curso-de-teologia-etel. · web view- as inovações próprias da cultura...

102
O MISTÉRIO DO DEUS UNO E TRINO “O conhecimento da Trindade na Unidade é o fruto e o fim de toda a nossa vida” (S to Tomás de Aquino) “Cristão perfeito é aquele que possui o verdadeiro conhecimento a respeito das relações que intercorrem entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo” (Dídimo, o cego) * SUMÁRIO BIBLIOGRAFIA........................................................ ..................................................... 03 INTRODUÇÃO.......................................................... .................................................... 05 PRIMEIRA PARTE: A REVELAÇÃO BÍBLICA ............................................................ 07 I -ETAPAS DA REVELAÇÃO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO.................. 08 1 – O Deus dos Patriarcas................................................ ...................... 08 2 – O Deus de Moisés.................................................... ......................... 09 3 – Época da conquista de Canaã..................................................... ..... 10 4 – Época da Monarquia................................................. ........................ 11 5 – O período pós- exílico................................................... ..................... 16 1

Upload: duongquynh

Post on 15-Mar-2018

223 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

Page 1: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

O MISTÉRIO DO DEUS UNO E TRINO“O conhecimento da Trindade na Unidade

é o fruto e o fim de toda a nossa vida”(Sto Tomás de Aquino)

“Cristão perfeito é aquele que possui o verdadeiro conhecimento a respeito das relações que intercorrem entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo”

(Dídimo, o cego) *

SUMÁRIO

BIBLIOGRAFIA............................................................................................................. 03

INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 05

PRIMEIRA PARTE: A REVELAÇÃO BÍBLICA............................................................ 07

I - ETAPAS DA REVELAÇÃO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO.................. 081 – O Deus dos Patriarcas...................................................................... 082 – O Deus de Moisés............................................................................. 093 – Época da conquista de Canaã.......................................................... 104 – Época da Monarquia......................................................................... 115 – O período pós-exílico........................................................................ 16

II - O ANTIGO TESTAMENTO COMO PREPARAÇÃO À REVELAÇÃODO DEUS TRINO................................................................................................. 17

1 – A paternidade de Deus no Antigo Testamento.................................. 182 – O Espírito de Yahweh........................................................................ 20

III - JESUS REVELA O PAI........................................................................................

22

IV - O ESPÍRITO SANTO NO NOVO TESTAMENTO................................................ 241 – O Espírito Santo na vida de Jesus..................................................... 242 – O Espírito Santo na vida da Igreja..................................................... 253 – O Espírito Santo na primeira reflexão teológica (Paulo e João)........ 264 – Sinopse dos ditos sobre o Paráclito................................................... 29

V - FÓRMULAS TRINITÁRIAS E TERNÁRIAS.......................................................... 30

VI - A REVELAÇÃO DA TRINDADE NO MISTÉRIO PASCAL................................... 31

VII - A CARIDADE – AGAPE....................................................................................... 33

* Cf. também São Jerônimo, Ofício das leituras, 5ª feira da 13ª semana.

1

Page 2: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

SEGUNDA PARTE: A REFLEXÃO SOBRE A TRINDADE ATRAVÉS DA HISTÓRIA .... 35

I - A IGREJA ANTIGA..............................................................................................

36

1 – Considerações gerais sobre os Padres............................................. 362 – As heresias........................................................................................ 373 – A terminologia trinitária...................................................................... 374 – O magistério....................................................................................... 39

II - A QUESTÃO DA ORIGEM DO ESPÍRITO (O FILIOQUE)................................... 40

III - A TEOLOGIA TRINITÁRIA NA IDADE MÉDIA....................................................

41

IV - A TEOLOGIA TRINITÁRIA NA ÉPOCA MODERNA............................................ 41

TERCEIRA PARTE: REFLEXÃO SISTEMÁTICA......................................................... 44

I - QUESTÕES INTRODUTÓRIAS..........................................................................

45

II - AS PROCESSÕES TRINITÁRIAS.......................................................................

47

III - A PROCESSÃO DO ESPÍRITO SANTO.............................................................. 49

IV - AS ANALOGIAS TRINITÁRIAS............................................................................ 51

V - A ANALOGIA PSICOLÓGICA.............................................................................. 53

VI - O ESPÍRITO SANTO E A ANALOGIA PSICOLÓGICA....................................... 54

VII - PESSOA EM DEUS.............................................................................................. 55

VIII - A DIVINA KOINONÍA............................................................................................ 58

IX - AS APROPRIAÇÕES TRINITÁRIAS.................................................................... 59

X - AS DIVINAS MISSÕES........................................................................................ 61

XI - O PROCESSO ANALÓGICO DO CONHECIMENTOE DA LINGUAGEM TRINITÁRIA.......................................................................... 63

XII - OS ATRIBUTOS DE DEUS.................................................................................. 65

- SUPLEMENTO: As promessas do Espírito Santo no Evangelho de João........... 68

2

Page 3: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

BIBLIOGRAFIA

EM PORTUGUÊS:

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração a respeito de certos erros referentes aos mistérios da Encarnação e da Trindade, 21/02/1972.

SCHEFFCZYK L., A fé no Deus Uno e Trino. Loyola, 1972 (original alemão, 1968).VÁRIOS, Mysterium Salutis, vol. II/1: Deus Uno e Trino. Vozes, 1972.BERG A., A Santíssima Trindade e a experiência humana, in REB 33(1973), 629-648; 36(1976),

323-346.SEGUNDO J.L., A nossa idéia de Deus (Teologia aberta para o leigo adulto, vol. 3). Loyola, 1977. 2ª

ed. (original espanhol, 1970).FRANÇA MIRANDA M. DE, O mistério de Deus em nossa vida. Loyola, 1975. (Trata-se da doutrina

trinitária de K. Rahner).FOLCH GOMES C., A doutrina da Trindade eterna. Lumem Christi, 1979. SCHMAUS M., A fé da Igreja, vol.2, Cristologia. Vozes, 1982. 2ª ed., págs. 13-49.MAIA P.A., Peregrinos da Santíssima Trindade. 3 vol., Loyola, 1986-1987.MUÑOZ R., O Deus dos cristãos. Vozes, 1986.BINGEMER A.M.L., A Trindade a partir da perspectiva da mulher, in REB 46(1986), págs. 73-99.BOFF. L., A Trindade, a sociedade e a libertação. 2ª ed. Vozes, 1986.FORTE B., A Trindade como história. Paulinas, 1987. (original italiano, 1985).CODA P., O evento pascal. Trindade e história. Cidade Nova, 1987. (original italiano, 1984)BOFF L., A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Vozes, 1988.TEPE V., Nós somos um. Retiro trinitário. Vozes, 1988.VÁRIOS, O Deus de Jesus Cristo. Cidade Nova, 1989 (original italiano, 1982).JOHNSON E., Aquela que é. Vozes, 1995.LACUGNA, C.M., O mistério trinitário de Deus. Paulus, 1997.SANTABÁRBARA, L. G. C., Notícias de Deus Pai. Loyola, 1999.KLOPPENBURG, B., Trindade. O amor em Deus. Vozes, 1999.GRINGS, D., Creio na Santíssima Trindade. Aparecida, Santuário, 1999.BOURASSA F., A Trindade, in K.H.Neufeld (org), Problemas e perspectivas de Teologia Dogmática.

Loyola, s.d., págs. 277-304 (original italiano, 1983).CAMBON, E., Assim na terra como na Trindade. Cidade Nova, 2000.DUFOUR, D.-R., Os mistérios da Trindade. Companhia de Freud, 2000 (interpretação psicanalítica).MOLTMANN, J., Trindade e Reino de Deus. Vozes, 2000 (original alemão 1980).LORENZEN, L.F., Introdução à Trindade. Paulus, 2002.SESBOÜÉ, B., (dir.), História dos dogmas, vol.I, Loyola, 2002.WERBICK,J., Doutrina da Trindade, in Manual de Dogmática. Vozes, 2002, vol. II, 429-511.BINGEMER, M. Cl. L. – FELLER, V.G., Deus Trindade: A vida no coração do mundo. Paulinas –

Siquém, 2003.COLLANTES, J., A fé católica. Lumen Christi, 2003, pp. 439-484.CANTALAMESSA, R., Contemplando a Trindade. Loyola, 2004.LADARIA, L.F., O Deus vivo e verdadeiro: o mistério da Trindade, São Paulo, Loyola, 2005.SILANES, N., O dom de Deus. A Trindade em nossa vida. Paulinas, 2006.LADARIA, L.F., A Trindade, mistério de comunhão, Loyola, 2009.

EM OUTRAS LÍNGUAS:

DANIÉLOU J., La Trinidad y el misterio de la existencia. Madrid, 1969.FORTMAN E., The triune God. London, 1972.MARGERIE B. DE, La Trinité chrétienne dans l’histoire. Beauchesne, 1975.DUQUOC CH., Dieu différent. Paris, Cerf, 1977 (tradução em espanhol e italiano, 1978).ARAYA V., El Dios de los pobres: el misterio de Dios en la teologia de la liberación. Cehila, San

José, 1983.AUER J. & RATZINGER J., Il misterio di Dio. Cittadella, 1982 (tradução espanhola do original

alemão, 1982).

3

Page 4: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

JÜNGEL E., Dios como misterio del mundo. Sigueme, 1984 (original alemão, 1977; tradução italiana, 1982; tradução francesa, 1983).

DANIEL ANGE, Dalla Trinità all’Eucaristia. L’icona della Trinità di Rublev . Ancora, 1984 (original francês: L’étreinte de feu, Desclée, 1980).

KASPER W., El Dios de Jesucristo. Sigueme, 1985 (original alemão, 1982; tradução italiana, 1984; tradução francesa, 1983).

ARIAS REYERO M., El Dios de nuestra fe. Dios uno y trino. CELAM, Bogotá, 1991.MELOTTI L., Un solo Padre, un solo Signore, un solo Spirito. LDC, Torino, 1991.MOLTMANN J., Nella storia del Dio Trinitario. Contributi per una teologia trinitaria. Queriniana, 1993.AMATO A., Trinitá in contexto. LAS, Roma, 1993.PIFFARI P., Itinerarios de la experiencia trinitaria de salvación en Cristo. Hacia el tercer milenio.

Asunción, 1996.STAGLIANÒ, A., Il mistero del Dio vivente, EDB, 1996.SAYÈS, J.-A., La Trinidad, misterio de salvación, Ediciones Palabra, Madrid, 2000.COZZI, Al., Manuale di dottrina trinitaria, Queriniana, 2009.

O Secretariado Trinitário de Salamanca publica desde 1966 a revista “Estudios trinitários” e, também, a coleção “Semanas de estudios trinitarios” (atas dos congressos anuais).

Cf. verbetes de dicionários:Dicionário crítico de teologiaDictionnaire de théologie catholique.Dictionnaire de spiritualité.Sacramentum Mundi (em espanhol, inglês, francês e alemão).Dictionnaire Biblique.Nuovo Dizionario teologico.Dicionário de teologia / org. Heinrich Fries. São Paulo, Loyola, 1983.Dicionário de conceitos fundamentais de teologia / org. Peter Eicher. São Paulo, Paulus, 1993.Dicionário de teologia fundamental / org. René Latourelle e Rino Fisichella. Aparecida-SP,

Santuário, 1994.Dicionário teológico. O Deus cristão. São Paulo, Paulus, 1999. Sigla: DTDC.

BIBLIOGRAFIA SOBRE O ESPÍRITO SANTO

COMBLIN J., O Espírito no mundo. Vozes, 1978.

COMBLIN J., O tempo da ação. Vozes, 1982.

FERRARO G., O Espírito Santo no quarto Evangelho. Loyola, 1982.

CONGAR Y., Espírito do homem, Espírito de Deus. Loyola, 1986.

COMBLIN J., O Espírito Santo e a libertação. Vozes, 1988.

CONGAR Y., A palavra e o Espírito. Loyola, 1989.

BRUNNER F. D., Teologia do Espírito Santo. Vida Nova, 1989.

SCHWEIZER E., O Espírito Santo. Loyola, 1993.

CODINA V., Creio no Espírito Santo; ensaio de pneumatologia narrativa. Loyola 1997.

KLOPPENBURG B., Parácletos; o Espírito Santo. Vozes 1998.

SMAIL T., A Pessoa do Espírito Santo. Loyola, 1998.

HILBERATH B.J., Pneumatologia, in Th. SCHNEIDER (org.), Manual de Dogmática, Vozes, 2002,

vol.I, 403-500.

WELKER M., O Espírito de Deus. Teologia do Espírito Santo. Sinodal, 2010.

4

Page 5: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

INTRODUÇÃO

1 - A questão.

A humanidade sempre foi religiosa. Se o ateísmo é um fato minoritário, há uma pluralidade ampla de concepções a respeito do ser supremo, chamado de Deus na maneira mais comum. Entretanto, vem crescendo a aversão à fé cristã, o laicismo e o antiteísmo.

Hoje predomina no Ocidente a indiferença em relação a Deus ou às doutrinas tradicionais. Neste último caso, cada um pensa Deus, e sua posição diante dele, a seu modo: é o relativismo. Esse fenômeno teve lugar devido a vários fatores:

- informação sobre a variedade de concepções, nas ciências, nas religiões, no povo;- consciência viva dos males atribuídos, com ou sem fundamento, à religião: intolerância,

guerras, terrorismo; sentimento de culpa; desprezo pelo mundo e pela matéria, etc. O que é mal visto numa religião ou num seu representante é atribuído à religião em si.

- o afirmar-se da idéia que o homem não pode ser ele mesmo enquanto permanece ligado a um Deus ou a uma religião estabelecida.

Como o homem não consegue viver sem uma referência ao Absoluto, se este não for um Deus, então a idolatria assumirá formas de suplência, tornando-se egolatria, adoração da riqueza, do progresso, do mercado, do prazer, de uma paixão amorosa, do Estado, do partido, da raça, da nação...tantas criaturas colocadas no lugar do Deus vivo e verdadeiro.

Por sua vez, o agnosticismo desistiu de chegar a algum conhecimento certo a respeito de Deus e de sua vontade para com o homem.

Ainda, os que confessam sua fé em um Deus e em uma religião, na prática não se atêm necessariamente ao que dizem acatar, fabricando uma religiosidade sob medida.

Circula a concepção que julga legítimo cada um se relacionar com Deus da maneira como Ele é sentido, justificando essa atitude com a convicção de que Deus quer a felicidade do homem, e que Ele o trata com extrema condescendência, aceitando, sem se importar, com o que realizamos através da nossa boa vontade.

Mesmo o povo cristão tem pouca consciência vital do Deus Trindade, prestando-se até mesmo para patologias teológicas (cf. Boff 26-28; Bingemer 17-21; DTDC 141s).

Ora, o cristianismo é Evangelho: a boa notícia (mas para quem?) de que Deus existe, usa o seu poder para expressar o seu amor, tanto que Ele quer se dar a conhecer e se doar a nós por aquilo que realmente é, fazendo-nos participar da sua vida.

Será essa visão deveras válida, proveitosa, verdadeira, legítima, capaz de realizar o ser humano, promovendo sua felicidade? Eis o desafio da Igreja, da fé cristã, da teologia: dar a entender ao mundo que essa é realmente a boa notícia por excelência e que não é imaginação humana. Diante dos males do mundo, o que a fé cristã em a oferecer?

O Deus criador, salvador, todo interessado na felicidade do homem, esse Deus é assim porque uma comunhão de Três Pessoas, e por ser Trindade é o fundamento e a razão de ser de tudo o que existe, da maneira como existe.

2 - Situação atual do estudo teológico na reflexão do mistério trinitário: o processo de transição e de renovação.

- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação que já havia investido sobre os demais tratados. Ele permanece, por isso, o mais próximo da exposição tradicional. Na América Latina, o estudo sobre Deus ainda não foi suficientemente abordado, de maneira explícita e direta; deixando de lado agora obras de divulgação, a exceção é o recente livro de Boff, típica expressão de teologia da América Latina, ao procurar encontrar na Trindade a razão última do processo de libertação e o modelo mais acabado do viver em sociedade.

- Os teólogos são unânimes ao considerar insuficiente o modo tradicional de abordagem e de exposição próprio dos manuais e de outros textos escolares: a excessiva limitação ao magistério, o gosto apologético, a linguagem exclusivamente filosófico-escolástica, etc, diminuíam a vitalidade de uma genuína e madura teologia.

5

Page 6: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- Os estudos bíblicos, patrísticos, litúrgicos, históricos, trouxeram novos elementos de renovação: as fontes e a melhor teologia do passado eram mais trinitárias do que a teologia do nosso século. A teologia antiga era mais fiel às fontes do que a moderna.

- Muito se projeta no presente a respeito da nova configuração do tratado, mas os resultados efetivos ainda se apresentam parciais. Não é, pois, possível indicar um texto que responda a todas as aspirações e que equilibre e integre os resultados dos estudos positivos.

- As divergências dizem respeito, o mais das vezes, ao método, aos enfoques e à linguagem, e não tanto aos conteúdos.

3- Pontos principais da revisão : os caminhos da revisão atual (pós Vaticano II).

- Integração entre mistério trinitário e história da salvação. Revelação da Trindade nas obras e, especialmente, no mistério pascal. Correspondência e mútuo apelo entre “teologia” e “economia”.

- Maior compenetração entre os dois antigos tratados de “Deus Uno” e “Deus Trino”, visando uma teologia mais realista e vital. (Kasper, págs. 352-356).

- A teologia trinitária deve iluminar toda a teologia, a fé e a vida cristã. Ela é, em raiz, a teologia inteira e, ao mesmo tempo, o seu cume.

- Valorização do pluralismo e do diálogo entre as várias interpretações. Em particular, procura-se uma teologia ecumênica que integre quanto possível o espírito e as formulações de protestantes e ortodoxos.

- Respeito e valorização da especificidade da reflexão teológica diante dos estudos positivos. Busca de uma visão de conjunto, sistematicidade, organicidade e metodicidade crítica.

- Interdisciplinaridade com as ciências humanas: antropologia, história das religiões, mitologia, sociologia, filosofia, etc.

- Questões em aberto mais discutidas atualmente: - o valor do conhecimento e da linguagem (DTDC 502-508); - o ponto de partida: natureza, pessoa-sujeito, comunhão; - o sentido do termo “pessoa” (DTDC 699-708); - o envolvimento de Deus na história (Deus se faz Trindade na história?!): a imutabilidade e a impassibilidade divinas, o sofrimento do Pai, a história de Deus (DTDC 210s); - o feminino em Deus (DTDC 216-222; 606-612); - o alcance político e social da fé trinitária; a sua força libertadora (DTDC 498-502); - a fé trinitária como resposta ao ateísmo e secularismo (DTDC 71-78); - as novas modalidades da idolatria (DTDC 418-420; GONZÁLEZ FAUS, J.I., Crer, só se pode em

Deus. Em Deus só se pode crer, Loyola 1988);- um espaço mais amplo para a pneumatologia (como disciplina à parte?); etc.

6

Page 7: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

PRIMEIRA PARTE:A REVELAÇÃO BÍBLICA

Nota explicativa prévia: a teologia sistemática pressupõe a exegese bíblica, especialmente quando busca compreender como a fé foi sendo formada ao longo da história até chegar à maneira atual de propô-la. Se, todavia, os estudos exegéticos não podem oferecer conclusões seguras a respeito, constituem a base indispensável para a reta compreensão da fé através da sua formação. Prescindimos aqui da distância entre acontecimentos e suas variadas e mesmo diferentes versões, e até que ponto elas se manifestam qual atualização com base em preocupações bem posteriores. De fato, não há revelação através de fatos que não peça interpretação através da reflexão da mente expressa em palavras, mesmo afastadas no tempo e em circunstâncias diversas. Igualmente, não compromete a revelação que esta tenha como veículo expressivo concepções e expressões já presentes entre pagãos, pois Israel consegue formular sua interpretação própria.A respeito dos estudos atuais sobre o Pentateuco cf. Jean Louis SKA, Introdução à leitura do Pentateuco, Loyola 2003.

I - ETAPAS DA REVELAÇÃO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO (a finalidade desta parte não é explorar todo o AT, mas identificar uma linha que leve direto para a revelação do NT)

1 - O DEUS DOS PATRIARCAS

Os antepassados de Abraão eram politeístas (Gn 35,2-4; Js 24,2.14-15).Abraão adora só um Deus - monolatria

porque Ele o elegeu e o protege Aliança (Gn 12,1-3.7;15;17,9; lhe promete terra e descendência 18,18s; 22,18;26,3s;28,13-15)e ser bênção para todos os povos (Gn 12,3 BJ;18,18;22,18;26,4;28,14;Sl 72,17;Jr 4,2;

Zc 8,13; At 3,25; Gl 3,8)

Abraão chama o seu Deus com o nome de “EL” Nome

A Aliança

Os patriarcas não adoram o Deus de uma terra, de um território, de um bem ou de um aspecto particular da vida, mas sim a um Deus pessoal, ou seja, que se liga a pessoas.

Deus pessoal Deus do clã (pela promessa de descendência)

meu Deus Deus de Abraão, Isaac e Jacó(a primeira locução)“meu” pela aliança Deus de nossos pais, nosso Deus(a relação faz-se concreta)

Abraão se compromete no presente a adorar somente a seu Deus: satisfaz o seu exclusivismo.

Deus se compromete a lhe dar no futuro numerosa descendência e um território próprio onde morar.

Os descendentes dos patriarcas invocam o Deus dos Pais como “nosso Deus”: nosso, porque só nascemos pela fidelidade d’Aquele que nos prometeu a nosso pai Abraão. A conquista posterior da terra abrirá o caminho para a identificação com os deuses da terra.

Gn 24, 12. 42.48; 26,24; 28,13; 31,5.29.42.53; 32,9; 46,1; Ex 3, 6.13.15s; 4,5; 15,2; 18,4.

7

Page 8: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

O Nome (a aliança é pessoal, mas o nome ainda não é pessoal)

a) Sentido e etimologia. A idéia de poder: uma das experiências mais elementares da divindade é a de um poder ou força pela qual o homem se sente subjugado; a designação da divindade foi, assim, introduzida através da experiência de um poder superior. Tal denominação é anterior aos patriarcas.

b) Identidade: Quem era “EL” para os patriarcas? Há três hipóteses: - nome comum: o gênero divino, usado na falta de nome próprio;- nome próprio: trata-se do deus “El”, o mais importante entre os povos semitas, que agora se manifesta a Abraão para retomar o seu lugar de deus principal, não só de direito mas também de fato, posto que deuses mais “expertos” tinham-se tornado na prática mais importantes e mais cultuados;- nome próprio de um deus totalmente desconhecido antes.Os fatos para apoiar uma ou outra hipótese, por exemplo, a denominação dos lugares de culto, podem ser interpretados de vários modos.

Variantes do nomeO plural “elohim” (com o verbo no singular) não representa necessariamente um resto de primitivo

politeísmo e sim, mais provavelmente - já que os hebreus ignoravam completamente as teogonias - indica a percepção primitiva da divindade como uma pluralidade de forças de diferentes tipos. Ainda: “El Elyon” Gn 14, 18-22; “El Elohe’” Gn 33, 18-20.Cf. J.E.MARTINS TERRA, Elohim, Deus dos Patriarcas, Loyola 1987.

2 - O DEUS DE MOISÉS

JAVÉ IHWH IAHWEH ׳הוהIdentidade

El, o deus dos pais, manifesta-se agora de um modo novo, desconhecido dos hebreus, o que implica um novo nome, pelo menos em certa medida. Não se trata exatamente de outro nome, mas sim de precisar a identidade e as características do deus “El”.

Textos principais: Ex 3, 13-15 (elohista);6, 2-13 (sacerdotal).

Notemos a continuidade - é o deus dos pais, e a novidade - o nome novo, e a progressividade da revelação, até chegar ao nome:

BJ 3, 14 a Eu sou aquele que é: ‘ehyeh, ‘asher, ‘ehyeh; TEB: “serei”14 b Eu sou me enviou até vós: ‘ehyeh;15 Iahweh, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o

Deus de Jacó me enviou até vós (Iahweh = aquele que é; escrevendo-se só as consoantes = IHWH, o tetragrama sacro).

Significado

Decorre do contexto, não tanto da etimologia, de termos ou formas lingüísticas da frase: o nome Iahweh parece ser uma forma simples e arcaica do verbo ser. As sentenças interpretativas podem ser reduzidas a 7:

Deus revela algo de si:1) Eu sou o ser subsistente, o ser é a minha essência. É a interpretação tradicio-nal,

desde os LXX, praticamente abandonada hoje, por ser estranha à cultura hebraica. Depende, porém, do que se entende por “ser”.

8

Page 9: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

2) Eu sou aquele que está presente ativamente na vossa história (Iahweh = Ele está aqui ou convosco). Vós entendereis quem sou quando virdes com vossos olhos o que estou para fazer por vós. É a sentença mais seguida atualmente (cf. contudo Os 1,9 BJ).

3) Eu sou aquele que é, ao mesmo tempo imanente (eu estarei lá), transcendente (como aquele que é) e transparente na história (me revelarei como aquele que é).

4) Eu sou a plenitude de toda a perfeição, o condensado de todos os bens; esta interpretação parece alcançar o sentido genuíno da primeira.

Deus não quer revelar quem Ele é:5) Eu sou misterioso e escondido; somente eu posso saber quem sou: é a inter-pretação

mistérica. 6) Eu não digo quem sou porque não quero comprometer minha autonomia e li-berdade

dando a possibilidade a que outros possam mandar em mim, por conhecerem o meu nome e eu ser obrigado a responder: interpretação mágica.

7) Eu me recuso a alienar a minha liberdade revelando o segredo de meu nome, só para atender ao pedido de um mortal; é a mesma interpretação, mas depurada, dos aspectos mágicos. Segundo o Javista, Moisés vê Deus pelas costas: Ex 33,18-23.

O nome Iahweh se torna o nome divino por excelência, o nome próprio e definitivo do deus dos pais. A fórmula litúrgica “o Senhor esteja convosco” torna-se, em virtude desse contexto, muito mais significativa: “o Senhor seja Iahweh, se revele como aquele que é”. A experiência de Deus como Iahweh é experiência fundante. Deus é Iahweh. A tal nome são atribuídas todas as características que distinguem o deus de Israel dos demais deuses e que fazem dele um deus inconfundível e muito personalizado, único, no sentido de os outros serem muito diferentes.

A pronúncia Iahweh é reconstituída, pois os hebreus, quando inventaram sinais para indicar as vogais, já não pronunciavam mais, por respeito, o nome santíssimo de Deus. Em seu lugar liam “Adonai”, que quer dizer “meu Senhor” ou “Senhor”. Com a invenção de sinais para as vogais, colocaram debaixo das consoantes do tetragrama sacro as vogais de “Adonai”, que lido desta forma soa Jeová. A tradução dos LXX colocou “Kyrios”, a vulgata “Dominus” e o português “Senhor” (cf. E. Zenger, O Deus da Bíblia, Paulinas, 1989, pp. 98-102; 51-57; P. M. BEAUDE, De acordo com as Escrituras, Cadernos Bíblicos 2, Paulinas 1982, p.30).

Origem

Segundo a opinião comum (P e E na teoria clássica), o nome foi revelado a Moisés como novidade absoluta, pois era completamente desconhecido antes (Ex 6,3). De acordo, porém, com o J (Gn 4,26; 9,26) e outras fontes, não bíblicas, parece que já era conhecido. Foram propostas várias hipóteses:

- Moisés veio a conhecer o nome através dos quenitas, tribo madianita à qual pertencia seu sogro;

- o documento javista projeta no passado o nome mais comum no tempo da redação;- era conhecido antes como interjeição do culto, não como nome;- embora conhecido antes, apenas agora recebe novo significado;- conhecido como um nome entre outros, só então é apresentado como nome próprio do Deus de

Israel;- apesar de já ser conhecido antes, também no seu significado, neste tempo Deus passa a

provar, com gestos concretos, que merece tal nome;- o culto a Iahweh estava presente desde as origens, mas somente foi aceito pelas tribos

josefitas por causa da influência de Moisés.

3 - ÉPOCA DA CONQUISTA DE CANAÃ

Havia antagonismo entre Iahweh e Baal, o que se podia constatar sobretudo na baalização do culto.

Este é um período de grandes mudanças sócio-econômicas: a cultura nômade torna-se sedentária e agrícola. Israel entra em contato com povos mais adiantados, de onde a tendência a aceitar, junto com a nova cultura, também a religião e o culto a ela intimamente ligados. Baal,

9

Page 10: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

e não Iahweh, era especializado em agricultura. O culto a Baal era, além do mais, extremamente atraente. Esse sincretismo podia assumir três formas:

- veneração simultânea de Iahweh e Baal, cada um no seu próprio campo;- veneração exclusiva do mais interessante no momento: Baal;- atribuição a Iahweh das qualidades (e defeitos) de Baal.

Inicialmente o culto simultâneo parecia normal, porém com o tempo foi julgado uma infidelidade, pois levava inevitavelmente ao desconhecimento de Iahweh (como narrado no episódio do touro ou bezerro de ouro no deserto) e à perda da identidade hebraica. O nome “El” podia ser usado para Iahweh porque El era um deus apagado e pouco venerado, era um deus “genérico”. Já Baal era um deus muito caracterizado e venerado, bem diferente de Iahweh.

Parecem ser deste tempo os nomes “Senhor dos exércitos” ‘sabaot’ e צבאות “El shaddai” שדי (Gn 17,1 BJ; 28,3; 35,11; 43,14; 48,3; 49,25). O primeiro designava o Deus Rei que se senta no trono dos querubins, dotado de poder soberano (1Sm 4,4; 2Sm 6,2), cujo povo vence nas batalhas. Mas os exércitos foram espiritualizados ora como anjos, ora como o conjunto das estrelas (Sf 1,5), que Deus cria com o poder de sua palavra. Um significado provável do segundo é: “Deus das montanhas”, onde Ele é forte e por isso faz os hebreus vencerem (Eles não possuíam carros e, portanto, não podiam combater na planície). Outro significado proposto: “Deus da estepe”, expressão que dataria da época patriarcal. Em seguida, ambos foram, em geral, traduzidos pelos LXX com ‘pantocrátor’ (Sl 79,8.15; Os 12,6; Am 3,13; 4,13). Essa visão passou no Novo Testamento: 2 Co 6,18; Ap 1,8; 4,8; 11,17; 15,3;16, 5.7.14; 19,6. 15; 21,22). Cf. Deus no Antigo Testamento: Revista de Cultura Bíblica, números 41-42, 1987.

4 - ÉPOCA DA MONARQUIA

Neste período, acentua-se sempre mais a degeneração, porque se presta culto não só a Baal, mas a muitos outros deuses estrangeiros, sendo estes cultos promovidos por reis e chefes (por ex. Amon e Manassés), com todas suas imoralidades. Mas começa a se formar uma reflexão teológica e um culto que se tornarão paradigmáticos e clássicos para a posteridade. Convivem e lutam, neste tempo, muitas correntes e escolas de espiritualidade, nem todas representadas na Bíblia. A teologia, as várias teologias, vão se formando como reação de alguns grupos ao sincretismo dominante e atingem suas expressões mais refinadas no fim do período e no período seguinte. Quanto mais se aprecia as qualidades de Iahweh, menos se precisa de outros deuses.

A luta contra a idolatria: 1Rs 18 (Elias); Sl 16 (15); 115(113B); Is 41,21-29; 44,9-20; 57, 3-13; Os 2,18s; 4,11-14;10,1-10;13,1-3; Jr 2; 7,16-20; 10; 19,4s; Ez 8;14,1-11; Sf 1,4-7.

Os atributos e nomes divinos são submetidos a um processo de afinamento ideológico, eliminando contaminações de religiosidade naturalística.

Passos do Monoteísmo:

- Iahweh é o deus da terra de Israel, assim como cada nação tem o seu Deus. Há, portanto, uma regressão a respeito da idéia primitiva do Deus pessoal. Permanece o enoteísmo e a monolatria. Jz 11, 23s; Dt 32, 8; 1 Sm 26, 19; 2 Rs 5, 17.

- Iahweh não é um deus como os demais, mas é superior a todos. Ex 15,11; Sl 82, 1; Jó 1, 6; Sl 89,6s.

- Iahweh é o Deus único e verdadeiro, pois os outros são falsos e vazios: se nada fazem, se não se manifestam, praticamente não existem. Sl 14, 1; Sl 115.

- Iahweh é Senhor do universo inteiro e não só de Israel e, portanto, é o único Deus. O desenvolvimento do universalismo sobre o nacionalismo leva à consciência de que não pode haver senão um só Deus. As afirmações mais claras do monoteísmo são do fim do período e do período seguinte. Conferir as notas da Bíblia de Jerusalém para Dt 4, 33-39; 5,6-10; 6, 4-9; Is 40,12-26; 41, 4.21-29; 42, 8.17; 43,8-13; 44,6-8; 44,24-45,8.14-25; 46,5-7.

O Deus vivo: imanente, próximo, atuante.

10

Page 11: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Dt 5,26; Js 3,10; 1S 17,26.36; 1Rs 17,1; Os 2,1; Is 37,4; Jr 10,10; Sl 42,3.9; 84,3.Dentre os vários atributos de Deus, é possível reconhecer um deles como raiz dos

demais, à luz do qual todos os outros são considerados e do qual eles parecem derivar. As teologias bíblicas que admitem essa possibilidade indicam ora um, ora outro, para essa função, por ex.: o nome Iahweh, a santidade, a graça (hesed) e a vida.

Segundo Jacob, a concepção do Deus vivo determina a solução de todos os problemas relativos à realidade de Deus. O atributo “vida” é o mais importante, porque Deus não muda nunca, permanece sempre o mesmo, Ele é o Deus vivo e verdadeiro (אמת !). Iahweh é o único deus vivo. Assim se define toda a teologia hebraica a respeito de Deus, nas suas características próprias e na preparação do mistério trinitário.

É provável que a qualificação de Deus com o atributo da vida não tenha conhe-cido um desenvolvimento histórico notável porque, desde o início, condiciona toda a revelação, dando unidade e continuidade ao Antigo Testamento (Jacob).

Com sua concepção do Deus vivo, Israel supera os problemas concernentes à existência de Deus, à possibilidade do homem conhecê-lo e falar dEle. Tais questões não constituem um problema, porque Israel se move em um nível superior de compreensão.

Assim, podemos reconhecer os seguintes traços na concepção do Deus vivo:

- Deus é a razão de tudo, fundamento, causa, Senhor absoluto, força ativa e poderosa, cuja plenitude de presença se impõe por si mesma. O seu ser se impõe com tal evidência, que parece inútil qualquer demonstração.

- Por isso, tudo e todos não cessam de louvá-lo, manifestando sua presença e ação.- Sendo plenitude de vida, nEle não há teogonia e mudanças de nenhum tipo. Desde o

primeiro instante da criação, já está totalmente presente e nunca desfalece, nem morre. Qualquer sinal de vida no mundo indica um dom seu.

- Deus não constitui um problema, a conclusão de um raciocínio, o termo de nossas reflexões ou resposta às nossas interrogações. É Ele quem interpela e quem se impõe ao nosso questionar. Ele é aquele que sempre surpreende com a intensidade e a plenitude de sua presença.

- A afirmação “Deus está vivo” é a reação primordial e elementar do homem frente à experiência e ao poder que se impõe à totalidade de sua pessoa.

- Somente Deus está deveras vivo, enquanto que os demais deuses estão mortos e os homens recebem a vida de Deus. A aspiração suprema do homem será aproximar-se de Deus, estar presente ao presente, compenetrar-se da sua presença (1 Rs 17,1). Sendo Ele o Vivente, mostrará a sua vida dando a vida aos mortos.

- O antropomorfismo bíblico é um modo de expressar a vida de Deus. O antropomorfismo não é uma concepção que pensa o ser de Deus em termos humanos, mas é uma forma de dar a entender que Deus tem mais vida do que qualquer homem. Não se trata de simples revestimento literário ou de um modo de suprir nossa incapacidade de expressar a inefabilidade do divino (DTDC 46-48).

- Porque vivo, não pode ser representado por imagens mortas (aniconismo), não tem sexo, nem corte, nem filhos. Estes elementos servem para moderar a tendência antropomórfica da Bíblia. O homem é imagem de Deus, não Deus imagem do homem!

A expressão “Deus vivo” significa, pois, a afirmação da presença plena e total de Deus em todas as coisas. Então, o nome “El” indicará essa vida, sentida como força e potência; e o nome “Iahweh”, a mesma vida captada ao mesmo tempo, como continuação e duração, por oposição às coisas que passam (Deus dos pais); vida como presença ativa, efetiva, histórica, até nos momentos de “morte” da humanidade, ou melhor, de “morte” dos filhos da promessa.

É-nos difícil, a nós, modernos, unificar todas essas conotações sob uma só idéia e um só termo. Assim também, a noção de presença não é para nós tão ligada às experiências concretas antigas. O mundo hodierno secularizado tende a negar não tanto a existência de Deus quanto, em primeiro lugar, a sua presença: Deus está ausente da vida dos homens. Os sinais da sua presença são imediatamente racionalizados, explicados com categorias do mundo. Para quem tem fé, a noção pode ser recuperada, refletindo-se sobre a experiência da presença. Conferir Bíblia de Jerusalém: Dt 5, 26 e textos paralelos.

11

Page 12: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

O Deus Santo (em hebraico = Qaddosh)

- Extensão do termo (de quem se diz): O termo “santo”, usado muitas vezes de modo absoluto, pode indicar os deuses, a corte celeste, os anjos, os profetas, os justos, os apóstolos, mas, em primeiro lugar, é atributo de Deus.

- Compreensão do termo (o que se diz): Origem e evolução do conceitoPodemos distinguir as seguintes passagens:- separado, afastado, à parte, reservado, privativo: dito de qualquer coisa;- reservado para o culto e excluído de outros usos: dito de objetos particulares,

consagrados através de um rito;- diferente, superior, melhor: dito do poder e do agir de Deus na criação e na história,

das quais ele é árbitro;- diferente, superior, melhor: dito do ser de Deus;- impecável: dito do comportamento moral de Deus (é o sentido mais comum

atualmente);- superior e melhor no amor: ninguém sabe amar como Deus (Os 11, 9 BJ).

As etapas dessa evolução se sobrepõem, de forma que “santo” torna-se um conceito complexo, com muitas conotações, usos e acepções. Cf. Lv 17 BJ; 18, 2 BJ; Is 5, 16 BJ; 6, 1-5 BJ; Ez 1 (a santidade de Deus expressa através de símbolos); Os 11, 9 BJ.

O sentido fundamental do termo é o colocado em quarto lugar acima: Deus é santo por ser absolutamente diferente, superior, original, único, auto-suficiente, inacessível, distante, invisível*, incompreensível, inefável - em relação a tudo o que não é Ele. O termo moderno que parece corresponder melhor a essa acepção é “transcendente”.

A santidade de Deus indica também, portanto, a impropriedade e a limitação da linguagem humana aplicada a Deus, nunca compreendido nem atingido por nossas palavras, pois na revelação Ele sim pode usar nossas palavras.

“Santo” é um atributo, uma característica divina, mas que tende a significar a sua essência, identificando-se com Ele, passando a ser usado como nome: o Santo.

* Moisés só pôde ver a Javé pelas costas (Ex 33,18-23 BJ, apesar de 33,11!); Elias 1Rs 19,13.

Deus, sendo santo, santifica: paradoxalmente Ele se denomina “O Santo de Israel” (14x no proto-Isaias e 16x no deutero) (Pai Santo, Jo 17,11). Ele é aquele que quer comunicar a sua santidade tornando santo o seu povo. O Deus santo tem, assim, uma idéia estranha, também essa acima da compreensão humana: estabelecer uma comunhão de vida com o homem. Como é possível, se Deus é tão diferente e superior? Isso só é possível na medida em que Deus torna santo o homem, comunicando-lhe a sua santidade. “Sede santos porque eu sou santo”: Ex 19,6; Lv 11,44; 19,1s; 20,26; 22,31s.

Deus, santo no amor, sabe doar-se como ninguém, santificando o homem; este participa da santidade de Deus passivamente (é santificado) e ativamente (é santificante: a missão). A partir de então, o homem tem a sua vida e existência determinadas, definidas e reguladas pela sua relação com Deus, torna-se transcendente em relação à vida não dirigida por Deus (1 Pd 1, 14-25 BJ).

A santidade de Deus inspira ao homem vários sentimentos e atitudes:- temor, respeito, veneração, reverência, adoração: não querer mudar Deus e as coisas

divinas, não acomodá-las a si mesmo. Lv 10,1-3; 2Sm 6,6s BJ; Jr 10,10.- consciência da necessidade de purificação, de transformação no ser e no agir para

aproximar-se dEle e do que o representa. A isso tendem os preceitos morais e rituais do Antigo Testamento. (No Novo Testamento, a graça torna possíveis os primeiros e o batismo torna inúteis os segundos). Lei da santidade: Lv 17-26.

- consciência da vocação para ser santo como Ele é santo: não no mesmo grau, nem do mesmo modo, mas do mesmo tipo de santidade.

- desejo ardente de experimentar a santidade divina, que é força de atração. (Santo Agostinho: “inhorresco et inardesco” = temo, reverencio; sinto ardor, fervor, atração).

12

Page 13: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Tema próximo a este é o do Deus escondido (Is 45,15 BJ), Deus alto, Deus profundo, de onde o tema do “mistério” em S. Paulo. Deus Santo-Transcendente é tão diferente que pode estar presente-imanente no meio do povo mais do que qualquer outro. Deus vivo e verdadeiro = Deus presente como Santo: Is 12,6; Jr 10,10; 23,23.

Qadosh foi traduzido em grego (LXX) por hagnós, hágios e, em latim, por sanctus, sacer, todos estes termos derivados de uma raiz indoeuropéia, que dá idéia de separação.

Santo é, portanto, separado, transcendente, mas não indica:- separação espacial, mas ontológica, pertença a outra categoria. Deus não é

simplesmente superior, mas é de outra natureza, embora semelhante, assim como o homem transcende o animal. A transcendência, no sentido genuíno, implica a imanência: ninguém pode estar tão próximo do homem como Deus.

- incomunicabilidade, mas vontade e capacidade de comunicar-se, somente quando, como, quanto, porque e enquanto livremente quiser, sem estar sujeito a necessidade interna ou externa.

No contexto do monoteísmo ou enoteísmo, Santo não indica, antes de tudo, o único Deus existente, mas o único Deus desse tipo, o único diferente de todos.

Outros atributos divinos, nomes e títulos (aspectos da vida e da santidade de Javé)

A denominação El Elion (Deus Altíssimo) é aplicada a Iahweh depois que se chegou a um certo equilíbrio entre o javismo e a religião de Canaã (Gn 14, 18-22).

Adon, Adonai é Senhor, sobretudo como autor dos mandamentos, distinguindo-se de Baal, que é senhor no sentido de patrão, proprietário e criador (cf. porém Os 2,18 BJ). Após o exílio, Adonai substitui, na leitura, o nome Iahweh.

Iahweh é Rei, exercendo todas as funções conexas a esse título: chefe, conselheiro, cabeça, dirigente, juiz, guerreiro que vence os inimigos. No fim dos tempos reinará sobre todos os povos. A teofania de Iahweh Rei traz estabilidade e segurança para o mundo. Conferir os salmos de entronização: 93.96-99. Na verdade, a designação é anterior ao tempo da monarquia: Ex 15, 18; Nm 23, 21; Jz 8, 23.

Iahweh é um deus ciumento (el qanná), capaz de destruir e devorar, pois não admite que se dê atenção a outros deuses (Ex 20, 5s; 34, 14; Nm 25,11; Dt 4, 24 BJ; 5,9; 6,15; 32, 16.21; Js 24,19). O ciúme é também zelo pela felicidade de Israel (Is 37, 32; Ez 39, 25). Uma manifestação próxima às duas anteriores é a cólera de Iahweh, potência de fúria, de destruição e vingança, que opera contra Israel pecador e contra seus inimigos, que são também inimigos de Iahweh. (Na 1, 2; Nm 11, 1 BJ). A taça da cólera é uma imagem particular (Jr 25, 15-28).

Mas Iahweh é sobretudo misericordioso (rahum), rico de graças, lento na cólera, numa contradição só aparente, que o cabalismo chamará de “a direita e a esquerda de Deus”. A atitude misericordiosa, amorosa, tolerante, prevalece sempre sobre a cólera (Ex 15,11; 34, 6-7.14; 20, 5s; Nm 14,18; Dt 7,9s; Sl 103, 8s; Jr 3, 12; Mq 7, 18; Hb 3,2). Esse duplo aspecto de Iahweh colérico e consolador, aparece claramente em Naum.

A aliança com Israel é exclusivamente fundada no amor, é um ato de amor tal que qualquer violação da aliança provoca a cólera violenta de Deus. É a cólera de um amante ofendido, mas sempre disposto a perdoar e a consolar, ao menor sinal de arrependimento. (Is 49, 15: o termo hebraico “rahem” indica, de modo particular, o amor visceral, o amor materno para com o filho pequeno).

A Iahweh atribui-se ainda a “hesed”, com freqüência ao lado da “emet”, termos traduzidos de diferentes maneiras, segundo as Bíblias e os vários contextos: a graça e a fidelidade são os correspondentes mais usados, mas não há tradução satisfatória. Poderia ser, também, benignidade e verdade, amor e estabilidade. A idéia central parece ser a de uma força ou poder que garante a permanência da aliança, sempre presente na relação entre Iahweh e o povo. Sl 40, 11; Gn 24, 27; Os 2, 21, BJ. (cf. tratado da “Graça”, antropologia II).

13

Page 14: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Iahweh é justo (sadiq), fiel ao programa estabelecido por Ele mesmo, fiel ao seu modo de agir e pensar porque, nas suas relações com o mundo, age segundo uma norma interior constante para realizar a salvação do povo eleito: Is 5,16; Sl 7, 10.

A glória de Iahweh (kavod, que significa: peso, valor, fulgor, grandeza, grandio-sidade, dignidade, prestígio). A glória é a manifestação e extensão luminosa e visível da santidade, a forma pela qual a santidade intocável se manifesta na presença e nas obras de Deus na criação e na salvação dos homens, também através de símbolos visuais e sinais cósmicos: Ex 13,22 BJ; 24, 16s, BJ; 33,18.22; 40,34s; 1Rs 8,10s; Is 6; Ez 1 BJ; 9-10;11,22s; 43,1-9.

Dar glória a Deus, glorificá-lo, é reconhecer e confessar a sua glória, o valor santo de suas obras, aquilo de que só Ele é capaz.

A Palavra (davar) de Iahweh é uma outra forma da manifestação de Deus, projeção para fora do seu pensamento: Sb 8, 15, cf. Bíblia de Jerusalém; 2 Rs 3, 12.

O nome Iahweh, ou simplesmente o Nome, é o que Iahweh concede de si para que o homem possa invocá-lo e seja atendido: Sl 8, 2-9; Dt 12, 5; 2 Sm 7, 13.

Temos, ainda, outra manifestação de Iahweh, quando Ele mostra a sua Face (panim): Dt 4, 37; Sl 4,7 BJ.

Da paternidade de Iahweh e do Espírito de Iahweh trataremos mais adiante.

Não desaparecem completamente na época clássica os aspectos naturalísticos de Iahweh, o que leva a uma qualificação demoníaca de sua natureza, vista como portadora de um poder ambíguo, capaz de destruir e de criar e de produzir o mal e o bem. Freqüente é a sua teofania atmosférica, carregada de lembranças mitológicas do grande deus celeste cananeu (Sl 18, 9-11). Podemos reconhecer, ainda, a presença de restos do poder agrícola fecundante (Sl 65, 8-10). Ele é o senhor da chuva, mas também da estiagem e da carestia (1 Rs 18; Jr 14). Iahweh contém em si as raízes do bem e do mal, no sentido cósmico e moral (1Sm 2, 6-7; Dt 32, 39; Is 45, 7; Ex 4, 24). É Iahweh quem envia um espírito maléfico e um espírito de mentira aos homens: 1Sm 16, 14s; 1Rs 22, 19s.

Acredita-se que Deus é o Deus de Israel somente no espaço da terra prometida (1Sm 26,19;Jr 16,13; cf. 2Rs5,17).

5 - O PERÍODO PÓS-EXÍLICO

O exílio não dá origem a uma nova religião, mas obriga o povo de Israel a reelaborar todos os dados do patrimônio da revelação, inserindo-os numa nova perspectiva, determinada por complexos fatos históricos que levam ao surgir das típicas formas do judaísmo.

Os hebreus não têm mais Templo nem sacrifícios. Conseqüentemente, a vida religiosa por um lado se interioriza, torna-se adesão espiritual, uma nova visão de Deus, deles mesmos, da história, do mundo, mais reflexiva, mais profunda, mais crítica, mais sofrida; por outro lado, se exterioriza sob formas rígidas, naquelas observâncias legais que são ainda possíveis, por exemplo: a observância do sábado, a circuncisão, os ritos de purificação, o matrimônio somente entre judeus, etc.

O centro da vida religiosa se transfere do serviço do culto sacrifical no Templo à Palavra de Deus como Lei escrita. É o tempo da revisão dos materiais textuais e da redação definitiva dos livros canônicos. Forma-se, sempre mais claramente, uma particular filosofia da história ou uma ideologia da história sagrada, que interpreta o exílio como castigo de Deus pelo pecado de Israel (Ezequiel, Juízes). Tal ideologia leva aos projetos de restauração, fundados na fidelidade de Deus, incentivados por perspectivas escatológicas que prenunciam o tempo futuro da reintegração de Israel nas suas funções de povo santo e guia dos povos. Se isso favorece o exclusivismo e o particularismo religioso de Israel, não impediu o afirmar-se, com menor peso, de uma corrente universalística.

Com a perda do Templo, também a classe sacerdotal perde a importância. O ensino da Lei é confiado cada vez mais a leigos doutos. Nasce a literatura sapiencial e está sempre mais presente a influência helenista.

14

Page 15: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

As linhas do pensamento teológico permanecem substancialmente idênticas. A experiência do exílio aguça a exigência de separação entre o sacro e o profano, entre o puro e o impuro. Iahweh é cada vez mais isolado numa santidade absoluta e intocável. É de época tardia, porém, a regra de evitar pronunciar o nome de Iahweh, substituído por Kyrios na tradução dos LXX e lido Adonai no uso corrente rabínico. A exegese textual tende a suprimir as expressões excessivamente antropomórficas e a atribuir tais ações a nomes substitutivos e a hipóstases de Iahweh.

Aos poucos vai se generalizando, por exemplo, o uso de expressões como o “Nome”, a “Glória”, a “Presença”, o “Céu” (1 e 2 Mc), o “Antigo dos dias” (Dn). Contemporaneamente, desenvolve-se toda a trama das teofanias ou hipóstases de Iahweh: Glória, Presença, Espírito, Sabedoria, etc, que servem para explicar a ação de Deus no mundo e na história, interpondo um novo limite sacro entre a essência divina e o mundo.

Afirma-se, de forma sempre mais categórica, a unicidade de Deus, identificado sem hesitações com Iahweh, como exigência da distinção de Israel em meio às nações, garantia de sua missão e como “lição” do exílio. Acentua-se a polêmica contra os ídolos, de antiga data, mas agora dirigida contra as nações, pois Israel parece finalmente imune a essa tendência (Is 40, 12-20; 41, 21-29.6-7; 44, 9-20; Br 4; Sb 13, 1-19). Surge a teoria da origem demoníaca dos deuses (Dt 32, 17; Sl 106, 37; Br 4, 7). Deus, diferentemente dos ídolos, é chamado vivente (2 Mc 7, 33; 15, 4), rei do mundo (2 Mc 7, 9), soberano (2 Mc 3, 24), eterno (Jt 12, 29; 13,8).

* * *II- O ANTIGO TESTAMENTO COMO PREPARAÇÃO

À REVELAÇÃO DO DEUS TRINO

A revelação do Deus pessoal não tem um valor simplesmente em si mesma, mas enquanto prepara uma plenitude maior de revelação. Foi iniciada com Abraão, tornando-se, assim, o primeiro elo que a liga com a futura revelação trinitária.

1 - Os hebreus viveram tal preparação sem perceber que se tratava de uma preparação.

2 - Por parte do homem, a preparação consistiu em adquirir condições para entender e aceitar a revelação. Por parte de Deus, em estabelecer uma economia pedagógica de premissas e dados parciais.

3 - Não se trata de preparação à Trindade no Antigo Testamento. Esta preparação acontece ao longo de todo o período histórico do Antigo Testamento e não, simplesmente, em momentos ou escritos particulares.

4 - Além disso, a literatura não bíblica contribui poderosamente para essa preparação.

5 - Cristo, propriamente, não anuncia uma Trindade. Ele manifesta, sem reservas, a realidade completa e profunda do Deus de Abraão. O conhecimento não aumenta através de noções vindas de fora, mas como amadurecimento e clarificação interna da própria expe-riência, iniciada com Abraão e levada ao pleno desenvolvimento.

6 - Deus sempre age como Trindade, embora nem sempre de tal maneira que nós possamos reconhecer esse mistério. Não é só Deus Pai que age no Antigo Testamento.

7 - Se Deus não quis revelar-se como Trindade, não deixou de “trair-se” algumas vezes (textos usados pelos Padres: Gn 1,26; 3,22; 11,7;18,2; Nm 6,24-26; Dt 6,4; Is 6,3.8; Ag 2,5 BJ; Sl 32,6; 67,7s; Sb 9,1s.17), com alusões só compreensíveis no Novo Testamento.

8 - Toda a religião é relação entre Deus e o homem. Os três termos são, contudo, concebidos numa infinidade de modos, em particular a imediatez da relação. Em Israel há flutuação constante na maneira de entender tal imediatez. No início, Deus está presente quase sensivelmente no meio do povo (J). Aos poucos, porém, vai se desenvolvendo uma teologia complexa, que distingue várias categorias:

15

Page 16: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- o próprio Deus, ou seja: essência, natureza, personalidade;- nomes e títulos: Iahweh, El, Shaddai, Rei;- atributos, qualidades, características, traços: justo, santo, vivo;- teofanias: do Sinai, da sarça ardente; imagens do fogo, da nuvem, etc, (sinais);- manifestações: palavra ¹, espírito, sabedoria ², glória, face, nome,(a ‘shekinah’);- hipóstases: as anteriores, como manifestações personificadas;- criaturas eminentes: anjos e demônios.

¹ Sl 119,89; 147,15s; Sb 16,12.² Pr 1, 20-33; 8,1-9,6; Jó 28,12-28; Eclo 24; Sb 6,12 – 8,1.

9 - De uma concepção ingênua, chega-se a uma teologia complexa e elaborada. Essa riqueza de dados, equilibrados no período clássico, provoca um duplo processo em tensão dialética: por um lado, a preocupação de salvar a transcendência de Deus Santo; por outro, a afirmação do realismo de sua presença na história. Se, de certa forma, atributos e nomes e alguma manifestação (glória) tendem a se identificar com Deus mesmo, cada vez mais inacessível e distante, as teofanias e outras manifestações tendem como que a “desprender-se”, constituindo-se em hipóstases (ser visto em sua consistência própria, sempre como sujeito e não predicado), de forma que se possa afirmar a ação de Deus na história, sem prejuízo de sua transcendência.

Cria-se, então, uma situação ambígua e instável: não é Deus quem se manifesta, mas algo de Deus, algo de divino, sem que se chegue a precisar a relação entre a manifestação de Deus e o próprio Deus. Quer-se, assim, distinguir entre a essência incomunicável e as manifestações, mas sem introduzir distinções internas em Deus. A única solução para tal situação obscura e contraditória será ou voltar à concepção primitiva ou aceitar a pregação de Cristo. Mas nem todos advertiam tais problemas e, na verdade, a pregação de Cristo supera os dados mesmos da questão.

10 - Quando falamos de “glória de Iahweh”, que tipo de relação exprime a preposição “de”? Por não possuirmos experiência de nenhum dos termos, só a revelação nos iluminará sobre o tipo de relação. O Antigo Testamento jamais esclarece isso, limitando-se a enriquecer os dados de cada categoria. O que no Novo Testamento serão três hipóstases distintas, no Antigo Testamento são manifestações de natureza imprecisa, mas ricas de conotações.

1- A PATERNIDADE DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO

O fato da denominação

Todos os povos antigos atribuem a Deus o título de Pai. Nisso os hebreus não se distinguem dos demais, senão por uma maior sobriedade e uma menor freqüência de uso.

Devemos distinguir dois grupos de testemunhos:- os textos, nos quais Iahweh aparece qual Pai de Israel como nação (Ex 4,22s (filho

primogênito: então outros povos também são filhos de Deus!); Dt 14,1; 32, 5; Jr 3, 19s; Is 63, 15s) ou, com menor freqüência, Pai de algum indivíduo (do rei: 2 Sm 7,14; Sl 89, 27; do justo: Ecl 23, 1.4; 51,10; Sb 2, 13. 16.18; 14,3; todos são textos tardios).

- a onomástica usa com grande freqüência nomes teóforos, nomes constituídos de dois elementos, um deles tirado do nome de Deus (El, Iahweh, na forma inteira ou reduzida: Ya,Yo), o outro designando grau de parentela (ab = pai; ah = irmão; am = mãe; dod = tio). Alguns exemplos: Eliyyahu (Elias), Yoab, Abiyyahu (Abias), Eliab, etc. (Não é clara, todavia, a significação: Abiel significa “Deus é meu Pai” ou simplesmente “Deus é Pai”?).

Comparando o uso hebraico com o uso dos povos antigos notamos o seguinte: - quanto à onomástica: com o passar do tempo tornaram-se sempre mais raros. Não

aparecem nomes compostos com os termos “filho”, “mãe”, “tio”.- quanto aos textos:

- o único termo de parentela é pai (nunca mãe, irmão, tio...);- mesmo assim, o termo é raro e só parece ser usado a partir do século IX;- tem, praticamente, sempre sentido coletivo;- a designação é sempre afirmativa e feita por Deus; não há invocação por parte

do homem. Exceção: Is 63,16; 64,7; Sb 14,3; Eclo 23, 1.4; 51,10; Textos especiais: Sl 89,27: invocado pelo Messias; Jr 2,27: ‘Pai’ dirigido aos

16

Page 17: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

ídolos; Jr 3,4 é lamento de Deus por não ser invocado como Pai; Jr 3,19: promessa de invocação futura.

Origem e significado

Podemos reconhecer no povo hebreu duas linhas de pensamento:

- Concepção comum a todos os povos: Deus é Pai porque é criador (no sentido amplo do termo), providente, porque tudo vem dEle. O termo “pai”, para os antigos, evoca autoridade e proteção, não ternura. Inicialmente os hebreus possuem a mesma mentalidade dos demais semitas (embora menos entusiasta). É expressão disso o uso de nomes teóforos. Mas, à medida que percebem as exigências do javismo, vêem o perigo de confundir Iahweh com os demais deuses e vão abandonando tal uso, acentuando assim a concepção de um Deus espiritual, santo e único.Cabe aqui a antiga concepção de Deus como Pai de deuses e anjos: Gn 6,2; Jó 1,6 BJ;2,1; 38,7 (Deus criador dos astros?); Sl 29,1;82,6 (juízes comparados aos anjos da corte celeste); 89,7.

- Concepção própria de Israel. Consta de três traços originais: - Iahweh é Pai porque é criador da existência nacional de Israel (Ex 4,23; Dt 32, 6; Is

43,6; Tb 13,4). Tal idéia parece ter surgido já no tempo do êxodo e não depende de influência estrangeira. O título é coerente com o tema da eleição e da aliança (Jr 31, 9).

- Deus é Pai porque ama o povo com ternura: é a contribuição dos profetas ao tema (na linha de Oséias, Deuteronômio, Jeremias, 2 Isaías). Para os semitas, chamar alguém de pai significa reconhecer seu domínio e seu direito ilimitado de dispor dos filhos. Tal concepção está presente, também, entre os hebreus, mas é secundária (Os 2, 1-3.25; 11, 1-11; Dt 1, 31; 8, 5; 14,1; 32,6.10; Jr 3,4. 19; 31, 9. 20; Is 1,2; 49, 14-16; 54, 8 BJ; 63, 15-16; 64, 7-8; 66,13; Ml 3,17; Sl 27,10; 103; 131,2s).

Aparece assim o aspecto maternal¹, - expresso com o termo ‘rahamim’, o amor pelo fruto do ventre -,

e esponsal da paternidade divina (Os 1,2-9; 2,4-3,5 BJ; Is 54,1-10; 61,10; 62,4-5; Jr 2,2; 3,20; 31,2; Ez 16,8.60).

- A paternidade de Iahweh liga o povo a compromissos de ordem moral. Como Pai, Iahweh multiplica seus benefícios na história. Como filho, Israel tem o dever da fidelidade e da santidade de vida. Quem deu a Israel a vida, deu-lhe também um modo santo de viver. (Dt 8,5-6; 2Sm 7,14; Is 1,2-4; 30,9; Jr 3,22; 4,22; Ml 1,6; 2,10; Jó 5,17; Pr 3,11-12; Sb 11,9s; cf. Hb 12,5-13; Ap 3,19).

Como dados posteriores ou colaterais podemos reconhecer os seguintes:

- Deus criador de tudo e Pai de todos, mas Israel (incluindo o reino do norte: Jr 31, 9.20) é o primogênito. Is 45,11-12; Am 9,7.

- Deus Pai dos autênticos israelitas, dos justos. Eclo 4,10; 23,1.4; Sb 2,13.16-18 BJ. Pai dos levitas: Sl 29,1 (?)

- Deus como Pai do rei e, portanto, do Messias, Pai porque lhes confia força e missão particular. O Messias e o rei agem por força de um poder que é pessoal de Deus e concedido por Ele. 2Sm 7,12-16; 1Cr 22,10; Sl 2,7; 89,27-28.

Notamos assim duas tendências opostas, a alargar ou restringir o sentido do termo.

A paternidade divina apresenta-se, portanto, em Israel, como verdadeira e real, embora ainda metafórica, pois são tomados em consideração somente aspectos derivados, como o amor, a proteção, a ajuda, e não se toma, até então, como referência a geração biológica individual. Deus é Pai porque escolheu livremente ser Pai e de quem ser.

¹ Clemente de Alexandria: “Com a sua misteriosa divindade Deus é Pai, mas a ternura que o inclina para nós, faz com que se torne mãe. O Pai, ao amar, torna-se maternal“ (Quis dives salvetur, 37).

2 - O ESPÍRITO DE IAHWEH

17

Page 18: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Etimologia e analogia

O termo “espírito” (hebraico: “ruah”*רוח ; grego: “pneuma” [neutro]; latim: “spiritus”) veicula a experiência primitiva do ar em movimento, sob duas formas:

- natural, cósmico: vento (da brisa ao furacão);- antropológico, interior: respiração, hálito, alento, sopro.

Essa base nunca desaparecerá, apesar dos gigantescos desenvolvimentos filosóficos e religiosos do termo. Cf. Jo 3,8; 20, 22.

* Em geral gênero feminino; masculino em: Ex 10,13; Jó 4,15; 41,16; Ecl 1,6; 3,19.Quando é seguido de “santo”, de “Iawé”, de “Deus”, e quando não? Quando em antítese com “carne”?

Compreensão do termo: Analisando mais a fundo a base analógica, percebemos que ambos os aspectos têm características próprias que induzem uma intuição das características divinas:

- - o vento é energia em movimento que existe dentro dele, não vem de fora, de algum modo ele produz sua força motora;- sua origem é misteriosa, desconhecida, embora tenha uma (Jo 3,8);- o vento tem um rumo, uma direção, embora desconhecida por nós (Jo 3,8);- sua manifestação é imprevisível, de certa forma dá a idéia da liberdade;- não tem forma, não é visível nem representável;- na forma de ar, sua presença parece não se distinguir da ausência, e no entanto está em tudo sempre (Sb 8,1);

- o vento arrasta em seu movimento o que encontra, leva para onde vai, é mais forte do que o homem, produz transformações (Ecle 8,8); - produz efeitos contrários, pois aquece e refresca, restaura e provoca aridez;- o ar está presente em tudo sempre, mas não se identifica com nada;

- - a respiração é íntima e imperceptível, é sinal e sede de vida (para os antigos);- na visão primitiva, embora o ar-sopro esteja dentro do homem, ele vem de fora, do alto;- é necessário para a vida, mais do que o alimento ou a água; (Se Jesus é o pão e o Espírito é a água, o Espírito é mais necessário e universal do que Jesus!). - o homem o sente como um impulso que o anima e move, até de uma forma estranha à sua consciência.

Trata-se, portanto de realidades misteriosas e que fogem ao controle do homem, mas das quais ele depende inteiramente. Deus foi identificado como Espírito porque se reconhece que Ele se apresenta como o mais necessário, mas também o mais independente e transcendente. É Espírito e Santo (mas e quando não é chamado de santo?).

Vejamos a extensão do termo, para a qual temos duas passagens:Primeiro: Deus, Iahweh, é Senhor do vento e do sopro. Ele é o doador e conserva o dom

sob seu controle: o espírito vem de Iahweh. O vento que provém das narinas de Deus vai até o íntimo do homem, e por isso ele vive.

Em decorrência: Deus tem um modo de se comportar parecido com o do vento e do sopro. Deus age e se manifesta como espírito, porém sem se reduzir a tais manifestações: é o espírito de Iahweh (a expressão recorre 389x no AT !). Para estar próximo do homem, Deus se manifesta de modo semelhante ao vento, com ações irresistíveis que estão acima da capacidade humana, mas também como uma ação íntima, profunda e vital, que transforma misteriosamente a vida. Toda a vez que o homem experimenta uma novidade ou mudança extraordinária e misteriosa, ele a atribui não simplesmente a Iahweh, mas ao espírito de Iahweh, a Iahweh que se comporta e se manifesta de modo semelhante a uma sua criatura.

Em seu sentido teológico primeiro, o espírito é o mesmo Iahweh, reconhecido em termos de potência operativa e transformadora. Com o progressivo afirmar-se da tendência a preservar a santidade de Iahweh, o espírito passa a ser tratado sempre mais como uma realidade autônoma, mas da qual Iahweh se serve para entrar em contato com o mundo.

Textos principais: Ex 15, 8-10; Os 13, 15; Is 40, 6s; Jo 3, 8 (vento); Gn 6, 17 (BJ); Jó 34, 14s; Ecl 12, 7; Jo 20, 22 (sopro).

Expressões da ação do Espírito de Iahweh nas pessoas *

18

Page 19: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- Carismáticas transitórias: juízes, heróis (Jz 3,10; 6,34; 11,29; 14,6.19;15,14-16), profetas extáticos (Nm 11, 17. 24-30; 24,2; 1Sm 10,6s.10; 19,19-24);

permanentes: profetas (2Sm 23,2; 1Rs 18,12; 2Rs 2,1-15; Ez 2,2; 3,12.14.24), reis (1Sm 9,16; 11,6; 16,13.14 BJ), sábios (Sb 7,7.22 BJ; 9,17).

Para garantir a plena eficiência de atividades que estão acima da capacidade humana é necessário o Espírito (Mq 3,8).

- Morais: a observância perfeita e fiel da lei é possível, se o homem receber o espírito de santidade, que o faz superar a fragilidade de sua natureza humana (Sl 51, 12-13; Ez 36, 27 BJ; Zc 12,10; Sl 143,10). Dá conhecimento e sabedoria (Ex 31,3;35,31; Dt 34,9; Jó 32,8).

- Messiânicas: a ação múltipla e dispersa de Deus não era suficiente para garantir o cumprimento da promessa. Foi-se criando, assim, a convicção e a esperança de que toda a ação divina iria um dia concentrar-se num só tempo, para levar a termo o conteúdo da promessa. Era a espera pela efusão total do Espírito, mais ainda do que a esperança do próprio Messias: Is 11, 1-9 BJ; 42, 1-7; 61, 1-3. Efusão coletiva: Nm 11,29; Is 32,15-20; Ez 36,24-28; 39, 27-29; 37, 1-14; Jl 3, 1-2 BJ; Zc 12,10.* Quanto ao Espírito na criação: Gn 1,2; Jd 16,14; Jó 33,4; 34,14s; Sl 33,6; 104, 29s;

139,7; Sb 1,7; Is 32,15; cf. Jo 6,63. Ação do Espírito na história: Is 63,10-14.

Os símbolos do ar e da água levam ao simbolismo da nuvem, a velar a transcendência da glória do Deus Santo: Ex 13,22 BJ; 24,15-18; 33,9s; 40,36-38; 1Rs 8,10-12; Lc 1,35; 9,34s; At 1,9.

A unção com óleo era o rito que podia acompanhar a comunicação do Espírito (1 Sm 16, 13), além da imposição das mãos (Dt 34,9). Aquele que recebia o espírito era chamado “Ungido”, mesmo que faltasse o rito externo. Assim: Ungido = Messias = Cristo. Ungido por excelência será aquele que receber a plenitude do Espírito. Por que o óleo? Porque dá força e resistência, tem uso medicinal, é penetrante. Aromatizado, traz alegria e suavidade. Conservado no corno, símbolo da força e instrumento de sopro.

Se o braço e a mão simbolizam a potência criadora de Deus, o Espírito de Javé, o dedo irá indicar as obras mais refinadas: Ex 31,18; Lc 11,20; 2Co 3,3. Quanto aos símbolos para indicar o Espírito cf. CatIgrCat 694-701.

Foi proposta outra explicação para o sentido etimológico do termo ‘espírito’. Ele indicaria então o espaço, o espaço vital, uma profundidade e uma amplidão de horizontes que se abrem. A preposição que lhe condiz é a preposição “em”. Por ser espaço, ele torna possível a respiração, o ar dentro e o ar fora.

O termo ‘espírito’, ao se definir e especificar lentamente, foi adquirindo uma extensão que foi além de sua aplicação teológica e mesmo religiosa:

- sentido original, obsoleto hoje: vento, sopro, presente, todavia, em termos derivados: in-spirar, re-spirar, a-spirar, con-spirar, pneumático, pneumonia, e outros.

- Deus como espírito, referindo-nos à natureza divina imaterial;- o Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade; - os espíritos angélicos ou

demoníacos;- o espírito humano, a alma, a mente, o intelecto;- os espíritos dos falecidos; - o espectro ou fantasma;- um modo de viver ou de pensar, bom ou mau, uma mentalidade (por ex.: espírito de fé);- o Espírito Santo presente no justo, o estado de graça.Naturalmente, será muitas vezes difícil entender o sentido preciso do termo e encontrar uma

tradução apropriada. Os tradutores não sempre coincidem na interpretação. Correspondentes pagãos são por ex.: gênio, ‘daímon’. Cf. M. GIRARD, Os símbolos na Bíblia, Paulus 1997, 258-340 (o vento); 360ss (a nuvem).

III - JESUS REVELA O PAI(BINGEMER 76-79)

(completar com as apostilas de cristologia e de antropologia II)

19

Page 20: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Jesus é a revelação do Pai, com a sua pessoa, ações, gestos e palavras.

A pregação é para os pobres e para quem tem ouvidos para ouvir:

- não é informação para enriquecer a cultura;- não é retórica dotada de todos os argumentos para convencer e provar com evidência

irrefutável, tornando obrigatória a aceitação;- não é apresentação completa e sistemática,

pois trata-se de uma pedagogia dirigida aos dóceis para que cheguem, pessoalmente e naturalmente, a certas conclusões não antecipadas em forma de tese ou postulado. É pedagogia dirigida em primeiro lugar a levar a acolher como dom a comunicação pessoal de Deus, vivendo em comunhão com Ele, para que Deus viva no homem a comunhão de vida que o constitui trinitário.

Jesus fala em virtude de uma consciência profunda de uma realidade que para Ele é tão íntima quanto o próprio ser. Não fala como quem sabe por ter aprendido ou descoberto recentemente ou como se fosse o resultado de um progresso no saber, independente do crescimento no ser. Esse é o seu modo de saber e de dar a conhecer.

Deus é Pai dos homens : no início da vida publica é esse o aspecto acentuado. Jesus não propõe rupturas com o Antigo Testamento. Propõe novidades, mas nada que rompa com o Antigo Testamento, do qual retoma o conceito, intensificando a gratuidade, a misericórdia e a bondade do amor paterno para com todos os homens, tirando conclusões práticas até então inaceitáveis e inimagináveis, colocando a fé e a salvação em dependência não da Lei, mas do conhecimento e da aceitação do amor do Pai (Mt 9,13; 12,7). Mesmo quando não fala explicitamente do Pai, tudo tem nele a sua razão de ser.

Se no AT Deus é visto como Pai do justo, Jesus ressalta que a perfeição da justiça do Pai está na misericórdia que ama até mesmo os inimigos (Mt 5, 43-48 // Lc 6,36). Se já no AT Deus é Pai dos pobres (Sl 68,6), Jesus insiste na Providência em termos que parecem exagerados (Mt 6, 25-34 // Lc 12,22-32; Mt 10,29-31), pois o Pai é generoso (Mt 7,11//Lc 11,13) e faz o bem porque lhe agrada (Lc 10,21 // Mt 11,26; 12,32).

Em particular, as parábolas da misericórdia revelam um Pai até então desconhecido (os judeus são o irmão mais velho da parábola do filho pródigo: Lc 15; Mt 18,12-14) e justificam o comportamento de Jesus que, em sua vida terrena, deve encarnar os sentimentos paternos porque é, com o Pai, uma coisa só. Pai do pecador (Lc 15), Deus é ainda Pai atencioso do necessitado (Mt 20, 1-16). Por ser o Filho que revela nele quem é o Pai, Jesus age por compaixão (Mc 1,41; 6,34; 8,2; Mt 18,27-35; 20,34; Lc 7,13;10,33).

Na oração Deus quer ser tratado como Pai (Mt 6,5-9 // Lc 11,13; Mc 11,25), assim como na esmola (Mt 6,2-4) e no jejum (Mt 6,16-18). O perdão (Mt 6,12.14s // Lc 11,4; Mt 18,35; Mc 11,25) e todas as obras são motivadas na qualidade de Deus como Pai, da maneira como Ele é Pai (Mt 5, 16; 6,1; 13,43). Por tudo isso, Pai como Ele somente Ele (Mt 23,9). Toda a missão de Jesus se resume em revelar o Pai (Jo 17, 3.26).

O termo ‘Pai’ é especialmente caro a João (118x) e a Mateus (44x, contra 5x em Mc e 17x em Lc): “Vosso, teu Pai”: 5,16.45.48;6,1.4.6.8.14.15.18.26.32; 7,11;10,20.29; 18,14;23,9.Comparar: Mt 7,21// Lc 6,46; Mt 10,32s // Lc 12,8s; Mt 12,50 // Mc 3,35; Mt 20,23 // Mc 10,40; Mt 26,29// Mc 14,25. Lucas tem em próprio somente 12,32.Mc nunca refere ‘meu Pai’. 11,25s: ‘vosso Pai’; 8,38: ‘seu Pai’ (do Filho do Homem); 13,32: ‘o Pai’. Em compensação é o único a lembrar a expressão ‘Abbá’: Mc 14,36.

Todavia e portanto, se outros se tornam filhos, Jesus se apresenta como sendo o Filho !

Deus é Pai de Jesus de uma maneira única, própria, exclusiva e concreta (cf. cristologia):

- Jesus chama Deus sempre de “Pai” (44x em Mt*; 118x em Jo), revelando uma preferência exclusiva (não usa os títulos da piedade judaica: o Trono, o Bendito, o Nome....) que leva o título a ser praticamente um nome próprio. O Pai é sempre o “seu” Pai. Ele nunca fala de José e Maria.

* Meu Pai: 7,21;10,32-33;11,27;12,50;15,13; 16,17;18,10.19.35;20,23;25.34 (41?);26,29.39.42.53; Pai: 11,25-27; 24,36;28,19; Seu Pai: 16,27 (do Filho do Homem); 13,43 (dos justos); Referências exclusivas de Lc: 2,49; 22,29; 23,34.46; 24,49.

20

Page 21: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- A oração de Jesus: reza sozinho (Mc 1,35; 6,46; 14,32; Mt 14,23; Lc 5,16; 6,12; 11,1), pois Ele é Filho único, sempre chamando a Deus de Pai. Provavelmente sempre usou o termo aramaico “Abbá” (próprio só para o pai biológico), Mc 14, 36, para dar a entender o realismo e a familiaridade confiante de sua relação filial com Deus. No tempo de Jesus, na sinagoga os judeus já invocavam a Deus como Pai, mas não com o familiar ‘Abbá’; portanto, em hebraico e não na fórmula ‘meu Pai’. Mt 11,25-27 // Lc 10,21s; Mt 26,39.42; Lc 22,42; 23,34.46; Jo 11,41; 12,27s; 17,1.5.11.21.24s. Se Mc é o que menos lembra Jesus chamando a Deus de Pai, ele é o único a lembrar o ‘Abbá’, e no momento menos esperado, na hora do abandono da paixão (cf. Gn 22,7).

- O modo de Jesus falar e de se comportar: nunca diz “Pai nosso” (em Mt 6,9 são os discípulos que assim devem dizer). Embora todos sejam filhos, somente Ele tem autoridade para falar em nome do Pai e acima da Lei (Mt 5, 22.28.32.34.39.44). Ele apresenta a sua vida inteira como uma obediência total e exclusiva ao Pai. O Pai – além das Escrituras, mas não à Lei - é a única pessoa a quem Ele se refere de forma constante: Jo 8,54-56; 20,17. Diferentemente dos Sinóticos, em Jo Jesus fala do Pai sempre como Pai dele: somente após a ressurreição diz “... meu Pai e vosso Pai” (20,17), marcando a diferença da filiação.

- A sua vida e a sua morte constituem o cumprimento de uma missão confiada somente a Ele e que só Ele pode cumprir: é o único enviado, porque único Filho. No fim resume toda a sua obra: “Eu lhes dei a conhecer o teu nome” (Jo 17,26), o nome de Pai.

- Nas parábolas, Jesus aparece em posição de singular intimidade: Ele é o Filho e Filho amado, os demais são servos (Mc 12, 1-12).

No batismo e na Transfiguração, Ele é o Filho muito amado; tem todo o amor porque é único (Mt 3,17; 17,5). Lucas acentua o estado de oração ao Pai: 3,21; 9,28s.

- Só Ele conhece e ama o Pai, e por isso só Ele pode falar do Pai (Mt 11, 25-28* comparado com Jo 10, 14s; 17; Eclo 24). Somente Ele pode falar do Pai porque somente Ele é Filho. Jo 6,46b: “Só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai”: só Jesus sabe e pode revelar que Deus é Pai e como Ele é Pai. Jo 1,18: “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho Unigênito, que está voltado para o seio do Pai, o deu a conhecer”, o deu a conhecer exatamente como Pai.

* Note-se: ao Pai aprouve, o Filho revela o que quiser: são iguais na liberdade e gratuidade!

- O Evangelho de João contém as afirmações mais explícitas e abundantes a respeito das relações entre o Pai e o Filho. O Filho é o Unigênito (1,14.18), um com o Pai no agir (5,17-20.30: No Antigo Testamento julgar e dar a vida são atribuições exclusivas de Iahweh) e no ser (10,30.38: usa o neutro: ‘hen’: uma coisa só; 14,10s;17,21). Ver o Filho é ver o Pai (14,9). 16, 15; “Tudo o que o Pai tem é meu”; cf.Mt 11,27; 28,18. Jo 8,58: “Antes que Abraão nascesse, EU SOU”.

Portanto, Deus é Pai porque desde toda a eternidade possui um Filho igual a Ele. Deus é chamado de Pai por judeus e cristãos, mas para estes Deus é Pai porque tem um Filho igual

a Ele, pois é na relação com o Filho que Deus é Pai. Os pagãos vêem a Deus como Pai para criaturas e escravos.

O modo, portanto, como Jesus fala do Pai, de Deus seu Pai, nos obriga a entender a unidade e unicidade de Deus, de forma nova e complexa. Abre-se novo capítulo após o enoteísmo e o monoteísmo. Introduz-se a negação dentro de Deus, no sentido em que se percebe com clareza que o Filho não é o Pai. A divindade de Jesus não é afirmada diretamente, mas dada a entender.

IV - O ESPÍRITO SANTO NO NOVO TESTAMENTO

A nossa tarefa será esclarecer que o Pai, o Filho e o Espírito são divinos, distintos entre Eles e que apresentam as mesmas características expressas no Antigo Testamento, além de outras novas. Estas novas características definem com maior exatidão o que foi revelado no Antigo Testamento, indo, porém, além do esperado e do que podia ser previsto, e concluindo um processo de hipostatização (processo de diferenciação entre as Pessoas) que começou e acentuou-se no Antigo Testamento, sem, no entanto, compor um quadro coerente.

Para o Espírito, a questão mais delicada é a sua distinção, ou seja, o poder-se afirmar que Ele não é os outros dois, embora não menos divino do que as outras Pessoas. Essa ocultação do Espírito é a sua quênose (cf.Fl 2,7). De fato:

21

Page 22: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- “Espírito” não é nome próprio, pessoal, de relação, mas nome comum, de atividade ou função;

- o termo “espírito” tem, pelo menos, cinco acepções no Novo Testamento: alma, graça santificante, atributo da atividade divina, personificação e pessoa distinta, que é o que se precisa averiguar. Para essa última significação há textos certos e outros apenas prováveis (Cf. Bíblia de Jerusalém, Rm 1,9) e p.21.

1 - O Espírito Santo na vida de Jesus

Não há no Novo Testamento a preocupação de reconhecer a distinção das Pessoas, mas sim a de expressar a presença do Espírito em Jesus, presença plena, ativa, permanente, de maneira que Jesus seja reconhecido como o Messias, - o que possui e o que dá o Espírito - e de que tudo estava dirigido para Ele, o Jesus de Nazaré.

Fatos:

No Batismo (Mc 1,9-11 // Mt 3,13-17 // Lc 3, 21-22) temos:

- A manifestação oficial de Jesus a Israel como o Messias ungido pelo Espírito. Sobre Ele repousa o Espírito, o que vem a ser um novo início para a história. O simbolismo da pomba é incerto (referência a Gn 1,2? a Gn 8,10s ? a Ct 2,14; 5,2?). O mais importante é que se trata de manifestação visível.A descida do Espírito Santo é como uma unção, porém em vez do óleo, é derramado o Espírito Santo “em pessoa”. Cf. At 10, 37s; Is 61,1; 42,1: Jesus é apresentado como o Messias, na veste profética do servo de Iahweh.

- A revelação do modo como Jesus realizaria sua função: sendo o depositário do Espírito, Cristo irá distribuir o Espírito como princípio de justificação e santidade. O Messias não possui o Espírito só para poder agir em favor dos homens, mas para distribuir o que recebeu. Os homens não irão gozar apenas dos frutos do dom do Espírito, mas receberão de Jesus o mesmo Espírito que ele possui. Cf. Mc 1,7s; Lc 3,16s; Jo 1,32s. A vida eterna vem do Espírito Santo, mas Ele só vem quando enviado por Jesus. É por isso que o “sopro” vem da boca de Jesus (Jo 20,22).

- É uma experiência pessoal de Jesus, que recebe o Espírito como impulso dinâmico e interior para agir como o Messias (cf. apostila de cristologia).

Na vida pública de Jesus, o Espírito é sempre operante. Expressões que resumem sua vida pública:

- Deus estava com Ele (por meio do Espírito: At 10,38).- Jesus é movido pelo Espírito em tudo o que faz após o batismo: Mc 1,12// Mt 4, 1// Lc

4, 1; Lc 4, 14.18; 5, 17; 10,21. Em especial, as curas, a pregação e a expulsão dos demônios: Mt 4, 23; 8,16s; 12,28.

- ...lhe dá o Espírito sem medida (tradução possível): Jo 3,34 (Lecionário da missa: espírito em letra minúscula!).Os sinóticos referem o fato da presença do Espírito em Jesus e João oferece um motivo: o Espírito compete ao Messias, porque é Filho, um com o Pai.

Em particular, Lucas é o evangelista do Espírito. No evangelho e nos Atos temos uma descrição rica e variada da sua presença e ação no Cristo e na Igreja. É incerta, porém, a interpretação da distinção e personalidade do Espírito. Além dos textos já citados, cf. Lc 1, 35; Mt 1,18.20 (concepção); Lc 10, 21 cf. Mt 11,25 (oração); Lc 1, 15 (santificação do Batista); 1, 41 (Isabel); 1, 67 (Zacarias); 2, 25. 27. 36s (Simeão e Ana).

Sobre o símbolo da nuvem na transfiguração Mc 9,7 // Mt 17,5 // Lc 9,34 cf. p. 21.

Ditos:

22

Page 23: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Jesus não fala abertamente do Espírito. O pouco que encontramos a respeito permanece quase só dentro do quadro do AT: Espírito significa a força e poder de Deus.

- Lc 4, 16-21: discurso inaugural na sinagoga de Nazaré (citação de Is 61,1s).-

-

Mt 12, 28//Lc 11,20; Mc 3, 28s// Mt 12, 31s// Lc 12,10: ação do Espírito na expulsão do demônio e blasfêmia contra o Espírito.Mc 12,36 (o Espírito Santo) // Mt 22,43 (espírito): inspiração (// Lc 20,42 omite!)

- Mc 13, 11 // Mt 10,20 // Lc 12,12: o Espírito nas perseguições.--

Lc 11, 13: pedir o Espírito na oração (cf. Mt 7, 11).Mt 28, 19: o mandato missionário.

Há uma série de textos onde os termos “força, poder, virtude” poderiam ter sido interpretados posteriormente como “Espírito”: Mc 5, 30; Lc 5, 17; 6, 19; 24, 49. Cf. Lc 11, 20 comparado com Mt 12, 28: Espírito ou dedo de Deus? Ainda: Mc 12,36 // Mt 22,43 // Lc 20,42.

Mc 3, 29 // Mt 12,32 // Lc 12,10 foi sempre considerado, na tradição, como tendo especial valor dogmático: o Espírito aparece distinto de Cristo e relativo a Ele.

2 - O Espírito Santo na vida da Igreja (Atos e Paulo)

Aqui se impõe uma pergunta: se o Senhor pouco falou do Espírito, como é que Paulo e João demonstram um conhecimento tão rico e, sobretudo, um reconhecimento tão claro da distinção do Espírito Santo e da sua personalidade?

Na formação do dogma trinitário tiveram um papel fundamental as experiências carismáticas da comunidade primitiva. Por fenômenos pneumáticos entendemos:

- os vários Pentecostes (At 2, 1-42; 4, 31; 8, 15.17; 10, 44s;19,6). A primeira efusão do Espírito tem, para a Igreja, a mesma função do batismo para a vida pública de Cristo. Às vezes a comunicação do Espírito é significada pela imposição das mãos (At 8, 18).

- as intervenções extraordinárias (carismas): milagres, curas, ilustrações, êxtases, dom das línguas, profecias, interpretações, especialmente em Corinto..

- as reações anímicas: paz, alegria, coragem (“parresía”), confiança, fé, etc., também em meio às tribulações (At 5,40s).

-

As conversões, a propagação da fé, a unidade e santidade da comunidade primitiva (At 2,41-47; 4,32-35; Gl 3,28). Para esses textos cf. notas das Bíblias: BJ; TEB; BP.

As comunidades de Paulo devem ter conhecido manifestações impressionantes do Espírito: Gl 3, 2.5; 1 Ts 1, 5; 1 Cor 2, 4; 2 Cor 12, 12. Paulo teve de se preocupar em corrigir as fáceis distorções e excessos. Mas essa exuberância parece ter tido grande importância no reconhecimento da personalidade do Espírito Santo.

Pode-se presumir que o que levou os cristãos à persuasão da distinção do Espírito Santo, análoga à distinção entre o Pai e o Filho, tenha sido a sua manifestação diferente, de ordem carismática. O que começou a acontecer nos vários Pentecostes foi diferente de tudo o que acontecera antes, durante a vida de Jesus, e passou a acontecer mesmo sem a presença física visível dEle.

Carismas, estados interiores de paz, conversões repentinas e profundas, compreensão da palavra e do mistério de Cristo, força nas perseguições, esperança do Reino...acontecem só agora. Se o Espírito não fosse distinto de Cristo teria se manifestado dessa maneira durante a vida de Jesus e não sem o Cristo visível, após a ressurreição. Essa sucessão de etapas induz a atribuir ao Espírito uma certa “autonomia”. Efeitos diferentes indicam que pessoas diferentes os produzem; efeitos relativos insinuam o único Deus.

Porém, do texto do livro dos Atos e das referências nas cartas de Paulo à vida das comunidades, não aparece de maneira clara a distinção e a personalidade do Espírito. Tudo ainda pode ser interpretado no quadro e mentalidade do Antigo Testamento: a novidade é que o Espírito se manifesta agora em Jesus Messias e na comunidade messiânica unida a Ele. Assim, toda a iniciativa apostólica na difusão do Evangelho é dirigida por ação do Espírito (At 11, 24; 2, 4; 13, 52: “cheios do Espírito Santo”).

É o Espírito que dirige a Igreja e sugere as decisões (4,8: Pedro ao Sinédrio; 8, 29: Filipe; 10, 19s: Cornélio; 15, 28: Concílio de Jerusalém; 16,11: viagem de Paulo). O Espírito é a

23

Page 24: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

manifestação iluminativa de Deus no governo da Igreja nascente. O Espírito é, portanto (o texto não obriga a ir além disso), a personificação da ação divina que dirige os representantes e os membros da Igreja que receberam o poder do alto (Lc 24, 49) e o batismo no Espírito (At 1, 5). Cf. At 1, 8, Bíblia de Jerusalém.

O texto onde já se prepara a consciência da distinção do Espírito ou onde ela já se encontra em forma embrionária é o de Atos 19, 1-7, que se refere aos joanitas de Éfeso que recebem o batismo de Jesus e, depois, o dom do Espírito em forma carismática. Significativo é o Espírito falando em primeira pessoa: At 10,19s; 13,2; 21,11.

Na formação da doutrina teológica de Paulo, que passaremos a examinar, influíram vários fatores: a experiência do Espírito (comum e mística, pessoal e comunitária), a cultura judaica, rabínica e helenista, a catequese e a vida das comunidades e o seu esforço de compreensão e reflexão pessoal.

3 - O Espírito Santo na primeira reflexão teológica (Paulo e João)

São Paulo: (Completar o estudo com as apostilas de cristologia, antropologia II e de eclesiologia)

Possui doutrina extremamente rica, apresentada aqui esquematicamente.

- A doutrina de Paulo está em continuidade com o Antigo Testamento, no qual se manifesta a ação de Deus, ora produzindo efeitos extraordinários, carismáticos, ora transformando a vida pessoal dos homens para que observem a Lei.

- Para Paulo, o Espírito age no Cristo celeste (Messias e Senhor) e, a partir dEle, no cristão, produzindo neste efeitos carismáticos e, sobretudo, uma vida nova, visando a formação do único Corpo de Cristo. Dentre os primeiros, notemos: a pregação (1 Cor 2,1-5) e os vários carismas: profecias, milagres, curas, interpretações, etc (1Ts 1,5; 1Co 12,4-11; Gl 3,5; Ro 15,18s). A vida comunicada pelo Espírito é uma vida nova, diferente da anterior, que era própria de gregos e judeus; é interior, pois provém do alto e reside no coração; e é espiritual, porque nela o Espírito comunica ao homem o seu modo de comportar-se, todo ele relativo a Cristo. Assim cria um homem novo, interior e espiritual, em harmonia com a nova aliança, interior e espiritual.

Essa vida é interior, pois o Espírito tem sua sede no coração, onde é primícia, germe e arras e onde procura tornar o homem capaz de obedecer livremente à vontade do Pai, manifestada em Cristo: esse dom é a caridade (Ro 5,5 BJ).

O Espírito, no coração, não é simples estímulo, guia, hóspede, consolador, mas é, sobretudo, princípio operativo, energético, exercendo uma atividade própria e original, denominada frutos do Espírito (Gl 5, 22). O Espírito exige, provoca, requer tais frutos, através dos quais Ele se exprime, levando o desígnio do Pai até a sua última atuação de poder na ressurreição da carne.

O Espírito age no cristão para formar para Cristo um único corpo, que é a Igreja e para, através desta, agir no cristão (1 Cor 12, 13; Ef 2, 16.18; 4, 4).

No dom interior do Espírito temos o fato decisivo da separação entre o Antigo e o Novo Testamento: o que faz novo o Novo Testamento é o dom interior do Espírito como fruto da Ressurreição de Cristo. Com esse dom são cumpridas todas as promessas (Ez e Jr) e a esperança messiânica alcança seu objetivo (2 Cor 3; Ez 11, 19; 36, 26; Jr 31, 33; 32, 40). Ao cristão transmitem-se os privilégios de Israel: a Lei, o Templo, a circuncisão, o sacrifício, o ser filho de Abraão, o ser povo eleito.

- O Espírito Santo é distinto do Pai e do Filho, com os quais mantém relações de origem e missão (1 Cor 2,12). É Espírito de Deus (Rm 8, 5. 9. 14; 1 Cor 2, 11.12.13), Espírito do Filho (Gl 4,6), Espírito do Senhor (2 Cor 3, 17), Espírito de Cristo (Rm 8,9), Espírito de Jesus Cristo (Fl 1,19), Espírito da boca do Pai (2 Ts 2,8). Ele tem atividades pessoais: ensina (1 Cor 2,13), fala (Gl 4, 6; Rm 8,15), habita, age como lhe agrada (1 Cor 12,11).

Se Ele tem, tão somente Ele, certas atribuições em comum com o Pai e o Filho, por exemplo: habitar no cristão e habitar como num Templo (2Co 6,16 o Pai; 1Co 6,15; Ro 8,10; Ef 3,17 o Filho; 1Co 3,16; 6,19 o Espírito), viver (Ro 6,11 o Pai; 1Co 1,30; 2Co 5,17 o Filho; Ro 8, 4s; Gl 5,25 o Espírito), justificar (Gl 3,17 o Cristo; 1Co 6,11 o Espírito), etc., outras lhe são exclusivas: ser

24

Page 25: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

primícias e arras (Ro 8,23; 2Co 1,22; 5,5; dito de Jesus em outro sentido: 1Co 15,20.23), testemunhar o Filho, dizer Abbá no coração do homem, dar a certeza da ressurreição (Ro 8,11), etc.

Gl 4, 4-6: se o Filho enviado é distinto do Pai, também deverá sê-lo o Espírito, igualmente enviado pelo mesmo Pai.

Rm 8, 14-16: o testemunho é válido, porque de pessoa diferente daquele de quem e daquele para quem se presta o testemunho. Reforçar com o seu, o testemunho dos filhos, é algo estritamente pessoal, que legitima esse testemunho.

1 Cor 2,10-12 confrontado com Mt 11, 27: desses dois textos forma-se o que São Basílio chamava de “méguiston tekmérion” (o argumento mais forte): o Espírito é equiparado ao Filho, pois cada um a seu modo é o único a conhecer o Pai, afirmando-se, assim, o ser distinto e pessoal de cada uma das Pessoas.

Distinto dos outros dois, o Espírito, na sua quênose, não é invocado, mas é aquele que nos faz invocar: “Abbá” (Ro 8,15; Gl 4,6) e confessar: “Jesus é o Senhor” (1Co 12,3), aquele que com a Igreja-esposa clama: “Vem !” (Ap 22,17).

Cf. ainda: Hb 2,4; 3,7; 6,4; 9,8.14; 10,15.29; Tg 4,5 BJ; 1Pd 1,2.11s; 4,14; 2Pd 1,21; Jd 19s.

São João:

A formulação do quarto Evangelho é menos articulada e mais elementar do que aquela que encontramos em Paulo. A concepção do Espírito é a mesma, porém expressa numa linguagem própria, veiculando dados pessoais preciosos. Uma possível organização dos textos tem como critério os símbolos do sopro e da água e o tema das promessas:

- a água: 1, 32s; 3, 3-5.34 (cf.p.25); 4, 10-14; 7, 37-39 BJ; 19, 34; Ap 22, 1.Já no Antigo Testamento a água é símbolo da vida e do Espírito. Temos assim três analogias: vento-sopro, óleo e água. O primeiro a possuir o Espírito é o Cristo glorioso; d’Ele, a água se derrama sobre todos (1,18).

- o sopro: 3,5-8; 19,30 ? (o sopro de morte é na realidade o sopro da vida dada); 20, 22-23.- as promessas do Espírito:

- a presença: 14, 16-18..........................................................1a promessa- o ensinamento: lembrar, ensinar: 14, 25s..............................2a promessa

conduzir à plena verdade:16,12-15...........5ª promessa- o testemunho: em favor de Jesus: 15, 26s.........................3a promessa

contra o mundo: 16, 7-11.............................4a promessacf. sinopse dos 5 textos na página seguinte; exposição ampla no suplemento.

Observe-se que:Lembrar é favorecer a compreensão interior e pessoal do discípulo; é tornar possível o

entendimento do que já tinham ouvido de Jesus.Ensinar-lembrar-conduzir à verdade é produzir a assimilação interior, a compreensão vinda do

interior da pessoa.Testemunhar: no tribunal da consciência do discípulo, o demônio e o mundo acusam Jesus de

impostura; o juiz chamado a julgar é o discípulo, que dispõe de um advogado, o Paráclito, que defende Jesus e mostra como o demônio deturpa a sua doutrina. Cf. no suplemento uma exposição mais detalhada das cinco promessas.

Como se pode notar, a linguagem de Paulo tem origem na analogia biológica (vida, crescimento, semente, fruto, colheita, geração, etc), enquanto que João usa categorias mais intelectuais (ensinar, dar testemunho, conhecer) ou cósmicas (água, sopro). Mas, para ambos, o Espírito é o dom interior que harmoniza o homem em seu íntimo com a vida do Pai e do Filho. Se o Filho é a Palavra, o Espírito é o ouvido no homem para que escute a Palavra. Se Paulo fala da lei interior, João fala do ensinamento interior. Segundo Ezequiel 36, o Espírito faz viver de acordo com os decretos (a Lei); segundo Jeremias 31, o dom é o conhecimento do Senhor.

Personalidade e distinção do Espírito: Ele é todo relativo ao Pai e ao Filho, já que vem, recebe dEles, ouve e é enviado por Eles. Embora “pneuma” seja neutro, João usa a concordância dos pronomes no masculino (15, 26; 16, 13-14). Em 14,16, fala de “outro consolador” em paralelo com Jesus. Segundo João, há dois Paráclitos: Jesus (1 Jo 2,1) e o Espírito (Jo 14, 16). O título “Paráclito” só se encontra no Evangelho de João. Para o judaísmo eram paráclitos (advogados, defensores, intercessores, assistentes) os que intercediam junto ao

25

Page 26: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

tribunal de Deus em favor dos homens: a lei, os anjos, as boas obras, os méritos. Segundo João, o Espírito é Paráclito na terra junto de nós e Jesus é Paráclito no céu junto do Pai (1 Jo 2,1). Cf. Ro 8, 26s.34.

Em João, portanto, assim como em Paulo, o “Espírito” é um distinto em Deus, não um não-Deus, outro Deus ou simplesmente linguagem humana sobre Deus. João enfatiza não tanto as atividades de cada Pessoa mas, sim, como as três Pessoas se relacionam. N.B.: qual o sentido de ‘espírito’ em 4, 23s; 6.63; 11,13; 13, 21?

Outros escritos: 1Jo 2,20 BJ.27 (unção); 3, 24; 4,13; 5, 6.8; Ap 14, 13; 22, 17.

V - FÓRMULAS TRINITÁRIAS E TERNÁRIAS

Foram usadas sobretudo por Paulo, mas fazem parte do patrimônio e da criati-vidade da comunidade tendo, muitas vezes, origem ou inspiração na catequese oral, nas profissões de fé, nas celebrações litúrgicas.

As fórmulas trinitárias (ou triádicas) são passagens do Novo Testamento onde o Pai, o Filho e o Espírito Santo encontram-se reunidos numa só afirmação que descreve o modo como cada um dEles participa da obra da nossa salvação.

Como são apresentadas as Pessoas: Nomes: Deus, Pai; Filho, Jesus, Senhor (Kyrios); Espírito (Santo).Termos equivalentes:

- símbolos: água, trono, unção, cordeiro, etc.- bens salvíficos: graça, amor, paz, vida, comunhão, etc.- atividades: habitar, viver , doar, derramar, etc.

Tipos de texto: as denominações e classificações variam entre os autores. Exemplos: - fórmulas trinitárias: os Três são apresentados pelo nome, distintos entre Eles, com

relações recíprocas explicitadas na obra da salvação: At 2, 32s, 38s; 5,30-32;7,55s;10,38;11,15-17;1Ts 4,6-8;2Ts 2,13s;1 Cor 1,21s;12, 4-6; Gl 4, 4-7; Tt 3, 4-7.

- fórmulas ternárias explícitas: não são expressas as relações entre as Pessoas: Mt 28, 19; 2 Cor 13, 13; Fl 3,3.

- fórmulas ternárias implícitas: não aparece o nome de uma ou mais Pessoas, mas algum termo equivalente: Jo 3,34s; 4,10.23; 5,20; 6,27; Ap 22,1;Fl 2,1s.

- trechos com estrutura trinitária (em termos explícitos ou implícitos): Ef 1, 3-14; 3,14-19; 1 Pd 1, 3-12.

Sentido e valor trinitárioA grande quantidade e variedade desses trechos exprime uma mentalidade, um modo

constante, espontâneo, de pensar e sentir a realidade. Eles não são apresentados para provar uma tese, nem para responder a objeções e nem sequer para fazer polêmica com os adversários; os apóstolos se exprimem assim porque não saberiam expressar-se de outra forma.

Percebe-se uma desenvoltura, uma naturalidade, uma ausência total de preo-cupação, sinais evidentes de que estão profundamente compenetrados do mistério, tão vivo e evidente que se impõe por força própria: deste mistério não se pode não falar. Toda a tentativa de organizar um inventário das experiências e das realidades cristãs encontra inevitavelmente o esquema trinitário.

Só esses Três e sempre Eles estão constantemente juntos (nas formas duais sempre dois deles); aparecem no mesmo nível ou categoria, em perfeita paridade de posição. A ordem dos nomes não segue esquema rígido. Não é possível notar nenhum tipo de subordinação interna: o Espírito não é menos do que o Pai ou do que o Filho. Tais fórmulas não teriam sentido se um dos Três (o Espírito) fosse personificação e não Pessoa. Todas as personificações da Escritura, além de serem menos freqüentes, nunca são associadas ao Pai e ao Filho, e não formam um grupo ternário bem distinto.

Aqui se trata de fórmulas teológicas - o que Deus é, em si mesmo, ou funcionais - o que Deus faz para nós? Valem para a Trindade imanente ou só para a econômica? Em outras palavras, essas fórmulas revelam a intimidade de Deus na relação entre as Pessoas ou narram a relação delas conosco na história da salvação?

26

Page 27: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Os textos falam do agir de Deus mas, pelo fato de revelar e comunicar a pessoa agente, a economia da salvação revela e comunica a personalidade profunda dos autores da salvação. O centro da fé é a graça. Deus se dá a si mesmo nas suas obras e, por isso, Ele aparece pelo que verdadeiramente é: Trindade.

VI – A REVELAÇÃO DA TRINDADE NO MISTÉRIO PASCAL(Coda; Forte 29-40; 92s; 100-103; 106-109; apostilas de Cristologia e antropologia II)

O mistério pascal é o mistério central da nossa fé, enquanto economia ou história da salvação. Nele se resolve, se decide, se determina a inteira obra de Deus. Há de ser considerado, pois, como o momento culminante, o eixo central que dá sentido e conteúdo a toda a realidade e que, de alguma forma, a contém e resume. Por isso, é possível apresentar sistematicamente a atividade das Três Pessoas divinas recorrendo à estrutura da Páscoa.

No sentido mais amplo, Páscoa é o caminho completo percorrido pelas Pessoas enviadas que saem do Pai e a Ele voltam (Jo 13,1; 16,28). No sentido mais usual, a Páscoa compreende a morte e a ressurreição de Cristo, até Pentecostes.

O mistério pascal tem a seguinte estrutura:

Fase de progetação PAI

Fase de realização “pars destruens”

“pars construens” para Cristo

para nós

Morte

Ressurreição Pentecostes

FILHO

ESPÍRITO

Tudo ou é Deus ou é obra de Deus, tudo ou é Trindade ou é Páscoa, tudo é ou Trindade imanente ou Trindade econômica. Mas Deus age de acordo com o seu ser, de maneira que a Páscoa é como é, porque Deus é Trindade de um modo preciso. Não é apenas a nossa situação ou a nossa necessidade que determinam a estrutura da Páscoa. Assim também a fé se dirige tanto ao Deus Trindade que se manifesta na Páscoa, como ao próprio mistério da Páscoa. Não basta professar que Cristo morreu e ressuscitou, é necessário confessar quem realizou isso, o Pai, e por que o fez: para doar o Espírito. A fé integral liga as obras às Pessoas e as Pessoas entre elas.

A morte de Cristo constitui a “pars destruens”: nela morre o pecado, nela o pecado esgota o seu processo. Além de se constituir em prova de amor por nós, na morte de Cristo aparece o amor do Filho pelo Pai: Ele sacrifica tudo para realizar a vontade do Pai. Tudo recebeu dEle e só dEle, tudo deixa por Ele.

Na morte de Cristo aparece também a força do Espírito, porque é movido pelo Espírito que Jesus se dirige decisivamente à cruz (cf. Hb 9,14). Na morte, aparece a distinção entre o Pai e o Filho, pois o Pai não intervém, deixa Jesus ser distinto dEle. Jesus morre porque sem o Pai não é nada, pois tudo o que é Ele o recebeu, e recebeu só do Pai. A morte de Cristo na cruz é uma encarnação, de acordo com a situação histórica do pecado do homem, do eterno e incruento dom sacrifical do Filho ao Pai, na força do Espírito. Jesus não é destruído pelo pecado, com o qual se identificou, por causa da presença do Espírito.

A fé reconhece na morte do Cristo a manifestação (glória) do amor recíproco entre o Pai e o Filho, emitindo o juízo, após ter considerado o fato: verdadeiramente o Filho ama o Pai.

A ressurreição de Cristo constitui a “pars construens”, o início de uma nova vida e o resumo da nova vida da humanidade. O Pai acolhe o gesto de Jesus e manifesta a sua admiração ressuscitando-o. O Pai torna o Filho sua perfeita imagem, também quanto à humanidade. O Pai opera a ressurreição por meio do Espírito, o qual invade a carne morta tomando totalmente posse dela e espiritualizando-a, para que volte ao Pai (cf. Ro 1,4). O Espírito se manifesta assim em Jesus, tornando-o independente das condições do espaço e do tempo, independente das coisas criadas.

Jesus se torna assim:- O Cristo, o Messias, o Ungido, tendo a plenitude dos dons espirituais (2 Cor 3,17).

27

Page 28: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- O Senhor, em tudo igual ao Pai, porque só Ele possui o dom de que precisamos absolutamente (Rm 1,3s; Fl 2,11).

- Espírito que dá vida, pois só a tem para dar (1 Cor 15,45; Jo 1,33).

Pentecostes é a Páscoa de Cristo feita nossa, a transposição, em nós, da morte e da ressurreição de Jesus, o novo Adão. O que em Cristo realizou-se em breve tempo, a existência humana prolonga e explicita. Constituído fonte de vida, a fim de que houvesse um homem capaz de dar o Espírito, Cristo torna-se o dispensador do Espírito, que nos é doado e no qual somos imersos (At 2,32-36; Jo 1,16; 1,32s; 3,34; Mt 3,11).

O Espírito possui agora toda a humanidade de Jesus, tendo assim um ponto fixo de onde agir sobre a nossa humanidade. Antes da morte, o Espírito não podia dispor perfeitamente de Jesus, porque Ele estava em forma de Servo. Antes da ressurreição não tinha como agir em nós, pois não havia um homem capaz de salvar a humanidade por comunicação interna de um bem próprio, por regeneração que fosse obra de Deus e, ao mesmo tempo, obra da própria humanidade.

O Espírito efuso pelo Cristo sentado à direita do Pai: inabita o cristão (Rm 8,9.16), une-se a nós (1 Co 3,16), nos une a Cristo (1 Jo 3,24), de modo que Cristo habita o cristão (Ef 3,17) e o Espírito nos transforma em Cristo (Rm 8,29; 2 Cor 3,18). Assim, nos tornamos filhos de Deus (Rm 8,14-16; Ef 1,5), participamos da natureza divina (2 Pd 1,4), somos morada da Trindade (Jo 14,24). É desta maneira que participamos por união e semelhança da Pessoa eterna e histórica de Jesus, de sua vida, mistérios e ensinamentos.

Tudo isso vem a ser para nós o surgir de um novo ser, novo homem, nova criatura (Gl 6,15; Ef 4,24), fruto de um novo nascimento (Jo 3,3-5; 1 Jo 5, 1-5), regeneração (1 Pd 1,23), novo parto (Tg 1,18), nova criação (2 Cor 5,17), renovação (Tt 3,5), surgir de uma nova huma-nidade (Cl 3,9-11), de um novo Israel (Gl 3,27-29), de um novo céu e nova terra (2 Pd 3,13).

Trata-se de uma transformação que tira o homem de uma situação de oposição a Deus, motivo pelo qual a Páscoa do cristão é: justificação (Rm 4,24), santificação, purificação, reconciliação, libertação, resgate, remissão dos pecados (Tt 3,5; 1 Cor 6,11). Por isso, o homem novo que daí provém é justo, santo, amigo de Deus, cidadão do céu, livre; é um homem espiritual (1 Cor 2,15), homem interior (2 Cor 4,16; Ef 3,16), “cristão (o que “está em Cristo”, como Paulo), “espírito” (Jo 3,6; 1 Ts 5,23), filho de Deus (1 Jo 3,1; Rm 8,16), templo de Deus e do Espírito (1 Cor 6,19).

Ao novo ser corresponde um novo agir, expressão concreta do dom do Espírito e da nova vida: Rm 8,14; Ef 2,10 (boas obras); Gl 5,22s (frutos do Espírito); Rm 6,13.

O novo ser, vindo do Pai por obra do Filho e do Espírito, tem uma destinação última precisa: ir e voltar ao Pai, pelo Filho, no Espírito. É a meta da glorificação (Cl 3,4; Rm 8,17), da manifestação e da revelação (Rm 8,19-21; 1 Jo 3,2).

A economia da salvação manifesta o que a Trindade é: a Trindade imanente se reconhece na Trindade econômica, que é a sua glória. A fé não só é o reconhecimento da verdade e da realidade dos fatos, mas é, sobretudo, o reconhecimento neles da glória trinitária.

Tudo ou é Deus ou obra de Deus, Trindade ou Páscoa. Mas, se há dois termos, se Deus é Trindade e se a Páscoa é mistério de morte-ressurreição-Pentecostes, se Deus Trindade se prolonga na economia, o motivo está, ainda, na natureza de Deus, que é caridade. Essa categoria é a síntese última da realidade. A caridade explica quem é Deus e o que Ele faz, quem é e o que faz o homem. Nesse sentido, a caridade é a essência do cristianismo.

BINGEMER, 84-93; 108s, retoma posições de E.JÜNGEL, B.FORTE, J.MOLTMANN, J.SOBRINO, v.BALTHASAR, R.MUÑOZ, bem interessantes, embora discutíveis em alguns pontos.

DEUS É AMOR - AGÁPE

No Ex 3,14 Deus se apresenta como aquele que é, que está junto do povo. Deus responde ao pedido de Moisés de manifestar a glória (Ex 33,18) declarando-se cheio de compaixão, amor e

28

Page 29: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

piedade (34,6). Mas no final da revelação tudo é resumido na 1Jo 4,8.16: “Deus é amor”: ΄Ο Θεός ΄αγάπη ΄εστίν.

Revela-se que Deus é amor, não simplesmente amoroso, amante ou amado, não só que Ele tem ou experimenta o amor, não só que em Deus há amor.

O que a revelação chama caridade é uma experiência original. Por isso recorreu-se a um termo presente no grego, mas pouco usado, pouco valorizado, apesar de expressivo. Não se diz que Deus é ‘éros’, o que indicaria carência ou necessidade em Deus¹. Não se atribui a Deus a ‘philía’, o que implicaria uma igualdade de natureza com os homens, nem a ‘storghé’ existente entre consangüíneos e conterrâneos. O termo usado é escolhido com cuidado (mas há outras hipóteses entre os eruditos!): ‘agápe’, um tipo de amor desinteressado, gratuito, que jorra da abundância do Ser divino, um amor que se determina por ele mesmo, não como reação às qualidades ou atitudes da criatura. Um amor criador de valores, não atraído por valores anteriores e independentes de sua ação. Um amor que quer, produz o bem, mira à perfeição e à felicidade de quem ama. É um querer o bem para alguém, um querer alguém como um bem. Daí sua preferência pelos mais necessitados. Daí que ele se dirige a cada um segundo a sua realidade, numa atenção personalizada.

¹ O papa BENTO XVI admite que Deus seja ‘éros’(Encíclica Deus caritas est, nº 9). Todavia, isso só é possível modificando o conceito, para que expresse a necessidade de se doar livremente e não o impulso irresistível para receber, embora Deus se comporte como se precisasse receber.Diz-se que Deus é amor, não que o amor é Deus, o que seria uma divinização da nossa

experiência do amor. Diz-se que Deus é o amor, para indicar a excelência e a superioridade em relação a qualquer grau ou compreensão do amor. A revelação da Agápe divina veio junto com a encarnação do Filho e a revelação da Trindade. Deus amor como Trindade faz do amor uma qualidade de relação entre pessoas e explica que a finalidade de toda a obra de Deus seja a participação do homem na comunhão trinitária.

O termo ‘caridade’ foi muito limitado, no uso corrente, à obra assistencial. “Amor”, por sua vez, foi generalizado a qualquer simpatia, ou então limitado ao desejo e atração, identificado com o ‘éros’. O termo latino ‘dilectio’ não vingou no português (diligente= cuidado, dedicação!), embora se use o termo ‘predileção’, mas que não possui a força do grego ‘agápe’.

‘Agápe’, mais do que sentimento, é uma atitude ou postura de vida na relação entre desiguais, que no superior se conota de generosidade, solicitude, condescendência, misericórdia. No inferior se conota de gratidão, de respeito, de admiração, de felicitação, de dócil receptividade, de pronta dedicação. Todavia, no uso cristão o termo foi se enriquecendo, assumindo outras formas, como a ternura e o afeto, a acentuação da predileção e da racionalidade, a alegria e a exultação. Mais do que se distinguir de outras formas de amar, ele as enriquece todas.

Porque Deus é amor, o motivo a consistência e a meta do seu plano são também o amor. Porque Deus é amor, o seu objetivo é que participemos do que ele é, de sua vida.

É o amor em Deus que dirige e regula todos os atributos, que se tornam especificações do amor: ele é amor eterno, amor infinito, amor imenso, amor onipotente, amor sábio, amor onisciente, justo, etc. Deus é onipotente para poder melhor amar, a onipotência é a força triunfante do amor, a sua imutabilidade é a permanência do amor. O amor é a raiz e o objetivo de todos os atributos. Quando pune é para melhor amar. Se Deus pune por causa de nossos pecados, Deus é misericordioso por ele mesmo.

Cf. O tratado das virtudes teologais e o tratado da graça. A encíclica de BENTO XVI, Deus é amor, 25/12/2005. Guilherme de Saint Thierry, Ofício das leituras, 2ª feira da 3ª semana do advento

SEGUNDA PARTE:A REVELAÇÃO SOBRE A TRINDADE

ATRAVÉS DA HISTÓRIAI - A IGREJA ANTIGA

(BINGEMER 141-142)(B. MEUNIER, O nascimento dos dogmas cristãos, Loyola 2005)

1 - Considerações gerais sobre os Padres

29

Page 30: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- Os Padres mais antigos (até Nicéia) apresentam o dado revelado com palavras simples e comuns. Porém, ao tentar oferecer explicações, usam com certa freqüência uma terminologia imprecisa e variável que compromete a fé original. Os racionalistas modernos generalizaram o fato, atribuindo à Igreja toda uma incerteza quanto ao dogma trinitário em si, aliás, insinuando que só aos poucos foi sendo criada a fé trinitária, inexistente no início. É preciso pois distinguir entre dogma, explicação e linguagem.

- Não têm faltado também os que exageram as diferenças e contrastes entre o Oriente e o Ocidente, entre gregos e latinos, imaginando duas teologias paralelas em perpétua oposição recíproca e sempre em contenda. As diferenças que podemos notar, no passado e no presente, entre a tradição grega e a latina, não são rígidas e nem opostas. Trata-se de acentuações e de preferências devido a ambientes e objetivos variados. A inculturação da fé proporcionou teologias complementares, não heterogêneas ou contrastantes.

- Há quem acuse os Padres de terem helenizado o cristianismo. Na verdade, eles souberam desfrutar ao máximo a cultura do tempo, mas com muito espírito crítico. Daí a prontidão em combater as heresias, que sacrificavam a fé à mentalidade grega ou judaica.

- A doutrina oficial teria sido o resultado da vitória política da Igreja mais poderosa (a de Roma?), sufocando o pluralismo teológico (poderíamos nesse caso manter até hoje a mesma fé?). Em verdade, a sensibilidade da fé cristã foi identificando o que era autêntico e o que era distorção.

- A reflexão sobre o mistério da Trindade foi essencialmente eclesial. A Igreja, dirigida pelos bispos, refletia como um conjunto com vistas a conseguir uma linguagem única e a mais clara possível, uma formulação que explicitasse o essencial da fé trinitária impedindo ambigüidades e distorções que acabavam esvaziando a novidade do cristianismo em favor do judaísmo ou do paganismo. Por que e como a Trindade não é um absurdo? Melhor: como podemos ainda professar o monoteísmo bíblico e afirmar distinções em Deus?

- Podemos assim resumir o dado dogmático inicial haurido da fé da Igreja expressa no Novo Testamento:

Há um só DeusO Pai, o Filho e o Espírito são o único DeusO Pai não é o Filho, o Filho não é o Espírito e o Espírito não é o Pai...mas Deus é um só.

Ou ainda:O Filho e o Espírito aparecem numa relação única com Deus-Pai.Quem são eles se Deus é um só?

A Igreja sempre quis entender essas afirmações num sentido concreto e real (não em sentido moral, coletivo, abstrato, figurado ou metafórico), sem diminuir a unicidade de Deus e nem algum dos três em relação aos outros. Se não podemos confessar três deuses, temos que confessar três o quê? Ainda: após tudo o que Jesus fez e disse como fica Deus? Quem é afinal Deus para Jesus? Como se pode resumir tudo em poucas palavras? A Escritura já traz todas as respostas e explicações ou temos que ir além?A prática da Igreja vai mostrar que não basta repetir o que diz a Escritura, pois esta pode ser interpretada de diferentes maneiras, mas é preciso buscar expressões novas que interpretem autentica e firmemente a fé cristã. Logicamente, só quem vive essa fé em sua totalidade pode realizar essa tarefa. O kerigma torna-se assim dogma.

2 - As heresias (Boff 62-70; SESBOUÉ I,144s;158-161;206-211;227-230; R. FRANGIOTTI, História das heresias. Conflitos ideológicos dentro do cristianismo. Paulus 1995;

DTDC 356; 586-590; 839-843; 885; 900-903).As heresias constituem explicações racionalistas da fé, para facilitar a aceitação ou para envolver a fé em visões culturais pré-concebidas. Sem entrar nas diferenças internas a cada grupo, podemos assim esquematizar:

30

Page 31: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- modalismo: entre as pessoas não há distinção real, mas só nominal. Uma única pessoa se apresenta a nós de três formas ou modos diferentes. Tal recuo para o judaísmo chamou-se também, patripassianismo e sabelianismo (de Sabélio, seu principal mentor).

- adocianismo: Cristo era um homem habitado pelo atributo divino do verbo. O Espírito é a graça que reside nos cristãos.

- triteísmo: cada pessoa é uma entidade distinta e separada. A Trindade é só um conceito coletivo. Tal visão nunca foi defendida por ninguém, constituindo mais um perigo em que se podia cair sem querer.

- subordinacionismo: só o Pai é plenamente Deus. O Filho e o Espírito são criados por Deus antes de todos os outros seres! Criaturas eminentes, mas inferiores e subordinadas ao Pai, deus em relação a nós, criados que fomos através deles. Entre Deus e o mundo há, pois, uma realidade intermédia, em parte divina e em parte criada. De Ário, seu principal defensor, a heresia tomou o nome de arianismo (DTDC p. 170s identifica 6 grupos).

- heresia dos pneumatômacos (= os que combatem o Espírito) ou macedonianos (discípulos do bispo Macedônio). Ário preocupara-se mais em mostrar a inferioridade do Filho, enquanto que depois os macedonianos passaram a combater sobretudo a divindade do Espírito.

Todas têm a mesma raiz, denominada monarquianismo: se Deus é um só, então os três nomes são modos de apresentação do único (monarquianismo modalista), ou ainda o Pai somente é Deus plenamente, o Filho e o Espírito são inferiores ao Pai (monarquianismo adocianista ou dinamista). O termo ‘monarquia’ tem sentido católico quando se quer afirmar a unidade da natureza ou a unidade de princípio no Pai.

3 - Terminologia trinitária (Boff 111-117; DTDC 865-869)

- Tertuliano introduziu o termo “Trindade”, mas no sentido do mais antigo “Tríade” (Teófilo em 180), sem peso teológico, só para indicar um grupo de três, sem exprimir o modo próprio de relação da triunidade.

- É Tertuliano quem fixa para a Igreja latina a terminologia trinitária com fórmulas claras, precisas e exatas. O Ocidente não conheceu, a não ser por reflexo, as árduas disputas da Igreja grega. Tertuliano é o primeiro a aplicar o nome “Deus” para cada uma das Pessoas.

- Persona – Prósopon πρόσωπον

No Novo Testamento 76 vezes, no significado de face: Gl 1,22; 2,6.11;Hb 9,24; 2Co 4,6De início lembremos que todos os termos introduzidos na teologia trinitária não provêm de um

uso filosófico já consagrado, bastando aplicá-los ao campo da fé. Os termos são tomados da linguagem corrente, analisados e elaborados de forma original até serem aptos a expressarem a novidade cristã e a veicular a profissão de fé. Essa tarefa foi árdua pela novidade da fé cristã e pela complexidade da língua grega.

Persona e prósopon não têm exatamente a mesma etimologia e o mesmo fundo conceitual, mas quando Tertuliano emprega o termo “persona” para indicar a Trindade, entende o termo no sentido grego, superando porém suas ambigüidades.

“Prósopon” é um vocábulo composto de uma preposição (prós = em direção a, rumo a, virado para) e da raiz “op” com idéia de ver (donde óptico, oftálmico...), para indicar assim o rosto, a face, onde se revelam os sentimentos internos e se exprime a relação com outrem.

Ora, na Bíblia é freqüente a expressão “face de Deus” (“panim”) traduzida pelos LXX com “prósopon” (Sl 4,7;26,8; 29,8; 33,6.17;50,13 etc.). Cedo os cristãos entenderam que a face de Deus é o Cristo, pois Ele está sempre voltado para o Pai e ao mesmo tempo nEle se exprimem todos os pensamentos e sentimentos do Pai para conosco (cf. Jo 14,9).

No grego profano o termo apresentava dois usos diferentes: indicava papel, personagem, figurante numa representação teatral, máscara (conotando assim o aparente e o representado, por oposição ao real e ao pertencente a vida concreta) : por este caminho ter-se-ia uma interpretação modalista da Trindade. Os Padres que o propunham entendiam-no pelo seu uso

31

Page 32: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

mais comum, segundo o qual “prósopon” indica qualquer objeto empiricamente numerável e distinto concretamente de outros semelhantes.O que se queria deixar bem claro era, pois, que Pai, Filho e Espírito não são entidades aparentes, simbólicas, imaginárias, alegóricas, figuradas, abstratas, genéricas, ideais, fictícias, hipotéticas, virtuais, subjetivas, meros nomes ou modos de falar, pura representação, pertencentes a um mundo fora da existência histórica. Os nomes são tomados como realidades objetivas, concretas, reais, individuais, positivas, efetivas, fatuais, por oposição ao mundo das representações subjetivas interiores ou das criações objetivas humanas artificiais. Mas, para tudo isso é mais indicado o termo que segue.

- Hipóstase ‘υπόστασις (a partir de Orígenes: Sesboüé 195)No Novo Testamento 5 vezes: 2Co 9,4;11,17; Hb 1,3;11,1;3,14Trata-se de um termo complexo, rico de acepções que podem ser reduzidas a dois significados

básicos: substrato (passivo) e sustentamento (ativo). À primeira linha pertencem o sentido de matéria prima, de sedimento, de partes ocultas de um objeto qualquer. A segunda linha traz a conotação de força, resistência, tenacidade, quase que o ser em questão se mostre irredutível a qualquer redução ou confusão com outros. Aplicado às Pessoas da Trindade conota que cada um dos três possui uma personalidade absolutamente inconfundível que não pode trocar, nem diminuir, nem misturar e nem perder. O correspondente latino é “substantia”, que porém tem um uso bem mais restrito, limitando-se ao aspecto de substrato.

Por isso os latinos não entendiam como os gregos podiam falar de três hipóstases (triteísmo?). Por sua vez os gregos julgavam os latinos como modalistas por causa de sua preferência por “persona”.

- Usia ουσίαNo Novo Testamento somente no sentido de riquezas, bens: Lc 15,12s; como em Tb 8,21;14,13.É um sinônimo do precedente quando significa matéria prima de um objeto. Exprime sobretudo as

características e relações internas, um objeto concreto que na análise científica resulta ser um. Hipóstase sublinha mais a concretude exterior, a objetividade empírica (análogo a “prósopon”), a relação distinta com outros. Deus é um como “usia”, três como hipóstase.

- “Homoúsios” ‘ομοούσιοςTrata-se de um adjetivo que exprime a relação entre as pessoas divinas. No uso corrente

indicava que dois objetos eram feitos da mesma matéria prima. No uso teológico indica que o Filho é tudo o que o Pai é, que a inteira substância do Filho é a inteira substância do Pai. Os três são Deus no mesmo sentido da palavra, uma única e idêntica substância, numericamente uma; a tradução comum é: consubstancial, da mesma substância. O Pai não pode existir sem o Filho e vice-versa. Uma tradução mais exata seria: uma só substância com, ou como fez Hilário: “essentiae unus”. Cf. BENTO XVI, Fé, verdade, tolerância, Instituto Raimundo Lúlio, São Paulo 2007, pp. 86-90.

O sínodo de Antioquia de 262 condenara o termo por considerá-lo modalista. Muitos Padres não o queriam por não ser bíblico. Não todos os adversários do termo são, pois, necessariamente arianos.

4- Magistério (Textos dos Concílios: DS 125-126. 130; 150-151; 421; FC 0.503s; 0.509; 4.024; BOFF 88-93; FORTE 63-67; G. ALBERIGO, História dos Concílios ecumênicos. Paulus 1995).

- Concílio ecumênico de Nicéia (325). Preocupa-se em condenar a heresia de Ário, formula através do termo “homoúsios” a relação entre o Pai e o Filho para dizer que são Deus no mesmo sentido da palavra, introduz breves incisos numa profissão de fé anterior: “da substância do Pai” (= se todas as coisas vêm de Deus 1Co 8,6, só o Filho vem da “usia” do Pai), “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, “gerado, não criado”, “consubstancial ao Pai”.

- Concílio ecumênico de Constantinopla I (381). Define a posição do Espírito Santo cuja divindade era negada pelos macedonianos. À antiga profissão de fé que dizia simplesmente “Creio no Espírito Santo” acrescentou:“Senhor”, não servo; no neutro “tó kyrion” para distinguir do Filho; o seu nome é nome divino; “que dá a vida” Jo 6,63; 1Co 15,45; 2Co 3,6; Ro 8,11: função divina; anjo;“e procede do Pai” Jo 15,26: nem criado, nem gerado, mas sempre origem imanente; não é “e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”: adorável, não adorador; é o culto supremo; “Ele que falou pelos profetas” At 28,25; 1Pd 2,21: presente na história, não só na criação.

32

Page 33: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- Concílio ecumênico Constantinopla II (553): ponto final na questão da terminologia: uma natureza ou substância, três hipóstases ou pessoas ou subsistências, Trindade consubstan-cial. Mas no uso corrente impôs-se: “mía usia, treis hypostáseis” (Igrejas gregas), uma subs-tância, três pessoas (Igreja latina).

- Os 16 concílios provinciais de Toledo, que combatem todas as manifestações do arianismo e con-sagram a teologia de Agostinho. Em 589 deu-se ao “Glória ao Pai” (pelo F. no Esp.) a sua forma atual que acentua a igualdade das pessoas. Parece ter inspirado o renomado símbolo “Quicumque” (DS 75-76; cf. Boff 91ss; DTDC 833s), composto provavelmente na Espanha entre 430 e 589.

5 – História da formação do dogma. (SESBOUÉ I, 211-226; DTDC 885-888 )

O meio século que separa Nicéia de Constantinopla representou o prazo necessário para que o conjunto dos cristãos aceitasse plenamente a legitimidade e a necessidade da nova linguagem racional. Os arianos e simpatizantes se subdividiram em vários partidos:

- anomeus ou anomeanos, arianos rígidos da segunda geração, a partir de 355: Aécio e Eunômio (seus discípulos são denominados eunômios ou eunomeanos). Para estes, o Filho é dessemelhante (‘anómoios’) do Pai, gerado não do nada, mas da vontade do Pai. O Espírito é criado pelo Filho. O Filho é o demiurgo da criação de todas as coisas, o Espírito santifica e ensina.

- homeusianos, também chamados de semi-arianos: (a partir de 358) o Filho é homoios, semelhante, ao Pai. Eles não aceitam o ‘homoúsios’ de Nicéia, mas propõem o ‘homoiúsios’: o Filho é de natureza semelhante, não igual ao Pai, pois Pai e Filho são diferentes pela relação de origem. O termo de Nicéia soava para eles como uma concessão ao modalismo. Após 360 esse grupo dará origem aos macedonianos.

- homeus ou homeanos (entre 359-362): O Cristo é semelhante (‘hómoios’) ao Pai em tudo.

Santo Atanásio, a partir de 338, distinguiu-se na defesa de Nicéia contra os arianos e convencendo os vários partidos anti-arianos a aceitarem o omousios. Sustenta que uma geração eterna em Deus é perfeitamente pensável. Refuta a interpretação dos textos bíblicos invocados pelos arianos. Distingue entre “gerar”, reservado ao Filho (Sl 2,7; 110,3; Pr 8,25; Jo 1,18) e “fazer”, aplicado às criaturas (Gn 1,1; Jo 1,3). Os termos novos são sugeridos pela Escritura: “da substância do Pai” está ligado ao Sl 110,3: “De meu seio te gerei”, a Jo 8,42: “É de Deus que eu saí”, e a Jo 1,18: “o Filho único, que está no seio do Pai”. As Escrituras justificam o termo ‘consubstancial’ quando falam ao mesmo tempo de geração e de indivisão (Jo 10,29-30.38: “Meu Pai me deu tudo; Eu e o Pai somos um; Eu estou no Pai e o Pai está em mim”; 14,10). Atanásio tem consciência de expor uma fé que pede à razão humana que se abra a perspectivas novas, a fim de poder descobrir nelas a inteligência, ao passo que os arianos “estão persuadidos de que aquilo que eles não conseguem conceber não pode ser”.São Basílio, entre 370-378, provindo dos homeusianos, consegue reunir vários bispos do mesmo partido que reconhecem o ‘homooúsios’ niceno.Sobre o Espírito Santo (em 379): “Não se abaixe ao nível dos santificados aquele que santifica”.Santo Hilário, no ocidente, procura uma conciliação: mostra aos ocidentais que nem todos os adversários do ‘homoousios’ são arianos, pois o próprio termo não está imune a possíveis interpretações modalistas. Ele traduz o homoousions com ‘essentiae unus’.

II - A QUESTÃO DA ORIGEM DO ESPÍRITO(O Filioque; cf. DTDC 357-363)

Para uma discussão frutuosa é preciso distinguir quatro aspectos:- a doutrina da origem do Espírito- a explicitação dessa doutrina em fórmulas breves- as definições dogmáticas dos Concílios de Lião e Florença- a inserção da fórmula latina no Símbolo niceno-constantinopolitano

Quanto às fórmulas, usa-se denominar fórmula latina a seguinte:o Espírito procede do Pai e do Filho (a Patre Filioque), sendo a grega:o Espírito procede do Pai por meio do Filho.

Na verdade a questão é bem mais complexa. Existiam muitas formulações entre gregos e latinos e por muito tempo nenhuma foi oficial ou dogmática. A rigidez e a separação entre as Igrejas aconteceu só no tempo de Fócio. A Igreja latina condenou Fócio, não as formulações gregas, e condenou-o por não ter respeitado sequer a tradição grega! Algumas datas:

33

Page 34: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

431 O Concílio de Éfeso proíbe de introduzir modificações nos símbolos.589 Toledo III: “A Patre et Filio procedere” (DS 470). 633: Toledo IV: “ex Patre et Filio” (DS 485)650 Já se usa na Espanha cantar o Credo na Missa com o acréscimo do Filioque.

para fortificar a posição antiariana. O uso se propaga no Ocidente.649-662: alguns no Oriente rejeitam a afirmação do papa Martinho I que o Espírito procede também

do Filho. São Máximo prova a identidade substancial das formulações grega e latina.782-787 Carlos Magno manda cantar o Filioque. Os teólogos de corte condenam a fórmula grega

proposta pelo Concílio provincial de Nicéia (787).794 O papa Adriano defende a fórmula grega, mas o imperador não aceita.808-809 O papa Leão III explica a doutrina tradicional, defende a legitimidade da formulação grega e

manda suprimir o Filioque do Credo da Missa. Tudo em vão!867 Fócio ataca com violência Roma acusando-a de heresia. Afirma pela primeira vez que o

Espírito procede só do Pai. Deforma a fórmula latina: o Espírito procede de dois princípios independentes (Pai e Filho).

886 Fócio escreve a “Mistagogia do Espírito Santo”, argumentação contra os latinos, arsenal das polêmicas dos séculos sucessivos.

1014 Bento VIII aceita introduzir em Roma o canto do Filioque.1054 Cisma de Miguel Cerulário. O enviado pontifício lança a excomunhão, indo além das

faculdades concedidas pelo papa, acusa os gregos de terem tirado o Filioque do Credo (?!).1274 Concílio ecumênico de Lião II: “O Espírito procede do Pai e do Filho como de um único

princípio e com uma única espiração”. Decreto assinado pelos gregos. A efêmera união termina em 1282 com a morte do patriarca Miguel VIII.

1439-1445 Concílio de Florença: última etapa do desenvolvimento dogmático da doutrina trinitária e máximo esforço para restabelecer a união das Igrejas. O Concílio explica e aprova as fórmulas grega e latina e reconhece a legitimidade de introduzir o Filioque no Símbolo.

1484 O Sínodo grego repudia o Credo de Florença.1592 Clemente VIII lembra que nunca foi imposto aos gregos o Filioque.1742 Bento XIV dispensa os católicos de rito oriental de cantar o Filioque.

Não se pense todavia que a separação das igrejas tenha sua única ou principal causa numa divergência doutrinal sobre o Espírito Santo. Enquanto a Igreja grega condenou a partir de uma certa data a doutrina latina (um sínodo oriental em 1484 repudiou o credo de Florença), esta nunca condenou a doutrina grega, mas só a de Fócio, porque infiel à tradição dos Padres. Hoje em dia há ainda quem veja contradição entre as fórmulas grega e latina, mas predomina a idéia de sua complementaridade com o desejo de chegar a uma fórmula comum que satisfaça a todos.

III - A TEOLOGIA TRINITÁRIA NA IDADE MÉDIA

À parte a questão do Filioque, o desenvolvimento doutrinal é levado adiante por teólogos e escolas teológicas. Não surgem heresias novas; as antigas heresias reaparecem sob novas formas, mas de forma isolada e circunscrita. Outras questões preocupam mais a Igreja e os teólogos. Há um grande esforço para conseguir uma apresentação sistemática de toda a tradição da fé com uma metodologia racional rigorosa.

Autores e escolas: Anselmo de Aosta, Ricardo de São Victor, Ruperto de Deutz, Honório de Autun, Anselmo de Havelsberg, Pedro Lombardo, Alberto Magno, Santo Tomás de Aquino, Alexandre de Hales, São Boaventura... Entre os orientais Gregório Pálamas, Nicola Cabasilas...

A tendência que aos poucos vai dominando na escolástica não é o tomismo, mas o escotis-mo, o ocamismo e o nominalismo.Um autor independente que hoje alguns teólogos estão tentando reavaliar positivamente é Joaquim de Flores ou de Fiore (Forte 79-83), com sua implicação mútua entre teologia trinitária e compreensão escatológico-apocalíptica da história, que alimentou daí para a frente os movimentos eclesiais reformistas e os messianismos político-sociais*.

* Antecedentes de Joaquim encontra-se em Ruperto de Deutz: a criação é o próprio do Pai, a redenção é o próprio do Filho, a santificação é o próprio do Espírito: este é o eixo central do terceiro período.

34

Page 35: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Magistério: Além dos vários sínodos de Toledo com sua rica doutrina trinitária, temos os Sínodos de:Braga I (561): condenação do priscilianismo modalista (DS 451-453).Latrão I (649): cristológica com acenos à Trindade (DS 501s.504; FC 4045s.4048).Soissons (1092): contra Roscelino (triteista nominalista).Sens (1140): contra Abelardo modalista (DS 721-724).Reims (1148): contra Gilberto Porretano (essência distinta das Pessoas).

Símbolo de Leão IX (1053) (DS 680-683).Profissão de fé de Inocêncio III (1208) aos Valdenses.

Temos enfim os Concílios ecumênicos (Boff 95-100).Latrão IV (1215): contra albigenses (DS 800-802; FC 6060s;7021) e contra Joaquim de Fiore (DS 803-808; FC 6062-6066).Lião II (1274): (DS 850-853; FC 6067).Florença (1439-1442): DS 1300-1302; 1330-1331; FC 6068-6073.Sobre estes dois cf. mais adiante, no estudo sobre a processão do Espírito.

No Oriente temos a discussão a respeito de João Filiponos (520-570): triteista? (DTDC 893).

Espiritualidade: embora a piedade cristã torne-se sempre menos trinitária, fixando-se sobretudo na humanidade de Cristo, é na Idade Média que surgem as primeiras manifestações da mística trinitária com o mestre Eckhart (m.1327) e Ruysbroeeck (m. 1381), da assim chamada escola renano-flamenga.Quanto à Ordem dos Trinitários cf. DTDC 164; 454-456; 489-492.Santa Teresa de Ávila: DRDC 859-865; São João da Cruz: DTDC 492-495.

IV - A TEOLOGIA TRINITÁRIA NA ÉPOCA MODERNA

Não se verifica algum progresso objetivo no conhecimento da Trindade, mas um penoso relacio-namento com a cultura secularizada e laica. A Igreja passa de uma atitude de condenação ao confronto apologético, e deste ao diálogo que procura ao mesmo tempo uma consciência mais clara e segura da própria identidade e uma abertura para acolher a cultura moderna.

Mais do que erros ou doutrinas particulares, a modernidade reage de três maneiras ao dogma:- desinteresse: a Trindade é irrelevante para a vida (Kant, Schleiermacher).

- releitura, cooptação dentro de um sistema, reinterpretação: o mistério revelado entra como parte de um sistema maior onde é domesticado para novos fins, tornando-se desfigurado ao mesmo tempo em que parece assumir uma nova vitalidade: Hegel (DTDC 391-400), Schelling...nova era.... Panteísmo, idealismo, racionalismo, evolucionismo, historicismo, modernismo... são correntes de pensamento onde a Trindade acha um lugar só a pacto de renunciar à própria identidade e inspiração original.

- negação da revelação: a fé na Trindade tem origem simplesmente humana e pode ser explicada pelas ciências humanas (filosofia, psicologia, sociologia, antropologia, psicanálise...).

Quanto ao unitarianismo cf. X. PIKAZA, DTDC 900-910.

Magistério

1555: Paulo IV condena os Socinianos antitrinitários (DS 1880).Trento não se ocupa do mistério da Trindade, pois os reformados mantém a doutrina tradicional (sem

porém revitalizá-la!).1575 Profissão de fé de Gregório XIII para a Igreja russa (DS 1986).1743 Profissão de fé de Bento XIV para os orientais (DS 2526-2527).1794 Pio VI condena os erros do Sínodo de Pistoia (DS 2695-2698).

35

Page 36: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

1857 Pio IX condena a doutrina de A. Günther (1783-1863) que identificava pessoa com consciência e dispensava a revelação para o conhecimento da Trindade.

1864 Pio IX no “Sílabo” condena o panteísmo e o deísmo (DS 2901-2902).1887 Leão XIII condena o semiracionalismo de A. Rosmini (D3225).

Vários Sínodos ocuparam-se também em condenar a racionalização do mistério trinitário propos-tas por Hermes, Günther, Frohschammer, Rosmini: Paris (1849), Bordéus (1850), Colônia (1860).

Também os reformados estavam atentos a qualquer desvio em matéria de fé: assim Miguel Servet foi condenado à fogueira por Calvino por causa de sua negação do mistério trinitário!

Renovação da vida e da teologia (cf. apostila de história da teologia)No nosso século a fé trinitária vem retomando o lugar central que lhe compete na vida da Igreja. Praticamente todos os movimentos de experiência e de pensamento trazem sua contribuição nesse sentido: movimento bíblico, litúrgico, místico (Elisabete da Trindade: DTDC 464-470), patrístico, ecumênico (descoberta dos teólogos ortodoxos), várias formas de pentecostalismo... O Conselho mundial das Igrejas chega a uma formulação trinitária da fé no Congresso de Nova Delhi em 1961.Na teologia sistemática tiveram papel de pioneiros os teólogos de Tubinga no século XIX com sua abertura à modernidade (F. Chr. Baur, J.E. Kuhn, H.Schell, D.F.Strauss). Em 1965 K.Rahner (Mysterium Salutis) reabre de forma nova a especulação trinitária, mas é entre 1975 e 1986 que se multiplicam os principais estudos de teologia sistemática.A teologia protestante, especialmente a liberal, havia descuidado o mistério trinitário (por ex.: E Brunner). A isso reage K.Barth com uma imponente reflexão trinitária à base de toda a sua teologia.

Magistério recente- O Concílio Vaticano II não se ocupou especificamente da Trindade, mas não há pratica-mente assunto que não receba uma iluminação e uma fundamentação no mistério divino: quem atua em toda a vida da Igreja é o Deus Trindade conhecido através da economia da salvação (cf. Nereo SILANES, in DTDC 911-916).-1965 : “Mysterium fidei” de Paulo VI: valor perene da terminologia tradicional sobre o mistério trinitário (nn. 24-25).

- Reações ao catecismo holandês que relativiza a importância da Trindade na vida cristã: resposta da Comissão cardinalícia: SEDOC abril 1969, col. 1297-1302. Profissão de fé de Paulo VI = o Credo de Povo de Deus (1968) : SEDOC setembro 1968, col. 277-283.- 21 de fev. de 1972: Declaração da Congregação para a doutrina da fé sobre alguns erros recentes a respeito dos mistérios da Encarnação e da Trindade. Texto em Boff 100s.- Encíclicas de João Paulo II:

1979: Redemptor hominis (O Filho)1980: Dives in misericordia (O Pai)1986: Dominum et vivificantem (O Espírito)1994: Carta apostólica:Tertio millenio adveniente: preparação trinitária para o ano 2000.

No campo teológico convém lembrar os congressos trinitários anuais que acontecem em Salamanca. Particular menção merece o grande Simpósio sobre o Espírito Santo celebrado em Roma em 1981 com participação de teólogos de todas as Igrejas.

Em toda esta parte histórica consideramos, sobretudo, o desenvolvimento do dogma e sua expressão teológica. Seria importante completar com o estudo da Liturgia (batismal e eucarística), da confissão dos mártires, da arte, da religiosidade popular, dos símbolos e da catequese, da experiência dos santos e da riquíssima produção dos Padres da Igreja e escritores (homilias, cartas, comentários bíblicos, obras polêmicas...).

Seria interessante examinar como os catecismos, antigos e atuais, para crianças e para adultos, apresentam o mistério trinitário.

Sobre a festa da Trindade cf. Dionísio BOROBIO, Festa da SS.Trindade, in DTDC 344-348.

Sobre a mística trinitária cf. Santiago GUERRA, Mística, in DTDC, 574-586.

36

Page 37: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

TERCEIRA PARTE: REFLEXÃO SISTEMÁTICA

I - QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

1 - Objetivo:

- reflexão ordenada (no método e na exposição) sobre a realidade em si mesma, abstraindo de momentos particulares;

- reflexão ordenada sobre o material acumulado através da história em diálogo com o mundo atual para saber como crer hoje.

2 - Método: Dentre os vários procedimentos destaquemos os seguintes:

1º) Concentrar a parte sistemática no estudo de um ou mais autores do passado (por exemplo: Tomás de Aquino) complementando com teólogos contemporâneos (M. Arias Reyero no curso do CELAM).

2º) Partir de modelos que resumam toda a reflexão do passado: Boff (14-15;102-111;281s n. 7: partir da Pessoa do Pai, da natureza única, da comunhão dos Três, do Verbo encarnado; apresentação em Bingemer 143-146); Forte (67-86; 137-143), que introduzem a própria reflexão num modelo que eles configuraram interpretando a teologia do passado.

3º) Privilegiar um mistério da fé: a cruz (Moltmann), o mistério pascal (Coda, Forte).4º) Retomar simplesmente o que é comum na reflexão da Igreja, sem se referir a nenhum modelo,

autor ou mistério particular (Schmaus, Kasper... esta apostila).

3- Linguagem:

A condição terrestre do homem não lhe permite viver experiências sobrenaturais formulando numa linguagem própria, direta e específica, a realidade do Deus Santo e transcendente. A revelação se serve do que conhecemos neste mundo material para nos introduzir no que não podemos conhecer por nós mesmos: é o processo analógico. As analogias são muitas. Algumas permanecem meras sugestões, outras foram mais desenvolvidas, constituindo construções de grande envergadura. A teologia e a tradição introduziram analogias novas, mas, em geral, explicaram e desenvolveram analogias contidas na Escritura. Algumas são desenvolvidas com a experiência e o bom senso, outras recebem as contribuições das ciências humanas.

Podemos reuni-las nos seguintes grupos (Boff 129-141):

1a) Analogia econômica: considera as relações e ações das pessoas na história. É a analogia por excelência da Revelação: falar, ver, ouvir, testemunhar, enviar, chegar, etc.

2a) Analogia cosmológica: considera as estruturas do mundo que, elaboradas, são usadas para o mundo de Deus. Foi assim que procedeu a Igreja ao introduzir termos como hipóstase, substância, pessoa, entre outros. Mas também a Escritura aceita esse procedimento: por ex.: o Espírito – vento.

37

Page 38: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

3a) Analogia psicológica (cf. mais adiante), que é a predileta de Agostinho, Ricardo de São Vitor e Tomás de Aquino. A psicologia analítica (Jung) deu-lhe novas expressões.

4a) Analogia social e familiar (cf. mais adiante): descartada pelos antigos, retoma vigor hoje.

5a) Analogia material/natural (triângulo, trevo, anéis, círculos, números; fogo, velas, rio...), muitas vezes elaboradas não só racionalmente na teologia, mas também artisticamente na poesia, na música, na pintura..(GRINGS 159-162; BINGEMER, Deus-Amor, 146; DTDC 65-67).

Naturalmente, essas analogias foram combinadas entre elas de várias maneiras.4- A questão como foi posta pela Igreja:

Mais especulativamente: como não é absurdo que 1 seja igual a 3? Se o Pai não é o Filho, como se pode dizer que Deus é um só?Em que consiste a distinção, se são iguais em tudo?Ao afirmar a distinção não se exclui a igualdade e a unidade?Como a diferença não os torna menos iguais?O que sabemos exatamente pela fé e revelação e o que é necessário admitir para que a fé seja humanamente assimilável e tal que se possa vivê-la?

Mais existencialmente: como ainda ser monoteístas, se o Pai não é o Filho?Por que o homem moderno afastou-se da fé: pela dificuldade em aceitar um Deus Trindade, por não entender que Deus é Trindade? O homem foi levado à indiferença e ao ateísmo por não crer num Deus Trindade?O escândalo é a indiferença do homem para com Deus, ou a indiferença de Deus para com o homem, um Deus amor-Trindade que mantém no mundo o mal, a injustiça e a opressão, inclusive através da religião?Que proveito real traz para vivência da fé a concentração da reflexão-oração-celebração no mistério trinitário? Não basta ligar-se a Deus e/ ou a Jesus?

A dificuldade especulativa nunca é motivo de descrença, mas é um ótimo pretexto quando não se está disposto a crer. Por outro lado, o mistério trinitário nunca é meramente especulativo, pois nele temos o fundamento primeiro da unidade e diversidade de tudo que existe. O homem, na medida em que não crê num Deus Trindade, sempre acaba não sabendo administrar a unidade e a diversidade do mundo. A Trindade realiza o que nós humanos buscamos sem alcançar: o equilíbrio entre a liberdade pessoal e a intensidade das relações, a doação de si e a preservação da própria identidade.

A Igreja considera a doutrina trinitária como a única forma possível e conseqüente do monoteísmo e como a única resposta válida ao ateísmo moderno, qualquer que seja a razão do seu surgir. Mais do que insistir nas provas da existência de Deus, a Igreja deveria proclamar a Boa Nova do Deus Trindade, que convoca a humanidade a ligar a Ele o seu destino.

A fé revelada nos obriga a uma constante revisão de nossos conceitos e sentimentos, para não adorarmos máscaras em vez de pessoas, para não tornarmos Deus manipulável (Lc 13,26s).

5- Apresentação inicial da solução:

Para conseguir esclarecer a questão, a Tradição indagou a Escritura, fazendo como que um levantamento de tudo o que se diz a respeito dos Três (verbos, preposições, expressões...), analisando minuciosamente cada detalhe.

A única maneira com que a Escritura distingue Pai, Filho e Espírito é atribuindo a cada um uma origem diferente dentro da unidade do ser divino.A distinção na unidade constitui:

- uma relação de origem (ex.: nascer, proceder, enviar...)- interna a Deus (as Pessoas se relacionam entre si)- segundo uma ordem precisa (donde a 1ª, a 2ª e a 3ª Pessoa)- é essa relação diferente que constitui cada Pessoa como distinta das outras duas: é a

propriedade pessoal de cada uma.

Todas as expressões que não exprimem propriamente uma origem (por ex.: amar, ouvir, testemunhar, falar...) foram entendidas como modalidades em que a origem se explicita, não como tantas diferenças reais. Uma realidade em si mesma simples e única se explicita numa linguagem

38

Page 39: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

variada (é comparável à luz que passa através do prisma) porque esta não consegue dar conta da concentração de vida presente na Trindade.Sendo cada Pessoa constituída por uma relação própria, a unidade não é rompida porque as relações, de per si, não interferem na substância das coisas, mas simplesmente referem uma coisa a outras: um objeto não muda nem se multiplica por ter relação de compra, venda, por ser dado de presente ou achado.

Tendo que partir de analogias, de realidades tão somente semelhantes a Deus, a fé cumpre um grande esforço para captar o específico e exclusivo do ser divino. Esse esforço deriva da própria natureza de Deus e da fé, mais do que da necessidade de adaptar-se a uma cultura filosófica.

II - AS PROCESSÕES TRINITÁRIAS- Terminologia: processão é o mesmo que proveniência, derivação, origem, procedência. Mas

processão tornou-se termo técnico ou teológico ao se tratar da origem de uma Pessoa divina (em grego fala-se de “probolé” ou “próbasis”).Toda a processão supõe dois termos: um princípio (αρχή), que dá origem, e o termo proveniente, originado, que sai do princípio. Na teologia latina não se usam os termos “causa” e “causado” para falar dos dois termos (os gregos falam de “aitía” e “aitiatón”).O termo “processão” recebeu no uso teológico uma extensão diferente e variável:

- origem do Filho e do Espírito (Igreja latina);- origem do Espírito (Igreja grega);- origem de todas as coisas que têm o primeiro princípio no Pai.

Esse último sentido generalíssimo engloba a geração do Filho, a procedência do Espírito, a criação do mundo e a missão das Pessoas na história da salvação.

- Fundamento dessa linguagem:Jo 8,42 (o Filho) Jo 15,26 (o Espírito)

Saí de Deus e vim o Espírito procede do Pai"ek tu Theu exélthon Kai héko" "to pneuma para tu Patròs ekporeúetai""ex Deo processi et veni" "Spiritus a Patre procedit"

A Vulgata e as mais antigas traduções latinas traduzem os dois diferentes termos gregos por um termo único: “processio”, abrindo assim o caminho para a generalização da terminologia mais específica do Novo Testamento. Os gregos não reconhecem uma tradução que passa por cima das distinções pessoais.

- Doutrina da Igreja: Afirmações dogmáticas de Símbolos e Concílios: Há somente duas processões imanentes em Deus, a do Filho e a do Espírito. O Pai não procede de ninguém (e muito menos da essência divina); nEle a natureza divina é possuída como fonte.O Filho e o Espírito são Deus, pessoas distintas do Pai, porque recebem a natureza divina do O Filho procede por geração unicamente do Pai. Pai.O Espírito está em relação de origem com respeito ao Pai e ao Filho (apesar de haver desentendimento quanto à maneira precisa de conceber a origem do Espírito na sua relação com o Filho).Para a fé, portanto, não basta confessar que há um só Deus em três Pessoas distintas, mas é preciso explicitar que o único motivo da distinção é a origem diferente que distingue cada Pessoa. A Escritura só afirma o fato da origem, mas não dá nenhuma outra pista para a razão do fato de que há três Pessoas, nem mais nem menos.

- Razão e modo das processões: a fé afirma o fato da relação de origem que liga as Pessoas. O modo e o porquê de tal origem é uma questão teológica desenvolvida com base na analogia com as realidades deste mundo que existem por procederem de um princípio. As processões naturais mais perfeitas são a geração dos viventes e os processos mentais do conhecer e do querer. Cf. mais adiante.

- Definição: por processão divina entende-se, portanto, a origem eterna de uma Pessoa da outra, mediante a comunicação da idêntica natureza divina, ou a derivação da consubstancialidade a partir da fonte paterna. Não há derivação de natureza, nem de indivíduo de uma espécie; só a Pessoa deriva, a natureza é comunicada, porque é uma só e idêntica. As Pessoas divinas são pura relação

39

Page 40: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

de origem: distinguem-se porque uma é originante e a outra é originada, porque há uma que doa e outra que recebe, sendo que o “conteúdo”, o que se doa e recebe, é sempre e só a única e total substância divina. É a fé que nos conduz a esse conceito purificado da relação pura, da qual excluímos tudo o que é próprio do modo humano e criado de ser, para poder entender tal relação de um modo adequado ao Deus que é santo, eterno, espiritual, infinito e imenso, simples, perfeito...

- Ordem: falando de 1ª, 2ª e 3ª Pessoa não estabelecemos uma hierarquia, uma classificação de importância ou valor. Tais números indicam simplesmente a ordem da relação interna entre as Pessoas. A 1ª é a que não tem princípio, a 2ª é a que vem da 1ª, a 3ª a que se liga às outras duas.

- O Pai, por não proceder de ninguém e de nada, é chamado:- Ingênito, inascível, em grego “agénnetos”(distinto de “agénetos” = não feito, que se diz

também do Filho e do Espírito).- Princípio sem princípio, “arkhé ánarkhos”: esta característica distingue o Pai na Trindade,

constitui o seu modo de ser Deus, de realizar a essência divina, a sua nota pessoal inconfundível, a sua propriedade pessoal.

- Fonte inexaurível da divindade, “pegaía theótes”. O Pai é a eterna juventude, fecundidade perene e absoluta. “Nemo tam Pater” (Tertuliano).

- Por apropriação (cf. mais adiante) o Pai é chamado simplesmente Deus, pelo fato que não só não depende de nenhum princípio externo (como também o Filho e o Espírito), mas nem sequer procede de um princípio divino imanente (diferentemente do Filho e do Espírito).

- Também por apropriação, o Pai é chamado Amor-Caridade, termo que conota nEle o aspecto de doação total e gratuita, o ser o primeiro no amor, o não ter outra razão para amar a não ser por si mesmo: o Pai é iniciativa ativa e gratuita no total dom de si.

Como falar de Deus Pai numa sociedade sem pai? Se falta a experiência positiva do pai humano, como conseguir que se conceba positivamente a revelação de Deus como Pai? (Forte 98; Kasper esp. 161-165; Bingemer 117-124). Na verdade, conceber a Deus como Pai não é um conhecimento imediato, mesmo para quem se entusiasma por isso, mas é o resultado de um longo amadurecimento espiritual na fé (DTDC 651ss).

- A primeira processão é uma GERAÇÃO O Filho é a 2ª Pessoa porque procede inteiramente e somente da 1ª.É Filho porque a sua processão é uma geração. É "gerado, não criado".

- Fundamento- Os termos relativos Pai-Filho, o título Unigênito (Jo 1,14.18; 3,16.18; 1Jo 4,9) dizem

que se trata de origem por geração (vide supra pp.22-23).- Os termos Verbo (Jo 1) e Imagem (Cl 1,15; Hb 1,3; Sb 7,25s) pressupõem uma

derivação de um princípio.- O concílio de Nicéia ensina claramente que o Filho é verdadeiro Filho, "gerado, não

criado", e por ser Filho lhe é comunicada a mesma substância do Pai. É Filho por natureza, necessário, próprio.

- Analogia do conhecimentoDa Escritura, a Tradição recolheu três analogias para penetrar no mistério do Filho: a

biológica (Filho), a mental (Verbo) e a especular (Imagem; mas as duas anteriores são também um tipo de imagem!). A analogia artística (imagem artefata) não foi usada para não dar margem à interpretação ariana de um Filho criado, “fabricado”.

A geração é um ato (processo) próprio dos seres vivos, que produzem um ser da mesma natureza a partir da própria substância.

Temos que excluir da geração divina tudo aquilo que é próprio da criatura terrena, do modo humano de gerar:

- a circunstância de tempo: Deus é eterno e a geração do Filho é eterna como Deus: o Pai é ato eterno, atual, de gerar.

- qualquer representação ligada à corporeidade material: a geração divina é espiritual, imaterial, assexuada (DTDC 220), sem divisão de partes nem crescimento progressivo da substância. A antiga profissão de fé emprega o elemento mais imaterial para tratar disso: “luz de luz” ("lumen de lumine"; cf. Sl 104,2; Jó 37,21-23).

40

Page 41: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- a idéia de causalidade, que cria dependência e subordinação. Diz-se que o Pai é princípio, não causa, do Filho. (Boff parece não ter entendido isso: 178.183).

O fato de termos de purificar os nossos conceitos nos faz penetrar no mistério, na nuvem do conhecimento.

Gerar é, pois, comunicar toda a substância divina; ser gerado é receber toda a única substância divina (cf. DS 805.1331). Pai e Filho são um porque toda a substância do Pai é também a do Filho, são dois porque um gera e o outro é gerado. Tudo é comunicado e recebido, menos o fato de ser Pai ou Filho, pois as Pessoas são absolutamente incomunicáveis (são hipóstases!).

III - A PROCESSÃO DO ESPÍRITO SANTO (CaIC 243-248; Forte 114-130; Boff 242-252; Comblin J., O Espírito Santo e a Libertação,

207-217; vide supra pp. 20s.23-30.40)

- É de fé não somente que o Espírito Santo existe, é Deus, 3ª Pessoa da Trindade, consubstancial ao Pai e ao Filho, distinto de ambos, mas especialmente que tudo o que é peculiar ao Espírito tem sua razão na relação especial de origem que Ele tem com as outras duas Pessoas. Ele é Deus procedente e tudo o que Ele é, lhe é comunicado pelos outros dois; Ele só é Deus porque recebe a divindade dos outros.

- A Escritura afirma que a processão do Filho é uma geração. Não há, porém, nada na Escritura que indique claramente como entender de maneira mais concreta a origem do Espírito: só se diz que Ele deriva, não se fala do tipo de derivação. A processão do Espírito não é geração porque o Filho é Unigênito. Para preencher essa lacuna cunhou-se entre os latinos o termo “espiração”, tirado de Jo 3,8 (Vulgata: "spiritus spirat ubi vult"). Assim se pode dizer que o Espírito procede por espiração (latim ‘spirare’ < espirar; diferente de ‘exspirare’ < expirar).

- Os Concílios antigos não trataram da relação entre natureza e pessoa e nem da origem do Espírito em relação ao Filho. A compreensão da fé a respeito da relação do Espírito com o Pai e o Filho deu origem a exposições teológicas complexas mas, também, ao esforço de resumi-las em fórmulas breves . Com boa dose de convenção, tornou-se comum denominar fórmula grega a que diz que o “Espírito procede do Pai por meio (grego: "diá") do Filho”, e latina a que reza: “O Espírito procede do Pai e do Filho” ("ex Patre Filioque").

É possível, na fé e na teologia, aceitar ambas? A Igreja latina, especialmente hoje, julga que sim, pois as considera complementares. O que cada uma diz não contradiz a outra, mas a completa; além disso, ambas pretendem resumir, com diferentes acentuações, uma doutrina substancialmente idêntica (Vaticano II: UR 17; AG 2). Os Concílios que disso se ocuparam assim também entenderam: Latrão IV (ano 1215; DS 800-801; FC 6060s), Lião II (ano 1274; DS 850; FC 6067), Florença (ano 1438-1445; DS 1300-1302; FC 6068s) (Cf. também Boff 93-100). O fato, porém, que sejam corretas, não significa que elas apresentem a formulação ideal: o caminho não está fechado a novas formulações.

A fórmula latina se limita a reconhecer um fato na sua generalidade. A fórmula grega situa-se noutro nível: é mais precisa, articula e matiza o modo próprio de cada uma das Pessoas, em particular o que se denomina a “mediação” do Filho. Os gregos estão mais preocupados em acentuar a propriedade do Pai, único Princípio sem princípio (αρχή); os latinos, a participação ativa e real do Filho.

Como fórmula, a grega é mais precisa teologicamente e mais próxima da Escritura e da Liturgia. A latina é mais genérica e mais adequada para uma situação de luta contra os arianos, pois acentua a igualdade entre o Pai e o Filho (como praticamente reconheceram os gregos ao reformular o “Gloria Patri”). Ambas podem ser interpretadas erroneamente e, por isso, ao se ponderar o alcance e o valor teológico de cada uma, é preciso levar em conta a intenção e a compreensão de quem a usa.

Nesse sentido, ao acentuarem a igualdade Pai-Filho, os latinos não entenderam fazer dEles dois princípios autônomos do Espírito, nem apagar a distinção pessoal entre ambos, nem mesmo equiparar o Filho ao Pai como princípio sem princípio. De fato, o Filho recebe do Pai o ser princípio do Espírito e, por isso, ambos constituem um único princípio; o ato espirativo é também único (Jo 10,30: “eu e o Pai somos um”, também na origem do Espírito). Por sua vez, os gregos não

41

Page 42: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

pretendem reduzir o Filho a mero instrumento passivo do Pai e nem convertê-lo em um delegado decidindo e agindo por própria conta.

O acordo torna-se fácil do ponto de vista estritamente doutrinal. Quando, porém, se quer trazer todo o contexto cultural, espiritual e existencial em que cada uma das fórmulas se situa, torna-se praticamente impossível uma adaptação recíproca. Em todo o caso, a teologia latina consegue facilmente aceitar e apreciar a posição grega, mas não se pode dizer o contrário: nesse aspecto a Igreja latina é mais católica. O Ocidente só rejeitou a posição de Fócio por não ser conforme à Tradição.

- Uma boa exegese bíblica não conseguiria chegar a uma interpretação uniforme a respeito da origem do Espírito?Os gregos aduzem Jo 15,26, onde só se diz que o Espírito procede do Pai:

“Quando vier o Paráclito,que eu vos mandarei do Pai ("pará") o Espírito da verdade que procede do Pai ("ekporeúetai pará") Ele me dará testemunho”.

Os latinos observam que aí fala-se da missão e não da processão eterna, assim como também notam a freqüente referência ao Filho.Os latinos citam Ap 22,1; Jo 20,22; 16,13-15. Os gregos objetam que aí se fala sempre da missão terrena e não da processão eterna. Mas então porque mudaram o “pará’ bíblico para “ek”? Os latinos insistem que a missão terrena reflete e reproduz a processão eterna.Os gregos observam que o Filho encarnado está sob a ação do Espírito Santo. Sendo assim, como o Espírito poderia vir do Filho? Os latinos respondem que é assim para a humanidade terrena de Jesus, pois após a ressurreição é a humanidade gloriosa de Jesus quem envia sempre o Espírito.Os gregos julgam errada a tradução latina de Jo 15,26, pois usa um mesmo verbo latino para dois gregos. Os latinos reconhecem que não é precisa, mas nem por isso errônea.

- A posição dos teólogos ortodoxos hoje não é unânime (DTDC 361s). Resumindo: - há os intransigentes, para os quais a “heresia” do Filioque seria a causa de todos os males e

desvios do Ocidente, como o jurisdicismo, a autoridade sobre os carismas;- há os que consideram o Filioque uma opinião teológica, não um dogma (não aceitam o

Concílio de Florença);- há os que consideram o Filioque válido na ordem das energias incriadas, mas não na ordem

da essência divina (uma distinção que o Ocidente não aceita... e nem entende);- há os mais ecumênicos, que reconhecem que as formulações, embora divergentes,

pretendem significar a mesma coisa substancialmente;- há, enfim, aqueles, também católicos, que estão à procura de uma terceira via, isto é, de

uma terceira fórmula que seria comum (cf. Forte pág.125 nota 90; pág. 129 nota 102):O Espírito procede do Pai do FilhoO Espírito procede do Pai e repousa no FilhoO Espírito procede do Pai e irradia pelo FilhoO Espírito procede do Pai (Jo 15,26: εκπορεύεται) e recebe do Filho (Jo 16,14: εκ του εμου λήμψεται): cf.

Símbolo de S.Epifânio: DS 44; FC 0506. Quanto ao tirar o Filioque do Símbolo, todos, orientais e alguns ocidentais, estão de acordo.

IV - AS ANALOGIAS TRINITÁRIAS

- A analogia preferida por muitos hoje é a familiar ou social, que se baseia na estrutura dos grupos humanos em geral ou, em particular, na família, na comunidade ou na Igreja.Na verdade, quando se trata de teologia trinitária, tal analogia é muito imperfeita, não deixando transparecer as relações trinitárias no que têm de específico. De fato, se o Espírito é representado pela mulher-esposa, dever-se-ia concluir que o Filho vem do Espírito; se é o Filho que é análogo à mulher, então fica inexpressa a relação de origem entre o Pai e o Filho, pois a esposa não vem do marido. Essa analogia tem utilidade na antropologia, quando se pretende conhecer não a Trindade, mas o homem, e oferecer-lhe um ideal de vida.

42

Page 43: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

A Igreja não pode ser considerada uma analogia, dado que não possui uma estrutura interna que reproduza a ordem trinitária, a não ser como evocação longínqua (assim, quanto à organização eclesial Papa-bispos-leigos: todos vêm de Jesus; ora, seriam os leigos constituídos tais pelo Papa e pelos bispos?). Aqui também, o que vale é o ideal da comunhão trinitária como revelador da finalidade do homem e do sentido da vida. Mas essa comunhão cada um irá vivê-la de acordo com a sua estrutura, conhecida em si mesma, por revelação ou pela razão. Nesta, como em qualquer analogia, não se pode pretender corrigir por dedução o que é fartamente conhecido pela revelação.Leonardo Boff deu a esta analogia uma nova formulação que consegue superar os defeitos da exposição tradicional, evitando transpor para Deus a sexualidade humana. Ao invés de relacionar cada membro da família humana a cada Pessoa divina, atribui-se a cada uma delas tanto a masculinidade como a feminilidade (Boff 151-153).

- A mais prestigiosa é a analogia psicológica (cf. esquema da pág. seguinte). Seu objetivo principal é a compreensão mais adequada do mistério das relações trinitárias, aprofundando e estendendo o dado revelado, preenchendo as lacunas da nossa compreensão. A analogia teve, também, uma vasta aplicação em outras questões da teologia, especialmente na antropologia, na escatologia e na espiritualidade. O descrédito em que essa analogia caiu atualmente em parte depende da não compreensão de seus objetivos, como se se pretendesse provar o mistério a partir da especulação, mais do que da revelação bíblica; em parte deve-se ao fato que hoje a intenção é oposta à do passado, sendo nossa preocupação iluminar o mistério humano através da Trindade, não tanto entender a Trindade a partir do homem.

O fundamento dessa analogia são dois dados da revelação: o homem é imagem de Deus, especialmente no aspecto espiritual: a atividade consciente e livre, a inteligência e vontade, a razão e o sentimento, pois Deus é espírito. O outro dado revelado são os próprios nomes que as Pessoas recebem: Verbo, Sabedoria, Imagem, Palavra; Dom, Amor.

Diz-se, então, que o Filho procede por via intelectual, qual expressão do pensamento e da autoconsciência paterna, de forma análoga à atividade do pensar autoconsciente, que produz uma imagem de si, uma representação, uma idéia, um conceito (= concebido). A geração do Verbo-Filho é comparável a uma concepção intelectual.

Cf. Sto Hipólito, Ofício das leituras, 23 de dezembro.

Já o Espírito procede por via volitiva, como fruto do amor e querer recíproco entre o Pai e o Filho. O Espírito é o dom por excelência (comparar Mt 7,11 com Lc 11,13); ora, a causa e o motivo de todo e qualquer dom é o amor e, por isso, o amor é o dom por excelência. O Espírito não é amor no sentido de pessoa amante (também o Pai e o Filho amam!), nem no sentido de meio ou finalidade do amor divino, mas apenas no sentido de fruto, expressão e expansão do amor divino.

Se o ser de cada um de nós fosse infinito, perfeito, se a imagem que temos de nós correspondesse ao que somos e se conseguíssemos nos aceitar exatamente pelo que somos... surgiriam também em nós o que na Trindade denominamos três Pessoas. Isso não é possível, não só porque é absurdo, mas porque Deus nos criou para participarmos da sua vida, não para constituirmos uma entidade paralela a Ele.

Não há propriamente uma definição do Magistério a respeito dessa analogia, mas ela faz parte do patrimônio da Igreja latina e grega (embora nesta menos desenvolvida).

Toledo XI: “O Espírito deve ser entendido como o amor e a santidade do Pai e do Filho” (DS 527; FC 6034s).

Leão XIII: “O Espírito é chamado dom porque procede do amor mútuo entre o Pai e o Filho” (DS 3330: Encíclica Divinum illud munus).

Paulo VI: “Cremos no Espírito Santo, Pessoa incriada, que procede do Pai e do Filho como seu eterno Amor” (Credo do Povo de Deus, nº 10; FC 0530). O “cremos” indica que se trata de uma doutrina revelada. O Papa apresenta, assim, uma complementação da definição de Florença.

43

Page 44: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Gregório Pálamas rejeitava o “Filioque”, mas admitia a processão do Espírito como amor.

Um outro modelo de analogia psicológica se baseia somente na atividade amorosa. Presente em Santo Agostinho, foi desenvolvida por Ricardo de São Victor (DTDC 805-809) e pelos teólogos franciscanos. Observam eles que o amor implica três elementos: o amante, o amado e o próprio amor. O amor é dado no Pai, dado e recebido no Filho, recebido no Espírito, que é o Condilecto, ou então o próprio amor (Kasper esp. 227s.250; Arias Reyero 334-337; Forte 36s. 94-99). Esse uso da analogia parece mais apropriada para a conceituação da pessoa entendida como relação e comunicação de doação.

- Ivone Gebara (“Trindade: palavras sobre coisas velhas e novas”, Paulinas 1994) parte de uma analogia mais ampla do que as anteriores: a realidade inteira, que ao mesmo tempo é dotada de unidade e multiplicidade. A Trindade é vista assim como o símbolo acabado da organização do mundo da nossa experiência.

A ANALOGIA PSICOLÓGICA

Pessoa humana

Faculdade inteligência vontade

Atividade pensamento amor

Término conceito, “verbum”“species vicaria”idéia

amor* presença

- “impressio” espiritual

- “pondus”

Ato intelecçãoconhecimento

amor

Expressão palavralinguagem

atividades várias

Pessoas divinas

Inteligência Deus pensaconhece a si mesmo e tudo

Vontade Deus ama, quer amora si e a tudo essencial

Pensamento Pai concebe,engendra, diz ...

Amor Pai e Filho amorse amam nocionalespiram

Conceito o Verbo

Encarnação

Amor Espírito Amor amor pessoal

missão do Espírito

44

Page 45: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

* - “affectio” toque atração conaturalidade ser sensibilizado

- “motio” “pondus” impulso elã inclinação tensão propensão

V - O ESPÍRITO SANTO E A ANALOGIA PSICOLÓGICA- No que se refere ao modo e ao porquê da processão do Espírito, não possuímos dados de base tão

claros e certos como para a geração do Filho. Para este contamos com três analogias: Filho, Verbo e Imagem. Quanto ao Espírito, nada temos de equivalente a Filho e a Imagem, mas só a analogia do Dom-Amor (cf. Lc 11,13; Jo 4,10; Ro 5,5; 15,30; Gl 5,22), equivalente a Verbo. Outrossim, a presença de tal analogia na revelação não é tão evidente; por sua vez, a própria análise psicológica do amor é complexa, obscura, não sendo tão fácil a sua aplicação específica ao Espírito.“Verbo” indica somente o termo produzido no intelecto, distinto do pensar e do conhecer, ao passo que “amor” serve para todas as fases do processo. Por isso, na Trindade, “Verbo” só se diz do Filho, enquanto que “Amor” pode ser essencial (Deus é amor), atividade pessoal (o Pai ama o Filho; na linguagem técnica diz-se amor nocional) e fruto do amor pessoal (o Espírito como Pessoa).

- Existe, pois, em Deus o Espírito porque há em Deus uma operação imanente volitiva e ao Espírito é comunicada a natureza divina no seu aspecto de vontade e amor.Só amamos o que conhecemos: assim o Espírito-Amor procede do Pai e do conhecimento do Pai que é o Filho-Verbo.A processão do Espírito não é uma geração porque a vontade amante não produz um semelhante a si (como no conhecimento), mas sim um impulso de identificação com o amado.A analogia psicológica permite o uso de outras fórmulas além do “Filioque”: o Espírito procede do Pai no Filho e do Filho no Pai ("... in Filium... in Patrem"), no sentido que um tem no outro o objeto do amor. Assim, embora o Filho proceda só do Pai, o Espírito está presente, não como princípio, mas como complacência, a que o Pai encontra no Filho amado, no qual repousa (Tomás de Aquino, "De Potentia" 10,4,10).

- Através das atividades mentais do conhecimento e do amor, o ser conhecido e amado torna-se presente no sujeito que o conhece e ama. O conhecido está presente através de uma imagem-representação de si mesmo, enquanto que o amado torna-se presente produzindo no amante uma impressão e um impulso para que ele se dirija ao amado em vista de uma identificação afetiva, considerando o bem do outro como próprio.

A operação da inteligência termina no espírito, pois o verdadeiro e o falso estão na mente, enquanto que a operação da vontade termina no objeto amado, pois o amor procura o objeto em si, não a sua representação subjetiva. Se conhecendo eu possuo o outro, amando sou possuído.

O homem que conhece e ama a si mesmo está presente a si mesmo de três maneiras: por identidade de natureza, por conhecimento (imagem de si) e por amor (querer e aceitar-se a si mesmo). Os três modos de estar presente a si mesmo são os três modos de ser Pessoa em Deus. Naturalmente, não se verificam em Deus as defasagens do ser humano (um é o que sou, outro é como me vejo, outro como me aceito), pois Deus encontra a perfeição não em si, mas na comunhão trinitária.

- O Espírito Santo é, assim, Deus impressionado pelo próprio bem, Deus impresso em si mesmo, Deus que se move dentro de si ou, ainda, o Pai que se move pelo Filho.Como expressão do amor mútuo o Espírito recebeu vários nomes: amor, "caritas", "dilectio", "bonitas", "donum", "munus", "amicitia", "unitas", "vinculum", "communio" (2Co 13,13), "nexus", "amplexus", "complexus", "complexio", "copula", "usus", "pax", "fruitio", "osculum" (feito de dois lábios unidos, o Pai e o Filho; DTDC 491,

n.15).- O Pai é Pai só do Filho e o Filho é Filho só do Pai, enquanto que o Espírito é dos dois: comum aos

dois, não tem nome próprio, pois também o Pai e o Filho são espírito (cf. Jo 4,24) e são santos. Ao ser dito da 3ª Pessoa, todavia, o nome “Espírito” adquire um matiz particular, indicando o princípio vital interior, o impulso dinâmico próprio da vontade (a equivalência entre espírito e imaterialidade vem da filosofia moderna, não do pensamento antigo e nem da teologia).

- Há nomes que o Espírito Santo recebe por ser Ele a 3ª Pessoa, aquele que termina, que fecha o círculo trinitário, aquele no qual se esgota e se cumpre a fecundidade trinitária: sigilo, selo, testemunha, perfeição, santificação, consagração, garantia, arras.

45

Page 46: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- Podemos lembrar aqui várias analogias patrísticas tiradas da natureza, onde são claras as relações de proveniência:

Pai Filho Espíritosol raio esplendorfonte rio águaraiz ramo-planta fruto

braço dedoflor odormel doçurafogo calorboca do Pai sopro da boca

Deus Adão Eva (vem só de Deus) (vem de Deus e de Adão sem ser sua filha)

- Comunhão do Pai e do Filho e último, aquele que fecha a Trindade, o Espírito é também o que abre a Trindade para fora dela, com o único intuito de conduzir toda a criação para o seu fim último, que é a comunhão trinitária (Forte 96-99; 112-114; Bingemer 107-110).Atribui-se, assim, ao Espírito tanto a consumação da história, como o seu início na humani-dade: a criação, a encarnação, Pentecostes e a sua ação inicial no indivíduo, pela qual o Espírito é chamado germe, primícia, garantia, sinal, arras, semente. Assim como do amor procedem todas as atividades externas do homem, de forma análoga são atribuídas ao Espírito todas as obras de Deus “ad extra”. Termo final e unificante da expansão divina, Ele é também o termo inicial, princípio da expansão e abertura divina para fora; essa expansão só pode ter como finalidade o que o próprio Espírito Santo é: a comunhão trinitária.

- O tão deplorado “esquecimento do Espírito” que se diz ter sido próprio da Igreja latina deve ser colocado nas suas devidas proporções. O material teológico acumulado e desenvolvido é variado, amplo e riquíssimo: só não foi devidamente divulgado e assimilado em todos os ambientes, ficando pouco presente na pastoral e nas estruturas da Igreja. Para essa teologia colaborou não pouco a própria experiência e os escritos de muitos santos e mestres espirituais. Se, porém, em certa medida pode-se dizer que a Igreja esqueceu-se do Espírito, certamente se deve dizer que o Espírito jamais se esqueceu da Igreja, suscitando continuamente seus carismas e levando a Igreja a responder com criatividade a novas situações. S.BASÍLIO, Ofício das leituras, 3ª feira da 7ª semana da Páscoa.

VI - PESSOA EM DEUS(Boff 81s. 85-87; 147-151; Forte 149-152; Ratzinger, Dogma e anúncio, 177-192)

1 - Extensão do termo: O conceito cristão de pessoa acabou respondendo ao desejo de inter-pretar de modo unitário aqueles que são os protagonistas e agentes da história da salvação em diálogo entre eles: o Pai, o Filho, o Espírito, o homem (terrestre e beato, qualquer ser humano em qualquer situação), o Verbo encarnado e glorioso, o anjo e o demônio. Todos são pessoas, a saber, sujeitos da história da salvação. O pensamento moderno, entretanto, restringe o termo ao ser humano terrestre.

2 - Compreensão do termo: Já vimos que o termo entrou no vocabulário trinitário (págs. 37s) indicando uma individualidade empiricamente distinta, concreta, singular.

Especialmente no Ocidente o termo foi passando por um constante enriquecimento do seu conteúdo, mesmo após a secularização do conceito.

O latim logo absorveu as conotações do termo grego “hipóstase”, que indica uma subsis-tência própria e incomunicável (uma pessoa não se torna outra, não deixa de ser ela mesma).

Bem cedo a teologia incorporou a conotação jurídica do termo latino: pessoa como sujeito de direitos e deveres, por ser racional, responsável pelos seus atos..

46

Page 47: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Ligado a isso entraram as considerações sociais: sujeito de relações e de atribuições. Deus e homem são vistos assim como interlocutores, partes de um diálogo onde cada um tem as suas expressões e funções próprias.

Através de Santo Agostinho aprofundou-se de modo extraordinário o rico veio das considerações psicológicas: a pessoa como sujeito consciente e livre, centro de elaboração subjetiva da realidade objetiva; dotada de capacidade de se desdobrar na imagem de si e no que faz de si, através do querer e do agir livre. A pessoa é, assim, o ser que faz a si mesmo. São, pois, suas características a criatividade, a originalidade, a irrepetibilidade. A pessoa tem capacidade de autotranscendência, pois possui e, até mesmo, se torna aqueles com quem se relaciona, assim como pode ser possuída por eles. Naturalmente, em Deus esse ir além de si não indica carência, inferioridade e nem contínuo aperfeiçoamento, mas simplesmente a capacidade de doar-se, pela qual recebe o nome de Amor.

3 - Definição: há várias definições clássicas de “pessoa”, nas quais porém o desenvolvimento semântico fica escondido em proveito da exatidão e do acume filosófico.

“Naturae rationalis individua substantia” (Boécio).“Naturae intelellectualis (spiritualis) incommunicabilis existentia” (Ricardo de São Vitor).“Subsistens in rationali natura” (Tomás de Aquino). Cf. J.RATZINGER, Dogma e anúncio, 186s.

4 - Analogia: a compreensão analógica é a única possibilidade e, ao mesmo tempo, a grande dificuldade para usarmos o termo “pessoa” tanto para a Trindade quanto para o homem. Essa analogia constitui talvez o principal obstáculo no diálogo com as religiões orientais e com parte da modernidade (por ex.: Fichte, Jaspers), pois preferem conceber Deus como suprapessoal ou transpessoal. Ficam logicamente aquém da visão cristã os que entendem o Deus pessoal só em relação ao homem (um Deus unipessoal) e não de modo trinitário.

Onde está exatamente a dificuldade? Cada pessoa humana tem a sua própria substância individual, enquanto que as pessoas divinas não possuem cada uma a sua própria substância individual. Parece, assim, inevitável uma interpretação triteísta dessa linguagem.

O que pensar? A pessoa é um ser subsistente em uma natureza racional. Ora, é preciso procurar em cada tipo de ser o que nele encontramos de subsistente, distinto e individual. O que é distinto em Deus são as relações de origem. Por isso, o que constitui a personalidade divina não é a substância, como para nós, mas a relação de origem. Como cada relação não subsiste numa substância própria, diz-se que a Pessoa divina é uma relação subsistente, tão somente “esse ad”, uma relação que subsiste por si, sem se apoiar numa substância ou num ser só seu.

5 - Desenvolvimento: entre os seres humanos, pai e filho são sujeitos (com nomes próprios) que estão em relação: cada um possui suas características pessoais que não dependem da relação. Em Deus a relação é a única fonte de distinção e, tudo o que no Pai não é paternidade, é simplesmente a idêntica realidade que no Filho não é a pura filiação.É necessário purificar a nossa mente de todas as circunstâncias concretas que acompanham as relações humanas, mas que não constituem a relação como tal. Em Deus, Pai significa somente o ato de gerar, pelo fato de dar origem a um sujeito gerado. A única, idêntica e indivisa substância divina encontra-se, assim, em três modos distintos de subsistência, que são as três relações internas. O dogma trinitário não constitui um absurdo e nem uma contradição porque Deus, pelo fato de se constituir como ser absoluto, é um, mas por se constituir qual ser relativo é três. Portanto, as relações não se acrescentam à substância, mas são a substância toda considerada em relação a si mesma. Deus como absoluto é um, como relativo é três.

6- Precisações: o nome da 1ª Pessoa não é Genitor (sujeito de ação), Generante (ação), nem Paternidade (relação em abstrato), mas Pai (sujeito concreto em relação).

Nem toda e qualquer relação constitui uma pessoa em Deus, mas só as de origem, que implicam alteridade e disparidade. São díspares (ou irreversíveis) as relações de natureza diferente em cada sujeito como, por exemplo, as relações entre pai e filho. As relações de amizade, por sua vez, são pares e reversíveis, porque são similares nos dois amigos. As relações de alteridade (ou de contraposição) são as que se excluem no mesmo sujeito (posso ser pai e mestre da mesma

47

Page 48: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

pessoa, mas não pai e filho). Com base nisso formulou-se o tradicional axioma, derivado de Sto Anselmo e consagrado no Concílio de Florença (DS 1330; FC 6072): “Em Deus tudo é um, a não ser onde há relação de oposição" ("In divinis omnia sunt unum, ubi non obviat relationis oppositio").

As relações são quatro: a que vai do Pai ao Filho: paternidade;a que vai do Filho ao Pai: filiação; a que vai do Pai e do Filho ao Espírito: espiração ativa;a que vai do Espírito ao Pai e ao Filho: espiração passiva.

A espiração ativa não constitui uma pessoa porque não se opõe à paternidade e filiação, pois se identifica com elas. São Boaventura chama a ativa simplesmente de espiração e a passiva de processão.

7 - Objeções: Barth e Rahner, impressionados com o perigo de interpretação triteísta (cf. acima, item 4), propuseram um modo de falar que julgaram ser mais exato: em vez de Pessoa dever-se-ia dizer “modos de subsistência ou modos distintos de subsistência”.

Esses teólogos perderam de vista que a linguagem teológica se liga à experiência cristã e não a uma formulação abstratamente exata da realidade de fé. Ora, os três divinos foram conhecidos como sujeitos que se comunicam e agem na história: nós não entramos em relação com modos de subsistência, mas com Pessoas e como Pessoas. Além disso, a expressão proposta tem um forte sabor modalista.

Forte reproduz uma dificuldade crítica bastante repetida (Forte 149): como aplicar a mesma palavra (Pessoa) a três que são distintos de modo irredutível? Um termo assim genérico não seria inadequado?

Resposta: Pessoa indica que o que os três têm em comum (uma só palavra) é justamente o fato de se distinguirem de modo irredutível (donde três Pessoas), pelas relações opostas de origem. Pessoa indica sempre uma realidade concreta, irrepetível e inefável em si mesma, só podendo ser identificada, conhecida e expressa no confronto com o seu relativo.

Devido à menor clareza em reconhecer o Espírito como pessoa, com respeito ao Pai e ao Filho, há teólogos que buscam outras expressões: o Espírito é chamado então de “hyperpersona”, “aquele que personaliza”, “o nós do Pai e do Filho”, o “clima” entre o Pai e o Filho.

8 - Pessoa e Amor: o Filho, por si só, não é nada: tudo recebe do Pai, só do Pai. A sua personalidade consiste em ser tudo o que o Pai é, mas de um modo próprio: em estado de recepção e acolhida, não em estado de doação como o Pai.

Se “caridade” , dita do Pai, significa doação, dita do Filho significa acolhida, deixar-se amar. Dita do Espírito é a comunhão, a reciprocidade. É como um mesmo presente, cuja substância não é alterada ao ser dado, recebido ou trocado.

A identificação de “Pessoa divina” como relação subsistente alcança a definição bíblica de Deus como Amor. O supremo mistério de Deus e, portanto, o fundamento da unidade de toda a realidade não é a substância que subsiste em si mesma, mas o amor que se comunica no que é distinto. O máximo da incomunicabilidade e o máximo da comunicação e comunhão não se contradizem mas, pelo contrário, se sustentam mutuamente. Esse conceito de pessoa (divina e humana) torna impossível no cristianismo tanto a mística da alteridade (segundo a qual o homem nunca se comunica com Deus, mas só com seus derivados) como a mística da fusão (pela qual o homem se confunde com Deus e nele se perde). A distinção é na medida necessária para a comunhão plena e regrada por ela.

VII - A DIVINA KOINONÍADepois que se analisou a maneira como as Pessoas se constituem em sua distinção, podemos agora examinar a sua vida de um modo mais global e não só sob o enfoque da origem.

1 - Aspectos: podemos distinguir seis ao tratar da comunhão divina:- a inseparabilidade das Pessoas.- a unidade do Princípio no Pai (monarquia do Pai).- a unidade da natureza ou consubstancialidade (“unitas naturae”).- a união do Pai e do Filho na espiração do Espírito (“unitas amoris”).- a comunhão na atividade externa ou economia (sinergia).- a comunhão das Pessoas pela inabitação mútua: a PERICÓRESE (origem estóica?

É somente este último aspecto que iremos agora abordar. DTDC 694).

2 - Escritura: vários trechos e temas confluem no que foi denominado pericórese:

48

Page 49: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- João 1,1.2.18; 6,57; 8,16.19.29; 10,30.38; 13,32; 14,9-11.20; 15,10; 16,32; 17,10s. 21-23.26; 1Jo 1,2; 1Co 2,10.

- o verbo ‘ménein” (permanecer) com suas conotações de apego fiel e total, íntimo e profundo, de confidente familiaridade, de fidelidade generosa, atenta e disposta a qualquer sacrifício para manter a união, como manifesta a morte de Cristo.

- o tema da Aliança: a comunhão entre as Pessoas, comunicada ao homem através do dom do Espírito, estabelece a nova Aliança. A antiga fórmula: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”, torna-se: “Eu em vós e vós em mim, como o Pai está em mim e eu no Pai”. Jo 14,23: no discípulo, porque antes entre os Três.

- vários verbos e locuções, como ir e vir, sair e voltar, partir e entrar, entregar(se), manifestar(se), revelar, mostrar, ouvir, seguir, conhecer, amar, doar(se);ser, viver, estar, permanecer: em, com, ao lado, para, por.

Todos esses textos são interpretados com base no princípio que as missões ou a relação entre nós e Jesus manifesta e continua as relações trinitárias.

3 - Padres: eles interpretam todos esses textos ensinando que cada Pessoa vive na outra sem jamais se separarem. Falam de “in-existentia” mútua ou “inabitação” (no sentido latino de habitar em), de inerência. Para essa doutrina, João Damasceno introduziu um termo já usado na cristologia para indicar a união das naturezas na Pessoa do Verbo: a pericórese. Trata-se de um substantivo formado do verbo “perikhoréo”, no sentido de rodear alguém, fazer a corte, ou então precipitar-se sobre, invadir (um exército que invade e ocupa uma região não deixando nenhum espaço livre). O termo foi traduzido de várias maneiras para o latim, distinguindo-se dois aspectos:

ativo (entrar em) : "circumincessio", "circuitio", "ingressio", (circulação, circularidade).passivo (estar em) : "circuminsessio", "immeatio", "immansio".

4 - A análise psicológica das relações mútuas entre as Pessoas foi também aplicada nos seus três aspectos:

- comunhão intencional: cada um conhece o outro como a si mesmo e é por Ele conhe-cido: Mt 11,27; Jo 10,15; 17,25. Manifestação mútua: Jo 5,20; 14,20-23.

- comunhão afetiva: cada um ama os outros, nEles se deleita, com Eles se identifica, nEles têm seu centro de gravitação: Jo 3,35; 5,20; 14,31; 15,9; 17,24. Amam amar-se, sabem isso e sabem que é mútuo.

- comunhão efetiva: cada um vive no outro. Em Deus essa presença é física, é intercom-penetração, não é só proximidade e convivência, como entre nós; ela é imediata e total, sem mediações (como sejam: palavras, gestos, ações). Nada sobra que não seja invadido e doado, nada é deixado de fora. “Permanecei em mim, como eu permaneço no Pai”: Para nós esse modo de presença é participado na eucaristia.

5 - A felicidade suprema da vida divina é essa comunhão: o amor torna as Pessoas “extáticas” (ou seja: têm o centro fora de si, são “esse ad”, não “esse in”). A felicidade no homem não é necessária para Deus, mas é Deus quem exprime sua felicidade no homem. Paulo VI (Profissão de fé n.9; FC 0529) afirma que o bem supremo do homem consiste em participar, pela gratuidade do amor divino, da comunhão trinitária. A libertação (em qualquer sentido da palavra) está subordinada a essa finalidade e a ela deve conduzir. A glória trinitária é o aparecer da comunhão (o Pai: Ef 1,17; o Filho: Hb 1,3; o Espírito: 1Pd 4,14)

6 - A análise teológica: O movimento das processões não indica somente a origem de uma Pessoa da outra, mas também sua volta e repouso na outra. O movimento completo da vida trinitária abrange, assim, três momentos:

origem volta inabitaçãoprocessão tensão repouso

Só o primeiro movimento distingue as Pessoas, porque os outros dois indicam que a origem é interior à única substância divina.

Jo 1,1b: o Verbo estava voltado para o Pai.1,18: o Filho... que está voltado para o seio do Pai.

16,28: Saí do Pai e vim ao mundo; deixo o mundo e vou para o Pai.

A ação das Pessoas na história reproduz o tríplice movimento da vida trinitária.

49

Page 50: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

7 - A divina comunhão se apresenta como protótipo, como o modelo ideal da sociedade humana, da Igreja e de toda a comunidade humana e religiosa. Ela é o sentido e a missão da Igreja, que é o sacramento da unidade do gênero humano na unidade da Trindade, pois a Igreja é reunida pela unidade da Trindade; tal comunhão é o fundamento e o estímulo da caridade fraterna e do apostolado. O homem foi criado à imagem e semelhança divina, como base e exigência para chegar a participar dessa comunhão, junto com toda a humanidade.

8 - A exposição da comunhão divina é o melhor ponto de partida para a apresentação catequé-tica e pastoral do dogma. O mistério trinitário não é um teorema, um enigma ou uma formalidade, mas uma plenitude de vida. Não entendemos a Trindade porque não conseguimos imaginar como é possível amar tanto e se doar até esse ponto. O Deus-amor é único e, ao mesmo tempo, trino, na medida em que isso é necessário para a perfeita comunhão de vida. Cf. verbete “Catequese” no DTDC 141-156.A comunhão trinitária constitui a forma concreta do monoteísmo cristão, da unidade e unicidade de Deus.

VIII - AS APROPRIAÇÕES TRINITÁRIAS

- As três Pessoas são uma única e idêntica substância. Não há possibilidade de especificação de atributos ou de operações, pois só as relações de paternidade, filiação e espiração são distintas. Em particular, toda a atividade externa das Pessoas é absolutamente comum às Três. Deus opera fora de si como um único princípio de ação. Trata-se de uma verdade de fé, definida nos Concílios de Latrão IV (DS 800=FC 6060) e de Florença (DS 1331=FC 6073), anteriormente ensinado em 649 no Sínodo de Latrão (DS 501=FC 4045) e no XIº de Toledo (DS 531=FC 6051s). As processões imanentes são exclusivas de cada Pessoa, enquanto que as processões transeuntes ou externas são todas comuns às Três Pessoas. “Omnia opera Dei ad extra sunt indivisa, toti Trinitati communia”.

As obras ‘ad extra’ têm por finalidade nos fazer participar ‘ad intra’ da vida de Deus.

Todavia, a Escritura, a Liturgia e os Símbolos falam das Pessoas conferindo a cada uma diferentes atributos ou operações externas. Como interpretar essa linguagem? Que sentido dar a essas expressões? Não facilitam elas um triteísmo larvado ou um subordinacionismo ariano?

- Duas soluções extremas (inaceitáveis, quando constantes e excludentes):

- tudo é comum na Trindade (exceto a propriedade pessoal). As atribuições particulares são um modo de falar, puras metáforas, afirmações simplesmente indicativas e convencionais. Se digo “o Espírito santifica”, estou sempre subentendendo um “também”. Tal sentença banaliza a linguagem tradicional e não respeita o realismo da comunicação da Trindade ao homem, distanciando-a de sua vida.

- tudo é próprio e praticamente exclusivo de cada Pessoa. Assim, quando digo “o Espírito santifica” ou “o Espírito inabita o cristão” , entendo que só Ele inabita. Se as demais Pessoas inabitam, será “depois”, dependentemente, por outro título, impropriamente, só por causa da única natureza, etc.Tal opinião não leva a sério a unicidade e a consubstancialidade de Deus.

- Solução clássica: a doutrina da apropriação (“commune trahere ad proprium”).

- Apropriar quer dizer usar um termo comum com se fosse próprio. Existe sempre uma razão para isso, que geralmente é a excelência de uma certa realização, a sua qualidade superior (antonomásia), ou uma atenção especial que se quer dedicar à realidade em causa. O Santo Padre é o Papa, embora não só ele seja santo e padre (por exemplo: numa Ordem religiosa é o fundador). Tal procedimento lógico pode ser aplicado à Trindade, contanto que se ache outro fundamento, pois uma Pessoa divina não é mais excelente ou mais “realizada” do que a outra.

- Reconhece-se, pois, que só as propriedades pessoais distinguem as Pessoas e são próprias. Os nomes essenciais, os atributos, as perfeições, as atividades, as funções, as obras, as relações com as criaturas, tanto na ordem da natureza como na ordem da graça, são comuns à Trindade, não são exclusivas e nem mais próprias de uma só ou de duas Pessoas. Mas tudo o que é comum pode ser atribuído a uma Pessoa, isto é, apropriado, por causa de uma certa afinidade ou semelhança com a característica própria daquela Pessoa.

50

Page 51: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- Tal semelhança chama-se fundamento objetivo. Se todas as Três existem e agem sempre em comum, sem especificação de atribuições, cada uma age segundo o seu modo de ser na Trindade. Em tudo o que são e fazem, as Pessoas são distintas segundo o mesmo tipo de distinção que simplesmente as constituem distintas na Trindade. Tudo o que se diz de Deus é ao mesmo tempo uno e trino; nada em Deus fica sem ser atingido por essa Trindade. A essência de Deus não existe nem antes nem independentemente das Pessoas, mas só no modo concreto com o qual cada Pessoa é Deus. Se os atributos são comuns, eles são comunicados de uma Pessoa à outra segundo uma ordem precisa, assumindo um modo especial em cada uma, modo de ser , não somente de se apresentar.Ora, a maneira como habitualmente entendemos um atributo (o que pode em parte variar segundo tempos, culturas e mentalidades) pode apresentar uma maior afinidade com o modo como se encontra numa certa Pessoa divina. É necessário, porém, que a afirmação seja flexível, de modo que possa ser aplicada às outras Pessoas, embora adaptada à propriedade de cada uma delas (Por ex.: 2Co 13,13).

- Toda a nossa dificuldade consiste em ter que conceber simultaneamente o absoluto e o relativo, em ter que pensar o relativo sem referi-lo a uma substância própria. As propriedades das Pessoas divinas nos fogem quase que por completo: nós corrigimos essa imperfeição recorrendo aos atributos e atividades, dos quais sabemos mais. O que é mais distinto em nós (a substância) é único em Deus; o que é menos distinto em nós (a relação) é o único distinto em Deus. Deus, ao se dirigir ao homem através da palavra revelada, não podia senão falar através de apropriações.

Caso especial é o encarnar-se, próprio só do Verbo, e a graça das missões (cf. adiante) como autocomunciação de Deus para o homem que é imagem da Trindade.- Nem todas as apropriações possíveis entraram no uso corrente. O uso freqüente e exclusivo pode

dar um sentido praticamente próprio a um termo originariamente apropriado (assim Espírito dito da 3ª Pessoa). Termos com significação mais ampla e mais ricos de conotações se prestam a uma apropriação mais variada e menos constante (por exemplo: o amor). A nossa mente deverá ser bastante dútil para saber dar ao mesmo termo o sentido mais apropriado à Pessoa de quem se fala.Alguns exemplos de apropriações (DTDC 746ss):

eternidade unidade unidade poder criação Deusbeleza-forma igualdade verdade sabedoria redenção Senhorfruição harmonia bondade amor santificação Espírito

causa eficiente decisão início memória esperançacausa exemplar execução passagem conhecimento fécausa final consumação conclusão amor caridade

Uma mesma apropriação pode ser usada para uma Pessoa num sentido e para outra noutro. O poder, dito do Pai, indica autoridade, dito do Espírito indica eficiência. Cf. pág. 57 nº 8 como entender a apropriação do amor.

IX - AS DIVINAS MISSÕES- A palavra “missão “ vem do latim “mittere-missio” (= enviar) de uso freqüente na Vulgata para traduzir

tanto o grego “pémpein” como “apostéllein”. O termo indica o fato que as Pessoas foram enviadas para realizar uma obra, a economia da salvação, e não simplesmente essa obra-tarefa em si mesma. A palavra foi adotada pela teologia como expressão generalíssima para sintetizar e unificar toda a atividade divina em relação ao homem. É a noção que liga a Trindade imanente à Trindade econômica. Além de remeter a uma leitura integral do Novo Testamento, podemos indicar alguns textos:

Cristo enviado : Gl 4,4; Rm 8,3; Jo 5,23 s.36-38; 6,38s.44; 7,28s.33;8,16.29; 11,42; 14,24;17,3.8.21.23.25; 1Jo 4,9.14

Espírito enviado: At 2,33; Gl 4,6; Jo 14,26; 15,26; 16,7; Lc 24,49.

Enviar corresponde a doar, entregar: a respeito do Filho: Jo 3,16s; do Espírito: 14,16; Rm 5,5. Quem é enviado e dado, se doa, vem, desce, faz-se presente, sai, procede.

- A missão pode ser definida com base nas processões e na comunhão. Há três ou quatro maneiras diferentes de se definir a missão:

- a continuação livre da processão imanente que constitui a Trindade;

51

Page 52: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- o prolongamento temporal da processão eterna;- a mesma processão eterna, pelo fato que a ela se acrescenta um termo humano e tem-poral. A

manifestação no tempo da processão eterna.

Trata-se pois de iniciativas livres dentro de um desígnio amoroso. Para a Pessoa enviada a origem divina é a única fonte, tanto da sua propriedade pessoal, como de sua presença no tempo. Aquilo que, olhando desde baixo, com base nas nossas experiências e conceitos, chama-se graça, sacramentos, virtudes, liturgia, Igreja, revelação, etc, considerado desde cima, a partir da realidade divina, é um modo particular da Pessoa divina manifestar a sua origem, é uma missão divina. Assim, o Filho não nasce duas vezes, do Pai e em Belém, mas sua única geração eterna passa a ter também uma manifestação temporal e histórica.

- O Pai não é enviado porque não se origina de ninguém. Há somente duas missões porque há somente duas Pessoas originadas. Cada uma dessas duas missões abrange grande multiplicidade de momentos e de manifestações, a cada uma das quais dá-se também, mas não sempre, o nome de missão. Cada Pessoa é enviada por aquele de quem procede. Os enviados são, portanto, dois: o Filho e o Espírito, os dois Paráclitos.

- Sendo Deus Agápe, podemos reconhecer nas missões como um todo cinco objetivos ou conteúdos: a Pessoa é enviada para:

- manifestar e revelar a vida divina (Jo 14,21; 17,3); ser enviado é dar-se a conhecer na própria origem: “mitti est cognosci” (= ser enviado é ser conhecido pela origem: Santo Agostinho);

- comunicar-se e doar-se, comunicando e doando também o mandante (Jo 14,23); a Pessoa que é enviada, doada e entregue, vem, é acolhida, possuída, fruída (cf. Jo 3,16; 10,17; 15,9; 17,23);

- inabitar o homem segundo uma presença ativa nova (Jo 14,23); a missão é, pois, sempre da ordem da graça sobrenatural;

- assumir o homem na vida divina, no movimento de volta das Pessoas, de modo que o homem viva nelas e elas nele (Jo 14,3; 1Jo 1,3). O homem retorna ao Pai pelo Filho no Espírito.

- com tudo isso, transformar a pessoa em imagem mais semelhante ao Deus Trindade, divinizada (Jo 17,22; 1Jo 3,2; Rm 8,29; 2Co 3,18; Fl 3,21; Cl 3,4).

Na missão são dadas as Pessoas e não são conferidos simplesmente dons ou efeitos criados. Daí que parece ser insuficiente a linguagem das apropriações. Segundo a teologia clássica, as Três agem sempre em comum mas, quando se trata de missões, tornam o homem capaz de ir se dirigindo a cada Pessoa divina de maneira diferenciada, personalizada.

- As missões podem ser visíveis, exteriores, históricas ou invisíveis, interiores (mas não sem efeitos visíveis!), segundo o modo de manifestação. São visíveis a Encarnação e Pentecostes, (nos milagres e carismas até hoje ?); invisível é a vida da graça, a inabitação trinitária, todo o ato sobrenatural. Missão invisível do Filho: Gl 2,20; Ef 3,17.

- As missões divinas suscitam no homem uma série de atos cujo objeto é Jesus, a palavra, o amor: procurar, encontrar, deter-se junto de, seguir (Jo 1,35-39), permanecer na palavra (8,31), em Deus (1Jo 4,16), vir (6,34; 1,39), ir (5,40), acolher (5,43), escutar, aprender (6,45), ver (1,39; 12,45; 14,7.9), crer, conhecer (10,38), compreender (14,20). Cada missão do Espírito corresponde no homem a uma visita, um toque, um perfume... segundo uma analogia com os sentidos: ver, ouvir, sentir, cheirar, tocar (1Jo 1,1-3).

- Quantas são as missões invisíveis do Espírito? Há missão quando:- os atos virtuosos assinalam um progresso intensivo na graça e nas virtudes teologais;- há manifestações novas extensivas da graça, como o martírio, os carismas, a vida mística.

Cada uma dessas manifestações significa um envio do Espírito.

- O Pai envia o Filho e o Espírito à Igreja, o Filho e o Espírito enviam a Igreja ao mundo: assim a missão da Igreja continua as missões divinas (LG 3-4; 13; 17; AG 2; SC 6).Aqui falamos só da missão em geral. É tarefa de toda a teologia analisar as formas concretas da missão das Pessoas.

- O objetivo específico da missão do Espírito é inclinar o coração do homem para a vontade do Pai, fazendo com que ele a ame e a cumpra livremente, como o seu maior bem, que a abrace e a assimile de modo a encontrar nela sua felicidade. O Espírito conduz o homem à meta da comunhão

52

Page 53: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

com o Pai através da assimilação ao Filho-Imagem-Palavra-Sabedoria, operando no coração a Páscoa do Verbo encarnado. (Cf. págs. 27-29).

Filho-Verbo-ImagemImanentes procedem-voltam-repousam

Espírito-Dom-Amor- Processões

1ª criação : Saída – “Exitus”Transeuntes 2ª criação : Volta – “Reditus” = MISSÕES

X - O PROCESSO ANALÓGICO DO CONHECIMENTO E DA LINGUAGEM TEOLÓGICA

(Forte 162-167; cf. apostila de teologia fundamental)

- O Deus transcendente falou de si para comunicar-se aos homens, usando linguagem humana, dentro de determinada cultura. O homem, por sua vez, fala a Deus, fala de Deus, representa-o de muitas formas. Mas, qual é o alcance e o valor objetivo dessas nossas afirmações sobre Deus, sobre as realidades divinas? Até onde vai a correspondência entre realidade, termos e idéias? Estamos falando de Deus ou de nossas representações sobre o divino? Pensamos Deus ou projetamos realidades humanas em Deus? Como pode o Deus transcendente se comunicar com o homem terreno? Que valor têm atualmente comunica-ções divinas feitas em outras culturas? No que se segue tomamos em consideração somente a linguagem conceitual e não a simbólica.

- A resposta para estas questões está no reconhecimento e na valorização do processo analógico do conhecimento. Trata-se de um conhecimento e de uma linguagem baseados na percepção das semelhanças (analogia) que há entre seres essencialmente diferentes. Teologicamente, o fundamento está na constituição do homem qual imagem e semelhança de Deus e na realidade da graça, qual autocomunicação pessoal de Deus. Conhecemos o que nos é semelhante, na medida da semelhança: ora, Deus fez o homem à sua imagem e se fez semelhante a ele na encarnação.

- Supondo-se a revelação e o conhecimento da revelação, eis o que podemos afirmar a respeito de Deus:

1º) Podemos negar as imperfeições próprias das criaturas: Deus não é infeliz, não é pecador, não é mau, e assim por diante.

2º) Podemos afirmar qualidades que só se encontram em Deus e nunca fazem parte do nosso mundo de experiência: é assim que dizemos que Deus é, por exemplo, eterno, infinito, imenso, imutável. Na verdade, nunca iremos nos dar conta do conteúdo dessas afirmações, pois tudo o que conhecemos é temporal, limitado e finito; só afirmamos por oposição ao que conhecemos e, por isso, tais conceitos são conceitos negativos. Nunca poderemos ter algum contato com a eternidade como tal, por isso o que concebemos a respeito dela é só por oposição ao tempo, do qual temos experiência e que podemos conceber em si mesmo.

3º) Podemos atribuir a Deus, de um modo confuso, obscuro, impreciso e inadequado, tudo aquilo que encontramos de bom neste mundo, sempre nos lembrando que em Deus tudo é melhor e perfeito, sem que possamos esclarecer com precisão como a qualidade em questão se encontra em Deus concretamente.

Mais tecnicamente: Deus possui virtualmente todas as perfeições mistas das criaturas. Perfeições mistas são qualidades muito ligadas a um tipo concreto de ser, contendo, portanto, limitações e correspondendo a conceitos fechados; daí ser sempre possível pensar-se algo de melhor na mesma ordem. Assim o ser corpóreo, racional, etc.

Deus possui tais perfeições ou qualidades virtualmente, a saber: Como Criador é causa: algo deve haver nEle de parecido com a criatura, mas não temos

condições de determinar o que é.

53

Page 54: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Deus se comporta como se tivesse aquela qualidade mas, na realidade, tem outra. Deus vê, enxerga e por isso falamos dos olhos de Deus; mas o que fazemos com o olho, Deus faz ainda melhor sem ter olhos, de um modo que nos permanece desconhecido.4º) Podemos conceber as qualidades divinas de modo positivo, porém impróprio, quando se trata de atribuir-lhe as perfeições simples ou puras das criaturas. Perfeições simples são conceitos abertos, abstratos, abrangentes, sem limitações, que não têm outros superiores na sua ordem e que, portanto, não representam realidades perfectíveis como tais; sirvam como exemplo o amor, a liberdade, a beleza, a inteligência.Por positivo e impróprio entende-se o que representa uma qualidade em si mesma, não só por oposição, mas também não no modo concreto em que ela se encontra em Deus. Assim, falamos que Deus é Pai: a “formalidade” pai é a mesma em Deus e na criatura, mas Deus é Pai num grau superior e, sobretudo, no modo como pode ser Pai quem é eterno, infinito, imenso, ser trinitário, etc. O modo próprio das perfeições divinas só pode ser pensado de modo negativo (ou seja, não é como em nós) e relativo (proporcional ao que é divino). Dado que formulamos conceitos positivos, dizemos que Deus é cognoscível; mas como tais conceitos são impróprios, dizemos que Deus é incompreensível e inefável.

5º) Jamais conseguimos pensar em Deus, mesmo revelado, através de conceitos positivos próprios, a saber, aqueles que representam as qualidades divinas no seu modo concreto de ser.

- O agnosticismo não admite o ponto 4º acima, ignorando a analogia. (Dizer que Deus se arrepende, que é bom ou ruim, dá na mesma).

- O antropomorfismo presume conseguir conceitos próprios a respeito de Deus (não reconhece a impossibilidade do item 5º). Assim, as perfeições divinas são concebidas sem transcendência: bondade perfeita, mas no modo humano...

- Toda a afirmação a respeito de Deus supõe três passos sucessivos:

"Via affirmationis seu causalitatis": Deus é bom."Via negationis seu remotionis": não do jeito humano."Via eminentiae seu excellentiae": Deus é bom no mais alto grau possível, no modo proporcional ao

seu ser infinito, eterno, santo, e assim por diante.Para conhecer bem uma qualidade deveríamos conhecer todas!

O processo indicado não é de mera formulação de frases, mas o resultado de longa vivência e meditação de cada passo.

- Quadro esquemático:

Qualidades criaturas Deus

imperfeições sim não (ou por metáfora)perfeições negativas metafóricas próprias só dEleperfeições mistas próprias virtuaisperfeições simples formalmente em ambos

modo imperfeito modo perfeito

- A respeito de Deus o que não conhecemos é bem mais, e o pouco que conhecemos é mal conhecido (mesmo após a revelação!). Admitir a própria ignorância, dar-se conta dela após todo o esforço para conhecer melhor a Deus, é o sumo conhecimento ("docta ignorantia").

“Pois entre o Criador e a criatura não se pode observar tamanha semelhança que não se deva observar diferença maior ainda” (Concílio Latrão IV: DS 806; FC 6065).

- Existem, a respeito, duas tendências teológicas (se excludentes tornam-se errôneas!):

teologia apofática ou apofatismo: quer salvar a transcendência de Deus, acentuando o caráter negativo e extremamente precário do nosso conhecimento. Presente no judaísmo, nos ortodoxos e protestantes, na cultura e na filosofia moderna, no esoterismo.

teologia catafática, mais confiante na afirmação do conhecimento de Deus e de sua comunicação. Presente, embora de formas diferentes, nos antigos, na teologia católica, nas religiões naturalistas.

54

Page 55: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

- A doutrina exposta tem como fundamentos teóricos:

- os princípios de participação e causalidade.- o início empírico de todo o conhecimento espiritual.- a definição do homem como imagem de Deus.- o realismo da comunicação da graça.- a necessidade de se evitar os inconvenientes do agnosticismo e do antropomorfismo.

XI - OS ATRIBUTOS DE DEUS

Ao estudarmos o mistério trinitário respondemos à pergunta sobre quem é Deus, sobre sua personalidade. Mas permanece a questão sobre o que Deus é, sobre como Ele é, sobre sua caracterização e sua descrição.

Respondeu-se através do aprofundamento dos nomes divinos (Yahweh), de sua essência ou natureza (escolhendo um dos atributos como o mais expressivo: eterno, onipotente, infinito...), ou, ainda, tomando uma única expressão considerada mais abrangente (Deus transcendente, o totalmente Outro, o Absoluto, Ser subsistente, Ato Puro, Motor imóvel...). Uma terceira abordagem aprofunda analiticamente, um por um, todos os atributos aplicáveis a Deus.

Esta parte não tem recebido as devidas atenções na teologia contemporânea. A teologia clássica é julgada excessivamente presa à metafísica escolástica, abstrata e racionalista, própria da cultura grega helenista. Procura-se valorizar mais a experiência e a linguagem bíblica de Deus, sua interpretação em outros contextos culturais assim como, na atualidade, especialmente no mundo dos pobres. Fala-se mais de comportamentos e atitudes divinas do que de atributos. Todavia, as recentes considerações bíblicas, pastorais e trinitárias não deram lugar ainda a uma apresentação sistemática nova. Não se põe em dúvida (em geral!) o valor e a verdade das formulações da teologia clássica, mas tão somente sua correspondência a toda a renovação da teologia e à realidade do mundo contemporâneo.

Vamos percorrer sumariamente os dados mais importantes, nunca nos esquecendo que se trata de atributos de um Deus tripessoal que, em tudo o que é, é Trindade; os atributos são sempre relativos, só existem no modo particular e próprio como cada Pessoa divina é Deus.

As declarações dogmáticas encontram-se no Concílio de Latrão IV (DS 800=FC 6060) e no Vaticano I (DS 3001=FC 3019).

PERFEIÇÃO. Ela é não só ética, mas entitativa, sendo que Deus é reconhecido como fonte de todos os bens e meta de todos os desejos. Sl 145,3; 147,5; Mt 5,48; Lc 18,19; At 17,25; Rm 11, 33-36; Tg 1,17; Jo 14,8.

INFINIDADE ou INFINITUDE. Para muitos modernos trata-se de um verdadeiro nome de Deus. É preciso superar o sentido espacial (extensão e número) e não tomar infinidade como sinônimo de indefinido, pois se trata de negar todo o limite próprio da criatura contingente. Deus infinito é inesgotável, inexaurível, inatingível. À questão de como podem coexistir o infinito com o finito, o pensamento cristão responde recorrendo ao princípio de participação: se Deus é tudo, pode haver algo que não é Deus somente como participação de sua perfeição. Tanto mais que Deus é perfeição como amor, como doação de si. A filosofia grega considerou tal característica (‘ápeiron’) como imperfeição. SIMPLICIDADE. Deus não é uma unidade formada de partes ou de princípios constitutivos, de genérico e concreto, de possibilidade e atividade. Em Deus não há nada de material ou corpóreo. O cristianismo sempre rejeitou qualquer forma de dualismo no ser divino. Já vimos como essa

55

Page 56: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

característica foi importante na Igreja dos Padres no combate às heresias trinitárias, que entendiam o mistério recorrendo a noções coletivas ou abstratas.Em Deus as perfeições não são distintas umas das outras (assim, por exemplo, Deus é justo porque misericordioso), embora os nossos conceitos dessas perfeições sejam distintos entre eles (seria como se víssemos no espectro as várias cores mas nunca o branco!).

IMUTABILIDADE. A escritura fala com freqüência da fidelidade divina, que é a imutabilidade da sua vontade. Aqui estendemos a visão ao ser de Deus (Sl 102, 27s). Não se trata de imobilidade ou de inércia, mas de imutabilidade num ser que não pode deixar de ser vitalidade infinita. Imagem bíblica são as montanhas: Is 40,12; Sl 90,2; 125,1s.

ETERNIDADE. Não se trata de duração sem fim, mas de ausência de sucessão. Não é mero domínio sobre o tempo, mas posse simultânea de todo o próprio ser (Is 41,4; 40,28; Sl 90,2; 192,26-28; Dt 32,40; Tb 13,6.12; 2 Pd 3,8; Ap 10,6).

IMENSIDADE. ONIPRESENÇA. Nega-se em Deus a extensão do espaço, pois Ele é trans-cendente mas, ao mesmo tempo, está no espaço de modo repletivo: Ele enche o espaço sem que este o limite ou incida sobre Ele. Tema caro à Bíblia: 1 Rs 8,27; Jó 11,7-9; Sl 36,6-7; 95,4-5; 135,6; 139,7-10; Sb 1,7; Jr 23,23s; Br 3,24s; At 17,24-28...A Tradição reconheceu três modos de presença de Deus na criatura: substancial ou física, dinâmica ou operativa (Deus está onde age), intencional (presença por conhecimento e amor), sem falar da presença por graça ou comunicação pessoal. Deus é, pois, imanente e não só transcendente. Antes estão as criaturas em Deus, do que Deus nelas.

Os atributos vistos até agora (exceto o da perfeição) são ditos negativos (conhecemo-los por negação de características das criaturas, não por eles mesmos), incomunicáveis e entitativos. Vejamos os positivos, comunicáveis e operativos.

VIDA. Para a concepção bíblica cf. págs. 11s. Filosoficamente o atributo conota a interioridade, a espontaneidade, a autonomia de atividades próprias. Deus é causa eficiente, exemplar e final de tudo o que cria. O aspecto supremo da vida, qual princípio individual e interno de desenvolvimento, são as atividades da consciência e da liberdade, como segue.

INTELIGÊNCIA; ONISCIÊNCIA. 1Sm 2,3; 2Rs 5,25s; Jr 11,20; Am 4,13; Sl 94,11; 139; Cl 2,3; 1Jo 3,20. São temas bíblicos análogos: Sabedoria, Luz, Espírito, Providência. O conhecimento divino é atividade substancial, intuitiva, imediata, simples, compreensiva e completa, abrangendo a si mesmo, a todo o real, ao possível, o futuro necessário, o livre, o futuro condicionado (futuríveis). Deus conhece as criaturas nEle mesmo, não em dependência de informações que recebe delas. A compreensão deste último princípio, especialmente em relação às ações livres do homem, foi motivo de longas disputas entre tomistas e molinistas.

VONTADE. Deus ama infinitamente a si mesmo e tudo o mais por participar de sua bondade. Ama querendo e fazendo o bem desinteressadamente. A maior perfeição ou qualidade das criaturas é efeito e demonstração do seu amor, não causa dele (nós amamos porque encontramos qualidades, Deus ama ao dar as qualidades). Tudo existe e acontece por vontade de Deus, mas é preciso indagar como Deus quer cada coisa que quer, quais os modos de sua vontade, por inspiração direta ou através das criaturas e/ou da Igreja. Distingue-se a vontade em si mesma (o beneplácito, o agrado, o que é conforme ao seu ser, “voluntas beneplaciti”.) e a manifestação da vontade (“voluntas signi”) que pode acontecer de várias maneiras: ordem, proibição, conselho, ação, permissão, promessa. Neste assunto temos que tomar particular cuidado para não nos deixarmos levar por antropomorfismos.

Problema particularmente árduo é a compreensão da relação em Deus entre LIBERDADE e necessidade, pois Deus quer a si mesmo necessariamente e tudo o mais livremente. Mas nós também procuramos a felicidade necessariamente e não nos sentimos coagidos por causa disso.

Os sentimentos que atribuímos a Deus são as várias colorações de sua vontade amorosa de bem: gáudio, desejo, complacência, “ciúmes” , dor...

56

Page 57: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Ligados à vontade reconhecemos vários outros atributos de Deus:

SANTIDADE: é o amor só do bem; a harmonia entre vontade e ser; a exclusão de complacência no mal.

JUSTIÇA: Deus reconhece e recompensa o bem e o mal como tais; trata tudo e todos segundo o ser e a realidade de cada um.

BONDADE: benignidade, clemência, longanimidade, indulgência, paciência, condescen-dência, benevolência, amabilidade, misericórdia (entendida sempre como um comportamento ativo, não como mero sentimento).

FIDELIDADE: veracidade, lealdade, retidão, sinceridade, tenacidade, constância: Deus não engana nem se engana, mantém propósitos e promessas, não manipula nem instrumentaliza a verdade, não propõe erros em vista de utilidade prática, não exige fé sem necessidade ou só para provar a virtude do homem, não esconde a realidade.

ONIPOTÊNCIA. É a possibilidade e a capacidade de realizar fora de si tudo o que não é contraditório e absurdo. Sua capacidade é inesgotável, sempre podendo realizar coisas diferentes e novas. Tudo o que existe é demonstração dessa onipotência. Deus não pode fazer o que está em contradição com o seu ser (não pode fazer o mal, não pode contradizer o que já fez ou prometeu). Contrariamente ao que ensinaram os nominalistas, Deus não age caprichosamente, arbitrariamente, pois sua onipotência segue a inteligência, a compreensão, e é fundamentada em motivos. As coisas não são como são só porque Deus quis discricionariamente assim, mas porque Ele teve motivos para querer e um plano coerente de ação. Este é o fundamento da teologia especulativa, pois, de outra feita, só poderia haver teologia positiva.Sobre a onipotência cf. por ex.: Dt 32,13; Am 4,13; Is 58,14; Mq 1,3-6; Sl 18,8-16.34; Jó 9,8.

Manual clássico: B. BARTMANN, Teologia Dogmática I, EP 1964, págs.159-257.

* * *COMPLEMENTOS:

Deus na literatura: DTDC 508-520.Deus na iconografia : DTDC 414-418.Deus na Liturgia: DTDC 520-530.

S U P L E M E N T O (Cf. esquema p.29)

PROMESSAS DO ESPÍRITO SANTO NO EVANGELHO DE JOÃO

Por cinco vezes, durante a última ceia (Jo 13-17), o evangelista João refere promessas relativas à vinda e missão do Espírito Santo junto aos discípulos.

O clima geral do discurso revela um último colóquio, um discurso de despedida, no qual Jesus deixa a sua herança, o seu legado, o seu testamento aos discípulos, tudo o que ele recebeu do Pai e que ele multiplicou ao longo de sua missão terrestre (cf. Mt 25,14-30). Na hora da despedida Jesus promete deixar o Espírito junto com o mandamento do amor: assim Ele continuará presente, não deixando seus discípulos na orfandade. Confia-os uns aos outros e confia-os ao Espírito.

Quanto à historicidade dos ditos, basta-nos admitir uma autenticidade do sentido do que Jesus fez e ensinou durante a sua vida terrena na carne, à luz do que Ele realiza na comunidade como ressuscitado glorioso no Espírito.

Nessas cinco promessas podemos identificar os seguintes elementos:1º A identidade do Espírito:

- os nomes: o Espírito o Santo (2ª), Espírito da verdade (1ª, 3ª, 5ª promessa), Paráclito (1ª – 4ª promessa; na 5ª ‘Ele’ equivale a Paráclito pela leitura sinótica).

- as expressões: outro Paráclito (1ª), ele vem (5ª);

a concordância gramatical no masculino, apesar do neutro ‘pneuma’.

57

Page 58: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

2º As relações entre as Pessoas divinas:- o Espírito e os outros dois:

Jesus roga e o Pai dá o Espírito (1ª)O Pai envia em nome de Jesus (2ª)Jesus envia de junto do Pai (3ª)O Espírito procede do Pai (3ª)Jesus envia (4ª)O Espírito vem (5ª): o aspecto da relação é aqui ausente.

- o Pai e Jesus:Tudo o que o Pai tem é de Jesus (5ª).

- Jesus e o Espírito (5ª):O Espírito recebe (toma) de JesusO Espírito ouve de JesusO Espírito fala o que ouviuO Espírito glorifica Jesus.

3º As relações do Espírito com os discípulos: Estas aparecem através douso das preposições (‘en’, ‘methá’, ‘pará’ 1ª)formas verbais distinguindo as três fases: passado, presente e futuro:

tudo o que Jesus era e fazia, o Espírito fará,mas segundo o seu modo (eficaz e interior)

advérbios: agora, em semelhança, abertamente.A missão do Espírito é

Presença eficaz e interior: estar com, permanecer (1ª)Como Mestre (2ª e 4ª): ensina, recorda, conduz à plena verdade, anuncia.Como Testemunha (3ª e 5ª): testemunha a favor de Jesus, refuta o mundo.

O discípulo, por sua vez, Conhece, vê, compreende, acolhe (1ª), dá testemunho (3ª).

4º As relações do Espírito com o mundoO mundo não vê, não conhece, não pode acolher o Espírito (1ª)O Espírito confunde o mundo (refuta, mostra a sua culpa) (4ª).

PRIMEIRA PROMESSA: Jo 14, 16-18

16 Eu rogarei ao Pai καγω ερωτήσω τον πατέρα e vos dará outro Paráclito και άλλον παράκλητον δώσει υμινpara que esteja sempre convosco, ίνα η μεθ’υμων εις τον αιωνα17 O Espírito da verdade το πνευμα της αληθείαςque o mundo não pode acolher, ο ο κόσμος ου δύναται λαβεινporque não o vê nem o conhece. oτι ου θεωρει αυτο ουδε γινώσκειVós o conheceis, υμεις γινώσκετε αυτοporque permanece junto de vós ότι παρ’υμιν μένειe estará em vós. και εν υμιν έσται.

A identidade do Espírito como pessoa é reconhecível na expressão ‘outro Paráclito’, em referência a Jesus, que por primeiro merece tal título. Se a Jesus Paráclito atribui-se caráter pessoal, também ao Espírito Paráclito deve ser reconhecida a mesma característica.

“Outro” é expresso com ‘állos’ e não com ‘héteros’. Apesar do uso promíscuo desses adjetivos no grego helenístico, diferentemente da época clássica que os distinguia, a escolha de ‘állos’ insinua uma personalidade diferente, e não somente alguém numericamente distinto.

Essa promessa contém três modalidades, segundo a preposição e a forma verbal:- estar com: preposição ‘methá’ ‘μεθά’: presença eficaz, pela qual Jesus garante o êxito da missão a eles confiada de testemunhas e continuadores de sua mesma missão;- estar em: com a preposição ‘εν’: presença interior no testemunho (3ª e 4ª) e no ensinamento (2ª e 5ª). O verbo ‘estar’ – ‘éstai’ no presente gramatical tem sentido futuro;- estar junto: com a preposição ‘παρά’: está junto porque está em Jesus: os discípulos reconhecem que Jesus possui o Espírito Santo e não o espírito do mal como pensam os fariseus.Esta primeira promessa é geral, promete uma presença cujo conteúdo e propósito passa a ser especificado nas quatro promessas seguintes.

58

Page 59: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

SEGUNDA PROMESSA: Jo 14,26O Espírito Mestre em relação ao passado

26 O Paráclito, o Espírito Santo ο δε παράκλετος, το πνευμα το άγιονque o Pai enviará em meu nome, ο πέμψει ο πατερ εν τω ονόματι μου,vos ensinará tudo e εκεινος υμας διδάξει πάντα καιvos recordará tudo o que eu vos disse. Υπομνήσει υμας πάντα α ειπον υμιν εγώ.

- Observe-se o nexo a partir do versículo 18.

-Relações entre o Paráclito, Jesus e o Pai:- Identidade: o Paráclito é o Espírito Santo; O Espírito o Santo: só aqui usado com duplo artigo, o que acentua a personalidade do Espírito; a concordância, por sua vez, se dá no masculino ‘ekeinos’, pelo sentido (não é usado o feminino!), não pelo gênero gramatical neutro.- Relação com o Pai: o verbo ‘pémpo’-enviar (na 1ª corresponde a ‘dar’) é usado também para indicar a missão do Filho e usado pelo Filho para tratar da sua missão. Entre o Pai e o Paráclito há a mesma intimidade que o tema da missão revela entre o Pai e o Filho. Espírito no futuro com intermediário (26:nome; 16: oração). Filho no passado, sem intermediário.- Relação com o Filho: enviado em seu nome (pela sua oração 14,16). O nome do Pai é a pessoa enquanto revelada e dada a conhecer por Jesus. Indica a união estreitíssima entre o Pai e o Filho na missão do Espírito e a mediação de Jesus. A oração é infalível porque o mesmo Jesus, como mediador necessário, está associado a essa operação de enviar. Mandar em nome de Jesus = ele manda por quem é confessado pelo discípulo como Filho de Deus.

- A atividade do Espírito:

1 - Ensinar (διδαχή διδαξειν): transmitir ensinamento.- o que ensina:

τάυτα: tudo o que Jesus disse (e fez)O que Jesus disse estando com os discípulos (16,13.15)o mesmo que Jesus tinha ensinado, em sua atividade própria e típica de Mestre διδάσκαλος: 6,59; 7,14.28; 8,20.Jesus ensina e revela o Pai assim como a própria filiação (17,3; 18,20), não ensina particulares mistérios, não é mestre da Lei. Jesus ensina porque ouviu, recebeu, aprendeu do Pai, diz o que o Pai lhe ensinou: 8,28; 7,16s; 14,24; 2Jo 9: Jesus não é autodidata e nem aprendeu dos homens.Por sua vez, o Espírito ensina Jesus porque aprendeu de Jesus.Enviado em nome de Jesus, o ensinamento do Espírito é subordinado ao de Jesus.O ensinamento de Jesus deriva do Pai (origem) sua autoridade e conteúdo.O ensinamento do Espírito vem de Jesus, que lhe dá autoridade e conteúdo(16,13-15).Jesus já ensinou tudo, o Espírito não ensina novidades (15,15).Mas se no fato e no conteúdo do ensino o Espírito é igual ao Filho, é diferente no modo, como segue.

- o modo e o lugar do Espírito: ensinamento interiorizante: ‘εν υμίν’ (1ª promessa)Ensinamento interior, invisível, na inteligência da fé, na consciência e no coração. Uma doutrina não condicionada pelos limites do espaço e do tempo ou pela mentalidade do ouvinte; ensinamento irresistível.É assim pelo teor da 1ª promessa, pelo modo como de fato acontece, pelo que Jesus não pôde cumprir na sua vida terrena.

- a finalidade: produzir uma fé viva, a assimilação e apropriação pessoal do ensinamento de Jesus, levar ao íntimo do coração e da mente, dar compreensão e experiência, a interpretação autêntica, a inteligência profunda.A obra do Espírito torna supérfluo o ensinamento meramente exterior, pois é como uma unção (1Jo 2,20.27). O óleo torna os movimentos espontâneos, fáceis, não desgastantes, suaves: as

59

Page 60: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

passagens tornam-se lógicas, as interpretações e concatenações passam a ser rápidas e não forçadas. O Espírito liga suavemente o Antigo e o Novo Testamento, os fatos e os ditos de Jesus, o Jesus histórico e o Cristo da fé, o passado com o presente e o futuro, a ordem da criação com a da redenção, o natural com o sobrenatural, a natureza com a graça, a Igreja com a humanidade, Jesus com a comunidade dos discípulos, a razão e a fé, e assim por diante. A pessoa percebe que os ensinamentos de Jesus não são absurdos, antiquados, estranhos, impraticáveis, abstratos, frios. O discípulo passa a julgar tudo desde dentro, não de fora. Daí que pessoas inteligentes e cultas nada entendem da fé, quando não acatam a unção do Espírito. O Espírito leva a superar o momento intelectual e informativo e abre para acolher vitalmente o ensinamento.O Espírito torna possível o viver as palavras de Jesus, permanecer na palavra (8,31; 15,7).Espírito da verdade, dá à verdade a sua forma completa no coração do discípulo.

2 – Recordar: não repetir, reavivar a memória, a vã complacência no passado, para viver de renda. Não se trata simplesmente de salvar o passado do esquecimento.

- A anamnése, lembrança, recordação, memorial, já no AT, diz respeito a Deus e ao homem.Deus lembra = demonstra mais uma vez sua fidelidade às promessas.Homem lembra = - estimula a renovação, atualização, o reviver no presente a intervenção

divina passada;- toma consciência que a existência de cada um está inserida no plano de Deus; consciência dos deveres do presente e esperança no futuro;- Adaptação: reviver o passado nas condições do presente, inserir o presente no movimento que vem do passado e conduz ao futuro.

Acontece na prece, na meditação da Palavra, na celebração cultual: o encontro com o Deus vivo que age tornando possível o dar vida ao fato passado.No NT tal celebração é a eucaristia, vivida com consciência e coerência: “fazei isto em memória de mim”.

- A memória-recordação em João: - 2,17 (liga dito do AT com a vida de Jesus); 15,20 (liga fatos e ditos de Jesus); 16,4 (liga vida do discípulo com ditos e fatos de Jesus); 13,19 (liga passado e presente e futuro com Pessoa de Jesus); apesar das diferenças entre eles, há coerência e o discípulo entende que tudo tem o seu valor e conveniência.2,19.22; 12,16: A ressurreição torna possível descobrir o significado e o alcance dessas realidades: lembrar é crer e entender o que foi objeto de experiência sensível.Lembrar é dar a entender com base nos novos fatos que vão surgindo.- a continuidade da memória: o Pai lembra-se de Jesus, Jesus lembra do Pai, Jesus lembra dos discípulos, os discípulos lembram-se de Jesus: o Espírito garante essa continuidade.- a atividade do Espírito Santo na memória:O Espírito lembra aos discípulos tudo o que Jesus revelou (palavras-ditos e ações-gestos), sinais e ensinamentos, doutrina e obra.O Espírito lembra colocando de novo diante do que é evocado-revivido:

- ditos: dá a compreensão da fé, encaixando tudo e tornando tudo transparente e luminoso: doutrina-ensinamento inserido no contexto próprio, inteligência espiritual profunda, assimilação personalizada. Jesus deixa de ser considerado enigmático, incompreensível, escandaloso, distante e estranho. Ele é o que dá testemunho de si.

- feitos: o Espírito realiza uma atualização vital, reapresentação da realidade lembrada como ação eficaz: lembra palavras de Jesus que são palavras de Deus que lhe dá o Espírito sem medida, palavras de vida eterna, que são espírito e vida.14,10.12: o Pai realiza a obra no discípulo. O Espírito torna as palavras presentes e ativas, operantes; quando acontece, o discípulo vê que já tinha sido dito e entende melhor o que fora dito.

- o Autor: o Espírito reatualiza a presença de Cristo, palavra do Pai, revelação com a sua pessoa.Na Liturgia: a oração epiclética torna presente Jesus; dá o contato com a Pessoa presente na

ação litúrgica. A oração do Espírito e da Igreja-Esposa fará Jesus voltar (Ap 22,17). A lembrança mantida contínua pelo Espírito naquele que escuta obterá a resposta desejada.

60

Page 61: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Sem o ensinamento do Espírito através da recordação, a doutrina e ações de Cristo permaneceriam externas ao crente. Sem Jesus não se conhece o Pai, sem o Espírito não se conhece Jesus.

Cf. Lc 2,19.51; 3,15; 17,32; 22,19; 24,27.32.

QUINTA PROMESSA: JO 16,12-15O Espírito Mestre em relação ao futuro

12 Tenho muito a dizer, έτι πολλα έχω υμιν λέγειν,mas não podeis agora compreender. Αλλ’ου δύνασθε βαστάζειν άρτι.13 Ele, quando vier, o Espírito da verdade, όταν δε έλθη εκεινος, το πνευμα της αληθειας,Vos conduzirá à verdade plena οδηγήσει υμας εις την αλήθειαν πασαν.Pois não falará de si mesmo ου γαρ λαλήσει αφ’εαυτου,Mas dirá tudo o que tiver ouvido αλλ’όσα ακούει λαλήσει,E vos anunciará as coisas futuras. Και τα ερχόμενα αναγγελει υμιν.14 Ele me glorificará εκεινος εμε δοξάσει,pois receberá do que é meu e ότι εκ του εμου λήμψεταιe vos anunciará. και αναγγελει υμιν.15 Tudo o que o Pai tem é meu. Πάντα όσα έχει ο πατηρ εμά εστιν.Por isso vos disse: δια τουτο ειπον:Ele receberá do que é meu e vos anunciará. ότι εκ του εμου λαμβάνει και αναγγελει υμιν.

- Há afirmações aparentemente contraditórias, mas que devem ser interpretadas numa seqüência progressiva:15,15: tudo dei a conhecer16,12: Tenho muito a vos dizer - mas não podeis agora compreender17,26: dei e darei a conhecer16, 25: dar a conhecer em semelhança e abertamente. Há, portanto, dois períodos sucessivos: Jesus dá

tudo a conhecer em dois momentos sucessivos de revelação.

- Conduzir à verdade plena, inteira, total, (o ‘pása’ do vrs. 13 refere-se ao ‘pollá’ do vrs. 12).O verbo é ‘οδηγήσει’, que nos LXX- indica a ação de Deus que, como pastor, conduz do Egito a Israel.- associado a verdade, via , Espírito: conduzir à verdade a ser aprendida tendo por sujeito ativo o

Espírito: Sl 25,5; 43,3; 86,11; 143,10; conduzir à vida: Ap 7,17.- o Pai guia como Pastor no AT. Jesus aplica a si a imagem do pastor; no Ap é o cordeiro quem guia. No

texto é o Espírito o guia; Se Jesus é o ‘odós’, o caminho, o Espírito é o ‘odegós’: o guia no caminho.A verdade é plena qualitativamente quando assimilada pelo discípulo; quando praticada;Ela é plena quantitativamente quando se estende a novas pessoas e assume novas formas de expressão.Jesus é pleno de graça: 1,14; ele disse a verdade: 9, 32. 40. 45; ele é a verdade e caminho: 14,6; o

Espírito é guia à verdade plena em Jesus, é guia nesse caminho.O Espírito produz a inteligência da fé e da Escritura, o Espírito guia a elas.Ele conduz à verdade plena porque não fala de si mesmo, isto é, não busca algum próprio interesse,

porque não o tem. Assim, é preciso ter a mesma disposição para acolher seu ensinamento.

- Anunciar: coisas futuras, as que estão para vir: futuras em relação ao momento no qual Jesus fala: a sua paixão e ressurreição, “o que é meu”. Ora, a ressurreição é o início do definitivo, é o definitivo já realizado nele, é a meta da história tirada do futuro e colocada no centro da história. A ordem escatológica já estará concentrada em Jesus. O futuro é, portanto, o tempo da Igreja, que anuncia Jesus (5,15): o que acontece nela está no plano do Pai, continua a ressurreição de Cristo.Esse futuro combina com a revelação em dois tempos: 4,25; 16, 13. 25.

61

Page 62: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Aquilo cujo sentido o Espírito torna aberto e manifesto é o que para Jesus constitui objeto de ciência perfeita: 18,4.O Espírito anuncia dando esperança para o futuro. Quando o futuro for presente o Espírito mestre dará compreensão e capacidade de discernimento do que fazer. Em Daniel o verbo equivale a explicar e interpretar algo obscuro, um sonho misterioso, uma profecia difícil de ser entendida.- Glorificar: é transfigurar Jesus aos olhos dos discípulos. O Espírito dá a convicção que sua glória não é vã, falsa, nem aparente. A glória de Jesus é a manifestação e a realização nos discípulos da relação de comunhão entre o Pai e o Filho (17,10.22.24).O verbo ‘glorificar’ serve para descrever as relações entre as três Pessoas: o Pai glorifica o Filho, o Filho o Pai, o Espírito glorifica Jesus. Cada uma mostra a glória, isto é, o valor, as qualidades da outra pessoa e dá a capacidade de apreciação.Jesus tudo recebe do Pai e tudo comunica aos homens que o acolhem: assim é que glorifica o Pai. O Espírito glorifica o Filho porque dá aos homens o que recebeu do Filho, tudo o que Jesus tem e opera. 7,18: também o Espírito é verdadeiro (Espírito da verdade) porque mostra o outro, não a si mesmo (a nossa idéia é verdadeira quando corresponde ao outro, que é a realidade objetiva).

As relações entre o Pai, o Filho e o Espírito são expressas com os verbos: lalein = falar; akouein = ouvir; doxázein = glorificar; lambánein = receber; ananghéllein = anunciar. Todos esses verbos eram atribuídos a Jesus pelos Evangelhos, agora são atribuídos ao Paráclito. ‘Falar’ era atividade típica de Jesus: 4,26; 8,18. Tal falar deve levar à fé, é realizado em nome do Pai (7,16-18; 8,28; 12,49s) porque o Pai o enviou (3,34).

‘Escutar’: Jesus ouve o Pai (3,32; 6,30,15,15), diz o que ouviu (8,26.40).Assim também, o Espírito não falará a não ser o que ouviu (16,13). Para Jesus o verbo é expresso no tempo passado ou presente, e é um ouvir só do Pai. O Espírito tem o verbo no futuro, sendo que ele ouve do Filho e do Pai.

‘Receber’, equivale em João com freqüência a acolher: a atitude positiva dos homens em relação a Jesus, na sua palavra e no seu testemunho. Jesus acolhe o Pai, recebe do Pai: o mandamento (10,18), o poder (Ap 2,28), o testemunho e a glória. O discípulo acolhe a mãe (19,27).Há, pois, constante paralelismo e analogia na relação entre Jesus e o Pai e entre Jesus e o Espírito. Pela e na glorificação entra na inteligência da fé o mistério das relações pessoais divinas.Ao conduzir os discípulos à verdade plena, o Espírito revela, glorifica Jesus, recebendo dele o que é do Pai e do Filho, anunciando aos discípulos, ensinando e lembrando o que Jesus disse e fez.

Quanto à identidade pessoal do espírito note-se de novo no vs.13 a concordância no masculino para o neutro ‘pneuma’. Observe-se a emergência da personalidade do Espírito da 1ª à 5ª promessa: 1ª Ele vem pela oração do Filho, 3ª vem do Pai enviado por Jesus, 4ª vem enviado por Jesus, 5ª vem, sem menção de quem o envia.

TERCEIRA PROMESSA15, 26-27

O Espírito testemunha e advogado de defesa em favor de Jesus

26 Quando vier o Paráclito, Όταν δε έλθη ο παράκλητοςque junto do Pai vos enviarei. Ον εγώ πέμψω υμιν παρα του πατρός,o Espírito da verdade que vem do Pai, το πνευμα της αληθείας ο παρα του πατρος εκπορεύεται,ele dará testemunho de mim. εκεινος μαρτυρήσει περι εμου. 27 E vós também dareis testemunho, και υμεις δε μαρτυρειτε,porque estais comigo desde o princípio. ότι απ’αρχης μετ’εμου εστε.

O contexto não prevê a agápe, mas o ódio do mundo.Enviar: com o verbo ‘pémpo’:é Jesus quem envia o Espírito. Perceba-se a progressividade das declarações: Jesus pede (1ª), o Pai envia no nome de Jesus (2ª), Jesus envia de junto do Pai (3ª). No texto da quarta promessa (16,7) temos o ponto de chegada da progressão do desvelamento da transcendência e da divindade de Jesus: “Eu o enviarei a vós”, sem mesmo uma referência ao Pai: o Espírito é o enviado e Jesus é quem envia. No enviar o Espírito, Jesus se encontra junto do Pai, após ter passado do mundo. Para poder enviar o Espírito, Jesus deve estar junto do Pai e ter concluído sua obra. Envia como homem ressuscitado, glorificado, quando realiza na humanidade o que é próprio de sua divindade.

62

Page 63: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Vir:o verbo ‘érchesthai’ é usado por João para tratar da origem de Jesus e de sua missão. Assim em 7,29; 8,14.42;16, 27.28;17,8; 18,37, ora com a preposição ‘ek’, ora com a preposição ‘pará’.

Proceder: - com a preposição ‘pará’, indicando que o Espírito está junto do Pai, tem sua origem nele, é enviado por ele, recebe dele o seu ser.- O verbo ‘ekporeúesthai’ equivale a ‘exérchesthai’: cf. Mt 17,21 e Mc 9,29; At 1,21 e 9,28; Ap 19,15 e 19,21. Equivale a ser doado, enviado. O Espírito se encontra em relação ao Pai, numa situação análoga à do Filho: trata-se da vinda histórica e temporal do Paráclito no mundo, não diretamente da origem eterna, intemporal, intradivina do Espírito. Mas a missão temporal oferece fundamento para remontar à relação eterna intradivina. Quando passou para a profissão de fé constantinopolitana, a preposição foi mudada de ‘pará’, mais adequada para indicar a missão, para ‘ek’, mais apropriada para indicar a origem da pessoa.- Note-se também que os verbos ‘ir’ e ‘vir’ no presente tem significado de futuro (assim em português: eu venho ou vou, chego amanhã).Vejam-se agora os seguintes textos, onde o verbo é associado à imagem da água (que não aparece em 15,26), em clara referência ao Espírito:Ap 22,1: ποταμόν ύδατος ζωης εκπορευόμενον εκ του θρόνου του θεου και του αρνίου

Rio de água viva procedendo do trono de Deus e do cordeiroEspírito Santo procede do Pai e do Filho

Jo 4,14: a água que jorra (‘allómenon’) para a vida eterna: o Espírito presente no crente que conduz à comunhão com o Pai e o Filho

Jo 7, 38s: do seu seio correrão (‘rheúsousin’) rios de água vivaJo 19,34: saiu (‘exélthen’) sangue e água. Em todos os textos Jesus está presente como fonte da água.

Dar testemunho, junto aos discípulos e em favor de Jesus.- O tema do testemunho em João.

A missão de Jesus, continuada pela Igreja, se desenvolve dentro do quadro de um grande processo entre Jesus e o mundo, em analogia com os processos judiciais. Dentro desse processo há testemunhas em favor de Jesus:

João Batista: 1,7s; o próprio evangelista: 19,35; 21,24; a mulher da Samaria: 4,39; a multidão: 12,17; as Escrituras: 5,39; as obras de Jesus: 5,36; 10,25; o Pai: 5,32.37; 8,18; o próprio Jesus: 3,11.32s; 7,7; 8,14.17-19; 13,31; 18,37;

Enfim, o Paráclito, que presta um testemunho análogo ao de Jesus. Ele testemunha em favor de Jesus como Jesus dá testemunho do Pai.

Assim, o mistério total de Jesus na sua proveniência do Pai e na sua glorificação junto do Pai é objeto do testemunhar (martyrein) e do crer (pisteuein) do discípulo. Cf. 1Jo 5,6-7.

Temos, assim, a corrente dos testemunhos: o Pai confirma Jesus, Jesus confirma o que viu e ouviu do Pai, a sua missão e a sua volta, o Paráclito atesta que Jesus é o Filho e está junto do Pai.

Em continuidade, os discípulos podem dar testemunho de Jesus (15,26). Ao longo do processo o testemunho do Paráclito a respeito de Jesus (obras e Escritura) tem por objeto de iluminar e reforçar a fé dos discípulos (16,1: “para que não vos escandalizeis”; 2-4: perseguição contra os discípulos). O testemunho dos discípulos é o mesmo de Jesus e do Espírito, na continuidade da sucessão: Cristo vencedor junto do Pai, Senhor do mundo e da criação. O testemunho dos discípulos é efeito, fruto, manifestação do testemunho do Paráclito.

- A união entre o Espírito Santo (testemunho interior) e o discípulo (testemunho público) no testemunho em favor de Jesus: Mc 13,11; Lc 24,48s; At 1,8; 5,30-32; 6,10: o Espírito é operante na atividade de testemunho dos apóstolos.Vrs. 27b: “Porque estais comigo desde o princípio” = At 1,21s. Não se trata de mera convivência exterior, mas de comunhão de vida na adesão profunda: viver com Cristo. Também o Espírito está com Jesus desde o começo: 1,32s. O Espírito dá testemunho porque unido a ele desde o começo e porque enviado por ele; o discípulo dá testemunho porque unido ao Paráclito e a Jesus. O Espírito, operando o testemunho sobre Jesus no discípulo, o move invencivelmente à proclamação da pessoa e obra de Jesus.

63

Page 64: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

Como se vê, o testemunhar corresponde ao ensinar, mas testemunhar conota a apresentação dos fatos dos quais se tem experiência direta, enquanto que ensinar é desvelar o sentido e a finalidade, é explicar, interpretar, relacionar.

QUARTA PROMESSA16, 7-11

O Espírito testemunha de acusação contra o mundo em favor dos discípulos

7 Eu vos digo a verdade: αλλ’εγω την αλήθειαν λέγω υμιν:é de vosso interesse que eu parta, συμφέρει υμιν ίνα εγω απέλθω.pois se eu não for, εαν γαρ μη απέλθω,não virá a vós o Paráclito. Ο παράκλητος ουκ ελεύσεται προς υμας.8 Quando eu for, enviá-lo-ei a vós. εαν δε πορευθω πέμψω αυτον προς υμας.E vindo, confundirá o mundo και ελθων εκεινος ελέγξει τον κόσμονquanto ao pecado, à justiça e ao juízo. Περι αμαρτίας και περι δικαοσύνης και περι κρίσεως.9 Quanto ao pecado, περι αμαρτίας μεν , porque não crêem em mim; ότι ου πιστεύουσιν εις εμέ;10 Quanto à justiça, περι δικαιοσύνης δέ, porque vou para o Pai e não mais me vereis; ότι προς τον πατέρα υπάγω και ουκέτι θεωρειτε με;11 Quanto ao juízo, περι δε κρίσεως, porque o Príncipe deste mundo está julgado. ότι ο άρχων του κόσμου τούτου κέκριται.

- A partida de Jesus: Por que é preciso que Jesus parta para que o Espírito possa vir? O Evangelho afirma a necessidade para o bem dos discípulos, mas não oferece uma explicação. Teologicamente podemos reconhecer que:

- o ato de enviar o Espírito é especificamente divino: Jesus o realizará quando na glorificação se manifestar plenamente a sua divindade;

- o Espírito é enviado quando a humanidade de Jesus se encontra junto do Pai, pois o Espírito procede do Pai e do Filho, agora do Pai e do Filho feito homem glorioso;

- a tarefa do Espírito é toda relativa à de Jesus. O aperfeiçoamento e aprofundamento da fé só pode ser realizado quando o objeto dessa fé – o Senhor – já tiver alcançado a sua condição celeste perfeita.

“É bom para vós que eu vá”: a vinda, a presença e a atividade do Paráclito é uma realidade melhor para os discípulos do que a presença física de Jesus.

- o tema da hostilidade e da perseguição: esta leva ao processo durante o qual é dado o testemunho.Nos Sinóticos Jesus promete a assistência do Espírito nas perseguições: Mt 10,17-25; Lc 12,11s. Em meio ao ódio do mundo, os maus tratos, o escândalo, o Espírito defende o discípulo perseguido e lhe dá força para testemunhar Jesus.Em João temos acenos em 13,16; 15,20; 17,14. O tema é desenvolvido em 15,18-16,4. São motivos da perseguição: a falta de fé no Pai (15,21; 16,3); o ódio a Cristo (15,18); a reprodução no crente da experiência de Cristo (15,20). A futura história da Igreja é prevista à luz do drama de Cristo.Diferentemente dos sinóticos, nestas promessas de João o testemunho do Espírito é interior, é anterior à atuação dos discípulos e é de outra ordem. O Espírito não se põe a inspirar a autodefesa do discípulo para que confunda o adversário, mas preserva a fé do discípulo do escândalo na hora em que a fé dele for colocada à prova, no momento em que o discípulo experimentar a tentação da dúvida e o perigo da defecção: o Paráclito agirá em suas mentes dando o testemunho em favor de Jesus. De fato, em todo o Evangelho a atuação do Espírito é interior ao discípulo; é feita uma distinção entre: o Espírito dá testemunho e vós também dareis testemunho; 16,1s: escandalizar, levar ao pecado da perda da fé, ou pelo menos colocar em dúvida o acerto da fé, é considerado um ato de culto.

- O tema do processo.João exprime o mistério da revelação de Cristo através de um vocabulário de extração forense e de conceitos jurídicos. É o pano de fundo que interpreta toda a história como processo entre Jesus, o enviado do Pai, e o mundo com seus aliados em todas as formas: judeus (as autoridades judaicas), o mundo pagão e ímpio, o príncipe deste mundo. É como se o processo diante de Pilatos tivesse uma forma transcendente, iniciada antes e prolongada depois. É o confronto entre luz e trevas, vida e morte, verdade e mentira, liberdade e escravidão.

64

Page 65: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

O tema é desenvolvido no Evangelho como um drama, aparece em forma de controvérsias entre Jesus e o judeus. Então, a favor de Jesus testemunham: o Pai, Abraão (8,56), Moisés (5,46s).

O ápice do processo se dá diante de Pilatos, quando aparentemente Jesus é derrotado, enquanto na realidade é o demônio a ser derrotado (12,31s; 16,33).

O processo continua na história: é enviado o Espírito para que o discípulo possa reconhecer que Jesus venceu e para que continue vencendo.

Em Israel o sistema processual contemplava: o juiz, o acusado e as testemunhas. Não havia promotor nem advogado, sendo que o juiz emitia a sentença após ouvir as testemunhas a favor e as contra. Nesse sentido o Paráclito é advogado e presta testemunho. Na visão do evangelista para o processo contínuo de Jesus diante do mundo, temos o seguinte quadro:

Uma única sessão contínua: o desenrolar da históriaUm tribunal: a consciência do discípuloUm Juiz: o próprio discípuloUm acusado: JesusO acusador: o demônio através do mundoA acusação: impostura: Jesus não é nem Filho e nem enviado de Deus, nem Messias e nem Salvador,

pois tem pacto com o demônio através da magia, desrespeita e Lei e é blasfemoAs provas: propriamente não há, pois vigora a mentira, a distorção e deturpação de tudo o que Jesus fez

e disse, o cinismo e a má-fé; a mentira consiste em dar sentido inaceitável ao que Jesus disse e faz, ou então, consiste na pretensão de interpretar o sentido ‘autêntico’ e ‘bom’ da atuação de Jesus.

Diante desse quadro, o discípulo-Juiz iria inevitavelmente condenar Jesus em sua consciência. Dá-se então a intervenção do Paráclito que defende Jesus testemunhando em favor dele ao mesmo tempo em que passa a acusar o mundo. Com essa intervenção o discípulo tem condições para absolver Jesus e proclamá-lo Senhor, seu Senhor.

O mundo acusa Jesus, e em seguida acusa também a Igreja como impostora, apresentando-se como vítima das maldades da Igreja e dos discípulos.O mundo distorce, inventa, aumenta, tira do contexto, acentua um aspecto;Pretende dar a última e melhor e mais autêntica versão dos fatos; Pretende ter competência para adaptar, neutralizar e renovar os ensinamentos de Jesus;Exerce coação (muitas vezes sem que assim pareça), pressão, massificação, privando as pessoas de discernimento para que assim acreditem em qualquer mentira.Seduz, engana, deslumbra com suas propostas alternativas, muitas vezes as mesmas da Igreja, porém já corrompidas, ou atribuindo a si o que aprendeu e recebeu da Igreja.O Paráclito acusa o mundo.

O verbo ‘elénchein’ significa descobrir ou provar a culpa, o erro, a falta, é trazer a prova objetiva do erro (3,20s. 8,46), é demonstrar a culpa do mundo, confundindo-o. Não significa simplesmente convencer, pois se trata de argumentação interior em proveito do discípulo, e por outro lado, o mundo não se deixa convencer pela verdade.

A morte de Jesus parece ser o seu fracasso. Tirando o discípulo do mundo das aparências, o Paráclito o faz penetrar no plano da realidade, que comporta uma compreensão oposta da que tem o mundo a respeito do processo.

Há dois aspectos no testemunho do Espírito:- dar aos discípulos a certeza íntima de que estão na verdade e que sua fé é agradável a Deus;- demonstrar aos discípulos que o assalto do mundo contra Jesus e contra o apego deles a Jesus

é injusto e infundado, expressão de presunção cega e maligna.Com essa demonstração o discípulo sai vencedor do mundo, vitória interior e espiritual, que consiste

simplesmente no fato de crer (1Jo 5,4). Vitória de Jesus obtida lá onde o mundo tenta derrotá-lo, na consciência dos seus discípulos.

Nesse processo que continua sem cessar, o Espírito retoma na consciência do discípulo os pontos da acusação que condenaram Jesus: 7,12: impostor, enganador; 8,48s.52: possesso; 10,33.36: blasfemador; 11,48-50: perigo para a nação; 18,46; 9,24: pecador.

O Espírito mostra ao discípulo que o pecado é do mundo, que a morte de Jesus é expressão da justiça de Deus, e que o verdadeiro condenado é o demônio.

Confundir quanto ao pecado: o pecado consiste em não crer em Jesus (1,5.10s; 3,18s; 8,24), é a incredulidade. Jesus foi acusado de ser pecador (9,24). O Espírito demonstra que o verdadeiro pecador é quem

65

Page 66: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

não crê em Jesus. O ‘elénchein’ corresponde ao ‘martyrein’ de Jesus (7,7). Não é um convite à penitência, mas só demonstração do pecado e da condenação do mundo.

Confundir quanto à justiça: o que aconteceu com Jesus está no plano do Pai; a cruz é glória (12,23.27-28), vitória, meio de glorificação. A justiça é ir ao Pai: o Pai justifica Jesus levando-o para junto de si. O Paráclito mostra que Jesus é justo (esse título aparece nas confissões de fé). O Paráclito mostra que as pretensões de Jesus, contra as quais o mundo se ergue, são justas, estão no plano do Pai, pois Jesus subiu ao céu onde permanece. O que para Estevão é objeto de experiência carismática (At 7,55s), o discípulo recebe na fé. O mundo não vê Jesus, e se alegra porque pensa que tem a prova de que Jesus acabou, não mais existe (16,20). O mundo não entende que Jesus foi glorificado. A alegria do mundo é a do condenado cego da própria condição; a partida de Jesus torna definitiva a cegueira.

Confundir o mundo quanto ao juízo (12,31): o demônio é privado do seu poder, expulso de seu domínio. Isso acontece na crucifixão (12,32), pois na cruz se dá a troca de guarda (até agora na árvore tinha ficado a serpente); sobre Cristo o demônio não tem poder (14,30; Ap 12,9s; Lc 10,18). O Paráclito mostra que o processo, na verdade, já foi concluído, resolvido. A vitória dos discípulos é participação da vitória de Cristo (16,33) e consiste na fé (1Jo 5,4s). Os discípulos têm a certeza que não serão arrastados no choque do inimigo. Assim, o Espírito atua o que Jesus pede em 17, 12-17.

Em Mt10,32s // Mc 8,38 // Lc 9,26; 12,8s, temos o verbo ‘homologhein’: declarar-se a favor, no sentido forense de afirmação em tribunal, declarar-se no tribunal de estar em favor de alguém ou de pertencer a ele. A preposição ‘émprosthen’ (diante de ) é expressão técnica para significar uma declaração num tribunal.

Em Mt 10,17s também os discípulos serão arrastados ao tribunal, aquele terreno. Mas há outro tribunal, diante do Pai (Mt) ou diante dos anjos (Lc), sendo estes as testemunhas do julgamento escatológico de condenação. Portanto, no juízo final Jesus vai se apresentar como acusador ou como testemunha de defesa.

Em Daniel o julgamento é exercido unicamente pelo mundo celeste em favor do Filho do Homem, mas sem sua participação. Em Lc é o Filho do Homem a pessoa que dá a decisão, embora em inteira submissão a Deus. Jesus – representante do Israel escatológico – dá seu voto do qual depende quem encontrará graça e fará parte do povo.

O TERMO PARÁCLITO

O correspondente etimológico latino do grego paráclito é ‘ad-vogado’, alguém que é chamado perto para prestar uma ajuda (‘-clito’ vem do verbo ‘kaléo’, que significa chamar, ‘vocare’ em latim; a preposição ‘pará’ corresponde ao latino ‘ad’, no sentido de ‘junto de’). Poderia ser entendido como ajudante, auxiliar, secretário, colaborador, ministro, defensor, consolador, intercessor e similares. Nas nossas línguas, ‘advogado’ passou a ter um sentido bem mais específico.

O termo não se encontra nos LXX. Não há correspondente hebraico (e Is 50,8 ?: .(מצדיק Raro em grego. Encontra-se em Filon, no sentido de intercessor junto a Deus em favor dos pecadores. Nos escritos rabínicos indica o advogado defensor junto a Deus. O contexto é jurídico, forense.A novidade de João é atribuir ao Paráclito a função de ensinamento magisterial profético no tempo presente, identificá-lo com o Espírito de Jesus. Tal revelação-ensinamento é feita num contexto de contradição, de oposição, num processo, o qual revela a natureza dos protagonistas e dos fatos.

Nos outros escritos do NT falta o título de Paráclito, mas está presente a atividade correspondente.Se o nome é Paráclito, a atividade é expressa com o verbo ‘parakalein’ (108 vezes) e o substantivo ‘paráclesis’ (29 vezes), no sentido de exortar, confortar, animar, consolar. Esses termos estão ausentes em João, mas presentes em Paulo, em Atos e outros escritos.Nos evangelhos sinóticos, como também em algumas outras passagens, domina, no uso verbal, o sentido de rogar, suplicar, implorar, interceder. Esse uso é coerente com a função que Paulo atribui ao Espírito, de ser a fonte da oração do cristão no íntimo do coração (Ro 8,15.26-27). Outrossim, também em Paulo o Espírito é testemunha para o discípulo, como em João, mas para dar-lhe a consciência de ser filho de Deus (Ro 8, 16).Se o Espírito é o ‘outro Paráclito’, isso é afirmado em relação à ação anterior de Jesus junto aos discípulos. Na primeira vez que o título aparece (14,16) o Espírito vem pelo chamado orante de Jesus. Por outro lado, Jesus é Paráclito no céu, junto ao Pai, enquanto que o Espírito é Paráclito na terra, junto aos discípulos. Ele foi chamado por Jesus para ficar com os discípulos. Por sua vez Jesus é Paráclito porque chamado pelo Pai na ressurreição

66

Page 67: curso-de-teologia-etel. · Web view- As inovações próprias da cultura atual invadiram o campo teológico. O tratado sobre Deus Trino foi a última parte da teologia a sentir a renovação

para estar à sua direita intercedendo por nós (1Jo 2,1; Ro 8,34). Jesus se mostra no céu como homem e mostra toda a humanidade nele. O Espírito mostra à consciência do discípulo quem é Jesus e como ele vem do Pai como seu Filho.

O tema da consolação como promessa escatológica está presente no AT:Is 41,1; 50,4; 51,12; 57,18; 61,1s;Pv 8,4-9: A sabedoria em pessoa é que consola mediante o ensinamento do que é reto e justo. Ora, os

escritos sapienciais têm grande influência em João. A sabedoria é identificada com o espírito divino em muitos lugares dos sapienciais. Há coincidência das noções de paráclesis, alédeia, elènchein e pneuma, nos provérbios e outros trechos sapienciais e no evangelho de João: tudo isso não é fruto do acaso. Esses textos da Sabedoria que consola deram origem tanto à idéia quanto ao nome de Paráclito dado ao Espírito. A tradução de Paráclito como Consolador é muito antiga. Todavia, na linguagem atual, ‘consolar’ adquiriu uma conotação sentimental e, muitas vezes, seu exercício se dá através do engano e da mentira, ocultando a verdade. O Espírito consola mostrando a verdade contida na esperança cristã: consolar é sempre um confortar, encorajar.No AT Deus promete, no NT Deus atua a consolação em Cristo, na pregação da Igreja mira-se à conversão e à fé, para receber a consolação do “Deus de toda consolação” (2Co 1,3). O Paráclito é o Espírito da paráclese cristã. O título de Paráclito do 4º evangelho é coerente com a função salvifica que exerce.

Função associada a Paráclito é aquela do ‘Goel’, o resgatador, o qual tem por missão:- estabelecer o direito prejudicado: tarefa do parente mais próximo encarregado do resgate,

especialmente no jubileu.- após o exílio não havia mais possibilidade de ‘goel’. Isaias dá novo sentido ao termo: o próprio Deus é

o Goel, o Messias será o Goel Rt 4,14.Jesus é o parente próximo, o irmão mais velho, que assumiu a defesa e o resgate de sua família, de seu povo. Jesus é o redentor, o salvador, que veio restabelecer os direitos conculcados dos pobres. A ação do Espírito como Goel é ação de solidariedade e reconstrução do povo e mantém a vida da comunidade eclesial em contato estreito com a vida do povo.

Segue uma tabela da freqüência dos dois termos na Escritura:

O verbo ‘parakaléo’ e o substantivo ‘paráclesis’ no sentido de exortar, consolar, encorajar, confortar, animar, recomendar (às vezes próximo a ‘rogar’) ocorrem nas seguintes passagens:

Por parte de Deus que conduz a história: verbo: Mt 5,4; At 20,12; 28,14; 2Ts 2,17; 2Co 1,4.6; 5,20; 7,6.13; Cl 2,2.Substantivo: Lc 2,25; At 9,31 (consolação do Espírito); 2Ts 2,16; Ro 15,4.5; 2Co

1,3.5.6.7; 7,4.13; Fl 2,1; Hb 6,18; 12,5; Lc 6,24: falsa consolação.

Por parte do profeta, apóstolo, Igreja: verbo: Lc 3,18; 16,25; At 2,40; 11,23; 14.22; 15,32; 16,40; 18,27; 20,1.2; 1Ts 2,12;

3,2.7; 4,1.10.18; 5,11.14; 2Ts 3,12; Ro 12,1.8; 15,30;16,17; 1Co 1,10; 4,13.16; 14,31; 16,15; 2Co 2,7.8; 6,1; 7,7; 10,1; 13,11; Fl 4,2; Cl 4,8; Ef 4,1; 6,22; 1Tm 1,3; 2.1; 5,1; 6,2; 2Tm 4,2; Tt 2,6.15; Hb 3,13; 10,25; 1Pd 2,11; 5,1.12; Jd 3.

Substantivo: At 13,15; 15,31; 1Ts 2,3; Ro 12,8; 1Co 14,3; 2Co 1,4; 2Co 7,7; 1Tm 4,13; Fm 7; Hb 13, 22.

67