cunha, m. c._introdução a uma história indígena_história dos índios no brasil

Upload: anarcorinthians-sccp

Post on 05-Apr-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    1/17

    ,

    H I S T O R I AD O S I N D I O SN O B R A S I L

    CUNHA,Manuela Carneiro da (org.). "lntroducao a umaHis to ri a I nd ig en a" , Historia dos indios no Brasil. 2 . e d.T "reimpressao, Sao Paulo: Companhia das Letras/Fundacaode Amparo a Pesquisa ( FAPESP) , Secretaria Municipal deCultura ( SMC ) , 1992, p. 9-24.

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    2/17

    I N T R O D U Q A o A U M A H I S T O R I A I N D I C E N AComo eram e silo tilo barbaros, e

    tkstituidos da razao, nilo trataram deEscritura, ou de outros monumentos emque recomendassem a posteridade as suasHist6rias para que dela v{ssemos as semPrincipados, aliancas, Pazes, e disc6rdias

    de soberanos, sucessos de Estados,conquistas de Provincias, defensas de

    Prayas , adm in' Js s emos

    oitOrias e perdas de Batalhas, e todoo memoracel com que a fortunae a politica viio sempre, com as seculos;acrescentando as Histories dasMonarquias. Par esta Cauza, ignoramoso que se conhece de todas as outrasNafoes do Mundo [...](Ignacio Barboza Machado,Exerdcios de Marte, 1 725 , fo l. 9 0.)

    M a n u e l a C a rn e i r o d a C u n h a

    A 0 chegarem a s costas brasileiras, os na-vegadores pensaram que haviam atin-gido 0 parafso terrea1: uma regiao de.eterna primavera, onde se vivia cornu-mente pOl'mais de cern anos em perpetua Ino-cencia, Deste parafso assim descoberto, os por-tugueses eram 0 novo Adao, A cada lugar COD-feriram wn nome - atividade propriamenteadamica - e a sucessao de nomes era tam-bern a cronica de uma genese que se confun-dia com a mesma viagern. A cada lugar, 0 no-me do santo do dia: Todos os Santos, Sao Se-bastiao, Monte Pascoal. Antes de se batizareml iS ( ! Jn tios. hatizou-se a te rra e 11 ('o 11 t1 'a

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    3/17

    10 HlsrORlA DOS INDIOS NO B!1AStL

    Em 1612, seisIndios doMaranhao foram

    levados peloscapuchinhos

    franceses para aCoNe do jovem

    Luis XIII paraconseguir apoiof inanceiro e poli ticopara a ColOnia.Tr~s morreram

    quase ao chegar(entre os quais

    Francisco Caripira),tras outrossobravivaram,

    foram batizadoscom 0 nome deLuis a vol taram

    para 0 Maranhaoco m esposasfrancesas ecobertos de

    nonranas, Vaem-seam FranciscoCaripira (figura a

    direita) astatuagens que,

    entre os'luplnarnba,celebravam 0numsro deinimigos

    ritualmenteabatidos (Claude

    d'Abbeville, His.foireda la mission desperes capucins ... ,.

    1614).

    ideias recebidas: como enquadrar por exem-plo essa parcela da humanidade, deixada portanto tempo a margem da Boa Nova, ua histo-ria geral do genero humano? Se todos os ho-mens descendem de Noe, e se Noe teve ape-nas tres filhos, Cam, Jafet e Sem, de qual des-ses filhos proviriam os hom ens do MundoNovo? Seriam descendentes daqueles merca-dores que ao tempo do rei Salomao singravamo mar para trazerem ouro de Ofir - que po-deria ser 0 Peru -, au das dez tribos perdi-das de Israel que, reinando Salmanasar, se afas-taram dos assfrios para resguardar em sua pu-reza seus rites e sua fe? Emais, admitindo quese soubesse isso, restaria descobrir por quemeios teriam cruzado os oceanos antes que osdescobridores tivessem domesticado os mares.'Ialvez as terras do Novo e do Antigo Mundocomunicassern, ou tivessern comunicado emtempos pass ados, por alguma regiao ainda des-conhecida do extremo Norte ou do extremo

    SuI do Mundo, ou talvez as correntes marinhastivessern trazido esses homens a deriva. Ques-toes que, debatidas por exemplo pelo jesuftaJose d'Acosta em 1590 (Acosta, 1940 [1590]),continuam colocadas hoje e nao se encontramcompletamente resolvidas, conforme se veraneste volume (Salzano, Cuidon;' ver tambemSalzano, 1985, e Salzano e Callegari- Jacques,1988:2). Haveria rmiltiplas origens e rotas depenetracao do homem americano? Teria elevindo, como se cre em geral, pelo estreito deBering e somente por ele? Quando se teria da-do essa rnigrar;ao?ORIGENSSabe-se que entre de uns 35 mil a ceres. deun s 12 miJ ano s a tr as , uma glaciacao teria, porintervalos, feito 0mar descer a uns 50 m abal-xo do nivel atual. A faixa de terra chamada Be-ringia teria assim aflorado em varies momen-tos deste periodo e permitido a passagem apeda Asia para a America. Em outros mornen-tos, como no intervalo entre 15 mil e 19 milaDOSatras, 0 excesso de frio teria provoeadoa coalescenc ia de geleiras ao norte da Ameri-ca do Norte, impedindo a passagem de ho-mens. Sobre o perfodo anterior a 35 mil anos,nada se sabe, De 12 mil anos para ca, uma tem-peratura mais amen a teria interposto 0mar en-tre os dois continentes. Em vista disto, e tra-dicionalmente aceita a hip6tese de uma mi-gracao terrestre vinda do nordeste da Asia ese espraiando de norte a sul pelo continenteamericana, que poderia ter ocorrido entre 14mil e 12 mil anos atras, No entanto, ha tam-bern possibilidades de entrada maritima nocontinente, pelo estreito de Bering: se ever-dade que a Australia foi alcancada ha uns 50mil anos por hornens que, viodos da Asia, atra-vessaram uns 60 Ian de mar, nada impediriaque outros viessem para a America, por nave-ga

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    4/17

    1l\ 'T110DU

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    5/17

    12 1-I1ST6RIA DOS IND!OS NO BHASIL

    eo caso tambem das fusees Arawak-Ihkano doalto rio Negro (Wright),. das culturas neo-ribetrinhas do Amazonas (Porro), das socieda-des indigenas que Thylor chama apropriada-mente de colonials porque geradas pela situa-

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    6/17

    IN TR OOU

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    7/17

    14 !IlSTORIA DOS INDIOS NO BRASIL

    exernplo, Franchetto e Wright}, a exploraeaodo trabalho indfgena, tudo isto pesou decisi-vamente na dizimacao dos Indios, He. poucosestudos demografieos que nos possam escla-recer sobre 0 peso relative desses fatores, masurn deles, recente, e elucidative, Maeder (1990)analisa a populacao das redugoes guarani ap6so terrnino das expedicoes dos paulistas apre-sadores de Indios, e cobre 0 perfodo de 1641a 1807. Resulta dos dad os, abundantes entreessas datas, que os periodos de descenso emesmo de colapso populacional sao aquelesem que houve maior mobilizaoao de homenspelos poderes colonials, com a conseqiientedesestruturacao do trabalho agricola nos al-dearnentos e seus corolarios de fome e de pes-te: desses dados quantitativos emerge urna si-tual,;ao semelhante aquela de que sempre sequeixavam os religiosos administradores de al-deamentos indfgenas.A AMERICA INVADIDAAs estimativas de populaeao aborigine em1492 ainda sao assunto de grande controver-sia, Para que se tenha uma ideia das cifrasavancadas, adapto aqui urn quadro de Dene-van (1976:3), que por sua vez adapts e com-pleta Steward (1949:656) (tabela abaixo).Quanto a s regioes que nos ocupam mais deperto, Rosenblat (1954:316) da 1 milhao parao Brasil como um todo, Moran (1974.:137) dauns modestos 500 mil para a Amazonia, aopasso que Denevan (1976:230) avalia em 6,8milhoes a populacao aborigine da Amazonia,Brasil central e costa nordeste, com a altfssi-rna densidade de 14,6 habitantes/krn- na areada varzea amazonica e apenas 0,2 habitan-telkm2 para 0 interfhivio, Como cilia de com-paracao, a penfnsula iberica pela mesma epo-

    NOmeros para Terras balxas Total America(em mllhOes) da Am, do SuiSapper (1924) 3a5 37 a 46,5Kroebar (1939:166) 1 8,4Rosenblal (1954:102) 2,03 13,38Steward (1949:666) 2,90 (1,1 no 15,49

    Brasil)Borah (1964) 100Dobyns (1966:415) 9 a 11,25 90,04 a 112,55Chaunu {1969:382} ao a 100Denevan (1976:2.30.,.291) as {S,l na 57,300

    Amaz

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    8/17

    !NTnODU!;AO A. UMA !!JSTOR!lI!KDi(;,"I\ 15

    ropeus, troeando por forces, machados e facaso pan-brasil para tintura de tecidos e curiosi-dades exoticas como papagaios e macacos, emfeitorias costeiras (Marchant, 1980). Com 0primeiro governo geral do Brasil, a Colonia seinstalou enquanto tal e as relaeoes alteraram-se, tensionadas pelos interesses em jogo que,do lado europeu, envolviam colonos, governoe missiomirios, man tendo entre S I, como assi-nala Taylor, uma complexa relacao feita de COD-llito e de simbiose,

    Nao erarn mais parceiros para escambo quedesejavam as colonos, mas mao-de-obra paraas empresas coloniais que inclufam a propriareproducao da mao-de-obra, na forma de ca-noeiros e soldados para 0 apresamento de maisindios: problema estrutural e nao de algumaIndole iberica. Quem melhor 0 expressou foiaquele velho indio Tupinamba do Maranhaoque, por volta de 1610, teria feito 0 seguinted isc urso a os f ra nc es es que ensaiavarn 0 esta-belecimento de uma colonia:

    "Vi a chegada dos pero [portugueses] emPernambuco e Potiii: e comecaram eles comovos, franceses, fazeis agora. De infcio, as peronao faziam senao traficar sem pretenderem fl -xar residencia [...]Mais tarde; disseram que nosdevtamos acostumar a eles e que precisavamconstruir fortalezas, para se defenderem, e ci-dades, para morarem conosco [... J Mais tardeaflrmaram que nem eles nem as par [padres]podiam viver sem escravos para os servirerne por eles trabalharem. Mas nao satisfeitos comos escravos capturados na guerra, quiseramtambem os filhos dos nossos e acabaram es-cravizando toda a naC;ao [...] Assim aconteceucom os franceses, Da primeira vez que vies-tes aqui, vas 0 fizeste somente para traficar [...JNessa epoca nao faIaveis em aqui vos fixar;apeuas vos contentaveis com visitar-nos umavez par ano [....] Begressaveis entao a vosso pals,levando nossos generos para troca-los comaquila de que careciamos. Agora ja nos falaisde vos estabelecerdes aqui, de construirdesfortalezas para defender-nos contra os nossosinimigos. Para isso, trouxestes um Morubixa-ba e varios Pal. Em verdade, estamos satisfei-tos, mas os pero fizeram 0 mesmo [...] Comoestes, vas nao querfeis escravos, a princfpio,agora os pedis e os quereis como eles no fim[.. .]" (Abbeville, rrad. Sergio Milliet, 197"5614]:ll5-6).

    A Corea tinha seus proprios mteresses, fis-cais e estrategicos acima de tudo: queria de-certo ver prosperar a Colonia, mas queria tam-bern garanti-la politicamente. Para tanto,interessavam-lhe aliados indios nas suus Iutascom franceses, holandeses e espanhois, seuscompetidores internos, enquanto para gar-an-tic seus limites extern os desejava "Ironteirasvivas", formadas par grupos indfgenas aliados(Farage, 1991). Ocasionalmeute tambem, co-mo no caso do rio Madeira na decada de 1730,convinha-lhe a presence de um grupo indige-na hostil para obstruir uma rota fluvial e irn-pedir 0 contrabando (Amoroso). Em epocasmais tardias, principalmente na do marques de

    Painels de carvalhoda "lIha do Brasil"que decoravamurna casa emRouen (c. 1500-14).Representamo escambo depau-brasll praticadocom os indiosbraslleiros:veern-se fndi.osabatendo as arvorese ernbarcando-asno navio frances.

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    9/17

    16 I IlSTOHIA I)OS INDIOS NO fjlH II.

    A conversao desIndios passava peloEstado portuques

    (representado aquipelo seu escudoem que se refletemos raios de fa ) ejust if icava as

    concessoesterritorials que 0papa fizera, em

    1493, na America.Este lrontisplcio aobra de Irei Joao

    Jose de SantaThereza, Istoria delRegno de Brasi/e,

    de 1698, e urnaperfeita alegeria dosistema dopadroado.

    Pombal, a Corea pretendia nfim, nurna visaomais ampla, prom over a emergencia de urn po-vo brasileiro livre, substrate de urn Estado con-sistente (Perrone): indios e brancos formariameste povo enquaoto os negros continuariam es-craves.

    Os interesses particulares dos colonos e osda Coroa podiam portanto eventualrnente es-tar em conflito na epoca colonial: urn terceiroator, importante cornplicava ainda a situacfio,a saber: a Igreja ou mais precisamente urnaordern religiosa, a jesuitica. A Igreja, com efei-to, nao era monolitica, longe disso. A tradicio-nal oposicao entre clero secular e clero regular,acrescentava-se a rivalidade entre as diversasordens, que significativamente eram chamadas

    de "religiees" no seculo XVII . 0 sistema dopadroado, em que 0 rei de Portugal, por dele-ga

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    10/17

    IKTIWDUCAO ~ UMII IlIS"T61U~ lNOlcENiI 17

    gue-se melancolicamente em 1966 em meioa acusacoes de corrupcao e e substitutdo em1967 pela Fundacao acional do Indio (Fu-nai): a politica indigenista continua atrelada aoEstado e a suas prtoridades. Os anos 70 s a oos do "milagre", dos investimentos em infra-estrutura e em prospeccao m.ineral- e a epo-ca da Transarnazonica, da barragem de Tucu-ruf e da de Balbina, do Projeto Carajas, Tudocedia ante a hegernonia do "progresso", dian-te do qual os indios eram ernpecilhos: forgava-se 0 contato com grupos lsolados para que ostratores pudessem abrir estradas e realocaeam-se os Indios mais de lima vez, primeiro paraafasta-los da estrada, depois para afasta-los dolago da barragem que inundava suas terras, Eo caso, paradigmatico, dos Parakana, do Para.Este periodo, crucial, mas que nao vern trata-do oeste Iivro, desembocou na mllitarizacaoda questao indigena, a partir do infcio dos anos80: de empecilhos, os indios passaram a serriscos a seguranga nacional. Sua presenca nasfnmteiras era agora urn potencial pengo. . E iro-nico que indios de Borairna, que haviam sidono seculo XVIII usados como "muralhas dos

    sertoes" (Farage, 1991), garantindo as Irontei-ras brasileiras, fossem agora vistos como amea-cas a essas mesmas fronteiras,

    No firn da decada de 70 multiplicam-se asorganizacces nso governamentais de ap oio ao sindios, e no infcio da decada de 80, pela pri-meira vez, se organiza um movimento indige-na de ambito nacional. Essa mobtlizacao ex-plica as gran des novidades obtidas na Consti-tuicao de 1988, que abandona as metas e 0jargfio assimtlacionistas e reconhece as direi-tos origiuarios dos fndios, seus direitos hist6-rices, a posse da terra de que foram os primei-ros senhores.POLiTICA INDIGENAPar rna conscieneia e boas intencoes, imperoudurante muito tempo a nogao de que os in-dios foram apenas vftimas do sistema mundial,vftirnas de uma polftica e de praticas que lheseram extern as e que os destrufram. Essa vi-sao, alem de seu fundamento moral, tinba ou-tro, teorico: e que a histone, movida pela me-tropole, pelo capital, so teria nexo em seu epi-centro, A periferia do capital era tambern 0 Iixo

    Os Indioscomo"guardiaes dasironteiras", nolimiteentre 0 Brasile a Guianat rancesa. Aoladode Rondon, ur nindio segura abandeira brasileiraenquanto outreampunha abandeira francesa.

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    11/17

    nrsronn DOS i:-':D10S XO BIHSIL

    Indio Guajajara (adire ita) e indio

    Urubu-Kaapor (aesquerda)

    lotografados porCharles Wagley noMaranhao (1942): apenet racao da

    inlluencia e dasmercadorl as

    trazldas peloseurope us fez"ser nu lt as v e ze s

    atraves de gruposindlgenaslnterrnedlarlos,

    da historia, 0 resultado paradoxa! dessa pas-tura "politieamente eorreta" foi samar a eli-minacao nsiea e etnica dos indios sua elimi-nacao como sujeitos historicos."Ora, nao ha duvida de que os Indios foramatores politicos importantes de sua propria his-t6ria e de que, nos intersticios da politica in-digenista, se vislurnbra alga do que fO i a poliotic a in dig en a. S a be -s e que as potencias metro-politanas perceberam desdecedo as poten-cialidades estrategieas das inimizades entregrupos indigenas: no seculo XVI, os francesese os portuguesesem guerra aliaram-se respec-tivamente aos ' Iamoio e aos Tupiniquins (Faus-to); e no seculo XVII os holandeses pela pri-meira vez se aliaram a gropos "tapuias" contraas portugueses (Dantas, Sampaio e Carvalho).No seculo X IX , os Munduruku foram usadospara "deslnfestar" 0 Madeira de grupos hos-tis e o s K rah o, no Toeantins:,.para combater ou -tras etnias J e .

    Essa polftica metropolitana requer a exis-tencia de uma polttica indigena: os Tamoio eos Tupiniquins tinham seus pr6prios motivospara se aliarem aos franceses ou aos portugue-ses. Os Tapuia de J anduf tinham os seus paraaceitarem apoiar a Mauricio de Nassau. Senesses casos nao e certo a quem cabe a ini-ciativa, em outros a .iniciativa e comprovada-

    mente indigena: no seculo XVII, grupos Coni-bo (Pano) querem aliados espanhois (missio-narios) para contestar 0 monop6lio piro (ara-wak) das rotas comereiais com os Andes (Er ik-son). A coalizao de Karaja, Xerente e Xavanteem Coias, que em 1812 destruiu 0 recem-fundado presidio de Santa Maria no Araguaia(Karasch), e urn exemplo da amplitude que po-dia aleancar a pohtica indigena em seu con-fronto com os recem-chegados,

    Coaliz6es deste porte, no entanto, foram ex-eepcionais. Ao contnirio, 0 efeito geral dessaimbricaeao da polftica indigenista com a polf-tica indfgena foi antes 0 fracionarnento etnico(Taylor, Erikson). Faltam no entanto estudosde caso desses processos de fracionamento.Por isso e particu!armente valiosa a descrieaofeita por Turner de um processo dessetipo,mostrando a articulacao da polftica externacom a polftica interna dos grupos kayap6 aolongo de varias decadas: corrida armamentis-ta, fissao ao longo de divagens ja inscritas nasociedade (metades, sociedades masculinas),tornam-se inteligiveis a luz da estrutura socialkayap6. E, reciprocamente, e essa hist6ria et-nografica que ilumina a estrutura social kaya-p6. A hist6ria local e portanto, como advoga,entre outros, M arshal l Sahlins (1992) , elementoimportante de conhecimento etnografico,OS iNDIOS COMO AGENTESDE SUA HISTORIAA peroepeao de uma polftica e de uma cons-ciencia hist6rica em que os indios sao sujei-tos e nao apenas vftirnas, so e nova eventual-mente para nos. Para os indios, ela parece sercostumeira. E significative que dois eventosfundameotais - a genese do homem brancoe a iniciativa do contato - sejam frequents-mente apreendidos nas sociedades indigenascomo 0 produto de sua pr6pria a9ao ou von-tade,

    A genese do homem branco nas mitologiasindfgenas difere em geral da genese de outros"estrangeiros" ou inimigos porque introduz,alem da simples altendade, 0 tema da desigual-dade no poder e na tecnologia, 0 hornembranco e muitas vezes, no mito, urn mutanteindigena,' alguem que surgiu do grupo. Fre-qiientemente tambem, a desigualdade tecno-logics, 0monopolio de machados, espingardase objetos manufaturados em geral, que foi da-do aos brancos, deriva, no mito, de uma esco-

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    12/17

    TNTnODu(:l':O A UMJI mSTORTA INDicENA 19

    ilia que foi dada aos indios ..Eles poderiam terescolhido ou se apropriado desses recursos,mas fizeram uma escolha equivocada. Os~o e os Canela, por exernplo, quando Ihes o i dada a opcao, preferiram 0 arco e a cuiaa espingarda e ao prato. Os exemplos dessa mi-tologia sao legiao: lembro apenas, alem dos j< icitados, os Waura que nao conseguem mane-jar a espingarda que lhes e oferecida em pri-meiro lugar pelo Sol (Ireland, 1988:166), os TiI-pinamba setecentistas do Maranhao cujos an-tepassados teriam escolhido a espada demadeira em vez da espada de ferro (Abbevil-le. 1975 [1.612]:60-1). Para os Kawahiwa, osbran cos sao os que aceitaram se banhar na pa-nela fervente de Bahira: permanecerarn indiosos que recusaram (Menendez, 1989).0 temareeorrente que saliento e que a opeao, no mi-to. roi ofsrecida aos Indios, que nao sao viti-mas de uma fata lid ad e m as agentes de seu des-tino. Talvez escolheram mal. Mas fica salva adignidade de terem moldado a pr6priahistoria.

    Assim tambem aetno-historia do contatoE amnide contada como uma iniciativa queparte dos indios (vide Turner e Franchetto nes-

    te volume) ou ate como uma ernpresa de "pa-cifica~ao dos brancos", como e 0 caso porexemplo dos Cinta-Larga de Rondonia (DalPoz, 1991). 0 que isto indica e que as socie-dades indtgenas pensaram 0 que lhes aconte-cia em seus pr6prios term as, reconstruframuma hist6ria do mundo em que elas pesa-vam e em que suas escolhas tinham conse-quellcias.

    Planta de aldeia jee planta dealdeamento oficialpornballno, ambasdo seculo XVIII.

    o ESCOPODESTE LIVROAlguns esclareeimentos finais cabem aqui. Es-te livro transborda as fronteiras brasileiras, e

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    13/17

    20 11J5TOHIA DOS iKDIUS KO BI( ',SIL

    A 1 Q de outubro de1550, a cidadenormanda de

    Rouen, que tabrlcatecidos e comercia

    regularmente empau-brasil, o!erece,para oonvence-lo ainvestir dlnhslro daCoroa e estabeleceruma Colonia, umatesta brasileira ao

    rei da FrancaHenrique II e a sua

    mulher, Catarinade Medici. 0 rei e

    a rainha s a orecepcionados par

    trezentos indiostupis, dos quaisuns clnquenta

    autentlcos, e osoutros marinheiros!ranceses !alanles

    de tupi eprostitutas, todosdespidos para ao cas iao e queencenam, na

    margem esquerdado Sena, a vida

    tupinarnba: arnorna rede, cava,

    venda de pau-brasil,guerra,

    islo por rres motivos. Primeiro, porque as li'oll-tetras coloniais, como se sabe, nao cotucidemcom as de hoje, e parte do Brasil de hOJ erapossessao espanhola. Segundo, pOl'que apesru:da diferenca sernpre mantida entre institui-goes portuguesas e espanholas -inclusive du-rante 0 perfodo de Uniao das duas Comas -,.os atores e processes sao semelhantes: a ex-pansao jesuitica espanhola em Mojos, Mayuas,nos Llanos de Venezuela da-se com caracte-rfsticas semelhantes a expansao jesuitioa noAmazonas. Terceiro,porque as redes de cornu-nicaeao unem, sobretudo nos seculos XVI eXV.I. I , a populacao arnazdnica como urn todo,articulando desde os Arawak subandinos as et-nias ribeirinhas do Solimoes, do medio Ama-zonas e provavelmente do rio Branco: truncal'estas vastas redes seria truncal' a cornpreeu-sao desses processes hist6ricos.IM AGE N 5F oi dada, neste livre, grande importancta a ico-nografia, e tentarnos mostrar documentos pou-co conhecidos ou ineditos.Nos seculos XVIXVII, 0 que talvez rnais chame a atencao e aausencia de iconografia portuguese (os portu-gueses parecem multo mais fascinados, na epo-ca, pelo Oriente), que contrasta com a sua im-portancia na F ranca, na Holanda e, subsidia-riamente, na Alemanha, E a epoca em que estamars viva a especulacao sobre a significadodessa nova humanidade, a UJ11. tempo inoceu-te e antropofaga. Hapidamente, as descricoes

    pictoricas de primeira mao cedem 0 passoa estereotipos, e iuforrnam assim talvez maissobre a Europa e sua reflexao m oral do que 50-bre os indios no Brasil.Data do :flmdo seculo XVIH a prirneira, tini-ca e valiosfssima expedicao de urn naturalistaportugues ao Brasil. Alexandre Rodrigues Fer-rei ra: ill augurs -se corn ele uma tradi gao den-ti.fica que florescera no seculo X IX com uatu-ralistas e viajantes de outros paises (alernaes,russos, franceses, sufcos, americanos ...), pro-duzindo lima ampla documeutacao iconogra-fica, que contrasta singularmente com a exal-ta

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    14/17

    21

    o indio noimaginarioeuropeu. Ao lado,a primeira gravuraconheclda, deJohann Froschauer,que representa aantropolagiabrasileira. No rneto,a esquerda,imagem da cidademit ica do Eldoradoou Manoa. Abaixo,a esquerda,gravura do seculoXIX mostrando umcanibalismo"selvagem" quejamais extstlu,Abaixo, a direita, aprimeira gravurarepresentando asAmazonas: um, marinheiro envladoem terra parassduzi-Ias eatacado para serdevorado.

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    15/17

    22 msr6RtA DOS fNmOS NOBRAsrL

    o indio dolmaqlnar lo dosantropoloqose 0

    indio tradicionaLAclma, 0 grande

    anlrop610goNimuendaju

    posando nu em1937, no maio deum ri tual Xerente.Abaixo, totes de

    indios Canalade Nimuendaju.

    .Briiii, c :H~t"eao~. :;",roSr. t .e (1 i,rer:;r. teo I>fl,.lea re l .m1dEo., . tranamttUndo & mlm \.!)oa 'obj ect.oe rn"'glcQI> \ den~r(j Ul. c&l!

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    16/17

    INT"ODUC;:;;'O ,\ UMA rIlSTORIA INDfcENA 2 3

    A pesquisa iconografica ficou a meu C,lrgo,auxiliada por Oscar Calavia Saez e posterior-mente por Marta Amoroso. Beneficiou-se mui-to dos recursos da Jewberry Library, de Chi-cago, que me concedeu uma bolsa de pesqui-sador em junho de 1990 e da acolhida, naUniversidade de Coimbra, do professor Ma-nuel Laranjeira Rodrigues de Areia e do fot6-grafo Carlos Barata, que cederam fotos da ex-traordinaria colecao "de Alexandre RodriguesFerreira. Muitos outros acervos permitiramque usassemos suas imagens: sua Iista vern no

    o indio noImaginario. Ao Iado,casal de indios doParque Nacionaldo Xingu: imagemde indios inocentesno jardim do Eden.Abaixo, os indioscomo senhores daterra: Adhemar deBarros entregasolenemente adais indios Carajasperplexos umacaixa conlendoterra do morrodo Jaraqua.

  • 8/2/2019 CUNHA, M. C._Introduo a uma histria indgena_Histria dos ndios no Brasil

    17/17

    24 mSTDRM DOS iNDIOS NO BRASIL

    final do volume e a todos queremos agradecer,Cabem no entanto especiais agradecimentosa familia de Hercules Florence, a Bosch do Bra-sil e a Biblioteca Mario de Andrade. Agradecotambem a revisao dos textos de arqueologia rea-lizada pela professora Silvia Maranca, do Mu-seu de Arqueologia e Etnologia da U S P .

    A publicacao deste volume s6 se tornoupossfvel gra~as ao apoio da Secretaria Muni-cipal de Cultura de Sao Paulo e da FAP E S P(Proc. 91/4450-0).

    Queremos prestar, por fim, neste prefa-cia, uma homenagem a Miguel Menendez,urn dos primeiros antropologos a se inte-ressar por pesquisas de hist6ria indigena,e que faleceu prematuramente em novern-bro de 1991. Membro do projeto e do No-cleo de Historia Indigena da US P desdesuas primeiras horas, 0 capItulo que produ-ziu e que publicamos nests volume, sobrea hist6ria do rio Madeira, e seu ultimo tra-balho.

    NOTAS(1) Citaremos apenas 0 nome do autor, sem a data,quando nos referirmos a artigos neste volume.(2) 0 grande historiador Varnhagen, cujo precon-ceito contra os mdtos era not6rio, foi urn dos princi-pais apostolcs dessa visdo: estima em menos de 1milhiio a populacao indfgena. E curioso perceberque as notas que Capistrano de Abreu, seu editor,acrescenta 11monumental Hist6ria geral do BrMilde Vamhagen desmentem as estimativas do autor(Varnhagen, vol.!:23).(3) Isto nao e grande novidade: a partir de meadosdes anos 80, apos a voga avassaladora do modelo desistema rnundial de WaHefstein, varies antropclogos,

    entre os quais Marshall Sahlins, insurgiram-se contrao esvaziarnento da historia local. Vide na mesma di -recao J. Hill (1988:2).(4) Pense pOT exemplo na mito!ogia Timbira em ge-r al (N tmue nd a] u, 1946; DaMatta, 1970; Carneiro daCunha, 1973), namitologia dos grupos de lingua Ka-yap6 (Vidal, 1977; Turner, 1988), na mitologta de al-guns grupos de lingua Thpi como os Kawahiwa (Me-nendez, 1989) e na de gropes Pano do interfluvio (Kie -fenheim e Deshayes, 1982). Em grupos Pano ribeiri-nhos, como os Shipibo, a historia e dlferente; os ho -mens sao cnados do barre pelo inca, que os moldae assa. Os brancos sao assados de mencs, os negros,assados demais; finalmente sao Ieitos os fndios, assa-dos a contento (Roe, 1988).