cultura e memoria na literatura portuguesa online

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Cultura e Memória na LITETU PORTUGUESA Hélder Garmes José Carlos Siqueira 2009 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br

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Cultura e Memória naLITERATURA PORTUGUESA

Hélder GarmesJosé Carlos Siqueira

2009Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A,

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

G233 Garmes, Hélder; Siqueira, José Carlos / Cultura e Memória na Literatura Portuguesa. / Hélder Garmes; José Carlos

Siqueira — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.200 p.

ISBN: 978-85-387-0784-4

1. Literatura Portuguesa – História e crítica. 2. Movimentos literários. 3. Portugal – História. I. Título.

CDD 869.09

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

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Professor de Literatura Portuguesa. Possui pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, e é doutor em Letras pela Univer-sidade de São Paulo (USP).

Hélder Garmes

Professor de pós-graduação em Teoria Literária. Mestre em Estudos Comparados de Literaturas (USP). Bacharel em Linguística (USP).

José Carlos Siqueira

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Sumário

Inês de Castro na Literatura Portuguesa .......................... 13

O tema de Inês .......................................................................................................................... 13

A história ...................................................................................................................................... 14

O mito ........................................................................................................................................... 18

Inês de Castro pelos cronistas ............................................................................................. 19

O “teatro” do julgamento de Inês ........................................................................................ 21

Inês de Castro na epopeia classicista ................................................................................ 24

Inês de Castro no Arcadismo ................................................................................................ 26

Inês de Castro em nossos dias .............................................................................................. 27

O império português .............................................................. 35

Origens do império ultramarino português ................................................................... 35

O apogeu do império no século XV e XVI ......................................................................... 38

A crônica real e os relatos de viagem ................................................................................. 41

Os Lusíadas e a perenidade do império ............................................................................. 42

O império luso-brasileiro ........................................................................................................ 44

O neo-colonialismo .................................................................................................................. 45

O fim do império........................................................................................................................ 48

A gênese do mito de D. Sebastião ..................................... 57

As profecias que antecedem o mito ................................................................................... 57

O mito ............................................................................................................................................ 59

O sentido do mito na cultura portuguesa ........................................................................ 63

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O sebastianismo na Literatura Portuguesa ..................... 73

O tema ........................................................................................................................................... 73

O sebastianismo na contemporaneidade ........................................................................ 86

Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa ........ 95

A saudade .................................................................................................................................... 95

A saudade simbolista de António Nobre ........................................................................100

Saudade e saudosismo no século XX ...............................................................................102

A saudade em Florbela Espanca ........................................................................................107

Precursores do Modernismo ...............................................................................................109

O anticlericalismo na Literatura Portuguesa ................119

O anticlericalismo ....................................................................................................................119

O anticlericalismo em Portugal ..........................................................................................122

O anticlericalismo na Literatura Portuguesa: os primórdios ...................................124

O anticlericalismo de Gil Vicente .......................................................................................128

O anticlericalismo radical de Eça de Queirós ................................................................130

O anticlericalismo contemporâneo de Saramago .......................................................135

O Mar Português na literatura ...........................................145

O Mar Português ......................................................................................................................145

A mesma história de outro ponto de vista .....................................................................147

A primeira literatura do Mar Português ..........................................................................149

O maior poeta do Mar Português: Luís Vaz de Camões .............................................151

O Camões modernista: Fernando Pessoa .......................................................................155

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Page 7: Cultura e Memoria Na Literatura Portuguesa Online

Escrita e reinvenção literária da história de Portugal .........................................................163

Literatura e história .................................................................................................................163

A crônica real ............................................................................................................................163

A literatura romântica e uma nova concepção de história .....................................166

A reinvenção literária da história .......................................................................................169

Gabarito .....................................................................................181

Referências ................................................................................189

Anotações .................................................................................197

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Apresentação

A literatura é um fenômeno cultural multifacetado e complexo. A própria defi-nição e a descrição da literatura esbarram em uma série de problemas teóricos, conceituais de difícil solução. O que dizer então do ensino desse fenômeno trans-formado em disciplina acadêmica? A exposição convencional em ordem crono-lógica e organizada em escolas estéticas tem sido a forma preferencial no ensino moderno, e certamente ela possui qualidades inquestionáveis: possibilita a visu-alização do desenvolvimento e das transformações que obras e autores sofrem ao longo do tempo, fornece balizas conceituais e estéticas para a apreciação dos textos, permite o necessário paralelo com o desenvolvimento histórico e social das culturas em que as obras se inserem e por aí em diante.Mas, nesse modelo de apresentação também se perdem alguns aspectos como, por exemplo, o rico diálogo entre autores de diferentes épocas e escolas, as pe-culiaridades de obras e artistas muitas vezes perdidas pela redução aos princípios de uma escola literária e, ainda, o interessante jogo que se cria quando um tema é retomado por diversas gerações, sendo redefinido conforme os interesses cul-turais e artísticos se modificam. É nesse último aspecto que se inserem os propósitos do presente livro, Cultura e Memória na Literatura Portuguesa. A literatura de Portugal, cujos princípios re-montam ao século XII, é pródiga na criação e manutenção de temas literários que, cultivados por seus escritores (e por vezes extrapolando as fronteiras lusas, como veremos), são responsáveis pela preservação de uma riquíssima memória histó-rica e cultural. O cultivo literário faz com que tais temas continuem vivos na so-ciedade portuguesa (na verdade, nos países lusófonos), tornando-se assim uma fonte dinâmica de reflexão e de crítica para os leitores e para a sociedade como um todo.Não sendo factível – nem talvez funcional – abordar todos os possíveis temas que os diversos períodos abordaram e preservaram, escolhemos aqueles que nos pareceram mais importantes ou que se apresentaram como mais produtivos na Literatura Portuguesa. Dessa forma, propomos ao leitor uma instigante viagem pelos desdobramentos literários dos seguintes temas:

o mito de Inês de Castro; �

o império português; �

a gênese do mito de D. Sebastião; �

o sebastianismo de Fernando Pessoa; �

saudade e saudosismo; �

anticlericalismo na cultura portuguesa; �

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o mar português; e �

escrita e reinvenção literária da história de Portugal. �

Em cada um desses itens, apresentaremos o tema em si, sua gênese histórica, cul-tural e artística, e colocaremos lado a lado alguns dos autores mais significativos da Literatura Portuguesa que deram sua contribuição ao assunto. Manteremos a ordem cronológica na apresentação de autores e obras, mas o foco sempre recai-rá no tema em pauta e na forma como o diálogo transtemporal se deu entre esses escritores. Uma última parte será ainda destinada aos autores contemporâneos ou mais próximos ao tempo presente, buscando mostrar assim como esses oito grandes temas continuam ainda vivos e estimulantes para artistas e leitores.Desejamos que este estudo seja não apenas proveitoso em termos acadêmicos como ainda muito saboroso e estimulante aos nossos leitores.

Hélder Garmes

José Carlos Siqueira

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

O tema de Inês Na Europa, durante o século XVI, uma importante e poderosa parce-

la das casas reais e de aristocratas governantes descendia de uma rainha portuguesa. Netos e bisnetos dessa mulher ocupavam tronos, dirigindo impérios e principados. Um grande cronista e poeta da época, o portu-guês Garcia de Resende (1470-1536), chegou mesmo a dedicar um poema a essa insigne linhagem:

Os principais reis de Espanha,

de Portugal e Castela,

e imperador de Alemanha,

olhai, que honra tamanha,

que todos descendem dela,

Rei de Nápoles, também

Duque de Borgonha, a quem

toda França medo havia,

e em campo el-rei vencia,

todos estes dela vém. (GARCIA DE RESENDE apud SENA, 1963, p. 273)

Mas, uma tão importante genealogia aristocrática não deveria ser vista como surpreendente durante o século de ouro de Portugal, momento das grandes navegações e descobertas, pois nesse período o país ibérico era uma potência dentro do continente. Além do mais, os casamentos entre as mais diversas e distantes casas reais era algo por demais corriqueiro, servindo de instrumento da política internacional e do jogo do poder. Acontece que essa monarca portuguesa possuía algumas peculiaridades capazes de comover poetas e historiadores, e transformar sua descendên-cia em um verdadeiro milagre dinástico.

Para começar, ela não era portuguesa, mas sim da Galícia, uma região ao norte de Portugal, subordinada à Espanha. Em segundo lugar, sua origem era controversa, pois nascera filha bastarda (concebida fora do casamento)

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

de um importante aristocrata galego. Terceiro, morrera muito jovem, aos 30 anos de idade, brutalmente executada (degolada) após a sentença de um tribunal movido por intrigas palacianas. E, por fim, e mais incrível, fora declarada rainha depois de morta, alguns anos após a sua execução.

Eis aí, em linhas muito sumárias, a trágica vida de D. Inês de Castro, que “depois de morta foi rainha”, nas palavras de Luís de Camões (1525-1580). Mas isso não é tudo: por trás do que já foi relatado, há também uma história de amor que marcou a literatura e as artes de Portugal e de toda a Europa. Uma história que desempenhou um importante papel na modelagem do espírito português, de sua identidade nacional, em um processo em que ao fato histórico foram sendo agregados detalhes, situações e desdobramentos criados por artistas e pela imaginação popular, constituindo assim um mito que acabou maior e mais interessante que a personagem histórica propriamente dita. Para entender esse processo, devemos conhecer a história e a formação do mito de Inês de Castro.

A história Inês de Castro nasceu na Galícia, como

já foi dito, entre 1320 e 1325, filha natural de Pedro Fernandes de Castro, um alto fun-cionário do trono espanhol e também de ascendência bastarda (como se vê, era algo recorrente na aristocracia da época). Apesar da bastardia, Inês cresceu no seio de uma família nobre e rica, e na juventude tornou-se dama de companhia de sua prima, D. Constança Manuel, uma nobre espanhola de uma importante família. Tão importan-te que Constança tornou-se a esposa de D. Pedro, príncipe herdeiro do trono portu-guês, e aqui entra um personagem funda-mental dessa história.

O infante D. Pedro era filho de Afonso IV – um notável monarca dos primór-dios da história portuguesa – e ao conhecer a bela Inês, que era dama de com-panhia de sua esposa, apaixonou-se perdidamente. Como era de se esperar, o príncipe foi correspondido pela nobre galega e eles se tornaram amantes. Seu relacionamento amoroso era tão intenso e aberto que provocou a desaprovação

Div

ulga

ção

Fund

ação

Inês

de

Cast

ro.

D. Inês de Castro.

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

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da corte. Quando Constança concebeu seu primeiro filho com D. Pedro, convi-dou Inês para ser a madrinha, pois pelas leis canônicas a relação carnal entre pais e madrinhas era considerada incestuosa. Parece que a artimanha não funcionou muito bem, já que para afastar os amantes o rei Afonso decidiu expulsar Inês da corte e exilá-la em um castelo próximo da fronteira com a Espanha.

Mesmo separados, Pedro e Inês continuaram se comunicando e mantiveram aceso o forte sentimento que os ligava. Foi quando uma fatalidade permitiu o retorno de Inês e a continuação de seu caso amoroso com o príncipe: ao ter seu terceiro filho (Fernando, que se tornaria o rei português após a morte de D. Pedro), Constança morreu. Viúvo, o herdeiro do trono de Portugal sentiu-se livre para manter Inês a seu lado, até com a possibilidade de torná-la sua esposa.

No entanto, o rei, os fidalgos da corte e a opinião pública da época não pen-savam da mesma forma. A fim de evitar conflitos, Pedro levou Inês para Coimbra, onde fixou residência em um belo palacete, o Paço de Santa Clara, construído pela avó de Pedro, D. Isabel, a Rainha Santa. Essa decisão de D. Pedro foi conside-rada uma provocação. O escândalo que a situação causava era crescente, com a desaprovação tanto da nobreza quanto do povo em geral.

No entanto, essa febre de moralidade e bons costumes que se abatera sobre o país tinha um fundo político inconfessável: mesmo sendo filha ilegítima, Inês per-tencia a uma família poderosa na Espanha, os Castros, e seus irmãos haviam também conquistado o afeto e a confiança de D. Pedro. Afirma-se que tais irmãos teriam con-vencido Pedro a se casar com Inês e, em razão de o pai da moça ser da linhagem real espanhola, exigir o trono da Espanha, unificando assim os dois países.

A ideia repugnava o rei Afonso e a maioria da nobreza, que viam em seme-lhantes conluios a possibilidade de Portugal submergir dentro da Espanha, per-dendo sua autonomia e a identidade. Os espanhóis construíam na época um poderoso reino, de grande força militar e sentimento de unidade. Não seria Por-tugal a anexar a Espanha, e sim o contrário.

Procurando fazer o filho se afastar de Inês e, por tabela, de seus insidiosos irmãos, o rei tentou convencer D. Pedro a se casar de novo com uma aristocra-ta da família real, mas a tática não funcionou. O esperto Pedro se esquivou da sugestão alegando que permanecia enlutado e não havia ainda esquecido a “amada” Constança – era o que dizia o príncipe.

Em meio a esse embate, nossa Inês teve nada menos que quatro filhinhos com D. Pedro. O primeiro morreu ainda pequeno, mas os outros cresciam muito

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

saudáveis. Já o legítimo herdeiro do trono lusitano, o infante Fernando, cujo nas-cimento levara Constança à morte, mostrava-se doentio e frágil, trazendo gran-des incertezas sobre seu futuro e o do país, principalmente para o avô Afonso.

Tudo isso somado fez com que o rei, influenciado por conselheiros da corte, decidisse cortar o mal pela raiz: durante uma ausência de D. Pedro, que saíra para caçar – um de seus hobbies favoritos –, o rei promoveu um julgamento sumário em Montemor-o-Velho, vila próxima a Coimbra, e sentenciou Inês à morte por traição. A execução foi realizada imediatamente, e a bela Inês, por volta dos 30 anos, com três filhos ainda crianças, foi barbaramente degolada em 7 de janeiro de 1355.

É claro que o príncipe reagiu com violência àquele crime bárbaro e covarde: D. Pedro rompeu relações com o rei, seu pai, e iniciou uma verdadeira guerra civil. As hostilidades se prolongaram por dois anos, cessando apenas graças à in-tervenção e a diplomacia da rainha Beatriz de Castela, mãe de Pedro. Apesar de ser um bom motivo para a guerra, considera-se que na verdade a morte de Inês foi apenas um pretexto para o confronto com o rei Afonso. E, de fato, o acordo obtido pela mediação da rainha mãe concedeu a Pedro poderes que o tornaram, na prática, o verdadeiro governante do país.

Mas, no fim das contas, tal acordo não foi levado a cabo, pois logo em seguida ao pacto o rei Afonso IV morreu, a 28 de maio de 1357, com certeza muito preo-cupado com o destino de Portugal, do filho e de seu neto.

E a história não para aí: depois de coroado, D. Pedro I determinou a punição dos nobres que haviam aconselhado o falecido rei a executar Inês. Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco, reconhecidamente responsáveis pela morte de Inês, não ficaram esperando para ver o que aconteceria e fugiram para a Espanha. O nosso bom Pedro não teve dúvidas: arquitetou com o monarca espanhol uma troca de desafetos e conseguiu que os fidalgos portugueses lhe fossem entregues. No entanto, só Pero Coelho e Álvaro Gonçalves foram presos, pois o mais esperto, Diogo Lopes, conseguiu escapar dos captores espanhóis disfarçando-se como mendigo e fugindo para a França.

A punição dos dois conselheiros foi de uma crueldade sem precedentes: em 1361, depois de torturados para que delatassem outros participantes da exe-cução de Inês, os dois tiveram o coração arrancado ainda em vida: Pero Coelho através do peito, e Álvaro Gonçalves pelas costas – o rei não “acreditava” que tivesse coração quem pudesse ter participado daquele odioso crime.

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

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Por fim, o gentil rei Pedro I fez uma revelação bombástica à corte: ele havia se casado oficialmente com D. Inês de Castro. Ou seja, uma das grandes preo-cupações de seu pai, motivo inclusive de ter optado pela morte de Inês, havia acontecido em segredo, na região de Coimbra. É verdade que Pedro não se lem-brava nem do mês em que isso acontecera, mas ele mandou chamar o bispo da Guarda, na época deão do mesmo local, e mais um de seus criados para compro-varem a história. O bispo confirmou que havia ministrado a cerimônia, e o criado, que presenciou o casamento. Mas, por uma dessas comuns amnésias coletivas, nenhum dos dois lembrava também quando fora... De qualquer forma, era uma reparação que o novo rei fazia à ultrajada D. Inês e a prova de um amor que nem a morte nem o tempo conseguiam apagar.

Dessa forma, Inês era oficialmente declarada rainha, e seus filhos, legitimados, podendo inclusive aspirar ao trono, caso por algum motivo o frágil infante Fer-nando faltasse ao país. Seria possível pensar que tal reparação estava na lógica da vingança que o rei já havia desencadeado com o flagelo dos conselheiros: de certo modo, Portugal como um todo estaria pagando pela mesquinha desapro-vação ao romance do príncipe e sua amante galega, bem como pelo alívio cole-tivo sentido com a sua morte. Mas, pode-se acrescentar a essa satisfação pessoal alguns objetivos políticos – no futuro, os descendentes de Inês poderiam se arro-gar ao trono espanhol, quem sabe realizando a temida união dos dois países.

O casamento foi então postumamente oficializado e o rei mandou confec-cionar dois magníficos túmulos no mosteiro de Alcobaça. No primeiro, foram depositados os restos mortais de Inês, enquanto o segundo aguardaria o corpo de Pedro. Assim, a eternidade uniria os dois amantes que as convenções sociais, as intrigas cortesãs e a fúria paterna haviam se esforçado tanto para manter se-parados em vida. Não se pode esquecer também que a magnificência desses tú-mulos serviria ainda como símbolo oficial do casamento deles, um conveniente testemunho da legitimidade de seu matrimônio e de seus descendentes.

O translado do corpo de Inês foi feito com toda a pompa e circunstância de-vidas a uma rainha. Por todo o trajeto de Coimbra (onde a dama fora sepultada) a Alcobaça, a nobreza, o clero e o povo saudaram o féretro como se fosse a uma monarca viva, e as cerimônias fúnebres passaram à memória dos portugueses em virtude de sua suntuosidade e grandeza.

E lá se encontram eles ainda, símbolos de um amor capaz de derrotar a própria morte, ou ao menos de o tentar, oriundos de uma época cuja distância temporal

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

a transforma em um cenário de contos de fada: Em um reino distante, havia um rei, um valente príncipe e uma linda princesa...

O mito A história que acabamos de narrar tem base em documentos e relatos histó-

ricos, mas diversos de seus detalhes são difíceis de comprovar com toda a exa-tidão. Queremos dizer com isso que mesmo o fato histórico está contaminado de incertezas, fruto da deficiente documentação, dos métodos pouco confiáveis dos registros e crônicas, além do que muitas das possíveis fontes para esses eventos se perderam no decorrer do tempo.

No fundo, a própria História se encontra algo mitificada – um processo normal em qualquer cultura e que abre margem para que o mito se fortaleça e se expan-da. No caso de Pedro e Inês, logo depois de suas mortes, o imaginário popu-lar foi acrescentando detalhes maravilhosos aos acontecimentos. Em Coimbra, passou-se a acreditar que Inês fora morta em sua própria casa, o famoso Paço de Santa Clara. Junto a esse palácio havia jardins, bosques e duas fontes. Em uma dessas fontes, depois chamada de Fonte das Lágrimas, existem raríssimas algas vermelhas, que a imaginação do povo relaciona com o sangue derramado da bela Inês. A outra, a Fonte dos Amores, teve seu nome dado por Camões em Os Lusíadas, em um trecho (III, 135) dedicado a Inês de Castro:

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram. (CAMÕES, 1997, p. 110)

E aqui entram em cena os poetas e artistas que, ao se apropriarem da história, foram recriando os fatos, dando ênfase a alguns aspectos e obscurecendo outros. Eles fizeram com que a memória desse sublime amor não fosse perdida, mas também provocaram novos sentidos e funções que os fatos em si não possuíam. Fernando Pessoa sintetiza de forma perfeita esse processo de mitificação:

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre. (PESSOA, 1983, p. 6)

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

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Nesses versos, Pessoa está se referindo ao mito de fundação de Lisboa, atri-buída ao herói grego Ulisses, que teria construído a cidade durante sua viagem de retorno da guerra de Troia. Mas, a ideia serve para qualquer mito: um valor ou sentimento fundamental à realidade humana é fecundado pela lenda, que passa a valer mais do que a própria realidade histórica. Tratando-se do mito de Inês de Castro, pode-se dizer que um dos valores que está sendo fecundado é a ideia de superação da morte pela força do amor. Mas, não só isso: há também a ideia da saudade, que faz com que o passado não morra, ou que se mantenha pulsante e decisivo no presente e no futuro.

Seria esse intenso sentimento que levara D. Pedro a sua vingança tão cruel e à construção dos túmulos majestosos, capazes de vencer o tempo e perdurar no futuro. Presente e futuro determinados por um passado a que a saudade susten-ta e dá poder – a saudade portuguesa.

Para dar um exemplo da ação dos poetas nesse sentido, vejamos a famosa cena da coroação da rainha morta. Com base no dado histórico do cortejo do cadáver de Inês para Alcobaça – uma das formas encontradas por D. Pedro para declarar Inês rainha depois de morta –, diversos escritores desenvolveram a fan-tástica cena em que o corpo morto de Inês era assentado sobre o trono portu-guês e uma cerimônia de coroamento tinha lugar. Em seguida, para escárnio da nobreza e do clero presentes, estes teriam sido obrigados a beijar a mão da rainha morta. A força imagética e tétrica dessa cena é inquestionável. Eis aí uma amostra do esforço humano em vencer a morte e negar as fronteiras entre o passado e o presente, um tema mitológico.

Inês de Castro pelos cronistas Os primeiros relatos do drama de Inês de Castro foram feitos por cronistas.

Seria valioso entender esse tipo de escritor que participa tanto da literatura quanto da historiografia, e que no caso português tem ainda um pé na Idade Média e outro na Moderna.

Os historiadores da língua portuguesa datam o início de nosso idioma no século XII, sendo que os primeiros textos em português que sobreviveram até nosso dias são poemas. Na prosa, os primeiros escritos em português são os sempre citados romances de cavalaria e as crônicas. Estas últimas apresentam um duplo interesse: são documentos históricos – importantes fontes primárias

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

para o conhecimento do passado – e verdadeiros ensaios de estilo e expressão na língua lusitana. A crônica dessa época pode então ser definida como o relato cronológico da vida de reis e nobres, de fatos relevantes desses personagens, descrição de batalhas, de eventos diplomáticos etc.

Em Portugal, uma das primeiras crônicas foi redigida ou organizada pelo conde D. Pedro Afonso (1287-1354). Ele era filho do conhecido monarca D. Dinis (1261-1325), o Rei Trovador e, puxando ao pai, foi também poeta e responsável por uma crônica intitulada “O livro do conde D. Pedro” que, entre outras coisas, conta a história do mundo, começando por Adão e Eva, e chegando à reconquis-ta da Espanha pelos cristãos.

Já a história de Inês é registrada pela primeira vez por meio da pena de Fernão Lopes (1380-1460). A importância da obra e das atividades intelectuais desen-volvidas por esse homem pode ser medida pelo fato de que a história da Litera-tura Portuguesa define como data do início do Humanismo em Portugal a sua nomeação como guarda-mor da Torre do Tombo (uma espécie de bibliotecário chefe da documentação oficial do país). O Humanismo é a corrente cultural e li-terária que, em terras portuguesas, vai de 1418 a 1527, substituindo a era do Trovadorismo. O próprio nome já denuncia que o foco dessa corrente de pensa-mento é o homem, visto agora como centro do universo, dotado de faculdades que o diferenciam no mundo animal, principalmente a razão, e o elevam à posi-ção de ser supremo da natureza e seu virtual senhor.

Fernão Lopes é considerado o “pai da História” em Portugal. Ele já pode ser considerado “moderno” por haver promovido uma historiografia baseada em do-cumentos e não mais fundamentada na tradição oral. O que não o impede de imprimir em seus relatos uma forte carga dramática e de intenso dinamismo narrati-vo. Em seus textos surge o povo em suas multifacetadas manifestações, atingindo o protagonismo em algumas ocasiões. Seu estilo é bastante coloquial e direto, por vezes o narrador chegando a dialogar com o leitor.

Boa parte da produção de Fernão Lopes se perdeu, havendo sobrevivido entre outras obras a Crônica d’el-rei D. Pedro I, na qual se registram algumas das passagens da história de D. Inês de Castro. Um dos trechos mais impactantes está no capítulo XXXI e relata o suplício e a execução de dois dos conselheiros que participaram da morte de Inês:

Dom

ínio

púb

lico.

A Crônica de Fernão Lopes.

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

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A Portugal foram trazidos Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a Santarém, onde el-rei era. El-rei, com prazer de sua vinda, porém mal magoado porque Diogo Lopes fugira, os saiu fora a receber, e, sanha cruel, sem piedade os fez por sua mão meter a tormento, querendo que lhe confessassem quais foram na morte de Dona Inês culpados, e que era que seu padre tratava contra ele, quando andavam desavindos por azo da morte dela. E nenhum deles respondeu a tais perguntas coisa que a el-rei prouvesse.

E el-rei, com queixume, dizem que deu um açoite no rosto a Pero Coelho, e ele se soltou então contra el-rei em desonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, à fé perjuro, algoz e carniceiro dos homens. E el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre, e azeite para o coelho, enfadou-se deles, e mandou-os matar.

A maneira de sua morte, sendo dita pelo miúdo, seria mui estranha e crua de contar, cá mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Álvaro Gonçalves pelas espáduas. E quais palavras houve e aquele que lho tirava, que tal ofício havia pouco em costume, seria bem dorida cousa de ouvir. Enfim, mandou-os queimar. E tudo feito ante os paços onde ele pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer. (LOPES, 2009. Adaptado)

Há nesse registro um jogo entre um ambiente de tortura e uma situação do-méstica. Lopes intercala um pedido banal de temperos feito pelo rei em meio a tormentos, injúrias e muita dor, brincando com a palavra coelho, que tanto é a carne que come o rei quanto é o nome do torturado – Pero Coelho. Com isso ele prepara o desfecho da cena, revelando que a execução foi apreciada pelo monarca durante sua refeição, como em um piquenique se acompanha um jogo ou uma brincadeira. O cronista enfatiza assim o grau de crueldade e desprezo pela vida humana demonstrado por D. Pedro. É importante notar ainda que a forma de execução dos dois conselheiros não é atestada pelo cronista, ou seja, não havia documentos que comprovassem essa informação, sendo portanto algo que foi transmitido por via oral: “dita pelo miúdo”. Posteriormente, a tradi-ção ainda acrescentou que o rei mordeu um dos corações arrancados, em uma espécie de antropofagia à moda europeia.

O “teatro” do julgamento de InêsO primeiro texto puramente literário em que comparece a tragédia de Inês

e Pedro é de autoria de Garcia de Resende (1470-1536), “Trovas à morte de Inês de Castro”, do qual já citamos um trecho. Nesse poema, destaca-se a súplica que Inês teria feito ao rei Afonso IV para que poupasse a sua vida e, assim, a orfanda-de de seus filhos. O rei se sensibiliza com as lágrimas da mulher, mas incitado por um de seus oficiais, acaba permitindo a execução de Inês.

Aqui já nos encontramos em um momento de transição entre o Humanis-mo, de que Fernão Lopes foi o grande nome na crônica, e o Classicismo (1527-1580). O poeta e cronista Resende ainda é catalogado pelos estudos literários no Humanismo, mas sua obra já preparava as condições para o surgimento dos

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

escritores classicistas. O Cancioneiro Geral, em que foram publicadas as Trovas, é uma coletânea da produção poética do Humanismo e, portanto, uma síntese da literatura do período.

O Classicismo propriamente não foi um rompimento com o Humanismo e sim uma espécie de radicalização. A fim de se livrar definitivamente dos princípios e do pensamento medievais, os artistas da nova escola retomaram os valores clássicos, ou seja, a estética e as formas artísticas da Antiguidade, especificamente do perío-do clássico da Grécia e de Roma.

No teatro, a tragédia de concepção greco-romana dominou por completo as produções dramatúrgicas, e um dos principais nomes portugueses desse gênero foi Antônio Ferreira (1528-1569), cuja obra-prima, por sinal, leva o nome de Castro. Segundo a estudiosa Maria L. Machado de Sousa, essa peça é a primei-ra tragédia europeia com tema moderno, ou seja, na qual os personagens não são nem deuses nem heróis da Antiguidade, mas figuras históricas recentes (cf. SOUSA, 1984, p. 12).

Ferreira é ainda avaliado por críticos como António José Saraiva e Oscar Lopes como o mais íntegro representante da escola clássica em seu país (SARAIVA; LOPES, 2005, p. 255), havendo realizado com essa tragédia uma brilhante inte-gração entre um tema moderno e a estética clássica. Sem dúvida, o dramaturgo português retomou a ideia da defesa de Inês que está nas Trovas de Garcia de Resende e ampliou-a no quarto ato de sua peça na forma de um julgamento em que comparecem ainda dois dos conselheiros reais no papel de promotores.

Na tragédia clássica, o destino tem papel central, pois determina o fim dos personagens independentemente de suas vontades e de seus esforços para im-pedir tal sina – esforços que fatalmente só os conduzem ainda com mais firmeza para a sua destruição (um bom exemplo seria Édipo Rei, de Sófocles). No caso de Castro, o destino é encarnado pelas razões de Estado, suficientes para condenar alguém inocente e obliterar a consciência dos juízes.

A bela Inês questiona o rei Afonso IV – no papel de juiz – sobre seu crime (ato IV, cena I):

CASTRO: Ouve minha razão, minha inocência./ Culpa é, senhor, guardar amor constante/ A quem mo tem? se por amor me matas,/ Que farás ao inimigo? amei teu filho,/ Não o matei. Amor amor merece;/ Estas são minhas culpas: estas queres/ Com morte castigar? Em que a mereço?

[...]

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CASTRO [ainda se dirigindo ao rei]: Dou tua consciência em minha prova./ Se os olhos de teu filho se enganaram/ Com o que viram em mim, que culpa tenho?/ Paguei-lhe aquele amor com outro amor,/ Fraqueza costumada em todo estado. / Se contra Deus pequei, contra ti não. (FERREIRA, 1996, p. 148 -149)

A infeliz mulher ainda acrescenta que a injustiça não seria apenas contra ela, mas atingiria também o filho do rei, que ama Inês, e seus netos, que cresceriam órfãos. Nesse momento, o rei juiz cede às súplicas e se retira de cena convencido da injustiça que seria a morte de Inês. Mas, na cena seguinte, a sós com dois con-selheiros, é confrontado com as razões de Estado (ato IV, cena III):

PACHECO: ...não te esqueças/ Da tenção tão fundada, que te trouxe.

REI: Não pôde o meu espírito consentir/ Em crueza tamanha.

PACHECO: Mor crueza./ Fazes agora ao Reino: agora fazes/ [...] A que vieste?/ A pôr em mor perigo teu estado? [...]

REI: Não vejo culpa, que mereça pena.

PACHECO: Inda hoje a viste, quem ta esconde agora?

REI: Mais quero perdoar, que ser injusto.

COELHO: Injusto é quem perdoa a pena justa.

REI: Peque antes nesse extremo, que em crueza.

COELHO: Não se consente o Rei pecar em nada.

REI: Sou homem.

COELHO: Porém Rei.

REI: O Rei perdoa.

PACHECO: Nem sempre perdoar é piedade.

REI: Eu vejo ua inocente, mãe de uns filhos/ De meu filho, que mato juntamente.

COELHO: Mas dás vida a teu filho, salvas-lhe a alma,/ Pacificas teu Reino: a ti seguras./ Restitui-nos honra, paz, descanso./ Destróis a traidores; cortas quanto/ Sobre ti, e teu neto se tecia... (FERREIRA, 1996, p. 151)

Pela segunda vez o rei sucumbe aos argumentos dos acusadores. E agora, para evitar novo confronto com Inês, ele dá a sentença definitiva – na verdade, transfere aos outros a decisão (ato IV, cena II):

REI: Eu não mando, nem veto. Deus o julgue./ Vós outros o fazei, se vos parece/ Justiça, assim matar quem não tem culpa. (FERREIRA, 1996, p. 152)

Os conselheiros aceitam a incumbência e matam a pobre Inês.

Na peça de Ferreira, o rei enfrenta um terrível dilema: ser um juiz imparcial e impessoal, julgar única e exclusivamente a verdade do crime, ou um chefe de Estado, responsável pelo bem geral e o futuro da nação. Ele cede à lógica das razões de Estado, esse destino implacável, mas carrega, apesar disso, sua res-

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

ponsabilidade na decisão, uma situação que já indica traços de modernidade se instaurando no modelo clássico.

Inês de Castro na epopeia classicista Ainda no Classicismo, mas agora no gênero epopeia (poema longo, narrativo,

em que se relatam os feitos do herói de uma determinada coletividade), vamos encontrar, em meados do século XVI, Luís Vaz de Camões compondo Os Lusía-das. Ele insere o episódio de Inês de Castro no Canto III de seu poema épico.

Conforme lemos ali, durante a travessia rumo à Índia, a armada de Vasco da Gama chega a Melinde (cidade que hoje pertence ao Quênia, na África), cujo rei solicita ao almirante que conte a história de Portugal. Nos cantos III, IV e V, o Gama narra a história das duas primeiras dinastias portuguesas, chegando até o início da viagem. O relato de Inês ocupa 17 estrofes do terceiro canto, nas quais a rainha, depois de morta, é apresentada como vítima da inexorabilidade do Amor.

Os Lusíadas (III, 119)

Tu só, tu, puro Amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres, áspero e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano. (CAMÕES, 1997, p. 106)

A ideia da responsabilidade do Amor pela morte de Inês já se encontrava em Garcia de Resende e António Ferreira (“Já morreu Dona Inês, matou-a Amor”, ato IV, cena II – FERREIRA, 1996, p. 153). Em Camões, ele é apresentado como o deus Amor (Eros, na tradição grega), um senhor “áspero e tirano”, cuja força escravi-za os corações. Ele não se satisfaz apenas com as lágrimas dos amantes, pois também deseja seu sangue como oferenda em seus altares.

No entanto, a grande contribuição de Camões ao mito de Inês foi a cria-ção de um contexto lírico no qual a história passaria então a ser contada. Até ali, peças e poemas se concentravam na narrativa dos eventos e nos discursos

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de defesa e acusação. O bardo português vai dar formas e cores ao ambien-te (Coimbra), antropomorfizar a Natureza – isto é, dar formas e características humanas à Natureza –, trazer perfumes e múltiplas sensações aos episódios e conclamar figurantes a sofrerem e chorarem pelos amores de Inês e Pedro.

Os Lusíadas

III, 120

Nos saudosos campos do Mondego,

De teus fermosos olhos nunca enxuto,

Aos montes ensinando e às ervinhas

O nome que no peito escrito tinhas.

III, 135

As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram,

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

III, 134

Assi como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela,

Sendo das mãos lacivas maltratada

Da minina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:

Tal está, morta, a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas e perdida

A branca e viva cor, co a doce vida. (CAMÕES, 1997, p. 107-110)

Esse episódio forma com outras passagens do poema um conjunto de versos dedicados aos infortúnios do amor. Muitos comentaristas consideram que tal obsessão pelo assunto revela um viés autobiográfico de Camões, cuja vida fora atribulada por diversas paixões frustradas, uma característica que traz assim maior encanto e curiosidade à epopeia camoniana.

Talvez seja o momento de se comentar que a história de Inês de Castro não se restringe ao repertório literário português. Na verdade, o mito de Pedro e Inês foi incorporado pela Europa e também pelas Américas. Para ficarmos apenas em alguns nomes mais conhecidos, citemos Victor Hugo (1802-1885), Ezra Pound (1885-1972) e o poeta brasileiro, nosso contemporâneo, Ivan Junqueira. Há ainda peças de balé e uma importante composição operística de Carl Maria von Weber (1786-1826), além de outras óperas de diversos autores. Parte do interesse de-monstrado por esses países e seus artistas em relação à infausta Inês se deve ao Canto III de Os Lusíadas. O trecho camoniano da história de Inês é um dos mais apreciados e traduzidos por todo o mundo.

Para se ter uma ideia da difusão e do interesse suscitado por esse episódio, pode-mos citar a tradução para o alemão por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), desta-cado filósofo do Iluminismo. Para poder ler Os Lusíadas no original, Fichte aprendeu português e, a partir daí, procedeu a uma preciosa tradução dessa parte do poema de Camões, respeitando tanto a métrica quanto o esquema rímico do original.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Inês de Castro no Arcadismo Nos séculos seguintes, o modelo camoniano continuou servindo de inspira-

ção em Portugal. Durante o Arcadismo, de 1756 a 1825, isso foi ainda mais sen-tido, pois essa foi uma corrente literária que recuperou muitos dos princípios do Classicismo, que foram contrariados ou abolidos durante o Barroco (1580-1756). O poeta mais significativo do Arcadismo português foi Manuel Maria de Barbosa du Bocage, uma figura que até mesmo em sua biografia procurou imitar a vida de Camões. Não seria surpresa, portanto, se Bocage tivesse dedicado algumas de suas composições ao mito de Inês de Castro, como de fato aconteceu.

Sobre esse tema, a composição mais importante do poeta árcade é “Cantata à morte de Inês de Castro”. A forma cantata se divide em duas partes: um longo recitativo em que se narra um episódio solene ou galante, e uma ária, um poema mais curto e ritmado, adequado para ser cantado. Logo na abertura do poema, Bocage presta sua homenagem a Camões colocando como epígrafe exatamente dois versos de Os Lusíadas (IIII, 135): “As filhas do Mondego a morte escura/ Longo tempo chorando memoraram” (CAMÕES, 1997, p. 110). A citação tem também uma função estrutural, pois a ária no fim da cantata seria os lamentos entoados pelas “filhas do Mondego” (neste caso, as ninfas saídas do rio que cruza Coimbra e corre próximo ao Paço de Santa Clara, onde morava Inês):

Toldam-se os ares,

Murcham-se as flores:

Morrei, amores,

Que Inês morreu.

Mísero esposo,

Desata o pranto,

Que o teu encanto

Já não é teu.

Sua alma pura

Nos céus se encerra:

Triste da terra

Porque a perdeu!

Contra a cruel

Raiva ferina,

Face divina

Não lhe valeu.

Tem roto o seio

Tesouro oculto;

Bárbaro insulto

Se lhe atreveu.

De dor e espanto

No carro de ouro

O Númen louro

Desfaleceu.

Aves sinistras

Aqui piaram,

Lobos uivaram,

O chão tremeu.

Toldam-se os ares,

Murcham-se as flores:

Morrei, amores,

Que Inês morreu. (BOCAGE, 1972, p. 125)

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No poema de Bocage fica patente que a intenção do autor foi ampliar o as-pecto lírico, inflacionando o que Camões já havia feito em sua epopeia. Por isso, na cantata desaparece o julgamento de Inês, sua defesa, os apelos pelos filhos pequenos, ou seja, as características dramáticas que os poetas iniciais haviam privilegiado. Aqui, Bocage está interessado na interioridade da bela Inês, em seus sonhos, nos seus profundos anseios e sentimentos. Os algozes surgem de súbito no recitativo, despertando a mulher de seu devaneio, e em completa mudez cumprem sua macabra tarefa: “Vós, brutos assassinos,/ No peito lhe en-terrais os ímpios ferros./ Cai nas sombras da morte/ A vítima de amor, lavada em sangue” (BOCAGE, 1972, p. 123).

D. Pedro também não comparece como personagem no poema. Ele apenas é lembrado em seus versos pela amante e pelas ninfas. Por isso, sua dor e con-sequente vingança também estão ausentes. Inês impera sozinha e soberana na cantata, e todos os figurantes servem apenas para indicar sua centralidade. Dessa forma, Bocage faz de Inês uma alegoria do Amor (o sentimento ideal), cuja existência na terra transfigura a existência humana, mas cuja própria existência está sempre sob a ameaça do ódio e da violência dos que representam os inte-resses materiais e mundanos.

Inês de Castro em nossos diasAté o século XIX, o amor desmedido, a injustiça flagrante, a saudade sem

tréguas, o coroamento depois da morte, a perenidade do amor, o anseio pela eternidade etc. foram se revezando entre as ênfases que as diversas produções e escolas literárias dedicaram à história da rainha depois de morta. Mas, no final dos oitocentos, outros aspectos passaram a ser focalizados e facetas inesperadas surgiram de dentro de uma história que se suporia haver esgotado todas as pos-sibilidades de surpreender.

Já havíamos dito no começo deste estudo que a formação do mito de Inês de Castro de certa forma lastreou a construção da identidade portuguesa, da autoimagem e personalidade da nacionalidade lusitana. Nesse sentido, o mito inesiano como que deu corpo e forma à “saudade portuguesa” e gerou atributos a tal sentimento identitário: esforço de vencer a morte, almejar a eternidade, entre outros. A partir das vanguardas do início dos novecentos, vamos assistir a alguns artistas procurando desconstruir o mito de Inês para de alguma maneira tocar, analisar e, quem saber questionar o núcleo da imagem do ser português.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Um dos exemplos mais bem realizados dessa possível desconstrução está no romance Adivinhas de Pedro e Inês (1983), da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís, nascida em 1922 e ainda viva. Trata-se de um dos talentos literários mais profícuos de Portugal. Sua produção – que inclui romances, peças teatrais, ensaios e biografias – demonstra uma instigante preocupação com aspectos his-tóricos e sociais da cultura de seu país.

Nas Adivinhas, um narrador de estatuto bem peculiar para um romance reali-za uma espécie de inquérito sobre a “verdade histórica” do episódio real de Inês de Castro. Como tal verdade se encontra vedada ao conhecimento objetivo, tanto pela falta de documentação e testemunhos fiéis quanto pela desconfiança sobre métodos e critérios da História enquanto disciplina científica, a narrativa vai tentando preencher as lacunas e inconsistências do relato conhecido, formu-lando assim uma outra possibilidade de configuração da própria história.

Narrador e leitor se unem em um empreendimento ao mesmo tempo crítico e criativo, procurando extrair das brechas da história e do questionamento do mito produzido pela literatura anterior uma outra história, talvez um novo mito, capaz de representar mais adequadamente a sociedade presente. É assim que do livro de Bessa-Luís surge uma outra imagem de Inês: não mais a indefesa amante, alie-nada das demandas políticas e intrigas palacianas, mas uma mulher arrojada, cuja ambição pelo poder pôs em xeque o status quo português:

Era preciso destruí-la e, se possível, substituí-la pelo mito. [...] Ao exaltar o amor de Pedro e Inês nesse quadro romântico da obra tumular de Alcobaça, dá-se-lhe uma satisfação simbólica, tornando-o assim inofensivo para a sociedade. (BESSA-LUÍS, 1983, p. 158)

Dessa forma, a historiografia oficial e o mito primevo estariam mancomu-nados no mesmo sentido de reduzir a personagem real de Inês à de uma moça gentil e indefesa, apontando assim para o papel social que as mu-lheres portuguesas deveriam aceitar e imitar na patriarcal sociedade lusitana. Quanta diferença, não?

Dom

ínio

púb

lico.

Dom

ínio

púb

lico.

O túmulo de Inês de Castro.

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Já 20 anos antes da publicação de Adivinhas, o escritor Herberto Helder lan-çava um livro de contos intitulado Os Passos em Volta (1963). Nele, o conto “Te-orema” retomava nossa conhecida história sob um prisma ainda mais inusita-do. Herberto Helder, nascido em Funchal, Ilha da Madeira, em 1930, é um dos mais celebrados poetas vivos em Portugal, dono de uma escrita hermética e ao mesmo tempo desafiadora. Em “Teorema”, o protagonista (personagem princi-pal) e narrador é Pero Coelho, um dos assassinos de Inês. A ação decorre duran-te a execução de Pero Coelho, a qual assume os aspectos de uma missa negra. Quando o rei Pedro I devora o coração do condenado, este passa a existir dentro do monarca: “Irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração.” (HELDER, 1975, p. 121)

Na verdade, ao contrário da descrição feita pela tradição, não há ódio entre os dois e seus atos parecem constituir um ritual religioso. O próprio executado assim explica a fantástica situação em que se encontrava:

Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender--me, dizendo que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. (HELDER, 1975, p. 117-118)

A lógica de Pero Coelho é implacável: caso ele não tivesse cometido aquele horrendo assassinato, todos os envolvidos seriam inevitavelmente esquecidos e o sublime amor de Pedro e Inês da mesma forma submergiria no silêncio. Do modo como aconteceu, os participantes daquela tragédia seriam imortalizados e, por meio da literatura, suas vidas poderiam ser oferecidas a cada era como alimento eucarístico: “O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração em geração” (HELDER, 1975, p. 121), da mesma forma que Pedro comia o coração do narrador assassino.

No fim das contas, a verdadeira heroína da história é a poesia, sendo que os desfechos trágicos ou desditosos são apenas motivações para que a palavra po-ética possa exercer o seu papel de eternizar tudo aquilo que toca.

O fato é que Inês de Castro hoje designa um volumoso conjunto de textos que trata das temáticas do amor, da morte, da saudade, da identidade portugue-sa, do mito, da mulher, entre outros, contando com grandes nomes da literatura portuguesa e de outras literaturas e artes que têm como referência a tradição europeia. Fica, portanto, o convite àqueles que se sensibilizaram com o episó-dio da que foi rainha depois de morta, e com as possibilidades críticas que sua releitura ou reescritura ainda permite, que leiam na íntegra os textos que foram analisados e procurem os outros muitos autores que se aventuram nesse tema.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Como foi trasladada Dona Ignez para o mosteiro de Alcobaça, e da morte del rei Dom Pedro

(LOPES, 2009. Adaptado)

Porque semelhante amor, qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Inês, rara-mente é achado em alguma pessoa, porém disseram os antigos que nenhum é tão verdadeiramente achado, como aquele cuja morte não tira da memória o grande espaço do tempo. E se algum disser que muitos foram já, que tanto e mais que ele amaram, assim como Adriana, e Dido, e outras que não nomea-mos, segundo se lê em suas epístolas, responde-se que não falamos em amores compostos, os quais alguns autores abastados de eloquência, e florescentes em bem ditar, ordenaram segundo lhes prouve, dizendo em nome de tais pessoas razões que nunca nenhuma delas cuidou; mas falamos daqueles amores que se contam e leem nas histórias, que seu fundamento têm sobre verdade.

Esse verdadeiro amor houve el-rei Dom Pedro a Dona Inês, como se dela namorou sendo casado e ainda infante, de guisa que, pero dela no começo perdesse vista e fala, sendo alongado, como ouvistes, que é o principal azo de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar recados, como em seu lugar tendes ouvido. Quanto depois trabalhou pela haver, e o que fez por sua morte, e quais justiças naqueles que nela foram culpados, indo contra seu juramento, bem é testemunho do que nós dizemos.

E sendo lembrado de lhe honrar seus ossos, pois lhe já mais fazer não podia, mandou fazer um moimento de alva pedra, todo mui sutilmente obrado, pondo elevada sobre a campa de cima a imagem dela, com coroa na cabeça, como se fora rainha. E este moimento mandou pôr no mosteiro de Alcobaça, não à entrada, onde jazem os reis, mas dentro na igreja, à mão direita, cerca da capela-mor.

E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde jazia, o mais honradamente que se fazer pode, cá ela vinha em umas andas,

Texto complementarNo último capítulo da Chronica de el-rei D. Pedro I, Fernão Lopes descreve a

cerimônia de translado dos restos mortais de Inês de Castro e o fim do reinado do rei D. Pedro.

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muito bem corrigidas para tal tempo, as quais traziam grandes cavaleiros, acompanhadas de grandes fidalgos, e muita outra gente, e donas, e donze-las e muita clerezia.

Pelo caminho estavam muitos homens com círios nas mãos, de tal guisa orde-nados, que sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre círios acesos; e assim chegaram até ao dito mosteiro, que eram dali 17 léguas, onde com muitas missas e grande solenidade foi posto seu corpo naquele moimento. E foi esta a mais honrada trasladação que até aquele tempo em Portugal fora vista.

Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal moimento, e também obrado, para si, e fê-lo pôr cerca do seu dela, para quando acontecesse de morrer o deitarem nele.

E estando el-rei em Estremoz, adoeceu de sua postremeira dor, e jazen-do doente, lembrou-se como, depois da morte de Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, ele fora certo que Diogo Lopes Pacheco não fora em culpa da morte de Dona Inês, e perdoou-lhe todo queixume que dele havia, e mandou que lhe entregassem todos seus bens: e assim o fez depois el-rei Dom Fernando, seu filho, que lhos mandou entregar todos, e lhe alçou a sentença, que el-rei seu padre contra ele passara, quanto com direito pode.

E mandou el-rei em seu testamento, que lhe tivessem em cada um ano, para sempre, no dito mosteiro, seis capelães que cantassem por ele cada dia uma missa oficiada, e saírem sobre ela com cruz e água benta. E el-rei Dom Fernando, seu filho, por se isto melhor cumprir, e se cantarem as ditas missas, deu depois ao dito mosteiro, em doação por sempre, o lugar que chamam as Paredes, termo de Leiria, com todas as rendas e senhorio que nele havia.

E deixou el-rei Dom Pedro, em seu testamento, certos legados, a saber: à infante Dona Beatriz, sua filha, para casamento, cem mil libras; e ao infante Dom João, seu filho, vinte mil libras; e ao infante Dom Diniz, outras vinte mil; e assim a outras pessoas.

E morreu el-rei Dom Pedro uma segunda-feira de madrugada, 18 dias de janeiro da era de 1405 anos, havendo dez anos e sete meses e vinte dias, que reinava, e 47 anos e nove meses e oito dias de sua idade. E mandou-se levar àquele mosteiro que dissemos, e lançar em seu moimento, que está junto com o de Dona Ignez.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

E porquanto o infante Dom Fernando, seu primogênito filho, não era então aí, foi el-rei detido e não levado logo, até que o infante veio; e à quarta--feira foi posto no moimento.

E diziam as gentes, que tais dez anos nunca houve em Portugal, como estes que reinara el-rei Dom Pedro.

Dicas de estudoPara que o estudante possa completar as informações sobre a apropriação da

história de Inês de Castro pela literatura e outras artes, sugerimos duas obras.

Sobre a literatura portuguesa:

SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro na Literatura Portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1984.

Sobre a literatura europeia:

SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. Lisboa: Edições 70, 1987.

Estudos literários1. Por trás da execução de Inês de Castro, pode-se detectar várias possíveis “ra-

zões de Estado” que teriam levado o rei Afonso IV a se decidir pela morte da dama galega. Comente as principais.

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

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2. De que forma o mito de Inês de Castro ajudou a construir a identidade por-tuguesa?

3. Além da grande qualidade artística do episódio de Inês de Castro em Os Lu-síadas, de Camões, qual o papel que seus versos exerceram na literatura por-tuguesa e na cultura ocidental?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

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O império português

Origens do império ultramarino português As tropas cristãs finalmente chegaram a Ourique. Era noite. Acamparam

e tentaram descansar. Sabiam que iriam enfrentar um grande contingente de mouros na manhã seguinte, mouros que tinham vindo de Sevilha e de Badajoz, juntando-se aos que já ali estavam, oriundos de Évora, de Beja, de Elvas.

As armas estavam todas preparadas: lanças, alfanges, adagas, todas de-vidamente afiadas. Os cavalos dos mouros estavam descansados e bem alimentados. Já os cavalos das tropas portuguesas estavam exaustos, assim como exaustos estavam os próprios soldados de Cristo e entre eles, seu líder, Afonso Henriques. Este, circunspeto, afastado de seus soldados, rezava para que tudo corresse bem no dia seguinte, ainda que soubesse de sua flagrante inferioridade numérica. Foi quando lhe apareceu um velho com barba e cabelos brancos. Sem entender de onde surgira aquela figura, Afonso Henriques perguntou-lhe:

— Quem tu és?

— Venho da parte de Jesus Cristo Nosso Senhor. Quando ouvires tocar os sinos da ermida onde vivo, deves sair do acampamento sozinho.

Dito isso, o velho desapareceu como por encanto.

Nas primeiras luzes do amanhecer, Afonso Henriques ouviu sinos toca-rem e, como o velho mandara, saiu sem testemunhas do acampamento.

Só, em meio à mata, teve uma esplêndida visão. Surgiu-lhe a figura de Cristo, rodeado de nuvens e anjos.

— Afonso, meu filho – disse Cristo –, confia em tua vitória amanhã. Ex-pulsa o infiel e leva alegria ao nosso povo. Amanhã, Afonso, serás rei.

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Em seguida, a visão se desfez no ar. Logo se seguiu a terrível batalha e a pe-quena tropa de Afonso Henriques venceu de forma inacreditável um imenso exército de mouros.

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lico.

O Milagre de Ourique, 1793. Domingos Sequeira.

Eis um dos mitos de origem de Portugal. A batalha acima descrita marca o nascimento daquele novo reino. É evidente que o único aspecto historicamente plausível é a vitória do rei Afonso Henriques. O restante, por sinal, passou a ser integrado à narrativa da batalha, em várias versões diferentes, apenas no século XIV. Todavia, hoje integra o imaginário acerca da origem de Portugal.

Vencida a batalha de Ourique contra os mouros em 1139, é somente com o Tratado de Zamora, em 1143, que se pode falar em reino de Portugal. Assim, o reino português surge no século XII, tendo Afonso Henriques (1109-1185) por seu primeiro rei.

Afonso era filho de Henrique de Borgonha (1066-1112), que ajudara Afonso VI (1039-1109), rei de Leão e Castela, a conquistar a Galícia. Em gratidão, o rei deu ao pai de Afonso Henriques o Condado Portucalense (que correspondia mais ou menos ao que hoje é o norte de Portugal) com a condição de lhe pres-tar vassalagem – isto é, fidelidade e tributos previstos no sistema feudal. Além disso, também lhe ofereceu em casamento D. Tareja de Leão (1080-1130), sua filha ilegítima.

O Condado Portucalense prestou vassalagem a D. Afonso VI até a morte de Henrique de Borgonha. Depois disso, seu filho Afonso Henriques decidiu opor-se

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à sua mãe D. Tareja e fazer-se rei. Tornou o condado um reino independente de Leão e Castela e continuou a combater os mouros, que ainda ocupavam boa parte da Península Ibérica. A batalha de Ourique, acima descrita misticamente, ocorreu em meio a esse processo. Após ser fundado o reino de Portugal, ainda aconteceram muitas batalhas contra os mouros, sendo que os portugueses con-quistaram o que hoje é o sul do país só no século seguinte.

Quanto ao nome Portugal, vale lembrar que Portucale era o nome da provín-cia romana fundada onde hoje é a cidade do Porto. O nome de Condado Por-tucalense só surgiu no século IX e a designação Portugal, como vimos, com a fundação do reino. Em meados do século XIII, portanto, a unidade territorial por-tuguesa já estava definida. Foi nesse momento que começou a se dar na Europa a passagem da sociedade medieval para o Estado moderno, isto é, a centraliza-ção do poder em torno da figura do rei e o esvaziamento do poder da nobreza, dos senhores feudais e do clero. Portugal é considerado por muitos historiadores como o primeiro Estado moderno da Europa – o que vale dizer que é o primeiro Estado moderno.

Ainda no século XIII, vale destacar a ação do rei D. Dinis (1261-1325) que, além de ser um grande trovador, criou a Universidade de Coimbra, primeira ins-tituição dessa natureza em Portugal, e decretou o português como língua oficial dos documentos do reino. Lembremos que até ali as línguas empregadas em Portugal eram o português (ou proto-português, como querem alguns), o latim, o galego-português, o moçárabe-lusitano e o árabe hispânico, sendo o latim a língua oficial dos documentos. O que D. Dinis fez foi, portanto, institucionalizar formal e politicamente a língua portuguesa. Além disso, tomou diversas medi-das de cunho administrativo e econômico que muito beneficiaram o reino.

A dinastia de Afonso Henriques, a de Borgonha, é apenas a primeira daquele reino, extinguindo-se em 1385, após um golpe de Estado contra o reinado de Beatriz de Portugal (1372-1410).

A nova dinastia, a de Avis, patrocinou os grandes descobrimentos. O pri-meiro rei da nova dinastia, D. João (1357-1433), governou de 1385 a 1433 e promoveu a descoberta das ilhas de Porto Santo, Madeira e Açores, passando a colonizar estas duas últimas. Promoveu ainda viagens para as Ilhas Canárias e foi sob seu reinado que os portugueses tomam Ceuta (1415), sua primeira possessão africana.

O rei seguinte, D. Duarte (1391-1438), esteve no trono apenas de 1433 a 1438. Foi autor de textos famosos da Literatura Portuguesa, como “A arte de

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bem cavalgar toda a cela” e “O leal conselheiro”, e também investiu na expansão marítima, em especial na costa africana.

É desse período a suposta Escola de Sagres, que desenvolvera técnicas sofis-ticadas de navegação. Todavia, a tal escola de fato não existiu com esse nome. O infante D. Henrique (1394-1460), irmão de D. Duarte, instalou-se em Sagres quando retornou da conquista de Ceuta e ali reuniu um grupo de especialistas ligados à navegação e criou o que então se designava de Tercena Naval, isto é, um arsenal de marinha, que mais tarde na historiografia recebeu o codinome de Escola de Sagres.

Os reis D. Afonso V (1432-1481) e D. João II (1455-1495) deram continuidade à política de expansão marítima e à colonização. Merece destaque D. João II, que governou de 1481 a 1495, pois entre seus navegadores está, por exemplo, Bartolomeu Dias (1450-1500), que percorreu toda a costa atlântica africana e conseguiu dobrar o Cabo da Boa-Esperança, chegando até o Oceano Índico. Foi isso que possibilitou a Vasco da Gama (1469-1524), já sob o reino de D. Manuel (1495-1521), chegar até Goa, na costa indiana, em 1498. Foram os go-vernos de D. Manuel e de D. João III (1502-1557) que viveram o apogeu do período dos descobrimentos.

O apogeu do império no século XV e XVICom D. Manuel, o comércio português na costa da África e da Ásia cresceu

vertiginosamente. Sendo os primeiros a conseguirem negociar com os reinos do Oriente sem ter que pagar o alto custo da rota por terra através do Oriente Médio, e podendo transportar muita mercadoria com baixo custo por conta dos avanços da engenharia de navegação, no início do século XVI os portugueses se transformaram nos grandes fornecedores de especiarias e produtos orientais para a Europa. Nessa altura, o Brasil não era nada atrativo, pois apenas iniciava o ciclo do pau-brasil.

A corte de D. Manuel foi rica e suntuosa. Com a contratação de artistas euro-peus de várias modalidades, chegou a se criar um estilo arquitetônico que levou o nome do rei: o estilo manuelino, espécie de gótico em que predominam os motivos náuticos e marítimos.

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Fachada do mosteiro dos Jerônimos.

O ápice dessa suntuosidade foi a embaixada que se enviou ao papa Leão X (1475-1521), com presentes de toda a sorte como, por exemplo, um elefante amestrado e um rinoceronte indiano.

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lico.

O rinoceronte conforme gravura da época.

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Também a corte de seu filho D. João III foi bastante luxuosa e cultivou forte-mente as artes. Destaca-se pela presença de vários escritores, a começar pelo dramaturgo Gil Vicente (1465-1536), que representou sua primeira peça, Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, em 1502, no quarto da rainha Maria de Aragão (1482-1517), quando do nascimento do seu primogênito D. João. Como o reinado de D. João III foi de 1521 a 1557, dele participaram Garcia de Resende (1470?-1536), Sá de Miranda (1481-1558), Bernardim Ribeiro (1482?-1552?), João de Barros (1496-1570), Luis Vaz de Camões (1524-1580), entre diversos outros escritores hoje canônicos da Literatura Portuguesa.

É importante lembrar que, nas artes e nas ciências, esse foi o momento do Renascimento. A vida e o conhecimento começavam a se laicizar, isto é, começa-vam a deixar de se pautar exclusivamente pelo calendário e os saberes religiosos, passando a se orientar por atividades não rituais e conhecimentos pragmáticos, que hoje chamamos de conhecimentos de base científica. Segundo os historiado-res da literatura António José Saraiva e Oscar Lopes:

O desenvolvimento do capitalismo comercial e de toda uma cultura ligada à sua experiência põe em causa a síntese doutrinária lentamente elaborada pelo clero das universidades nos séculos imediatamente anteriores, e um dos efeitos dessa situação é o alargamento da curiosidade a outros aspectos do patrimônio cultural antigo em que, contrariamente à Escolástica, se dignificassem as atividades civis, o saber prático ou especulativo sem diretrizes teológicas, o lucro e a operosidade mercantil, a inteligência e até o corpo humano, a vida terrena. Pouco a pouco o esquema teológico da Criação, Queda e Redenção serve de modelo a este outro: Luzes greco-romanas, Trevas “góticas” e monacais, Renascer da cultura antiga. Daqui a designação de Renascimento, que aliás só mais tarde se começou a usar explicitamente em relação ao Quattrocento (séc. XV italiano) e a uma parte (cuja marcação é problemática) do século XVI europeu. (SARAIVA; LOPES, 1979, p. 175)

É verdade que, antes do Renascimento, convencionou-se considerar o perío-do de Gil Vicente como o do Humanismo, que seria a base do movimento renas-centista, pois caracterizava-se pela importância dada ao conhecimento empíri-co e à experiência no processo de conhecimento da realidade, fundamentado na crença de que haveria um conjunto de valores morais e estéticos universais que seriam válidos para todo ser humano e estariam tanto nas Escrituras e nos dogmas da Igreja quanto na cultura profana da Antiguidade. Na prática, estava-se legitimando e reintroduzindo na ordem do dia o pensamento greco-romano de verve não escolástica (um pensamento não teocrático, com outras bases que não os dogmas do cristianismo), possibilitando assim o Renascimento. Esse novo repertório clássico chegou ao conhecimento dos europeus a partir da tradução de textos árabes que eram, por sua vez, traduções de textos clássicos gregos até então desconhecidos na Europa.

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A crônica real e os relatos de viagemUm dos aspectos interessantes da produção literária desse momento é a crô-

nica escrita sobre os reis e os relatos das viagens dos navegantes portugueses. Há uma grande massa de textos que retratam de diversos modos e perspecti-vas o período dos descobrimentos. Entre diversos outros, podemos citar como exemplos:

O Diário d � e Vasco da Gama;

Cartas � , de Afonso de Albuquerque (1445-1515);

Livro que Dá Relação do que Viu e Ouviu no Oriente � ..., de Duarte Barbosa (1492-1521);

Lendas da Índia � , de Gaspar Correia (c.1500-c.1561);

Décadas da Ásia, � de João de Barros;

História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses � , de Fer-não Lopes de Castanheda (1500-1559);

Peregrinação � , de Fernão Mendes Pinto (1509-1583);

Cartas � , do mesmo autor;

Crônica do Príncipe D. João � , de Damião de Góis (1502-1574);

Comentário da Gesta Portugu � esa, de Diogo de Teive (1514?-?).

Apenas pelos títulos dessas obras já podemos constatar que o foco prin-cipal do período das descobertas estava na Ásia: era a relação comercial e marítimo-militar com o Oriente que caracterizou as narrativas elaboradas nas cortes de D. Manuel e de D. João III. E isso não aconteceu só com as narrativas, já que, como sabemos, Os Lusíadas, obra maior do período, é um poema épico que aborda o mesmo tema dos textos acima, centrado na descoberta, por Vasco da Gama, do caminho marítimo para as Índias.

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Os Lusíadas e a perenidade do impérioO poema épico Os Lusíadas foi publicado em 1572, oito anos antes de seu autor,

Luís Vaz de Camões, morrer. Camões havia viajado por toda o Oriente, passado pelo Cabo das Tormentas no extremo sul da África, estado em Moçambique, em Goa, em Macau, e presenciado toda sorte de riqueza e de miséria. Em meio a essa longa viagem, que durou cerca de 14 anos, escreveu seu poema épico no intuito de enaltecer as descobertas portuguesas, mas também com a intenção de con-seguir algum benefício real que lhe auxiliasse na velhice, pois, apesar de fidalgo, provinha de uma família sem bens. Segundo alguns historiadores, ele conseguiu uma pensão real que não era das mais altas. Morre muito pobre, em 1580.

O seu livro narra em dez cantos, em versos decassílabos heroicos (versos de dez sílabas em que o acento recai na sexta e na décima), a viagem da descober-ta do caminho marítimo para o Oriente realizada por Vasco da Gama. Além da viagem do navegador, os versos de Camões narram a origem do reino português como, por exemplo, a batalha de Ourique anteriormente descrita:

A matutina luz, serena e fria,

As Estrelas do Polo já apartava,

Quando na Cruz o Filho de Maria,

Amostrando-se a Afonso, o animava.

Ele, adorando Quem lhe aparecia,

Na Fé todo inflamado assi gritava:

- “Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,

E não a mi, que creio o que podeis!”

Com tal milagre os ânimos da gente

Portuguesa inflamados, levantavam

Por seu Rei natural este excelente

Príncipe, que do peito tanto amavam;

E diante do exército potente

Dos imigos, gritando, o céu tocavam,

Dizendo em alta voz: - “Real, real,

Por Afonso, alto Rei de Portugal!” (CAMÕES, 1997, p. 88)

Camões também enaltece o surgimento da dinastia de Avis e depois todos os governadores da Índia Portuguesa. Enfim, o poema é um longo louvor a todas as descobertas e feitos marítimos portugueses.

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Camões perdeu o olho direito lutando em Marrocos.

Em outro nível da narrativa, divino e alegórico, há um concílio de deuses em que é discutido o direito de os portugueses alcançarem ou não os seus objetivos. Nessa disputa, temos de um lado Netuno (deus dos mares) e Baco (deus do vinho e da orgia) e, de outro, Júpiter (pai dos deuses), Vênus (deusa do amor) e Marte (deus da guerra), sendo os primeiros contra os portugueses e os últimos, aqueles que os protegem. Alegoricamente, os portugueses estão protegidos no amor e na guerra, além da predestinação da glória dada pelo próprio deus dos deuses, tendo por oposição apenas a fúria dos mares, o des-regramento e a indisciplina.

Além disso, na contramão de todos esses elogios há uma preocupação com o perigo que as descobertas representavam para o povo português, que seria movido por uma ganância desmedida. Tal crítica à empreitada marítima dos portugueses aparece na voz de um ancião, o Velho do Restelo, que ao ver os navios da frota de Gama partirem prevê para a pátria um futuro perigoso.

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O Velho do Restelo será sempre retomado na história cultural portuguesa, uma vez que o perigo por ele previsto se realizou e a glória do império marítimo acabou quase concomitantemente à publicação de Os Lusíadas em 1578, seis anos depois de o livro ser impresso, morria o jovem D. Sebastião, então rei de Portugal, a quem toda a epopeia tinha sido dedicada. Sem haver herdeiro direto e por causa de acordos aristocráticos, a coroa portuguesa acabou nas mãos do rei Felipe II, da Espanha. Assim, Portugal perdeu sua autonomia política, o que perdurou até 1640, quando um novo arranjo fez com que a coroa voltasse às mãos dos portugueses, já sob o reinado de uma nova dinastia – a de Bragança.

O império luso-brasileiroDepois desse episódio que pôs fim à proeminência de Portugal em relação ao

restante dos reinos europeus, o período que se seguiu não teve mais a mesma pujança, mas ainda permitiu à corte portuguesa viver com alguma suntuosida-de. O Brasil foi a fonte de suas grandes riquezas, em especial no século XVIII.

Ao ciclo do pau-brasil, que começara já no século XVI, seguiu-se o longo ciclo da cana-de-açúcar, também iniciado no século XVI e perdurando até o XVIII. Mas, o período mais rico foi o do ciclo do ouro, ou o ciclo da mineração, no século XVIII, permitindo à corte portuguesa novas extravagâncias.

Há que se lembrar, entretanto, que na colônia brasileira houve marcante pre-sença dos jesuítas, que cumpriram forte papel social e cultural. Hoje, quando se estuda a literatura colonial brasileira, são incontornáveis as figuras dos padres Manuel da Nóbrega (1517-1570), José de Anchieta (1534-1597) e Antônio Vieira (1608-1697), para ficar apenas entre os mais famosos.

Na contramão dessa literatura religiosa, temos Gregório de Matos (1636-1696), o Boca do Inferno, que assim retratava, por exemplo, a Igreja da Sé, em Salvador:

A nossa Sé da Bahia,

com ser um mapa de festas,

é um presépio de bestas,

se não for estrebaria:

várias bestas cada dia

vemos, que o sino congrega,

Caveira mula galega,

o Deão burrinha parda,

Pereira besta de albarda,

tudo para a Sé se agrega. (GUERRA, 1995, p. 220)Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A,

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O fato é que tanto a Igreja quanto o reino português investiram significativa-mente na colônia brasileira nos séculos XVII e XVIII. Com isso, a coroa portuguesa deixava cada vez mais à própria sorte os espaços coloniais africanos e asiáticos, tão valorizados no século XVI.

Esse processo teve seu ápice no início do século XIX, quando as tropas de Na-poleão Bonaparte (1769-1821) invadiram Portugal. A Inglaterra, maior inimiga de Napoleão e grande credora de Portugal, propôs e patrocinou a fuga da famí-lia real portuguesa para o Brasil. Desse modo, os ingleses puderam, na prática, tomar Portugal e barrar a expansão napoleônica.

Assim, em 1808, toda a corte portuguesa se mudou de Lisboa para o Rio de Janeiro e ali permaneceu até 1821, quando enfim D. João VI (1767-1826) retor-nou a Portugal. Nesse período, o Brasil passou a ser centro do império português, que ganhou a nova designação: Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

O retorno da corte para Lisboa colocava o Brasil novamente na condição de colônia, o que não era aceito pela elite brasileira, que por isso proclamou a inde-pendência. Foi um grande golpe para a economia portuguesa, que precisou se voltar novamente para as colônias africanas e asiáticas.

O neo-colonialismoNo decorrer do século XIX, Portugal viveu um forte período de instabilidade,

pois, após a morte de D. João VI, houve uma guerra civil envolvendo os irmãos D. Miguel e D. Pedro IV (ou D. Pedro I do Brasil). Quem ganhou a disputa foi D. Pedro, que instaurou uma Monarquia Constitucional em Portugal. A partir de então houve uma sistemática tentativa de fazer da colônia de Angola um novo Brasil. No entanto, o reino estava muito endividado, tendo ainda como seu maior credor a Inglaterra.

Em 1885, foi realizada uma conferência em Berlim para definir que países eu-ropeus tinham direitos reais sobre as regiões africanas. Portugal reivindicou toda a região existente entre Moçambique e Angola, o que foi referendado pela confe-rência. A Inglaterra, entretanto, não aceitou tal decisão, pois tinha interesses em parte desses territórios. Diante da insistência do governo português em tal pro-posta, a Inglaterra apresenta um ultimatum, em 11 de janeiro de 1890, para que Portugal desistisse de sua pretensão, ou então à força militar. A coroa portuguesa foi obrigada a abrir mão de seus intentos, com alto custo político. Houve uma comoção geral entre os portugueses e uma forte reprovação do que foi entendi-do como “covardia” da corte portuguesa. Após esse episódio, o republicanismo ganhou mais força em Portugal e em 1908, o rei D. Carlos (1863-1908) e seu filho foram mortos. Em 1910, foi proclamada a República.

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.No entanto, o novo modelo político republicano sofreu grande instabilidade

nos primeiros anos e assim entrou em cena a figura que marcou todo o século XX em Portugal: António de Oliveira Salazar (1889-1970), que em 1933 criou o Estado Novo, instituindo um governo ditatorial. A política salazarista foi marcada pelo neo-colonialismo, que já tivera início na Europa com a partilha da África, mas então ganhava contornos mais claros, com uma efetiva ocupação dos terri-tórios africanos.

As colônias asiáticas permaneceram sem qualquer investimento, continuan-do dessa maneira até a perda do vínculo político com tais localidades. Foi a África que passou a interessar o governo português e a ideia de um grande, tradicional e forte império português foi cultivada pelo governo salazarista, que promoveu estudos e comemorações em torno do tema. As minas de diamante descobertas

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em Angola na década de 1960 reavivaram o sonho de fazer daquela colônia um novo Brasil.

No entanto, tal projeto colonialista sofreu oposição tanto em Portugal quanto nas colônias africanas. Em Portugal, os neo-realistas, com base em teorias marxis-tas, elaboraram uma fundamentada crítica ao regime salazarista. Nomes como Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), Alves Redol (1911-1969), Carlos de Oliveira (1921-1981), Fernando Namora (1919-1989), José Cardoso Pires (1925-1998), Urbano Tavares Rodrigues (1923-) e Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999) fize-ram uma firme oposição à ditadura portuguesa.

Vejamos, por exemplo, um trecho do romance Gaibéus (1939), de Alves Redol, que retrata a vida de trabalhadores do tipo que no Brasil chamamos de boias-frias (lá chamados de gaibéus), isto é, trabalhadores contratados para serviços espe-cíficos, durante uma temporada. Em Gaibéus, eles trabalham na capinagem de várzeas.

– Vai-te lá. E na me faças essa cara que o medo não me conhece. Faltas de respeito é que não!...

O ceifeiro rebelde queria abrir o coração a todos os homens, mas alguns só lhe pediam ódios e ele tinha de os odiar tanto como amava os outros.

– Faltas de respeito é que não!...

Os capatazes no arrozal já tinham descoberto o patrão Agostinho pelo carril acima, e os remoques não cessavam. A nova correu pelas filas dos ceifeiros, de canteiro para canteiro. As cabeças iam-se erguendo acima do manto de panículas, percorrendo o caminho.

E viam-no vir num trote curto, firme na sela, mão dextra apoiada no Quadril, ao jeito dos campinos.

Os braços quiseram ter outros vigores para que as foices andassem mais ligeiras e o ritmo da ceifa se apressasse. Mas, o ar abafava mais, sempre mais e os alugados estavam invadidos de um abatimento que os vencia.

– Eh, gente morta!... O patrão vem aí e com um trabalho destes há-de dizer das boas.

– Vamos lá com isto mais safo!

– Eh, gente!...

Era preciso mais pressa – o patrão ali na tardaria e eles não tinham alentos para ceifar.

– Vá, gente!... Eh, gente!...

As éguas nas eiras não eram tão açoitadas. (ALVES REDOL, 1983, p. 146)

A exploração do trabalho aparece aqui de modo denso e cruel. Os trabalha-dores, responsáveis por uma atividade já em si extenuante, são tratados abaixo de animais. A opressão patronal é colocada em evidência, revelando a perspec-tiva marxista do escritor. Por analogia, poderíamos pensar que a relação entre trabalhador e patrão seria a mesma que a relação entre cidadão português e governo ditatorial.

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Nas colônias, além da resistência política realizada por partidos clandestinos de esquerda, como a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) ou o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), temos movimentos literários e culturais como, por exemplo, Vamos Descobrir Angola. Partindo da iniciativa dos escritores Agostinho Neto (1922-1979), Viriato da Cruz (1928-1973), António Ja-cinto (1924-1991), Mário António (1934-1989), entre outros, o movimento pro-curava definir uma literatura e uma cultura eminentemente angolanas.

Em vista da guerra fria entre Estados Unidos e Rússia, que caracterizou o período após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o pensamento de es-querda colocou do mesmo lado neorrealistas e resistência colonial, fazendo com que todos fossem contra o neocolonialismo salazarista. O fato é que os escritores das colônias tiveram nos neorrealistas portugueses uma de suas referências primordiais.

Salazar morre em 1970, mas seu regime perdurou até 1974, quando aconte-ceu a Revolução dos Cravos. Na sequência, as colônias africanas proclamaram suas respectivas independências. Portugal deixou de ser uma nação que abarca os cinco continentes, acabou circunscrita a suas fronteiras europeias, além das ilhas da Madeira e dos Açores, mantendo como possessão apenas a cidade de Macau, na China, que no ano de 1999 passou a reintegrar o território chinês.

O fim do impérioCom o fim político do império colonial e o ingresso de Portugal na União

Europeia, o imaginário português sofreu grandes transformações, pois as novas gerações passaram mais do que nunca a ter na identidade europeia uma identi-dade concorrente com a portuguesa.

No entanto, a grandeza de Portugal, que um dia foi favorecida pela proteção de Cristo e pelos deuses greco-romanos, permanece no imaginário português em razão da presença da língua portuguesa em várias partes do globo. A par do império político e econômico, construiu-se um império linguístico, que faz do português a sexta língua mais falada no mundo – depois do mandarim, do inglês, do espanhol, do bengali e do hindi. Portanto, o imaginário imperialis-ta ainda sobrevive de forma mais confortável para os portugueses, porque está livre da violência e da exploração que sempre o caracterizou.

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Como el-rei mandou Vasco da Gama ao descobrimento da Índia

(BARROS, s.d., p. 2-4)

Como el-rei dom Manuel, no segundo ano do seu reinado, mandou Vasco da Gama com quatro velas ao descobrimento da Índia.

Falecido el-rei dom João, sem legítimo filho que o sucedesse no reino, foi alevantado por rei (segundo ele deixará o seu testamento) o duque de Beja, dom Manuel, seu primo co-irmão, filho do infante dom Fernando, irmão de el-rei dom Afonso; a quem por legítima sucessão era devida esta real heran-ça, da qual recebeu posse pelo cetro dela, que lhe foi entregue em Alcácer do Sal, a 27 dias de outubro do ano de nossa redenção de 1495; sendo em idade de 26 anos, 4 meses e 25 dias (como mui particularmente escrevemos em outra nossa parte intitulada Europa, e ali em sua própria crônica).

E porque, com estes reinos e senhorios, também herdava o prossegui-mento de tão alta empresa como seus antecessores tinham tomado, que era o descobrimento do Oriente por esse nosso mar oceano, que tanta indústria, tanto trabalho, e despesa, por discurso de 75 anos tinha custado, quis logo, no primeiro ano de seu reinado, mostrar quanto desejo tinha de acrescentar à coroa deste reino novos títulos sobre o senhorio de Guiné, que, por razão deste descobrimento, el-rei dom Joan, seu primo, tomou, como posse da es-perança de outros maiores estados que por esta via estavam por descobrir. Sobre o qual caso, no ano seguinte de 1496, estando em Montemor-o-Novo, teve alguns gerais conselhos: em que houve muitos e diferentes votos, os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Porque, além de trazer con-sigo muitas obrigações por ser estado mui remoto para poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino que ficaria ele sem as necessá-rias para sua conservação. Quando mais que sendo descoberta, podia cobrar este reino novos competidores, do qual caso já tinham experiência, no que se moveu entre el-rei dom Joan e el-rei dom Fernando de Castela, sobre o descobrimento das Antilhas, chegando a tanto, que vieram repartir o mundo em duas partes iguais para o poder descobrir e conquistar. E pois desejo de

Texto complementar

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estados não sabidos, movia já esta repartição, não tendo mais ante os olhos que esperança deles e algumas amostras do que se tirava do bárbaro Guiné, que seria vindo a este reino quanto se dizia daquelas partes orientais.

Porém, a estas razões houve outras em contrário que, por serem confor-mes ao desejo de el-rei, lhe foram mais aceites. E as principais que o move-ram, foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o infante dom Fernando, seu pai ter trabalhado neste descobrimento, quando por seu mandado se descobriu às ilhas de Cabo Verde, e mais por singular afeição que tinha à memória das cousas do infante dom Henrique, seu tio, que fora o autor do novo título do senhorio de Guiné que este reino houve, sendo propriedade mui proveitosa sem custo de armas e outras despesas que têm muito menores estados do que ele era. Dando por razão final, aqueles que punham os inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus, em cujas mãos ele punha este caso, daria os meios que convinham à bem do estado do reino.

Finalmente el-rei assentou de prosseguir neste descobrimento, e depois, estando em Estremoz, declarou a Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, por capitão-mor das velas que havia de mandar a ele, assim pela confiança que tinha de sua pessoa como por ter ação nesta ida, cá, segundo se dizia, esta-vam da Gama, seu pai já defunto, estava ordenado para fazer esta viagem em vida de el-rei dom Joan. O qual, depois que Bartolomeu Dias veio do descobrimento do cabo da Boa Esperança, tinha mandado cortar a madeira para os navios desta viagem, por a qual razão el-rei dom Manuel mandou ao mesmo Bartolomeu Dias que tivesse cuidado de os mandar acabar segundo ele sabia que convinha, para sofrer a fúria dos mares daquele grão cabo de Boa Esperança, que na opinião dos mareantes começava criar outra fábula de perigos, como antigamente fora a do cabo Bojador, de que no princípio falamos. E assim, pelo trabalho de Bartolomeu Dias levou ao apercebimento destes navios como para ir acompanhado Vasco da Gama até o por na pa-ragem que lhe era necessária a sua derrota, el-rei lhe deu a capitania de um dos navios que ordinariamente iam à cidade de São Jorge da Mina. E sendo já no ano de 1497, em que a frota para esta viagem estava de todo prestes, mandou el-rei, estando em Montemor-o-Novo, chamar Vasco da Gama e aos outros capitães que haviam de ir a sua companhia, os quais eram Paulo da Gama, seu irmão, e Nicolau Coelho, ambos pessoas de quem el-rei confiava este cargo. E posto que por algumas vezes lhe tivesse dito sua atenção acerca

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desta viagem, e disso lhe tinha mandado fazer sua instrução, pela novidade da empresa que levava, quis usar com ele da solenidade que convém a tais casos, fazendo esta fala pública, a ele e aos outros capitães, perante algumas pessoas notáveis que eram presentes, e para isso chamadas:

“Depois que aprouve a Nosso Senhor que eu recebesse o cetro desta real herança de Portugal, mediante a sua graça, assi por haver a benção de meus avós de quem a eu herdei, os quais com gloriosos feitos e vitórias que houve-ram de seus inimigos a tem acrescentado por ajuda de tão leais vassalos e ca-valeiros como foram aqueles donde vós vindes, como por causa de agalardo-ar a natural lealdade e amor com que todos me servis, a mais principal cousa que trago na memória, depois do cuidado de vos reger e governa em paz e justiça, é como poderei acrescentar o patrimônio deste meu reino, para que mais liberalmente possa distribuir por cada um o galardão de seus serviços. E considerando eu por muitas vezes qual seria a mais proveitosa e honrada empresa e digna de maior gloria que podia tomar para conseguir esta minha tenção, pois, louvado Deus, destas partes da Europa em as de África a poder de ferro, temos lançado os mouros, e lá tomando os principais lugares dos portos do reino de Fez que é a nossa conquista, achou que nenhuma outra é mais conveniente a este meu reino (como algumas vezes convosco tenho consultado) que o descobrimento da Índia e daquelas terras orientais. Em as quais partes, pero que sejam mui remotas da Igreja Romana, espero na pie-dade de vós que não somente a fé de nosso Senhor Jesus Cristo seu filho seja por nossa administração publicada e recebida, com que ganharemos galar-dão ante ele, fama e louvor acerca dos homens, mas ainda reinos e novos estados com muitas riquezas vindicada por armas das mãos dos bárbaros, dos quais meus avós com a ajuda, e serviço dos vossos e vosso, tem conquis-tado este meu reino de Portugal, e acrescentado à coroa dele. Porque, se da costa da Etiópia, que quase de caminho é descoberta, este meu reino tem adquirido novos títulos, novos proveitos e renda, que se pode esperar indo mais adiante com este descobrimento, se não podermos conseguir aquelas orientais riquezas tão celebradas dos antigos escritores, parte das quais por comércio tem feito tamanhas potências como são Veneza, Gênova, Florença e outras mui grandes comunidades de Itália. Assi que, consideradas todas estas cousas de que temos experiência, e também como era ingratidão a Deus enjeitar o que nos tão favoravelmente oferece, e injuria àqueles prínci-pes de louvada memória de quem eu herdei este descobrimento, e ofensa a vós outros que nisso fostes, descuidar-me eu dele por muito tempo; mandei

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armar quatro velas que (como sabeis) em Lisboa estão de todos prestes para servir esta viagem de boa esperança. E tendo eu na memória como Vasco da Gama, que está presente, em todas cousas que lhe de meu serviço foram entregues e encomendadas, deu boa conta de si, eu o tenho escolhido para esta ida como leal vassalo e esforçado cavaleiro, merecedor de tão honrada empresa. A qual espero que lhe Nosso Senhor deixe acabar, e nela a ele e a mim faça tais serviços com que o seu galardão fique por memória nele e naqueles que o ajudarem nos trabalhos desta viagem, porque, com esta confiança, pela experiência que tenho de todos, eu os escolhi por seus aju-dadores para em todo o que tocar a meu serviço lhe obedecerem. E eu, Vasco da Gama, vo-los encomendo, e a eles a vós, e juntamente a todos a paz e con-córdia: a qual é tão poderosa que vence e passa todos perigos e trabalhos e os maiores da vida faz leves de sofrer, quanto mais os deste caminho que espero em Deus serem menores que os passados, e que por vós este meu reino consiga o fruto deles.”

Acabando el-rei de propor estas palavras, Vasco da Gama e todas as no-táveis pessoas lhe beijaram a mão: assi pela mercê que fazia a ele como ao reino, em mandar a este descobrimento continuado por tantos anos que já era feito herança dele.Tornada a casa ao silêncio que tinha antes deste ato de gratificação, assentou-se Vasco da Gama em giolhos ante el-rei, e foi trazida uma bandeira de seda com uma cruz no meio das da ordem da cavalaria de Cristo, de que el-rei era governador e perpétuo administrador, a qual, esten-dendo o escrivão da puridade entre os braços em modo de mensagem, disse Vasco da Gama em alta voz estas palavras:

“Eu Vasco da Gama, que ora por mandado de vós, mui alto e muito po-deroso rei, meu senhor, vou descobrir os mares e terra do oriente da Índia, juro em o sinal desta cruz, em que ponho as mãos que por serviço de Deus e vosso, eu a ponha hasteada e não dobrada, ante a vista de mouros, gentios, e de todo gênero de povo onde eu for, e que por todos os perigos de água, fogo, e ferro, sempre a guarde e defenda até à morte. E assi juro que na exe-cução e obra deste descobrimento que vós, meu rei e senhor, me mandais fazer, com toda fé, lealdade, vigia, e diligência eu vos sirva guardando e cum-prindo vossos regimentos que para isso me forem dados, até tornar onde ora estou ante a presença de vossa real alteza, mediante a graça de Deus em cujo serviço me enviais”.

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O império português

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Feita esta mensagem, foi-lhe entregue a mesma bandeira, e um rendi-mento em que se continha o que havia de fazer na viagem, e algumas cartas para os príncipes e reis a que propriamente era enviado, assi como ao Preste João das Índias, tão nomeado neste reino e a el-rei de Calicute, com as mais informações e avisos que el-rei dom João tinha havido daquelas partes se-gundo já dissemos. Recebidas as quais cousas el-rei o expediu; e ele se veio a Lisboa com outros capitães.

Dicas de estudoFilme

Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1994), dirigido por Carla Camuratti, com Marieta Severo no papel de Carlota Joaquina e Marco Nanini no papel de D. João VI. É uma sátira muito divertida sobre a presença da coroa portuguesa no Brasil.

Livro

BOXER, Charles Ralph. O Império Marítimo Português: 1415-1825. Lisboa: Edi-ções 70, 1969.

Aqueles que desejarem se aprofundar em seus estudos devem ler este que é um dos melhores estudos já publicados sobre o assunto.

Estudos literários1. Quando e como se deu o apogeu do império português?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

2. O que é narrado no poema épico Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões?

3. Que movimento literário fez forte oposição ao salazarismo? Por que torna-ram-se referência para os escritores das colônias?

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O império português

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A gênese do mito de D. Sebastião

Dom

ínio

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lico.

Folha de rosto da edição de 1809 das Trovas do Bandarra.

As profecias que antecedem o mitoCom uma vela na mão, caminhando cabisbaixo, Antônio Gonçalves

Annes Bandarra é mais um que compõe uma imensa fila de homens e mulheres com velas na mão, considerados infiéis pela Santa Igreja. Esta-mos em 23 de outubro de 1541, em Lisboa, em meio a um auto-de-fé pro-movido, a cerimônia pública em que eram proclamadas e também exe-cutadas as sentenças da Santa Inquisição. Muitos dos que ali estão serão queimados vivos em fogueiras. Caso admitam sua culpa e peçam perdão, poderão ter o privilégio de ser asfixiados pelos carrascos antes de o fogo ser aceso. Bandarra, felizmente, só precisa carregar sua vela e acompa-nhar todo o auto-de-fé, pois sua culpa foi considerada amena: escrevera algumas trovas de teor messiânico que envolviam lugares sagrados para a santa igreja e isso, segundo aquela instituição, comprometia sua fideli-dade à fé cristã.

Terminado o auto, Bandarra voltou para Trancoso, sua aldeia de origem, e retomou sua atividade de sapateiro. Alguns anos depois, em 1545 ou 1556, não se sabe ao certo, morreu. Suas trovas, no entanto, permanecem

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

vivas até hoje e cumpriram na história de Portugal um papel certamente jamais imaginado pelo sapateiro de Trancoso.

Em seus versos, Bandarra profetizava a vinda de um rei que ganharia a simpa-tia de todos os outros reis, uma vez que estes ficariam felizes em fazer dele seu imperador. Sua missão seria a de expulsar definitivamente os mouros das terras cristãs. Leia abaixo as estrofes 70, 71, 72 e 75 de suas trovas.

Portugal tem a bandeiraCom cinco Quinas no meio,E segundo vejo, e creio,Este é a cabeceira,E porá sua cimeira,Que em Calvário lhe foi dada,E será Rei de manadaQue vem de longa carreira.

Este Rei tem tal nobreza,Qual eu nunca vi em Rei:Este guarda bem a leiDa justiça, e da grandeza.Senhoreia Sua altezaTodos os portos, e viagens,Porque é Rei das passagensDo mar, e sua riqueza

Este Rei tão excelente,De quem tomei minha teima,Não é de casa Goleima, Mas de Reis primo e parente.Vem de mui alta sementeDe todos quatro costados.De Levante até ao Poente.Todos Reis de primos grados.

[...]

Já o Leão é expertoMui alerto.Já acordou, anda caminho.Tirará cedo do ninhoO porco, é mui certo.Fugirá para o Deserto.Do Leão, o seu bramidoDemonstra que vai feridoDesse bom Rei Encoberto.(BANDARRA apud QUADROS, 2001, p. 25-26)

As trovas ainda profetizam que o novo monarca conquistará toda a África. A designação de rei encoberto se faz porque a sua identidade ainda precisa ser revelada, o que transforma as trovas em uma espécie de esfinge, de charada que é preciso decifrar para se saber quem seria, de fato, o rei vindouro.

Mas podemos nos perguntar de onde Bandarra tirou tais profecias. Ele mesmo nos responde nas duas últimas trovas do “Sonho terceiro”:

Muitos podem responder

e dizer:

Com que prova o sapateiro

fazer isto verdadeiro,

ou como isto pode ser?

Logo quero responder,

sem me deter:

“Se lerdes as profecias

de Daniel e Jeremias,

por Esdras o podeis ver”. (BANDARRA apud AZEVEDO, 1984, p. 11)

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A gênese do mito de D. Sebastião

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Portanto, toda sua profecia está fundamentada nas escrituras sagradas (a Bíblia), o que dava grande credibilidade aos seus escritos, uma vez que naquela altura a Igreja desfrutava grande força em todas as instâncias e junto aos reinos. A credibilidade das escrituras foi, por sinal, o que colocou Bandarra, como vimos, de vela na mão em um auto-de-fé, pois o sapateiro em algum nível aventurou-se onde não devia, já que interpretar tais textos era tarefa exclusiva dos sacerdotes, segundo a Igreja de Roma.

O fato é que as profecias de Bandarra foram retomadas sistematicamente no decorrer da história literária de Portugal e se ligaram de modo indelével à figura de D. Sebastião, gerando o mito sebastianista.

O mitoO rei D. Sebastião (1554-1578) foi o

último rei da dinastia de Avis-Beja. Sua his-tória é relativamente simples: único filho de D. João Manuel, que morrera antes mesmo de o filho nascer, tornou-se rei com apenas três anos de idade, tendo sua avó e um tio assumido a regência do trono enquanto ele era ainda uma criança. Cresceu com o estig-ma de ser o único a poder perpetuar a sua dinastia e, em função disso, ganhou o codi-nome de o Desejado.

Os reis que antecederam seu pai, D. Manuel e D. João III, portanto seu avô e seu bisavô, reinaram no período áureo dos descobrimentos, quando Vasco da Gama desvendou o caminho marítimo para as Índias, os portugueses chegaram ao Brasil, a China e ao Japão. Enfim, os seus antepassados diretos viveram reina-dos de glória e fartura.

Quando finalmente – em 1568, aos 14 anos de idade – D. Sebastião assumiu o trono, a situação política e econômica de Portugal não era mais a mesma: o co-mércio marítimo com a África e com o Oriente já começava a sofrer com o cons-tante ataque de piratas e com uma incipiente concorrência de outras nações eu-ropeias, como a Espanha, a Inglaterra e a França, que também investiam pesado nas técnicas de navegação.

Dom

ínio

púb

lico.

D. Sebastião, rei de Portugal.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Particularmente, D. Sebastião era muito ligado à Igreja de Roma. Sob a influ-ência de seu aio Aleixo de Meneses e de seu mestre, o padre Luis Gonçalves da Câmara, incorporou o espírito da Contrarreforma que grassava após o Concílio de Trento (1545-1563). Via nos hereges o maior mal para o mundo cristão e, portan-to, para o progresso do reino português. Tinha como principal projeto político o combate aos mouros, em especial àqueles que se encontravam no norte da África, do outro lado do mar Mediterrâneo. Nesse momento, os portugueses manti-nham algumas possessões na costa africana, como Ceuta (conquistada em 1415) ou Tanger (tomada em 1471), mas haviam perdido, entre outras, Alcácer Ceguer (1549) e Arzila (1550), e perderiam Mazagão em 1569. É bom lembrar que o com-bate aos muçulmanos na África não tinha só motivação religiosa, já que estava ligado também aos avanços turcos e árabes no oceano Índico, que colocavam em causa a presença portuguesa na Índia: garantir as posições na costa norte- -africana era uma forma de compensar as possíveis perdas no Índico.

D. Sebastião concebeu uma grande expedição que em 1578 enfrentou os exércitos muçulmanos em Marrocos, mais especificamente em Alcácer Quibir, sofrendo estrondosa derrota. Nessa batalha, morreu o jovem rei D. Sebastião, aos 24 anos de idade. Seu tio, o cardeal Henrique de Évora (1512-1580), assumiu o trono, mas não pôde permanecer no posto e, na lógica do processo sucessó-rio, a coroa foi entregue ao rei da Espanha, D. Filipe II (1527-1598), e Portugal, portanto, perdia sua autonomia de Estado e passava a fazer parte do reino espa-nhol. Tal situação perdurou até que em 1640, a partir de um golpe de Estado, os portugueses conseguiram reaver sua autonomia e colocar no trono uma nova dinastia, a dos Braganças, na figura de D. João IV, duque de Bragança.

D. Sebastião foi, portanto, o último rei antes do período de 60 anos em que, com sua autonomia perdida, Portugal esteve sob domínio da Espanha. Segundo a tradição, seu corpo não foi encontrado depois da batalha de Alcácer Quibir, o que passou a ser motivo de especulação popular. Hoje, qualquer um pode visitar seu túmulo no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, mas muitos ainda dizem que o corpo ali sepultado não é o de D. Sebastião. Porém, o que interessa saber é que, nos anos que se seguiram à batalha, surgiram boatos de que ele não tinha morri-do e que voltaria para restabelecer a autonomia portuguesa. É desse modo que a história do suposto desaparecimento desse rei se agrega às profecias que Ban-darra fizera anos antes. D. Sebastião passa a ser o rei de que falava o sapateiro de Trancoso, isto é, o Encoberto, aquele que viria para salvar a pátria portuguesa do jugo espanhol, que passava o ocupar o lugar do mouro dos textos de Bandarra.

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Além do codinome de Desejado, agora D. Sebastião também passava a ser considerado o Encoberto.

O quinto império e a deposição de D. SebastiãoApós os 60 anos de perda de autonomia (anos que ficaram conhecidos como

período Filipino em razão de os reis da Espanha dessa época terem sempre o mesmo nome de Filipe), Portugal retomou sua identidade pátria na figura de João IV (1604-1656), que reinou de 1640 até sua morte, em 1656. Sua primeira atitude foi reorganizar as forças militares e reforçar as fronteiras, além de atuar diploma-ticamente no intuito de se fazer reconhecer junto às cortes da Europa. Também procurou negociar acordos financeiros e militares, bem como retomar as rédeas dos espaços coloniais na Ásia, África e América. Ao lado do esforço de recolocar em suas mãos o destino do reino, cumpria a tarefa de se fazer legitimar no plano das cortes. Nesse esforço, muitos daqueles que o apoiaram passaram a ver em sua figura o novo Encoberto, depondo D. Sebastião desse trono simbólico.

É nesse contexto messiânico que, após a morte de D. João IV, será esperada sua ressurreição. Na obra do padre Antônio Vieira intitulada De Profecia e Inquisi-ção, na parte II das “Profecias”, subintitulada “Esperanças de Portugal, quinto im-pério do mundo, primeira e segunda vida de el-rei D. João o quarto. Escritas por Gonsalianes Bandarra, e comentadas pelo padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus, e remetidas pelo dito ao bispo do Japão, o Padre André Fernandes”, assim se diz:

Leiam os curiosos todas as profecias do Bandarra, assim as que contêm os sucessos já passados, como as que prometem os futuros, e em todas elas não acharão diferença individuante, sinal ou qualidade pessoal alguma de monarca profetizado, mais que estas que aqui fielmente temos referido, as quais todas são tão próprias da pessoa d’el-rei D. João o quarto, e lhe quadram todas tão naturalmente, e sem violência, que bem se está vendo que a ele tinha diante dos olhos, e não a outro, quem com cores tão vivas, e tão suas o retratava. Com que fica evidentemente mostrado e demonstrado, que o senhor rei D. João o quarto que está na sepultura, é o rei fatal, de que em todas as suas profecias fala Bandarra, assim das que já se cumpriram, como das que hão de suceder ainda. E este mesmo rei está hoje morto e sepultado, e não é amor e saudade, senão razão e obrigação do entendimento, crer e esperar que há de ressuscitar. (VIEIRA, 2009)

O que temos aqui é uma clara interpretação das profecias de Bandarra não mais associadas a D. Sebastião e sim a D. João IV. Vieira será um dos grandes de-fensores da ideia de que seria D. João IV e não D. Sebastião que retornaria para instituir o quinto império. Este seria o último dos impérios na terra antes do juízo

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final, um império cristão que teria em Portugal seu cerne e na figura de D. João IV, seu rei. E assim argumenta, no mesmo texto acima citado, contra a hipótese de ser D. Sebastião o rei encoberto:

E já que falamos ou tocamos nestas velhices que tanto duram, só digo a vossa senhoria que o Bandarra não falou uma só palavra em el-rei D. Sebastião, antes todas as suas desfazem esta esperança; porque o rei que descreve é todo composto de propriedades contrárias que implicam totalmente com el-rei D. Sebastião, e senão façamos outra individuação às avessas da passada.

El-rei de que tratamos chama-lhe Bandarra, rei novo: el-rei D. Sebastião é rei tão velho que nascido de três anos começou a ser rei. Diz Bandarra que o seu nome é João. El-Rei D. Sebastião tem outro nome muito diferente. Este rei chama-lhe Bandarra infante: el-rei D. Sebastião nunca foi infante, porque nasceu príncipe. Este rei diz Bandarra que é bem andante e feliz: el-rei D. Sebastião infelicíssimo, e a causa de todas as nossas infelicidades. A este diz Bandarra saia, saia: a el-rei D. Sebastião dizia todo o povo e reino não saia, não saia. Este rei diz Bandarra que não é de casta goleima ou da casa de Áustria: el-rei D. Sebastião tinha todo o sangue de Carlos V. Este rei diz Bandarra que é só primo e parente de reis: el-rei D. Sebastião era neto de reis por seus pais, e de imperadores por sua mãe. Este rei diz Bandarra, que tem um irmão bom capitão: el-rei D. Sebastião nem teve, e não pode ter irmão; porque nem o príncipe D. João, seu pai, nem a princesa D. Joana, sua mãe, tiveram outro filho. Este diz Bandarra que é das terras da comarca: el-rei D. Sebastião não é da comarca, porque nasceu em Lisboa. Este rei diz Bandarra que havia de ter guerra com Castela no princípio do seu reinado: el-rei D. Sebastião nunca teve guerra com Castela. Este rei diz Bandarra que da justiça se preza: el-rei D. Sebastião prezava-se das forças e valentia. Este rei diz Bandarra, que até certo tempo lhe não hão de dar a mão os pontífices. El-rei D. Sebastião teve grandes favores dos pontífices do seu tempo Paulo IV, Pios IV e V. Este rei diz Bandarra que lhe não achou nenhum senão: el-rei D. Sebastião se não fora a África não nos perdera: veja-se se foi grande senão. Finalmente, porque nos não cansemos mais em prova de coisa tão clara, tirado somente ser el-rei D. Sebastião semente d’el-Rei D. Fernando, nenhuma coisa diz Bandarra em todos os textos dos sinais ou qualidades do rei que descreve que possam acomodar, nem de muito longe a el-rei D. Sebastião. (VIEIRA, 2009)

Ainda irá concluir notando que os sebastianistas chamam de profecias a “papéis fingidos e modernos, feitos ao som do tempo, e desfeitos pelo mesmo tempo, que em tudo tem mostrado o contrário” (VIEIRA, 2009). D. Sebastião é, portanto, deposto do lugar do Encoberto e ali Vieira coloca D. João IV. Houve cer-tamente razões históricas para que isso assim se desse. Segundo João Francisco Marques, o messianismo atribuído à figura de D. João IV não foi uma invenção de Vieira, mas sim algo recorrente em vários oradores daquele período.

Durante o próprio reinado de D. João IV, sua ação já era tomada de forma profética, como se tudo que fizesse já estivesse escrito. Esse rei que trouxe de volta a soberania portuguesa sempre esteve envolto em uma perspectiva his-tórica de viés utópico segundo a qual Portugal cumpriria um grande destino na cristandade.

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Para João Francisco Marques, a “utopia era, pois, um poderoso motor para impulsionar a mística da luta pela consolidação da recuperada autonomia. Na verdade, o advento do quinto império seria o corolário da guerra contra Castela e do reatar da expansão ultramarina de quinhentos” (MARQUES, 2009).

O fato é que no plano simbólico D. Sebastião é deposto por Vieira, mas conti-nuará a ter seus defensores e cultuadores que, especialmente nos séculos XIX e XX, irão revitalizar o mito. Poetas como João de Lemos (1819-1890), Luis Augusto Palmeirim (1825-1893), Guerra Junqueiro (1850-1923), Luís de Magalhães (1859-1935), António Nobre (1867-1900), Afonso Lopes Vieira (1878-1946), Teixeira de Pascoaes (1877-1952), Antônio Sardinha (1888-1925) e Fernando Pessoa (1888-1935), entre outros, retomarão o mito de D. Sebastião, identificando ali um ar-quétipo privilegiado para promover uma espécie de renascimento da cultura e da identidade portuguesas.

Vale notar que também no Brasil o mito de D. Sebastião foi cultivado, geral-mente ligado a vários movimentos messiânicos ocorridos no país. Ainda hoje, muitos escritores portugueses e mesmo brasileiros retomam literariamente o mito de D. Sebastião em abordagens em geral bastante originais.

O sentido do mito na cultura portuguesaComo é fácil constatar, o mito sebastianista fundamenta-se em uma longa

tradição que, como vimos, remonta às profecias do sapateiro Bandarra. O mito do rei encoberto é tão forte que pode mesmo ver substituída sua figura histórica central (no caso, D. Sebastião) por uma outra que o momento histórico exige (como ocorreu com D. João IV) sem que isso afete a estrutura do mito, isto é, a do rei encoberto, que está escondido, ou desaparecido, ou morto, e que retornará, que ressuscitará para instaurar então um império definitivo, português e cristão, restaurando o que foi um dia perdido (a autonomia, a riqueza, a glória etc.).

Esse é um mecanismo que muito tem a ver com a história de Portugal, pois grande e imperialista no século XVI, aquela nação perdeu seu lugar de prestígio no cenário europeu e passou a ocupar um lugar cultural e economicamente pe-riférico no continente a partir dos séculos XVII e XVIII, assim permanecendo até sua inserção no que hoje conhecemos como União Europeia.

Portanto, durante o século XIX e por quase todo o século XX, as elites de Por-tugal estiveram à margem dos grandes acontecimentos do continente, sempre

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se sentindo inferiorizadas em relação àquelas atuantes nos países europeus mais proeminentes, como Inglaterra, França e Alemanha. Isso alimentou o mito sebastianista, que apostava no fadado retorno da glória portuguesa vivida no Renascimento. Neste aspecto, o mito cumpriu o importante papel de resolver no plano simbólico e artístico aquilo que não tinha solução no plano da realidade prática, econômica e social.

Ao avaliar o mito sebastianista, Antônio Quadros conclui que:

a figura histórica do rei foi sempre um pretexto, foi apenas um meio de canalização e projeção não só de uma profecia mítica onde se juntaram em partes iguais o messianismo hebraico-português, o cristianismo messiânico-encarnacionista e os velhos arcanos céltico- -bretões, como também, e cumulativamente, as aspirações nacionais e populares, quer a um nível onírico, quer a um nível sociopolítico. [...] O sebastianismo é um dado profundo, é um arquétipo, é uma realidade psíquica e mítica do nosso povo e da nossa cultura. (QUADROS, 2001, p. 24)

Texto complementarO texto abaixo, de autoria do cordelista Luar do Conselheiro (Aidner Mendez

Neves), vem demonstrar como o sebastianismo ainda vive no imaginário da lite-ratura de cordel brasileira. Antecedendo o texto, aparece a seguinte nota:

A obra: Nesta obra o autor retrata um assunto polêmico, pedra funda-mental das revoltas no nordeste O sebastianismo. Depois de anos de pesqui-sa e muita dificuldade, por conta de ser uma ordem mística e secreta, Luar trás à tona sob forma de cordel um pouco desta tradição que deu fama a estes sertões.

O sebastianismo no sertão

(CONSELHEIRO, 2009)

Vou contar sobre uma ordem,

Secreta e misteriosa

Nascida em Portugal,

Que chegou a terra nossa

Espalhou-se por todo o mundo

e resgatou lá do fundo

A esperança milagrosa.

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A gênese do mito de D. Sebastião

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É aquela velha história,

Do retorno do Salvador

Vindo num cavalo branco,

Com papel de Redentor

Tirando o povo da desgraça,

Da pobreza e da pirraça

Do prefeito e do Doutor.

Certo rei de Portugal,

Por nome Dom Sebastião

Era jovem, destemido,

Guerreiro e bom cristão

Brigador e bom nas armas,

Organizando cruzadas

Lutava com o coração.

A bandeira Lusitana

Tremulava em todo canto

O império já cobria,

Quase todo o mediterrâneo

Mas pra Dom Sebastião,

Era quase obsessão

Cobrir a África com seu manto.

Por muitas brigas internas,

Lá dos sultões Marroquinos

Foi chamado o nosso rei,

Para apaziguar os meninos

Armou uma expedição,

Vinte mil soldados na mão,

E pôs-se logo a caminho.

Mas é claro que o sultão,

Inimigo Lusitano

Teve ódio e revolta

Contra o rei soberano

Organizou seus soldados,

O destino era selado

Pelos povos muçulmanos.

Vinte mil Lusitanos,

Contra cem mil fortes mouros,

Estava claro de quem

Seria arrancado o couro,

Lá em Alcácer Quibir,

Viria o nosso rei sucumbir

Como na arena, um touro.

Mas o mistério cobre o cerco,

Do povo de Alá

O rei Dom Sebastião

Desapareceu por lá

Não se encontrou o corpo,

Dele vivo ou dele morto

Tava o mistério no ar.

No reino de Portugal,

Choravam senhores e senhoras

O reinado sem herdeiros

Ia para mãos espanholas

Pra consolo da dinastia,

Só mesmo a profecia

Do retorno é que consola.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

E é desta profecia,

Que vou lhes falar agora

Que mudou completamente

O rumo de nossa história

Briga de rei e sultão,

Inspirou nosso sertão

À insurreição e glória.

A profecia do retorno,

Do rei Dom Sebastião

Virou mito, crença e credo.

E quase religião

Ideal nacionalista,

Transformou-se em comunista

Quando chegou ao sertão.

O sertanejo acostumado,

À injustiça e pobreza

Esperava o retorno

De um líder com grandeza

Pois pra um povo sofrer tanto,

Deve haver em algum canto

Alguém que os proteja.

Logo os sebastianistas

Chegaram ao nosso nordeste

Encontraram sofrimento,

Fé, fome, e peste.

Descobriram nos sertões

Povos, populações

Esperando quem viesse.

Mostraram a esse povo

O que a Bíblia falava

Não tem jeito, estava escrito.

Tava errado quem roubava.

Como na Maçonaria,

Injetava ideologia

Quando de Cristo falava.

Logo, logo o sentimento.

De revolta com razão

Fez-se bandeira de luta

O rei Dom Sebastião

Que sumiu numa peleja,

Defendendo a Santa Igreja

E o mandamento cristão.

De Deus a revolucionário,

Jesus Cristo passou

O rei Dom Sebastião

Tornava-se o redentor,

Só faltava o povo agora,

Se inflamar de fé e glória

E guerrear com o malfeitor.

A primeira insurreição

Deu-se lá em Pernambuco

Silvestre José dos Santos,

Que diziam ser maluco

Na Serra do Rodeador

Esperava o Redentor

E fez guerra contra o Impuro.

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A gênese do mito de D. Sebastião

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Este fato aconteceu

Em mil oitocentos e dezessete

Quando muita gente foi

Ajudar Mestre Silvestre

Todos de arma na mão,

Fazendo revolução

Contra o opressor do agreste.

No Nordeste o opressor

Sempre esteve no poder,

Por isso era difícil,

Lutar pra sobreviver,

Quem criar comunidade,

Com justiça e igualdade,

Se prepare pra morrer.

A segunda insurreição,

Foi no sertão do Pajeú

Entre o sertão da Paraíba

E a terra do Maracatu

Em mil oitocentos e trinta e cinco,

O soberano era bem vindo

Em terras de Céu Azul.

O Beato João Antônio,

Líder desta comunidade,

Viu as pedras encantadas,

Lá pertinho da cidade

Conclamou o povo todo

Para correr num sufoco.

Pra morar na eternidade.

O desespero desta gente,

Que vive à própria sorte

Fez ouvir a voz do mestre

Que dizia firme e forte:

Vem morar na imensidão,

Com o rei Dom Sebastião

Vamos se entregar à morte.

O suicídio coletivo

Que aconteceu por lá

Foi a mais cruel imagem,

Da injustiça do lugar

Pois lá no alto sertão

Verdadeira insurreição

Foi morrer pra não matar.

A terceira insurreição,

Foi valente e mais famosa,

É cantada e declamada,

Em verso, canção e prosa,

Foi no sertão da Bahia,

Onde guerra e poesia

Fizeram-se bala e trova.

Falo da guerra de Canudos,

O reduto Monarquista,

Tinha Crente, rezador,

Xamã e sebastianista

Bom Antônio Conselheiro,

Cearense, catingueiro

Pregava guerra na missa.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Foram quatro as batalhas,

Que houve na Terra Santa

O exército brasileiro,

Não poupou velho ou criança,

Lutando com fé em Cristo,

Pelo pasto coletivo,

Tendo Antônio como esperança.

Guerra má, sem precedentes,

Neste meu sertão amado

Foi a guerra de Canudos,

Dos guerreiros encourados,

No final sem esperança,

Um velho, dois adulto e uma criança.

Contra cinco mil soldados.

Observem a resistência,

De todas as formas de luta,

Logo, logo, são esmagadas,

De forma absoluta

Aqui eu me contradigo,

Pois ainda resta um grito,

E permanece na labuta.

Todas as insurreições,

Que houve no Nordeste,

Políticas ou messiânicas,

Com comandante ou com mestre

Todas elas ocorreram

Por que os povos careceram,

Do que ainda carecem.

Povo oprimido é pólvora,

Com fome é dinamite,

Nem o preto, nem o branco,

Nem o caboclo resiste

Pois na hora da verdade,

João Diabo vira Abade,

E corre mesmo é pro rifle.

A história do retorno

Do rei Dom Sebastião,

Ainda corre calada

No meio deste sertão,

Num cochicho, numa prosa,

Os cabra valente da roça

Tramando revolução.

E se um dia ao acaso,

Pegares a Bíblia pra ler,

Vai ver que todos têm,

O mesmo direito de viver,

Peço-lhe tome cuidado,

O governo tá no encalço

De quem a Cristo obedecer.

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Dicas de estudoQUADROS, Antônio. Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. Lisboa: Guima-rães Editores, 2001.

Uma boa forma de aprofundar os estudos sobre as origens e o sentido do se-bastianismo é ler esse, em que o crítico Antônio Quadros delineia um panorama do sebastianismo em Portugal e no Brasil.

LOURENÇO, Eduardo. Psicanálise mítica do destino português. In: _____. O Labi-rinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 17-64).

Outra forma de aprofundar a reflexão é ler esse texto do crítico e filósofo Eduardo Lourenço, que não trata especificamente do tema do sebastianismo, mas faz uma leitura em que o mito tem papel central.

Estudos literários1. Que relação podemos estabelecer entre as profecias de Bandarra e o mito

sebastianista?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

2. Por que o padre Antônio Vieira rejeita D. Sebastião como o Encoberto e coloca D. João IV em seu lugar?

3. Que vínculo podemos estabelecer entre o mito do sebastianismo e a cultura portuguesa?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

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O sebastianismo na Literatura Portuguesa

O temaO dia vinha amanhecendo no acampamento daquele exército inter-

nacional que, no entanto, era formado em sua maioria por portugueses e tinha em seu comando um rei também português. O calor já se fazia sentir forte logo nas primeiras horas, prenunciando assim mais um dia escaldan-te. Apesar de ter um dos climas mais quentes da Europa, os portugue-ses não se sentiam à vontade com as temperaturas e umidades africanas. E o que dizer então dos alemães e holandeses que estavam juntos com eles, assim como espanhóis e italianos? Era o dia de verão de 4 de agosto de 1578 e esses homens se encontravam próximos à fortaleza de Alcácer Quibir, no interior do Marrocos, preparando-se para uma grande batalha.

Quem poderia imaginar que uma expedição militar que havia sido ini-ciada de maneira muito festiva e cheia de grandes expectativas em Por-tugal, cujas escalas em portos espanhóis e africanos também tinham sido marcadas por festas e celebrações, pudesse começar o dia com tamanha angústia de morte. Durante a noite, e nos dias anteriores, os comandantes portugueses e estrangeiros se debateram com a decisão de manter ou suspender a operação militar, bater em retirada, a fim de se reorganizarem e avaliarem a situação. O dilema era imenso. Um recuo desses antes de qualquer batalha (sim, por que ainda não havia ocorrido nenhum comba-te) traria uma enorme humilhação aos europeus, bem como perdas pesa-das durante a retirada, que não seria assistida passivamente pelos inimi-gos, os mouros do Marrocos.

O comandante-em-chefe das forças europeias, o jovem rei D. Sebas-tião de Portugal (1554-1578), aguardava por aquela batalha pelo menos há dez anos, quando assumira de fato o trono português (1568). Ele acre-ditava vivamente que fora comissionado por Deus para varrer os pagãos do Magreb (o extremo norte da África, incluindo, atualmente, Marrocos, Saara Ocidental, Argélia, Tunísia, Mediterrâneo e Líbia) e, assim, expandir o cristianismo na África. Para isso, durante vários anos ele vinha angariando fundos para a missão, obtendo apoios e reforços militares estrangeiros,

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reunindo e treinando uma grande massa de recrutas portugueses. Até uma inu-sitada aliança com o sultão Moulay Mohammed, deposto rei mouro do Marrocos que se dispusera a lutar ao lado dos europeus a fim de retomar o trono perdido para Muley Moluco, o líder mouro a ser batido pelos portugueses. Por tudo isso, o jovem rei não podia acreditar no conselho de seus generais: – Debandar? Fugir?

Porventura os próprios que aqui estais, não sois aqueles que me dissestes em Portugal, que todas as dificuldades, que agora nos parecem grandes, estavam fáceis? Que diziam que os mouros não eram homens que ousassem a esperar meu campo, com o qual poderia sem risco algum apoderar-me de África? E agora que me vedes aqui dizeis o contrário, parece-vos que sentis bem de minha reputação em dizer que me retire e perca a artilharia, ou que aguarde a perder esta gente deixando-a morrer de fome, perdendo com seu valor honra e vida? (apud LOUREIRO, 1989, p. 232 – atualizamos a ortografia e um pouco do texto para melhor compreensão)

É, mas as coisas haviam mudado radicalmente. Dizem alguns comentaristas da época, e mesmo historiadores contemporâneos, que um dos erros dessa ex-pedição fora a demora em desembarcar na região do conflito. A grande frota saíra de Lisboa em 25 de junho, com cerca de vinte mil homens de guerra, mas fizera longas paradas em Lagos (Portugal), Cádis (Espanha) e Tânger (Marrocos), de onde o rei resolveu que seu exército deveria prosseguir a pé. Tais delongas e esta última decisão deram tempo para que Moluco conseguisse um enorme reforço para sua força militar, sem dizer que todo o percurso dos invasores euro-peus pelo Marrocos fora acompanhado de perto por guarnições inimigas. Con-clusão: quando os portugueses e seus aliados chegaram a Alcácer Quibir, exaus-tos, famintos e apreensivos, o sultão marroquino que estava no poder dispunha de cerca de cem mil soldados!

A batalhaEnfim, o dia da grande ba-

talha era esse. O rei não acei-tara os conselhos de seus es-trategistas e, às oito horas da manhã, tiveram início os com-bates. O comandante--maior não chegou propriamente a dar a ordem de batalha. Dizem os cronistas que o rei sofreu de “uma obnubilação” comum aos epiléticos, o que

Dom

ínio

púb

lico.

A batalha de Alcácer Quibir.

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acabou desorganizando ainda mais as já combalidas forças luso-europeias. O resul-tado do grande empreendimento militar de D. Sebastião não poderia ser mais fu-nesto: derrota completa nesse único dia, com um saldo de nove mil mortos, muitos dos quais eram portugueses. Poucos conseguiram fugir para a segurança do litoral e a grande maioria dos sobreviventes europeus foi feita prisioneira dos mouros.

Como terrível ironia da história, os três reis presentes à batalha foram mortos:

o primeiro deles a cair foi o vitorioso Muley Moluco; �

ao que tudo indica, o rei português foi cercado pelos mouros e não acei- �tou se render;

o deposto sultão Moulay Mohammed sucumbiu durante a fuga da batalha. �

No entanto, a morte do rei D. Sebastião não foi testemunhada por nenhum dos sobreviventes e seu corpo não foi encontrado, bem como suas armas e in-sígnias nunca foram apresentadas pelo exército vitorioso. A falta dessas provas materiais da morte de D. Sebastião acabou por criar entre os portugueses uma forte expectativa de que seu amado rei não falecera, mas se encontrava escondi-do, aguardando o momento propício para retornar a Portugal.

Tal esperança se fez ainda mais presente e aguda dois anos após a batalha, quando faleceu o cardeal D. Henrique (1512-1580), tio-avô de D. Sebastião e herdeiro do trono, sem deixar nenhum outro sucessor direto para o trono lu-sitano. Apesar da fé popular depositada no oportuno retorno do rei derrotado na África, isso não se concretizou e o trono português passou às mãos do rei espanhol D. Filipe II (1527-1598), iniciando-se então um período de 60 anos em que Portugal ficou sem autonomia política.

A lógica do sebastianismoO episódio narrado acima é apenas o núcleo histórico daquilo que se con-

vencionou chamar de sebastianismo, havendo a necessidade de se entender os antecedentes e as consequências da derrota em Alcácer Quibir para que se possa ter uma visão mais completa do sebastianismo em Portugal. Antes, é pre-ciso alertar o leitor de que os detalhes de nosso relato acerca da batalha não são indiscutíveis, pois a documentação e as fontes sobre o que de fato ocorreu naquele dia são controversas – os historiadores ainda se debatem com o escla-recimento desse evento. No entanto, em sua formulação geral, a nossa descrição é tão bem fundamentada como qualquer outra.

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O sebastianismo é um tipo de messianismo, isto é, uma crença em um salva-dor – no caso, um indivíduo – que virá trazer a paz, a harmonia e a abundância a toda a humanidade ou a um povo escolhido. Em Portugal, o messianismo con-figurou-se em torno do rei D. Sebastião, cuja morte sem comprovação material criou, como já foi dito, a esperança de seu retorno ao país e ao trono. Depois de algum tempo, essa crença passou a ter por objeto uma espécie de ressurreição ou segunda vinda do rei precocemente abatido em batalha, nos moldes do cris-tianismo tradicional.

É lógico que, para a formação dessa crença, também seriam necessárias condições históricas, culturais e religiosas sem as quais o sebastianismo não se desenvolveria e nem se manteria por vários séculos, como aconteceu. O mais marcante fato socioeconômico do período foi a constatação e a experiência do declínio político e econômico de Portugal, após um longo período de grande crescimento, prosperidade e prestígio internacional.

A expansão marítima iniciada no século XV, graças principalmente à rota de comércio do Cabo, havia fornecido aos portugueses uma extraordinária fonte de riqueza e poder. Entretanto, as próprias limitações lusas acabaram por debilitar essa incrível fonte de prosperidade, que logo passou a ser disputada por outras potências europeias e sabotada por piratas e por nações inimigas, quer euro-peias, quer oriundas do tradicional inimigo mouro.

O projeto de invasão do Marrocos ia ao encontro dos anseios da sociedade por-tuguesa por retomar uma posição proeminente no teatro das nações europeias, procurando assumir o papel de protagonista da cristandade. Por causa desse desejo, a figura do jovem rei-guerreiro foi investida de uma alta carga simbólica e religiosa.

A esfera religiosa teve uma função determinante na formação do sebastianis-mo. O século XVI foi pródigo em levar as paixões religiosas ao extremo, suscita-das em grande parte pelo conflito entre Reforma e Contrarreforma. Em virtude ainda do crescimento do Império Otomano (os turcos), a Europa assistiu ao res-surgimento do espírito das Cruzadas. Mas, em Portugal a base profético-religio-sa do sebastianismo é atribuída às trovas proféticas de um sapateiro da cidade de Trancoso, o Bandarra (1500-1556?), um poeta popular cujo pendor místico e leituras bíblicas favorecidas pela comunidade de cristãos-novos de sua cidade o levaram a escrever profecias em forma de versos que prediziam a vinda de um messias para Portugal. Suas trovas foram escritas no período de 1530-1540 e passaram a circular por meio de manuscritos, sendo impressas pela primeira vez apenas em 1603.

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Como se vê, tais profecias foram compostas antes de Alcácer Quibir, antes mesmo de D. Sebastião nascer, mas caíram como uma luva para as esperanças portuguesas depois do desastre no Marrocos e passaram a ser interpretadas como se referindo ao rei desaparecido e à sua futura volta para revigorar os destinos da nação. As trovas de Bandarra passaram a ser cultuadas tanto pelas camadas mais humildes como por patriotas e nacionalistas de todas as classes, configurando assim as “escrituras” dessa nova seita messiânica.

Segundo o historiador Joel Serrão, o sebastianismo se tornou um fenôme-no cíclico dentro de Portugal, avultando e se radicalizando nos momentos de crise nacional. Essa crença ou fenômeno religioso congregava principalmente as massas, mas era ainda instrumentalizada por eclesiásticos e intelectuais para fins ideológicos e políticos, podendo ser citadas figuras importantes como D. João de Castro (?-1625, primeiro editor das trovas), o padre Antônio Vieira (1608-1697) e ainda outros jesuítas (cf. SERRÃO, 2002, p. 509-515).

As condições políticas, sociais e econômicas que contribuíram para a manu-tenção do sebastianismo como movimento popular até o final do século XVIII parecem arrefecer com a revolução liberal portuguesa (1820) e a decorrente as-censão da burguesia ao comando do país (cf. SERRÃO, 2002, p. 514), ainda que, suscitado pela ameaça napoleônica, um significativo número de textos de verve sebastianista tenha sido publicado no início do século. O fato é que o fenômeno sebástico continuaria a produzir efeitos entre artistas e intelectuais, sendo res-ponsável pelo surgimento de correntes culturais como o saudosismo e por im-portantes obras literárias nos séculos XIX e XX, devendo-se mencionar os nomes de António Nobre (1867-1900), Teixeira de Pascoaes (1877-1952) e Fernando Pessoa (1888-1935). É deste último poeta a obra que será o centro das atenções do presente capítulo, e uma das principais realizações literárias fecundadas pelo sebastianismo: o livro Mensagem.

A Mensagem sebastianista de Fernando PessoaA produção literária de Fernando Antônio Nogueira Pessoa é uma das mais

importantes das literaturas de língua portuguesa. Ele começou a escrever aos 13 anos de idade e nos deixou uma obra vasta e de notável qualidade artística. Em termos sociológicos, podemos dizer que a sua poética reflete bem a instabilidade sociopolítica de seu tempo, não apenas no plano português como no europeu.

Fernando Pessoa incorporou artisticamente as formas líricas da tradição po-ética portuguesa para depois as ultrapassar de forma criativa. Sua obra caracte-

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rizou-se por um forte experimentalismo, saindo do saudosismo e do futurismo para vertentes criadas por ele mesmo, como o paulismo, o interseccionismo e o sensacionismo, em uma tentativa de propor uma nova estética que definisse o seu tempo.

Trata-se na verdade de uma poética em que o poeta se desdobra em várias máscaras. Em uma delas, Fernando Pessoa “Ele Mesmo”, constrói a chamada obra ortonímica (assinada pelo próprio autor), enquanto com as outras máscaras ele produz sua obra heteronímica. No entanto, mesmo a poesia assinada por Pessoa com seu próprio nome pode ser considerada como uma máscara. Os principais heterônimos são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

O livro Mensagem, publicado em 1934, foi o único editado em vida pelo poeta Fernando Pessoa, e é uma obra ortonímica. Trata-se de um conjunto de poemas que retoma a história das navegações e tem como seu horizonte literário Os Lusíadas, de Camões, mas de uma perspectiva sebastianista. Tais poemas foram muito influenciados pelo sau-dosismo de Teixeira de Pascoaes.

Com toda a certeza, Mensagem é mais um “fin-gimento poético”,1 mas talvez bem mais próximo dos traços ideológicos mais profundos de sua per-sonalidade, conforme o próprio Fernando Pessoa se caracterizou:

Sou, de fato, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui. (PESSOA, 2008)

O livro estabelece uma relação dialética entre mito e história e se organiza entre esses dois polos, sendo que, no início, ele tende mais para a história e, no final, mais para o mito, atravessando assim o mar das navegações portuguesas, o mar histórico e mítico. Pessoa também se reporta à profecia do quinto império desenvolvida pelo padre Antônio Vieira a partir do texto bíblico de Daniel – se-gundo o jesuíta, após os impérios da Babilônia, da Pérsia, da Grécia e de Roma, o quinto império seria o dos portugueses. Pessoa, assumindo seu lado Bandarra, profetiza o futuro despertar da alma lusitana.

1 Conforme um de seus mais conhecidos poemas: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente” (PESSOA, 1983, p. 98).

A primeira edição de Mensagem (1934), de Fernando Pessoa.

Dom

ínio

púb

lico.

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A estrutura de MensagemO livro Mensagem foi composto durante pouco mais de 20 anos (1913-1934).

Diferentemente de Os Lusíadas, não se trata de uma narrativa, um poema épico, mas sim de composições poéticas individuais que vão se reportando a eventos e personagens históricos, em uma sequência predeterminada, a fim de contar a his-tória de Portugal desde sua fundação até chegar às grandes navegações e ao rei D. Sebastião. Mensagem possui ao todo 44 poemas e é dividido em três partes:

Brasão �

1. Os Campos �

Primeiro: O dos castelos

Segundo: O das quinas

2. Os Castelos �

Primeiro: Ulisses

Segundo: Viriato

Terceiro: O conde D. Henrique

Quarto: D. Tareja

Quinto: D. Afonso Henriques

Sexto: D. Dinis

Sétimo (I): D. João o primeiro

Sétimo (II): D. Filipa de Lencastre

3. As Quinas �

Primeira: D. Duarte, rei de Portugal

Segunda: D. Fernando, infante de Portugal

Terceira: D. Pedro, regente de Portugal

Quarta: D. João, infante de Portugal

Quinta: D. Sebastião, rei de Portugal

4. A Coroa �

Nun’Álvares Pereira

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

5. O Timbre �

A cabeça do grifo: o infante D. Henrique

Uma asa do grifo: D. João o segundo �

A outra asa do Grifo: Afonso de Albuquerque �

Mar português �

I. O infante �

II. Horizonte �

III. Padrão �

IV. O mostrengo �

V. Epitáfio de Bartolomeu Dias �

VI. Os colombos �

VII. Ocidente �

VIII. Fernão de Magalhães �

IX. Ascensão de Vasco da Gama �

X. Mar Português �

XI. A última nau �

XII. Prece �

O encoberto �

1. Os Símbolos �

Primeiro: D. Sebastião

Segundo: O quinto império

Terceiro: O desejado

Quarto: As ilhas afortunadas

Quinto: O encoberto

2. Os Avisos �

Primeiro: Bandarra

Segundo: António Vieira

Terceiro: (‘Screvo meu livro à beira-mágoa)

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3. Os Tempos �

Primeiro: Noite

Segundo: Tormenta

Terceiro: Calma

Quarto: Antemanhã

Quinto: Nevoeiro

A estrutura do livro procura manter uma certa ordem cronológica de eventos e figuras históricas.

Portanto, a primeira parte, “Brasão”, corresponde ao início da história de Portugal. A primeira pergunta que nos surge é: o que significa o título dessa parte? O autor se refere ao escudo heráldico de Portugal, o brasão que representava a coroa portuguesa. Ob-servando a figura do brasão ao lado, podemos entender como essa parte se subdivide:

Os campos; �

Os castelos; �

As quinas; �

A coroa; e �

O timbre. �

Ao todo, esta parte conta 19 poemas, na sua maioria sobre figuras da história portuguesa.

Para ter a medida de como o poeta trabalha a origem de Portugal, tomemos o primeiro poema de “Os castelos” – a seção 2 –, que apresenta um jogo dialético entre o mito e a realidade, jogo que está presente na concepção global do livro. Seu título é imprescindível para a compreensão do poema:

Dom

ínio

púb

lico.

O timbre

A coroa

As quinas

Os castelos

Os campos

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Primeiro / Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mytho brilhante e mudo —

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre. (PESSOA, 1983, p. 6)

O mito da fundação de Lisboa diz que em seu retorno para Ítaca, Ulisses, o grande herói da Guerra de Troia, passou pela foz do rio Tejo e lá construiu uma magnífica cidade. Pessoa aproveita o tema para, contrariando o senso comum, insistir na superioridade da lenda em relação aos fatos reais: é o mito que cria o mundo, enquanto a vida é apenas uma sombra.

A segunda parte do livro, “Mar português”, é constituída de 12 poemas, sem subdivisões, e aqui também aparecem figuras da história de Portugal ao lado de figuras mitológicas, entre outros temas diversos. Uma explicação para a dispa-ridade entre a primeira parte ser tão subdividida, com seções enigmáticas ba-seadas no brasão da realeza lusitana, e a segunda ser tão simples, sem divisões, seria a de que o início da história de Portugal, como costuma acontecer na vida das nações, teria sido repleto de altos e baixos, avanços e recuos, configurando assim um quadro complexo. Já o período das grandes navegações, o momento do apogeu do império luso, teria sido uma sequência de sucessos, em que os obstáculos foram sendo superados em uma contínua ascensão, o que configu-raria um quadro mais linear.

Nesse ponto, destaca-se o poema “A última nau”, uma das mais preciosas chaves do livro:

A última nau

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,

E erguendo, como um nome, alto o pendão

Do Império,

Foi-se a última nau, ao sol azíago

Erma, e entre choros de ânsia e de presago

Mistério.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta

Aportou? Voltará da sorte incerta

Que teve?

Deus guarda o corpo e a forma do futuro,

Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro

E breve.

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O sebastianismo na Literatura Portuguesa

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Ah, quanto mais ao povo a alma falta,

Mais a minha alma atlântica se exalta

E entorna,

E em mim, num mar que não tem tempo ou ’spaço,

Vejo entre a cerração teu vulto baço

Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,

Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora

Mistério.

Surges ao sol em mim, e a névoa finda:

A mesma, e trazes o pendão ainda

Do Império.

(PESSOA, 1983, p. 16)

O título do poema se refere ao fim da expansão marítima portuguesa e o consequente término do apogeu imperial. Apesar disso, a mesma nave que levou a glória portuguesa será a mesma que a trará de volta. O problema é quando isso haverá de acontecer, pois dia e hora competem somente a Deus. Mas, uma possível chave pode estar na seguinte dicotomia: “Ah, quanto mais ao povo a alma falta,/ Mais a minha alma atlântica se exalta/ E entorna”. Talvez, no momento em que não houver mais alma no povo, então seja o momento da volta do Encoberto. Com certeza, o poeta avaliava que em seu tempo se descortinava tal absoluta falta de espírito na sociedade...

A terceira parte se intitula “O encoberto” e, como se poderia esperar, aborda em particular os atos de D. Sebastião e o sebastianismo. Subdivide-se em:

Os símbolos; �

Os avisos; e �

Os tempos. �

Nesta terceira parte, são 13 poemas ao todo, ainda aparecendo figuras histó-ricas, mas predominando os temas abstratos. Trataremos desses últimos poemas na seção seguinte.

Profecia e renascimento em MensagemAté a segunda parte, Mensagem mantém um certo paralelo com o enredo

histórico de Os Lusíadas, mas na terceira parte Pessoa continua do ponto em que Camões havia parado. Lembremos que o épico camoniano foi publicado em 1572, antes de Alcácer Quibir, e havia sido dedicado pelo autor ao rei D. Se-bastião (de quem Camões inclusive esperava alguma recompensa futura – que obviamente não veio).

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

A segunda parte, como vimos, termina com o poema “A última nau” (em que D. Sebastião parte, ainda representando o grande império português, e não re-torna mais) e uma outra composição chamada “Prece” (em que é feito uma sú-plica a Deus para que a “chama do esforço” lusíada, quase apagada pelas cinzas da história, seja reavivada e novamente a “Distância – do mar ou outra” seja conquistada). Esses dois poemas configuram assim a decadência do país após a partida de D. Sebastião e a necessidade de Portugal se superar para retomar sua grandeza. Nesse sentido, a terceira parte, “O encoberto”, vai se concentrar nos sinais e profecias que estariam indicando o momento do renascimento.

A seção 1, “Os símbolos”, oferece-nos os vários sinais que, lidos adequada-mente, indicam a lógica da história e, dessa forma, descortinam o futuro. Além da esperança no retorno miraculoso do Encoberto – o rei morto em Alcácer Quibir –, há ainda a profecia de Daniel que afirma que um quinto império irá surgir no mundo, governado por um líder messiânico que trará a paz e a pros-peridade universais. Conforme antecipamos acima, essa profecia bíblica foi apropriada pelo padre Antônio Vieira durante o século XVII e incorporada à crença sebastianista. Para o jesuíta, o messias do quinto império seria D. Sebas-tião ressurreto, que voltaria para o trono de Lisboa a fim de comandar um império mundial e realizar a redenção final da humanidade:

[...]

E assim, passados os quatro

Tempos do ser que sonhou,

A terra será teatro

Do dia claro, que no atro

Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,

Europa — os quatro se vão

Para onde vai toda idade.

Quem vem viver a verdade

Que morreu D. Sebastião? (PESSOA, 1983,

p. 18-19)

Observe-se que nessas duas últimas estrofes do poema “O quinto império” Pessoa altera a composição dos quatro primeiros impérios (cf. acima “A Mensagem sebastianista de Fernando Pessoa”), dessa forma aproximando o futuro império lusitano da realidade europeia.

Mas os sinais, “Os símbolos”, não estão apenas dispersos na história, pois há “Os avisos”, os profetas e os poetas (um dos bons sinônimos de poeta é vate, cuja etimologia o liga a vaticínio, “profecia”) que ao longo dos séculos foram reunindo esses símbolos e, de forma oracular, revelaram o futuro:

“O Bandarra” (nome do primeiro poema da seção 2); �

“António Vieira” (título do segundo poema); e �

o último, incógnito no poema “Terceiro” (do qual apresentamos um trecho). �

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Terceiro ‘Screvo meu livro à beira-mágoa.

Meu coração não tem que ter.

Tenho meus olhos quentes de água.

Só tu, Senhor, me dás viver. (PESSOA, 1983, p. 20)

Trata-se do próprio autor, do vate Fernando Pessoa, que assim assume a más-cara de profeta e se inscreve na ilustre corrente de oráculos sebastianistas. É ele quem indaga: “Quando virás, ó encoberto,/ Sonho das eras português” (PESSOA, 1983, p. 21). A resposta é... o próprio livro Mensagem.

Na última seção de “O encoberto”, cinco poemas deste terceiro profeta infor-mam os sinais que trazem “Os tempos”, capazes de enfim apontar para o mo-mento de chegada do Encoberto e de seu quinto império. Passadas a “Noite”, a “Tormenta”, a “Calma” e a “Antemanhã”, poemas da última seção de Mensagem, chega por fim o “Nevoeiro”:

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

Define com perfil e ser

Este fulgor baço da terra

Que é Portugal a entristecer —

Brilho sem luz e sem arder,

Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.

Ninguém conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ânsia distante perto chora?)

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora! (PESSOA, 1983, p. 23)

Se aceitarmos que a divisão em três partes do livro Mensagem corresponde aos três estágios históricos de Portugal: ascensão, auge e decadência, conforme já vínha-mos sugerindo em nosso estudo, esse último poema pode ser interpretado como a constatação de que o país havia atingido o ponto de inflexão em seu declínio e, portanto, era chegada a “Hora” do renascimento e do cumprimento das profecias sebastianistas. Talvez agora Portugal não mais iria desempenhar o antigo papel de potência militar e econômica assumido no século XVI, mas de alguma maneira os lusitanos deveriam mostrar o seu valor e seu esforço, conquistando outra “Distância” que não a marítima (cf. “Prece” – PESSOA, 1983, p. 17), quem sabe espiritual, cultu-ral ou artística, mas de qualquer forma fazendo valer a máxima pessoana: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena”. (PESSOA, 1983, p. 16)

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

O sebastianismo na contemporaneidadeO mito sebástico continua estimulando o talento de poetas e outros artistas

portugueses. Para citar apenas um exemplo, o romancista Almeida Faria, no seu título mais recentemente publicado, O Conquistador (1990), retoma D. Sebastião em uma paródia de múltiplas possibilidades interpretativas. Mas, nessa subse-ção, para variar, não abordaremos literatura ficcional contemporânea e sim a crítica literária.

O sebastianismo de Pessoa em Mensagem não se resume à leitura interpre-tativa que acabamos de apresentar. De fato, nossa análise apenas tocou de leve os vários níveis de significados que vivem nessa obra magistral. Na verdade, podemos até mesmo dizer que Pessoa reinventou o sebastianismo, que agora reclama por seus exegetas, por aqueles com disposição e capacidade para se en-redarem no cipoal de símbolos, paradoxos, metáforas, alegorias e enigmas que compõem o único livro que Pessoa chegou a publicar em vida.

Assim, o sebastianismo contemporâneo também estaria nas mãos dos estu-diosos e críticos literários que desejam descobrir não apenas quando o Encober-to voltará ou quando o quinto império será estabelecido, mas que também se questionam sobre a identidade do Encoberto, a natureza do quinto império e outros assuntos correlatos conforme a profecia pessoana. Por isso, escolhemos dois críticos que têm se dedicado à hermenêutica de Pessoa e que devem ser de interesse do leitor curioso.

O brasileiro Carlos Felipe Moisés, poeta e professor de literatura, entende que Mensagem não se reporta apenas a Portugal, pois na realidade se utiliza da his-tória portuguesa como metáfora de uma certa visão histórica da humanidade, tendo portanto um sentido universalista. Diz Moisés, no livro Roteiro de Leitura: Mensagem de Fernando Pessoa, que Pessoa

tendo-se convencido de que Portugal – por extensão, toda a humanidade – atingiu o ponto máximo de decadência (“Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro” [in “Nevoeiro”]), o poeta agora afirma, categórico, “É a hora!”, certo de que a História humana chegou a um limiar extremo, prenúncio de uma reviravolta imediata. (MOISÉS, 1996, p. 76)

A que reviravolta o crítico está se referindo? Segundo Moisés, a civilização ocidental, ou o quarto império, havia atingido uma situação extrema de mate-rialidade e mercantilização, perdendo tanto os altos valores cristãos quanto os ideais clássicos (greco-romanos), sendo esse “o ponto máximo de decadência”. Desse modo:

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O quinto império concebido por Pessoa, em suma, pode ser entendido como regresso às origens – as origens autenticamente cristãs e pagãs da nossa civilização. [...] Como seria essa nova civilização? [...] Podemos imaginar que o quinto império resultaria da criação de uma sociedade formada por homens capazes de realizar a plenitude de suas potencialidades; quer enquanto indivíduos, quer enquanto ser coletivo. Uma sociedade em que o acúmulo de bens materiais deixasse de ser o ideal supremo buscado pela maioria; em que não houvesse lugar para a superstição e a ignorância, em que o conhecimento racional regesse todas as relações; em que o povo não fosse mais a massa de manobra obscurecida e fanatizada, manipulada pelas elites econômicas, políticas ou religiosas; em que as pessoas fossem realmente indivíduos, na plena posse de sua consciência e vontade; uma sociedade, em suma, onde houvesse menos “cadáveres adiados que procriam” e mais, muito mais “heróis, santos e gênios” – a exceção tornada regra. (MOISÉS, 1996, p. 81)

Diferentemente dessa leitura universalista e utópica de Carlos Felipe Moisés, a poeta e ensaísta Maria Lúcia Dal Farra, também nascida no Brasil, propõe que o significado último de Mensagem seria de caráter metalinguístico e autorrefe-rente, ou seja, uma obra que reflete sobre seu próprio discurso e se coloca como tema do próprio texto. Como assim?

Com isso quero dizer que, muitas vezes, o nosso poeta vaticina em causa própria, arrebatado pelo projeto de executá-lo ele mesmo, de maneira que não é difícil surpreendê-lo profetizando o Desejado e empenhando-se em demasia por encarná-lo. Lembro que, já em 1912, Pessoa previra, n’A Águia, para breve o aparecimento de um “supra-Camões”, ao mesmo tempo em que assegurava que a “nossa grande Raça” partiria em busca “de uma Índia nova, que não existe no espaço”, por meio de “naus” que serão construídas apenas da substância “de que os sonhos são feitos”. Perto disso, assegurava então, a obra dos navegadores que construíram o primeiro Império não passaria de um “obscuro e carnal antearremedo”. (DAL FARRA, 1998, p. 83-84)

Perceba-se que, dessa forma, o Encoberto e o quinto império ganham um novo significado: “Este parece ser, a meu ver, o caráter geral do sebastianismo em Mensagem – o de propositadamente deslocar para a esfera da língua e da literatura portuguesas o regresso do Encoberto” (DAL FARRA, 1998, p. 85). Maria Lúcia Dal Farra chega a tais ideias a partir de uma análise da estrutura do livro e de textos dispersos de Fernando Pessoa a respeito das profecias de Bandarra e da Literatura Portuguesa, em um trabalho exegético bastante sofisticado. Ao fim de seu ensaio “Notas para uma futura compreensão...”, a autora propõe uma questão ao leitor em forma de conclusão: não estaria o poeta Fernando Pessoa assumindo em sua própria obra o cumprimento das profecias sebastianistas (cf. DAL FARRA, 1998, p. 92)?

Eis aqui uma breve amostra de como o sebastianismo pessoano continua pro-vocando críticos e estudiosos, produzindo assim novas e diversas interpretações de sua grande obra Mensagem. Fica, portanto, o convite ao leitor que se deixou apaixonar pelo sebastianismo de Pessoa que procure outros intérpretes de nosso vate, a fim de talvez vir a propor também novos significados a essa Mensagem.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada (seção IV)

(PESSOA, 1980, p. 21-23)

Ainda que rápida, já há nesta análise elementos para a apreciação ponde-rada da moderna poesia portuguesa.

O primeiro facto que se nota é que a actual corrente literária portuguesa é absolutamente nacional, e não só nacional com a inevitabilidade bruta de um canto popular, mas nacional com ideias especiais, sentimentos especiais, modos de expressão especiais e distintos de um movimento literário com-pletamente português: e, de resto, se fosse menos, não seria um movimento literário, mas uma espécie de traje psíquico nacional, relegável da categoria de movimento de arte para a, para este caso sociológico nula, de um mero costume característico.

O segundo facto a notar é que o movimento poético português contém individualidades de vincado valor: não são Miltons nem Shakespeares, mas são gente que se extrema, além de pelo tom, que é da corrente, pelo valor mesmo, dentre os contemporâneos europeus, com excepção de um ou dois italianos, e esses não integrados em movimento ou corrente alguma que, distintiva ou nacional, tenha sombra de direito a ser comparada com a ho-dierna corrente poética lusitana.

O terceiro e último facto que se impõe é que este movimento poético dá-se coincidentemente com um período de pobre e deprimida vida social, de mesquinha política, de dificuldades e obstáculos de toda a espécie à mais

Texto complementarEste excerto é a última parte de um artigo em que Pessoa analisa a moderna

poesia portuguesa (o artigo foi publicado originariamente no quarto número da revista A Águia, em 1912), sendo mantida a ortografia do português europeu. Além disso, há neste trecho duas coisas interessantes: a antecipação do espírito sebas-tianista que inspira o livro Mensagem, a ideia (defendida por alguns intérpretes) de que o supra-Camões previsto no artigo se trate do próprio Fernando Pessoa.

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quotidiana paz individual e social, e à mais rudimentar confiança ou segu-rança num, ou de um, futuro.

Vistos estes elementos sociológicos do problema, salta aos olhos a inevi-tável conclusão. É ela a mais extraordinária, a mais consoladora, a mais eston-teante que se pode ousar esperar. É ela de ordem a coincidir absolutamente com aquelas intuições proféticas do poeta Teixeira de Pascoaes sobre a futura civilização lusitana, sobre o futuro glorioso que espera a Pátria Portuguesa. Tudo isso, que a fé e a intuição dos místicos deu a Teixeira de Pascoaes, vai o nosso raciocínio matematicamente confirmar.

É que os característicos que acabamos de descobrir no nosso actual mo-vimento poético indicam, absolutamente, a sua analogia com as literaturas inglesa do primeiro, e francesa do segundo período, e, portanto, impõem que se conclua daí a fatal analogia com as épocas de que aquelas literaturas são representativas.

A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da completa na-cionalidade e novidade do movimento. Temos, depois, o caso de se tratar de uma corrente literária contendo poetas de indiscutível valor. E note-se – para o caso de se argumentar que nenhum Shakespeare nem Víctor Hugo apa-receu ainda na corrente literária portuguesa – que esta corrente vai ainda no princípio do seu princípio, gradualmente, porém, tornando-se mais firme, mais nítida, mais complexa. E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirma-ção deste deduzidíssimo asserto?

Pode objectar-se, além de muita coisa desdenhável num artigo que tem de não ser longo, que o actual momento político não parece de ordem a gerar génios poéticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas, é precisa-mente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo aparecer de um supra-Camões na nossa terra. É precisamente este detalhe que marca a com-pleta analogia da actual corrente literária portuguesa com aquelas, francesa e inglesa, onde o nosso raciocínio descobriu o acompanhamento literário das

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

grandes épocas criadoras. Porque a corrente literária, como vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos sinal de renascença na vida política, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma, duas ou três gerações depois do auge da corren-te literária?

Ousemos concluir isto, onde o raciocínio excede o sonho: que a actual corrente literária portuguesa é completa e absolutamente o princípio de uma grande corrente literária, das que precedem as grandes épocas criadoras das grandes nações de quem a civilização é filha.

Que o mal e o pouco do presente nos não deprimam nem iludam: são eles que confirmam o nosso raciocínio. Tenhamos a coragem de ir para aquela louca alegria que vem das bandas para onde o raciocínio nos leva! Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso. O ponto de luz até onde essa renascença nos deve levar não se pode dizer neste breve estudo; desacompanhada de um raciocínio confirmativo, essa previsão pareceria um lúcido sonho de louco.

Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glo-rioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.

Dicas de estudoNossa sugestão vai para a leitura na íntegra dos textos críticos comentados

na subseção “O sebastianismo na contemporaneidade”.

MOISÉS, Carlos Felipe. Roteiro de Leitura: Mensagem de Fernando Pessoa. São Paulo: Ática, 1996.

DAL FARRA, Maria Lúcia. Notas para uma futura compreensão. In: IANNONE, Carlos Alberto; GOBBI, Márcia V. Zamboni; JUNQUEIRA, Renata Soares (Orgs.). Sobre as Naus da Iniciação: estudos portugueses de literatura e história. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998.

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Estudos literários1. Segundo cronistas e historiadores, quais teriam sido as causas da fragorosa

derrota do exército do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

2. Que obras e autores portugueses podem ser considerados como as princi-pais referências do livro Mensagem, de Fernando Pessoa?

3. Que possível significado histórico poderia ter o esquema tripartite de Mensagem?

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O sebastianismo na Literatura Portuguesa

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

A saudadeFloresce entre os Portugueses a saudade por duas causas, mais certas em nós que em

outra gente do mundo; porque de ambas estas causas têm o seu princípio. Amor e ausên-

cia são os pais da saudade; e como o nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por

amoroso, e as nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências; de aí vem que

donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas, e esta foi sem

falta a razão por que entre nós habitassem, como em seu natural centro.

Francisco Manuel de Melo

D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), autor da nossa epígrafe (apud CAÑADA, 2003, p. 212) é o nome maior do Barroco português (1580-1756). Ele também é considerado o primeiro teórico desse fenômeno de psicolo-gia social, mas também uma manifestação cultural e literária, que é a sauda-de portuguesa. O que deve chamar nossa atenção é que, já no século XVII, tal característica nacional estava tão bem assentada e consciente por parte dos portugueses que um de seus mais ilustres poetas decide analisar o fe-nômeno, buscando suas especificidades e seu valor intrínseco.

E, como que confirmando a antiguidade e a profundidade dessa sau-dade tipicamente portuguesa, uma das mais célebres definições do sen-timento da saudade foi feita pelo infante D. Duarte (1391-1438), que foi o 11.o rei de Portugal, um dos principais promotores do início da expansão marítima lusa, um excelente poeta e um pensador razoável. Em uma de suas obras – O Leal Conselheiro (1437-1438), uma coletânea de ensaios sobre assuntos variados –, o rei-filósofo assim descreve a saudade:

A saudade [...] é um sentido do coração que vem da sensualidade,1 e não da razão, e faz sentir às vezes os sentidos da tristeza e do nojo.2 E outros vêm daquelas cousas que o homem praz3 que sejam, e alguns com tal lembrança que traz prazer e não pena. E em casos certos se mistura com tão grande nojo, que faz ficar em tristeza. (apud MOISÉS, 1998, p. 59)

1 Neste caso, sensualidade significa “sensibilidade, sensação”.2 Neste caso, nojo significa “sofrimento”.3 Dar prazer.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

O importante nessa definição é o caráter paradoxal de tal sentimento: ele pode dar prazer ou trazer sofrimento. Mais adiante, D. Duarte faz uma decla-ração que repercute até hoje: “Parece este nome de saudade tão próprio, que o Latim nem outra linguagem que eu saiba não é para tal sentido semelhante” (apud MOISÉS, 1998, p. 59). Por isso é um lugar comum se ouvir que o conceito saudade só existe na língua portuguesa, o que na verdade é uma imprecisão linguística, mas que dá a dimensão de o quanto esse sentimento foi apropriado pela cultura lusitana para definir sua própria identidade.

Voltando a Francisco Manuel de Melo, também ele propõe uma definição de saudade que ganhou enorme fama e influenciou poetas e artistas posteriores: “É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão sutil, que equivocada-mente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal de que se gosta, e um bem, que se padece” (apud LOURENÇO, 1999, p. 30). Melo reformula assim a contradição já presente na definição de D. Duarte: simultane-amente ela é um mal e um bem, dá prazer e dor.

No caso de Portugal, recordando a nossa epígrafe, as causas que deflagram “tão sutil” e “mimosa paixão da alma” são o amor e a ausência. Segundo o poeta barroco, os portugueses amam com mais intensidade que os outros povos e, em razão das grandes navegações, com mais frequência os seus compatriotas tendem a se afastar de quem tanto amam, em maior distância e por muito mais tempo, condições que proporcionalmente ampliam a saudade, tornando esse sentimento levado ao extremo uma marca distintiva do espírito lusíada.

Dessa interlocução forçada entre um rei medieval e um poeta barroco, deve-mos reter algumas das principais ideias sobre a saudade portuguesa:

a ênfase no caráter paradoxal desse sentimento; �

sua apropriação como um traço da nacionalidade lusa; �

a surpreendente relação com a expansão marítima; e �

sua ligação com o próprio idioma português. �

Com tais concepções em mente, faremos um périplo pela história da litera-tura de Portugal, que não terá o propósito de esgotar o tema, nem de analisar todos os autores “saudosistas”, mas sim de procurar entender as permanências e alterações que esse sentimento vai sofrendo ao longo do tempo.

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

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Bernardim Ribeiro: a saudade durante o HumanismoO poeta e prosador Bernardim Ribeiro (1480-1540) é, sem dúvida, um dos

maiores nomes da corrente humanista em Portugal (1418-1527). De sua autoria, além de alguns poucos versos, sobreviveram o romance (que era um tipo de poema) Ao Longo de uma Ribeira (1550) e a novela Menina e Moça (1554), que é um marco da prosa portuguesa e o mais significativo texto do Humanismo.

Menina e Moça é uma longa narrativa em prosa cuja característica mais desta-cada é o fato de o narrador, em primeira pessoa, ser uma mulher, algo incomum nas novelas da época. Muitos estudiosos fazem um paralelo entre Menina e Moça e as cantigas de amigo – da época trovadoresca –, que também apresentavam um eu poético feminino. Nessa novela de Bernardim – assim como em seus poemas –, o amor é sempre sinônimo de insatisfação, os desejos se mantêm ir-realizados e o sofrimento é a tônica da vida. A narradora passa os dias sozinha, à beira de um regato, a chorar. E é nesse estado que ela conta eventos de sua vida e as histórias que ouviu contar.

Um dos episódios mais conhecidos em Portugal e que se tornou quase um símbolo nacional é o do rouxinol:

Não tardou muito que, estando eu assi cuidando, sobre um verde ramo que por cima da água se estendia, se veio aposentar um rouxinol; e começou tão docemente cantar que de todo me levou após se o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crescia mais em seus queixumes, cada ora parecia que como cansado queria acabar, senão quando tornava como que começava então. A triste da avezinha que estando-se assi queixando, não sei como, caio morta sobre a água, e caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela. (RIBEIRO, 2008, p. 4)

A figura de linguagem que sobressai nesse trecho é a prosopopeia, por meio da qual o rouxinol se humaniza. Seu canto parece poeticamente refletir sua solidão, sua saudade e sua tristeza, tão grandes a ponto de transformar seu canto em um som inebriante, mas também possivelmente a causa de sua súbita morte. E a moça? “O coração me doeu tanto [...], que não pude ter as lágrimas” (RIBEIRO, 2008, p. 5).

Pode-se ler nesse episódio uma metáfora da saudade, pois conforme a definição de Francisco Manuel de Melo, o mesmo sentimento que causa a beleza do canto da ave é o que acarreta sua dor e leva o rouxinol à morte: “Mal de que se gosta, e um bem, que se padece”. A história do rouxinol foi retomada pelas futuras gerações, sendo interpretada como símbolo da sau-dade portuguesa.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

A saudade romântica de Almeida GarrettAlmeida Garrett (1799-1854) estudou na Uni-

versidade de Coimbra, onde estreou nas letras escrevendo poemas e peças de teatro de gosto neoclássico. Em 1825, publicou em Paris o longo poema narrativo intitulado Camões, hoje con-siderado o marco inaugural do romantismo português.

Garrett reconstrói o poeta Camões como um “gênio romântico”, um herói do povo português e alguém que encerra em sua vida e em sua obra um dos mais caros traços da nacionalidade: a sau-dade. Nas suas notas ao poema Camões, Garrett afirma que

A palavra Saudade é porventura o mais doce, expressivo e delicado termo da nossa língua. A ideia, ou sentimento por ela reportado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa. [...]

De saudade quisera eu dizer ainda alguma coisa. – Saudade, palavra, cuido que vem, por derivação oblíqua, do latino solitudo. Oblíqua digo, porque direitamente derivaram os nossos de solitudo, solidão, soidão e depois soledade, soidade, finalmente saudade. De modo que, por esta síntese (ou pela análise, que é óbvia), se vem a entender claramente que o verdadeiro sentido de saudade é – os sentimentos ou pensamentos da soledade ou solidão ou soidão; o desejo melancólico do que se acha na solidão, ausente, isolado de objectos por que suspira, amigos, amante, pais, filhos etc. – E tanto por saudade se deve entender este desejo do ausente e solitário, que os Latinos, à míngua de mais próprio termo, o expressavam pelo seu desiderium. (GARRETT, s/d, p. 189, 191)

Garrett repõe a questão da exclusividade da língua portuguesa em relação à ideia de saudade, que vinha desde o rei D. Duarte, como já vimos. Em sua análise, o poeta romântico adiciona mais um traço semântico ao vocábulo: a solidão.

Uma edição do poema Camões, de Almeida Garrett, com retrato do autor na capa.

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Cam

ões.

Camões (Canto primeiro, I)

Saudade! gosto amargo de infelizes,

Delicioso pungir de acerbo espinho,

Que me estás repassando o íntimo peito

Com dor que os seios de alma dilacera,

– Mas dor que tem prazeres – Saudade!

Misterioso númen que aviventas

Corações que estalaram, e gotejam

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Não já sangue de vida, mas delgado

Soro de estanques lágrimas – Saudade!

Mavioso nome que tão meigo soas

Nos lusitanos lábios, não sabido

Das orgulhosas bocas dos Sicambros

Destas alheias terras – Oh Saudade!

Mágico númen que transportas a alma

Do amigo ausente ao solitário amigo,

Do vago amante à amada inconsolável,

E até ao triste ao infeliz proscrito

– Dos entes o misérrimo na terra –

Ao regaço da pátria em sonhos levas,

– Sonhos que são mais doces do que amargo,

Cruel é o despertar! – Celeste númen,

Se já teus dons cantei e os teus rigores

Em sentidas endechas, se piedoso

Em teus altares húmidos de pranto

Depus o coração que inda arquejava

Quando o arranquei do peito malsofrido

À foz do Tejo – ao Tejo, ó deusa, ao Tejo

Me leva o pensamento que esvoaça

Tímido e acovardado entre os olmedos

Que as pobres águas deste Sena regam,

Do outrora ovante Sena. Vem, no carro

Que pardas rolas gemedoras tiram,

A alma buscar-me que por ti suspira. (GARRET, s.d., p. 1)

A estrofe de abertura do canto primeiro de Camões surge para nós como uma síntese de tudo o que até agora discutimos sobre a saudade. Seguindo a forma épica, esse texto seria a invocação às musas, que no caso não é nenhuma das deusas gregas, mas sim a Saudade. O narrador é o próprio Garrett que, depois de anos de ausência de seu país e de muitas aventuras, suplica então à nova musa Saudade que lhe inspire a dor, o prazer e a beleza causadas pela distância de Portugal, dos amigos e amados, e pela solidão – para que então possa com talento cantar Camões, que como ele fora poeta, guerreiro, aventureiro, solitário etc. e padecera de saudades.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Todas as características da saudade portuguesa estão presentes aqui:

o paradoxo da saudade – “Mas dor que tem prazeres – Saudade!”; �

a exclusividade da língua portuguesa – “Mavioso nome que tão meigo soas/ �Nos lusitanos lábios, não sabido/ Das orgulhosas bocas dos Sicambros”;

as longas ausências como causa da saudade – “Depus o coração que inda �arquejava/ Quando o arranquei do peito malsofrido/ À foz do Tejo”;

a solidão – “Do amigo ausente ao solitário amigo”; �

o intenso amor – “Do vago amante à amada inconsolável”. �

É nesse quadro de solidão, ausência e desejo que nosso autor vai enquadrar Camões: há a saudade de Camões pela pátria (durante sua peregrinação pela Ásia e a redação de Os Lusíadas) e a saudade dos portugueses oitocentistas pelas glórias do século XVI, das quais o autor da grande epopeia lusitana se revelaria o símbolo máximo.

A saudade simbolista de António NobreSe a solidão passou a ser um elemento constitutivo da saudade portuguesa

com Garrett, será um poeta do simbolismo português, António Nobre (1867-1900), que levará essa ideia adiante. Nobre teve uma vida curta e uma obra mais curta ainda. Morto aos 33 anos de idade, vítima da tuberculose, deixou publi-cado, em 1892, só um livro de poemas – por sinal intitulado Só –, que teve uma segunda edição em 1898, com várias alterações, sendo considerada a versão definitiva. O poeta ainda preparava um outro livro, intitulado Despedidas, que ficou inconcluso e foi publicado postumamente. De sua autoria ainda se podem encontrar os Primeiros Versos, com poemas da tenra juventude, compostos antes do livro Só, reunidos e publicados também postumamente.

Uma das contribuições poéticas de António Nobre foi a utilização do registro coloquial. Em seus versos encontramos o tom prosaico característico do poeta decadentista francês Jules Laforgue (1860-1887), mas também da tradição lírica portuguesa, em especial a de Almeida Garrett. A poesia de António Nobre se volta para o passado, o paraíso mítico de sua infância. A decadência de Portugal ao final do século XIX, depois do Ultimatum Inglês (1890), parece atingir todos os setores

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da vida da nação e aparentemente não se vê uma solução possível. O poeta então procura se afastar desse tédio decadente idealizando um perdido passado mítico.

Os ambientes provincianos e as recordações da infância são registrados em António Nobre por meio de técnicas do simbolismo, nas quais são frequentes as sinestesias e as atmosferas vagas ou nebulosas. É um poeta que se insere mais no decadentismo, comum aos poetas crepusculares, do que propriamente no Simbolismo.

Soneto

Virgens que passais, ao Sol-poente,

Pelas estradas ermas, a cantar!

Eu quero ouvir uma canção ardente,

Que me transporte ao meu perdido lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,

O sol que tomba, aureolando o Mar

A fartura da seara reluzente,

O vinho, a graça, a formosura, o luar!

Cantai! Cantai as límpidas cantigas!

Das ruínas do meu lar desaterrai

Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho, como um ai....

Ó suaves e frescas raparigas,

adormecei-me nessa voz... cantai! (NOBRE, 1979, p. 150)

A essa atmosfera crepuscular, Nobre vai adicionar uma visão infantil, vendo o mundo de uma perspectiva aparentemente ingênua. A seleção de palavras simples indica uma aproximação com o povo e, o pessimismo dos versos não é propriamente individual, pois a situação de miséria que se sente nesses versos tem na verdade um sentido nacional – é de todo o país.

Saudade

Saudade, saudade! palavra tão triste,

E ouvi-la faz bem: Meu caro Garrett, tu

bem na sentiste,

Melhor que ninguém!

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Saudades da virgem de ao pé do Mondego,

Saudades de tudo: Ouvi-las caindo da

boca dum Cego,

Dos olhos dum Mudo!

Saudades de Aquela que, cheia de linhas,

De agulha e dedal, Eu vejo bordando

Galeões e andorinhas

No seu enxoval.

Saudades! e canta, na Torre deu a hora

Da sua novena: Olhai-a ! dá

ares de Nossa Senhora,

Quando era pequena. [...] (NOBRE, 1979, p. 69)

A visão nostálgica do poeta se volta também para a tradição literária portu-guesa. Trata-se de uma evasão do presente, em que os mitos pátrios são proje-tados na infância, à moda neogarrettista da época. O poeta recusa a realidade presente, porque nela encontra o domínio dos ideais burgueses urbanos. Em António Nobre se destacam assim duas qualidades: seu individualismo na ver-dade faz eco ao sentimento coletivo de um Portugal amargurado e humilhado; e ele representa isso com a liberdade formal que só o Simbolismo possibilitou aos poetas no final do século XIX, mesmo que nem todas as características desse movimento se apresentem em sua poética.

Saudade e saudosismo no século XXO saudosismo é uma corrente estética que nasce estreitamente ligada ao mo-

mento político e com um sentido também político. A república acabara de ser proclamada (1910) e um grupo de intelectuais estabelecido na cidade do Porto se incumbiu de dar ao novo regime um lastro doutrinário e cultural que eles acreditavam necessário ao país, a fim de sedimentar a república e possibilitar o seu sucesso.

Entre esses pensadores e literatos podemos destacar Jaime Cortesão, um importante historiador; Leonardo Coimbra, renomado educador; e Teixeira de

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Pascoaes, grande poeta desse período. Junto com outros, eles fundaram uma or-ganização de cunho sociocultural chamada Renascença Portuguesa (1912). Entre outras atividades, essa organização publicou uma revista mensal de literatura e cultura, A Águia, que seria o grande veículo do saudosismo. Sua proposta era:

Dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui: isto é, colocá-las em condições de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento histórico, abrasa todas as almas sinceramente portuguesas: – Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa. (apud DAUNT, 2006, p. 225-226)

O regicídio e a Primeira RepúblicaO Ultimatum Inglês (1890) gerou uma série de revoltas em Portugal e serviu

para minar ainda mais a já decadente monarquia constitucional portuguesa. Os problemas nacionais eram numerosos; os descontentamentos, mais ainda; e a ideia da república passou a ser vista como uma solução adequada ao país. As coisas pioraram no começo do século XX, principalmente depois do governo do primeiro-ministro João Franco, que se estendeu de 1906 a 1908, implantando uma verdadeira ditadura.

Com os ânimos alterados, ativistas ligados ao movimento republicano assas-sinaram o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe em 1908, provocando um grande abalo institucional. Com a monarquia à deriva, a república foi procla-mada em 4 de outubro de 1910.

Depois de séculos de monarquia e com uma situação econômica e social bas-tante problemática, era necessário um grande esforço por parte dos republica-nos e dos grupos aliados no sentido não apenas de conseguir governar Portugal, mas também mudar sua mentalidade e sua cultura para os novos tempos que se inauguravam. Esse foi um dos propósitos, como já dissemos, da Renascença Portuguesa e sua revista A Águia.

Para se ter uma ideia da validade de tais propósitos, vamos assinalar que, não obstante todo o esforço desse grupo e de outros empenhados em prol do novo regime político, a instabilidade social e econômica de Portugal não se resolveu, possibilitando que partidos e facções conservadores e reacionários ganhassem força dentro da sociedade lusa e conseguissem dar um golpe de Estado em 1926, instaurando uma ditadura fascista que durou longos 48 anos. Foi o período do Estado Novo do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970).

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O saudosismo de Teixeira de PascoaesTeixeira de Pascoaes (1877-1952) foi o

primeiro editor de A Águia – revista mensal de literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social e, mais que isso, o principal doutri-nador da nova era republicana. O espírito que animou Pascoaes e seus companheiros a criarem e manterem a Sociedade Renas-cença Portuguesa e sua revista vinha da equação entre o novo momento político nacional e a retomada do passado glorioso português nos moldes sebastianistas.

Pascoaes vinha de uma abastada família de linhagem nobre. Estudou Direito em Coimbra e, muito a contragosto, exerceu a advocacia por dez anos. Homem de posses, decidiu aban-donar a carreira jurídica e se dedicar a suas pro-priedades em Gatão e a produzir uma poesia de grande qualidade (chegou mesmo a ser considerado por seus contemporâneos um poeta superior a Fernando Pessoa).

A obra de Pascoaes não se vincula nem ao Simbolismo, escola anterior, nem aos princípios modernistas que já estavam em efervescência na Europa, po-dendo por isso ser classificada como pré-moderna – um rótulo que na verdade acrescenta bem pouco ao nosso estudo.

Antes de ser uma manifestação de cunho literário, cultural e político, o sau-dosismo é uma doutrina filosófica. Para Teixeira de Pascoaes, o ser – qualquer ser – manifesta uma condição saudosa. Ou seja, teria havido um estado ideal, de plena unidade entre todas as coisas, que se perdeu e que deixou nos seres a “saudade” de tal estado de perfeita harmonia. Nesse ponto, o saudosismo se vincula a uma conhecida doutrina da filosofia de Platão: O Mundo das Ideias.

O Mundo das Ideias

Segundo Platão, nossa vida na verdade é apenas uma projeção do Mundo das Ideias, onde os verdadeiros seres existem e fornecem a este mundo a base da nossa existência. A melhor e mais apreciada exposição dessa dou-trina platônica é o “Mito da caverna”, que se encontra no livro VII da obra A República, de Platão.

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O primeiro número de A Águia.

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Em Pascoaes, da condição saudosa resulta uma condição dolorosa – dor de privação, dor de saudade, consciência da finitude, de imperfeição, de insuficiên-cia do ser. Por meio dessa dor, o poeta vai entender o mundo como uma eterna recordação, com a nossa realidade evocando uma outra realidade, mais verda-deira. Por consequência, a saudade – ou a condição saudosa – é comum a todos os homens, pois como “seres” somos participantes dessa saudade. Dessa forma, o saudosismo é, em princípio, um conceito filosófico ou metafísico, entendendo a nossa realidade como subordinada a uma outra realidade, que é transcenden-te (por isso a metafísica – meta-física, “além da física”, além da nossa natureza).

Mas, onde entram os portugueses nessa história? Para Pascoaes, os portugueses formam uma raça diferenciada das outras nacionalidades europeias. Uma raça que possui maior sensibilidade para a condição saudosa e, portanto, sofre mais do que os outras, mas também possui maior afinidade com essa realidade transcendente e com as possibilidades de melhor se conhecer e de transformar o seu mundo.

Pascoaes explica a “alma portuguesa” afirmando que a saudade

é o próprio sangue espiritual da Raça; o seu estigma divino, o seu perfil eterno. Claro que é a saudade no seu sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-ideia, a emoção refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina. (apud MOISÉS, 1980, p. 290-291)

Talvez alguns possam achar tudo isso muito absurdo ou fantasioso, mas essa reflexão e argumentação estão muito bem calcadas na melhor tradição filosófica do Ocidente, não podendo ser simplesmente descartadas assim sem mais nem menos. Só para se ter uma boa ideia disso, o pensamento saudosista seduziu grandes poetas e pensadores, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, nomes maiores do modernismo português, e entre os melhores da língua por-tuguesa. E as bases desse pensamento ainda continuam influenciando a filosofia e as artes contemporâneas.

O que nos interessa agora é como tal parafernália filosófica vai instrumenta-lizar a poética saudosista e como será essa poesia. Em uma de suas vertentes, Pascoaes vai buscar no passado glorioso de Portugal a fonte para revigorar a sua sociedade. É o próprio poeta que formula essa busca: “A Saudade procurou-se no período quinhentista, sebastianizou-se no período da decadência, e encontrou-se no período atual” (apud BELCHIOR, 1973, p. 14).

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Painel

Num cerro do Marão

Estranha luz meus olhos deslumbrou;

E em corpo de lembrança divaguei

Além dos horizontes,

E toda a pátria terra percorri,

E o mar e o céu azul,

Onde os anjos da velha Lusitânia

Voam como através da nossa fantasia. (PASCOAES, 1973, p. 9)

Aqui, na primeira estrofe do poema “Painel”, vamos encontrar uma série de temas muito caros a Pascoaes. Logo nos versos iniciais, a menção à Serra do Marão, onde o poeta passou a maior parte de sua vida e que apreciava imen-samente. Como não poderia deixar de ser, a contemplação da natureza da terra natal lhe evoca a “saudade” – no caso, codificada pela expressão “corpo de lem-brança”. Tal condição saudosa leva o eu poético a percorrer a história de Portugal e suas glórias:

E cidades, vivendo protegidas

Por santos tutelares:

Viana e Santa Luzia e Braga e o Bom Jesus,

E Guimarães aos pés dum Pio IX em pedra,

Católica e Romana.

E o Porto de Herculano,

Como Lisboa é de Garrett.

Lisboa em gesso branco, o Porto em pedra escura. (PASCOAES, 1973, s.p.)

A referência a Alexandre Herculano e Almeida Garrett não são gratuitas. Já quase um século os separava do autor do poema, e ambos eram considerados (como o são até hoje) monstros sagrados da literatura lusa e, principalmente, dos ideais constitucionalistas e liberais. Ou seja, nada mais motivador para os duros tempos iniciais da república portuguesa do que relembrar dois autores que encarnavam o compromisso com o estado de direito, a justiça e a igualdade. Mas, note-se, tudo em razão da saudade que faz a ligação entre o passado e o presente, e permite projetar esperança sobre o futuro.

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A saudade em Florbela EspancaFlorbela de Alma da Conceição Espanca (1894-1930) nasceu em Vila Viçosa,

no Alentejo, sendo filha de uma família de posses. Deve ficar claro desde já que ela não participou do Movimento Saudosista, nem do Simbolismo, apesar de algumas proximidades, e muito menos do Modernismo – ao qual simplesmente dedicou uma olímpica distância. Mas, o período em que escreveu e alguns dos temas que elegeu mostram que ao menos ela se afinava com certas problemá-ticas de seu tempo e de alguns aspectos poéticos do período. A questão da sau-dade se encontra também em sua poesia, mas não da forma filosófica e orgânica de Pascoaes, conforme veremos adiante.

Florbela fez parte daquela fantástica geração de mulheres que ousaram pela primeira vez fre-quentar a universidade e assumir profissões até então exclusivas dos homens. Ela estudou Direi-to em Lisboa, sendo uma das primeiras mulheres portuguesas nesse curso. Por esse arrojo e deter-minação, ela é vista como uma ativista feminis-ta, o que nem sempre parece ser algo líquido e certo: a poeta nunca demonstrou muito interes-se político ou social, mostrando-se, ao contrário, bem integrada à vida pequeno-burguesa em suas condições socioculturais. Semelhante ati-tude contrasta com o comportamento de uma ativista do feminismo.

Outra faceta de sua vida que também contribuiria para a imagem de feminis-ta é o fato de ter se casado três vezes, havendo se divorciado dos dois primeiros maridos – algo de muito significativo no começo do século XX, e em uma socie-dade bastante patriarcal e conservadora.

A última nota que dá um toque romântico e radical à sua biografia é a sua morte: no dia do aniversário de seus 36 anos, ela tomou uma dose excessiva de calmantes. Tudo indica ser um suicídio, dando fim a uma vida que teve muito de emancipação feminina, mas também um excesso de desilusões por aquilo que Florbela Espanca chamava de amor.

Florbela Espanca tem sido considerada a figura feminina mais importante da Literatura Portuguesa. Produto de uma sensibilidade carregada de fortes impul-

Dom

ínio

púb

lico.

Florbela Espanca.

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sos eróticos, sua poesia se apresenta como um verdadeiro relato íntimo. Seria uma forma de poesia confessional, com a angustiante experiência sentimental de uma mulher inteligente e emancipada em busca de uma relação amorosa que transcendesse as convenções sociais de sua época.

Por fim, vamos ver como Florbela se apropria do tema e o transforma em uma coisa muito própria. Demonstrando sua inserção no mundo saudosista, o título do último livro publicado em vida o denuncia de forma literal: O Livro de Sóror Saudade.

Esse é o soneto que abre o livro e ele traz de imediato uma forte carga con-fessional, uma forma autobiográfica. Em seus versos, o eu poético se reporta a alguém muito querido – tudo indica uma figura masculina – que, EM um mo-mento de ternura, deu-LHE o apelido de Sóror Saudade. Na vida real, Sóror Sau-dade foi a designação que um colega da faculdade, o poeta Américo Durão (a quem o poema é dedicado) havia dado a Florbela em um soneto publicado por ele um pouco antes.

Sóror é sinônimo de “freira, irmã”.

No caso, a referência é a uma enigmática personalidade literária do Barroco português, Sóror Mariana Alcoforado. Tudo nessa escritora é misterioso e muito romântico. Apesar de freira e internada em um convento, Mariana se apaixonou perdidamente por um oficial francês que cumpria uma missão em Portugal. Quando o oficial retornou à França, Sóror Mariana lhe escreveu cartas nas quais expôs abertamente toda sua paixão e entrega ao amante francês. As cartas ori-ginais se perderam, mas houve uma tradução para o francês que recebeu nu-merosas edições e, assim, preservou esses textos de grande beleza literária e revelação de uma alma feminina absolutamente devotada a sua paixão carnal.

Sóror Saudade

Irmã, Sóror Saudade me chamaste...

E na minh’alma o nome iluminou-se

Como um vitral ao sol, como se fosse

A luz do próprio sonho que sonhaste.

Numa tarde de Outono o murmuraste,

Toda a mágoa do Outono ele me trouxe,

Jamais me hão de chamar outro mais doce.

Com ele bem mais triste me tornaste...

E baixinho, na alma da minh’alma,

Como bênção de sol que afaga e acalma,

Nas horas más de febre e de ansiedade,

Como se fossem pétalas caindo

Digo as palavras desse nome lindo

Que tu me deste: “Irmã, Sóror Saudade...” (ESPANCA, 2005, p. 38)

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Em seus poemas, Florbela também expõe sem escrúpulos seus desejos amo-rosos e eróticos, cuja impossibilidade de realização – em parte pelas restrições sociais, em parte por não encontrar uma alma gêmea que a satisfizesse – leva a poeta, em certos momentos de sua obra, a sublimar tais intensos sentimen-tos em uma nostálgica volta à infância, aos locais de sua meninice (em especial Évora) e a uma natureza idealizada. Isso tudo é algo muito parecido àquilo que Teixeira de Pascoaes dizia ser a saudade do ser por uma plenitude passada que fora perdida.

Vejamos no soneto abaixo, a concretização do conjunto de ideias que aca-bamos de desenvolver:

Esfinge

Sou filha da charneca erma e selvagem.

Os giestais, por entre os rosmaninhos,

Abrindo os olhos d’oiro, p’los caminhos,

Desta minh’alma ardente são a imagem.

Embalo em mim um sonho vão, miragem:

Que tu e eu, em beijos e carinhos,

Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,

Fôssemos um pedaço de paisagem!

E à noite, à hora doce da ansiedade

Ouviria da boca do luar

O De Profundis triste da saudade...

E à tua espera, enquanto o mundo dorme,

Ficaria, olhos quietos, a cismar...

Esfinge olhando a planície enorme...

(ESPANCA, 2005, p. 76)

O amor ideal é como relação da planície (“charneca”) com o sol. Durante o dia, o calor do sol fecunda a terra com amplidão e intensidade, qualidades pelas quais a planície passa a noite relembrando e ardentemente desejando o seu re-torno – E isso é o De profundis da saudade.

Precursores do ModernismoO saudosismo de Teixeira de Pascoes foi o viveiro literário em que grandes

nomes do Modernismo germinaram e se desenvolveram. Fernando Pessoa pu-blicou vários de seus poemas na revista A Águia, o órgão oficial do movimento. Mas, não foi só de publicações que se deu a ligação de Pessoa com o saudosismo: ele foi fortemente tocado por essa doutrina, da qual deriva uma parte inicial de sua poesia, em especial o conjunto de poemas de Mensagem (1934) o único livro que o poeta publicou em vida.

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Mensagem é uma espécie de Os Lusíadas modernista. Não é uma epopeia, mas sim um conjunto altamente orgânico de poemas que se reportam às ori-gens, ao desenvolvimento e ao futuro do período das grandes navegações por-tuguesas. Do mesmo modo que Pascoaes, o autor de Mensagem se integrava ao movimento de resgate dos valores portugueses, com ênfase em uma alma lusitana capaz de grandes realizações, podendo portanto revitalizar tal espírito e sair da decadência em que se encontrava:

Prece

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

O mar universal e a saudade. [...] (PESSOA, 1983, p. 17)

Depois das grandes façanhas, a decadência (“a noite veio”), e o que sobrou foram as marcas deixadas pelas navegações (“o mar universal”) e a saudade dos grandes tempos. Mas, embaixo das cinzas da decadência ainda há a chama do heroísmo e da competência, que é a alma lusitana, e pode haver um vento que espalhe as cinzas e reavi essa brasa:

Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —

Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistaremos a Distância —

Do mar ou outra, mas que seja nossa! (PESSOA, 1983, p. 17)

A partir do saudosismo, vamos ter três novas vertentes modernistas se de-senvolvendo, todas elas ligadas a uma revista literária:

um grupo publicará � Orfeu, uma revista da qual Fernando Pessoa fez parte, e que resultará no movimento Orfismo;

outros autores comporão a revista � Presença; e

um terceiro grupo publicará a revista � Seara Nova, uma dissidência de A Águia e do saudosimo.

Mas, essas são outras histórias.

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Da saudade como melancolia feliz (LOURENÇO, 1999, p. 31-34)

Habitados a tal ponto pela saudade, os portugueses renunciaram a defini-la. Da saudade fizeram uma espécie de enigma, essência do seu sentimento da existência, a ponto de a transformarem num “mito”. É essa mitificação de um sentimento universal que dá à estranha melancolia sem tragédia que é o seu verdadeiro conteúdo cultural, e faz dela o brasão da sensibilidade por-tuguesa. Mas, será a saudade assim tão intraduzível quanto o pretende essa mitologia cultural? Podemos aceitar que assim seja, mas apenas na medida em que nenhum sentimento tem outro conteúdo que não o da sua mani-festação. O “sentido” está incluído na própria manifestação e, se escutarmos a voz sem verbo que na saudade aflora, esse silêncio original acaba por se fazer ouvir. Quem melhor do que os poetas poderia, como Orfeu, descer ao labirinto do tempo sepultado para aí surpreender a luz não extinta, simulta-neamente espectral e ofuscante, da felicidade passada?

Revisitemos por instantes a mais célebre descrição dessa descida ao co-ração do tempo, a de Almeida Garrett, em plena aurora romântica. Todos os portugueses conhecem de cor o “retrato” que ele nos deixou da Saudade,

gosto amargo de infelizes,

delicioso pungir de acerbo espinho

Esses versos famosos, que caracterizam perfeitamente a contradição da alma saudosa, nada dizem da saudade. Por que esse “gosto amargo”, por que esse “delicioso pungir”? Qual a raiz da contradição que assim se exprime e se redime, como se exprimem e redimem, segundo a nossa mitologia cultural, a dificuldade ou o mistério da nossa maneira de estar no mundo? Não será saudade um nome, entre outros, com que se exprime alguma coisa de mais universal – precisamente a dificuldade para todo o ser, feito de tempo, de “estar no mundo”?

Texto complementarEduardo Lourenço é um dos intelectuais portugueses mais respeitados na

atualidade. Filósofo e ensaísta, boa parte de sua obra é dedicada a uma “psicaná-lise” da alma portuguesa.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Costumamos dizer que “temos saudades”. Temos saudades da infância, da escola, de alguém, dum determinado momento. No entanto esse “ter” em nada se parece com a posse, a apropriação, em suma, com o dispor so-berana e livremente daquilo que se tem. Também não pode assimilar-se o sentir saudades, por exemplo, ao sentir-se bem de saúde, apesar de a saúde também não ser um objeto, mas um estado positivo, tão positivo que nada mais significa que não estar doente. Podia, quando muito, em bom rigor comparar-se ou situar no mesmo plano o estar “saudoso” e o estar “triste”, mas não podemos dizer ter tristeza como dizemos ter saudades. A tristeza é experimentada como idealmente passageira; a saudade, pelo contrário, faz do “passageiro” algo de idealmente presente. Na verdade, não temos saudades, é a saudade que nos tem, que faz de nós seu objeto. Imersos nela, tornamo-nos outros. Todo o nosso ser ancorado no presente fica, de súbito, ausente. Sentimo-nos como um rio que deixa de correr e reflui para a nascente. O aqui onde estamos assemelha-se a um crepúsculo, toda a “nossa” luz se vai para o lá que nos causa saudades, lugar ou presença, ou ambos, envoltos pelo mesmo “halo” de irrealidade. Saudade subentende, naturalmente, memória – é memória em estado de incandescência, que não se confunde no entanto com ela, nem sequer com a memória prous-tiana, pura irrupção do passado no presente ou fuga do presente para o mais antigo de nós mesmos. É por uma outra maneira de ser presente no passado, ou de ser passado no presente, que a saudade se distingue de uma simples manifestação “memorial”. Como?

A memória é a autonegação do presente, o seu esquecimento vivido, vo-luntário ou involuntário, que idealmente nos proporciona um passado (ou o passado) como tal, idêntico na sua manifestação, na sua relação com a cons-ciência, ao presente suspenso, apesar do sentimento de irrealidade de que se acompanha. A memória oferece-nos assim o que passou como se existisse ainda, a fantasia como pura invenção o que não existe, e a imaginação o que não existe como se realmente existisse. Mas, tanto a memória como a fantasia e a imaginação são, como se dizia, uma espécie de “faculdades” da alma, maneiras de encenar os seus modos de representação. A saudade não é da ordem da representação, mas da pura vivência. A consciência “saudosa” não joga consigo mesma, é palco de um jogo. Não é o eu que contempla a saudade, analisa-a ou joga com ela; é ela que faz dele joguete, que o avassa-la: o eu converte-se, por inteiro, em saudade. Não estamos aqui no plano da psicologia, ou mesmo da gnoseologia, mas no plano da ontologia.

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

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Como é possível essa estranha confusão de uma modalidade do nosso ser afetivo com todo o nosso ser? Lembre-se de que não somos seres inscritos, ou inseridos, como agora se diz, num espaço e num tempo indeterminados, mas seres espacializantes e temporalizantes, unidos e divididos no espaço e no tempo que somos e que criamos. Espaço e tempo são para nós reali-dades com um rosto, o rosto daquilo que amamos, lugar da única, precária felicidade. Se nos afastarmos desse lugar afetivo que nos pertence e a que pertencemos, sentimos então aquilo a que chamamos, em sentido próprio, nostalgia, o estar longe da nossa casa, do nosso lar, do lugar onde nascemos, na acepção própria e figurada. Costumamos dar a esse afastamento um con-teúdo, por assim dizer, geográfico, mas não é disso que se trata. Na verdade, só quando à ausência vivida, física, se acrescenta o sentimento de que se romperam os laços com esse lugar que fazia parte de nós, sentimos, no seu sentido pleno, a nostalgia. A evocada por todos os exilados, mistura amarga, desde Ovídio, de tristeza e de melancolia. A nostalgia, sofrimento por conta de um bem perdido que era constitutivamente nosso, desvenda-se e reve-la-se como um sentimento essencialmente negativo, espécie de luto que o tempo desvanece sem o deixar esquecer. Há alguma possibilidade de con-tornar esse luto desde dentro e não de fora, transfigurando-o em nostalgia, por assim dizer, feliz?

Talvez não seja por acaso que devamos a Teixeira de Pascoaes, o poeta que, melhor do que ninguém, mitificou o sentimento da saudade, a recolha intitulada Regresso ao Paraíso. Esse “regresso” é obra da saudade, que sub-trai a nostalgia ao sentimento da pura perda ou ausência, confiando-lhe a missão de transmudar a perda em vitória de sonho. Muitos duvidam de que tanto baste para distinguir verdadeiramente a saudade da nostalgia, mas po-demos compreender onde se situa a linha divisória. No seu sentido primordial, a nostalgia inscreve-se no horizonte da espacialidade humanizada e nele toma forma. Nessa medida, pode mesmo findar se reintegrarmos o espaço humano cujo afastamento a provocou. Só em princípio, porém, porque pode acontecer (como sempre acontece) que o “tempo” – que é mais, nesse caso, que ação humana ou medida exterior – tenha desfigurado o lugar de origem de que sen-timos nostalgia. Se assim for, experimentamos perante o lugar revisitado uma nostalgia saudosa, o que mostra bem que a saudade se enraíza numa outra experiência, mais radical ainda que a do espaço afetivo. Experiência que é ao mesmo tempo a mais universal e a mais pessoal das experiências, porquanto não tem outro conteúdo que não seja o vivido temporal, nós próprios, nou-tras palavras, como filhos nascidos no coração do tempo e expulsos do seu

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

lugar de nascimento. É essa sensação-sentimento de ardermos no tempo sem nele nos consumirmos a que propriamente chamamos saudade. Os que nunca mudaram de lugar, levados pela mão do acaso ou da necessidade, não sentem nostalgia dele. Mas, Robinson Crusoé na sua ilha terá saudades do dia em que encontrou Sexta-feira, como Petrarca da sexta-feira santa em que viu Laura diante de si. A saudade (que mais podia ser?) é apenas isto: a consciência da temporalidade essencial da nossa existência, consciência carnal, por assim dizer, e não abstrata, acompanhada do sentimento subtil da sua irrealidade.

Talvez só um povo permanentemente distraído da sua existência como tragédia, ou imbuído e inebriado dela a ponto de a esquecer, pudesse tomar por brasão da sua alma a figura da saudade. Talvez, simplesmente, porque, como povo, feliz na sua inconsciência que é a da vida, não se resigne a que nada fica de nada, como disse Unamuno. Quando nada resta de nada, fica ainda o tudo desse nada. É isso que vivemos como saudade, unindo numa só intuição as visões, no fundo semelhantes, dos nossos maiores poetas, de Camões a Garrett, de Pascoaes a Pessoa. Mas, talvez só a música impregnada do peso e da lembrança do tempo – a de Bach ou de Beethoven, de Schubert ou de Mahler – confira a um sentimento que julgamos único a sua real e in-dizível universalidade.

Dicas de estudoLOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1988.

LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como desti-no. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Para um amplo estudo sobre o caráter e a cultura de Portugal, sugerimos vi-vamente essas duas obras do pensador Eduardo Lourenço (nosso Texto comple-mentar é o capítulo 2 de Mitologia da Saudade).

ESPANCA, Florbela. Poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Florbela Espanca tem uma verdadeira legião de admiradores, que a cultuam de forma apaixonada, como não poderia deixar de ser. Aos possíveis florbelistas des-pertados por nosso texto, indicamos a leitura da excelente edição brasileira dessa grande autora, preparada pela professora e também poeta Maria Lúcia Dal Farra.

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

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Estudos literários1. D. Francisco Manuel de Melo é considerado o primeiro teórico da saudade

portuguesa. Como ele a definiu?

2. O saudosismo do grupo de Teixeira de Pascoaes possuía uma função política?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

3. Quais eram as dimensões do movimento saudosista português?

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

O anticlericalismoA piedosa cidade de Lisboa amanhecera em festa em razão de um dos

seus muitos feriados religiosos. Era o dia 1.º de novembro de 1755, Dia de Todos os Santos, e boa parte de seus habitantes se encontrava nas muitas igrejas que sempre pontilharam a capital portuguesa. A manhã era ensola-rada e o clima, ameno. Podemos imaginar que Lisboa estava silenciosa em virtude das celebrações que substituíam o burburinho dos dias de semana pelos sons de sinos e ladainhas. Por volta das 9h30, o chão começa a tremer, as paredes das casas, prédios e igrejas passaram a desmoronar e o caos se abateu sobre a tranquila cidade, vitimada por um dos maiores terremotos já registrados na história da humanidade. Os sismólogos contemporâneos avaliam que o tremor tenha atingido 9 graus na escala Richter.

Passado o tremor prin-cipal, que se acredita tenha durado seis minutos (mas houve outros abalos por mais de duas horas), o grosso da população que se achava na parte baixa da cidade correu para as mar-gens do rio Tejo, em busca de lugar aberto e seguro. Essa massa de pessoas presenciou com espanto quando as águas começa-ram a recuar em direção ao mar. Foi possível ver o leito do Tejo e reconhecer durante vários minutos embarcações e cargas naufragadas há muito tempo. Em seguida, uma onda gigantesca, que se calcula entre seis a dez metros de altura, voltou a cobrir não só o leito do rio como toda a parte baixa de Lisboa, avançando mais de 250 metros cidade adentro. Foi um dos maiores tsunamis registra-dos no Atlântico.

Dom

ínio

púb

lico.

O terremoto de Lisboa em gravura da época.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Enquanto isso, na parte alta da cidade, onde as águas do tsunami não che-garam, as velas dos altares das igrejas, os fogões nas cozinhas das casas, assim como as lareiras acessas por causa do inverno, principiaram um devastador incêndio que se prolongou por diversos dias, incontrolável em virtude de não haver pessoas e equipamentos disponíveis para o combate ao fogo. Ou seja, quem não morreu soterrado, acabou afogado pelo avanço do mar ou quei-mado no grande incêndio que se seguiu. Ao todo, morreram cerca de 12 mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças, mas muitos estudiosos elevam essa cifra para até 100 mil almas. Parecia um castigo divino.

Desde a Reconquista (a expulsão dos árabes da Península Ibérica), Portu-gal ficara conhecido como uma nação intensamente devota, muito ligada ao papado. Diversas gerações de monarcas se notabilizaram por seu fervor cristão, quando não pela obsessão religiosa, como o rei D. Sebastião, morto de maneira bisonha em uma espécie de nova cruzada no Marrocos. Junto com a Espanha, Portugal figurava como um dos principais promotores da Contrarreforma e da Santa Inquisição, e a perseguição aos judeus em seus domínios foi grande – o que tristemente inclui o Brasil.

Semelhante história não poderia deixar de sugerir uma nação tomada por certo fanatismo religioso, beirando quem sabe à superstição e ao obscurantismo. Na realidade, essa era a imagem que a Europa iluminista fazia de Portugal (lem-bremos que o Iluminismo ou Era das Luzes foi um movimento intelectual que floresceu no século XVIII e defendia o emprego da razão em todas as esferas da vida humana, condenando a religião como um fator de alienação dos homens). A partir dessa visão, seria de se esperar que, como resultado de um cataclismo de proporções tão surpreendentes, rebentasse pelo país, depois do terremoto, uma histeria religiosa coletiva, com multidões saindo em procissões interminá-veis, autoflagelando-se ao som de plangentes litanias e preces de contrição.

E foi exatamente assim que Voltaire (1694-1778), o grande filósofo iluminista francês, descreveu a Lisboa pós-terremoto em seu conhecidíssimo texto ficcio-nal Cândido. Nessa narrativa, depois de várias peripécias, Cândido e seu mentor Pangloss chegam a Lisboa precisamente no dia do terremoto. Apesar de escapa-rem da morte no desastre, os dois vão experimentar, segundo Voltaire, a forma lusitana de tratar terremotos:

Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para impedir a ruína total da cidade do que dar ao povo um auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial, era um meio infalível de impedir a terra de tremer. (VOLTAIRE, 1973, p. 30)

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

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Em virtude de, durante o resgate dos sobreviventes, Pangloss ter feito algu-mas considerações sobre o caráter natural do terremoto e sua adequação aos desígnios divinos em um sentido filosófico, ele e o discípulo Cândido são “esco-lhidos” para servirem de bode expiatório no auto-de-fé. Tratava-se de uma ceri-mônia religiosa em que os condenados pelo Tribunal de Inquisição eram senten-ciados e castigados, algumas vezes mortos na fogueira depois de cruéis suplícios. No caso, os dois personagens

foram levados em procissão [...] e ouviram um sermão patético, seguido de uma bela música em cantochão. Cândido foi açoitado em cadência, enquanto se cantava, [...] e Pangloss, contrariamente ao uso, foi enforcado. No mesmo dia, a terra tremeu de novo com um ruído espantoso. (VOLTAIRE, 1973, p. 31)

No entanto, para demérito do grande Vol-taire e desapontamento de alguns leitores – que talvez também nutram o mesmo tipo de imagem da cultura portuguesa demonstrada pelo filósofo francês –, não foi nada disso o que aconteceu na Lisboa destruída. Graças à extraordinária visão e a capacidade de ação de um dos maiores estadistas portugueses, o Marquês de Pombal (Sebastião José de Car-valho e Melo, 1699-1782), as regiões devasta-das pelo sismo foram socorridas com preste-za e Lisboa foi reconstruída em pouquíssimo tempo, sendo a primeira cidade do mundo a contar com edifícios construídos com estrutura à prova de terremotos. E, ainda, vários estudiosos atribuem às iniciativas de Pombal e dos cientistas portugueses o nascimento da sismologia.

Pombal, que era primeiro-ministro à época, desestimulou e até mesmo proi-biu manifestações religiosas que pudessem prejudicar os trabalhos de resgate e reconstrução da cidade. Assim como muitas personalidades portuguesas do período, ele comungava dos ideais iluministas e tinha concepções e atitudes anticlericais. Em outras palavras, Pombal era um crítico do comportamento da Igreja Católica e do seu clero, foi o responsável pela expulsão da Companhia de Jesus (os jesuítas) de Portugal e de suas colônias, o que evidentemente atingiu também o Brasil.

A imagem de país supersticioso e obscurantista, erroneamente cultivada por Voltaire em seu texto ficcional, tinha de fato base na realidade social daquela nação, mas era muito mais em razão de uma condição compartilhada com todos os países europeus de hegemonia católica do que uma peculiaridade portugue-

O Marquês de Pombal.

Dom

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púb

lico.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

sa. Desde a Idade Média, a Igreja de Roma havia angariado grande poder político e econômico. Sua atuação por toda a cristandade sempre teve como objetivo manter seus privilégios e garantir seus interesses (como ocorreu e ocorre com qualquer religião oficial ou hegemônica), o que muitas vezes se chocava com os interesses de grupos políticos e estamentos sociais, e principalmente com o grupo dos pensadores e cientistas. Desses conflitos surgiu, da parte dos oponen-tes da Igreja, uma forma de pensamento e ação que no século XIX se denominou anticlericalismo.

Apesar de essa noção ter sido definida nos oitocentos, sua manifestação é muito mais antiga, sendo encontrada já no período medieval. Embora para muitos deva ser uma surpresa, em Portugal se diz que o anticlericalismo nasceu junto com a própria língua portuguesa, sendo que uma de suas primeiras ex-pressões literárias se apresenta no trovadorismo, o movimento literário inaugu-ral de nossa língua.

O anticlericalismo em PortugalVamos configurar o que designamos como anticlericalismo português defi-

nindo as suas peculiaridades.

A crítica ao clero pode ocorrer em qualquer tipo de religião, mas no caso por-tuguês estamos falando especificamente da Igreja Católica, de seus sacerdotes e principais lideranças, bem como de seus fiéis. E, a partir do século XVI, o an-ticlericalismo lusíada se dirige em particular à ordem dos jesuítas, às políticas da Contrarreforma e à Santa Inquisição, pois, pode-se dizer, essas três instâncias sumarizam o esforço do Vaticano por manter sua primazia sobre a Europa e suas colônias, em uma tentativa de impedir o progresso da Reforma Protestante.

O princípio que fundamentava essas organizações e atividades católicas era o de que Deus fornecia toda a autoridade e poder sobre a terra, sendo a Igreja a instituição privilegiada nessa linha de atribuição divina. Logo, o poder civil, os Es-tados e autoridades seculares, deveriam se subordinar ao papa e seus ministros. Mesmo antes da Renascença e do Iluminismo, semelhante princípio hierárquico de poder terreno já era frequentemente contestado por reis e governantes civis. Mas, foi na Idade Moderna que o anticlericalismo se expandiu, assumindo formas diversas, desde ações governamentais objetivas até manifestações filosóficas e literárias, chegando a se transformar em um movimento de massas com a eclo-são da Revolução Francesa, em 1789.

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Voltando a Portugal, e para exemplificar tanto a ação católica quanto a reação anticlerical, retomemos Pombal e Voltaire.

O filósofo francês era um inimigo declarado dos jesuítas, cuja atuação nos vários países europeus e demais domínios ele considerava nefasta e retrógra-da, impedindo o desenvolvimento das potencialidades racionais desses povos. Quando Voltaire escolheu Lisboa e seu terremoto para exemplificar um com-portamento social impregnado de superstição e fanatismo religioso, por certo ele tinha em mente retratar uma sociedade dominada pela doutrina e a políti-ca dos jesuítas.

Se, como dissemos, o pensador iluminista erra ao falsear os fatos históricos, ele acerta por linhas tortas ao atacar a influência jesuítica, ainda presente em Portugal naquele momento. Enquanto Pombal e sua equipe procuravam organi-zar a sociedade lusitana, instrumentalizando-a para a árdua tarefa de reconstruir sua capital e reformar sua estruturação social e econômica, o padre Gabriel Mala-grida (1689-1761), um jesuíta de origem italiana, fazia de tudo para os impedir.

O Brasil está muito ligado à biografia de Malagrida: durante décadas, ele ca-tequizou principalmente as regiões Norte e Nordeste brasileiras. Sua ação mis-sionária e empreendedora em nosso país lhe valeu o epíteto de “apóstolo do Brasil”, que era dividido com José de Anchieta (1534-1597). Durante o período do terremoto, Malagrida, já bem idoso, encontrava-se em Lisboa. Sacerdote de características místicas e proféticas, grande pregador, o jesuíta não teve dúvidas em proclamar que a tragédia sísmica era um castigo divino.

Ora, isso era tudo que Pombal não queria ouvir, pois abateria ainda mais o moral da população, servindo de um empecilho adicional à recuperação do país. Então, o primeiro-ministro encarrega um padre aliado a escrever um fo-lheto em que explicava o caráter natural do terremoto, negando a ideia de castigo dos céus.

Malagrida não se deu por achado – escreveu e publicou um contundente opúsculo intitulado Juízo da verdadeira causa do terramoto que padeceu a corte de Lisboa no 1.º de novembro de 1755, do qual reproduzimos um trecho:

Sabe, Lisboa, que os únicos destruidores de tantas casas e palácios, os assoladores de tantos templos e conventos, homicidas de tantos de seus habitantes, os incêndios devoradores de tantos tesouros não são cometas, não são estrelas, não são vapores ou exalações, não são fenômenos, não são contingências ou causas naturais, mas são, unicamente, os nossos intoleráveis pecados. (apud MARQUES, 2009)

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Esse texto não apenas reforçava a tese da punição divina como ainda con-denava violentamente todos os planos de ajuda aos sobreviventes, além dos esforços de reconstrução e reorganização da cidade.

Então, o que os portugueses deveriam fazer para dar uma solução àquele estado de coisas? Preces, procissões e... autos-de-fé, é claro.

Mas, Malagrida acabou cometendo um grande erro. No seu entusiasmo mís-tico, profetizou que o terremoto se repetiria no mesmo local, exatamente um ano depois. Como a previsão não se cumpriu, o padre italiano foi implacavel-mente perseguido por Pombal, que queimou seu opúsculo em praça pública, manteve-o preso por vários anos e, em 1761 – seis anos depois do cataclismo –, mandou degolar o velho padre e queimar seu corpo em um auto-de-fé na Praça do Rossio, no centro de Lisboa. Certamente estamos falando de uma perversa ironia: no cadafalso, um defensor da soberania da fé e da Igreja sobre todas as coisas; no papel de inquisidor, um déspota esclarecido, um homem que lutara pela primazia da razão sobre todas as outras formas de conhecimento, fosse a fé ou a revelação religiosa.

Um ano antes, os jesuítas haviam sido expulsos de Portugal e de seus domí-nios ultramarinos. Essa ordem religiosa seria ainda expulsa da França (1764) e da Espanha (1767), fechando-se assim um capítulo nas políticas anticlericais do século XVIII.

O anticlericalismo na Literatura Portuguesa: os primórdios

O anticlericalismo pode se expressar de diversas maneiras:

atacando o clero e os fiéis, mas preservando a instituição religiosa (consi- �dera que os indivíduos são corruptos, enquanto a Igreja é santa), essa foi a posição dos reformadores da Igreja ao longo dos séculos;

entendendo a instituição como um agente nocivo, englobando assim mi- �nistros e crentes (ataca a Igreja sem negar o cristianismo);

criticando a religião ou a religiosidade enquanto fenômeno ou manifesta- �ção humana (considera prejudicial) o cristianismo ou qualquer outra for-ma de religião).

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

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Na Literatura Portuguesa vamos encontrar um pouco de cada uma dessas posições.

Ainda na Idade Média, no período de formação da nacionalidade lusíada, já se percebe o anticlericalismo nas primeiras obras literárias em português. Na realidade, estamos falando do galego-português, uma etapa do nosso idioma, então compartilhado pela Galícia, região que hoje faz parte da Espanha.

Para sermos ainda mais exatos, o galego-português foi a língua franca da li-teratura em toda a Península Ibérica, sendo utilizada por poetas dos reinos de Castela, Leão e outros que compõem a Espanha atual.

Foi, portanto, no final da Idade Média, utilizando como língua literária o gale-go-português, que surgiu o Trovadorismo (1198-1418) na Península Ibérica. Esse movimento cultural restringiu-se apenas à poesia, que por sinal não era somente declamada ou lida, mas também cantada. Sua temática favorita – o amor cortês – desenvolveu-se em duas vertentes líricas:

cantiga de amor e �

cantiga de amigo. �

Mas, nem só de amor viviam os trovadores e seus apreciadores, há ainda uma linha satírica na poesia trovadoresca: as cantigas de escárnio e as de maldizer, dando vazão aos baixos instintos – o ódio, as volúpias, as críticas a grupos sociais e profissionais, bem como ao mundo político e religioso.

É nesse último grupo de poemas (escárnio e maldizer) que vamos encontrar a primeira manifestação anticlerical da literatura em português, em três cantigas de um nobre galego chamado Fernão Paes de Tamalancos (séc. XIII). Pouco se sabe a respeito desse trovador e o fato de ele ser galego, e não português, não impede que seja estudado no Trovadorismo português, já que a língua utilizada configurou uma comunidade literária (cf. SARAIVA; LOPES, 2005, p. 49).

As cantigas de números 5, 6 e 7 de Tamalancos, na edição de Graça Videira Lopes (2002, p. 28-30), referem-se a uma abadessa, prima do poeta, a quem ele servia de modo cortês, ou seja, ele lhe era dedicado, dando-lhe atenção e pro-teção, mas sem compensações físicas. Aconteceu que um cavaleiro de posição inferior ofereceu um presente à freira e assim conquistou o seu afeto. As duas primeiras cantigas reportam o amor sincero do eu lírico à moça e a forma ingrata como a abadessa o trocou por alguém de menor valor.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Original

Quand’eu passei per Dormã

preguntei por mia coirmã,

a salva e paçãã.

Disserom: - Nom é aqui essa,

alhur buscade vós essa;

mais é aqui a abadessa.

Preguntei: — Por caridade,

u é daqui salvidade

que sempr’amou castidade?

Disserom: - Nom é aqui essa,

alhur buscade vós essa;

mais é aqui a abadessa.

(apud LOPES, 2002, p. 30)

Paráfrase

Quando passei por Dormã (ou Dormea)1

perguntei por minha prima,

a pura e nobre (educada no paço).

Disseram-me: não está aqui,

deveis buscá-la em outro lugar,

mas aqui está a abadessa.

Perguntei: por caridade,

onde está a moça pura

que sempre amou a castidade?

Disseram-me: não está aqui,

deveis buscá-la em outro lugar,

mas aqui está a abadessa.

1 Segundo a estudiosa Carolina Michaëlis, o poema se refere ao convento de S. Cristóvão de Dormea, na região de Santiago de Compostela, Galícia (cf. LOPES, 2002, p. 30).

O leitor deve perceber que, à corrosiva comparação entre a moça pura e a abadessa, corresponde a sutil insinuação de que a função eclesiástica representa a perda de valores morais. Tamalancos está assim expressando uma crítica da época à vida corrupta dos mosteiros e conventos, nos quais a opulência que haviam angariado em séculos de exploração dava margem a uma conduta dis-soluta e imoral.

Bem mais grave e ofensiva em seu anticlericalismo é a cantiga de maldizer composta pelo rei espanhol Afonso X, o Sábio (1221-1284), na qual acusa o papa de roubo. O trovador Afonso X, rei de Leão e Castela, foi avô de D. Dinis (1261-1325, o rei trovador de Portugal) e escreveu numerosos poemas, sendo os mais conhecidos as Cantigas de Santa Maria. O rei Afonso X andou às turras com vários papas, em especial Nicolau III (1210-1280). O principal problema estava nos pe-sados tributos exigidos pelo Vaticano. Vamos à cantiga:

Mas, o que nos interessa é a cantiga 7, já de caráter satírico, insinuando com ironia que a freira havia se corrompido, atentando contra a virtude de seus votos eclesiásticos. Leiamos essa cantiga (do lado direito fizemos uma paráfrase para melhor compreensão do leitor):

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

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Original

Se me graça fezesse este Papa de Roma! Pois que or’os panos da mia reposte toma,que levass’el os cabos e dess’a mi a soma;mais doutra guisa me foi el vendê’la galdrapa.

Quisera eu assi ora deste nosso Papa que me talhasse melhor aquesta capa.

Se m’el graça fezesse com os seus cardeaes, que me lh’eu dess’e que mos talhasse iguaaes! Mais vedes em que vi em el[e] maos sinaes: que do que me furtou, foi cobri-l[o] a sa capa.

Quisera eu assi ora deste nosso Papa que me talhasse melhor aquesta capa.

Se cõn’os cardeaes com que fará seus conselhosposesse que guardasse nós de maos trebelhos, fezera gram mercêê, ca nom furtar com elhos e [os] panos dos cristãos meter só sa capa.

Quisera eu assi ora deste nosso Papa que me talhasse melhor aquesta capa.(apud LOPES, p. 2002, p. 53)

Paráfrase

O Papa de Roma poderia me fazer um favor!Já que está levando os panos da minha casa,que levasse os tecidos e trouxesse as roupas;no entanto leva tudo para vender às escondidas.

Queria portanto que esse nosso Papacortasse melhor esta capa.

Ele e seus cardeais poderiam me fazer um favor,que me trouxessem as roupas cortadas direito!Mas vejam, como eu, os seus maus sinais:aquilo que me roubou cobriu com a sua capa.

Queria portanto que esse nosso Papacortasse melhor esta capa.

Se, com os cardeais que formam seus concílios,ele nos livrasse de más encrencas,faria um grande favor se juntos não furtassem e os panos dos cristãos pusessem sob a capa.

Queria portanto que esse nosso Papa cortasse melhor esta capa.

Previamente, é bom alertar o leitor de que as paráfrases aqui propostas têm valor apenas didático, pois os filólogos ainda não conseguiram resolver grande parte dos problemas que as cantigas oferecem (cf. LOPES, 2002). Feita a ressal-va, não há necessidade de absoluta precisão para entender que o eu poético do segundo poema considera que o papa e seus príncipes – os cardeais – são um bando de ladrões. Estamos diante, portanto, de um poema que veicula uma crítica comum da época, denunciando o achaque que o papado impingia aos cristãos em geral, em especial aos reis.

Em termos literários, chamaríamos a atenção para os versos finais de cada estro-fe dos dois poemas analisados: o seu paralelismo e a sua repetição são marcas da poética trovadoresca. Além do fecho lógico que dão à estância, enfatizando a ideia central do poema, esses refrões são altamente poéticos e musicais, confirmando a estreita ligação entre a palavra e a música nas cantigas dessa escola literária.

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O anticlericalismo de Gil VicenteGil Vicente (c.1465-c.1537) é o grande nome do movimento literário seguinte

em Portugal, o Humanismo (1418-1527). Sobre a vida desse dramaturgo, é muito pouco o que sabemos com exatidão. Figura típica do Humanismo, a ele se atribui uma das obras-primas da ourivesaria portuguesa: a famosa Custódia de Belém. No teatro, além de autor de peças, foi ainda ator, encenador e músico. É conside-rado o pai do teatro português e expoente máximo do período humanista.

Antes de falar sobre o aspecto anticlerical da obra de Gil Vicente, seria inte-ressante retornar às histórias de terremoto em Lisboa. O sismo de 1755 não foi o único a castigar aquela região. Na verdade, o fenômeno se repete com uma periodicidade de 200 anos. Os terremotos de que há registro

ocorreram em 1344 (provavelmente ao redor de 7 ou 8 graus na escala Richter), em 1531 (provavelmente de 7 a 9 graus, que também produziu um tsunami), em 1755 (aproximadamente 9 graus, com três abalos posteriores e um tsunami) e, mais recentemente, em 1969 (6 graus). (MAXWELL, 2003)

No tremor de 1531, com a população ainda muito abalada, os sacerdotes ca-tólicos tinham a clássica explicação para a catástrofe: era um castigo de Deus pelos pecados do povo português. A ordem dos jesuítas ainda não havia sido fundada (o que ocorreria três anos depois, na França), mas os frades de Santa-rém não deixam por menos e culpam a tolerância aos judeus como motivo da ira divina.

Já no final de sua vida e muito prestigiado junto à corte, Gil Vicente fez uma censura pública aos frades de Santarém (alguns estudiosos julgam que se trata de um auto teatral). Em uma carta ao rei, Gil Vicente manifestou seu desacordo diante da perseguição aos judeus, e ao que tudo indica o gesto encontrou aco-lhida no rei D. João III. Essa corajosa manifestação pública do grande poeta em um momento de grave crise e na defesa de uma minoria odiada pelo povo, em geral revela o seu espírito humanista.

Certamente, o melhor exemplo de anticlericalismo na obra vicentina se en-contra em sua peça mais conhecida e encenada – Auto da Barca do Inferno (1517, quase quinze anos antes do terremoto). Nela, podemos apreciar dois tipos de personagem:

os alegóricos – o Anjo e o Diabo, respectivamente alegorias do bem e �do mal;

os tipos sociais – o Fidalgo, o Frade, a Alcoviteira etc., que funcionam como �representantes dos grupos aos quais pertencem.

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O Anjo e o Diabo são os barqueiros que conduzem os recém-desencarnados aos seus respectivos destinos: céu ou inferno. Veremos passar por esses barquei-ros um longo rol de pessoas de todas as extrações sociais, tentando, como espe-rado, escapar da barca diabólica e ser aceitos na barca do Anjo. A peça é engra-çadíssima e os argumentos dos candidatos ao inferno beiram ao paradoxo, pois muitas vezes insistem naquilo que os danou: seus vícios e pecados crônicos.

Mas, para os nossos objetivos, interessa o episódio mais divertido, o do Frade, que não vem sozinho, mas acompanhado de sua amante, uma tal de Florença:

Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

FRADE Tai-rai-rai-ra-rã; Huhá!

DIABO Que é isso, padre?! Que vai lá?

FRADE Deo gratias! Sou cortesão.

DIABO Sabeis também o tordião?

FRADE Porque não? Como ora sei!

DIABO Pois entrai! Eu tangerei

e faremos um serão.

Essa dama é ela vossa?

FRADE Por minha a tenho eu,

e sempre a tive de meu,

DIABO Fizeste bem, que é formosa!

E não vos punham lá grosa

no vosso convento santo?

FRADE E eles fazem outro tanto! (VICENTE, 1977, p. 40)

Quando o clérigo percebe para onde a barca vai, ele se mostra muito espantado:

FRADE Pardeus! Essa seria ela!

Não vai em tal caravela

minha senhora Florença.

Como? Por ser namorado

e folgar com uma mulher

se há-de um frade perder,

com tanto salmo rezado?! (VICENTE, 1977, p. 41)

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A crítica a um clero corrupto é também uma marca desse período e desa-guou na Reforma, com Martinho Lutero (1483-1546) na Alemanha e João Calvi-no (1509-1564) na Suíça.

Além de criticados pela luxúria, na peça os sacerdotes ainda se mostram vai-dosos, mundanos e violentos. Há na continuação uma verdadeira aula de esgri-ma que o Frade dá a pedido do Diabo.

Ao término da peça, vão para a barca celestial apenas os quatro Cavaleiros, na verdade cruzados que lutaram pela cristandade e por isso são premiados, e o Parvo.

Nessa peça, o Parvo não é um bobo ou tolo e sim representante do povo, do homem ingênuo, simples e sem formação.

Por fim, há ainda uma personagem controversa, o Judeu, que não é aceito nem na barca do Anjo nem na do Inferno, sendo assim condenado a permane-cer errante. Claro que seu destino parece melhor que o daqueles que vão para o inferno, mas também representa a falta de lugar dos judeus na sociedade cristã da época.

Gil Vicente e os trovadores analisados antes são bons exemplos do anticleri-calismo que focaliza apenas o clero e seus fiéis, poupando a instituição da Igreja. Vamos agora estudar uma manifestação anticlerical na literatura que radicaliza sua crítica e ataca tanto a instituição eclesiástica quanto suas doutrinas.

O anticlericalismo radical de Eça de QueirósComo vimos, com o Iluminismo e a Revolução Francesa (1789), o anticleri-

calismo ganhou novas proporções por toda a Europa. Em Portugal, particular-mente, isso se deu a partir da figura do Marquês de Pombal. E assim o anticleri-calismo chegou ao século XIX “como um fenômeno de massa” (AZEVEDO, 1999, p. 34). Esse será o século da literatura anticlerical por excelência, havendo duas escolas a destacar nesse sentido: o Romantismo e o Realismo/Naturalismo.

No Romantismo, destacam-se três grandes nomes:

Alexandre Herculano (1810-1877); �

Almeida Garrett (1799-1854); e �

Camilo Castelo Branco (1825-1890). �

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O primeiro foi o detonador de uma grave crise com a Igreja Católica: em um de seus livros de história (História de Portugal, 1846-1850), ele afirmou que o famosíssi-mo milagre de Ourique havia sido uma grosseira falsificação histórica. O clero portu-guês moveu uma verdadeira campanha difamatória contra o talentoso romancista e historiador liberal, mas os ventos haviam mudado com o novo regime constitucio-nal e, apesar dos dissabores da polêmica, a fúria eclesiástica não deu em nada.

Já Almeida Garrett, em Viagens na Minha Terra – seu mais importante roman-ce –, compõe no papel de antagonista (mais conhecido como vilão) uma figura bastante complexa, o frei Dinis. Este franciscano na verdade carregava dois obs-curos assassinatos em suas costas, consequências de um adultério e um filho ilegítimo. Tomara o hábito somente na maturidade e, aproveitando-se do status sacerdotal, mantinha uma estranha ascendência sobre uma pobre família, a qual sustentava. Assim se expressa o narrador do romance sobre tal tipo de eclesiásti-co: “Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando” (GARRETT, 1966, p. 61).

E Camilo Castelo Branco tornou o padre ou frade um personagem essencial às intrigas de seus numerosíssimos romances e novelas. Nem sempre os clérigos são corruptos e malévolos nas obras camilianas, mas em boa parte é assim que o autor os retrata. Em seus livros, vamos encontrar padres glutões, beberrões, ig-norantes, vingativos, cruéis, violentos, homicidas, lascivos e até incestuosos. Para Camilo, não só os sacerdotes eram viciosos como também a própria Igreja.

Ao mesmo tempo em que atacava a dissolução do clero e a corrupção da ins-tituição eclesiástica, o Romantismo (escola a que pertenceram Herculano, Gar-rett e Camilo) preservou o cristianismo e procurou recuperar os ideais e a utopia da Igreja primitiva, formada graças à fé e o empenho dos apóstolos. Outra coisa bem diferente vai ocorrer no Realismo.

Em Portugal, o escritor que inaugurou a estética realista-naturalista e ainda se tornou o seu mais importante romancista foi José Maria Eça de Queirós (1845-1900).

Eça de Queirós estudou em Coimbra e fez parte da agitada geração acadêmica daquele período, entusiasmada com as ideias de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e de Auguste Comte (1798-1857). Foi amigo de Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924) e outros envolvidos com a Questão Coimbrã (po-lêmica que marcou o fim do romantismo), integrando o grupo de intelectuais que mudou o perfil do pensamento e das letras portuguesas, a geração de 1870.

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Em 1873, Eça iniciou sua carreira diplomática, exercendo a função de cônsul em Cuba, na Inglaterra e, por fim, na França.

Seguindo os princípios realistas, seu primeiro romance, O Crime do Padre Amaro (1875), é de um anticlericalismo extremo. Nesse livro, o escritor portu-guês delineou um amplo quadro da vida dos clérigos em Leiria, uma pequena cidade interiorana. Nesse romance, os padres são glutões, avarentos, ambicio-sos, lascivos e, em suma, corruptos e corruptores. Amaro, um jovem padre que assume a igreja da sé em Leiria, seduz Amélia, uma moça carola com quem tem um filho.

Em O Crime do Padre Amaro, nosso autor ataca a Igreja Católica de uma forma bastante crua e chocante – como mandava o figurino realista. Na verdade, Amaro, o padre do título, não é o único criminoso da história. Quando o cônego Dias, um sacerdote mais velho e hierarquicamente superior ao jovem padre, des-cobre que Amaro seduzira Amélia e a mantinha como amante, desmascara e acusa Amaro, que se defende:

— Diga-me uma coisa. O que é que o senhor tem com isso?

O cônego pulou.

– O que tenho? O que tenho? Pois o senhor ainda me fala nesse tom? O que tenho é que vou daqui imediatamente dar parte de tudo ao senhor vigário-geral!

O padre Amaro, lívido, foi para ele com o punho fechado:

— Ah, seu maroto!

— Que é lá? que é lá? exclamou o cônego de guarda-sol erguido. Você quer-me pôr as mãos?

O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os olhos cerrados; e depois de um momento, falando com uma serenidade forçada:

— Ouça lá, senhor cônego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na cama com a S. Joaneira...

— Mente! mugiu o cônego.

— Vi, vi, vi! afirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa... O senhor estava em mangas de camisa, ela tinha-se erguido, estava a apertar o colete. Até o senhor perguntou: “Quem está aí?”. Vi, como estou a vê-lo agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que o senhor vive há dez anos amigado com a S. Joaneira à face de todo o clero! Ora aí tem! (QUEIRÓS, 1997, p. 336-337)

Pela óptica de Eça de Queirós, o clero católico da época era irremediavelmente corrupto, pois seus vícios e crimes contaminavam outras pessoas, que se deixavam envolver graças à autoridade que os padres dispunham na sociedade portuguesa – tornando-se assim um dos obstáculos ao desenvolvimento da nação.

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Apesar de o caso terminar em tragédia, o final do livro mostra um Amaro, anos mais tarde, bem posto na carreira eclesiástica, sem remorsos e, tendo como única lição de todo o infortúnio, a consciência de que só deveria se envolver com mulheres casadas:

[O padre Amaro se encontra com o cônego Dias no centro de Lisboa. Falam sobre os acontecimentos da Comuna de Paris:]

Então indignaram-se contra essa turba de maçons, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de tudo o que é respeitável – o clero, a instrução religiosa, a família, o exército e a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram necessárias as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.

— Aí é que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem senão desacreditar-nos... Destroem no povo a veneração pelo sacerdócio...

— Caluniam-nos infamemente, disse num tom profundo o cônego.

Então junto deles passaram duas senhoras, uma já de cabelos brancos, o ar muito nobre; a outra, uma criaturinha delgada e pálida, de olheiras batidas, os cotovelos agudos colados a uma cinta de esterilidade, pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.

— Cáspite! disse o cônego baixo, tocando o cotovelo do colega. Hein, seu padre Amaro?... Aquilo é que você queria confessar.

— Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse e pároco rindo, já as não confesso senão casadas!

O cônego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade... (QUEIRÓS, 1997, p. 434)

Mas, no caso de Eça, diferentemente dos autores antes analisados, não está em jogo apenas a conduta do clero e dos fiéis católicos: de forma sutil, mas me-tódica, por todo o romance o autor vai revelando os mecanismos de doutrinação e dominação da Igreja romana. De maneira inteligente, o narrador eciano vai expondo os principais dogmas católicos – a inquisição, o auto-de-fé, a excomu-nhão etc. – e demonstrando como tais elementos são usados pelo clero como instrumentos de poder e opressão. De fato, essa estrutura eclesiástica de domi-nação se ligava fundamentalmente ao Concílio de Trento (1545-1563), respon-sável pela instauração da Contrarreforma e principal incentivador das atividades jesuíticas. O concílio e sua legislação são citados repetidamente em O Crime do Padre Amaro (cf. BUENO, 2005, p. 18-21) como base canônica para os desman-dos dos padres. Com isso, o autor demonstrava que a própria estrutura da Igreja trazia em si mesma os fatores corrosivos que desaguavam no comportamen-to impróprio de sua clerezia. Segundo a estudiosa Fátima Bueno, o romancista punha em funcionamento literário as ideias expressas por Antero de Quental em seu seminal ensaio “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos” (1871), uma das Conferências do Casino (série de palestras apresen-tadas pelos escritores realistas). Nesse ensaio, Antero relaciona a Contrarreforma como uma das causas da decadência portuguesa (cf. BUENO, 2002 e 2005).

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No entanto, Eça de Queirós não para por aí. Em outro de seus mais importan-tes textos ficcionais, ele é ainda mais impiedoso e ataca o próprio cerne do cris-tianismo, a vida de Jesus e os dogmas de sua divindade e ressurreição. Estamos falando de A Relíquia (1887). Nessa novela, narrada em primeira pessoa por Teo-dorico Raposo, um burguês abjeto cujo propósito de vida era se passar por um sincero fiel católico apenas para obter a herança de uma tia riquíssima, o autor cria um blasfemo paralelo entre a falsificação de relíquias religiosas (objetos que pertenceram ou tocaram santos cristãos) e a vida de Jesus, conforme transmitida pela tradição cristã e assumida como dogma pela Igreja.

Em um longo sonho de Teodorico, durante sua peregrinação a Jerusalém (a fim de obter uma preciosa relíquia para sua rica tia), a história dos últimos dias de Jesus é revista à luz de diversas perspectivas: líderes judeus ortodoxos, mís-ticos de seitas judaicas, pessoas do povo etc., e uma figura de Cristo, diferente da doutrina católica, surge marcada por ambiguidades e falhas. Mas, o pior é a falsificação sobre sua morte e ressurreição. Membros da seita essênia (judeus ascéticos e monásticos) teriam drogado Jesus durante a crucificação e, após seu corpo ter sido levado para o túmulo,

José [de Arimateia] e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo de Jesus, e com as receitas que vêm no livro de Salomão, fazê-lo reviver do desmaio em que o deixou o vinho narcotizado e o sofrimento... (QUEIRÓS, 1997, p. 987)

Entretanto, alguma coisa dá errado:

Estendemos Jesus na esteira. Demos-lhe a beber os cordiais, chamamo-lo, esperamos, oramos... Mas ai! Sentíamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!... Um instante abriu lentamente os olhos, uma palavra saiu-lhe dos lábios. Era vaga, não a compreendemos... Parecia que invocava seu pai, e que se queixava de um abandono... Depois estremeceu; um pouco de sangue apareceu-lhe ao canto da boca... E, com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o Rabi ficou morto! (QUEIRÓS, 1997, p. 988)

Apesar do abatimento que se apodera dos seguidores essênios, “era necessá-rio, para bem da terra, que se cumprissem as profecias”, e assim a farsa continua: o corpo do Mestre é enterrado em uma caverna, “talhada na rocha, por trás do moinho...” (QUEIRÓS, 1997, p. 988). Um colega de viagem de Teodorico, o ilus-tre historiador alemão Topsius – que no sonho funciona como uma espécie de Virgílio da Divina Comédia, guiando o narrador através da Jerusalém antiga –, apresenta uma conclusão de sabor amargo:

Depois de amanhã, quando acabar o sabá, as mulheres de Galileia voltarão ao sepulcro de José de Ramata [José de Arimateia], onde deixaram Jesus sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!... “Desapareceu, não está aqui!...” Então Maria de Magdala [Maria Madalena], crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém – “ressuscitou, ressuscitou!” E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais à humanidade! (QUEIRÓS, 1997, p. 989)

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Mas, se o anticlericalismo de Eça em A Relíquia chega a ponto de denunciar o cristianismo como fundado em uma falsificação histórica, assim como as ig-nominiosas relíquias que eram despudoradamente comercializadas por todo o mundo, mas principalmente na Europa católica, em outros textos o romancista português propõe ainda um outro novo retrato de Jesus Cristo. Nos contos “A morte de Jesus” (1870) e “O suave milagre” (1898), Eça, ignorando a divindade de Cristo, apresenta-o como uma personalidade comprometida com o combate à opressão e a preocupação com os mais pobres, alguém que veio ao mundo com a missão de pregar e lutar por uma sociedade mais justa e equânime (cf. BUENO, 2007). Em suma, a obra queirosiana representa o anticlericalismo do segundo e do terceiro tipo, conforme classificação proposta anteriormente.

O anticlericalismo contemporâneo de Saramago

Com o final do século XIX, assistimos a uma grande mudança na relação entre os Estados e as igrejas no Ocidente. O término da maioria das antigas monar-quias na Europa, a consolidação dos regimes democrático-liberais e do princí-pio de separação entre Estado e religião exigiram das lideranças religiosas maior flexibilidade em sua relação com a sociedade civil e uma sensível diminuição na interferência eclesiástica em assuntos políticos, econômicos e sociais. Diminuin-do a tensão entres esses dois polos, a atitude e a literatura anticlericais perderam proporcionalmente sua intensidade e sua aspereza.

O que não quer dizer que nos países ocidentais as diversas igrejas tenham dei-xado totalmente de tentar interferir na vida secular. Numerosas questões que não faziam parte da pauta do século XIX e início do XX surgiram com intensa urgência e gravidade depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Assuntos polêmicos como o aborto, a eutanásia, os anticoncepcionais, os direitos das mulheres (em especial nas igrejas), o casamento entre homossexuais, as políticas públicas em relação às doenças sexualmente transmissíveis, o ensino religioso nas escolas, o ensino das doutrinas evolucionistas, o uso científico de embriões humanos etc. colocaram mais uma vez as igrejas no primeiro plano do debate público.

Como se isso não bastasse, a ação de lideranças religiosas mulçumanas na or-ganização e doutrinação de grupos extremistas antiocidentais trouxe de volta o fantasma da inquisição e das guerras santas medievais. Certamente alimentado por semelhante estado de coisas, assistimos ainda ao renascimento de movimen-

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tos carismáticos (católicos e protestantes) propondo a interferência religiosa na política em geral, bem como uma visível mudança na política papal, que agora pretende retomar seu perdido papel de protagonista na política internacional.

Eis que de forma até surpreendente, a questão religiosa volta a ser o centro das atenções no final do século XX e início do novo milênio. Tanto é assim que José Sa-ramago (nascido em 1922), prêmio Nobel de literatura de 1998, escreveu um polê-mico artigo em seu blog com o instigante título de “Deus como problema” (2008), que transcrevemos na íntegra na seção Texto complementar, desse capítulo.

Esse escritor português é dono de uma obra que dialoga incessantemente com a história de seu país e, mais especialmente, com a ideia de Deus e a religião cristã. Preocupado em entender o mundo humano e sua impressionante capaci-dade de produzir o mal, Saramago tem usado tanto Portugal quanto o cristianis-mo como metáforas da natureza humana e de sua forma de organização social, as quais, apesar de discursos e instituições que pregam a paz, o amor e a beleza, parecem estar destinadas a reproduzir a miséria e a opressão.

É nesse sentido que o romancista português retoma a vida de Jesus Cristo (e, sem dúvida, o estímulo eciano de A Relíquia) para fazer um acerto de contas com os fundamentos da doutrina cristã – uma das tradições formadoras do Ocidente –, escrevendo O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Se em A Relíquia Eça de Queirós desconstrói o mito fundador do cristianismo propondo que a verdade histórica foi falseada, em seu romance publicado em 1991 Saramago humaniza por com-pleto a figura de Jesus e cobra dele, e dos homens que ele idealmente repre-senta, a responsabilidade e a decisão de assumir seu próprio destino e mudar positivamente o nosso mundo.

O Jesus saramaguiano nasce e cresce sob o signo de um crime do qual ele não foi o autor, mas foi o motivador: a matança dos inocentes.2 Só que nesse novo evangelho o grande culpado não é Herodes e sim José, pai do menino Jesus, conforme o julgamento do anjo que fala com Maria pouco depois do mas-sacre e com Jesus já em segurança:

Disse o anjo, [...] Faltavam estas mortes, faltava, antes delas, o crime de José. Disse Maria, O crime de José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um homem bom. Disse o anjo, Um homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram também, é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados. Disse Maria, Que crime cometeu meu marido. [...] Disse o anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito.

2 O Evangelho de Mateus relata que o rei Herodes, avisado pelos magos do Oriente de que em Belém havia nascido o rei dos judeus, manda matar todos os meninos com menos de dois anos que fossem encontrados naquela cidade, a fim de que seu reino não viesse a ser usurpado (cf. Mt 2:13-18).

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Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que os pais delas as levassem e fugissem. [...] Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. (SARAMAGO, 1999, p. 115-116)

O anjo de Saramago não perdoa a omissão e a covardia do homem comum, o tal “homem bom”. E Jesus, durante sua juventude e maturidade, também não se perdoará por ter sido a causa dessas mortes e, principalmente, porque a sua única morte teria poupado a vida de todos os demais meninos. Sua missão evan-gélica será em parte motivada pela tentativa de reparar tamanho crime. E a culpa de Jesus será instrumentalizada por um Deus brutal, que se servirá do sacrifício daquele homem para expandir sua adoração até os confins da terra. Respon-dendo a Jesus, que perguntará se Ele não estaria satisfeito com a adoração dos judeus, Deus responde que:

Estou e não estou, ou melhor, estaria se não fosse este inquieto coração meu que todos os dias me diz Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de quatro mil anos de trabalho e preocupações, que os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e variados que sejam, jamais pagarão, continuas a ser o deus de um povo pequeníssimo que vive numa parte diminuta do mundo que criaste com tudo o que tem em cima, diz-me tu, meu filho, se eu posso viver satisfeito tendo esta, por assim dizer, vexatória evidência todos os dias diante dos olhos, Não criei nenhum mundo, não posso avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes avaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a quê, A alargar a minha influência, a ser deus de muito mais gente, Não percebo, Se cumprires bem o teu papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano, estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega, E qual foi o papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé. (SARAMAGO, 1999, p. 369-370)

Uma vaidade muito humana e cruel é o que leva Deus a sacrificar aquele a quem diz ser seu próprio filho. Mas, o pior ainda estava por vir: a fim de expandir essa religião, milhares de outros homens seguidores do Cristo martirizado serão torturados e mortos por seus opositores, ou serão martirizados por suas próprias mãos, acreditando estar fazendo a vontade divina, ou ainda irão torturar e matar outros milhares pelo mesmo motivo (cf. SARAMAGO, 1999, p. 377-389). Assim, o jovem judeu, torturado pela culpa de dezenas de crianças mortas por ele não haver dado sua vida em troca das vidas dessas crianças, iria morrer de forma cruel e infame a fim de que muitos outros milhares de homens, por gerações e gerações, viessem a se matar e morrer em seu nome, em nome de Jesus. Eis a síntese da cruel ironia que Saramago põe em movimento em seu romance.

A reflexão que Saramago pede a seu leitor é sobre a responsabilidade indi-vidual e a ação consciente de cada homem, sabendo que, apesar das imensas forças de controle social a que estão submetidos os indivíduos, ainda há um espaço de ação pessoal e coletiva capaz de alterar o curso da história.

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Um ano após a publicação desse romance, Saramago foi indicado para con-correr a um prêmio europeu de literatura, mas sua indicação foi revogada pelo governo português, pois, segundo a avaliação oficial, o livro ofendia a religião católica e, portanto, não deveria representar a nação lusitana. Em resposta a essa proibição governamental, o escritor se retirou de Portugal, mudando sua resi-dência para as Ilhas Canárias (Espanha). Foi sua forma de protesto pela volta da censura a Portugal. Como se vê, a literatura anticlerical mostra sua necessidade e agudeza quando é capaz de despertar reações como essas por parte de uma sociedade que se diz livre e tolerante.

Texto complementar

Deus como problema(SARAMAGO, 2009)

Não tenho dúvidas de que este arrazoado, logo a começar pelo título, irá obrar o prodígio de pôr de acordo, ao menos por esta vez, os dois irredutíveis irmãos inimigos que se chamam islamismo e cristianismo, particularmente na vertente universal (isto é, católica) a que o primeiro aspira e em que o segundo, ilusoriamente, ainda continua a imaginar-se. Na mais benévola das hipóteses de reacção possíveis, clamarão os bem-pensantes que se trata de uma provocação inadmissível, de uma indesculpável ofensa ao sentimento religioso dos crentes de ambos os partidos, e, na pior delas (supondo que pior não haja), acusar-me-ão de impiedade, de sacrilégio, de blasfémia, de profanação, de desacato, de quantos outros delitos mais, de calibre idênti-co, sejam capazes de descobrir, e portanto, quem sabe, merecedor de um castigo que me sirva de escarmento para o resto da vida. Se eu próprio per-tencesse ao grémio cristão, o catolicismo vaticano teria de interromper os espectáculos estilo cecil b. de mille em que agora se compraz para dar-se ao trabalho de me excomungar, porém, cumprida essa obrigação discipli-nária, veria caírem-se-lhe os braços. Já lhe escasseiam as forças para proezas mais atrevidas, uma vez que os rios de lágrimas choradas pelas suas vítimas empaparam, esperemos que para sempre, a lenha dos arsenais tecnológicos da primeira inquisição. Quanto ao islamismo, na sua moderna versão funda-mentalista e violenta (tão violenta e fundamentalista como foi o catolicismo na sua versão imperial), a palavra de ordem por excelência, todos os dias

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insanamente proclamada, é “morte aos infiéis”, ou, em tradução livre, se não crês em Alá, não passas de imunda barata que, não obstante ser também ela uma criatura nascida do Fiat divino, qualquer muçulmano cultivador dos métodos expeditivos terá o sagrado direito e o sacrossanto dever de esma-gar sob o chinelo com que entrará no paraíso de Maomé para ser recebido no voluptuoso seio das huris. Permita-se-me portanto que torne a dizer que Deus, sendo desde sempre um problema, é, agora, o problema.

Como qualquer outra pessoa a quem a lastimável situação do mundo em que vive não é de todo indiferente, tenho lido alguma coisa do que se tem escrito por aí sobre os motivos de natureza política, económica, social, psicológica, estratégica, e até moral, em que se presume terem ganho raízes os movimentos islamistas agressivos que estão lançando sobre o denomi-nado mundo ocidental (mas não só ele) a desorientação, o medo, o mais extremo terror. Foram suficientes, aqui e além, umas quantas bombas de relativa baixa potência (recordemos que quase sempre foram transporta-das em mochila ao lugar dos atentados) para que os alicerces da nossa tão luminosa civilização estremecessem e abrissem fendas, e ruíssem apara-tosamente as afinal precárias estruturas da segurança colectiva com tanto trabalho e despesa levantadas e mantidas. Os nossos pés, que críamos fun-didos no mais resistente dos aços, eram, afinal, de barro.

É o choque das civilizações, dir-se-á. Será, mas a mim não me parece. Os mais de sete mil milhões de habitantes deste planeta, todos eles, vivem no que seria mais exacto chamarmos a civilização mundial do petróleo, e a tal ponto que nem sequer estão fora dela (vivendo, claro está, a sua falta) aque-les que se encontram privados do precioso “ouro negro”. Esta civilização do petróleo cria e satisfaz (de maneira desigual, já sabemos) múltiplas necessi-dades que não só reúnem ao redor do mesmo poço os gregos e os troianos da citação clássica, mas também os árabes e os não árabes, os cristãos e os muçulmanos, sem falar naqueles que, não sendo uma coisa nem outra, têm, onde quer que se encontrem, um automóvel para conduzir, uma escavadora para pôr a trabalhar, um isqueiro para acender. Evidentemente, isto não sig-nifica que por baixo dessa civilização a todos comum não sejam discerníveis os rasgos (mais do que simples rasgos em certos casos) de civilizações e cul-turas antigas que agora se encontram imersas em um processo tecnológico de ocidentalização a marchas forçadas, o qual, não obstante, só com muita dificuldade tem logrado penetrar no miolo substancial das mentalidades

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pessoais e colectivas correspondentes. Por alguma razão se diz que o hábito não faz o monge…

Uma aliança de civilizações poderá representar, no caso de vir a concre-tizar-se, um passo importante no caminho da diminuição das tensões mun-diais de que cada vez parecemos estar mais longe, porém, seria de todos os pontos de vista insuficiente, ou mesmo totalmente inoperante, se não inclu-ísse, como item fundamental, um diálogo inter-religiões, já que neste caso está excluída qualquer remota possibilidade de uma aliança… Como não há motivos para temer que chineses, japoneses e indianos, por exemplo, este-jam a preparar planos de conquista do mundo, difundindo as suas diversas crenças (confucionismo, budismo, taoísmo, hinduísmo) por via pacífica ou violenta, é mais do que óbvio que quando se fala de aliança das civilizações se está a pensar, especialmente, em cristãos e muçulmanos, esses irmãos ini-migos que vêm alternando, ao longo da história, ora um, ora outro, os seus trágicos e pelos vistos intermináveis papéis de verdugo e de vítima.

Portanto, quer se queira, quer não, Deus como problema, Deus como pedra no meio do caminho, Deus como pretexto para o ódio, Deus como agente de desunião. Mas, desta evidência palmar não se ousa falar em ne-nhuma das múltiplas análises da questão, sejam elas de tipo político, econó-mico, sociológico, psicológico ou utilitariamente estratégico. É como se uma espécie de temor reverencial ou a resignação ao “politicamente correcto e estabelecido” impedissem o analista de perceber algo que está presente nas malhas da rede e as converte num entramado labiríntico de que não tem havido maneira de sairmos, isto é, Deus. Se eu dissesse a um cristão ou a um muçulmano que no universo há mais de 400 mil milhões de galáxias e que cada uma delas contém mais de 400 mil milhões de estrelas, e que Deus, seja ele Alá ou o outro, não poderia ter feito isto, melhor ainda, não teria nenhum motivo para fazê-lo, responder-me-iam indignados que a Deus, seja ele Alá ou o outro, nada é impossível. Excepto, pelos vistos, diria eu, fazer a paz entre o islão e o cristianismo, e, de caminho, conciliar a mais desgraçada das espé-cies animais que se diz terem nascido da sua vontade (e à sua semelhança), a espécie humana, precisamente.

Não há amor nem justiça no universo físico. Tão-pouco há crueldade. Nenhum poder preside aos 400 mil milhões de galáxias e aos 400 mil milhões

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de estrelas existentes em cada uma. Ninguém faz nascer o Sol cada dia e a Lua cada noite, mesmo que não seja visível no céu. Postos aqui sem sabermos porquê nem para quê, tivemos de inventar tudo. Também inventámos Deus, mas esse não saiu das nossas cabeças, ficou lá dentro como factor de vida algumas vezes, como instrumento de morte quase sempre. Podemos dizer “Aqui está o arado que inventámos”, não podemos dizer “Aqui está o Deus que inventou o homem que inventou o arado”. A esse Deus não podemos arrancá-lo de dentro das nossas cabeças, não o podem fazer nem mesmo os próprios ateus, entre os quais me incluo. Mas, ao menos discutamo-lo. Já nada adianta dizer que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino. Para os que matam em nome de Deus, Deus não é só o juiz que os absolverá, é o Pai poderoso que dentro das suas cabeças juntou antes a lenha para o auto-de-fé e agora prepara e ordena colocar a bomba. Discutamos essa in-venção, resolvamos esse problema, reconheçamos ao menos que ele existe. Antes que nos tornemos todos loucos. E daí, quem sabe? Talvez fosse a ma-neira de não continuarmos a matar-nos uns aos outros.

Dicas de estudoMAXWELL, Kenneth. Lisboa reinventada. Folha de S. Paulo, 12 jan. 2003.

Para aqueles que desejarem conhecer um pouco mais da história do terremo-to de Lisboa de 1755, sugerimos esse brilhante ensaio do historiador britânico.

MARQUES, José Oscar de Almeida. Voltaire e um Episódio da História de Por-tugal. Disponível em: <http://www.unicamp.br/~jmarques/pesq/VoltaireHist-Port.pdf>.

Esta é uma excelente análise a respeito da avaliação de Voltaire sobre a histó-ria de Portugal, sobre a sociedade portuguesa.

BUENO, Fátima. A ínclita geração. Estudos Portugueses e Africanos, Campinas, n. 39, jan./jun. 2002, p. 33-52.

Para um quadro ampliado do anticlericalismo na literatura da geração de 70, indicamos este ensaio.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Estudos literários1. Como o anticlericalismo se manifesta na literatura em geral?

2. No caso de Portugal, quais as peculiaridades religiosas que foram objetos da crítica anticlerical?

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

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3. Qual foi o período de maior reação anticlerical durante a Idade Moderna em Portugal e essa reação ocorreu naquele momento?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

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O Mar Português na literatura

O Mar PortuguêsO ano de 1453 é considerado por muitos historiadores como o marco

primeiro da Idade Moderna na história ocidental. Não deixa de ser uma ironia o fato de o evento que determina essa data ser precisamente a causa de um entrave no desenvolvimento da Europa – região e povos que na época definiam o tal Ocidente –, sendo o agente dessa crise os turcos, uma civilização “oriental”, do ramo asiático e islâmico. A data marca a Tomada de Constantinopla, cidade dividida entre a Europa e a Ásia, e que se tornou a capital do Império Otomano, dos turcos. A conquista define ainda o apogeu do império turco, que naquele momento incluía todo o norte da África, o Oriente Médio, e ainda avançava pela Ásia.

Além de a expansão turca ser motivo de um vívido terror para os euro-peus mediterrâneos, que viam nos seguidores de Maomé um perigo mortal para a cultura e a religião europeias (como ocorrera durante séculos na Pe-nínsula Ibérica), a queda de Constantinopla significava o bloqueio da mais preciosa rota de comércio mundial, aquela que ligava a Europa ao Extremo Oriente, longínqua região de onde vinham as mercadorias que davam um grande impulso à economia ocidental naquele momento em que se substi-tuía o estático modo de produção feudal pelo dinâmico capitalismo. O fim ou a fragilização dessa rota de comércio era capaz de pôr a perder as con-quistas socioeconômicos que a nascente burguesia havia obtido.

Neste caso, a batida e nem sempre verdadeira máxima de que a crise é o momento das grandes oportunidades é cabível. Os europeus precisa-vam de um novo caminho para a Ásia, de modo a evitar os turcos e con-tinuar promovendo o crescimento da Europa. Havia algum tempo que diversas nações europeias acalentavam a ideia de contornar a África para atingir a Ásia e seus mercados. No entanto, elas encontravam dificuldades intransponíveis:

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

completo desconhecimento sobre essa rota alternativa; �

insuficientes condições tecnológicas (navios, instrumentos de navegação, �técnicas de conservação de alimentos etc.);

falta de pessoas preparadas para semelhante missão – condição certa- �mente fundamental.

Dentre todos os países da Europa, aquele que conseguiu superar os obstácu-los mencionados e possibilitou aos europeus retomar a dinâmica capitalista foi Portugal. A pequena nação encravada na costa ocidental da Península Ibérica fora um dos primeiros estados europeus a se tornar uma unidade autônoma, com um governo centralizado e uma pujante classe mercantil – a burguesia em ascensão. Graças a sua vocação marítima, sua posição geográfica favorável e uma vontade expansionista alimentada por fontes comerciais, aristocráticas e religiosas, os portugueses foram capazes de desenvolver:

a caravela – embarcação competente para grandes travessias marítimas; �

uma excelente cartografia; �

instrumentos de navegação. �

Além disso, foi capaz de arregimentar e preparar homens competentes para esse desafio.

Foi assim que, em 1498 (45 anos depois da Tomada de Constantinopla), o al-mirante português Vasco da Gama (1464-1524) atingiu a Índia cruzando o Cabo da Boa Esperança e criando uma nova rota de comércio com o Oriente. Durante o século seguinte, essa rota traria a Portugal enormes lucros, um grande desen-volvimento socioeconômico e um lugar de destaque na política internacional.

Durante décadas, os portugueses foram donos incontestes desse caminho marítimo, habilitando-se para aprofundar sua presença no mar: eles atingiram os confins da Ásia – o Japão – e começaram a colonização do litoral brasileiro. E foi o português Fernão de Magalhães (1480-1521) que comandou a primeira expedição marítima que deu uma volta completa em torno do globo terrestre.

Paga pelo governo espanhol, a missão de Magalhães foi iniciada em 1519 e finalizada em 1522, após 36 meses de viagem. Dos cinco navios que partiram e dos quase 250 tripulantes, só voltaram ao porto de partida uma nau e 18 homens, em uma das numerosas realizações marcadas pela grandiosidade da conquista e a tragicidade do custo humano.

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O Mar Português na literatura

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A mesma história de outro ponto de vistaEm razão de receber essas informações desde cedo em sua formação primá-

ria, assimilando-as de maneira algo trivial, nem sempre o estudante brasileiro alcança o que esses fatos possuem de grandiosidade, de heroísmo e de como eles alteraram radical e profundamente a face do mundo e a autoconcepção da humanidade. Talvez fosse interessante pensar esse momento de grandes mu-danças a partir de uma nova perspectiva, para assim podermos apreender sua real dimensão.

Para tanto, poderíamos nos colocar no lugar do homem comum do século XV, como ele entendia a terra, o cosmo e o lugar do ser humano nisso tudo. A princípio, o modelo cósmico que tal indivíduo conhece é o do matemático grego Ptolomeu (83-161 d.C.), cujo sistema planetário concebia a Terra como centro do universo, sendo que o sol, os outros planetas e as estrelas giravam ao seu redor. Concebido na Antiguidade, esse ainda era o modelo vigente no começo da Idade Moderna.

Em consonância com o sistema ptolomaico, nosso planeta era entendido como sendo uma extensão de terra plana, fixa e suspensa no espaço.

Havia alguns cientistas afirmando que a terra era redonda, vagava pelo espaço e girava em torno do sol, mas para o nosso homem comum, pessoas como esses cientistas desfrutavam da mesma credibilidade que hoje damos aos lunáticos que, nas praças, anunciam o fim do mundo.

Dentro dessa visão de mundo, o senso comum com toda a razão deduzia que, chegando aos limites dessa superfície chata que era a Terra, encontraríamos um abismo, possivelmente sem fundo, onde uma queda fatal se prolongaria pela... eternidade. O Oceano Atlântico, limite extremo ocidental da Europa, guarda-va em suas águas profundas e sem fim visível esse terrível segredo. Essa ideia deve ter sido, em parte, responsável pelo nome com que o Atlântico era mais conhecido no início das grandes navegações: Mar Tenebroso. E ele era tenebro-so também porque escondia seres monstruosos, tormentas terríveis, assombra-ções etc. Portanto, navegava-se pelo Atlântico só perto do litoral, onde ao menor susto se poderia logo voltar para a segurança da terra firme.

Contrariando toda essa visão de mundo, o senso comum e o bom senso, assim como tentando provar o que todas as pessoas “sabiam” ser impossível, uma classe especial de homens, na sua maior parte portugueses, decidiu se aventurar pelo Mar Tenebroso e ver de fato onde ele ia dar. O número de vidas

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perdidas nesse jogo de tentativa e erro foi imenso. Os fracassos e as tragédias ini-ciais pareciam confirmar a cosmovisão e os temores do nosso homem comum, ratificando sua prudência em manter-se em terra, confiando nas antiquíssimas doutrinas que recebera da tradição escolástica. Mesmo assim, a coragem e o en-genho daqueles que retornavam com vida e que, apesar de tudo, queriam con-tinuar tentando, fizeram com que novas técnicas fossem criadas, as experiências acumuladas se transformassem em conhecimento e ciência, possibilitando por fim o sucesso.

Primeiro, realizou-se o contorno no continente africano, com a travessia do Cabo das Tormentas, logo rebatizado de Boa Esperança. Com isso, abriu-se a rota marítima para a Índia.

Em seguida, chegou-se a América do Norte (com Colombo, patrocinado pelos reis espanhóis) e ao Brasil (com Pedro Álvares Cabral, empreitada portuguesa).

Finalmente, com muito sofrimento e mortes, deu-se a volta ao mundo, em que se atravessou não apenas o Atlântico, mas também o Pacífico, um “mar” que ninguém imaginava existir.

Assim, por meio da tremenda experiência desses marinheiros portugueses, espanhóis e italianos, sendo dos primeiros a preeminência, o mundo foi recriado e, todas as sólidas verdades acalentadas por séculos e séculos caíram por terra, ou melhor, “por mar”.

O português Pedro Nunes (1502-1578) – um dos maiores matemáticos do século XVI e um dos grandes representantes do humanismo –, fazendo um ba-lanço das realizações marítimas portuguesas, de todo o conhecimento acumu-lado, da imensa literatura produzida por navegadores, comerciantes, cientistas e religiosos que participaram dessas viagens e descobertas, e da transformação sofrida pelo mundo então conhecido, assim se expressou:

Não há dúvida que as navegações deste Reino [...] são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjeturas, que as de nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas.

[...] e perderam-lhe tanto medo, que nem a grande quentura da tórrida zona, nem o descompassado frio da extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos ameaçavam, lhes pode estorvar; que, perdendo a estrela do norte e tornando-a a cobrar, descobrindo e passando o temeroso cabo da Boa Esperança, o mar da Etiópia, de Arábia, de Pérsia, puderam chegar à Índia. Passaram o rio Ganges, tão nomeado, a grande Taprobana, e as ilhas mais orientais.

Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o mar, e haver antípodas, que até os santos duvidaram, e que não há região que, nem por quente, nem por fria, se deixe de habitar. E que em um mesmo clima, e igual distância da equinocial, há homens brancos e pretos e de mui diferentes qualidades. (apud MARTINS, 2008)

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O Mar Português na literatura

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Chamamos a atenção para o magistral trecho em que Nunes relaciona as descobertas portuguesas deixando por último, como fecho e maior façanha, a descoberta de “novo céu e novas estrelas”. Não foi por menos que o Mar Tene-broso e os outros mares desconhecidos, “nunca dantes navegados”, mas então dominados pela marinha lusitana, passaram a ser chamados Mar Português.

A primeira literatura do Mar PortuguêsAntes que um poeta cantasse o recém-conquistado Mar Português, um outro

tipo de literatura se fez presente no cenário cultural português da expansão marítima, uma literatura cujos desdobramentos se estendiam muito além do domínio artístico-literário: os textos que descreviam as viagens ultramarinas, os registros das expedições marítimas e os relatos de navegadores, estudiosos, burocratas e comerciantes, entre outros. Em geral na forma de narrativas, esses textos tiveram um sensível impacto nas mentes da época, pois vinham ocupar o espaço deixado pelos antigos romances de cavalaria, inovando com seus lugares exóticos, povos inacreditáveis, façanhas portentosas e a nova visão de mundo que acabamos de expor.

Mas, também tiveram impacto nas ciências, no pensamento filosófico e na te-ologia. Citando só os nomes mais conhecidos, tal literatura de viagens ultramari-nas estimularam obras como Utopia (1516), de Thomas Morus (1480-1535); Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon (1561-1626); e as Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift (1667-1745).

A relação dos textos de viagem na Literatura Portuguesa é imensa e, por isso, à guisa de exemplificação, nos restringiremos a dois dos principais autores dessa categoria: Fernão Mendes Pinto e Gaspar Correia.

Fernão Mendes PintoEncontramos Fernão Mendes Pinto (1509-1584) o tipo acabado do aventurei-

ro de capa e espada. Passou a maior parte de sua vida vagando pela Ásia e traba-lhando em navios portugueses e de outras nações, às vezes como comerciante, às vezes como pirata e até mesmo como escravo, passando por extremos da sorte: em alguns momentos, acumulava grandes tesouros; em outros, mendiga-va. Ao voltar para Portugal em 1558, obteve uma pensão do rei e resolveu sosse-gar, decidido a escrever a história de sua vida, do que resultou o volumoso livro Peregrinação, cuja publicação só veio à luz em 1614, bem depois de sua morte.

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Em geral a literatura de viagens ultramarinas não apresenta grande valor ar-tístico, mas no caso de Fernão Mendes caímos em um verdadeiro conflito de ava-liação. A estrutura do texto é bastante defeituosa, o livro parece ter sido escrito em um único parágrafo, com períodos longos e por vezes confusos, sendo que a sintaxe mal construída dá margens a inúmeras ambiguidades. Apesar disso, diz o grande crítico português Adolfo Casais Monteiro que:

A verdade é o autor da Peregrinação revelar-se dotado de um poder de expressão literária graças ao qual a sua obra resulta, em vez de amontoado indigesto e incaracterístico de fatos, a mais viva, a mais apaixonante e a mais bela obra romanesca do seu século. (MONTEIRO, 1983, p. 753)

Com uma linguagem trôpega, mas com uma impressionante capacidade ex-pressiva, Fernão Mendes nos dá a conhecer em detalhes a sociedade e a cultura de países dos quais o público europeu mal sabia da existência, como o Japão e a China. Muitas vezes, as informações são incorretas, e se considera que grande parte dos eventos é fantasiosa, o que levou alguns comentaristas a propor o trocadilho com o nome de nosso autor – “Fernão: Mentes? Minto!” (MONTEIRO, 1983, p. 751). Mas, como disse o citado Casais Monteiro, isso é problema para historiadores e outros especialistas (cf. MONTEIRO, 1983, p. 755). Para nós, leito-res de hoje, fica uma obra que nos revela o olhar de um europeu quinhentista com um grande respeito pelas culturas estrangeiras e uma enorme disposição de tentar compreendê-las e com elas interagir.

Gaspar CorreiaEntre outros títulos, Gaspar Correia (c.1495-c.1561) nos legou as Lendas da

Índia, obra volumosa só publicada entre 1858 e 1866. Esse escritor viveu 50 anos na Índia, onde exerceu diversas funções no governo português, o que lhe permi-tiu testemunhar muitos dos fatos que relatou, além de haver convivido com as diversas figuras citadas.

Assim como Fernão Mendes, Correia também apresenta uma linguagem es-crita defeituosa, muito próxima de um relato oral, apesar de também se exprimir com grande vivacidade, o que confere à obra um interesse ainda presente.

No entanto, diferentemente do outro viajante, a perspectiva de Correia é a do homem humilde, pequeno funcionário oprimido por nobres e superiores mes-quinhos, o que faz com que seu relato seja o testemunho de como o português comum, pobre, experimentava e compreendia o novo mundo que as navega-ções de seu país lhe haviam possibilitado.

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O maior poeta do Mar Português: Luís Vaz de Camões

Em parte graças ao seu grande desenvolvimento econômico e cultural no século XVI, Portugal foi capaz de formar um dos maiores nomes da poesia épica de todo o mundo e em todos os tempos: Luís Vaz de Camões (1524-1580).

A escola literária à qual Camões esteve vinculado é o Classicismo (1527-1580), um movimento artístico da Renascença (séc. XV-XVI) cujo princípio estético era a retomada dos padrões da cultura greco-romana. Por isso, Camões adotou como modelo as clássicas epo-peias gregas Ilíada e Odisseia, além do famoso poema romano Eneida, para criar Os Lusíadas, um poema épico, ou epopeia, que conta a história do descobrimento do caminho marítimo para as Índias pelo comandante por-tuguês Vasco da Gama.

Um dos propósitos da epopeia é representar a identidade de uma nação ou de sociedades culturalmente integradas. Por isso, Homero foi o poeta do espírito grego e, Virgílio, o poeta da fundação de Roma. Em Os Lusíadas, Camões procu-rou estabelecer a alma lusitana, aquela essência que definiria a nação e a raça portuguesas. E uma das primeiras constatações sobre Os Lusíadas, imprescindí-vel para se compreender sua grandeza e qualidade artísticas, é o paradoxo entre uma obra que retoma modelos da Antiguidade para cantar um feito histórico de dimensões únicas até aquele ponto da história humana.

As grandes navegações e os descobrimentos dos séculos XV e XVI são even-tos ímpares na história da humanidade, comparáveis somente à corrida espacial do século XX. Antes disso, na história mundial, impérios haviam surgido e desa-parecido, grandes extensões de terra foram conquistadas e imensos tesouros, acumulados. Mas, somente na Renascença o homem conseguiu vencer os ocea-nos, atingindo terras distantes e desconhecidas por meio da navegação.

A clássica estrutura de Os LusíadasCamões canta essa façanha como sendo a proeza de um povo cuja história

era muito recente na Europa, pois Portugal se constituíra como nação apenas no século XII. Para tanto, conforme os modelos clássicos, o poeta vai narrar a histó-

Dom

ínio

púb

lico.

A primeira edição de Os Lusíadas (1572).

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ria de Vasco da Gama em dez cantos (os cantos são uma espécie de capítulos), constituídos de, em média, 110 estrofes de oito versos. Os versos são decassíla-bos heroicos, uma métrica que em português se aproxima da forma clássica.

Como manda o figurino da epopeia, a narrativa de Os Lusíadas começa in medias res, ou seja, já no meio da história. A frota de Vasco da Gama está nave-gando no Oceano Índico, próxima a seu destino final. Os portugueses chegam então em Melinde, na costa oriental africana, onde são recebidos pelo rei do lugar. O Gama conta ao curioso rei parte da história da Europa e de Portugal, episódios que se estendem pelos cantos seguintes. Apenas no Canto IV é que o almirante começa a narrar o início da expedição e sua jornada até aquele ponto da história. Somente agora é que a narrativa segue um curso linear.

Depois desse longo flashback, os portugueses retomam a viagem e, por fim, chegam a Calicute (Calecu no poema), cidade do litoral da Índia. Estamos no Canto VII. Há uma série de episódios com os nativos e, depois, começa o retor-no da frota de Vasco da Gama. No caminho de volta, já Canto X, os navegantes param um certo tempo na Ilha dos Amores a fim de descansarem e serem cele-brados pelas ninfas daquele lugar paradisíaco – uma espécie de férias e prêmio. Ainda no Canto X, os portugueses chegam gloriosos em Portugal.

À primeira vista, parece um tedioso relato de uma viagem diplomática e de negócios. Mas, nem foi assim na história real de Vasco da Gama e muito menos Camões permitiria que isso acontecesse em sua epopeia. Em primeiro lugar, a narrativa é entrecortada por episódios envolvendo os deuses do Olimpo. Fiel aos modelos homérico e virgiliano, nosso poeta põe os heróis lusos em constante contato com as divindades clássicas, algumas tentando sabotar os navegadores, outras os ajudando. Nesses episódios, o sabor greco-romano se faz sentir com maior intensidade. Tendo problemas com os deuses, os portugueses enfrentam várias vicissitudes: combates, monstros, gigantes, doenças etc. Como se pode ver, há muito de aventura nesses episódios. Mas, também há momentos de crí-tica aos próprios portugueses e seus empreendimentos marítimos, há lirismo e grande quantidade de narrativas históricas.

Episódios centrais de Os LusíadasComo foi dito, é no Canto IV que a história da expedição de Vasco da Gama

realmente tem início. E na hora da partida dos navios, ainda no cais de Belém, em

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O Mar Português na literatura

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Lisboa, surge a figura obscura e enigmática de um velho de aspecto respeitável que, em voz alta o suficiente para que os marinheiros nos barcos (Canto IV, 20) o ouvissem, faz uma tenebrosa crítica ao empreendimento marítimo:

Oh, maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Digno da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória! (CAMÕES, 1997, p. 138)

O enigma deste episódio está no fato de a epopeia ter sido escrita com o fim de glorificar as navegações portuguesas: haveria espaço em tal obra para uma crítica tão demolidora quanto a desse velho? Seria ela expressão do pensamen-to do próprio autor? Ou ela reportaria uma parte da opinião pública da época, contrária ao desperdício de capitais e vidas humanas para ampliar o comércio do país? Independentemente de se poder concluir com exatidão os propósitos de Camões, o certo é que tal estratégia literária indica a modernidade da obra, que assim rompia os limites do padrão clássico.

Outro episódio, a história do gigante Adamastor, é central no poema por várias razões. Ele se encontra exatamente no meio da obra, no Canto V, possuin-do portanto um caráter estrutural no texto, e o episódio retoma uma série de ideias centrais do poema, o que lhe dá um caráter de síntese. Como na história do Velho do Restelo, há uma pungente crítica ao projeto expansionista português, profetizando dias sombrios à nação. Semelhante ao destino de Inês de Castro (Canto III), o gigante teve a triste sina de uma decepção amorosa. Ao mesmo tempo, vencer o titã é o símbolo da vitória dos navegadores sobre as forças da natureza que até então impediram as grandes navegações.

O gigante, um dos titãs da mitologia greco-romana, encontra-se preso a um rochedo no antigo Cabo das Tormentas – depois rebatizado de Boa Esperança –, como já foi observado, quando os lusos conseguiram atravessá-lo. O destino funesto de Adamastor é devido a seu amor pela ninfa marinha Tétis, um amor que, além de não ser correspondido, foi considerado acintoso pelos deuses. As divindades puniram o gigante pren dendo-o ao rochedo. Em sua angústia e sua fúria, ele causava as tormentas que impediam a navegação pelo Sul da África (Canto V, 59):

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Converte-se-me a carne em terra dura;

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês, e esta figura,

Por estas longas águas se estenderam.

Enfim, minha grandíssima estatura

Neste remoto Cabo converteram

Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas. (CAMÕES, 1997, p. 154)

Os portugueses conseguem passar o Cabo das Tormentas porque incentivam o gigante a contar sua história e, extremamente comovido com o próprio infortú-nio, um choroso Adamastor se retira para longe dos olhos dos navegantes. Desilu-são amorosa e profecias funestas se misturam para representar a façanha lusitana da conquista do Cabo das Tormentas, mas é sobretudo a vitória dos portugueses contra a monstruosidade associada ao mar que se enaltece nesse episódio.

Os Lusíadas e o Mar PortuguêsNo fundo, Os Lusíadas narra a grande saga da humanidade – e não apenas

dos portugueses – em vencer as tremendas forças da natureza. As navegações dos quinhentos descortinaram não somente novas terras (o Novo Mundo), mas também um novo cosmo (um mundo novo), revertendo por completo a auto-imagem e a visão de mundo que por milênios havia configurado a mentalidade dos homens de todo o planeta.

Assim, parece ficar mais claro que o grande herói dessa epopeia não é Vasco da Gama, apesar de ele ser seu porta-voz privilegiado, e sim uma geração de portugueses destemidos, tomando Gama o lugar de um representante coletivo daquela nação e mesmo da humanidade que, valendo-se de sua razão, de sua fé e de sua cobiça, foi capaz de vencer a natureza e alargar o mundo terreno e o cosmo. Por isso o nome do poema épico é um coletivo – Os Lusíadas – e não o nome de um indivíduo, como na Odisseia (a viagem de Odisseu, ou Ulisses, no latim) e na Eneida (a viagem de Eneias).

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(do Canto X, 152a)

Fazei, Senhor, que nunca os admirados

Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,

Possam dizer que são para mandados,

Mais que para mandar, os Portugueses. (CAMÕES, 1997, p. 300)

O final é apoteótico e os heróis são glorificados, mas não deixa de ser irônico ao bom leitor que as várias passagens negativas, que foram meticulosamente colocadas ao longo do poema, deixem um travo amargo na boca. Será que todo o empenho, toda a ambição, todo esse sofrimento valeram a pena?

Seguindo esse raciocínio, a obra Os Lusíadas retoma valores clássicos, mas trata de uma situação ímpar na história humana. Tal contradição vai ter repercussões no conteúdo e na forma do poema. As mais marcantes são as críticas ao empre-endimento marítimo português, os flashbacks históricos e o lirismo de numerosas passagens. Também devem ser ressaltados como uma ruptura com o paradigma épico os trechos em que o eu poético representa o próprio autor do poema, o que fugia à norma clássica. Nesses momentos, além de mostrar suas vicissitudes pesso-ais, Camões ainda condena seus compatriotas pelo mau tratamento que lhe têm dedicado, criticando sua pátria pela grosseria e a baixa valorização da literatura.

Tudo isso nos indica que, mais do que retomar os padrões literários clássicos, Camões rompe certos princípios fazendo com que a originalidade e singulari-dade de sua época sejam também representadas. Ou seja, ele cria uma épica moderna, em que os elementos antigos são valorizados na medida em que sua negação abre espaço para a representação da modernidade que surgia.

O Camões modernista: Fernando PessoaFernando Pessoa (1888-1935), certamente o

maior poeta português do século XX, relê Os Lusía-das em seu livro de poemas herméticos Mensagem. O livro, publicado em 1934, o único editado em vida do poeta, é uma obra que retoma a história das navega-ções, mas de uma perspectiva sebastianista, adotan-do um nacionalismo místico. Tais poemas dialogam de forma estreita com o sebastianismo e o saudosis-mo de Teixeira de Pascoaes (1877-1952).

Dom

ínio

púb

lico.

Fernando Pessoa.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

O sebastianismo tem origem na figura de D. Sebastião (1554-1578), rei por-tuguês que morreu na Batalha de Alcácer Quibir, no norte da África. Sendo ele o único herdeiro do trono de Portugal, com sua morte a coroa lusa foi assumida pelo rei da Espanha. Foi assim que Portugal perdeu sua autonomia política por 60 anos, de 1580 a 1640. A partir daí, criou-se o mito sebastianista, segundo o qual D. Sebastião não teria morrido e iria voltar para restaurar a autonomia polí-tica portuguesa. Mesmo depois de esta ter sido restaurada, o mito se manteve, como aquele que iria restituir a Portugal a glória e a riqueza que tivera no perío-do das grandes navegações nos séculos XV e XVI:

O desejado

Onde quer que, entre sombras e dizeres,

Jazas, remoto, sente-te sonhado,

E ergue-te do fundo de não-seres

Para teu novo fado!

Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,

Mas já no auge da suprema prova,

A alma penitente do teu povo

À Eucaristia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,

Excalibur do Fim, em jeito tal

Que sua Luz ao mundo dividido

Revele o Santo Graal! (PESSOA, 1983, p. 19)

Esse é um dos vários poemas de Mensagem que se referem a D. Sebastião. Note-se o belo paralelo que Pessoa faz entre o sebastianismo e a lenda do Santo Graal, do rei Artur. Do mesmo jeito que uma mítica Inglaterra dependia da saúde e vigor de seu rei para voltar a prosperar, assim Portugal esperava pelo retorno do antigo monarca para reaver sua grandeza perdida.

A segunda parte de Mensagem, “Mar português”, é constituída de 12 poemas em que aparecem as principais figuras da história da expansão marítima de Por-tugal ao lado de figuras mitológicas e outros temas, de modo semelhante ao que vimos na composição de Camões. Nesse ponto, destaca-se o poema “Mar português” – mesmo nome da segunda parte e um dos mais conhecidos de Fer-nando Pessoa:

Mar português

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu. (PESSOA, 1983, p. 16)

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Esse poema coroa uma série de outras composições em que o poeta enaltece o homem que não se acomoda, que deseja sempre ir além e obter aquilo que pa-recia impossível. Para tanto, o herói deve aceitar a dor e o sofrimento como seus companheiros de viagem sabendo que, por mais grandioso que seja, o resultado não trará consigo a felicidade, mas tão-somente a glória. Nesse antepenúltimo poema da segunda parte, o autor consigna o prêmio do sofrimento dos portu-gueses: a partir daquele momento (o fastígio da expansão marítima), os oceanos passavam a ser propriedade da pátria lusíada. E, ao dominar o perigo do abismo oceânico, Portugal enfim obteve o paraíso, o céu – que aqui significa apenas o inatingível e não um lugar de bem-aventurança.

Fernando Pessoa é sem dúvida uma das figuras mais importantes e mais sig-nificativas da Literatura Portuguesa graças a uma magnífica obra, sua e de seus heterônimos, um fenômeno ímpar na literatura ocidental. Mas, se tivesse nos legado apenas o livro Mensagem, Pessoa já entraria para o panteão dos poetas de primeira grandeza, ao lado de Camões, graças à grande travessia que realizou ao atualizar o tema do Mar Português na poesia modernista.

Texto complementarSelecionamos o trecho final de um artigo de Oliveira dedicado à Literatura

Portuguesa que expressa o desalento pela perda do Mar Português.

Naufrágios do império: poéticas de um mar não mais português

(OLIVEIRA, 2003, p. 153-155)

A raça dos avós está em um passado irrecuperável para este tempo em que o mar não mais é português. Todo a magia se perdeu. É inevitável, aqui, voltarmos ao poema de Nobre a que já nos referimos, que quase na mesma época do de Cesário [Verde] transformará em fado individual esta experiên-cia de fracasso que, como bem podemos notar, é coletiva:

Em certo reino, à esquina do Planeta,

Onde nasceram meus Avós, meus Pais,

Há quatro lustros, viu a luz um poeta

Que melhor fora não a ver jamais.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Mal despontava para a vida inquieta,

Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais,

À falsa fé, numa traição abjecta,

Como os bandidos nas estradas reais!

E, embora eu seja descendente, um ramo

Dessa árvore de Heróis que, entre perigos

E guerras, se esforçaram pelo Ideal:

Nada me importas, País! seja meu Amo

O Carlos ou o Zé da T’resa... Amigos,

Que desgraça nascer em Portugal! (NOBRE)

O tom infantil, o vocabulário de contos de fadas, tudo reenvia para a falta de magia do presente. Nada mais aqui parece existir. Estamos a um passo do Portugal nevoeiro de Pessoa. É uma desgraça nascer neste espaço de que toda a heroicidade foi retirada, em que parece existir só uma apagada e vil tristeza. Como diria em tom sarcástico Álvaro de Campos, “Pertenço a um gênero de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho. A morte é certa/ Tenho pensado nisto muitas vezes” (PESSOA).

Também a morte do país era certa, mas sempre adiada.

Eduardo Lourenço uma vez notou que “Antero [de Quental] é a primeira consciência portuguesa separada de si mesma, irremediavelmente dual” (LOU-RENÇO). Podemos pensar que toda a experiência portuguesa nesse infindável e dilacerante século XIX é irremediavelmente dual, pois é todo o país que está separado de si mesmo. Perdido o ser que houve, Portugal não sabe encontrar o ser que há. Está parado nessa imensa calmaria, tão bem apontada por [Camilo] Pessanha em “San Gabriel”, que parece não ter fim. Talvez a melhor imagem desta situação foi debuxada por Mário de Sá-Carneiro, que, como Nobre, trans-formou em pessoal um destino que era coletivo:

Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro.

Garrett, Cesário, Nobre, Pessanha, Pessoa, Sá-Carneiro. Todos eles cons-troem uma poética de desalento, e são algumas das vozes que entoam esse cantar de lamentos que se torna cada vez mais pungente. Já notei que estes mesmos escritores, junto a outros, também constroem, em outras obras, um

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canto de esperança, também eles anteveem, às vezes em momentos muito próximos aos que escrevem estes poemas, uma saída: el-rei menino há de vir, como indicará Nobre, San Gabriel abençoará o mar, como esperará Pes-sanha, é a hora, como afirmará Pessoa. Talvez Antero, com a sua dualidade, possa mesmo ser considerado como a figura símbolo de todo este período.

Para encerrarmos estas breves anotações, em que coordenamos e desen-volvemos algumas ideias que já havíamos apresentado em outros momen-tos, gostaria de citar o soneto “Portugal”, escrito pelo espanhol que melhor soube entender esta mistura de desalento e delírio que atravessa esse longo século XIX. Refiro-me, obviamente, a Miguel de Unamuno:

Del Atlántico mar en las orillas

desgreñada y descalza una matrona

se sienta al pie de sierra que corona

triste pinar. Apoya en las rodillas

los codos y en las manos las mejillas

y clava ansiosos ojos de leona

en la puesta del sol. El mar entona

su trágico cantar de maravillas.

Dice de luengas tierras y de azares

mientras ella sus pies en las espumas

bañando sueña en el fatal imperio

que se hundió en los tenebrosos mares,

y mira cómo entre agoreras brumas

se alza Don Sebastián, rey del misterio

Um claro sentido descensional percorre todo o poema, como percorreu todo o século. O mar, que em outro texto Unamuno considerou que é, para Portugal, um enorme cemitério de homens e de glórias, entoa o seu cantar de maravilhas enquanto o país, essa mulher desgrenhada e descalça, sonha com o fatal império que naufragou. Mas, toda essa queda se opõe, no último verso, ao verbo alzar que é aplicado a D. Sebastião. Ele se levanta, vindo do mar, restituindo o país de sua queda. É este retorno que a mulher, com olhos de leoa, vê ao olhar o pôr do sol. Como diria Pessoa, cumpriu-se o mar e o império se desfez. Vários escritores oitocentistas tentaram acreditar, deses-peradamente, que era chegada a hora de cumprir-se Portugal. Pouco mais aqui fizemos que a cartografia dos naufrágios dessa esperança.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Dicas de estudoPINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983.

A leitura de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto pode se converter em uma das experiências literárias mais ricas no tocante ao mundo das descobertas.

OLIVEIRA, Paulo Motta. Naufrágios do império: poéticas de um mar não mais português. Via Atlântica, São Paulo, n. 6, out. 2003, p. 147-156.

Indicamos a leitura completa do artigo cujo trecho final é o nosso “Texto complementar”.

Estudos literários1. Em conjunto com expedições de outros países, as navegações portuguesas

do século XIV e XV descobriram novas rotas de comércio, novos continentes, mas também tiveram uma outra importância que transcende muito tais rea-lizações comerciais e militares. Do que estamos falando?

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2. De que maneira Camões expressou artisticamente o século de descobertas marítimas de Portugal?

3. O Mar Português também é celebrado por Fernando Pessoa em seu livro Mensagem. Quais são as características diferenciadoras dessa obra?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

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Escrita e reinvenção literária da história de Portugal

Literatura e históriaPor serem dois gêneros narrativos, a literatura e a história sempre se

cruzaram na cultura letrada ocidental. Em alguns momentos, a proximi-dade entre elas se tornou muito estreita e em outros momentos foram feitos recortes distintos. O fato é que as próprias noções de literatura e de história jamais foram fixas, mudando juntamente com a sociedade.

Vamos fazer aqui um percurso pela literatura e pela historiografia por-tuguesas tomando por perspectiva a relação entre essas duas noções.

Comecemos pela crônica real, quando a distinção entre literatura e his-tória não era concebida do mesmo modo que a concebemos hoje, ainda que alguns princípios comuns já estivessem ali formulados.

A crônica realDe origem burguesa, Fernão Lopes (c.1380-c.1459) era guarda-mor da

Torre do Tombo (nome dado ao arquivo documental do reino) e cronista oficial de vários reis de Portugal. Nascido no reinado de D. João I (1357-1433), ele passou a servir a casa real já com D. Duarte (1391-1438). Passou pela regência do infante D. Pedro (1392-1449) e ainda chegou a servir no reinado de D. Afonso V (1432-1481). Escreveu as crônicas de D. João I, de D. Fernando (1345-1383) e de D. Pedro I (1320-1367).

Fernão Lopes foi o primeiro escrivão contratado para registrar o que hoje chamamos de história de Portugal. Na altura, tal gênero literário se chamava crônica real e considerava-se que somente a história da realeza merecia ser registrada. Encomendada pelos reis, era uma história compro-metida com a legitimação daquele que a patrocinava. Não há, portanto, o distanciamento crítico que hoje exigimos de um historiador – embora sai-bamos que, por mais que o historiador contemporâneo se esforce, sempre estará em alguma medida comprometido com o lugar social, político, eco-nômico e cultural que ocupa em nossa sociedade.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Mas, no século XIV essa questão nem se colocava: o cronista era um fiel servo do rei e não iria contrariá-lo. Ainda assim, o compromisso ao menos com a ideia de verdade era uma exigência. No prólogo da Crônica de D. João I, o historiador afirma que:

Se outros porventura nesta crónica buscam formosura e novidade de palavras e não a certidão das histórias, desprazer-lhes-á nosso razoado, muito ligeiro a eles de ouvir, e não sem grande trabalho a nós de ordenar. Mas nós não curando de seu juízo, deixados os compostos e enfeitados razoamentos, antepomos a simples verdade à aformosentada falsidade. Nem entendais que certificamos cousa salvo de muitos aprovada, e por escrituras vestidas de fé. De outro modo, antes nós calaríamos do que escreveríamos cousas falsas. (LOPES, 1960, p. 2)

Note-se como a ideia de verdade (“certidão das histórias”) se antepõe à do trabalho estético com a linguagem (“formosura e novidade das palavras”). Além disso, também a base documental do texto histórico está aqui afirmada (“por escrituras vestidas de fé”).

Diferentemente dos cronistas que o seguirão, Fernão Lopes se debruça não só sobre a história da aristocracia, mas também inclui a burguesia nascente e sobretudo o povo português. Contudo, tal circunstância se dá em um contexto bastante específico. Como cronista de D. João I, o Mestre de Avis, fundador de uma nova dinastia em Portugal – substituindo a dinastia de Borgonha –, Fernão Lopes se vê na contingência de dar legitimidade à nova família real. Pela linha-gem real, D. João I jamais poderia ser rei, pois a coroa deveria pertencer a D. Miguel, filho de D. Beatriz, a então rainha de Portugal. No entanto, D. Miguel morreu em 1385 e D. Beatriz ficou viúva em 1890. Apoiado pelo povo e pela burguesia, D. João I conseguiu dar um golpe e tomar a coroa, fundando assim a dinastia de Avis. Foi nessas circunstâncias de legitimação da nova dinastia que Fernão Lopes colocou o povo como sujeito da história em sua crônica real. De outro modo, certamente o povo entraria apenas como pano de fundo das ações da realeza, como acontece no texto dos outros cronistas.

Além de Fernão Lopes, outros escritores ganharam notoriedade como cronis-tas no reino. Podemos citar:

Frei João Álvares (?-1484), que escreveu a � Crônica do Infante Santo D. Fernando;

Gomes Eanes de Zurara (1410-1474), autor da � Crônica da Tomada de Ceuta ou Terceira Parte da Crônica de D. João I, da Crônica do Conde D. Pedro de Meneses, da Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, entre outras;

Mateus de Pisano, � 1 com o texto De Bello e Septensi;

1 Mateus de Pisano foi um famoso poeta, filósofo e orador chamado da Itália pelo regente D. Pedro para educar o rei D. Afonso V e escrever as crônicas dos reis de Portugal em latim. De sua obra, somente se conhece hoje o texto De Bello Septensi, (1460). Alguns historiadores afirmam que o De Bello Septensi é uma versão resumida da Crônica da conquista de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara.

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Escrita e reinvenção literária da história de Portugal

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Damião de G � óes (1502-1574), que nos deixou a Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel e a Crônica do Príncipe D. João, além de textos históricos em latim;

Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559), com sua � História do Descobri-mento e Conquista da Índia pelos Portugueses;

Frei Bernardo de Brito (1569-1617), com o polêmico texto � Monarquia Lu-sitana;

João de Barros (1496?-1570?), com seu imponente trabalho � Décadas da Ásia, continuados por Diogo do Couto (1542-1616).

Ao lado desses, outros autores do mesmo período elaboraram textos que acabaram sendo integrados à historiografia portuguesa, mas que na altura de sua composição estariam mais ligados ao gênero das narrativas de viagem. Po-demos citar, entre outras obras:

Cartas para El-Rei � , de Afonso de Albuquerque (1445-1515);

Peregrinação � , de Fernão Mendes Pinto (1510?-1583);

Itinerário da Terra Santa � , de Frei Pantaleão de Aveiro (séc. XVI).

O fato é que todos esses textos narrativos formam o fundamento da historio-grafia portuguesa.

Qualificamos de “polêmico” o texto de Frei Bernardo de Brito e isso vale uma explicação. Dos outros textos aqui arrolados, o seu destoa fortemente em dois aspectos:

não respeita o primado da documentação expresso no texto de Fernão �Lopes;

não realiza a esperada adesão dos cronistas à causa real. �

Mas, novamente temos aqui uma situação muito específica.

A Monarquia Lusitana começa com o grande dilúvio bíblico, passa pela paixão de Cristo e chega até a fundação da Ordem de Cister, em 1098. No de-correr da obra, o frei relata diversos mitos e lendas, tratados como “fatos históri-cos”, com o intuito de glorificar a nação portuguesa, mas não exatamente o rei. Se lembrarmos que ele escreveu no chamado período filipino (1580-1640), isto é, no período em que Portugal perdeu sua autonomia e a coroa portuguesa se

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

encontrava submetida aos reis espanhóis, entenderemos porque não há a legi-timação histórica do poder real. Tratando de um período anterior ao surgimento de Portugal, Frei Bernardo de Brito nele identifica todos os sinais proféticos da origem do reino português, fazendo na prática, portanto, uma crítica à perda de sua autonomia.

O recurso à efabulação, ao maravilhoso, ao mito, privilegiando a hagiogra-fia, tem fundamentação na historiografia medieval e será, dois séculos depois, fortemente criticado por aquele que revolucionou a historiografia portuguesa: Alexandre Herculano (1810-1877).

A literatura romântica e uma nova concepção de história

Alexandre Herculano propagou em Portugal a ideia de uma historiografia fundamentada na documentação, escrita objetivamente, sem enaltecimento ou glorificação das personagens históricas, com imparcialidade e distanciamento crítico, sem o intuito de servir a propósitos religiosos, políticos ou pessoais. Além disso, devia ser uma história na qual fossem considerados todos os grupos que constituem a sociedade, não apenas a aristocracia ou o clero. Assim, temos a história vista como o resultado de um conjunto de forças e interesses de grupos sociais distintos.

Em sua primeira edição da História de Portugal, assim diz Herculano:

Cometendo uma empresa, cuja importância, grande ou pequena, deixarei que outros avaliem, talvez seria melhor abster-me de quaisquer reflexões preliminares. São, por via de regra, os prólogos destinados a captar a benevolência do público; mas, numa obra histórica, nem o autor deve pedi-la, nem o leitor concedê-la. Averiguar qual foi a existência das gerações que passaram, eis o mister da história. O seu fim é a verdade. Onde o autor errou involuntariamente é condenável o livro; onde pretendeu iludir os que o lêem, a condenação deve cair sobre o livro e conjuntamente sobre o autor. Nenhumas considerações humanas podem alterar essa regra; e, por isso, longe de pedir indulgências, pedirei aos homens competentes a severidade para com este escrito. É o interesse da ciência que o exige. Nas doutrinas de opinião talvez sejam lícitas as concessões: nas matérias de fatos seriam absurdas. A verdade histórica é uma. (HERCULANO, s.d., p. 19)

Como se depreende do trecho acima transcrito, para Herculano a história é ciência e sua verdade é única. Como já observamos, hoje temos consciência que a total imparcialidade é na prática impossível e que a objetividade absoluta não existe (ainda que o exercício de sempre buscá-la em suas várias facetas continue a ser a nossa única garantia de chegarmos o mais próximo de uma possível “verdade histórica”). No entanto, no século XIX, Herculano e tantos outros historiadores

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Escrita e reinvenção literária da história de Portugal

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acreditavam na possibilidade de um retrato fiel do passado a partir de uma aná-lise imparcial dos documentos.

Dessa perspectiva, não há como negar que a Monarquia Lusitana de Frei Bernado de Brito era, no mínimo, risível. Mas, o próprio Herculano também mesclou história e imaginação, só que já nos moldes do século XIX. É importante lembrar que somente com o movimento romântico vai se sedimentar a distinção entre narrativa ficcional e outros gêneros narrativos. Foi nesse período que a palavra literatura, empregada sozinha, passa a designar todo gênero de texto ficcional. Para empregá-la com o sentido de texto não-ficcional, passa a ser necessário incluir um adjetivo: litera-tura médica, literatura jurídica, literatura filosófica. Portanto, literatura e história estão, no século XIX, devidamente separadas pelas noções de verdade, de rea-lidade, de fato. Assim, enquanto o texto histórico trabalha com a verdade dos fatos ocorridos, o texto ficcional trabalha com a verossimilhança, isto é, com a imitação – em graus distintos – da realidade (basta lembrar que enquanto um romance realista imita a realidade de maneira muito fidedigna, uma fábula imita somente o comportamento humano, pois mescla-o com características de ani-mais, por exemplo).

Ao misturar literatura e história, Alexandre Herculano sedimentou, em Portugal, um famoso subgênero ficcional oitocentista: o romance histórico. Dessa forma, ele pode recriar a história, mas sendo sempre o mais fiel possível ao modo de vida, à geografia, à ordem política e social do momento histórico retratado no romance. A ficcionalização se dá no nível do enredo e das personagens, mas todas as carac-terísticas históricas do momento em que a ação se desenrola são preservadas.

Assim acontece com Eurico, o Presbítero (1844), por exemplo, um dos roman-ces históricos mais conhecidos de Herculano. A história se passa no início do século VIII, na Espanha ainda dominada pelos visigodos. É o ambiente em que se dá a história de amor entre Eurico e Hermengarda. Note-se que os nomes são de época. Eurico não tinha posses e Hermengarda era filha do duque de Fávila. Após vencer uma difícil batalha em favor do imperador Vitiza, Eurico se viu em condições de pedir a mão de sua amada em casamento. No entanto, o duque de Fávila se recusou a entregar sua filha a Eurico por o rapaz ser pobre, e ainda o fez acreditar que era ela que o rejeitara.

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Alexandre Herculano.

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Desiludido em seu amor, Eurico entrou para o sacerdócio, tornou-se o Presbítero de Carteia. Passou a ter uma vida simples, de orações, escrevendo poemas e hinos religiosos. No entanto, liderados por Tarrique, os árabes inva-diram a Península Ibérica. Eurico viu-se na obrigação de combater os mouros e, vestido de Cavaleiro Negro, passou a integrar as fileiras dos godos, lutando de maneira heroica. Logo ganhou a admiração de todos, mas quando tudo parecia estar a favor dos godos e dos cristãos, Sisibuto e Ebas, os filhos do imperador Vitiza, traíram seu povo no intuito de tomar o trono e o combate pendeu a favor dos árabes. Logo, também Roderico, rei dos Godos, morreu no campo de bata-lha. Em meio aos combates, os árabes atacaram o mosteiro da Virgem Dolosa e raptaram Hermengarda. O Cavaleiro Negro conseguiu salvá-la e, inconsciente, Hermengarda foi conduzida a uma gruta nas montanhas das Astúrias, onde seu irmão Pelágio estava escondido. Quando despertou, viu Eurico em sua frente e declarou o seu amor. No entanto, Eurico era um sacerdote e seu voto de castida-de não permitia que se casasse. Então ele conta a ela a sua história e revelou ser tanto o Presbítero de Carteia como o Cavaleiro Negro. Hermengarda enlouque-ceu e Eurico partiu para um combate suicida contra os árabes.

Assim, essa trama amorosa se constrói sobre o fundo histórico das invasões árabes na Península Ibérica. No texto, a história de amor entre Eurico e Hermen-garda é sistematicamente ofuscada pela descrição histórica. Vejamos, por exem-plo, como o texto se inicia:

A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos germânicas que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da civilização romana soubera como os godos ajuntar esses fragmentos de púrpura e ouro, para se compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo expulsara da Espanha quase que os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos francos, que em suas correrias assolavam as províncias visigóticas d’além dos Pireneus, acabara com a espécie de monarquia que os suevos tinham instituído na Galécia e expirara em Toletum depois de ter estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascônia, abrangiam grande porção da antiga Gália narbonense. (HERCULANO, s.d. b, p. 12)

O estilo do texto muito se aproxima do gênero do texto histórico. Não há uma clara marca de ficcionalidade no trecho acima, o que se dará mais adiante. Os maio-res traços ficcionais estão ligados à subjetividade do protagonista Eurico, que, poeta, fala de seu sofrimento amoroso no mesmo diapasão que tantos outros personagens de romances românticos.

Entretanto, essa miscelânea entre história e literatura não pode ser comparada ao que fazia Frei Bernardo de Brito, pois aqui o texto não se pretende histórico, mas ficcional. A história funciona como uma forma de atribuir verossimilhança à trama amorosa. No entanto, podemos ver ali também uma crítica a um aspecto da con-

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temporaneidade de Herculano, pois o amor entre Eurico e Hermengarda só não se concretiza porque ele fizera voto de castidade. Apesar de católico, Herculano era um forte crítico da instituição da Igreja e considerava o voto de castidade uma prática antiquada e perversa. Portanto, apesar de situar seu romance no século VIII, sua crítica se dirige ao clero do século XIX – no qual Herculano viveu.

Disso se depreende que ao se falar do passado estamos sempre também fa-lando do presente. Essa mescla entre o passado e o presente será trabalhada de forma bem mais complexa no século XX, quando a crença na objetividade do discurso histórico cai por terra e toda e qualquer perspectiva passa a ser tomada apenas como mais uma versão dos fatos.

A reinvenção literária da históriaComo vimos, o romance histórico de Alexandre Herculano inventa uma

trama em um determinado contexto histórico, que é fidedignamente retratado. O lugar da ficção está circunscrito à trama amorosa, mas não ao contexto histó-rico no qual esta se dá. Não há qualquer reinvenção da história.

Já um escritor como José Saramago revela um procedimento distinto em relação à história de Portugal. Surgindo como escritor no momento em que se configurava a geração de escritores neorrealistas, podemos considerar que Saramago seguiu, em alguns aspectos, aquilo que os caracterizava, como a contestação à ditadura salaza-rista e a busca de uma leitura marxista da história portuguesa. Todavia, Saramago acabou enveredando por um caminho próprio. Contemporâneo também do boom da literatura fantástica latino-americana – com Jorge Luís Borges (1899-1986), Julio Cortázar (1914-1984) e Gabriel García Márquez –, passou a elaborar uma literatura de cunho fantástico que em vários níveis dialoga com essa tradição.

A partir daí, a revisão marxista da história de Portugal passou a ganhar uma configuração bastante peculiar na obra de Saramago. Tomemos, por exemplo, o caso do romance O Memorial do Convento (1982). Faremos aqui um detido resumo de sua trama no intuito de comentar como a história é reinventada.

Esse romance se passa no século XVIII, em Portugal, e se inicia com a cena da cópula entre o rei D. João V e a rainha D. Maria Ana Josefa, com a promessa do rei de erguer um convento em Mafra caso a rainha ficasse grávida. A partir daí, re-trata-se a vida social e política do reinado, comandada pela religiosidade. Todas as ações importantes do rei tinham por base a Igreja, assim como o cotidiano do povo era regulado por missas, procissões, autos-de-fé, festas de santos etc.

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O convento de Mafra em nossos dias.

Há então um corte para a vida de Baltazar Mateus, o Sete-Sóis, personagem fictício, que fora desligado do exército por ter perdido a mão esquerda, estraça-lhada por um tiro na fronteira com a Espanha. Baltazar vai para Lisboa, onde está ocorrendo um auto-de-fé, no qual são queimados ou deportados hereges e peca-dores. Ali Baltazar conhece Blimunda, cuja mãe, considerada bruxa e cristã-nova, estava sendo deportada para Angola. Blimunda está acompanhada do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724), este sim, personagem histórico. Blimunda revela a Baltazar que tem o poder de ver as pessoas por dentro, fisica-mente falando, poder que só se manifesta quando está em jejum. O padre casa Blimunda e Baltazar e rebatiza Blimunda como Sete-Luas.

Os três passam a trabalhar no projeto do padre: a construção de uma máqui-na de voar, a passarola. Trabalham em uma quinta (propriedade rural). O padre viaja para a Holanda em busca de conhecimentos alquímicos. O casal parte para Mafra, onde habita a família de Baltazar. Na Holanda, o padre descobre a ne-cessidade de recolher éter para fazer voar a passarola. Esse éter teria origem na sublimação das vontades humanas, que Blimunda tem capacidade de enxergar no interior dos corpos e de recolher em frascos. O músico italiano Domenico Scarlatti (1685-1757), outra personagem histórica, faz uma visita ao invento do padre e fica muito bem impressionado. Sua música cura Blimunda de uma doença misteriosa.

Mas a situação do padre começa a ficar difícil e, em meio a acusações de here-sia, ele faz a passarola voar e acaba fugindo para Toledo, na Espanha, onde viverá até sua morte. A passarola sobrevoa Mafra e pousa nas proximidades, no monte Juno, com Baltazar e Blimunda a bordo.

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Baltazar torna-se trabalhador na construção do convento de Mafra, que passa a ser descrita, com projeto do alemão João Frederico Ludovice (1670-1752) e co-laboração de diversos mestres italianos, além da importação de inúmeros objetos decorativos da Itália. Comenta-se o trabalho e os gastos descomunais de D. João V com o convento, acentuando o sofrimento e a pobreza do povo que o constrói.

Ao final, Blimunda e Baltazar, que visitam várias vezes a passarola em cima do Monte Juno, acabam se separando, pois a passarola sobe aos ares com Bal-tazar dependurado nela. Blimunda procura-o por nove anos e só o encontra em um auto-de-fé no Terreiro do Paço, em Lisboa, exatamente onde se conheceram, mas desta vez ele é um dos que estão sendo queimados na fogueira. Quando Baltazar morre, sua vontade desprende-se do corpo e aloja-se em Blimunda.

Há, portanto, uma sobreposição entre personagens da história de Portugal (o casal real, o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o músico Domenico Scar-latti, o arquiteto João Frederico Ludovice) e personagens ficcionais (Baltazar e Blimunda, entre outros).

Há também uma sobreposição entre fatos da história de Portugal (a origem e construção do Convento de Mafra, o voo da passarola) e situações ficcionais (a deportação da mãe de Blimunda, o romance entre Baltazar e Blimunda, a reali-zação desse casamento pelo padre Gusmão etc.).

Mas, é importante notar como os fatos históricos estão aí trabalhados.

Sabe-se que D. João V e D. Maria Ana Josefa demoraram para ter o primeiro filho e, quando este veio, o convento de Mafra foi construído como pagamento da graça alcançada. Também é fato que, em 1719, o compositor italiano Dome-nico Scarlatti, mestre da capela Giulia, no Vaticano, estabeleceu-se em Lisboa como mestre-de-capela de D. João V. Todavia, por ter sido nomeado professor de cravo da infanta Maria Bárbara, Scarlatti foi com ela para Madri.

A história acerca da passarola já é quase toda ficcionalizada. Sabe-se que o padre Bartolomeu de Gusmão criou uma máquina voadora, mas ela nada mais era do que um balão, sem qualquer mecanismo de dirigibilidade. Em todos os experimentos feitos com a passarola de Gusmão, em nenhum deles foi possí-vel transportar um ser humano, pois seria pesado demais. Eram os primórdios da técnica do balão, sendo Bartolomeu de Gusmão um dos pioneiros nessa técnica, que foi desenvolvida para transportar pessoas somente no final do século XVIII: em 1783, na França, Jean-François Pilatre de Rozier e o Marquês D’Arlandes fizeram o primeiro voo de balão.

No entanto, existe uma outra história pitoresca sobre a passarola que foi incorporada por Saramago. Joaquim Francisco (1695-1756), futuro conde de

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Penaguião, era aluno de matemática do padre Gusmão e um dos poucos com acesso ao recinto onde o sacerdote trabalhava na máquina voadora. Sempre importunado por curiosos para que revelasse os segredos da máquina, o nobre resolveu, com anuência do padre, criar um desenho fictício, muito diferente da passarola original, para que assim ninguém pudesse roubar a ideia de Gusmão. Joaquim Francisco passou a dar detalhes, inclusive, de seu princípio de funcio-namento, sempre o mais distante possível da realidade, para que não pudesse ser copiada. O desenho inventado fez grande sucesso e correu mundo.

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A passarola conforme imaginada por Joaquim Francisco.

Intencionalmente, Saramago incorpora em sua narrativa a passarola imaginada por Joaquim Francisco, fazendo-a transportar Baltazar e Blimunda. Nesse sentido, integra na história de Portugal a falsidade, o engodo documentado. Todavia, tal mentira tem um aspecto simbólico que ultrapassa o aspecto factual: a passarola de Joaquim Francisco é a expressão mais radical do sonho utópico de Gusmão. Mais que os balões que conseguiu construir, Gusmão alimentava o sonho de o homem voar como os pássaros, tal qual no desenho da falsa passarola.

Portanto, a noção da escrita da história presente no texto de Saramago diz respeito ao registro não só do fato ocorrido, mas também da situação imagina-da. A valorização do registro dos anseios de um povo é a maneira como Sarama-go reinventa a história de Portugal.

Além disso, diferentemente do romance histórico de Herculano, Saramago não coloca como centro da narrativa a História com H maiúsculo, mas sim a his-tória de dois portugueses comuns, de origem simples e condição marginal, Bli-munda e Baltazar. Nesse sentido, rompe com a tradição de retratar a figura de um herói histórico e de grandes feitos – ainda que estes estejam presentes. A

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trama aqui é narrada valorizando a participação das personagens populares em tais feitos, assim fazendo do cidadão comum o sujeito da história.

Vale ainda lembrar que o Memorial do Convento aborda de forma recorrente e em níveis distintos a questão do sonho e da vontade:

o sonho narcisista e a vontade oportunista de D. João V de construir algo �que o imortalizasse como rei;

o sonho poético e a vontade científica do padre Bartolomeu de construir �uma máquina de voar;

o sonho passional e a vontade libertária de Baltazar e Blimunda, que se �engajam no projeto da passarola, materializando essa liberdade.

A perspectiva utópica e a ação no sentido de alcançar a utopia são uma cons-tante em todo o livro.

Ao que parece, o projeto ideológico de Saramago, não só em Memorial do Convento, mas em todas as suas obras que mesclam história e ficção, é o de dar voz para aquele que até hoje não teve lugar na história oficial portuguesa – o cidadão comum –, integrando aos fatos as situações sonhadas, a utopia de um mundo melhor. Nesse sentido, Saramago ainda cumpre, em algum nível, o pro-jeto da geração dos escritores neorrealistas portugueses.

Texto complementar

Os desafios teóricos da história e a literatura(MENDONÇA; ALVES, 2009)

As relações entre literatura e história estão no centro do debate da atua-lidade e apresentam-se no bojo de uma série de constatações relativamen-te consensuais que caracterizam a nossa contemporaneidade na transição do século XX para o XXI: a crise dos paradigmas de análise da realidade, o fim da crença nas verdades absolutas legitimadoras da ordem social e a interdisciplinaridade.

[...] Na medida em que deixa de ter sentido uma teoria geral de interpre-tação dos fenômenos sociais, apoiada em ideias e imagens legitimadoras do presente e antecipadoras do futuro (o progresso, o homem, a civilização),

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ocorre uma segmentação das ciências humanas e um movimento paralelo de associação multidisciplinar em busca de saídas.

Assim, novos objetos, problemas e sentidos se ensaiam, marcados por um ecletismo teórico, uma ótica interdisciplinar e comparativista e um grande apelo em termos de fascínio temático. Portanto, o diálogo entre história e literatura, enquanto objeto de estudo, é uma saída deste esvaziamento e desta sedução.

A compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético, uma manifestação cultural, portanto uma possibilidade de registro do movimen-to que realiza o homem na sua historicidade, seus anseios e suas visões do mundo, tem permitido ao historiador assumi-la como espaço de pesquisa.

Assim, mesmo que os literatos a tenham sempre produzido sem um com-promisso com a verdade dos fatos, construindo um mundo singular que se contrapõe ao mundo real, é inegável que, através dos textos artísticos, a ima-ginação produz imagens, e o leitor, no momento em que, pelo ato de ler, recupera tais imagens, encontra uma outra forma de ler os acontecimentos constitutivos da realidade que motiva a arte literária.

[...] a história da discussão sobre a aproximação ou separação entre litera-tura e história remonta ao início da teorização da arte ocidental, o que torna necessário retroceder brevemente às ideias de Aristóteles para se entender a construção desses paradigmas antitéticos e suas configurações tanto na teoria literária quanto na historiografia.

O filósofo estabeleceu uma antítese entre história e poesia em sua obra Poética, criando assim obstáculos quase intransponíveis entre as duas. [...]

Assim concebidas, arte e história, ficção e verdade, constituíram manifes-tações opostas da inteligência. Com o avanço do racionalismo nos tempos modernos, tal contraposição seria acentuada, resultando na inversão dos termos apresentados por Aristóteles.

Poesia, arte e ficção seriam progressivamente desqualificadas como modos do conhecimento da realidade, passando a habitar um terreno quase etéreo: lugar de fantasia para o artista ou de metafísica para o intelectual.

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Do outro lado habitariam as ciências dos homens sensatos e progressis-tas, com suas leis e seus postulados de objetividade, racionalidade ou refe-rencialidade cumprindo funções utilitárias.

Assim, solidificou-se a separação entre ficção e verdade, base do divórcio entre a arte e a ciência. As noções de história desde o século XIX, que pre-tenderam a cientificidade da disciplina, ou as manifestações do Realismo e do Naturalismo na literatura do mesmo período, tiveram como fundamento essa distinção. [...]

No entanto, essa mesma separação daria suporte às correntes que, a partir do Romantismo, procuraram reafirmar o valor intrínseco e superior da poesia e da literatura ficcional, manifestando uma repulsa à ciência.

[...]

Assim, a teoria instituída no século XIX conseguiu assegurar até algumas décadas do século XX a noção de que literatura e história são campos dis-tintos, indicando que, enquanto um ficcionaliza o real, o outro o estabele-ce. Baseada nessa visão, a história autodenominou-se a única possibilidade de registro da realidade do passado, não reconhecendo essa capacidade na literatura.

Essa teorização, contudo, ao propor a separação dessas formas de conhe-cimento, ignorou as produções ficcionais e históricas de sua época, o que fortificou a contestação a essa conceituação por parte da teoria e da arte pós-moderna.

Nesse processo, foram fundamentais os questionamentos a respeito do próprio estatuto da história e as tentativas de compreender o papel social do historiador. O processo de produção do texto histórico também passou a ser interpretado à luz da experiência literária. [...]

Dessa reflexão, resultou a ponderação de cientificidade da narrativa his-tórica e a instauração da ideia de relatividade do conhecimento nela revela-do. Essas leituras basearam-se na fragilidade da realidade histórica enquanto produto da subjetividade, a qual é ilimitada e passível de erros. Há, ainda, a interpretação dos fatos dada pelo sujeito historiador, a partir da seleção e organização da realidade que ocorrem numa narrativa histórica.

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Desse modo, embora a descrença no discurso científico unitário sobre o homem e a sociedade tenha se agudizado no interior desse quadro da crise dos paradigmas de interpretação do real na transição do século XX para o XXI, o debate sobre a história e suas conexões com os gêneros literários já estava colocado desde a década de [1970].

Pautada por uma ótica interdisciplinar, esta linha de reflexão vem acom-panhando a propensão de se interrogar as fronteiras de conhecimento que a tradição institucional construiu. [...]

[...] ao escolher os fatos que merecerão destaque na construção de suas tramas, o historiador não deixa de inventar, à sua maneira. [...]

[...] a própria noção de documento, que sustentava a narrativa convencio-nal, foi alvo de inúmeras interrogações, bem como foi realçado o papel ativo do historiador em sua recolha e interpretação, rompendo-se assim a ideia de que cabe a ele o simples registro dos testemunhos.

Nesse caso, não se trata de substituir a ficção pela história, mas de possi-bilitar uma aproximação poética em que todos os pontos de vista, contradi-tórios, mas convergentes, estejam presentes, formando o que Steenmeijer chamou de representação totalizadora. Assim, a literatura pode ser conside-rada como uma leitora privilegiada dos acontecimentos históricos.

Dicas de estudoHans Staden (1999), de Luiz Alberto Pereira.

Filme que narra a história verídica de um alemão que foi capturado pelos tupinambás no século XVI.

Novo Mundo (2005), de Terrence Malick.

Filme que trata do contato intercultural, no império britânico, entre ingleses e indígenas, fundamentado também em uma história verídica.

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Estudos literários1. Como, nos dias de hoje, distinguimos literatura e história?

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2. Por que Alexandre Herculano considerava a Monarquia Lusitana do Frei Ber-nardo de Brito como algo risível?

3. Por que podemos dizer que José Saramago reinventa a história de Portugal?

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa1. A influência dos irmãos de D. Inês na corte de Lisboa era vista com

receios pelo rei e pela nobreza: esses irmãos estariam convencendo D. Pedro a se casar com ela para assim pleitear o trono espanhol. Além do visível risco de Portugal ser anexado àquele país, tal objetivo punha em risco a vida do legítimo herdeiro do trono, D. Fernando, filho de D. Pedro com D. Constança.

2. Sob a óptica tradicional, a saudade despertada pelo intenso amor que D. Pedro nutria por Inês, capaz de manter vivo esse afeto mesmo de-pois da morte da amante e provocar cruéis vinganças, acabou se cons-tituindo em uma marca do espírito português. O saudosismo passou a ser uma constante na cultura lusitana, alimentado pelas sucessivas obras literárias e artísticas que retomaram o tema de Pedro e Inês. Já nas obras contemporâneas, o mito tem sido revisto e, como no caso da escritora Agustina Bessa-Luís, ele teria contribuído, por meio da ima-gem alienada e submissa de Inês, para a manutenção de uma socieda-de patriarcal e machista.

3. Camões criou para esse tema um padrão lírico que, em Portugal, re-percutiu nas gerações seguintes, como as composições de Bocage acerca de Inês podem confirmar. Em termos internacionais, o épico camoniano contribuiu para a divulgação da história de Inês, sendo esse episódio um dos trechos da epopeia mais traduzidos e publica-dos individualmente.

O império português1. Na passagem do século XV para o XVI, o império português ganhou

maior força e grandeza. Isso se deu por causa da precoce unidade nacional que propiciou um forte investimento nas técnicas de nave-gação, com a consequente descoberta do caminho marítimo para o

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Oriente. Tal descoberta possibilitou a Portugal ser, por um curto período, o maior negociador entre Oriente e Ocidente, fazendo de sua corte uma das mais suntuosas do mundo.

2. Camões toma por motivo central de seu poema a viagem de Vasco da Gama para as Índias e a partir dessa primeira instância narrativa, conta toda a his-tória dos portugueses. Já em um outro plano, narra a luta entre os deuses do panteão greco-romano e sua intervenção na história de Portugal, demons-trando com isso a predestinação dos portugueses para aquele presente glo-rioso. Finalmente, também alerta os portugueses para o perigo que ronda os povos gananciosos.

3. A geração de escritores neorrealistas fez forte oposição a Salazar, pois viram os seus direitos políticos caçados pelo ditador. Em vista disso, passaram a funcionar como modelos para os escritores que viviam nas colônias portu-guesas e queriam o fim do colonialismo. O fato é que havia identificação nas respectivas lutas, pois todos esses grupos de resistência a Salazar fundamen-tavam-se em teorias marxistas.

A gênese do mito de D. Sebastião1. As profecias de Bandarra são a própria base do mito sebastianista, pois é a

definição profética do rei Encoberto (rei que viria acabar com os inimigos dos portugueses e tornar grande o povo lusitano) que permite a D. Sebastião ocupar esse lugar proeminente no imaginário português. Sem as profecias de Bandarra, não haveria sebastianismo. Temos, portanto, uma relação visce-ral entre as profecias e o mito sebastianista.

2. Porque o momento histórico de Vieira solicitava uma legitimação terrena e também transcendental para o novo monarca português. Frente à oposição que a família real da Espanha fazia para desqualificar a nova dinastia dos Braganças, que então surgira com D. João IV, os que apoiavam o novo rei português se viram na contingência de trabalhar no sentido de legitimar simbolicamente esse lugar e, portanto, nada melhor do que evocar o Fado, o Destino, a força de um enviado dos céus. A morte de D. João IV punha em risco a sucessão e, em contrapartida, sua anunciada ressurreição descartava simbolicamente qualquer possibilidade de retirar o cetro real de sua descen-dência.

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3. O sebastianismo é um pensamento messiânico que trabalha com a ideia do retorno de um rei legítimo que fará, finalmente, a justiça ser plenamente cumprida e a ordem perdida, restaurada. Há, portanto, a ideia de retorno ao paraíso perdido, nos moldes bíblicos. Portugal tivera seu paraíso nos séculos XV e XVI e o perdera com a morte de D. Sebastião. A imagem do retorno des-sa era de prosperidade e liderança manteve-se na cultura portuguesa por todos esses séculos e certamente se mantém hoje, ainda que diluída na nova identidade europeia. Como todo mito, no entanto, pode ressurgir quando as condições históricas assim demandarem. Desse modo, podemos dizer que o sebastianismo é um elemento constitutivo e até certo ponto estrutural da cultura portuguesa.

O sebastianismo na Literatura Portuguesa1. A causa principal sem dúvida foi a grande disparidade numérica entre as for-

ças europeias e as mouras. Ocorre que tal desequilíbrio certamente foi possi-bilitado por um mau planejamento das lideranças portuguesas, que não an-teciparam as possibilidades bélicas dos mouros, como também pela demora entre a partida da expedição europeia e sua chegada ao campo de batalha – o que permitiu aos adversários conhecer o poder de fogo dos invasores e conseguir reforços. Junte-se a isso a decisão de D. Sebastião de continuar por terra a progressão de seu exército, causando a exaustão de seus soldados.

2. Em primeiro lugar, Pessoa tinha como seu horizonte literário Os Lusíadas, de Camões. Do épico camoniano, o poeta modernista retomou o tema das navegações, o esquema histórico de Portugal e, ainda, características esti-lísticas e literárias. Além de Camões, nota-se a presença do poeta popular Bandarra e do grande pregador Antônio Vieira.

3. O único livro de Fernando Pessoa publicado em sua vida está dividido em três partes: “Brasão”, “Mar português” e “O encoberto”.

Em termos de conteúdo, na primeira parte os poemas se concentram no início da história portuguesa; na segunda, as composições se reportam ao período da expansão marítima; e na última divisão, reportam-se ao tempo posterior à morte de D. Sebastião, no qual se aguarda seu retorno.

Seguindo essa mesma lógica, pode-se afirmar que esse esquema represen-taria a ascensão, o apogeu e o declínio do império português.

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa1. O grande poeta barroco português entendia a saudade como um sentimen-

to paradoxal que, ao mesmo tempo, produzia prazer e dor. Segundo ele, o que causava a saudade portuguesa era o caráter amoroso do povo lusitano e as inevitáveis ausências devidas às longas navegações marítimas.

2. O saudosismo cumpriu um importante papel político na medida em que conseguiu erguer simbolicamente a autoestima dos portugueses em um momento no qual a nação passava por uma grave crise e transformação polí-ticas, quer por conta do regicídio e o fim da monarquia, quer por conta da ins-tabilidade política que caracterizou a implantação do modelo republicano.

3. O saudosismo foi um movimento iniciado por Teixeira de Pascoaes, que via o sentimento da saudade como uma característica típica da identidade por-tuguesa, mas também apresentando uma dimensão universal e metafísica. A saudade teria uma natureza ontológica, ou seja, ligada à estrutura do ser, sendo partilhada por todos os seres que, assim, relembram e desejam uma plenitude primordial que fora perdida. Essa é uma doutrina que se aproxima do platonismo. No caso dos portugueses, eles são um povo em que esse sentimento se exacerba e isso o diferenciaria de outras nações. Em termos políticos e sociais, o saudosismo buscava recuperar o passado glorioso de Portugal para poder moldar um futuro também glorioso para aquele país.

O anticlericalismo na Literatura Portuguesa1. O anticlericalismo é, previamente, uma reação à interferência de determi-

nada igreja nos assuntos do Estado e da sociedade civil. Ele comumente se manifesta na literatura censurando o comportamento do clero, que é visto como inadequado e prejudicial para a sociedade. No entanto, o anticlerica-lismo pode ainda condenar a instituição religiosa como um todo, vendo em sua estrutura e sua doutrina elementos perversos para uma determinada sociedade. Em uma atitude mais radical, o escritor anticlerical extrapola sua crítica para a própria religião ou para o sentimento religioso, entendendo como nefasta a religiosidade em si.

2. Ainda na Idade Média, a intrusão do papado nos assuntos internos de Portu-gal e a exagerada cobrança de tributos foram motivos para expressões lite-

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rárias anticlericais, conforme o provam algumas cantigas da escola trovado-resca, em especial a obra de Afonso X. Na Idade Moderna, as consequências do Concílio de Trento, as ações da Santa Inquisição e dos jesuítas foram os principais focos da crítica anticlerical.

3. Após a Revolução Francesa, o movimento anticlerical ganhou novas dimen-sões na Europa, transformando-se em um fenômeno de massa. Na literatura, as correntes realistas e naturalistas da segunda metade do século XIX foram os principais veículos dessa insatisfação com as igrejas. Em Portugal, o prin-cipal nome desse tipo de literatura foi Eça de Queirós, que tanto atacou a corrupção do clero católico quanto as próprias doutrinas cristãs e até mesmo as bases históricas do cristianismo.

O Mar Português na literatura1. De fato, as navegações portuguesas modificaram o mapa-múndi com novas

rotas marítimas e territórios. Como consequência dessas descobertas, toda a visão de mundo do homem daqueles séculos foi alterada: o cosmo se apre-sentou totalmente diferente do que se acreditava, a consciência de si mesma por parte da humanidade foi alterada em profundidade e a maioria dos prin-cípios, doutrinas e dogmas sofreram uma tremenda revisão.

2. Partindo dos princípios do Classicismo, Camões produziu um poema épico em que cantou o grande feito de Vasco da Gama – a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Apesar de ser fiel na maior parte do tempo ao modelo clássico de poesia épica, em razão de seu tema ser um evento de caráter ímpar na história mundial, ele também lançou mão de estratégias literárias inovadoras, capazes de dar conta da singularidade de seu tema e dos confli-tos dele decorrentes.

3. Assim como Camões, Pessoa reconta a história de Portugal e exalta os feitos marítimos do apogeu de seu país. Porém, o poeta constrói a obra Mensagem de uma perspectiva sebastianista, ou seja, em que a história passada e a es-perança presente se unem para proclamar e profetizar a volta do Encoberto, o rei D. Sebastião, que terá a missão de recuperar a glória portuguesa passa-da e instaurar uma nova era de prosperidade em Portugal e no mundo.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Escrita e reinvenção literária da história de Portugal1. As narrativas literárias e as narrativas históricas se distinguem pelo empre-

go das noções de verdade, de realidade, de fato. Enquanto o texto históri-co trabalha com o que seria a verdade dos fatos, o texto ficcional trabalha construindo a verossimilhança, isto é, com a imitação da realidade em graus distintos.

2. Por que a Monarquia Lusitana é um texto que tem seus pressupostos teóricos na concepção medieval de história, em que o elemento religioso pode apa-recer como causa dos fatos. Portanto, milagres, aparições, predestinações – todos esses aspectos que eram rejeitados pela historiografia do século XIX – foram empregados no texto de Brito, fazendo-os, aos olhos de Herculano, um tanto fantasioso e sem qualquer valor histórico.

3. Os romances de José Saramago que envolvem a história de Portugal não respeitam a historiografia oficial portuguesa, retomando um modo de es-crever que lembra o de Frei Bernardo de Brito, já que integra na narrativa o sobrenatural como causa de alguns eventos históricos. Mas, contrariamente ao trabalho de Frei Bernardo, assim o faz não em razão da fé em qualquer entidade religiosa, mas sim para manter viva a ideia do sonho e da utopia de um mundo melhor. Além disso, coloca em primeiro plano o homem comum, o cidadão que esteve excluído da história oficial (ao menos até o surgimento da Nova História do século XX e da História do Cotidiano).

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Gabarito

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

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Anotações

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Anotações

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