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01-06-2020 INÊS D'OREY . Turmeric #2 (Da série Transmutations) www.inesdorey.com ECONOMIA Cinco pilares da economia do cuidado Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos E se a crise sanitária e económica que estamos a viver levasse a instituir uma economia do cuidado, assegurando produção e provisão, tendo poder sobre si própria e quebrando dependências geradoras de vulnerabilidade? A proposta que aqui se discute assenta em cinco pilares: indústria e sistema produtivo, território, serviços, Europa e Estado. JOSÉ REIS * O quadro que nos rodeia não pre- cisa de ser descrito. Conhecemos os factos, as convulsões e as in- certezas. Conhecemos o espanto. Mas tal- vez precisemos de insistir na interpreta- ção. Não por boa exegese, mas para estar- mos bem capacitados para tratar do fu- turo, isto é, para agir. Os tempos que correm representam o mais radical confronto com a lógica do capitalismo que alguma vez presenciá- mos. O sistema social, económico e polí- tico cuja natureza intrínseca consiste no alargamento incessante das transacções, nas mobilidades, na acumulação, na ex- clusão de muitos (pela propriedade e pelo dinheiro) do acesso aos frutos da criação de riqueza, na exploração de recursos, es- paços e pessoas e, enfim, na instituição de desigualdades, viu-se subitamente pe- rante a paragem, o regresso de muitos de nós a um espaço limitado, a inviabilidade do exercício generalizado das actividades, a instituição maciça de formas de provi- são de natureza «horizontal», onde o pri- meiro elemento não é o negócio. E, mais ainda, viu-se perante a possibilidade do regresso recorrente deste tipo de limita- ções e perante a necessidade de reconver- sões intensas que terão de se confortar com outros princípios que não os da con- corrência e do lucro, seguindo a trajectó- ria linear do tempo. Não estou, evidentemente, a declarar que este é o quadro completo da situação e da perturbação em que os capitalismos se encontram. Estou apenas a assinalar a ori- ginalidade, para tentar identificar as linhas de tensão que estão a desenhar-se e para procurar pontos de sustentação sobre os quais assentemos alternativas. O regresso, de modo mais claro do que alguém conse- guiria descrever, da ideia de que a econo- mia é em primeiríssimo lugar um sistema de produção e provisão, e não um lugar abstracto de transacções também elas abs- tractas, ficou demonstrado logo quando se viu quais eram as necessidades urgen- tes e incontornáveis que havia para satis- fazer. Foi pela produção imediata do que se podia garantir e pelo serviço que se con- seguia prestar que a economia revelava a sua condição própria, a sua finalidade ime- diata Não foi o capital, nem foram os mer- cados, que estiveram na primeira linha - foram outras formas de direcção e de pro- visão, a começar pela pública. Revelava-se aquilo que os mais obstinados muito repetem sem que os ouçam - a economia existe na sociedade e deve existir para a so- ciedade, sendo certo que é ela própria que, para o bem ou para o mal, configura a so- ciedade. Umas vezes sujeitando-a às ló- gicas mercantis, outras vezes articulando quadros de evolução distintos. Revelou-se também que era na proximi- dade, nos lugares imediatos de organiza- ção da vida e de formação de legitimida- des que as respostas se formavam. Com as solidariedades, os bens colectivos e a ac- ção e a racionalidade públicas a tratarem das urgências e a estabelecerem as priori- dades do momento. É certo que a vontade de apropriação das «oportunidades» pe- los novos negócios não tardaram. Mas os princípios de acção foram formados por outras lógicas que não as dominantes. Por outro lado, a noção de incerteza ra- dical numa foi tão lapidarmente expressa. E a noção perante a qual nos encontráva- mos não era a que sugere a fuga para a frente, o lançamento no mundo aberto e na busca desenfreada de novos patamares de concorrência e «despique», como acon- selham ideologias em voga sobre crenças e subjectividades, mas antes o que as an- tigas e prudentes convicções indicavam quando propunham a intervenção base- ada nas circunstâncias mais sólidas, as da acção que produz resultados para comuni- dades concretas e problemas visíveis. poderes que não se entregam Tornou-se, enfim, claro que o capita- lismo, que havia revolucionado os contex- tos institucionais que ele próprio havia criado quando as nações e o seus Estados eram a base do seu desenvolvimento se- guro, se havia com isso fragilizado a si pró- prio, ao originar uma deslocação intensa de poderes para as esferas que promo- vem a especulação na sua vertente finan-

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Page 1: Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política …...ECONOMIA Cinco pilares da economia do cuidado Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos E

01-06-2020

INÊS D'OREY . Turmeric #2 (Da série Transmutations) www.inesdorey.com

ECONOMIA

Cinco pilares da economia do cuidado

Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos E se a crise sanitária e económica que estamos a viver levasse a instituir uma economia do cuidado, assegurando produção e provisão, tendo poder sobre si própria e quebrando dependências geradoras de vulnerabilidade? A proposta que aqui se discute assenta em cinco pilares: indústria e sistema produtivo, território, serviços, Europa e Estado.

JOSÉ REIS *

O quadro que nos rodeia não pre-cisa de ser descrito. Conhecemos os factos, as convulsões e as in-

certezas. Conhecemos o espanto. Mas tal-vez precisemos de insistir na interpreta-ção. Não por boa exegese, mas para estar-mos bem capacitados para tratar do fu-turo, isto é, para agir.

Os tempos que correm representam o mais radical confronto com a lógica do capitalismo que alguma vez presenciá-mos. O sistema social, económico e polí-tico cuja natureza intrínseca consiste no alargamento incessante das transacções, nas mobilidades, na acumulação, na ex-clusão de muitos (pela propriedade e pelo dinheiro) do acesso aos frutos da criação de riqueza, na exploração de recursos, es-paços e pessoas e, enfim, na instituição de desigualdades, viu-se subitamente pe-rante a paragem, o regresso de muitos de nós a um espaço limitado, a inviabilidade do exercício generalizado das actividades, a instituição maciça de formas de provi-são de natureza «horizontal», onde o pri-meiro elemento não é o negócio. E, mais ainda, viu-se perante a possibilidade do regresso recorrente deste tipo de limita-ções e perante a necessidade de reconver-sões intensas que terão de se confortar com outros princípios que não os da con-corrência e do lucro, seguindo a trajectó-ria linear do tempo.

Não estou, evidentemente, a declarar que este é o quadro completo da situação e da perturbação em que os capitalismos se encontram. Estou apenas a assinalar a ori-ginalidade, para tentar identificar as linhas de tensão que já estão a desenhar-se e para procurar pontos de sustentação sobre os quais assentemos alternativas. O regresso, de modo mais claro do que alguém conse-guiria descrever, da ideia de que a econo-mia é em primeiríssimo lugar um sistema de produção e provisão, e não um lugar abstracto de transacções também elas abs-

tractas, ficou demonstrado logo quando se viu quais eram as necessidades urgen-tes e incontornáveis que havia para satis-fazer. Foi pela produção imediata do que se podia garantir e pelo serviço que se con-seguia prestar que a economia revelava a

sua condição própria, a sua finalidade ime-diata Não foi o capital, nem foram os mer-cados, que estiveram na primeira linha -foram outras formas de direcção e de pro-visão, a começar pela pública. Revelava-se aquilo que os mais obstinados há muito

repetem sem que os ouçam - a economia existe na sociedade e deve existir para a so-ciedade, sendo certo que é ela própria que, para o bem ou para o mal, configura a so-ciedade. Umas vezes sujeitando-a às ló-gicas mercantis, outras vezes articulando quadros de evolução distintos.

Revelou-se também que era na proximi-dade, nos lugares imediatos de organiza-ção da vida e de formação de legitimida-des que as respostas se formavam. Com as solidariedades, os bens colectivos e a ac-ção e a racionalidade públicas a tratarem das urgências e a estabelecerem as priori-dades do momento. É certo que a vontade de apropriação das «oportunidades» pe-los novos negócios não tardaram. Mas os princípios de acção foram formados por outras lógicas que não as dominantes.

Por outro lado, a noção de incerteza ra-dical numa foi tão lapidarmente expressa. E a noção perante a qual nos encontráva-mos não era a que sugere a fuga para a frente, o lançamento no mundo aberto e na busca desenfreada de novos patamares de concorrência e «despique», como acon-selham ideologias em voga sobre crenças e subjectividades, mas antes o que as an-tigas e prudentes convicções indicavam quando propunham a intervenção base-ada nas circunstâncias mais sólidas, as da acção que produz resultados para comuni-dades concretas e problemas visíveis.

Há poderes que não se entregam

Tornou-se, enfim, claro que o capita-lismo, que havia revolucionado os contex-tos institucionais que ele próprio havia criado quando as nações e o seus Estados eram a base do seu desenvolvimento se-guro, se havia com isso fragilizado a si pró-prio, ao originar uma deslocação intensa de poderes para as esferas que promo-vem a especulação na sua vertente finan-

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01-06-2020

ceira, mas são ineficazes e incompetentes quando se trata de responder à garantia de bem-estar e àquilo de que as pessoas care-cem. Nessa altura, há que regressar ao lu-gar onde a vida se origina e se estabelece.

Perante uma convulsão tão forte, apren-deu-se muito em pouco tempo. Para além do que ficámos a saber sobre produção e provisão, soubemos também que há pode-res que não se entregam a quem não usa as mesmas regras ou os mesmos objectivos. Os Estado fizeram-no quando, tomados pelas ideologias do capital e capitaneados por instâncias internacionais que nunca ti-veram alma ou que a perderam, prescindi-ram de muito do que forma a sua condição soberana, da moeda à competência orça-mental. Felizmente, as condições elemen-tares da democracia ainda exigem que sub-sistam compromissos com o povo e com a comunidade, isto é, com quem confere le-gitimidade à esfera pública mesmo quando ela fica cercada e limitada Por isso, o Es-tado não se estreitou definitivamente em áreas que se revelaram sempre essenciais, como a provisão de saúde ou mesmo a ci-ência. Mas é claro que as mais insensatas transferências de poderes, aquela que se fez sem regras nem valores ou, pior ainda, com regras e valores iníquos, têm de ser re-cuperadas - devolvidas ou assentes em no-vos compromissos.

Ficámos também a saber que há acti-vos cuja transacção não se promove como quem leiloa coisas comuns. Entre nós, de-senvolveu-se um modelo económico di-rigido a quem estava de passagem. Ofe-receu-se-lhe serviços baratos, ambiente e património. Não se cuidou do trabalho, mas das transacções. Mesmo cidades onde o que mais conta é serem lugares de vida e de exercícios de actividade, verteram os seus recursos para as que são lugares de passagem. E o mesmo aconteceu, dentro destas, desequilibrando a sua natureza compósita. O imobiliário e o próprio es-paço público foram, assim, intensamente transaccionados, obliterados da sua fun-ção de prestação de serviço à comunidade. O Estado que, nestes domínios não estava tão vigiado pelos cidadãos como estava noutros, não só esqueceu a provisão pú-blica de habitação e de regulador essen-cial como lançou fogo à pradaria E vimos

um país turístico, de vistos gold e passa-gens apressadas, a ocupar o lugar das acti-vidades que devem ser «lentas» e criar va-lor pela produção, pela qualificação e retri-buição do trabalho, pela criação das inter--relações (técnicas, económicas, sociais) que capacitam o país em vez de o verte-rem para fora. Há relações que têm de ser desenvolvidas num quadro preciso, fiável e articulado. Os lugares são sítios de vida, não apenas pontos de passagem.

Perante tudo isto, partindo daqui para definir princípios de acção que nos devem nortear, defendo o que chamo economia do cuidado. Uma economia do cuidado é, em primeiro lugar, uma economia que as-segure o essencial da provisão de um país e de quem lá viva, uma economia que te-nha poder sobre si própria e que quebre as dependências mais graves, aquelas que tornam os países, as regiões e as pessoas -isto é, as comunidades — sujeitos a vulne-rabilidades. É, portanto, toda a economia e não apenas certas áreas da sociedade, como o chamado terceiro sector ou os ra-mos dos cuidados pessoais. Falo, evidente-mente, de economia política, do país, das deliberações colectivas que há que tomar. Gostaria mesmo que esta fosse a forma de economia política que determinará o ciclo indefinido e instável que temos pela frente e que era bom que soubéssemos governar.

Os cinco pilares da economia do cuidado

São cinco os pilares desta economia que vale a pena destacar: indústria e sistema produtivo, território, serviços, Europa e Estado. Sobre a configuração do sistema produtivo convém ser claro e não poupar nas palavras. Estamos a falar de reindus-trialização (que ninguém se assuste, falo da indústria que nos capacita ambiental-mente através dos bons princípios da eco-nomia circular), de criação de cadeias pro-dutivas centradas no território, isto é, em interdependências técnicas, competên-cias e especializações, de objectivos claros de redução da forte dependência externa em bens industriais, isto é, de substituição de importações. Relembro que o saldo da nossa balança comercial de bens é nega-tivo e caminha para o equivalente a 8% do

produto interno bruto (PIB) e que a 80,3 mil milhões de importações de bens em 2019 apenas respondemos com a expor-tação de 59,9 mil milhões (uma taxa de cobertura de apenas 75%). Às cabeças an-tigas que acham que isto é fechamento e isolacionismo e que a reposta está em ex-portar mais e mais, confiando nisso como solução, responde-se dizendo que os nos-sos ramos industriais mais exportadores são exactamente os que mais dependem de importações - uma parte é reexporta-ção do que importam. Sim, exportemos, mas exportemos o que produzirmos.

Esta deliberação sobre o nosso sistema produtivo deve ser, ao mesmo tempo, uma deliberação sobre a nossa organização ter-ritorial interna. Criar economias com capa-cidade industrial deve querer dizer assen-tar as relações territoriais do país inteiro em articulações económicas. Não em lógi-cas assistencialistas a partir de um centro, para compensar um território que se debi-litou. As razões para isso começam logo no que a nossa geografia industrial nos tem mostrado: é no território e através de rela-ções de proximidade que se formam siste-mas (em linguagem «moderna», clusters); é aí que se aprofundam especializações e consolidam competências. No território, num território com economia, há tudo: agricultura, paisagem, turismo, habitação e serviços públicos. Há dignificação do traba-lho. Há indústrias. E há cidades. Num ter-ritório com economia, as polarizações ur-banas e o papel de proximidade que as ci-dades médias exercem são essenciais. Não podem é cair na perda demográfica em que todas as nossas estão a cair, em beneficio de um único pólo, a Área Metropolitana de Lisboa (convido a que se consultem as es-timativas demográficas do Instituto Nacio-nal de Estatística [INE] entre 2011 e 2018).

As economias mais avançadas são eco-nomias de serviços. As menos também. As formas mais superficiais de evolução eco-nómica baseiam-se frequentemente em serviços de fácil mobilização e pouca qua-lificação. Mas uma economia do cuidado que estruture internamente a produção e as cidades, trate dos cidadãos e do bem--estar colectivo carece de serviços quali-ficados, criadores de valor. Mesmo que a boa lógica não o sugerisse, isso seria im-

posto pela estrutura do nosso emprego: 70% está nos serviços. A reconversão da economia, a superação do problema criado por actividades «inchadas» que ca-íram drasticamente, obriga a isso. A fina-lidade que lhes atribuamos é essencial e tem de ser para estruturar a vida e a eco-nomia em termos internos.

O pensamento sobre a Europa é o quarto pilar que refiro. Um país e uma economia competentemente estruturados, organiza-dos e capazes de garantir o bem-estar da comunidade que os constitui, não tem de ser uma entidade fechada Pode ser isso mesmo, porventura da melhor maneira, num espaço de integração - assim este seja um território de criação adicional de competências, de solidariedades e de fo-mento da coesão material, social, territo-rial e política. A União Europeia e muito menos a União Económica e Monetária (um instrumento de constrições e de pu-nição), não o têm sido. Deprimiram-nos, condicionam-nos e confrontam-nos rude-mente. Regenerar-se-á perante o que ve-mos nestes dias? Cinicamente ou genuina-mente? Eu não sei. Por isso, esta tem de ser a maior questão em aberto de uma econo-mia do cuidado. Na Europa, tudo é possível, da fragmentação ao ressurgimento. O país tem de ser parte de uma solução positiva, não tem é de ser uma vítima descuidada

O Estado é sempre o mais apetecível objecto de disputa. E de cooptação por parte de quem o quer usar em beneficio privado. A arquitectura da acção pública tem sido cada vez mais objecto de confi-namento: pelos mercados que passaram a gerir a criação de moeda, pelas regras que fizeram dele cliente dos privados em vez de provisor, pela sujeição à constrição orçamental, pela perda de autodetermi-nação na própria despesa que realiza. A acção pública que é preciso fortalecer é a que estruture o país, incentive as suas ac-tividades principais, configure um enqua-dramento seguro. É, enfim, a que planeie o seu desenvolvimento, discutindo as gran-des deliberações que temos de tomar. It

* Economista e professor da Faculdade de

Economia da Universidade de Coimbra.

Investigador do Centro de Estudos Sociais. O título

deste artigo é também o do livro que o autor acaba

de publicar na Almedina.