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1 CULTURA AFRO-BRASILEIRA: A CAPOEIRA NO LIVRO DIDÁTICO SILVA, Ana Lúcia da - PPE DHI - UEM LACERDA, Eva Alves - PPE - UEM TERUYA, Teresa Kazuko PPE - UEM Nesse trabalho, apresentado no Eixo temático: Pedagogias culturais e mídias do 7º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação e 4º Seminário Internacional de Estudos Culturais e Educação, analisamos um dos capítulos do Livro didático de Educação Física (2006), organizado por professores/as da rede pública estadual do Paraná, que contempla uma das expressões da cultura afrobrasileira: a capoeira. Historicamente o olhar eurocêntrico na sociedade ocidental predominou nas instituições de ensino, e os/as personagens negros/as da História do Brasil e a cultura popular negra foram silenciados e desvalorizados no currículo escolar. O reconhecimento da capoeira como patrimônio cultural brasileiro contempla a Lei 10.639/2003 e atende a obrigatoriedade do estudo da cultura negra brasileira no currículo escolar. Trazer a capoeira como conteúdo do Livro Didático Público de Educação Física (2006) do Ensino Médio é uma forma de problematizar o conteúdo escolar e vislumbrar a relevância da cultura afrobrasileira na constituição do povo brasileiro. Silva (2010) argumenta que o currículo escolar está no centro da relação educativa sendo este o documento que valida os conteúdos que devem ser estudados na Educação Básica bem como desautoriza outros conteúdos. Com o término da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888, a população negra tornou-se livre, mas em condições precárias ou subalternas, por isso, em 1931 foi fundada a Frente Negra Brasileira (MALERBA & BERTONI, 2001, p. 60-61). Após a abolição, essa população sofreu o preconceito racial, sendo tratados como inferiores e rejeitados pela sociedade. Ao longo do século XX, o Movimento Negro se fortaleceu e passou a lutar pela cidadania do povo negro, reivindicando políticas públicas para combater o racismo, as práticas de discriminação racial, a exclusão social a que foram

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CULTURA AFRO-BRASILEIRA: A CAPOEIRA NO LIVRO DIDÁTICO

SILVA, Ana Lúcia da - PPE – DHI - UEM

LACERDA, Eva Alves - PPE - UEM

TERUYA, Teresa Kazuko – PPE - UEM

Nesse trabalho, apresentado no Eixo temático: Pedagogias culturais e mídias

do 7º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação e 4º Seminário

Internacional de Estudos Culturais e Educação, analisamos um dos capítulos do

Livro didático de Educação Física (2006), organizado por professores/as da rede

pública estadual do Paraná, que contempla uma das expressões da cultura afrobrasileira:

a capoeira. Historicamente o olhar eurocêntrico na sociedade ocidental predominou nas

instituições de ensino, e os/as personagens negros/as da História do Brasil e a cultura

popular negra foram silenciados e desvalorizados no currículo escolar.

O reconhecimento da capoeira como patrimônio cultural brasileiro contempla a

Lei 10.639/2003 e atende a obrigatoriedade do estudo da cultura negra brasileira no

currículo escolar. Trazer a capoeira como conteúdo do Livro Didático Público de

Educação Física (2006) do Ensino Médio é uma forma de problematizar o conteúdo

escolar e vislumbrar a relevância da cultura afrobrasileira na constituição do povo

brasileiro. Silva (2010) argumenta que o currículo escolar está no centro da relação

educativa sendo este o documento que valida os conteúdos que devem ser estudados na

Educação Básica bem como desautoriza outros conteúdos.

Com o término da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888, a população

negra tornou-se livre, mas em condições precárias ou subalternas, por isso, em 1931 foi

fundada a Frente Negra Brasileira (MALERBA & BERTONI, 2001, p. 60-61). Após a

abolição, essa população sofreu o preconceito racial, sendo tratados como inferiores e

rejeitados pela sociedade. Ao longo do século XX, o Movimento Negro se fortaleceu e

passou a lutar pela cidadania do povo negro, reivindicando políticas públicas para

combater o racismo, as práticas de discriminação racial, a exclusão social a que foram

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relegados os ex-escravos, por meio da promoção de ações para a valorização da História

da África, dos africanos e seus descendentes no Brasil, e da cultura afrobrasileira no

espaço escolar.

Uma das conquistas dessa luta foi à criação da lei 10.639/2003 que tornou

obrigatório o ensino da história africana e cultura afro-brasileira nas instituições de

ensino público ou privado em nosso país e incluiu 20 de novembro, como o Dia

Nacional da Consciência Negra no calendário escolar. Com isso, o currículo e a

produção de materiais didáticos foram repensados e revisados (BRASIL, Lei 10.639,

2003).

Após 14 anos de existência da Lei n. 10.639/2003, ainda constatamos que é

preciso desconstruir estereótipos sobre os povos não europeus, principalmente, as

imagens negativas construídas sobre os indígenas, negros e mestiços. Para tanto, é

primordial repensar a escola, a formação docente inicial e continuada, o trabalho

pedagógico e a abordagem dos conteúdos que compõem o currículo.

A escola é um espaço permeado por tensões e conflitos culturais. As relações

entre o cotidiano escolar e as culturas precisam ser trabalhadas na formação inicial e

continuada de professores/as. Isso pressupõe o trabalho pedagógico com a análise de

diferentes linguagens e produtos culturais no espaço escolar. Além disso, "favorecer

experiências de produção cultural e de ampliação do horizonte cultural dos alunos e

alunas, aproveitando os recursos disponíveis na comunidade escolar e na sociedade"

(CANDAU, 2013, p. 35).

O currículo escolar é um processo de inclusão de certos saberes e de certos

indivíduos, como também de exclusão de outros. Este estabelece diferenças, constrói

hierarquias e produz identidades (SILVA, 2010, p. 11-12). O currículo não deve ser

visto simplesmente como um espaço de transmissão de conhecimentos. O currículo é

um espaço de significação e está relacionado ao processo de formação de identidades

sociais. Este "está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos

tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz"

(SILVA, 2010, p. 27).

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A lei 10.639/2003 promoveu a inclusão da história e cultura afrobrasileira e

africana no currículo escolar, um desafio que se impõe aos/as professores/as. A história

do negro africano não deve se limitar à narrativa do tráfico negreiro e da escravidão.

Assim, repensar a educação escolar e o ensino de História é imperativo, para que

nossos/as alunos/as possam ter acesso ao conhecimento científico, aos múltiplos

saberes, conhecer a si e o/s outro/s, os múltiplos povos que formaram e formam o povo

brasileiro. Assim, ecoar no espaço escolar múltiplas identidades, sem hierarquização, e

nos orgulhar de nossa ancestralidade africana e negra.

Neste sentido, é relevante o estudo da História e cultura afrobrasileira em

diferentes áreas de conhecimento, e não apenas na disciplina de História. Por isso,

selecionamos, como objeto de análise, o Livro didático de Educação Física (2006),

destinado aos/as professores/as e alunos/as do Ensino Médio da rede pública estadual do

Paraná, disponível na internet no Portal de Educação, contribui para conhecer um pouco

da história e cultura afrobrasileira em um de seus capítulos que trata da capoeira.

Fonte: PARANÁ. Portal de Educação do Estado do Paraná.

Disponível no site: < http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br> Acesso em: 18 maio

2017.

Esse “livro didático público” é resultado de um trabalho pedagógico coletivo,

que foi elaborado por um grupo de professores/as da Rede Pública Estadual de

Educação do Paraná e distribuído gratuitamente cópias impressas aos/as professores/as e

alunos/as do Ensino Médio. Além da versão impressa há uma versão em pdf disponível

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no http://www.diaadia.pr.gov.br o Portal Educacional do Estado do Paraná. Com base

na “Apresentação” desta publicação, é a primeira vez que um livro didático de

Educação Física busca subsidiar a prática docente escolar, contemplando a abordagem

de práticas corporais, levando-se em consideração aspectos técnicos, táticos, históricos,

sociais, políticos e culturais (PARANÁ, 2006, p. 10-11).

Como esse livro didático da área de Educação Física está organizado? Além da

“Carta da Secretaria”, da mensagem “Aos estudantes”, do “Sumário” e “Apresentação”,

o livro está organizado da seguinte forma: há 5 Conteúdos estruturantes: “Esporte”,

“Jogos e Brincadeiras”, “Ginástica”, “Lutas” e “Dança”. Estes organizam os 14

capítulos que compõem a publicação. Sendo assim, no sumário se apresenta a seguinte

organização: “Conteúdo estruturante: Esporte”: Introdução, 1 – o futebol para além

das quatro linhas, 2 – A relação entre a televisão e o voleibol no estabelecimento de

suas regras, 3 – Eu faço esporte ou sou usado pelo esporte?; “Conteúdo estruturante:

Jogos e brincadeiras”: Introdução, 4 – Competir ou cooperar: eis a questão, 5- O jogo

é jogado e a cidadania é negada; “Conteúdo estruturante: ginástica”: Introdução, 6 –

O circo como componente da ginástica, 7- Ginástica: um modelo antigo com roupagem

nova?, 8 – Saúde é o que interessa? O resto não tem pressa!, 9 – Os segredos do corpo;

“Conteúdo estruturante: Lutas” Introdução, 10 – Capoeira: jogo, luta ou dança?, 11 –

Judô: a prática do caminho suave; “Conteúdo estruturante: Dança”- Introdução, 12-

Quem dança seus males..., 13 – Influência da mídia sobre o Corpo do Adolescente, 14 –

Hip Hop – movimento de resistência ou de consumo? (PARANÁ, 2006, p. 4-9).

Destacamos que o livro didático de Educação Física abriu caminho para o

estudo, tanto da capoeira quanto do Hip Hop, como expressões da cultura popular negra

no espaço escolar, dando visibilidade à história do negro no Brasil e nos Estados

Unidos, a história e cultura afrobrasileira, fazendo ecoar na escola a identidade negra,

entre outras.

Embora, duas expressões da cultura popular negra sejam contempladas nesse

livro didático, optamos por analisar um dos capítulos que integram o “Conteúdo

estruturante: Lutas”: “10 - Capoeira: jogo, luta ou dança?, de autoria do professor

Sérgio Rodrigues da Silva do Colégio Estadual Olavo Bilac, de Ibiporã – PR. O livro

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didático de Educação Física tem 248 páginas. Destas, 13 páginas foram dedicadas ao

estudo da capoeira, da página 157 a 169 (SILVA, 2006).

Quais pedagogias culturais sobre a capoeira foram produzidas nas páginas desse

capítulo?

Na perspectiva dos Estudos Culturais não há a hierarquização de culturas, ou

seja, relações binárias, tais como: cultura erudita x cultura popular. Assim,

depreendemos como pedagogias culturais a dimensão educativa da hiper-realidade do

mundo atual, em que estão presentes nas mídias eletrônicas, pois a aprendizagem não

ocorre apenas no espaço da escola, mas também nos novos espaços socioculturais e

políticos (STEINBERG, 2015, p. 211-212).

As mensagens sociais, políticas e pedagógicas da cultura popular são relevantes,

tornando-se objetos de análise no campo dos Estudos Culturais, porque se constituem

em um campo interdisciplinar sem hierarquizar as culturas como “alta” ou “baixa”

cultura. Por isso, ao analisar as pedagogias culturais, atentamos para “as complexas

interações entre o poder, o saber, a identidade e a política” (STEINBERG, 2015, p.

214).

As pedagogias culturais sobre a capoeira estão difundidas nas páginas do

capítulo do livro didático de Educação Física, que convidam professores/as, alunos/as

e/ou outras pessoas que acessam o portal de Educação do Estado do Paraná a refletirem

acerca desta expressão da cultura popular negra, presente na sociedade brasileira,

relacionando e problematizando o passado e o presente. A seguir descrevemos as

páginas do livro didático, objeto de análise deste trabalho, que ensinam sobre a

capoeira.

A primeira página apresenta o título do capítulo em dois versos do canto de

capoeira: “Paraná uê, Paraná uê, Paraná”. “Paraná uê, Paraná uê, Paraná”. Depois,

dialoga com os/as leitores/as perguntando se no estado do Paraná tem capoeira, se já

jogaram capoeira, e se a capoeira é um jogo, luta ou dança. Silva (2006) faz um convite

à reflexão sobre a capoeira, para depois apresentar o conteúdo de estudo.

Na página 158 há uma definição de luta, com base no verbete do Novo

Dicionário Aurélio (2005) o subtítulo: “A capoeira como expressão de luta pela

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liberdade”. Há uma imagem colorida de roda de capoeira de autoria desconhecida e um

caixa sobre seu significado. Essa imagem retrata pessoas de diferentes tons de pele,

muitas de pé e poucas sentadas em um banco e em outro assento, ladeadas de

instrumentistas capoeiristas, ambos organizados em um círculo, ao centro há dois

capoeiristas: um homem branco e um homem negro.

Essa organização da página é um exemplo de pedagogia cultural, pois apresenta

textos com a origem da capoeira e a imagem da roda de capoeira que contempla a

diversidade étnica. São ensinamentos que indicam a capoeira em sua origem como

“coisa de negros”, explicando que era praticada por negros submetidos à escravidão em

busca da liberdade. Já na nossa sociedade, a capoeira é uma luta praticada abertamente

por pessoas brancas e/ou negras.

A página 159 apresenta a imagem colorida de Zumbi do Quilombo de Palmares

de autoria desconhecida, o subtítulo: “a História da capoeira” e duas caixas: a primeira,

tem um pequeno texto sobre o tráfico negreiro e a capoeira; e a segunda, tem um

questionamento sobre o que é quilombo e o seu significado, indicando uma bibliografia

especializada. Nessa página as pedagogias culturais se propalam, e ensinam sobre a

prática da capoeira no contexto da diáspora africana, ao fazer alusão ao tráfico negreiro

e a resistência do negro no Brasil com a formação dos quilombos. Os negros submetidos

à escravidão praticavam a capoeira nas senzalas e nos terreiros dos engenhos ou das

fazendas de maneira camuflada, já nos quilombos essa prática era livre. Silva (2006)

ainda destaca que há um debate historiográfico sobre a origem da capoeira, esta teria

surgido no continente africano e/ou no Brasil?

A capoeira é um termo polissêmico, e sua origem traz a tona um debate

historiográfico. Com base no Dicionário Aurélio, Santos (2002, p.33) explica que a

capoeira pode designar “uma gaiola grande ou casinhola, onde se criam e alojam capões

e outras aves domésticas” ou “uma espécie de cesto para proteção da cabeça dos

defensores da fortaleza”. Na língua indígena Tupi, o termo é conhecido como Kapu’era,

que significa “terreno onde o mato foi roçado ou queimado para o cultivo da terra ou

para outro fim”. A palavra capoeira também designa “mato que nasce em consequência

da derrubada de uma mata virgem”. Além destes significados, ressalta-se que a capoeira

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é um “jogo atlético” com ataques e defesas, individual e/ou coletivo e de origem

folclórica. Alguns pesquisadores afirmam que a capoeira tem sua origem na África. Já

outros fazem a defesa de que esta surgiu no Brasil entre os africanos bantus, oriundos de

Angola, que a praticavam, constituindo-se em uma luta de resistência a escravidão,

desde o período colonial (SANTOS, 2002, p. 33-34).

Diante dos vários significados, Silva (2006) em seu capítulo que inspirou nossa

análise para este trabalho, assume o conceito de capoeira como luta de resistência do

povo negro no âmbito da escravidão, expressão da cultura popular, genuinamente

brasileira, ao apresentar a capoeira no “conteúdo estruturante: Lutas”.

Na página 160 há uma caixa de texto sobre os africanos e o uso da capoeira

como arma de resistência com o uso do corpo. Há uma imagem grande, em preto e

branco, litografia produzida pelo viajante e artista Johann Moritz Rugendas, intitulada

“Jogar capoeira” de 1835, que faz a representação de negros/as no Brasil do século XIX

jogando a capoeira, próximos da Casa grande. E há também uma caixa com uma breve

biografia de Rugendas e o significado de litografia, com citação de referências

especializadas. Nessa mesma página destaca-se que nos séculos passados a capoeira era

praticada por negros, sendo esta expressão da cultura popular admirada por homens e

mulheres deste grupo social.

A cultura popular é um espaço de contestação estratégica, baseada em

“experiências, prazeres, memórias e tradições do povo. Ela tem ligações com as

esperanças e aspirações locais, tragédias e cenários locais que são práticas e

experiências cotidianas de pessoas comuns” (HALL, 2013, p. 378-379).

Nesta perspectiva, a capoeira enquanto luta de resistência de negros, constitui-se

em espaço de aspirações. Sua gente pode expressar as esperanças de liberdade e

contestações à ordem imposta pela diáspora, tráfico negreiro e escravidão na América

portuguesa.

Na página 161 o autor do capítulo do livro convida os/as leitores/as a realizarem

uma pesquisa sobre o contexto histórico de produção da litografia de 1835 de Rugendas,

em relação à capoeira. Há sugestão de atividade para a discussão sobre as técnicas de

pintura de Rugendas. Em outra caixa está o título do capítulo: “Luta, jogo ou dança?”

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com uma breve explicação de que a prática da capoeira depende do contexto histórico e

social, em alguns momentos foi cultivada e aplaudida e em outros foi perseguida.

Abaixo da caixa segue um texto com destaque para a capoeira como uma manifestação

cultural brasileira. Ao lado deste texto há uma caixa sobre Rui Barbosa e a queima de

documentos sobre a escravidão nos primeiros anos do Brasil República.

O autor do capítulo tem um comprometimento em estudar a capoeira e convidar

os/as leitores/as para a reflexão sobre a historicidade da capoeira, relacionando essa

expressão da cultura popular brasileira com fatos históricos do Brasil Imperial e

República. Ele ainda problematiza o conteúdo de estudo e propõem atividades de estudo

que incentivam a pesquisa, o estudo, a análise e a reflexão.

A página 162 contém um grande texto, que contempla a História do negro no

Brasil e o contexto pós-abolição, o Código Criminal de 1890 e o tratamento dado à

capoeira e aos capoeiristas, o governo do presidente Getúlio Vargas, o convite ao

Mestre Manoel dos Reis Machado, conhecido como Mestre Bimba, para apresentação

da capoeira no Palácio do Governo, e posteriormente a liberação da capoeira; ao lado do

texto há uma imagem grande e colorida fazendo a representação do Mestre Bimba, com

roupas brancas e tocando um berimbau, de autoria desconhecida; e abaixo desta imagem

há uma caixa com duas perguntas: “Será que a Lei Áurea indenizou os escravos pelo

trabalho realizado? Ou ficaram abandonados a própria sorte?” (SILVA, 2006, p. 162), e

em seguida o autor convida os/as leitores/as a investigar/pesquisar estes dois

questionamentos.

O texto apresentado na página 162 termina na página 163. Na página 163 há um

subtítulo: “Benefícios da capoeira”, com uma imagem colorida de vários instrumentos

de capoeira e um texto sobre a capoeira como um jogo que constitui uma prática lúdica.

Entre as páginas 164 e 166 continua o estudo da capoeira, faz alusão à música, aos

instrumentos, os movimentos corporais e aos golpes da capoeira: cocorinha, queda de

quatro, macaco, meia lua de frente, meia lua de compasso e negativa. Os golpes entre

homens negros são descritos em pequenos textos e representados em várias imagens

coloridas.

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Nessas páginas percebemos que o autor ao promover o estudo sobre a capoeira,

desde a proibição até a liberação desta prática cultural, teve uma preocupação em

primeiro apresentar a origem da capoeira e depois promover a reflexão acerca das

práticas corporais. Os movimentos corporais e o ensino de golpes de capoeira

promovem benefícios para o desenvolvimento humano e uma vida mais saudável.

A página 166 apresenta o golpe de capoeira chamado "negativa" com um

pequeno texto explicativo ao lado da imagem de um homem negro praticando-o. Abaixo

tem a proposta de uma atividade: a confecção de um berimbau; seguido de um pequeno

caixa com a sugestão de convidar capoeiristas para irem a escola, para orientar e

auxiliar na confecção do instrumento proposta na atividade.

Nessa atividade ainda constatamos outra preocupação do autor do capítulo, de

levar à comunidade escolar os atores sociais capoeiristas, que deverão orientar e

expressar seus saberes sobre a capoeira e a confecção de um de seus instrumentos, o

berimbau.

Na página 167 há outra atividade sobre a capoeira e aos movimentos corporais,

por meio de quatro questionamentos. Há três caixas de textos com os significados de:

luta, jogo e dança. Depois das atividades teóricas e práticas sobre a capoeira, o

questionamento do título do capítulo é apresentado novamente aos/as leitores/as:

“Agora responda: afinal, a Capoeira é um jogo, luta ou dança?”; e abaixo há um caixa

“Para saber mais:” (SILVA, 2006, p. 167). Esta caixa de texto explicita que o estudo da

capoeira exige uma análise crítica.

Na página 168 há uma caixa de texto escrito “Ampliando os conhecimentos”

com a Lei 10.639/2003. Ao finalizar o estudo da capoeira, o autor do capitulo propõe

uma atividade de pesquisa sobre o que a capoeira de hoje se diferencia do passado.

Enfim, na página 169, final do capítulo, expõe as referências bibliográficas e os

documentos consultados online.

Ao redigir o capítulo sobre capoeira, o autor teve uma preocupação em ressaltar

a origem da capoeira e a história do povo negro no Brasil, ressaltando a prática corporal

e a historicidade. Ele estabeleceu um diálogo interdisciplinar e profícuo referente a

capoeira envolvendo as áreas de Educação Física, História e Arte e problematizou o

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conteúdo do currículo escolar, propondo atividades teóricas e práticas. É um trabalho

pedagógico possível para desenvolver na Educação Básica. Essa proposta não se limita

à disciplina de Educação Física à prática de esportes que fazem tradição no espaço

escolar, tais como: vôlei, handebol, basquetebol, futebol, entre outros.

A importância da capoeira no currículo escolar já foi destacada na Academia

pelo Dr. Luiz da Silva Santos, licenciado em Educação Física, capoeirista, professor do

Departamento de Educação Física da Universidade Estadual de Maringá – UEM

(atualmente aposentado), sendo ressaltada em suas publicações, nos livros Educação:

Educação Física e capoeira (1990) e Capoeira: uma expressão antropológica da

cultura brasileira (2002).

A inclusão da capoeira no currículo escolar permite o desenvolvimento humano

e “melhorar as bases psicomotoras e aumentar o prazer pelo lúdico e pela criatividade”

(SANTOS, 1990, p.189). Além disso, a capoeira revela fatos históricos do povo negro

no Brasil, no âmbito da escravidão, por exemplo: a luta pela liberdade (SANTOS, 2002,

p. 189). A prática da capoeira entre o povo negro ao longo da História do Brasil

apresentou diferentes faces no Brasil colonial, imperial e republicano.

Durante o Brasil colonial e imperial, a capoeira se expressou como uma luta de

resistência que surgiu nas senzalas entre os negros submetidos à escravidão. Era uma

luta de defesa pessoal dos negros, para se defender da repressão dos capatazes e

senhores daquela época, a capoeira era camuflada como um “jogo ritmado e cantado”,

sendo “um jogo em forma de dança corporal” (SANTOS, 2002, p. 37). A capoeira

conquistou espaço nos quilombos, espaços de resistências à escravidão, onde era

praticada abertamente pelos negros que lutavam pela liberdade de seu povo (SANTOS,

2002, p. 39-40).

Já no contexto do Brasil República, com o Decreto lei n. 487, de 11 de outubro

de 1890, com o Código Penal Brasileiro ou Código Criminal, o Estado estabeleceu a

proibição da reunião ou ajuntamento de pessoas nos espaços urbanos. A capoeira foi

tipificada como crime, consequentemente seus praticantes, os capoeiristas, foram

perseguidos e marginalizados na sociedade no contexto pós-abolição (SANTOS, 2002,

p. 145).

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No contexto pós-abolição, embora houvesse repressão à capoeira e aos

capoeiristas, alguns fizeram dessa luta um meio de subsistência, visto que eles faziam

algumas apresentações públicas para ganhar algum dinheiro e garantir seu sustento

(SANTOS, 2002, p. 47 - 48). Outros capoeiristas utilizaram a capoeira como outras

formas de subsistência econômica, ou seja, a prestação de serviços às pessoas brancas e

políticos, sendo pagos para tumultuarem comícios, realizarem atividades militares e

exercerem a função de guarda-costas de políticos e/ou pessoas de alto poder aquisitivo

(SANTOS, 2002, p. 47; 213-214).

Desta maneira, nós podemos vislumbrar que a capoeira ao longo da história do

povo negro no Brasil adquiriu diferentes faces, dependendo do contexto histórico e

social em que os capoeiristas a praticavam, constituindo-se em: luta pela liberdade e

resistência à escravidão, jogo ritmado em forma de dança, crime, e/ou meio de

subsistência econômica de negros.

Essas faces da capoeira nos fazem refletir sobre o título: “Capoeira: jogo, luta ou

dança?” do capítulo do Livro didático de Educação Física. O autor do capítulo

problematizou a prática da capoeira, questionando se esta seria um jogo, luta e/ou

dança. O título do capítulo não abrange as diferentes faces da capoeira, principalmente

quando esta foi tipificada como crime, um delito penal e/ou se constituiu em um

trabalho - forma de subsistência de negros no contexto após a abolição da escravidão no

Brasil. Por isso, poderíamos ampliar a discussão sobre a capoeira a partir do seguinte

questionamento: “Capoeira: jogo, luta, dança, crime e/ou trabalho?”

Destacamos que o Livro didático de Educação Física lançado em 2006

contempla a discussão da Academia e a determinações da Lei 10.639/2003. O autor do

livro didático reconheceu a importância da capoeira, uma das expressões da cultura

popular negra, como uma das práticas corporais para se pensar o desenvolvimento

humano. Em alguns espaços da Educação Superior e na Educação Básica, constatamos

que há pesquisadores/as e professores/as que defendem a relevância do estudo da

cultura afrobrasileira.

Essa valorização da cultura popular negra ocorreu, antes mesmo que o Instituto

do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) reconhecesse a roda de capoeira

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como patrimônio cultural imaterial afrobrasileiro e o ofício do Mestre de capoeira em

2008. (IPHAN, 2017). A Roda de Capoeira está inscrita no Livro de Registro das

Formas de Expressão, em 2008. Afirma-se que na “roda de capoeira se batizam os

iniciantes, se formam e se consagram os grandes mestres, se transmitem e se reiteram

práticas e valores afro-brasileiros” (IPHAN, 2017). Este patrimônio cultural imaterial

afrobrasileiro está presente em todo território nacional, e também em mais de 150

países. E dada à importância da capoeira na construção e reconstrução da identidade do

povo negro no Brasil e de sua resistência no âmbito da escravidão, esta prática cultural

foi reconhecida como patrimônio imaterial da humanidade na 9ª Sessão do Comitê

Intergovernamental para a Salvaguarda, pela UNESCO, em novembro de 2014, em

Paris. A Roda de Capoeira, portanto, tornou-se um dos símbolos do Brasil mais

reconhecidos no contexto internacional (IPHAN, 2017).

A capoeira de luta pela liberdade foi discriminada e reprimida pela elite

brasileira por seus capatazes e capitães do mato e posteriormente enquadrada no Código

Penal de 1890 no Brasil República, mas atualmente na sociedade contemporânea é

reconhecida como uma das expressões de nosso patrimônio cultural imaterial

afrobrasileiro e como patrimônio imaterial da humanidade. Se antes a capoeira era

“coisa de negro”, atualmente esta expressão da cultura popular negra é praticada por

pessoas de diferentes origens, tanto no Brasil como no contexto internacional. O povo

negro criou e recriou sua identidade no âmbito da diáspora africana, tráfico negreiro,

escravidão e luta pela liberdade na América portuguesa por meio da capoeira.

Parafraseando Santos (2002, p. 191), a capoeira é “um livro aberto de nossa própria

história”.

Considerações finais

Para que a lei n. 10.639/2003 seja de fato efetivada é preciso repensar a

formação inicial e continuada de professores/as, o currículo escolar e o trabalho

pedagógico. Se as crianças e jovens, negros e não negros/as tiverem conhecimento e

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orgulho de nossa ancestralidade africana e negra estaremos construindo uma sociedade

sem racismo. A capoeira contribui para uma prática pedagógica antirracista no

processo de ensino e aprendizagem, ecoando no espaço escolar o processo que levou os

africanos e seus descendentes a criarem e recriarem suas identidades, desde o contexto

da escravidão ao período pós-abolição.

O Livro didático de Educação Física ao abordar a capoeira no “conteúdo

estruturante: Lutas” abriu espaço para a reflexão teórica e prática da cultura popular

negra na educação, vislumbrando uma prática corporal e apontando suas contribuições

para o desenvolvimento humano. Consideramos relevante abordar a história e a cultura

afrobrasileira para refletir sobre a convivência multicultural no espaço escolar,

analisando as pedagogias culturais produzidas, especialmente, nos matériais didáticos

disponibilizados nas plataformas educacionais.

Referências

BRASIL. Lei n. 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade do

ensino História da África, dos africanos no Brasil e da cultura afrobrasileira nas

instituições públicas e privadas.

CANDAU, Vera Maria; Multiculturalismo e educação: desafios para a prática

pedagógica. In: MOREIRA, Antonio Flávio. CANDAU, Vera Maria.

Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 10. ed. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2013. p. 13-37.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La

Guardia Resende. et al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da

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PR, 2006.

SANTOS, Luiz Silva. Capoeira: uma expressão antropológica da cultura brasileira.

Maringá: Eduem, 2002.

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didático de Educação Física. Ensino Médio. 2. ed. Curitiba: SEED-PR, 2006. p. 157-

169.

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curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

STEINBERG, Shirley R. Produzindo múltiplos sentidos – pesquisa com bricolagem e

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articulações, aventuras, dispersões. Canoas: Ed. Ulbra, 2015. p. 211- 241.