Deus na época. Mais significativo ainda, Jesus não desaprovou tal fato.

A necessidade humana aparentemente tem precedência sobre o ritual. Se Davi e Aimeleque puderam ignorar um ceri­monial de provisão ordenado por Deus diante de determ ina­das circunstâncias, então Jesus, o Deus encarnado, certamente teria o mesmo direito.

Ao começar com a expressão “acaso não lestes”, Jesus fala diretamente à arrogância da interpretação dos fariseus. Essas supostas autoridades na Palavra de Deus perderam completa­mente o sentido de 1 Samuel 20, que eles, na verdade, tinham lido muitas e muitas vezes. Qual é o ponto central? As restri­ções cerimoniais podem ser ignoradas em face da necessidade. Davi e Aimeleque fizeram a aplicação correta da lei de Moisés a respeito do tabernáculo, e isso foi registrado na Escritura como uma lição de aplicação da lei. Mas os fariseus não a entende­ram, e sua interpretação equivocada resultou em uma aplica­ção equivocada, que formava a base de sua acusação de que os discípulos de Jesus estavam violando a lei quando recolhiam espigas e delas se alimentavam no sábado.

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JESUS, 0 INTÉRPRETE

0 que torna alguma coisa ilegal no sábado?

O u não lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no tem plo

infringem o sábado e ficam sem culpa? (Mt 12.5)

A segunda interpretação de Jesus nessa passagem enfatiza novamente a im portância da interpretação correta da Palavra de Deus. Ele começa com a mesma pergunta: “Ou não lestes?”. Dessa vez, Jesus está se referindo aos deveres dos sacerdotes relativos ao sábado. (Com “infringem o sábado”, ele se referia às ações devotadas àquilo que não era sagrado ou bíblico, ações que são mais seculares do que religiosas.)

Devido ao fato de, no sábado, as ofertas serem dobradas (v. Nm 28.9,10), esse era, de longe, o dia em que os sacerdo­tes mais trabalhavam — um dia que não chegava nem perto de um dia de descanso. E o trabalho que eles estavam fazen­do era, na verdade, o m odo como ganhavam a vida. Tecni­cam ente, portanto, os sacerdotes desrespeitavam a lei todos os sábados! C ontudo, da perspectiva de Deus, a adoração no tem plo tinha precedência, lição que é a mesma dada em1 Samuel 21. Os sacerdotes descum priam a lei, no entanto estavam isentos de culpa, pois servir ao povo é mais im por­tante do que regras rituais.

Qual seria a visão correta de Deus em relação ao sábado?

M as eu vos digo que aqui está quem é m aior do que o

tem plo (Mt 12.6).

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Nessa passagem, Jesus basicamente diz: "Quer dizer que

vocês dão grande importância à santificação da adoração no

templo? Então tenho novidades para vocês"’ A expressão que

Jesus usa — aqui está quem é maior do que o templo — apon­

ta para ele mesmo. Seu argumento era que, se os regulamentos

relacionados ao templo podiam ser colocados de lado em casos

de necessidade, quanto mais poderiam ser colocados de lado

na presença de alguém muito maior do que o templo?

Assim, Jesus começa a corrigir a visão que os fariseus

tinham de Deus. Não fica claro se eles entenderam que Jesus

estava se referindo a si mesmo como sendo "maior do que o

templo”. Talvez eles não tenham dado importância ao que Jesus

disse. De qualquer modo, com essa declaração Jesus começa a

mudar a teologia. Kle começa discutindo as regras relativas ao

sábado, mas agora volta sua atenção para o Senhor do sábado.

Jesus abordará a visão que os lariseus têm tíc Deus declarando

a realidade de que ele c Deus. Mais uma vez, ele expõe a aplica

ção da interpretação equivocada (a má teologia) simplesmente

ao interpretar, de forma correta, a Escritura.

Jesus corrige a interpretação que os lariseus iaziam da

Palavra de Deus, pois era ali que o erro deles começava, levan­

do a uma má aplicação. Mas também podemos ver que a inter­

pretação e a aplicação que os fariseus Iaziam moldavam tudo

aquilo que eles pensavam sobre Deus. Por serem os fariseus,

os mestres de sua época, a visão que tinham de Deus tendia a

se tornar a visão que o povo tinha de Deus, e ela estava longe

da verdade. Assim como nos dias de hoje, quando as pessoas

esperam que os pastores interpretem as Escrituras para elas e

aceitam sua aplicação sem mesmo refletir sobre as Escrituras,

JESUS, 0 INTÉRPRETE

os fariseus carregavam em seus ombros um a grande responsa­

bilidade e não a desempenhavam bem.

Foi por esse motivo que Jesus prosseguiu, fazendo um a

declaração impactante sobre quem Deus cie fato era.

:mmi e a reiacao cte i$ems a

Sc, poroni, soubésseis o que signilica: Quero misericórdia, e

não sacriíícios, não condenaríeis os inocentes. Porque o Pilho

do homem é Senhor do sábado (Mt 12.7,8).

Os lariscus Itmdameníalnieriíe acreditavam que Deus era como eles. No seu rígido legalisnio, acreditavam que estavam

agindo de lorma consislente com a vontade e o caráter de

Deus. Assim, Jesus mais uma ve/ apela para a Palavra de Deus

a í ini de reinterprclar para eles quem realmente 6 Deus. uQue-

ro misericórdia, e não sacrilícios” é uma citação de Oseias 6.6.

Hssas referencias à I scritlira podem parecer misteriosas para

nós, mas jesus sabe o quanto cias signif icavam para os lariscus.

Sempre que Jesus cita o Antigo Testamento para os fari­

seus, ele está mostrando onde eles falham na interpretação

e aplicação que (azem da lei. Aqui, ele essencialmente esta

dizendo: “Vocês pensam que Deus é como vocês, mas estão

errados; Deus e misericordioso e, portanto, coloca os atos de

misericórdia acima dos atos de sacrifício. Deus quer que aque­

les que estão famintos comam, e não que passem fome. Deus

não condena os inocentes. Para entender a Deus e para aplicar

esse entendimento, é preciso mostrar misericórdia para com

os outros”.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Desde o princípio, é possível ver claramente a m isericór­dia de Deus. Ele poupou Adão e Eva da completa e imediata aplicação de sua ira, dando a eles e a todos nós a oportunidade de nos convertermos a ele e sermos salvos. Na verdade, a res­posta de Deus ao primeiro pecado é um ato de misericórdia e bondade: “E o S e n h o r Deus fez roupas de peles para Adão e sua mulher, e os vestiu” (Gn 3.21).

Até mesmo na Lei, com todos os seus regulamentos, Deus ainda arrum a meios de m ostrar sua misericórdia para todos aqueles que não conseguem cum prir a Lei — o Dia da Expia­ção, em Levítico 16. Esse é um Deus misericordioso. Ele não é como os fariseus: legalistas, duros, hipócritas e implacáveis. Esse Senhor misericordioso entrou em cena para confrontar os fariseus e seu impiedoso legalismo.

Jesus encerra essa seção descrevendo a si mesmo, no ver­sículo 8, como o Senhor do sábado. A expressão “Aqui está quem”, no versículo 6, como sendo maior que o templo aponta para alguém. É como se houvesse vários degraus a percorrer na apresentação que Jesus faz de si mesmo aos fariseus, e agora tivéssemos chegado ao último degrau.

Q uando Jesus diz aos fariseus que “o Filho do Homem é o Senhor do sábado”, não fica claro se eles entenderam seu argu­mento. Embora haja vários níveis nessa declaração de Jesus, para nosso propósito imediato enfatizarei apenas este: Jesus está dizendo que Deus não está preso a nenhum a interpretação humana da Lei e certamente também não está preso à inter­pretação dos fariseus. Jesus interpreta e aplica a lei referente ao sábado de acordo consigo mesmo. Ele não é limitado pelo

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JESUS, 0 INTÉRPRETE

sábado, pois está acima do sábado. Somente ele sabe o que o sábado significa e como deve ser aplicado.

PRIMEIRO AS COISAS MAIS IMPORTANTES

Por todo o capítulo de Mateus 12 podemos começar a ver o padrão da estrutura interpretativa de Jesus. Jesus conhece todo o conselho de Deus. Ele sabe como tudo se conecta. Esse conheci­mento é a lente pela qual todos os fiéis devem aprender a inter­pretar a Palavra de Deus. Novamente afirmo que isso não requer um treinamento formal. O foco de Jesus não é o estudioso. Ele não corrige a interpretação dos fariseus dando a eles dicas de estudo ou repreensões por não se esforçarem o suficiente.

Em vez disso, Jesus corrige a incapacidade dos fariseus de crer. A interpretação deles sobre Deus afeta toda a obediência da nação a Deus. Milhões de pessoas tinham sido afetadas pela má aplicação devido à má interpretação que eles faziam. C on­tudo, em meio a tudo isso, ainda havia aqueles que tinham fé em Deus. Pelas evidências do Novo Testamento, parece que a maioria dessas pessoas não tinha educação formal.

A educação nunca foi a norma. Certam ente ela não é irre­levante, mas o testem unho das Escrituras é que a educação não é tão im portante quanto a imitação de Deus. Apenas quando educação e imitação estão relacionadas de forma apropriada podem os avançar para a aplicação. A aplicação correta vem da interpretação correta, e no capítulo seguinte veremos isso dem onstrado na vida de Jesus.

A m elhor e mais significativa interpretação feita por Jesus, a Palavra, foi sua interpretação de Deus. Ele nos m ostrou que

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Deus não é um mero fazedor de regras, mas um guia m iseri­cordioso, protetor e redentor. O Salvador faz muito mais do que apenas explicar quem Deus é e o que ele significa: ele nos mostra como viver de acordo com uma interpretação correta de Deus. Você não pode imitar alguém que não entende. Jesus está se certificando de que nós o entendamos. E, já que ele faz isso, devemos imitá-lo.

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Quatro

DA INTERPRETAÇÃO À APLICAÇÃOJesus, os fariseus e o sábado

Já vimos Jesus interpretar as Escrituras com palavras. Agora, enquanto caminhamos por Mateus 12, veremos Jesus interpre­tar as Escrituras com ações — aplicando às situações da vida real as implicações da interpretação bíblica adequada. No caso dessa passagem, ele faz isso ao desafiar diretamente a compreen­são dos fariseus em relação ao sábado e ao seu propósito.

Partindo dali, Jesus entrou na sinagoga deles. E estava ali um

hom em que tinha um a das mãos atrofiada; e, procurando um a

razão para acusar Jesus, eles o interrogaram : É perm itido curar

aos sábados? E ele lhes disse: Quem de vós é o hom em que, se

tiver uma só ovelha e num sábado ela cair num buraco, não a

pegará e a tirará de lá? Quanto mais vale um homem do que

um a ovelha! Portanto, é perm itido fazer o bem no sábado.

Então, Jesus disse àquele homem: Estende a mão. E ele a esten­

deu, e foi restaurada como a outra (Mt 12.9-13).

Jesus entrou na sinagoga, e os fariseus, ainda acred itan ­do que possuíam a in terpretação correta da lei em relação ao sábado, ten taram novam ente acusá-lo. No versículo 10,

COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

a pergunta deles revela seus motivos. Jesus responde e, atra­vés de suas palavras e ações, faz um a alegação surpreendente a respeito do sábado. Com sua pergunta, os fariseus queriam criar uma armadilha para Jesus, mas, quando ele interpretou a lei sobre o sábado para eles, revelou a intenção de Deus para o sábado, e, assim, revelou ser o único dos presentes no local que realmente entendia a Palavra de Deus.

Esse não foi o primeiro confronto público entre Jesus e os fariseus. Na verdade, a maioria de seus confrontos foi públi­co. Essa cena em particular aconteceu na sinagoga, um lugar consagrado e público. É seguro presum ir que outras pessoas no templo sabiam alguma coisa sobre essa rivalidade entre os fariseus — as autoridades na defensiva — e este recém-chegado que tinha um a habilidade incrível de não seguir as regras, mas, ainda assim, parecer inocente. Portanto, quando os fariseus perguntaram: “É permitido curar aos sábados?”, o silêncio deve ter sido tam anho que se poderia ouvir um mosquito voando.

A Escritura não nos informa sobre o tom da pergunta dos fariseus, mas nos informa a respeito do coração deles. Não é preciso ter muita imaginação para perceber quão indignada a pergunta provavelmente soou. Lembre-se, este é o mesmo dia em que os fariseus fizeram as perguntas a respeito das espigas e dos pães consagrados. A última coisa que Jesus disse antes de entrar na sinagoga foi: “O Filho do homem é Senhor do sába­do”. Os fariseus provavelmente viram isso como conversa fiada, pois Jesus estava basicamente acusando-os de serem incompe­tentes em um a área em que se supunha que eles fossem espe­cialistas. Agora, nessa passagem, eles estavam novamente com Jesus, desta vez na sinagoga, e com certeza se sentiam ofendi­dos, indignados e ameaçados.

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DA INTERPRETAÇÃO À APLICAÇÃO

A pergunta que fizeram não foi baseada na curiosidade, e sim na animosidade. Os demais judeus presentes na sinagoga provavelmente prenderam a respiração e, temerosos, olharam uns para os outros.

Mais cedo, naquele mesmo dia, Jesus, refutara verbalm en­te a interpretação farisaica da lei sabática; agora, ele aplica cor­retamente essa mesma lei. Apelando a um a situação não muito com um no sábado, ele expõe a má exegese ou má interpretação dos fariseus.

A LEI DA MISERICÓRDIA

E ele lhes disse: Q uem de vós é o hom em que, se tiver um a só

ovelha e num sábado ela cair num buraco, não a pegará e a

tirará de lá? (Mt 12.11).

A pergunta de Jesus revela a hipocrisia dos fariseus. Eles fariam o que consideravam ilegal no sábado se fosse um de seus animais que caísse num buraco. Mais preocupante é que a interpretação que os fariseus faziam do sábado os levava a pensar que os animais eram mais im portantes que pessoas. (As associações em defesa dos animais devem ter um a dívida de gratidão com os fariseus nesse ponto.)

A pergunta de Jesus começa a deixar claro que esses vir­tuosos líderes religiosos agiam como se a cura de um hom em no sábado glorificasse menos a Deus do que socorrer um a ove­lha que tivesse caído num buraco.

Devo confessar que sou totalmente urbano. Somente uma vez estive perto de uma ovelha, e me lembro apenas de duas coisas sobre essa experiência. Eu já era cristão na ocasião; assim, lembro

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

de ter sido impactado emocionalmente pela maneira como Deus usa a ovelha como uma metáfora na Escritura. Lembro-me de ter pensado em Jesus como o Cordeiro de Deus. Também me passou pela cabeça que todos nós somos meras ovelhas e que os lobos algumas vezes aparecem para tentar nos destroçar. Não consigo transformar em palavras a emoção daquele momento, mas essa emoção teve um profundo impacto sobre mim.

Minha outra impressão foi menos filosófica. Eu me lem­bro de como a ovelha era grande. Nem todas as ovelhas ficavam daquele tamanho, mas essa pesava tranquilam ente uns cento e trinta quilos. As ovelhas pareciam bolas sujas de algodão cor­rendo pelo pasto. Um homem se aproximou e perguntou se eu queria segurar uma delas, e olhei para ele como se ele esti­vesse me pedindo dinheiro emprestado. Mesmo com a im a­gem do Salvador como um cordeiro, ou ovelha, ainda fresca na m inha memória, eu não era assim tão sentimental a ponto de pegar uma delas. Sem mencionar que a ovelha que o homem me apontou não parecia uma ovelha, mas um búfalo. Aquela era bem grande! Talvez o pobre homem tenha pensado que, por eu também ser um cara grande, poderia lidar com a ove­lha. Mas imediatamente pensei naquele programa de televisão When Animais Attack (Quando os animais atacam). Tudo que podia imaginar era esse programa sendo apresentado por todo o mundo m ostrando a ovelha acabando comigo. Não senhor! Prefiro admirá-las só de longe.

Portanto, se a ovelha à qual Jesus se referiu fosse do tam a­nho daquelas que vi naquele dia, então definitivamente daria um enorme trabalho retirá-la de um buraco.

A hipocrisia dos fariseus era óbvia. Daria muito mais tra ­balho retirar um a ovelha de um buraco do que Jesus curar a

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DA INTERPRETAÇÃO À APLICAÇÃO

mão de um homem. Mesmo assim, a quantidade de trabalho não era a principal preocupação de Jesus. Em vez disso, ele queria m ostrar o valor comparativo da criatura socorrida.

“Quanto mais vale um homem do que uma ovelha!”, dis­se Jesus no versículo 12. “Portanto, é permitido fazer o bem no sábado.” O principal argumento que Jesus queria defender é que a conduta ética é sempre mais importante do que a obediên­cia cerimonial. Era difícil para os fariseus entenderem isso. Na interpretação e aplicação que os fariseus faziam da Lei, os rituais tinham se tornado maiores que a misericórdia e o amor. Eles ficaram tão presos a sua má interpretação, que há muito tinham perdido a clareza do que realmente significava honrar o Senhor.

Vamos dar uma olhada naquele momento, no final do ver­sículo 12, quando Jesus já tinha parado de falar, mas ainda não tinha agido. Qual você acha que foi a resposta ao argumento de Jesus sobre o valor de um homem em comparação com uma ovelha? Acredito que Jesus falou e depois parou, olhou para os fariseus por alguns segundos, apenas esperando. E acho que seu olhar foi seguido por um longo e embaraçoso silêncio, enquanto os presentes olhavam de um lado para outro, para Jesus e para os fariseus.

Ninguém esperava com mais ansiedade do que o hom em cuja mão precisava ser curada.

Não fica claro há quanto tempo o hom em tinha problema na mão, mas a fama de Jesus já havia se espalhado. O hom em provavelmente sabia que, se Jesus chamasse alguém, a menos que a pessoa fosse um líder religioso ou um cobrador de im pos­tos, provavelmente seria para uma boa causa. Assim, acredito que a sala, naquele momento, foi inundada por um silêncio tenso, sepulcral. Cada pessoa ali presente poderia ouvir não

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

só as batidas de seu próprio coração, mas a pergunta de Jesus aos fariseus ecoando por toda a sinagoga, e até os animais se alimentando a poucos quilômetros dali.

Esses fariseus ficaram perplexos ou eram demasiado tei­mosos para reconhecer que Jesus estava certo. Você pode ver por que Jesus ficou zangado com eles? Eles criaram um rígido conjunto de regras hipócritas e, ainda por cima, acreditavam que Deus era exatamente como eles. Não foi à toa que não reco­nheceram Jesus! Estavam procurando por um Messias que fosse duro, hipócrita e que odiasse o pecador — alguém que honrasse sua religiosidade e expulsasse do templo qualquer um que fos­se indigno de ali adorar. Eles estavam errados, e o pecado deles nos serve de lição: a má interpretação resulta em má aplicação. Se eles tivessem prestado atenção em Jesus, teriam aprendido a interpretar corretamente a Escritura, o que os teria levado a agir de forma correta. Eles teriam entendido o que é misericórdia.

MISERICÓRDIA APLICADA

Então, Jesus disse àquele homem: Estende a mão. E ele a esten­

deu, e foi restaurada como a outra (Mt 12.13).

A interpretação correta resulta na aplicação correta. Fazer o bem no sábado realmente está de acordo com a lei.

Nesse versículo, o que pode facilmente passar desper­cebido é como a mão do homem foi curada. Jesus não che­gou a tocá-lo. Na verdade ele não executou trabalho nenhum . Tecnicamente, ele nada fez para curar o homem — nenhum a cirurgia, nenhum a mágica, nenhum a massagem com óleos, nada. De certo m odo ele nem mesmo desrespeitou a interpre­

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DA INTERPRETAÇÃO À APLICAÇÃO

tação dos fariseus da lei sabática, pois tudo que fez foi dizer ao homem: “Estende a mão”.

Contudo, quando Jesus falou, a realidade foi alterada, assim como na criação. A mão do hom em foi milagrosamente curada. Acredito que Jesus teve a intenção de fazer tudo isso. Os fariseus estavam acusando Jesus de desrespeitar a lei; assim, Jesus — o Senhor do sábado — curou o hom em de uma m anei­ra que só Deus poderia fazer. Como todos os demais milagres de Jesus, esse foi mais uma prova de sua alegação de ser ele o Filho de Deus. Mediante essa m ostra sobrenatural de m ise­ricórdia, a glória de Deus deveria ser com emorada por todos aqueles que testem unharam o acontecimento.

A cura na sinagoga foi claramente realizada por Deus. Também foi uma indiscutível evidência de que o Filho do Homem é o Senhor do sábado. Todos, incluindo os fariseus, deveriam se alegrar ao ver Deus agindo em seu meio. Infeliz­mente, os fariseus não podiam enxergar além daquilo em que acreditavam: para eles, o que Jesus estava fazendo não era cor­reto. Tivessem eles se interessado mais pela Escritura e menos por regras que adicionaram a ela, poderiam ter visto que Jesus estava dem onstrando como Deus realmente é.

INTERPRETANDO O DESCANSO DO SÁBADOVocê se lembra de que, no capítulo 2, aprendemos que os fari­seus faziam listas de verificação para a lei de Deus? Eles tinham uma lista com 39 atividades que alegavam ser proibidas no sábado. Mateus 12.1-14 m ostra atividades permitidas pela lei mosaica, mas proibidas pela má interpretação que os fariseus faziam da Lei. Por ensinarem essas regras de forma regular e bem rígida, os israelitas acabaram perdendo completamente o

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

propósito do sábado — lembrar-se de agradecer a Deus como provedor de todas as coisas — e o substituíram por um medo constante de desobedecer à regra 37... ou seria à regra 19?

As ações de Jesus em Mateus 12 representam a aplicação correta baseada na interpretação correta, especialmente do quarto mandamento, aquele referente ao sábado. Vamos olhar novamente duas passagens-chave do Antigo Testamento que estabelecem o mandam ento do sábado:

Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias traba­

lharás e farás o teu trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do

S e n h o r teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem

tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva,

nem teu animal, nem o estrangeiro que vive contigo. Porque

o S e n h o r fez em seis dias o céu e a terra, o m ar e tudo o que

neles há, e no sétimo dia descansou. Por isso, o S e n h o r aben­

çoou o dia de sábado e o santificou (Éx 20.8-11).

Guarda o dia do sábado, para o santificar, como te ordenou

o S e n h o r teu Deus; seis dias trabalharás e farás todo o teu

trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do S e n h o r , teu Deus.

Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem

tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu boi, nem teu

jumento, nem qualquer animal teu, nem o estrangeiro que vive

em tuas cidades; para que teu servo e tua serva descansem como

tu. Lembra-te de que foste escravo na terra do Egito e que o

S e n h o r , teu Deus, te tirou dali com mão forte e braço estendido.

Por isso, o S e n h o r , teu Deus, te ordenou que guardasses o dia

do sábado (Dt 5.12-15).

68

DA INTERPRETAÇÃO À APLICAÇÃO

O sábado se relaciona com o descanso. Desde o princípio, Deus criou a humanidade para espelhar sua misericórdia, bon­dade e fidelidade. Embora o pecado obviamente tenha alterado nossa habilidade de fazê-lo com perfeição, isso nunca mudou a intenção de Deus. Teologicamente falando, o descanso é parte de como Deus nos ajuda a fazer o que ele nos criou para fazer; ele representa uma reversão da caótica infiltração do pecado. Em um grau significativo, o descanso sabático está relacionado a um retor­no ao jardim do Éden, a um estado de paz. Esse tipo de repouso é um destino — o objetivo final para todo o povo de Deus que crê.

Q uando Deus escolheu Israel para ser seu povo, ele disse que iriam deixar o Egito em direção a Canaã para que recebes­sem descanso. Para eles, o sábado estava relacionado à imitação de Deus, que descansou de sua obra no sétimo dia. Sempre que eles pensavam no sábado, pensavam no descanso. No sábado, toda a nação deveria descansar.

Os fariseus interpretaram erroneam ente o descanso sabá­tico como se significasse evitar quase todo tipo de atividade. Eles viam o descanso como todo adolescente vê — como não fazer nada. Mas parece que a lei sabática tinha em mente um tipo específico de atividade que constituía o verdadeiro descanso.

Olhe atentam ente para o trabalho a que Êxodo 20 se refere. O versículo 9 fala sobre fazer “o teu trabalho” seis dias por semana. A seguir, o versículo 10 nomeia categorias dife­rentes de pessoas e animais que não deveriam trabalhar no sábado. Esses versículos apontam para um tipo específico de trabalho — o trabalho assalariado. O principal foco, aqui, é qualquer trabalho para ganhar a vida.

O sábado é o único dia em que os judeus deveriam des­cansar de seu trabalho para se lembrarem do Deus que provê.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Quando Deus descansou, em Gênesis 2.1,2, ele descansou de sua obra, após ver que o que tinha feito era bom. Então, ele separou um dia para que o homem, que ele criaria à sua im a­gem, pudesse refletir sobre tudo aquilo que era bom.

D euteronôm io 5 indica que Israel deveria usar o sábado para refletir sobre sua libertação da escravidão no Egito. Não era um dia de inatividade, mas um dia de adoração e reflexão sobre o Deus de sua salvação. Mesmo hoje, nós, como povo de Deus, precisamos dessa reflexão. Em toda essa frenética ativi­dade da vida m oderna, é fácil nos esquecermos de Deus. É fácil ficarmos entretidos com várias outras coisas e acabarmos não lendo a Bíblia nem meditando em como Deus foi bom ao nos salvar pela sua graça.

Os fariseus interpretaram as referências ao trabalho nes­sas passagens como se significassem que deveríamos cessar todas as nossas atividades. Entretanto, em nenhum a passa­gem da Escritura você encontra Deus inativo dessa maneira. Da perspectiva de Deus, o descanso não é a falta de atividade. Deus sustenta todas as coisas pela palavra de seu poder (Hb 1.3); assim, se Deus descansasse de toda atividade no sétimo dia, tudo deixaria de existir a cada semana! Teríamos seis dias de atividade e depois, nada. Deus teria de criar tudo a cada sete dias, e a mesma semana de criação se repetiria para sempre.

Deus claramente não é fã da inatividade. Foi ele que estabeleceu o trabalho como a tarefa principal do ser hum a­no, mesmo antes da queda (v. Gn 2.15). Assim, a preguiça é desprezada na Escritura (v. Pv 19.24). Paulo censurava aqueles na igreja que se recusavam a trabalhar (2Ts 3.6-12). E, apesar dessa passagem não estar relacionada ao sábado, ela enfatiza a conexão entre trabalhar e glorificar a Deus.

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DA INTERPRETAÇÃO À APLICAÇÃO

Assim, o sábado não está relacionado à inatividade, mas a um tipo de atividade diferente da que fazemos no restante da semana. A atividade proibida é aquela que produz prosperida­de material, é a aquisição de coisas legítimas de que precisamos para viver, mas que podem facilmente tornar-se ídolos. Mas nada no mandam ento de descanso sabático proíbe a obra do amor. A Escritura diz que você deve descansar de seu trabalho, mas nunca diz que você deve descansar da obra de Deus.

Essa é a reinterpretação da Palavra de Deus que Jesus apresenta aos fariseus. Depois, ele exemplifica sua aplicação. O descanso não é a falta total de atividade. Descanso é a busca de se fazer aquilo que é bom. Isso é o que Jesus estava fazendo na sinagoga, diante dos olhos dos fariseus, lançando luz sobre seu papel como o Senhor do sábado. Jesus tem a autoridade de interpretar a lei corretamente e tem a habilidade de usar a lei de maneira a dar descanso para seu povo. A Escritura interpretada de forma apropriada faz justamente isso — auxilia-nos a enten­der e, portanto, a descansar em Deus.

O DESCANSO É UMA PESSOA

O descanso como um a categoria teológica se encontra por toda a Escritura. D escansar totalm ente em Deus é precisa­m ente o que foi perdido no jardim do Éden; assim, a recu­peração gradual do estado de perfeito descanso bíblico, que culm ina na volta de Jesus e na instituição do novo céu e da nova terra, é central para tudo o que Deus está fazendo hoje e tudo o que ele tem feito desde a queda. Toda obra de Deus através dos tempos aponta para Jesus como a plena in terpre­tação de Deus.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Corretamente interpretada, toda a Escritura leva a Jesus. Toda a página da Bíblia aponta para ele. Ele é o Messias pro­metido, mesmo antes de Adão e Eva serem banidos do jardim. Ele é o Salvador que viveu uma vida santa e foi pendurado na cruz para pagar o preço dos nossos pecados. E ele é o Senhor que retornará no fim. O descanso em Deus, que foi perdido em Gênesis 3, está sendo devolvido a nós e será plenamente devol­vido na pessoa e obra de Jesus Cristo.

Se os fariseus tivessem prestado atenção, poderiam ter começado a perceber isso, antes mesmo de toda a questão a respeito da alimentação e da cura no sábado. Pois, pouco antes desses encontros, Jesus deixou isso bem claro publicamente:

Vinde a m im , todos os que estais cansados e sobrecarregados,

e eu vos aliviarei.

Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou m an­

so e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma.

Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve (Mt 11.28-30).

Jesus está dizendo que, se aprenderm os com ele e fizermos a obra que ele faz (“tomai sobre vós o meu jugo”), conhecere­mos descanso. O descanso não é produzido pela inatividade. E produzido pelo trabalho, mas o tipo de trabalho correto, o trabalho que im ita aquele que é, em si mesmo, nosso descanso. Descansar é tom ar sobre si o jugo da graça, em vez do jugo da Lei (o jugo dos fariseus). O caminho do descanso é o caminho da imitação de Cristo, quando procuram os ser como ele, que sempre confiou com perfeição no Pai para todas as coisas.

Em Mateus 11.29, Jesus cita Jeremias 6.16: “Assim diz o S e n h o r : Ide às ruas, olhai e perguntai pelos caminhos antigos,

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DA INTERPRETAÇAO A APLICAÇAO

qual é o bom caminho, e andai por ele; e achareis descanso para vós”. Descansar é andar pelas veredas que são boas. O descanso para nossas almas não resulta da ausência de atividade, mas da presença em fazer aquilo que é bom. Ser misericordioso, até mesmo no sábado, é im itar Jesus.

Esse é o motivo de no Novo Testamento não sermos ape­nas chamados a descansar em um dia. Somos chamados a des­cansar em uma pessoa. Descansamos no bem do evangelho. Descansamos em Jesus. O sábado não é para ficar na cama descansando de todas as coisas. Nós caminhamos e descansa­mos no bem do sacrifício de Cristo. Nós o fazemos sabendo que, até mesmo quando falhamos, ele é gentil e humilde.

A graça e o perdão dos pecados são o jugo de Jesus. E, quan­do descansamos como cristãos, devemos obedecer à ordem de Deus para nos lembrarmos de que fomos salvos da escravidão do pecado. Nosso Egito não é um país concreto do qual fomos res­gatados. Nosso Egito é a poderosa escravidão do pecado. Deve­mos refletir sobre isso quando descansamos em Deus. É isso que significa o sábado. Nós não somos mais chamados a descansar em um dia. Somos chamados a descansar em uma pessoa.

Não estou querendo ensinar como exatamente os cristãos deveriam guardar o sábado. Estou apenas dizendo que praticar o descanso do modo que Deus deseja para nós, seja no sábado, seja em qualquer outro dia, é refletir sobre a bondade de Deus na criação e na salvação. O mandam ento para o descanso foi dado coletivamente para a nação de Israel, e acredito que deve­ria ser uma prática coletiva para a igreja.

Para a maioria de nós, é isso que alcançamos nas reuniões dominicais. Reunimos-nos coletivamente, como um corpo local de fiéis, para cantar, celebrar, refletir e expressar am or e

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

misericórdia uns para com os outros em palavras e obras. Em todas essas coisas, nós imitamos e obedecemos ao nosso Deus trino. Em Mateus 12, Jesus interpretou o sábado corretamente após os fariseus por muito tempo o terem interpretado de for­ma equivocada. Jesus podia interpretar a palavra corretamente por ser o objeto da Palavra de Deus. Jesus é verdadeiramente o Senhor do sábado. Tudo é sobre ele, portanto ele constante­mente está explicando o que a Escritura quer dizer, e sua inter­pretação está sempre correta.

E importante que percebamos isso. Em Mateus 12, Jesus faz muito mais do que corrigir a interpretação dos fariseus. Ele faz muito mais do que interpretar a Escritura corretamente. Ele estabelece a base para a interpretação correta. Como veremos no próximo capítulo, há aqui algumas pistas para seguirmos. E essas pistas não são extraídas de livros acadêmicos. Nós as encontramos ao analisarmos, de forma cuidadosa, como Jesus interpreta a Escritura. Não é tão difícil assim. Não é preciso muita inteligência.

Deus usa os tolos para envergonhar os sábios. Os tolos podem fazer diferença. Se alguma vez já se sentiu arrasado pelos brilhantes intelectuais que conhece, se alguma vez já sen­tiu que deveria estar entre os mais idiotas dos idiotas, você não está sozinho: bem -vindo ao clube!”.

Milhões de cristãos se sentem assim. A pergunta que faço é: E agora, o que fazer?

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Cinco

DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIAReconhecendo os obstáculos à interpretação

Para o cristão típico, a habilidade de interpretar a Bíblia do modo que Jesus fazia quase se tornou um a arte perdida. Q uan­do qualquer grupo de fiéis confia muito em um grupo relati­vamente pequeno de intérpretes oficiais, algumas coisas não muito boas podem acontecer.

Algumas vezes, os intérpretes realmente são necessários. Podemos ser gratos pelo fato de alguns líderes terem se levanta­do contra várias heresias na igreja primitiva e porque a cam pa­nha agressiva de M artinho Lutero por uma interpretação correta da Escritura deu início à Reforma. Mas onde quer que os cris­tãos tenham livre acesso à Bíblia (na época de Lutero eles não tinham, como não têm em muitos lugares no mundo de hoje), a dependência em receber uma interpretação de uma elite de intérpretes pode tornar-se rapidamente um fator negativo.

Deixe-me colocar desta maneira: aprender com os outros é algo que está em plena concordância com a Bíblia, porém apren­der somente com os outros não está. O povo de Deus jamais pode negligenciar sua responsabilidade pessoal e fundam en­tal de entender a Palavra. Todo fiel se colocará diante de Deus

COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

e prestará contas daquilo que interpretou e aplicou. Deus come­çara com aquilo que cada um de nós sabe sobre o que a Escritura está dizendo, não com aquilo que pensávamos saber pela inter­pretação de outros. É de vital importância que todos os cristãos sejam imitadores de Jesus na interpretação de sua Palavra.

Onde quer que os cristãos estejam, eles podem encon­trar professores e estudiosos da Bíblia. Não apenas na igreja. Essas pessoas estão na televisão, no rádio e na internet. Estão no twitter e nos blogs, e algumas delas gravam até músicas de rap. Anseiam por nossa atenção em milhares de livros e pilhas de revistas. E seja na imprensa, no rádio ou em áudio, elas nos alcançam nas telas de qualquer aparelho digital que alguém possa imaginar.

Não tenho dúvidas de que ensinar e explicar corretamente o evangelho e a Bíblia seja uma coisa boa. Paulo celebrava a pregação do evangelho mesmo quando era feita por motivos pecaminosos (Fp 1.12-15). Mas há o lado negativo também. Só porque a Bíblia está sendo ensinada não significa que a natu­reza decaída da criação não esteja atuante, m isturando um mal significativo naquilo que é bom. Geralmente enxergamos cada um desses professores como um especialista, alguém dotado de rara habilidade. Eles não são como nós — assim, como podere­mos fazer o que eles fazem?

Rodeados por professores, pregadores, oradores e escri­tores que são mais inteligentes e mais bem preparados do que nós, fica fácil acreditar que o cam inho para com preender a Escritura é apenas para os corajosos e estudiosos, para fiéis audaciosos do tipo Indiana Jones, prontos para viajarem pelas cavernas escuras e tenebrosas do hebraico e do grego. A m aio­ria de nós nem mesmo consideraria trilhar esse caminho. Nós

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

concluiríamos facilmente que a questão da interpretação da Escritura é tarefa para outros, não para nós.

Mas isso não é realmente verdade, não é mesmo? A per­gunta Acaso não lestes? é dirigida tanto a nós quanto era àque­les que a ouviram da boca de Jesus. É um a responsabilidade que vem com a salvação.

A autorrevelação de Deus está no livro que chamamos de Bíblia. Ele preparou o conteúdo desse livro de m odo que pudéssemos entendê-lo e nos enviou o Espírito como Ajuda- dor. Por causa disso, todos nós podem os utilizar esse livro para aperfeiçoar nosso relacionamento com Deus. Somos cham a­dos a interpretar a Escritura ao lado de nossos amados teólogos— não atrás deles. Sim, eles a conhecem muito mais do que nós, e sempre estaremos atrás deles em term os de conhecim en­to mais elaborado, mas, como cristãos, temos de ser como os de Bereia, que “se m ostraram muito interessados ao receber a palavra, examinando diariamente as Escrituras para ver se as coisas eram de fato assim” (At 17.11). Eles não diziam: “Paulo é inteligente e nós somos uns tolos; assim, tudo que ele disser está correto”. Não! Esse pessoal checava as Escrituras de m odo que podiam ver se o que ele dizia era verdade.

O bom ensino é um dom de Deus para seu povo. Mas se fo r assim que você está tendo a maior parte de seu entendimento bíblico, alguma coisa deve estar errada.

Então, o que devemos pensar a respeito de nós mesmos? Devemos permanecer em relativa ignorância bíblica por toda a vida? Ora, Jesus não disse que precisamos ir para uma escola para entender as Escrituras, então como podemos nos aperfei­çoar no entendimento da Bíblia?

77

COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

UTILIZANDO A ESCRITURA COMO JESUS

Uma das características mais interessantes dos discípulos é que eles não eram pessoas instruídas. Não eram nem mesmo os melhores “instrumentos” de que Deus dispunha; no entanto, eles transformaram o mundo. E o fizeram explicando a Palavra de Deus e vendo-a surtir efeito. Sei que estou sendo simplista aqui, mas a simplicidade é a questão. Todos os fiéis deveriam ser capa­zes de interpretar a Bíblia com pouca ou nenhuma educação em teologia. Jesus nos mostrou como fazê-lo da forma correta. Ele estabeleceu uma estrutura interpretativa que, se seguida, pode aumentar o nível de entendimento de qualquer pessoa.

Que estrutura interpretativa é essa que ele nos deixou para que a imitássemos?

Nesse mesmo dia, dois deles seguiam para um povoado cha­

mado Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios; e iam

comentando tudo o que havia acontecido. Enquanto com en­

tavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a

acompanhá-los; mas os olhos deles estavam como que fechados,

de m odo que não o reconheceram. Então ele lhes perguntou: Do

que estais falando pelo caminho? Eles então pararam tristes. E

um deles, chamado Cleopas, respondeu: És tu o único visitante

em Jerusalém que não soube das coisas que ali aconteceram nes­

ses últimos dias? Ele lhes perguntou: Quais? E eles responderam:

As que dizem respeito a Jesus, o Nazareno, que foi profeta, pode­

roso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; como

os principais sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram

para ser condenado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos

que fosse ele o que traria a redenção a Israel. Além disso, já faz

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

três dias que essas coisas aconteceram. Também é verdade que

algumas mulheres do nosso meio nos encheram de espanto; pois

foram de m adrugada ao sepulcro dele e, não achando o corpo,

voltaram, afirmando ter tido um a visão de anjos que diziam que

ele está vivo. Alguns dos que estavam conosco foram ao sepul­

cro e confirmaram o que as mulheres haviam falado, mas não

o viram. Então ele lhes disse: Ó tolos, que demorais a crer no

coração em tudo que os profetas disseram! Acaso o Cristo não

tinha de sofrer essas coisas e entrar na sua glória? E, começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a seu respeito em todas as Escrituras (Lc 24.13-27).

Jesus interpretou as Escrituras dem onstrando que elas falavam sobre ele, aqui e em qualquer outra passagem. O pro ­cesso de revelar como a Escritura fala sobre o Filho foi funda­mental durante a vida terrena de Jesus. Sua vida e seu ensino demonstravam que a Escritura falava sobre ele. E, com a ajuda do Espírito Santo — o mesmo Espírito Santo que nos ajuda hoje —, os discípulos passaram então a im itar Jesus e a explicar aos outros que as Escrituras falavam sobre ele. Esse fato trans­formou o mundo. E ainda o está transformando.

A Bíblia é uma grande flecha lum inosa que aponta direta­mente para Jesus. Todos os fiéis deveriam ler a Bíblia sabendo que Jesus é o cum prim ento das profecias do Antigo Testamen­to e a garantia das promessas do Novo Testamento. Toda pági­na da Escritura fala sobre Jesus.

• A Bíblia não trata de Abraão ou Davi nem de qualquer outro simples personagem humano.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

• A Bíblia não trata de Israel nem da igreja.

• A Bíblia não trata da teologia reformada ou da arminiana.

• A Bíblia não trata do dispensacionalismo ou da teologia da aliança.

Não estou dizendo que essas coisas são irrelevantes para o cristianismo. Essas e muitas outras questões secundárias podem contribuir para o nosso entendimento da Escritura e da vida cristã. Mas todas essas questões não são tão importantes quanto o Salvador. Tudo na Bíblia que não falar sobre Jesus serve como um elo em uma cadeia de ideias que leva a Jesus. A Bíblia toda, cada página, fala sobre Jesus. Isso não significa que essas outras questões não tenham importância; significa apenas que sua importância é secundária.

Mais uma vez, só para ficar claro:

• A Bíblia não trata dos achados arqueológicos

• Ou de quem escreveu seus livros

• Ou se a homossexualidade e a hospitalidade são a ques­tão central da história de Sodoma e Gomorra

• Ou se o inferno é um destino perm anente de forma real ou literal

Será que essas questões são importantes? É claro que são. Todas essas questões são importantes. É muito bom ser capaz de rebater argumentos que rejeitam ou deturpam a Palavra de Deus. Mas, em algum momento, nós, como igreja, devemos levar a conversa de volta ao tema central da Bíblia. E esse tema

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

é Jesus. Se as pessoas não estão vendo isso, é porque m uitas vezes falham os em fazê-lo. É nossa responsabilidade ap ren ­der a in terpretar as Escrituras da m aneira que Jesus in te r­pretava, em vez de nos d istrairm os com m ilhares de outras coisas. E podem os perfeitam ente fazer isso.

Podemos fazê-lo porque, em Lucas 24, Jesus dá um curso de hermenêutica como nenhum outro, isto é, ele nos ensina a interpretar nossa Bíblia sem nenhum treinam ento formal.

Isso toma tempo e requer esforço, mas vale à pena. Mais im portante ainda, Deus espera que façamos isso.

UTILIZANDO A ESCRITURA COMO OS DISCÍPULOSA igreja é chamada para o evangelismo e o discipulado. Ambas as tarefas exigem interpretação e aplicação cuidadosas.

Evangelismo. Leia atentam ente o livro de Atos. Seja no caso de Pedro (At 2 e 3), Estêvão (At 7), Filipe (At 8) ou Paulo (At 13), cada um a das quatro apresentações do evange­lho interpreta a Bíblia como algo que fala de Jesus e é no rm al­m ente seguida de um incentivo para aplicar as Escrituras por meio do arrependim ento.

Discipulado. As Epístolas nos ensinam e nos exortam a aplicar as Escrituras, para que vivamos para a glória de Deus. Elas fazem isso por meio da interpretação e da aplicação, sen­do cada ensinamento e cada exortação baseados no evangelho, que, por sua vez, é baseado na pessoa e na obra de Jesus.

Não deveríamos aprender com esses exemplos? Por que a interpretação da Bíblia deveria ser diferente para nós, nos dias de hoje? Nosso chamado é o mesmo que o dos primeiros discí­pulos: imitar a Jesus através do evangelismo e do discipulado. E fazemos isso interpretando as Escrituras corretamente e, depois,

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

aplicando-as da forma correta. Jesus, o principal assunto das Escrituras e seu principal intérprete, deixou-nos esse exemplo interpretativo para que seguíssemos.

Entretanto, m inha preocupação é que, quando os cristãos desejam entender o que a Bíblia ensina, procuram qualquer outra coisa que não seja a Bíblia. Procuram livros em vez de procurar O Livro. Navegamos na internet para descobrir o que nosso pregador favorito tem a dizer sobre determ inada passa­gem ou assunto.

Às vezes me pergunto: Como as pessoas interpretavam e aplicavam a Bíblia antes de existirem os comentários? Como os antigos pais da igreja sabiam o que dizer e fazer? A resposta mais simples é que eles liam suas Bíblias, meditavam nelas, oravam sobre elas e as aplicavam. Com o tempo, o conhecimento tor­nou-se sabedoria. Com grande paciência e cuidadosa instru­ção, a informação realmente torna-se aplicação.

Quando lemos e estudamos nossas Bíblias, devemos cons­tantemente perguntar: “Como essa parte da Escritura aponta para Jesus?”. Você nem sempre enxergará a conexão direta, e não quer forçá-la para não perder de vista a intenção origi­nal do autor. Mas temos de aprender a ler nossas Bíblias de maneira contextuai e cristológica: ler cada passagem à luz do que estava acontecendo quando o autor a escreveu e à luz de quem Cristo é, uma vez que ele cum priu toda a Escritura. Os fiéis podem e devem ler suas Bíblias com a total confiança de que toda a Escritura fala sobre Jesus.

Em várias passagens, de várias maneiras e da perspectiva de diferentes pontos na história, a Bíblia nos diz quem Jesus é, o que ele fez, o que ele fará e o que ele está fazendo:

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

• Algumas vezes, as Escrituras estão nos preparando para a vinda de Jesus (como em Êxodo, Levítico, Isaías e Jeremias).

• Algumas vezes, elas nos m ostram que ele já está aqui (v. Mateus, Marcos, Lucas e João).

• Algumas vezes, elas nos explicam a importância de quem ele é e do que ele fez (como em Efésios e Hebreus).

• Algumas vezes, elas nos m ostram como viver por causa dele (como em Tiago, 1 Pedro e ljoão).

• E algumas vezes, as Escrituras nos dizem que ele está voltando (como em ITessalonicenses e Apocalipse).

Nossa responsabilidade como fiéis é interpretar a Bíblia de forma correta. Essa é também a principal maneira de im itar­mos a Deus. Se você começa e permanece com a ideia de que a Bíblia fala sobre Jesus, dificilmente errará.

Porém, se você se afasta dessa ideia, correrá o risco de errar.

A EU-LOGIA OU A TEOLOGIA DO EU E OS OBSTÁCULOS À INTERPRETAÇÃO

Enquanto lemos a Bíblia, deveríamos nos perguntar o que a passagem diante de nós está dizendo sobre Jesus ou como ela aponta para Jesus. Parece simples, certo? Infelizmente, não é. Dois principais obstáculos — as expectativas falsas e o peca­do — colocam-se no caminho de nossa habilidade de fazer isso consistentemente. Embora esses dois obstáculos estejam estreitamente relacionados e com frequência entrelaçados, vale a pena discuti-los separadamente. Juntos ou separados, eles

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

podem ter um enorme impacto negativo sobre nossa interpre­tação e aplicação da Palavra de Deus. Ou, em outras palavras, nossa eu-logia se coloca no cam inho de nossa teologia.

A eu-logia, parte 1: expectativas egoístas

Os fariseus odiavam Jesus. Eles o odiavam de forma consis­tente, previsível e colérica. Eles o odiavam por envergonhá-los. Eles o odiavam por reinterpretar suas regras opressoras. Eles o odiavam por ensinar os outros a interpretar a Escritura corre­tamente. Eles o odiavam por sua forma de interpretar as Escri­turas e de aplicá-las em relação a eles.

Jesus interpretava com palavras e obras. Sua explicação normalmente levava a uma ilustração, que resultava em frus­tração para os fariseus. Os fariseus nunca se saíam bem quan­do discutiam com Jesus! Eles o odiavam!

O mesmo acontece conosco, se formos honestos. Quando Jesus interpreta sua Palavra para nós, podemos odiá-lo também.

Como os fariseus, somos propensos a pensar que nossa interpretação da Palavra de Deus é a interpretação correta da Palavra de Deus. Lemos uma passagem, refletimos sobre ela, fazemos nossa interpretação, fazemos a aplicação com base em nossa interpretação e seguimos em frente. Em muitos casos, essa é uma boa maneira de interagirmos com nossa Bíblia, especialmente com relação aos imperativos — passagens que nos dizem o que fazer e o que não fazer. Mas isso não funciona tão bem quando chegamos a algumas promessas da Escritura. Na verdade, essa é a área em que mais imitamos os fariseus. Lemos umas das muitas promessas maravilhosas na Bíblia, interpretamos essa promessa da maneira que achamos mais

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

desejável e esperamos que Deus aja de acordo com nossa inter­pretação. Fazemos com que as promessas signifiquem aquilo que queremos que elas signifiquem e, então, imaginamos que Deus nos apoiará, perm itindo que os eventos aconteçam da maneira que pensamos que eles devem acontecer.

Tome por exemplo um dos versículos mais apreciados em toda a Escritura (pelo menos no meio que frequento) e aquele que eu mesmo regularmente utilizava de forma correta e de forma incorreta. Romanos 8.28 diz: “Sabemos que Deus faz com que todas as coisas concorram para o bem daqueles que o amam, dos que são chamados segundo o seu propósito”. Esse versículo tornou-se para muitas pessoas um cheque em branco da soberania divina, garantindo que tudo será fácil. Q uando a dificuldade aparece, rapidamente lembramos uns aos outros: “Deus é soberano”, e ele realmente é. Assim, proferimos a expressão e apontamos para Romanos 8.28, mas quantas vezes ficamos com a impressão — e quantas vezes tentamos dar a impressão — de que isso significa que tudo acontecerá de acor­do com nossas preferências?

Já ouvi Romanos 8.28 ser utilizado para dizer às pessoas que seus filhos irão se arrepender e crer no evangelho. Isso pode até acontecer, mas o versículo não promete isso.

Já vi Romanos 8.28 ser utilizado para oferecer conforto de que alguém seria curado, conseguiria casar ou conseguiria o emprego que deseja. Novamente, essas coisas podem vir a acontecer, mas não há nada em nenhum a passagem da Bíblia e certamente nada em Romanos 8.28 que garanta isso!

Se tomarmos Romanos 8.28 ou algumas das outras pro­messas como base (mal interpretada), podemos agir exatamente

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

como os fariseus. Esperamos que Deus se alinhe às nossa inter­pretações e faça “com que todas as coisas concorram para o nosso bem”. É claro que o nosso “bem” não é, com frequência, o mesmo que o de Deus. Aquilo que esperamos que aconteça em muitos casos não acontecerá. Por quê? Porque, na verdade, o soberano é Deus.

Deus não nos revela as especificidades de sua vontade para a nossa vida. A Bíblia nos dá uma imagem clara do plano e do propósito mais amplos de Deus no evangelho, mas a parte espe­cífica que cada um de nós desempenha nesse plano permanece um grande mistério. No entanto, de alguma forma, muitas vezes colocamos nossa esperança nos detalhes de nossa interpretação, em vez de colocá-la na bondade e misericórdia de nosso sobe­rano e amado Deus. Quando isso acontece, esperamos ansio­samente que Deus cumpra sua “promessa” em relação a nós— quando, na verdade, aquilo não passa da nossa preferência.

Há uma diferença entre o que pedimos em oração e o que Deus prometeu. A oração muitas vezes está relacionada com o que queremos que Deus nos dê, mas as promessas se relacio­nam com o que Deus nos diz que já nos deu em Cristo. Todas essas promessas serão nossas, mas muitas delas não experi­mentaremos nesta vida. É por isso que temos esperança na próxima vida.

É bem mais fácil para nós depositarmos nossa esperança no que pensamos que a soberania significa em determinada cir­cunstância do que no simples fato de que Deus é soberano, fiel e bom. Quando insistimos em ver as promessas de Deus cum pri­das nesta vida, de acordo com o tempo da nossa teologia do eu e com os resultados desejados, podemos bem depressa ficar indig­nados com Deus por elas não se cumprirem. Ficamos irados,

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

amargos e confusos. Nós nos afastamos de Deus. Começamos a pensar nele como alguém que não é amoroso e imaginamos que, no lugar dele, faríamos um trabalho bem melhor.

Por um tempo, o que elefez por nós desaparece de vista, e tudo que conseguimos enxergar é o que ele não fez. Recusamo- nos a glorificá-lo por quem ele é e pelo que ele fez e julgamos a Deus com base no falso critério que fabricamos em nossa peca- m inosidade e limitação. Tornamo-nos fariseus. A única coisa que nos falta é um manto com franjas.

O que estamos tentando fazer é confinar Deus em nossa interpretação de sua Palavra. Ele deveria fazer o que gostaría­mos que ele fizesse. Ele deveria ser quem gostaríamos que ele fosse. Isso o tornaria um Deus bom. Isso provaria que ele é, na verdade, soberano. Mas Deus não é obrigado a se submeter à nossa interpretação de sua Palavra. Ao não agir do modo como nós gostaríamos, Deus, de forma misericordiosa, relembra-nos que ele é soberano, e não nossas interpretações.

Deus age de acordo com quem ele é, e não da maneira que queremos. Q uando nossas expectativas não são atendi­das, devemos crer que, seja o que for que Deus permita que aconteça, essa é a correta interpretação de sua Palavra aplicada àquela situação. A Escritura certamente fala sobre aquilo que Deus prometeu fazer por nós em Jesus, porém, bem mais do que isso, a Escritura fala sobre o próprio Jesus. Ela fala de quem ele é antes de falar do que ele faz. Nossa falta de fé em Deus se origina da má interpretação das Escrituras.

Por exemplo, se quiserm os in terpretar Romanos 8.28 corretam ente, devemos perm itir que Romanos 8.29 nos aju­de. “Pois os que conheceu por antecipação, também os p re ­destinou para serem conformes à im agem de seu Filho, a fim

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. O “bem” que Deus faz por nós é estarmos sendo conformados à imagem de Jesus.

Estamos ficando cada vez mais parecidos com Jesus atra­vés das circunstâncias que Deus perm ite que aconteçam em nossa vida, m esm o (e talvez especialmente) quando elas não se encaixam em nossas preferências. Isso envolve transform a­ção. Será que você realmente acredita que se transform aria na imagem de Jesus se não tivesse de enfrentar problem as na vida? Você não continuaria exatamente como é hoje? Por que arriscar o que está bom com um a transformação? Não, com maior frequência do que pensamos, a transform ação aconte­ce por meio do sofrimento, não do status quo. N orm alm ente precisamos ser forçados ao tipo de transform ação de que mais necessitamos — o tipo de transform ação que mais glorifica a Deus. Ao ler Romanos 8.28, nossas expectativas devem incli­nar-se para o sofrimento, e não para o resgate do sofrim en­to. Apesar daquilo que você possa ouvir de alguns mestres que quase sempre conseguem um a ampla audiência, a vida cristã não se constitui de bênçãos perpétuas — ao menos, não de bênçãos perpétuas segundo nós as definimos. Deus é soberano em nos tornar como seu Filho. Este é o cam inho da transformação, o caminho para nos aproxim arm os mais da imagem de Cristo.

A má interpretação vê expectativas egoístas na Escritura, mas a interpretação correta espera que a Escritura descreva e produza uma transformação centrada em Cristo, mesmo a um grande custo para essas expectativas egoístas que ainda trago comigo. Esse é o caminho da verdadeira bênção.

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

A eu-logia, parte 2: atenção seletiva

A outra maneira pela qual a má interpretação acontece é quan­do escolhemos ler a Bíblia de modo seletivo. Somente lemos aquilo que cremos ser relevante para nós no momento. O peca­do tenta nos convencer de que a Bíblia trata de nós e, portanto, de que não precisamos nos preocupar com aquelas partes da Bíblia que achamos não ter nada a ver conosco. Se você não pode aplicar essa passagem, negue-a. Esse tipo de pensamento impede que sejamos capazes de entender a Palavra de Deus como deveríamos. Mas essa é mais um a forma da eu-logia, e não da verdadeira teologia. Quando decido que algumas partes da Bíblia são benéficas para mim e outras não é porque cheguei à beira de um perigoso precipício. Lá embaixo me aguardam pedras afiadas, uma maré baixa e a im inente morte espiritual, caso eu resolva saltar. A maioria de nós é esperta o suficiente para não saltar, mas estúpida o suficiente para tentar descer. Isto é, nós não negamos a fé saltando do precipício, mas nos arrastamos precipício abaixo em um a interpretação egocêntri­ca da Escritura e, antes mesmo que possamos perceber, estare­mos muito distantes de Deus.

Por muitos anos eu fiz isso. Li a Bíblia de forma ego­cêntrica, afastando-me das melhores partes porque, naquele momento, “elas não me beneficiavam”. Eu era um verdadeiro teólogo da eu-logia. M inha leitura lim itada da Bíblia me levava a um Deus limitado. M inha leitura era lim itada e minha crença mais limitada ainda. Cheguei até a pensar e a defender que o Deus do Antigo Testamento era um Deus irado e que o Deus do Novo Testamento era um Deus bom. Eu não tinha a m enor compreensão de como todas as partes da Bíblia são interligadas.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Eu liderava pequenos grupos de estudo e utilizava porções pequenas da Bíblia para tentar ajudar as pessoas a com preen­der um Deus grande — um Deus que nem mesmo eu conse­guia enxergar. M inha leitura bíblica era indolente e na maioria das vezes egoísta. Eu lia a Bíblia apenas para benefício pessoal. Se tivesse lido mais cedo certas partes do Antigo Testamento, poderia ter aprendido com homens como Saul.

Em Samuel 15, na triste história do primeiro rei de Israel, que já discutimos antes neste livro, podemos encontrar outro exemplo de como não se deve interpretar a Palavra de Deus.

Samuel disse a Saul: O S e n h o r me enviou para te ungir rei

sobre seu povo Israel. Ouve agora as palavras do S e n h o r .

Assim diz o S e n h o r dos Exércitos:

Castigarei os amalequitas por terem atacado Israel quando

saía do Egito. Vai agora, ataca os amalequitas e os destrói total­

mente com tudo o que tiverem. Nada poupes; matarás homens

e mulheres, m eninos e crianças de peito, bois e ovelhas, cam e­

los e jum entos (ISm 15.1-3).

Deus deu a Saul uma clara responsabilidade, por inter­médio de Samuel, que parecia relativamente simples, embora possa soar estranha aos nossos ouvidos hoje (mas esse é um assunto diferente para uma época diferente): destrua Amale- que, todo o povo e todos os animais.

Saul, um m ilitar que sabia bem como receber e dar ordens, reuniu um exército de 200 mil homens valentes e foi à guerra contra os amalequitas. Eis o registro da Escritura sobre o que aconteceu:

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

Então Saul feriu os amalequitas, desde Havilá até chegar a

Sur, que está defronte do Egito. E capturou vivo Agague, rei

dos amalequitas, mas destruiu todo o povo ao fio da espada.

Entretanto, Saul e o povo pouparam Agague, como tam bém o

m elhor das ovelhas, dos bois e dos anim ais gordos, os cordeiros

e tudo o que era bom; eles não os quiseram destruir to talm en­

te, mas destruíram por completo tudo o que era inútil e des­

prezível. Então a palavra do S e n h o r veio a Samuel, dizendo:

A rrependo-m e de ter posto Saul como rei, pois deixou de me

seguir e não executou as m inhas palavras. Então Samuel ficou

indignado e clamou ao S e n h o r a noite toda (ISm 15 .7 -11) .

Nessa passagem, as duas palavras que obviamente se encontram fora do lugar são vivo e pouparam. Mas o que será que aconteceu aqui? Como Saul passou de “nada poupes” para “eles não os quiseram destruir totalm ente”? Ele fez exatamente o oposto do que lhe fora ordenado!

Nós sabemos que a razão disso foi o pecado, mas vamos examinar de forma mais detida como o pecado está agindo. Após Saul deixar o campo de batalha, Samuel, o profeta, vai ao seu encontro e Saul imediatamente diz: “Já executei a palavra do S e n h o r ” (ISm 15.13). Mas Deus já havia dito a Samuel que Saul tinha desobedecido à sua ordem. Além disso, Samuel ouvia perfeitamente bem. Assim, ele diz a Saul: “Que quer dizer este balido de ovelhas que me chega aos ouvidos e o mugido de bois que ouço?” (ISm 15.14).

Mesmo assim, Saul conta uma verdade parcial: “Trouxe­ram dos amalequitas, porque o exército guardou o melhor das ovelhas e dos bois para oferecer ao S e n h o r , teu Deus; porém

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

destruímos o resto totalmente”. Deus tinha claramente “consa­grado à destruição” (“consagrem ao Senhor para destruição”, n v i ) todo homem e animal dos amalequitas, e a tarefa de Saul era cum prir a ordem de Deus, destruindo tudo. Absolutamente tudo. Mas essa passagem dem onstra que os próprios ouvidos de Samuel tiveram a prova de que Saul ignorou a ordem de Deus. Para entender como isso é sério, precisamos saber o que “consagrado à destruição” significa para Deus:

Entretanto, daquilo que alguém possui, nenhum a coisa consa­

grada ao S e n h o r será vendida ou resgatada, seja hom em , seja

animal, seja propriedade da sua família; toda coisa consagrada

será santíssima ao S e n h o r . N enhum hom em que foi consagra­

do poderá ser resgatado; certam ente será m orto (Lv 27.28,29).

Da perspectiva de Deus, nada consagrado à destruição pode ser resgatado. Nada pode ser poupado. Seu destino é a destruição, e Deus diz que certamente deverá morrer. O que Saul fez foi muito mais sério do que ele percebeu. Foi uma desobediência a Deus e à sua Lei. Quando Samuel confrontou Saul, os pecados ocultos se tornaram evidentes. Saul quis suge­rir que seu principal pecado foi o tem or do homem: “Pequei, pois transgredi a ordem do S e n h o r e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz” (ISm 15.24). Mas ficou claro para Samuel (v. versículo 23) que Saul também era culpa­do de presunção, rebelião e idolatria.

A grande tenda na qual os pecados de Saul se congregavam era a tenda da adoração de si mesmo. Diante de um a ordem inequívoca, Saul confiou em si mesmo e obedeceu a si mesmo, e não a Deus. Ele deu atenção seletiva às claras ordenanças de

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Deus. A visão de Saul da Palavra de Deus foi egocêntrica, uma questão da teologia do eu, e não da verdadeira teologia; assim, sua interpretação da Palavra de Deus transform ou obediên­cia em conveniência. Para ele o que Deus ordenara tornou-se opcional. Ele passou do ter que fazer para o poder fazer.

A reinterpretação pela eu-logia é um a das principais m anei­ras de o pecado afetar nossa interpretação e aplicação da Palavra de Deus. Podemos pensar: “O que esta passagem faz por m im ?”, e não: “O que esta passagem diz sobre Deus?” O pecado diz: “A leitura da Bíblia está relacionada ao fato de como posso cres­cer como pessoa; assim, voltarei minha atenção para as partes que mais me auxiliam nessa questão”. O pecado diz: “Fixe-se nos provérbios e salmos que realmente falem com você”; “fixe-se nos Evangelhos e nas cartas com os mandamentos que lhe ensinam a viver”; “leia somente aquilo que você possa aplicar”. Assim, fica­mos preguiçosos e nos queixamos das partes da Escritura que parecem não ter nenhum a relação com nossa vida. Se a Bíblia não apela aos nossos sentimentos, não ficamos motivados a lê- la, mas achamos que está tudo bem.

Isso limita nossa habilidade de saber quem Deus é, pois nossa visão de Deus estará diretamente ligada ao que lemos e aplicamos de sua Palavra. Se nossa leitura bíblica for limitada, nossa habilidade de interpretá-la tam bém será. É dessa m anei­ra que tiramos a Escritura de seu contexto. A Escritura inter­preta a Escritura: você deve ler uma parte para entender outra parte. Assim, se não lerm os a Escritura, não interpretaremos a Palavra de Deus corretamente e, se não interpretarmos a Palavra de Deus corretamente, nossa aplicação tam bém poderá não ser a correta. Quando nossa interpretação e aplicação não forem corretas, nossa visão de Deus também não será correta.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Quando chegamos a esse ponto, a leitura da Palavra de Deus passa a ter tudo a ver com im pacto pessoal, e não com relacionam ento pessoal. Começamos a crer que a Bíblia fala de um Deus que vem ao encontro de nossas necessidades, e não de um Deus que nos perm ite ir ao encontro de seu Filho. O pecado coloca o eu acima de Deus, portanto faz todo o sen­tido o pecado tentar-nos a buscar a nós mesmos na Palavra de Deus, evitando as partes que nos pareçam irrelevantes. Qual foi a últim a vez que você leu Levítico, 2Crônicas, Sofonias ou Malaquias? Por que não lê esses livros? Eles nos ensinam coisas maravilhosas sobre Jesus. Se exam inarm os a nós m es­mos, podem os descobrir que esses livros não nos atraem por acharmos que eles não nos são benéficos. Precisamos parar de colocar o foco sobre nós mesmos quando abordarm os a Palavra de Deus.

E AGORA? APLICAÇÃO

A verdade é que, na maioria das páginas da Bíblia, nós, você e eu, não aparecemos. Mas Deus está em cada sílaba delas. Vamos ler a Escritura na sua totalidade, pois nós verdadeira­mente cremos que tudo nela foi inspirado por Deus. Cada par­te dela nos revela a natureza, o caráter e as ações do Deus que adoramos, de m odo que não podem os ver nenhum a de suas passagens como inútil ou irrelevante. Não podem os limitar a Bíblia a algo que seja simplesmente “bom para nós”. A Bíblia é bem mais do que isso. Ela é a própria Palavra de Deus.

Uma maneira pela qual podem os lutar contra a tentação de ler a Bíblia egoisticamente é nos com prom etendo a ler e a entender cada um de seus livros. Leva tempo. Exige esforço.

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DA EU-LOGIA PARA A TEOLOGIA

É preciso o auxílio do Espírito. Mas isso m udará sua visão de Deus e de sua Palavra.

Vamos aprender a ler as genealogias e as localidades onde as tribos se estabeleceram na Terra Prometida. Vamos ler as profecias obscuras e difíceis, que podem nos parecer tão irrele­vantes quanto as galáxias mais distantes. Vamos ler não apenas as passagens que pensamos que podem “nos ajudar”. Vamos ler aquilo que Deus nos deu, sabendo, confiando e crendo que cada passagem é um presente bom e perfeito. Se assim fizermos, esse tipo de leitura afetará nossa interpretação e nossa aplicação da Palavra de Deus. Nós realmente temos tudo que é preciso para interpretar corretamente a Palavra de Deus, pois Jesus, o Verbo de Deus, nos concedeu seu Espírito. Podemos e devemos ter con­fiança em que a leitura abrangente e profunda da Escritura esti­mulará nossa capacidade de interpretar corretamente a Palavra de Deus, de modo que possamos aplicá-la de forma correta. E, quando falharmos — o que certamente acontecerá —, a leitura abrangente e profunda da Escritura ajudará a nos lembrar de que Jesus deu sua vida pelos momentos em que falhamos com ele.

Jesus é o Intérprete, e todo cristão é um interprete. A im i­tação está acima da educação.

Repito novamente que a educação não é algo ruim. Eu o encorajo a buscá-la, se você puder. Ela fará uma grande dife­rença, ajudando-o a interpretar a Escritura. Não estou incenti­vando um movimento contra as escolas bíblicas dominicais ou os seminários. Se você se sente chamado para esse tipo de ins­trução, vá! Mas, se não puder ir, você tam bém pode crescer na leitura, interpretação e aplicação corretas da Palavra de Deus, pois, se é cristão, não há nada que o impeça de fazê-lo.

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COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Quando estiver lendo, lembre-se, antes de tudo, de que Jesus é o principal intérprete da Palavra de Deus. Assim, siga o exemplo de Jesus, lendo claramente a Bíblia no conhecimento de que tudo nela é sobre ele. Ele é o assunto, o objeto da Escritura.

Podemos fazer isso. Na verdade, devemos fazer isso, se qui­sermos ser bons discípulos de Jesus. É difícil, mas não impossí­vel. Deus nos deu seu Espírito para nos guiar em toda verdade. Conhecemos a estrutura das Escrituras porque conhecemos seu Objeto e Intérprete.

Portanto, vá com Deus!

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Este livro mostra que interpretar a Bíblia pode ser algo incrivelmente prático e claro, pois fornece ao leitor princípios básicos para a compreensão da Palavra de Deus.

Entre esses princípios o autor enfatiza três pontos importantes:

• qualquer cristão pode entender a Bíblia. Não é preciso ser um grande acadêmico ou um renomado pregador para compreender as Escrituras;

• a interpretação bíblica deve ser cristocêntrica. Só estaremos lendo a Bíblia corretamente se estivermos vendo Jesus Cristo em suas páginas;

• a Bíblia não deve apenas ser compreendida, deve ser também vivenciada em nosso cotidiano.

O maior intérprete da Palavra de Deus, falada e aplicada, é Jesus Cristo - e ele convida os que nele creem a imitá-lo, pois demonstrou como todos os fiéis podem e devem interpretar essa Palavra.

Embora a interpretação deva envolver aquilo que outros dizem e ensinam sobre a Escritura, fazer uma boa interpretação e aplicá-la em nosso dia a dia é, em última análise, responsabilidade de cada um de nós. Sem isso jamais poderemos viver como Jesus nos chamou a viver.

‘O livro de Curt Allen sobre como interpretar a Bíblia é maravilhosamente prático e claro, dando aos fiéis princípios básicos para a compreensão da Palavra de Deus. Ele enfatiza, corretamente, que todo o cristão pode entender a Bíblia. Recomendo com imenso prazer este livro acessível, cristocêntrico e prático sobre como interpretar as Escrituras."ThomasR. Schreiner, Professor de Interpretação do Novo Testamento,Southern Baptist Theological Seminary, onde ocupa a renomada cadeira James Buchanan Harrison.

C u rtis A lle n é pastor da Solid Rock Church, em Riverdale, no estado de Maryland. Também se dedica a compor e cantar músicas cristãs em estilo rap, como forma de apoiar a evangelização e o discipulado, alcançando jovens com a luz do Evangelho. Ele e sua esposa Betsy têm três filhos. VIDA NOVA

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