"cultura mundo e medo" (silva, gedalias) - fragmento para estudo

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UNIVAP Fragmento de capítulo de uma Dissertação de Mestrado (disponibilizado para estudo no Curso de Aprimoramento em Língua Portuguesa, na Universidade do Vale do Paraíba UNIVAP) Autor: Prof. Ms. Gedalias Silva (não publicado) O novo mal-estar da civilização do Século XXI Quando se olha para o passado recente, vê-se uma educação cartesiana em diversos aspectos da vida, seja social, seja individual. A fragmentação das ciências visava à compreensão do mundo científico em partes. Sabe-se, e não se despreza, que o processo de ensino e aprendizagem sempre foi feito em dois movimentos básicos: análise e síntese. Durou enquanto a mentalidade humana assim procedia, o que já está em declínio. Em todo tempo, parece que Lipovetsky e Serroy (2011) são pessimistas no modo de olhar para o mundo hipermoderno, mas não o são. Parece, também, que o autor deste estudo se posiciona da mesma maneira, mas não o faz, por ser um fazer científico. Tudo o que foi dito servirá para ilustrar dois tipos de posicionamento diante da tecnologia no ensino da língua portuguesa. Organização do mundo hipermoderno e a obsolescência do professor Finalmente, apresenta-se a organização do mundo hipermoderno, proposto por Lipovetsky e Serroy (2011, p.32). Para estes, esse novo mundo se organiza por meio da quatro hiper-segmentos: (i) hipercapitalismo, que é a força motriz da globalização financeira; (ii) hipertecnicização, que se configura num grau superlativo da universalidade técnica moderna; (iii) hiperindividualismo, que se concretiza num espiral do átomo individual, desprendendo-se das antigas coerções comunitárias; e (iv) hiperconsumismo, que é a forma hipertrofiada e exponencial do hedonismo mercantil. Lipovetsky e Serroy afirmam que “É nessas condições que a época vê triunfar uma cultura globalizada ou globalista, uma cultura sem fronteiras cujo objetivo não é outro senão uma sociedade universal de consumidores.” (2011, p. 32, grifo nosso). Para esses estudiosos, a era pós-fordista reorganizou o modo das hierarquias. Agora, estas estão centradas na autonomia e nas responsabilidades individuais. O envolvimento subjetivo é necessário, junto com a polivalência a reatividade e a iniciativa.

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Page 1: "Cultura mundo e medo" (SILVA, Gedalias) - fragmento para estudo

UNIVAP

Fragmento de capítulo de uma Dissertação de Mestrado (disponibilizado para

estudo no Curso de Aprimoramento em Língua Portuguesa, na Universidade

do Vale do Paraíba – UNIVAP) Autor: Prof. Ms. Gedalias Silva (não

publicado)

O novo mal-estar da civilização do Século XXI

Quando se olha para o passado recente, vê-se uma educação cartesiana em

diversos aspectos da vida, seja social, seja individual. A fragmentação das ciências

visava à compreensão do mundo científico em partes. Sabe-se, e não se despreza,

que o processo de ensino e aprendizagem sempre foi feito em dois movimentos

básicos: análise e síntese. Durou enquanto a mentalidade humana assim procedia, o

que já está em declínio.

Em todo tempo, parece que Lipovetsky e Serroy (2011) são pessimistas no

modo de olhar para o mundo hipermoderno, mas não o são. Parece, também, que o

autor deste estudo se posiciona da mesma maneira, mas não o faz, por ser um fazer

científico. Tudo o que foi dito servirá para ilustrar dois tipos de posicionamento diante

da tecnologia no ensino da língua portuguesa.

Organização do mundo hipermoderno e a obsolescência do professor

Finalmente, apresenta-se a organização do mundo hipermoderno, proposto

por Lipovetsky e Serroy (2011, p.32). Para estes, esse novo mundo se organiza por

meio da quatro hiper-segmentos: (i) hipercapitalismo, que é a força motriz da

globalização financeira; (ii) hipertecnicização, que se configura num grau superlativo

da universalidade técnica moderna; (iii) hiperindividualismo, que se concretiza num

espiral do átomo individual, desprendendo-se das antigas coerções comunitárias; e

(iv) hiperconsumismo, que é a forma hipertrofiada e exponencial do hedonismo

mercantil.

Lipovetsky e Serroy afirmam que “É nessas condições que a época vê triunfar

uma cultura globalizada ou globalista, uma cultura sem fronteiras cujo objetivo não é

outro senão uma sociedade universal de consumidores.” (2011, p. 32, grifo nosso).

Para esses estudiosos, a era pós-fordista reorganizou o modo das

hierarquias. Agora, estas estão centradas na autonomia e nas responsabilidades

individuais. O envolvimento subjetivo é necessário, junto com a polivalência a

reatividade e a iniciativa.

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Portanto, parece que um novo tipo de professor deverá surgir. Aquele

profissional que cumpria horário, seguia um roteiro, controlava seus alunos, entre

outras tarefas, entrou em obsolescência. Ironicamente, este termo, tão recorrente

nas referências às máquinas, agora serve para rotular pessoas. Isto é

importantíssimo para o professor: como não se tornar obsoleto?

Lipovetsky e Serroy argumentam que

Essas transformações gerenciais, ao mobilizar principalmente a subjetividade individual, provocam uma forte ansiedade não apenas naqueles que não dispõem das capacidades de auto-organização e de adaptação permanente, como também nos assalariados em geral, cada um deles tornado responsável por sua situação profissional e por seu futuro. (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 36, grifos nossos).

Deste modo, fica claro que o professor é o responsável pelo seu futuro e pelo

seu sucesso profissional, mas terá que lutar contra si mesmo. Caso contrário, sentirá

medo, e poderá abandonar a carreira, e até o propósito inicial de sua escolha

profissional.

Para se entender melhor como esse medo poderia acontecer, algumas

definições são necessárias.

Sobre os medos

Apresentaram-se, neste tópico, alguns conceitos sobre medo, com o objetivo

de diferenciar suas variantes, o que ajudará na caracterização dos perfis de

professores, estudados nessa Dissertação. Essa apresentação se apoia em Balman

(2008), que, contextualizando o mundo pós-moderno, a sociedade líquida, busca

definir o que ele mesmo denominou “medo líquido”.

Medo: conceitos

Segundo Balman (2008, p.8), quando temos uma incerteza, temos medo, e

essa incerteza se constitui numa ignorância de uma ameaça e numa ignorância do

que deve ser feito para eliminar essa ameaça. O indivíduo sem medo saberia o que

pode e o que não pode, caso tivesse que enfrentar tal ameaça, ou evitá-la.

Logo, medo é a ignorância da ameaça e, principalmente, uma postura

ignorante em relação ao que fazer com essa ameaça. Em outras palavras, o

indivíduo não age em relação a que julga ser ameaçador.

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Balman (2008) apresenta, ainda, algumas facetas do medo: medo derivado,

silenciamento silencioso, perigos dos quais se tem medo e sentimento de

impotência.

I – Medo derivado

Não é o medo em si, mas uma estrutura mental estável com “um

sentimento de ser suscetível ao perigo”. Trata-se de uma sensação de

insegurança, ou seja, a qualquer momento, algo do mundo pode cair

sobre o sujeito sem nenhum aviso. É um sentimento de vulnerabilidade: o

sujeito pensa que não haverá chance de fuga ou que, se houver, são

poucas as chances de defesa. Balman comenta que “o pressuposto da

vulnerabilidade aos perigos depende mais da falta de confiança nas

defesas disponíveis do que do volume ou da natureza das ameaças reais

(BALMAN, 2008, p. 9, grifo nosso). Ele continua dizendo que, se uma

pessoa interiorizou uma visão de mundo que inclua a insegurança e a

vulnerabilidade, inevitavelmente essa pessoa “recorrerá rotineiramente,

mesmo na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a um

encontro imediato com o perigo”. Essa mesma noção é apresentada por

Golleman (1995), que faz um estudo sobre o “sequestro emocional”, uma

cadeia de reações neuroquímicas desencadeada, num circuito fechado,

no hipotálamo, que estimula as glândulas suprarrenais que produzirão a

epinefrina (adrenalina). Esse neuro-hormônio é o responsável pela

desativação do pensamento racional e pela redução da consciência a

postura defensiva de sobrevivência. Balman simplifica essa noção

dizendo que esse “medo derivado” é autopropulsor, o que significa a

mesma coisa.

Desse modo, conclui-se que, mesmo na ausência do perigo, o

indivíduo o imaginará e sofrerá mais com sua imaginação do que com o

que realmente há para além de si. Pior do que isso, não escapará desse

medo facilmente.

II – Perigos dos quais se tem medo

Os perigos dos quais se tem medo podem ser de três tipos: (i) perigos

que ameaçam o corpo e as propriedades; (ii) perigos que ameaçam a

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durabilidade da ordem social e a confiabilidade nela. Balman (2008, p 10)

associa a falta da confiabilidade na ordem social com a insegurança, ou

seja, se não dá para confiar na ordem social vigente, corre-se o perigo de

perda do emprego, do sustento. Ele acrescente ainda o perigo na

“sobrevivência” nos casos de invalidez ou velhice; (iii) perigos que

ameaçam o lugar da pessoa no mundo. Balman diz o seguinte, em

relação a este terceiro tipo de perigo:

[…] numerosos estudos mostram que, nas consciências dos sofredores, o “medo derivado” é facilmente “desacoplado” dos perigos que o causam. As pessoas às quais ele [o medo derivado] aflige com o sentimento de insegurança e vulnerabilidade podem interpretá-lo com base em qualquer dos três tipos de perigos – independentemente das (e frequentemente em desafio às) evidências de contribuição e responsabilidade relativas a cada um deles. As reações defensivas ou agressivas resultantes, destinadas a mitigar o medo, podem assim ser dirigidas para longe dos perigos realmente responsáveis pela suspeita de insegurança. (BALMAN, 2008, p 10, grifos nossos).

Assim, viver num mundo líquido-moderno é, conforme Balman (2008,

p. 15), concordar e aceitar que o amanhã nunca será como o hoje,

significando a existência num “ensaio diário de desaparecimento, sumiço

e morte”. Nada subsiste ao tempo.

III – Silenciamento silencioso

Para Balman, o “silenciamento silencioso” é um processo “calado em

vez de barulhento, oculto em vez de aberto, despercebido em vez de

perceptível, invisível em vez de visto, etéreo em vez de físico”. (BALMAN,

2008, p. 15).

Assim, o medo, seja do modo que se apresentar, sempre fará parte do

ser humano. Porém, Balman vai além desses tipos de medo, ainda

apresentando os medos mais “aterrorizantes”, conforme suas palavras:

“medo de ser pinçado sozinho da alegre multidão”, de ser “condenado a

sofrer solitariamente enquanto todos os outros prosseguem em seus

folguedos”, “medo de uma catástrofe pessoal”, “medo de se tornar um

alvo selecionado, marcado para a ruína”, “medo de ser deixado para trás”,

enfim, “O medo da exclusão”. (BALMAN, 2008, p. 28-29).

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IV – Sentimento de impotência

O sentimento de impotência é, segundo Balman (2008, p. 32), o

impacto mais assustador do medo, pois “reside, contudo, não nas

ameaças percebidas ou imaginadas em si, mas no espaço amplo, embora

abominavelmente mobiliado, que se estende entre as ameaças de que

emanam os medos e nossas reações”.

Com essas definições, faz-se uma observação: poderá o professor ser aquele

que deixará a sua carreira docente, por causa das ameaças, reais ou imaginárias,

dessas novas tecnologias, ou ser aquele que as conhecerá, adaptando-se,

aprendendo sempre e, principalmente, afastando qualquer pensamento ou angústia

em relação a esse mundo novo em que vive.

Ao associar o sentimento de medo com a morte, ele afirma que a morte é um

evento “Irreparável... Irremediável... Irreversível... Irrevogável... Impossível de

cancelar ou de curar... O ponto sem retorno... O final... O derradeiro... O fim de tudo”.

(BALMAN, 2008, p. 44). Talvez, é por isso que a morte se torna uma certeza única

na vida das pessoas, fazendo com essas pessoas não mais vivam, e sim morram

um pouquinho a cada dia, até não ter mais nenhum dia de vida.

Por um lado, algumas pessoas se autoexcluem e desvalorizam a si mesmas.

Por outro, algumas pessoas, mais otimistas, se adaptam, inovam, criam novos meios

de obterem sucesso numa situação nova.

O medo do professor no mundo hipermoderno

Vimos que, para Balman (2008), o medo apresenta diversas facetas.

Geralmente, medos são sentimentos de angústia, de baixa autoestima e de

autodesvalorização que transparecem na subjetividade daqueles que não

acompanham as mudanças no mundo, como aqueles que se readaptam

continuamente.

Lipovetsky e Serroy (p. 37) afirmam que cada indivíduo passa a viver o medo

de ser desqualificado, de perder o emprego, de “ir para o banco de reserva” após

contar consideráveis anos de vida. Os autores complementam suas argumentações

afirmando que, nesse novo universo sem “referências coletivas fixas, o

hipercapitalismo faz crescer a insegurança tanto social quanto individual”, o que nos

faz pensar na profissão do professor, que, necessariamente, lida com a situação

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social e com a situação individual. A pressão sofrida pelo aparente encurtamento do

tempo, para o cumprimento de prazos, e o medo da avaliação permanente podem

fazer desse profissional um sujeito em constante fuga (possivelmente da realidade)

ou um sujeito em constante adaptação.

O problema maior não é apenas a instabilidade macrofinanceira, mas também

a desestabilização das personalidades e das identidades, além do desequilíbrio da

vida mental e moral de algumas pessoas mais suscetíveis a isso tudo, conforme

expõem Lipovetsky e Serroy (p. 37).

Os autores ainda comentam que, devido ao sistema econômico de curto

prazo, o sentimento de fazer a diferença e de ser necessário aos outros se extingue,

ou se diminui significativamente, pois aqueles que assim sentem, o sentem por

terem experimentado o fracasso pessoal, dando origem à amargura, ao

desencorajamento e à depressão. (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 37).

Desse modo, encerra-se esse estudo conceitual do medo entendendo que

aqueles que não se entregam ao medo poderão obter sucesso nesse mundo

hipermoderno. Para isso, bastaria ter uma postura mental mais maleável em relação

às mudanças que se apresentam. Isso é interessante para o professor, pois,

inevitavelmente, esse profissional trabalha com pessoas mais jovens, vivenciando,

diariamente, conflitos entre geração. É sempre uma pessoa de geração anterior se

relacionando com uma nova geração, e, às vezes, com pessoas de gerações

anteriores, caso leciona para pessoas mais velhas, nos projetos das EJA.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Editora Objetiva, 1995, 375p. LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Trad. MACHADO, Maria Lúcia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.