“curtindo” um castigo - revista de história

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“Curtindo” um castigo No Brasil, a violência não é uma qualidade das “pessoas más”, mas o fator estruturante da sociedade. É tão presente que se torna invisível aos olhos da maioria e se manifesta cada vez mais em discursos nas redes sociais Rodrigo Elias 10/2/2014 Após apanhar de grupo de 'justiceiros', adolescente é preso nu em poste, no Rio / Foto: Yvonne Bezerra de Melo “A democracia é um erro estatístico, porque na democracia decide a maioria e a maioria é formada de imbecis”. Esta é uma frase (falsamente) atribuída a um dos mais geniais escritores de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges (1899‐1986), com a qual não posso concordar publicamente. É possível, entretanto, fazer uma analogia entre a premissa matemática do silogismo pseudoborgeano e a relação entre discurso e violência no mundo que estamos criando. Vou tomar como referências algumas respostas ao texto do meu colega Bruno Garcia recentemente publicado aqui , sobre as reações à barbaridade cometida contra um menor supostamente infrator no Rio de Janeiro (texto com o qual concordo), e algumas reflexões sobre a transformação nas relações humanas a partir da alteração das chamadas “tecnologias do intelecto”. Vivemos, os brasileiros, em uma sociedade na qual a violência é erroneamente interpretada, na maioria das vezes, como uma dimensão da vida social, que surge episodicamente e que, portanto, precisa ser reprimida topicamente e de forma espetacular, como forma de satisfazer uma pedagogia da exemplaridade. Um modo de pensar que vigorou nas formações estatais entre a Antiguidade (basta lembrar das crucificações promovidas pelos romanos) e o século XVIII (lembremos das mulheres queimadas em praças públicas) – a partir daí, como qualquer pessoa que é conscientemente herdeira das tradições ditas iluministas deve saber, a ideia de punição‐ exemplaridade (que também tem o seu fundo religioso – a vingança divina contra os pecados) foi substituída (nas tradições racionalistas, obviamente) pela constatação de que os seres humanos são animais sociais e culturais e, logicamente, seria mais útil para toda a sociedade que o indivíduo que não está adequado às normas socialmente aceitas deve ser reeducado e utilizado em benefício da própria sociedade, o que também quer dizer em benefício de si mesmo (àqueles que, por infeliz exceção, não estão familiarizados com esta ideia, ou acreditam que ela é uma invenção de acadêmicos de países subdesenvolvidos que querem defender bandidos, ou “dessa gente de Direitos Humanos”, sugiro uma googlada no nome de Cesare Beccaria). O declínio da pena de morte no ocidente não é um fato da natureza, é um avanço civilizacional.

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02/07/2015 “Curtindo” um castigo ­ Revista de História

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“Curtindo” um castigoNo Brasil, a violência não é uma qualidade das “pessoas más”, mas o fatorestruturante da sociedade. É tão presente que se torna invisível aos olhos damaioria e se manifesta cada vez mais em discursos nas redes sociais

Rodrigo Elias

10/2/2014

Após apanhar de grupo de 'justiceiros', adolescente épreso nu em poste, no Rio / Foto: Yvonne Bezerra deMelo

“A democracia é um erroestatístico, porque nademocracia decide a maioria ea maioria é formada deimbecis”. Esta é uma frase(falsamente) atribuída a um dosmais geniais escritores de todosos tempos, o argentino JorgeLuis Borges (1899‐1986), com aqual não posso concordarpublicamente. É possível,entretanto, fazer uma analogiaentre a premissa matemáticado silogismo pseudoborgeano ea relação entre discurso eviolência no mundo que estamoscriando.

Vou tomar como referênciasalgumas respostas ao texto domeu colega Bruno Garcia recentemente publicado aqui, sobre as reações à barbaridade cometidacontra um menor supostamente infrator no Rio de Janeiro (texto com o qual concordo), ealgumas reflexões sobre a transformação nas relações humanas a partir da alteração daschamadas “tecnologias do intelecto”.

Vivemos, os brasileiros, em uma sociedade na qual a violência é erroneamente interpretada, namaioria das vezes, como uma dimensão da vida social, que surge episodicamente e que,portanto, precisa ser reprimida topicamente e de forma espetacular, como forma de satisfazeruma pedagogia da exemplaridade. Um modo de pensar que vigorou nas formações estatais entrea Antiguidade (basta lembrar das crucificações promovidas pelos romanos) e o século XVIII(lembremos das mulheres queimadas em praças públicas) – a partir daí, como qualquer pessoaque é conscientemente herdeira das tradições ditas iluministas deve saber, a ideia de punição‐exemplaridade (que também tem o seu fundo religioso – a vingança divina contra os pecados) foisubstituída (nas tradições racionalistas, obviamente) pela constatação de que os seres humanossão animais sociais e culturais e, logicamente, seria mais útil para toda a sociedade que oindivíduo que não está adequado às normas socialmente aceitas deve ser reeducado e utilizadoem benefício da própria sociedade, o que também quer dizer em benefício de si mesmo (àquelesque, por infeliz exceção, não estão familiarizados com esta ideia, ou acreditam que ela é umainvenção de acadêmicos de países subdesenvolvidos que querem defender bandidos, ou “dessagente de Direitos Humanos”, sugiro uma googlada no nome de Cesare Beccaria). O declínio dapena de morte no ocidente não é um fato da 

natureza, é um avanço civilizacional.

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Bandido bom é bandido... Oi?

Linguagem de violência

Um Estado forte

 

Violência estrutura a sociedade brasileira

A violência, enfim, não é uma qualidade metafísica das “pessoas más”. Ela é o principal fatorestruturante da nossa sociedade (também não é apenas “resultado das desigualdades e dacorrupção”, argumento que, quando usado como fator exclusivo, tem servido a partidos políticosde todas as colorações com notável aproveitamento; ela é a causa das desigualdades e suasmazelas paralelas). Não vou gastar muito tempo para justificar esta afirmação; vou apenaslembrar que a formação do que atualmente conhecemos como “sociedade brasileira” é,respeitando‐se as matizes históricas regionais, resultado de um processo de colonização que temcomo base dois elementos que são a materialização mais genuína da violência: a guerra deconquista e a escravidão (esta não é uma interpretação, mas um fato frio indisputável).

Estes dois elementos se sobrepuseram, de algumamaneira, entre a chegada dos europeus ao nossoatual território (havia guerras de conquista entre osindígenas no período pré‐cabralino, mas estas sãoincomparáveis à escala genocida global da expansãoibérica) e o avanço do “desenvolvimento” promovidopelo estado na Amazônia durante o regime militar,já na década de 1970 (consideremos o massacre dedois mil waimiri‐atroaris com gás venenoso e napalm

para a construção da BR‐174, no estado do Amazonas, entre 1972 e 1975, apenas um episódio doprocesso).

Supondo, como se fechássemos os olhos, que estes dois elementos deixaram de existir no Brasil(guerra por território e escravidão com patrocínio ou tolerância das estruturas estatais), temosaí 470 anos de herança da mais perfeita violência. Essa estrutura é tão presente (logo, tãoinvisível, pois estamos imersos nela) que não estranhamos nem um pouco o fato de que a ForçaNacional de Segurança Pública foi criada por decreto pelo líder de um partido tradicionalmenteidentificado com as demandas dos setores mais oprimidos da sociedade, e a expansão do seu usoestá ocorrendo sob a gestão de sua herdeira política.

Acontece que esta violência estruturante se desdobra não apenas na configuração do estadobrasileiro desde o início do século XIX (ao qual se acoplaram interesses econômicos bastanteevidentes, embora diversos historicamente). Ela também assume a forma de uma cultura daviolência, mais ou menos visível em uma certa aprovação popular, durante a maior parte danossa existência enquanto “sociedade civil”, da violência de estado em bases paleo‐modernas.

Sérgio Buarque de Holanda estava correto quando, há quase oitenta anos, diagnosticava a nossadificuldade em compreender o que é uma esfera propriamente pública – e isto está mais do queevidente na confusão que fazemos diariamente entre justiça e vingança, o que é claramente umapermanência de um traço mental medieval entranhado em nossa sociedade, dos mais altosdignitários da República ao mais reles vendedor de narcóticos, passando por todas as outrascategorias de indivíduos. Esta concepção privatista do que deve ser a ação na esfera pública é anossa configuração padrão.

Um exemplo banal: o fato de que 72% das comarcas brasileiras não têm defensores públicos (ouseja, quem é pobre não tem um advogado para enfrentar o processo penal) não é uma questãocom a qual os brasileiros nos incomodamos (Pedrinhas é a pontinha do iceberg). Afinal, se há noacusado dois fatores associados à tipologia do medo que vigora no imaginário difundido em nossacultura (ser pobre e ser preto), isto funciona, dentro da lógica imperante (sobretudo, mas nãoapenas, nos meios de comunicação), como comprovante de culpa. A sociedade e o estado não seimportam com o fato de que a maioria esmagadora da população carcerária não pode se

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"Vivemos, os brasileiros, em uma sociedade na qual aviolência é erroneamente interpretada, na maioria dasvezes, como uma dimensão da vida social, que surge

episodicamente e que, portanto, precisa ser reprimidatopicamente"

 

defender de acusações, estando à mercê da força dos agentes públicos (formados na mesmacultura de violência), de criminosos justamente condenados e mesmo de outros interesses –candidatos a cargos eletivos não falam no assunto, eleitores não se importam com isso (de modoque qualquer pessoa que não diga explicitamente que este é um problema político da maiorimportância também é moralmente responsável por ele).

 

Bandido x Cidadão de bem

A esta culpa prévia se soma a ideia de que a punição serve exclusivamente, conforme a lógica dajustiça pré‐iluminista, como exemplo (nem vou começar a falar aqui da dimensão erótica dapsicogênese da vingança; sugiro, entretanto, a leitura de qualquer romance do Marquês de Sade,em especial, Os 120 dias de Sodoma, escrito em 1785, ou da análise de Gilles Deleuze, Sacher‐Masoch: o frio e o cruel, de 1967). Temos aí, como desdobramento lógico, o argumento fácil(porque não é preciso pensar para que o afirmemos, como todo aquele minimamente versado emretórica deve saber que é o mais eficiente tipo de argumento) segundo o qual “bandido bom ébandido morto”. A anáfora, aliás, facilita a memorização (e, afinal de contas, deve ter restadoem qualquer ser propriamente humano, participante da cultura escrita ou oral, a capacidade degostar de poesia).

Como contra‐imagem desta figurareificada do “bandido”, binariamente(para a alegria de Lévi‐Strauss),vemos a configuração desta outrafigura mítica: o “cidadão de bem”.  Compreende‐se, portanto, oincômodo violento que se expressa emparte dos comentários ao texto doBruno, bem como em outros lugaresdo “mundo virtual” – seus autores, namaior parte das vezes, não sãoessencialmente fascistas (ser fascistade fato requer uma certa elaboração teórica e, portanto, retórica, mesmo que sejaessencialmente uma aberração moral); são apenas a manifestação de uma cultura da qual osseus participantes ainda não foram capazes de se libertar – porque assim é mais confortável,como sabemos desde Kant (para fins práticos, estou considerando apenas as pessoas queefetivamente leram o texto; as outras serão mais consideradas no ponto seguinte; não vouconsiderar os comentários que são resultado de um certo anti‐intelectualismo que, por sua vez, éo trágico resultado da existência de uma estrutura de ensino disfuncional no Brasil, do nívelbásico à pós‐graduação, cuja prova estatística são as mídias sociais).

Se compreendemos a base dos “argumentos” presentes nos comentários favoráveis aojustiçamento de “criminosos” e de criminosos (aqueles que atravessaram o processo legal eforam condenados pela estrutura da sociedade constitucionalmente designada para gerir omesmo), como entender a violência contida nas respostas (por exemplo, a linguagemexplicitamente agressiva e a manifestação do desejo latente de que o autor do texto seja objetoda violência que supostamente defende  ‐ “é porque não foi com a sua filha ou a sua mãe”)? Aíentram os desdobramentos desta nova transformação estrutural, a plataforma sobre a qual odiscurso é produzido – a internet e, mais especificamente, seus mecanismos de interaçãointerpessoal.

 

A internet e os discursos de

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Pintura de Debret ilustra escravos no Brasil Colônia /Reprodução

violência

Coloque em um mesmo tubo deensaio uma sociedadeessencialmente violenta (sobcuja superfície reside umamescla de ressentimento, medoe impotência) e um meio deinteração social que podeprescindir inteiramente docontato pessoal face‐a‐face.Não é preciso elaborar muitopara concluir que as formas deinteração discursivas nãoestarão submetidas aoconstrangimento real quepoderia ser fruto da presençafísica do outro (o alvo dodiscurso violento). Umcomediante americano muitofamoso, Louis C. K., falou

recentemente (e da melhor forma possível) sobre o motivo pelo qual não permite que suas filhasusem telefones celulares, tema que tem sido discutido muito profundamente por gente bastanteséria: é preciso, durante o período de formação da personalidade, lidar com o preço emocionaldas reações dos outros aos nossos atos. Ora, é na infância que os seres humanos aprendemos asmais básicas normas interpessoais regidas pelo afeto – é quando inscrevemos em nossasestruturas psíquicas mais profundas a certeza de que o outro é capaz de sentir o que sentimos.Psicopatas são pessoas incapazes de se identificar com a dor do outro, sendo capazes de formasde violência aos demais indivíduos inexplicáveis, e esta inabilidade (ausência da capacidade deter empatia) começa a se estabelecer na infância, seja por conta da supressão da interaçãohumana necessária para a educação afetiva, seja por conta da submissão à violência – sereshumanos amadurecem emocionalmente em contato com a subjetividade imediata do outro, emum processo que se estende da primeira infância até o final da adolescência.

É claro que uma parte considerável das pessoas que fazem comentários violentos nos meiosvirtuais (não me refiro a discordâncias ou a argumentações complexas em contrário, mas arespostas discursivas violentas) não é composta por psicopatas (atualmente, estima‐se que entre0,5% e 3% da população seja formada por psicopatas). Estas posturas discursivas violentas só sãoassumidas, na maioria das vezes, porque a internet poupa seus emissores desta conta emocionaldo constrangimento presencial – estes indivíduos não serão capazes, portanto, de provocar, elesmesmos, um impacto na sociedade ou em seu meio social mais restrito para além da reiteraçãode estruturas há muito estabelecidas. Há, entretanto, um lado mais sombrio nessa novarealidade.

Pessoas que estão amadurecendo psicossocialmente dentro desta nova ordem tecno‐discursivaestão sendo progressivamente (e, talvez, irreversivelmente) privadas de desenvolver empatiapelo outro – pois o outro está, durante a maior parte das inteirações sociais, ausente, mediadopor estas novas tecnologias. E é justamente neste ponto que a trajetória dos valentes virtuais secruza com a sociopatia e com o crime propriamente dito.

O grupo de “vigilantes” preso recentemente em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro écomposto por jovens de classe média, menores de idade em sua maioria, expostos desde ainfância a uma nova forma de vivência interpessoal, na qual tudo é montado para o aumento dobônus e a extirpação do ônus emocional (já existe uma geração inteira que não aprendeu aexperimentar a frustração que pode decorrer de qualquer interação social real e a lidar com

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isso). Estas pessoas estão começando a fazer no mundo real, com pessoas reais, aquilo quefazem discursivamente através da interação virtual.

É provável que não cheguemos a desenvolver, em um curto prazo, uma estrutura estatalabertamente fascista com a legitimação da maioria da sociedade (o mundo globalizado exigiu osalto civilizacional que pressupõe o fim de regimes fascistas). Mas não será uma surpresa se maise mais legiões de sociopatas ganharem as ruas dos centros urbanos do país movidos pelo queacreditam profundamente ser um senso de justiça, embora seja apenas uma mera reprodução doque já temos visto há alguns séculos. Será menos surpresa ainda se isto acontecer com certoaplauso (ou uma certa quantidade de “curtidas”) dos cidadãos de bem.