cultura popular

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ISSN:1981-2434 Cultura popular no imaginário brasileiro e latino-americano: caminhos possíveis de reflexão teórica - Sérgio Campos Gonçalves Revista Eletrônica História em Reflexão: Vol. 2, n. 3 – UFGD - Dourados Jan/Jun 2008 Cultura popular no imaginário brasileiro e latino-americano: caminhos possíveis de reflexão teórica Sérgio Campos Gonçalves Mestrando em História Social e Cultura Social da Universidade Estadual Paulista RESUMO: Especialmente direcionado àqueles que se iniciam nas pesquisas sobre representações do popular no imaginário brasileiro e latino-americano, o objetivo deste artigo é apresentar um pequeno guia panorâmico e bibliográfico de algumas discussões teóricas acerca das aplicações do conceito de cultura popular. PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular – teoria – imaginário ABSTRACT: Especially directed to the beginners in the research on representations of popular in the Brazilian and Latin American imaginary, the proposition of this article is to present a small panoramic and bibliographical guide of some theoretical discussion concerning the applications of the concept of popular culture. KEYWORDS: Popular culture – theory - imaginary Introdução Existem inúmeros trabalhos publicados que são catalogados como História Cultural e há incontáveis formas diferentes de estudar os temas pertencentes a essa área. Freqüentemente, é quase impossível escapar à utilização dos conceitos de imaginário, de representação ou de cultura popular. Cada um deles contém várias problemáticas em debate nos meios acadêmicos, cujos desdobramentos resultaram em muitíssimas

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Cultura popular no imaginário brasileiro e latino-americano

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  • ISSN:1981-2434 Cultura popular no imaginrio brasileiro e latino-americano: caminhos possveis de reflexo terica -

    Srgio Campos Gonalves

    Revista Eletrnica Histria em Reflexo: Vol. 2, n. 3 UFGD - Dourados Jan/Jun 2008

    Cultura popular no imaginrio brasileiro e latino-americano: caminhos possveis de reflexo terica

    Srgio Campos Gonalves Mestrando em Histria Social e Cultura Social da Universidade Estadual Paulista

    RESUMO: Especialmente direcionado queles que se iniciam nas pesquisas sobre representaes do popular no imaginrio brasileiro e latino-americano, o objetivo deste artigo apresentar um pequeno guia panormico e bibliogrfico de algumas discusses tericas acerca das aplicaes do conceito de cultura popular.

    PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular teoria imaginrio

    ABSTRACT: Especially directed to the beginners in the research on representations of popular in the Brazilian and Latin American imaginary, the proposition of this article is to present a small panoramic and bibliographical guide of some theoretical discussion concerning the applications of the concept of popular culture.

    KEYWORDS: Popular culture theory - imaginary

    Introduo

    Existem inmeros trabalhos publicados que so catalogados como Histria Cultural e h incontveis formas diferentes de estudar os temas pertencentes a essa rea. Freqentemente, quase impossvel escapar utilizao dos conceitos de imaginrio, de representao ou de cultura popular. Cada um deles contm vrias problemticas em debate nos meios acadmicos, cujos desdobramentos resultaram em muitssimas

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    publicaes. Tantas, que o esforo intelectual necessrio para se interar do debate na literatura especializada em tais assuntos representa uma tarefa muito rdua, que beira a inexeqibilidade, sobretudo para aqueles que do seus primeiros passos na profisso de historiador.

    Ciente de que h inmeras perspectivas de estudo que dizem respeito a tais conceitos, e, portanto, sem a absurda pretenso de abarcar todas elas, o objetivo aqui neste artigo oferecer um pequeno guia terico especialmente direcionado s pesquisas em Histria Cultural que estudam as representaes do popular no imaginrio brasileiro e latino-americano. Desse modo, o texto segue inevitavelmente em tom de reviso bibliogrfica fragmentria, visto que no contemplamos em profundidade todas as obras existentes que versam sobre os conceitos de imaginrio e de cultura popular. Todavia, especialmente dedicada ao pesquisador iniciante, a orientao didtica que determina o percurso do artigo mira na inteno de colaborar para a compreenso panormica dos conceitos propostos. Em vista de tal objetivo, acompanharemos sumariamente algumas das discusses tericas que gravitam ao redor dos conceitos de imaginrio e de cultura popular em algumas obras que consideramos fundamentais para o escopo aqui almejado. Assim, desejamos que esta leitura coopere para alargar os limites do conhecimento daqueles que se introduzem aos estudos sobre identidade e nao no Brasil e na Amrica Latina.

    1. Imaginrio e representao social1

    Neste primeiro passo, buscamos entender o conceito de imaginrio atravs de sua relao com a idia de representao2. Mas mesmo antes de utilizarmos a bibliografia especializada, no difcil constatar que a palavra imaginrio diz respeito ao conjunto de valores, smbolos e formas de representar e organizar o cotidiano de um determinado grupo

    1 Sobre imaginao social, nos basearemos nas reflexes de Bakzo (1985).

    2 Por representao entende-se uma forma de expresso de uma determinada realidade social e, ao mesmo

    tempo, instrumento de ao cotidiana. As diversas formas de representaes do pistas sobre a construo social da realidade, sobre como ela pensada e vivida. As representaes sociais tambm so alvo de disputa e revelam as tenses de poder, interesses e contradies dos grupos humanos; ou seja, revelam aspectos importantes sobre a dinmica da vida social (CHARTIER, 1990, p. 7-68).

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    ou sociedade. Enquanto realidade no estabelecida, o termo trata principalmente de um sistema de significados que governa ou orienta uma dada estrutura social. Assim, o conceito de imaginrio social deve ser entendido como uma construo histrica definida pelas interaes cotidianas dos sujeitos (histricos) na sociedade.

    Segundo Bakzo (1985), notadamente atravs das relaes imaginrio-poder e imaginrio-representao que podemos assimilar o conceito de imaginrio, visto que sua semntica tal qual nos familiar emergiu dos debates em torno da questo do poder. Conforme o autor explica, antes da moda de associar imaginao e poltica, o termo pertencia sobretudo ao domnio das artes, e designava a faculdade de produzir smbolos, sonhos e iluses. Entretanto, Bakzo nota que no discurso contestatrio de 1968 em Paris houve um deslocamento do termo imaginrio para alm das "artes", em direo ao campo do "real". As cincias humanas, ento, passariam a reconhecer as funes mltiplas e complexas do imaginrio na vida coletiva e, especialmente, no exerccio do poder. Para sustentar tal idia, argumentava-se que qualquer poder se rodeava de representaes coletivas colocando, assim, o domnio do imaginrio e do simblico como condio estratgica para o poder (BAKZO, 1985, p. 297-8).

    Desse modo, o desenvolvimento das reflexes sobre imaginrio estaria ligado prpria tradio intelectual e cientfica que remonta ao sculo XIX, a qual visava a discernir o "verdadeiro" e "real" do "ilusrio". A cincia era concebida como instrumento de desvendamentos e desmistificaes, e o objeto de pesquisa seria um ente oculto espera do esclarecimento cientfico. Contudo, como Bakzo aponta, a prpria abordagem cientfica teve a tendncia "de reduzir o imaginrio a um real deformado" em funo de renovar o imaginrio coletivo tradicional (BAKZO, 1985, p. 298). Atravs dessa tica, qualquer sociedade produziria espontaneamente seu sistema de representaes para traduzir e legitimar a sua ordem. Ao mesmo tempo, toda sociedade tambm instalaria um aparato tcnico de manejo e de guarda das representaes e dos smbolos.

    Em suma, o que Bakzo observa que a acepo de imaginrio desde 1968 diz respeito a um discurso em sua funo latente o discurso do Estado, da elite, da justificativa do poder. A prpria histria dos discursos evidenciaria que a problemtica da imaginao social data de longe, conforme Bakzo defende ao apontar as questes sobre o mito e a realidade de Plato, ou sobre a retrica em Aristteles, ou, ainda, no pensamento de Maquiavel sobre as ntimas relaes entre o poder e o imaginrio (BAKZO, 1985, p. 300-1).

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    Para Bakzo, as interrogaes sobre o imaginrio como questo referente vida coletiva teriam surgido a partir do sculo XVIII. O autor exemplifica que Rousseau afirmava que a imaginao seria o locus onde se acendem as paixes com vistas linguagem dos smbolos e dos emblemas. Notadamente depois da Revoluo Francesa, cristalizou-se a idia de que o poder deveria controlar e se apoderar dos meios que guiam a imaginao coletiva, com o intuito de disseminar novos valores sobre a mentalidade coletiva e fortalecer sua legitimidade. Mas principalmente o sculo XIX em que surgem muitas idias de imaginao social e suas funes em particular. De acordo com Bakzo (1985, p. 302), "nos conflitos sociais e polticos da poca, uma responsabilidade cada vez maior vem caber interveno ativa de grandes formaes ideolgicas modernas (liberalismo, democracia, socialismo, etc)". Enquanto os debates ideolgicos da poca tratavam sobretudo de apontar as influncias sobre a conscincia coletiva que esta ou aquela posio poltico-partidria exerceria atravs de seus instrumentos de dominao, do seu lado, a cincia positiva abordava o imaginrio procurando apreend-lo como epifenmeno do real. Desse modo, as deformaes do real proviriam da confuso entre imaginrio e realidade.

    O evolucionismo impregnado de eurocentrismo incitava a situar as pocas e os povos onde tais confuses sobrelevam os conhecimentos positivos, nos estgios menos "civilizados" da evoluo humana, O impacto dos imaginrios sobre os comportamentos dos agentes sociais explicar-se-ia apenas pela ausncia ou insuficincia dos seus conhecimentos positivos (BAKZO, 1985, p. 304).

    Sobre a relao poder-imaginrio, Bakzo observa as importantes contribuies nas obras de Karl Marx, de mile Dukheim e de Max Weber.

    A obra de Karl Marx representaria um dos momentos mais significativos no estudo dos imaginrios sociais, pois seria "exemplar quanto ao seu impacto na instituio e estruturao de um poderoso sistema de imaginrios sociais". A contribuio de Marx se resumiria, ento, na elaborao de um esquema global de explicao e interpretao dos imaginrios sociais atravs da anlise das ideologias. Ou seja, a luta de classes, vista como fora motriz da histria, conteria necessariamente o embate no campo ideolgico, pois existiria a funo dupla de exprimir e traduzir os interesses de uma classe e, ao mesmo tempo, de deformar e ocultar as relaes reais de produo. Vista sob a tica da teoria marxista, as representaes coletivas, e a ideologia especialmente, so consideradas em duas dimenses: como parte integrante da vida coletiva e, por outro lado, como elemento veiculador de irrealidade, ou seja, como instncia de dominao socioeconmica dentro da relao entre infra-estrutura e super-estrutura (BAKZO, 1985, p. 304-6). Bakzo argumenta

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    que mesmo Durkheim e Mauss, ao atentarem para a questo do consenso e da coeso social, veriam o imaginrio como elemento importante para a existncia da coletividade, pois para ambos seria essencial o seu carter simblico. Da mesma forma, existiria uma estreita relao entre o comportamento e a representao coletiva (BAKZO, 1985, p. 306).3 Max Weber, por sua vez, enxergaria a produo de uma rede de sentidos dentro de uma estrutura inteligvel produzida no ambiente social; tal rede colaboraria para a manuteno do social. Assim, a vida social seria produtora de valores e normas e, ao mesmo tempo, de sistemas de representao que as fixam e traduzem, pois, para Weber, as relaes sociais nunca se reduziriam unicamente aos seus componentes materiais. Nessa esteira, os trs tipos de dominao que Weber enumera (a tradicional, a carismtica e a burocrtica) efetivariam-se nos sistemas de representao coletiva dentro dos quais se legitima o poder. Portanto, nessa tica, compreender as atividades sociais exigiria reconstruir os sistemas de representao social que intervm na sociedade (BAKZO, 1985, p. 307).

    Todas as pocas, argumenta Bakzo, tm modos especficos de imaginar, produzir e renovar o imaginrio. Da mesma forma, teriam modalidades diferentes de acreditar, pensar e sentir. Em cada poca - ou em cada configurao social4 - os imaginrios coletivos articulariam elementos simblicos dentro de um vasto sistema de significados no qual uma coletividade produziria sua prpria representao e, dessa maneira, designaria sua prpria auto-identificao, sua prpria identidade. Do mesmo modo, os imaginrios coletivos estabeleceriam a distribuio dos papis e das posies sociais, exprimiriam e imporiam crenas comuns, definindo cdigos sobre o que certo e o que errado. Assim que, de acordo com Bakzo, o conceito de imaginrio social deve ser entendido: como uma das foras reguladoras da vida coletiva, sobretudo como um eficiente dispositivo de controle e do exerccio do poder.

    2. Cultura e identidade: a colonizao da Amrica

    3 Cf. ANSART, 1974.

    4 A utilizao do conceito de Norbert Elias aqui nossa e, portanto, no pertence ao texto de Bakzo que

    utilizamos como referncia.

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    Da mesma forma que procuramos entender o que imaginrio em sua mtua relao com a noo de representao social, buscamos aqui apreender os conceitos de cultura e identidade atravs de suas interrelaes. Esta etapa do texto configura um pr-requisito didtico para o prximo tpico, que tratar diretamente da idia de cultura popular.

    Clifford Geertz (1978) entende o conceito de cultura de maneira essencialmente semitica: para ele, a cultura uma rede de significados que o animal homem teceu e na qual est amarrado, um cdigo que permite comunicar experincias simbolicamente. Assim, a cultura um advento pblico dentro do qual o comportamento humano visto como ao simblica, e no qual o homem l e explica o mundo que o cerca. Ou seja, para compreender uma interpretao cultural, seria necessrio ficar atento s articulaes sociais do comportamento e das aes, pois elas ajudariam a revelar estados de conscincia. Desse modo, no que tange ao conceito identidade, a questo do sentir-se pertencente grupos ou Naes dependeria da integrao em um determinado sistema cultural e simblico. Como observa Geertz, o componente cultural extra-cutneo seria decisivo para a auto-identificao do homem e para sua diferenciao dos outros animais. Da que o conceito de identidade pode ser compreendido a partir do conceito de cultura. Partilhar do mesmo cdigo lingstico, professar as mesmas crenas, acreditar nos mesmos valores de moral e conduta, compartilhar os mesmos sentimentos, interpretar as mesmas aes sociais de maneira idntica ou de forma muito semelhante; essas identificaes so sintomas de uma identidade (cultural). Trata-se, ento, de um estado psicolgico de pertencimento ou agrupamento e, do mesmo modo, de diferenciao em relao alteridade. Assim, como fenmeno cultural, a identidade tambm construda histrica e socialmente.

    O processo de construo da identidade coloca vrias problematizaes inevitveis. Um exemplo interessante a questo dos processos de identidade que se formam aps a chegada e o estabelecimento dos europeus na Amrica. Enquanto processo cultural, o processo de colonizao da Amrica passou longe de ser simplesmente a remoo das culturas indgenas e a instalao de culturas europias. Ou seja, a Amrica no desenvolveu uma cultura genuinamente europia com o advento da colonizao, como se esta tivesse semeado a cultura europia em um campo limpo e absolutamente virgem. Bem pelo contrrio, como aponta Serge Gruzinski (2001), a colonizao teria sido um processo de ocupao e de trocas, de circulaes e de apropriaes culturais conscientes ou no, voluntrias ou no que criou um novo ambiente cultural hbrido e e que produziu uma

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    populao com pensamento distinto (mestio)5. Diferente do que o etnocentrismo eurocntrico e civilizatrio gostaria de acreditar, a Conquista e a colonizao da Amrica no teria produzido um estado de conscincia universal e ocidental. Ainda que o padro de valorao freqentemente mire no exemplo europeu, o pensamento que se formou , segundo Gruzinski, eminentemente mestio e repleto de hibridaes.

    No atoa que o mestio apareceu como elemento indefinido aps as primeiras dcadas da Conquista. Assim como o mestio no possua lugar econmico e social, o ambiente cultural naquele momento no havia adequado a nova figura do mestio no sistema simblico. Enquanto o indgena vencido perdia as referncias do seu mundo no contato com o inimigo europeu, o mestio no se integrava em nenhum dos plos opostos. Nesse contexto, a ocidentalizao aparece, para Gruzinski, como um processo de adaptao dos vencidos aos valores dos vencedores, como ttica de sobrevivncia6. Ou seja, o processo de ocidentalizao foi a adoo pura e absoluta da cultura europia pelos nativos que no foram fisicamente exterminados. Em verdade, para Gruzinski, o que se desenvolveu atravs dos anos foi a busca pela sobrevivncia atravs de adaptaes e mestiagens de DNA e de cultura. O resultado foi algo distinto do que era antes da Conquista, mas diferente do que esperavam os conquistadores. Foi o desenvolvimento de um modo de ser e de compreender o mundo peculiar: o pensamento mestio.

    3. Cultura popular

    Existem diferentes abordagem e maneiras de compreender o popular na historiografia contempornea. Dentre incontveis possibilidades, observemos aqui como alguns importantes autores do debate acadmico formularam suas idias sobre cultura popular. Nas obras de Peter Burke, Carlo Ginzburg, Mikhail Bakhtin, Michel de Certeau e Roger Chartier variam as perspectivas e acepes, entretanto, comum em todos eles a observao de que delicada e arriscada a tarefa de definir o conceito de cultura popular.

    5 Propositalmente, o termo pensamento usado aqui como forma de ler e entender o mundo. Embora seja

    semelhante, o termo no significa o mesmo que cultura. Cf. GRUZINSKI, 1978. 6 A idia de ttica que usamos aqui, como vero mais adiante no texto, provm das reflexes de Michel de

    Certeau (1994) em A inveno do cotidiano.

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    Burke (1989) entende que o significado do conceito est em funo da hierarquizao da sociedade em classes, entre a classe da elite e a classe da no-elite. Assim, a cultura popular seria como uma cultura no oficial, como a cultura da no-elite, das classes subalternas; do outro lado, a cultura oficial pertenceria elite. Ento, para o autor, tal definio chamaria a necessidade de analisar a sociedade, decompondo-a em classes, para, ento, entender quem o "povo comum" detentor da cultura popular.7

    Apesar de manifestar que vaga a fronteira entre o que se chama de cultura de elite e de cultura popular, e que as duas culturas, em verdade, no permaneceriam estanques, mas em interao, Burke deixa nas entrelinhas que enxerga a cultura basicamente separada em blocos: o bloco da cultura da elite e o bloco da cultura do povo. Dessa maneira, o autor compreende a cultura como produto de uma situao de classe, de modo que a separao da cultura entre elite e povo seria um rgido reflexo da hierarquia social.

    Contrariando o que ele mesmo denominou de "concepo aristocrtica de cultura", Ginzburg (1987) escreveu O queijo e os vermes para tratar das idias de um moleiro que foi perseguido e queimado pela Inquisio no contexto do desenvolvimento da imprensa e da Reforma. Na obra, o autor mostra como o moleiro alfabetizado foi acusado pelos inquisitores de ter idias imprprias; tais idias, argumentou Ginzburg, seriam provenientes das assimilaes que o moleiro fazia em suas leituras.

    Desse modo, diferente da maneira como entende Burke, Ginzburg observa que a cultura no estanque e esttica. Ao contrrio, a cultura teria o carter dinmico e possuiria a faculdade de "circular" entre os setores da sociedade. O autor italiano defende, tambm, que possvel e necessrio trabalhar com a produo cultural que no proveniente das classes superiores. Pois, para ele, existe uma viso distorcida que resultante de uma desconfiana ideolgica a qual prega que a cultura superior mecanicamente "desceria" s classes subalternas, vulgarizando-se, e que, desse processo, a cultura (erudita) sairia deformada ou deteriorada (GINZBURG, 1987, p. 16-8). Ou seja, de acordo com Ginzburg, a cultura no deveria ser entendida como um artefato exclusivo de uma classe superior, visto que a categoria popular no se definiria pela classe social dentro da qual os textos seriam produzidos, mas pelo uso que se faz deles, pelo seu modo de assimilao.

    7 Burke (1989) utiliza como quadro de referncia a noo gramsciniana de hegemonia cultural.

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    O emprego do conceito de circularidade na obra de Ginzburg obedece maneira como Mikhail Bakhtin (1999) escreveu sobre o riso e a cultura popular no contexto de Rabelais e sobre as leituras que fizeram dele nos anos, dcadas e sculos seguintes. Circularidade, em ambos autores, designa o movimento de infiltrao dos produtos culturais entre os setores hierrquicos da sociedade. Ou seja, o conceito permite verificar que os discursos dos setores representativos da cultura erudita e letrada podem permear e moldar as prticas de outros grupos sociais iletrados; e que, da mesma forma, mas em sentido inverso, os setores subalternos atravessam a cultura hegemnica com as praticas discursivas que elaboram, fundadas na oralidade, e que, desse modo, tambm exercem influncia nos setores chamados de portadores da cultura erudita. O conceito de circularidade, em suma, diz respeito constante permeabilidade cultural dentro da sociedade hierarquizada.

    Roger Chartier (1995), por seu turno, critica esse tipo de "bifurcao cultural" entre classes sociais argumentando que, sobretudo quando se trata de textos ou palavras, a existncia das normas referentes hierarquia social no significa que os indivduos estivessem submetidos totalmente. Ou seja, tais normas no teriam tido eficincia absoluta na prtica. " preciso, ao contrrio, postular que existe um espao entre a norma e o vivido, entre a injuno e a prtica, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espao onde podem insinuar-se reformulaes e deturpaes" (CHARTIER, 1995, p. 182).

    Alm disso, Chartier acredita que intil querer identificar a cultura popular atravs da distribuio supostamente especfica de certo objetos ou modelos culturais entre setores da sociedade. Para ele, o que importa a forma de apropriao da cultura por indivduos ou grupos. Em outras palavras, os estudos da rea de histria e cultura deveriam tratar de apreender as formas histricas de apropriao dos textos, dos cdigos e dos modelos compartilhados. Assim, o autor defende que o popular no est contido em conjuntos de elementos sociais que bastaria identificar, repertoriar e descrever. O popular qualificaria, em verdade, um tipo de relao e um modo de usar os objetos ou normas que circulam na sociedade. Desse modo, falar das formas de apropriao significaria tratar das formas de recepo, de compreenso e de manipulao.

    Da que, para dar ateno aos processos e condies de produo de sentido, argumenta Chartier, necessrio compreender que no existem categorias invariantes, que nem as idias e nem as interpretaes so desencarnadas, e que, em ltima instncia, as categorias devem ser pensadas em funo da descontinuidade das trajetrias histricas

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    (CHARTIER, 1995, p. 184). Compreender o conceito de cultura popular, para Chartier, significa situar, de um lado, os mecanismos de dominao simblica que qualificam os modos de consumo dos dominados como detentores de uma cultura inferior ou ilegtima, e, de outro, "as lgicas especficas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriao do que imposto" (CHARTIER, 1995, p. 185).

    na esteira de Chartier que as idias de Michel de Certeau (1994) podem ser bem compreendidas. Assim como Chartier, Certeau observou que a caracterizao de um grupo no se deve ao tipo de cultura que ele produz, mas ao uso que esse grupo faz desse objeto. Dessa forma, Certeau tambm no delimita o conceito de cultura popular em funo dos setores da hierarquia social, pois, para ele, s seria possvel pensar a cultura no plural.

    Certeau caracteriza a cultura entre a esfera do dominante e a do dominado. Entretanto, no o faz da mesma forma que os autores mencionados at aqui. Para Certeau, a cultura dominante seria a daquele que detm os meios de controle, produo e disseminao cultural, enquanto que a cultura do dominado (popular) seria a daqueles que no possuem meios de empregar sua cultura, de torn-la oficial.

    Para dar conta da tal tenso, entre o dominante e o dominado, Certeau criou dois conceitos: o de estratgia e o de ttica.8 Ligadas cultura dominante, as estratgias seriam as situaes e os valores cotidianos criados por instituies que produzem objetos, normas e modelos sociais de comportamento. Ligadas cultura do dominado, as tticas seriam os modos de fazer e sobreviver daqueles que so desprovidos do lugar prprio e dos meios de emprego cultural; ttica o meio subversivo, de astcia e de "antidisciplina" de participar do jogo social sem seguir todas as regras, e de continuar dentro dele, jogando e sobrevivendo. Desse modo, para Certeau, o popular no definido em si pela hierarquizao em classes sociais, mas pela sua lgica prpria (ou arte) de fazer o cotidiano dentro de um ambiente social no qual os marginalizados constituem a maioria.

    4. O nacional e o popular

    8 Juntamente com as noes de "tticas" e "estratgias", Certeau escreve sobre a idia de "trajetria". Aqui, no

    entanto, omitimos propositalmente esta ltima, pois entendemos que ela dispensvel para o desenvolvimento de nossa linha de raciocnio.

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    Aventurar-se ao estudo de temas referentes cultura popular no imaginrio brasileiro e latino-americano pressupe refletir sobre o popular na construo da identidade nacional. O que quer dizer, em ltima instncia, que o setor cultural pode ser entendido como um fator estratgico e fundamental para a consolidao do Estado-Nao moderno9. H vrias possibilidades de anlise sobre esse assunto, mas o nosso percurso at aqui demanda observar o popular como um fator integrante do desenvolvimento da identidade nacional, em seu aspecto mais geral, visto que tal noo um dos pr-requisitos para entender a formao de uma conscincia massificada de Nao.

    A identidade nacional exige a formao de uma sensao coletiva de pertencimento a uma tradio comum e a uma histria compartilhada, as quais referendam a percepo de continuidade e de descendncia no tempo entre os membros de determinada configurao social.

    Esse raciocnio est em consonncia com as idias de Anthony Smith (1998), que compreende a identidade nacional como uma ndole ontolgica imaginada, inventada e hbrida. Para Smith, ao contrrio do que afirma a ideologia nacionalista em seu discurso sobre o sentimento de identidade nacional, impossvel pensar a condio da homogeneidade gentica e cultural de um determinado povo, pois a natureza humana seria cada vez mais hbrida. Desse modo, a identidade coletiva sempre se definiria por sua relao de oposio com a idia do Outro - cuja imagem pode existir simultaneamente no presente e no passado.

    Alm disso, Smith observa que foram os processos histricos recentes de migrao de pessoas de diversas origens que produziram as identidades nacionais contemporneas.10 Isso quer dizer que, na viso de Smith, a identidade nacional tende a ser artificial e fragmentria, variando em funo dos interesses latentes que defende. Dessa forma, o passado tnico seria transmitido atravs de mitos e/ou de histrias compartilhadas, as quais exerceriam a funo de conformar e inspirar o presente. Portanto, o passado teria a funo social e poltica de transmitir ou inventar o legado tnico para construir uma identidade nacional (SMITH, 1998, p. 62).

    9 A prpria Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) reconhece esse

    aspecto ao ponto de recomendar que as polticas do setor cultural deveriam ser instrumentos de gesto das mudanas e das garantias de identidade no mundo em processo de globalizao. 10

    "As identidades nacionais contemporneas do Ocidente esto fragmentadas nas diferenas culturais irredutveis devidas vasta afluncia de emigrantes, ex colonizados, trabalhadores braais e pessoas em busca de asilo, os quais alteram a honogeneidade exigida pelos mitos de identidade nacional" (SMITH, 1998, p. 62).

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    Para manter a coeso social de um grupo, segundo Smith, necessrio um processo contnuo de reinterpretao e representao dos cones de identificao coletiva. Ou seja, seria contnuo processo de significao faz da cultura o centro padronizador dos modelos coletivos de comportamento, de pensamento e de ao. Nessa tica, a cultura representaria o principal fator de produo do sentido das prticas sociais inteligveis nacionalmente. Dessa importncia redundaria a disputa e a busca incessante do controle dos recursos sociais e polticos de produo do sentido pelo Estado moderno. Portanto, para Smith, a construo e a transmisso da noo de identidade coletiva so processos didticos que visam a elaborao de uma inspirao coletiva, a qual teria o dever de defender e professar valores culturais comuns.11

    Os pases da Amrica, cada um ao seu modo, viveram momentos de reflexo sobre a produo da identidade nacional. Tomaremos como exemplo a fundao da brasilidade na segunda metade do sculo XIX e as buscas de justificao nacionalista popular mexicana na primeira metade do sculo XX.

    Conforme escreveu Renato Ortiz (1993), a intelligentsia brasileira da segunda metade do sculo XIX enfrentava a contradio entre a vontade de civilizao e as condies reais de impedimento. Em outras palavras, a contradio era a seguinte: enquanto os intelectuais miravam no modelo de nao europeu, o Brasil real configurava-se um pas mestio que tendia para o negro ao invs do branco.

    Naquela situao, - e com aquele "povo" - , como pensou-se a fundao do passado nacional? Ortiz argumenta que enquanto a criao do passado nacional dos pases europeus passou pela recuperao de um passado "glorioso", que remontava nobreza da Idade Mdia, o problema da intelligentsia brasileira no sculo XIX era justamente superar o passado. Aqui, buscou-se a fundao da idia de nao na aluso ao futuro, o qual deveria ser livre daqueles entraves: livre do negro e do ndio insubmisso e incivilizado. Visto que a cultura s poderia ser europia, Ortiz observa que Jos de Alencar escreveu em O Guarani o mito de fundao da brasilidade atravs da adaptao do formato do romance de cavalaria medieval condio e ao ambiente brasileiros, buscando adequar os interesses civilizatrios e o modelo de identidade nacional realidade histrica que era impossvel ignorar (ORTIZ, 1993, p. 80-96).

    11 Assim, segundo Smith, a ideologia nacionalista almejaria a generalizao dos cones de identificao atravs

    da difuso cultural da identidade coletiva e nacional. Nesse processo, os artistas, os intelectuais e, notadamente, os meios de comunicao seriam os principais agentes.

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    J a retrica nacionalista mexicana da primeira metade do sculo passado, notadamente aps as dcadas de 20 e de 40, durante a "pacificao do territrio mexicano", foi alvo das pesquisas de Ricardo Monifort (1996), cujo principal objeto foi a formao das idias de identidade nacional e do nacionalismo.

    Segundo Monifort, o discurso nacionalista mexicano sustentou-se no esteretipo da figura "do mexicano", como padro representativo da populao do Mxico. Tal figura teria sido disseminada com o propsito de criar um sentimento de identidade comum. Sua teria se traduzido em uma linguagem prpria que articulava um modo de ser mexicano com o que se entendia como carter nacional. Dessa maneira, o discurso nacionalista sintetizaria as representaes e os valores de tal esteretipo como um modelo hegemnico (MONIFORT, 1996, p. 343). O carter do que se podia considerar popular identificava-se, assim, com tudo o que se manifestava como nacional. Da, defende o Monifort, a imensa carga popular que o movimento revolucionrio da poca possua ao discursar em nome de "el pueblo".

    Eficiente instrumento de auto-identificao, a mensagem do esteretipo do nacionalismo mexicano foi veiculada na arte e atravs da educao. Mas, de acordo com Monifort, os meios de comunicao teriam sido o recurso mais importante: o crescimento vertiginoso dos meios de comunicao, alm de veicular os interesses culturais e polticos, incrementaram tambm o poder econmico da mdia, cujos interesses polticos estavam aliados aos do Estado. Nesse contexto, conforme afirma Monifort, houve trs diferentes correntes de pensamento que concorreram para definir qual deveria ser a identidade do povo mexicano:

    A corrente do indigenismo buscou identificar o mexicano com sua origem comum indgena. Assim, esta corrente defendeu a importncia de guardar na tradio as contribuies do ndio para a vida econmica e espiritual do Mxico;

    Em contraposio ao indigenismo existiu a corrente do hispanismo, a qual buscou integrar e identificar a figura do mexicano "madre Patria" Espanha;

    J o panamericanismo enxergou no passado arcaico e na continuidade geogrfica latino-americana a forma de conferir identidade ao mexicano e, ao mesmo tempo, de fazer frente aos impulsos imperialistas dos Estados Unidos.

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    5. O popular na cultura de massa

    Pela trajetria realizada at aqui, seria natural incidirmos sobre o popular no que tange as implicaes aps o advento da sociedade capitalista de massa e a sua relao com os meios de comunicao de massa. Nesse amplo tema, observaremos as reflexes de alguns autores que consideramos importantes para o estudo sobre cultura popular no imaginrio brasileiro e latino-americano.

    De acordo com a perspectiva de Jess Martin-Barbero (1997), a constituio histrica do Estado moderno coloca-o, notadamente desde o sculo XIX, como o grande e nico agente de coeso social. O Estado revestiria-se da idia de nacionalismo para propagar um sentido de identidade comum e de coeso social ao afirmar que os interesses pblicos deveriam ser sobrepostos aos interesses particulares. Assim, a populao seria integrada pelo Estado, e do produto dessa integrao sairia a prpria Nao, enquanto entidade administrativa sustentada pelo sentimento de auto-identificao (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 127-141).

    Seguindo a linha dos estudos frankfurtianos, em Martin-Barbero, a constituio dos Estados nacionais e das sociedade capitalistas so o ponto de incio para entender os conceitos de imaginrio e de cultura popular, sobretudo no que diz respeito sua relao com os discursos da ideologia nacionalista. E isso porque coincidem, para Martin-Barbero, o perodo de formao dos Estados nacionais modernos com a poca do desenvolvimento dos meios de propagao, circulao e reproduo da cultura no mundo capitalista, o qual teria se iniciado desde o final do sculo XVIII e encontrou, no sculo XX, o seu ponto de consumo em massa.

    De forma bastante semelhante ao conceito de ttica de Michel De Certeau, Martin-Barbero compreende os aspectos culturais das relaes de dominao, produo e trabalho atravs das brechas que aqueles que no possuem como controlar os meios de propagao e de produo cultural encontram nos sistemas de comunicao de massa. Para ele, tais brechas teriam sido abertas principalmente por dois motivos: em razo do prprio desenvolvimento histrico da sociedade de massas e dos meios de comunicao em massa; e em funo do freqente apelo mercadolgico do consumo e do prazer nas

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    produes direcionadas ao consumo popular, como seria o caso da telenovela, da carnaval, etc.

    Trata-se, desse modo, de um deslocamento de perspectiva de anlise que Martin-Barbero faz nos estudos de comunicao social, o qual se remete ao crescimento dos estudos de recepo dentro do grupo das disciplinas que compem a teoria da comunicao. Assim, atento ao conceito de cultura e s suas formas de usos e apropriaes, o autor busca apreender o processo de comunicao na cultura atravs da observao pelo posto do receptor. Ento, para Martin-Barbero, foi possvel estabelecer o conceito de mediao como instrumento para auxiliar a compreenso da relao entre cultura e a comunicao social, e de sua interao entre os espaos de produo e de consumo.

    Sinteticamente, na viso de Martin-Barbero, seria possvel dizer que os meios de comunicao de massa adaptam sua linguagem e seu discurso narrativo tradio da narrativa popular com o intuito de buscar atingir o maior pblico possvel, ampliando sua esfera de audincia e, sem dvidas, de influncia. Por isso com Camargo (s/d.) quando afirma que Martin-Barbero teria dado importncia ao estudo das telenovelas e, em geral, do formato televisivo contemporneo.

    Nessa esteira do advento da sociedade capitalista e moderna de massas est a contribuio de Nestor Garcia Canclini (2000). Para ele, imprescindvel aos estudos sobre a cultura popular no contexto da sociedade de massas compreender que a modernidade , entre outros aspectos, um processo cultural12, visto que ela seria resultado da disseminao dos fundamentos da ideologia capitalista e da racionalidade ocidental.

    Canclini defende, tambm, que sendo a modernidade um processo cultural, seria possvel transitar para dentro ou para fora dela. Ou seja, seria possvel, em longo prazo, direcionar as polticas culturais de um pas para uma maior ou menor identificao com os pressupostos culturais do capitalismo e com os parmetros culturais do Ocidente. E isso seria possvel, principalmente e especificamente, no caso da Amrica Latina, visto que sua formao cultural desde os anos da Conquista seria caracterizada pelo hibridismo. Veja que a noo de hibridismo situa, aqui, no apenas a formao tnica e mestia provocada pela Conquista e pela colonizao; para alm disso, o termo designa o cruzamento e a transculturao entre o que considerado erudito e o que compreendido como popular.

    12 Sobre essa idia, da modernidade como processo cultural, veja Hall (2003).

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    Tratar-se-ia, de acordo com Canclini, de um conceito complexo que busca dar conta de uma realidade (moderna) tambm complexa.

    A idia de hibridismo representaria, ento, importante instrumento de compreenso das tenses de poder nos processos de colonizao. Dessa maneira, a vantagem da utilizao do conceito de hibridismo, conforme defende Canclini, seria a ruptura com a idia de sistemas culturais fechados13, pois, em verdade, os ambientes culturais estariam sujeitos cada vez mais descentralizao territorial dos processos simblicos.

    Para Canclini, o desenvolvimento das tecnologias comunicacionais e dos os processos de expanso do mundo ocidental, como a urbanizao e a industrializao, um dos principais fatores que intensificaram o processo cultural do hibridismo. Segundo o autor, suas principais causas seriam o aumento dos contatos entre culturas diversas e o aumento das interdependncias regionais, nacionais e transnacionais de comunicao que ocorreram desde o incio da era moderna.

    Mais recentemente, os novos fluxos de circulao cultural que foram criados pela intensa imigrao de latino-americanos para os Estados Unidos e para a Europa - e entre seus prprios pases - , alteraram as dinmicas e as concepes tradicionais de comunidade e de fronteira entre o centro e a periferia (CANCLINI, 2000). Desse modo, ainda que os intercmbios entre bens simblicos tradicionais tivessem atenuado as divises entre as identidades culturais, contudo, no conseguiram eliminar os debates polticos e culturais sobre a constituio da identidade nacional. A diferena, argumenta Canclini, que agora o debates exigem uma apreenso multifocal e complexa. Ento, nesse contexto mundial eminentemente hbrido, conforme afirma Canclini, a Amrica Latina possuiria uma vantagem inicial dada pela sua prpria formao histrica repleta de processos de hibridaes. De acordo com o raciocnio de Canclini, esta seria a caracterstica que facilitaria aos pases latino-americanos facultar a entrada ou a retirada da modernidade tal qual a entendemos.

    Consideraes Finais

    13 Ao contrrio do que defente Samuel P. Huntington em The Clash of Civilizations (HUNTINGTON, 1996). Cf.

    Said, 2001.

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    As reflexes que vimos aqui, cada uma a seu modo, enxergaram o carter histrico e temporal nas diversas formas de representao do popular no imaginrio brasileiro e latino-americano. Embora fossem distintas as formas de compreenso, os variados estudos que percorremos enfatizaram a natureza no esttica da cultura popular e, conseqentemente, chamaram a ateno para a importncia de se estudar as transformaes sociais detectveis na cultura, em suas possibilidades mltiplas de apropriao, significao e comunicao.

    Com este texto, buscamos alargar a compreenso do leitor sobre algumas discusses tericas acerca das aplicaes do conceito de cultura popular. Direcionado especialmente queles que se iniciam nas pesquisas em Histria Cultural, portanto sem a pretenso de abraar todas as possibilidades de estudo, e, igualmente, sem a inteno de realizar uma dissecao profunda, nosso propsito foi expor um guia panormico e bsico de algumas obras que consideramos importantes s pesquisas sobre representaes do popular no imaginrio brasileiro e latino-americano. Se o leitor chegou at aqui, esperamos que seja porque o percurso que perpassa as reflexes neste texto tenha despertado algum interesse e que tenha o ajudado de alguma maneira.

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    Recebido em: 06/09/2007 Aprovado em:15/11/2007