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1 Figuras na Paisagem: cinema narrativo e topofilia Angela Prysthon 1 Algumas das primeiras imagens do cinema foram do mundo natural em movimento, cenas de rua e vistas de temas topográficos. Nesse sentido, o cinema poderia ser interpretado nesses primeiros tempos quase como um subproduto da indústria turística ou do registro geográfico. Parece-nos, então, evidente a associação entre filme e paisagem. Encontramos em John Brinkerhoff Jackson uma das possíveis definições de paisagem: “uma porção de terra que o olho pode compreender à primeira vista” (1984, 1). Ora, o cinema está constantemente nos apresentando porções, pedaços de terra, enquadramentos que organizam e modelam nossos modos de compreender, processar e sentir o espaço. De vários modos, as paisagens fílmicas, mesmo naqueles filmes mais marcados por um projeto narrativo, terminam por vezes a ocupar uma centralidade inesperada, ou como aponta Kracauer com relação às “pequenas unidades” de existência material contingente (rostos, espaços, detalhes) capturadas pela imagem fílmica, tais unidades “abrem uma dimensão muito mais ampla do que aquela dos enredos que elas sustentam” (Kracauer, 1997, 303). Os filmes, sobretudo aqueles mais claramente ligados ao registro de imagens do mundo natural e mesmo dos entornos urbanos, dariam forma às nossas percepções espaciais, constituir-se-iam em “paisagens” numa maneira similar às das artes pictóricas mais tradicionais, principalmente a pintura. Contudo, é importante diferenciar o paisagismo cinematográfico do pictórico convencional, não apenas pelo movimento (diferença já evidente desde os primórdios do cinema), mas também pela presença do som. Os modos de enquadramento dos territórios e espaços (naturais ou construídos) caracterizam e revelam os elos entre mise en scène e paisagem. As relações entre paisagem e cinema são permeadas por nuanças que têm tanto a ver com a própria pluralidade do conceito (que fica ainda mais evidente quando nos confrontamos com as derivações do termo em inglês: landscape, cityscape, townscape, soundscape, etc), como pela centralidade da paisagem na composição de atmosferas e moods fílmicos, na construção de texturas. Alguns cineastas e autores buscam deliberadamente adensar o papel da paisagem no cinema para além de sua função decorativa ou contextual. Para estes, a paisagem cinematográfica se revelaria como uma instância de crítica do espaço (Keiller, 2013, p. 147), ou, mais ainda, como um método de filmar, como um elemento primordial de encenação. 1 Angela Prysthon é professora associada do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Bacharelado em Cinema da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, Brasil.

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    Figuras na Paisagem: cinema narrativo e topofilia

    Angela Prysthon1

    Algumas das primeiras imagens do cinema foram do mundo natural em movimento, cenas

    de rua e vistas de temas topogrficos. Nesse sentido, o cinema poderia ser interpretado

    nesses primeiros tempos quase como um subproduto da indstria turstica ou do registro

    geogrfico. Parece-nos, ento, evidente a associao entre filme e paisagem. Encontramos em

    John Brinkerhoff Jackson uma das possveis definies de paisagem: uma poro de terra que

    o olho pode compreender primeira vista (1984, 1). Ora, o cinema est constantemente nos

    apresentando pores, pedaos de terra, enquadramentos que organizam e modelam nossos

    modos de compreender, processar e sentir o espao. De vrios modos, as paisagens flmicas,

    mesmo naqueles filmes mais marcados por um projeto narrativo, terminam por vezes a ocupar

    uma centralidade inesperada, ou como aponta Kracauer com relao s pequenas unidades

    de existncia material contingente (rostos, espaos, detalhes) capturadas pela imagem flmica,

    tais unidades abrem uma dimenso muito mais ampla do que aquela dos enredos que elas

    sustentam (Kracauer, 1997, 303).

    Os filmes, sobretudo aqueles mais claramente ligados ao registro de imagens do mundo

    natural e mesmo dos entornos urbanos, dariam forma s nossas percepes espaciais,

    constituir-se-iam em paisagens numa maneira similar s das artes pictricas mais

    tradicionais, principalmente a pintura. Contudo, importante diferenciar o paisagismo

    cinematogrfico do pictrico convencional, no apenas pelo movimento (diferena j evidente

    desde os primrdios do cinema), mas tambm pela presena do som. Os modos de

    enquadramento dos territrios e espaos (naturais ou construdos) caracterizam e revelam os

    elos entre mise en scne e paisagem.

    As relaes entre paisagem e cinema so permeadas por nuanas que tm tanto a ver com

    a prpria pluralidade do conceito (que fica ainda mais evidente quando nos confrontamos com

    as derivaes do termo em ingls: landscape, cityscape, townscape, soundscape, etc), como

    pela centralidade da paisagem na composio de atmosferas e moods flmicos, na construo

    de texturas. Alguns cineastas e autores buscam deliberadamente adensar o papel da paisagem

    no cinema para alm de sua funo decorativa ou contextual. Para estes, a paisagem

    cinematogrfica se revelaria como uma instncia de crtica do espao (Keiller, 2013, p. 147),

    ou, mais ainda, como um mtodo de filmar, como um elemento primordial de encenao.

    1 Angela Prysthon professora associada do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e do Bacharelado em Cinema da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, Brasil.

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    Naturalmente, alguns gneros cinematogrficos so mais propcios que outros a essa conexo

    com a paisagem: o western, o road movie, o travelogue documentrio, o pico, o cinema de

    poca. Pensemos, por exemplo, em como as phantom rides (fig.1) expunham o movimento a

    espectadores fascinados por essas viagens virtuais. A ideia do trnsito e o entusiasmo pela

    tecnologia (tanto a dos transportes em geral locomotivas usados para as filmagens, como

    aquela implicada pelo prprio cinema) mesclavam-se identificao que o pblico sentia pelos

    os lugares que apareciam na tela, fossem eles espaos familiares ou terras distantes.

    Fig.1: The Haverstraw Tunnel (1897); fig.2: I Know Where Im Going (1945); fig 3: On Dangerous Ground (1951)

    Pode-se pensar nessa identificao como uma sorte de afeto pelos lugares enquadrados

    pelo filme. Ou seja, a paisagem flmica definida tambm como uma geografia emotiva. Ao

    relacionar o paisagismo do sculo XVII e seu apreo pelo movimento, pelos passeios e pela

    imaginao, Giuliana Bruno se refere a uma viso ttil:

    The movement that created filmic (e)motion was an actual sensing of space.

    The picturesque contributed a tactile vision to this scenery and to cartographic

    imagery (...) What was fleshed out in the picturesque was not an aesthetics of

    distance; one was rather taught to feel through sight (Bruno, 2007, 202).

    Mas no apenas nas inclinaes mais bvias dos gneros do cinema clssico (westerns,

    road movies e travelogues principalmente) para a paisagem (e para uma caracterizao

    pitoresca dos espaos) podemos encontrar essa geografia emotiva. Um dos nossos propsitos

    neste artigo justamente comentar e apontar alguns momentos-chave da relao entre

    cinema e paisagem a partir desse recorte afetivo com espao no cinema narrativo de fico.

    Ento, para alm da delimitao mais sistemtica das relaes entre espao e filme, interessa-

    nos tambm encontrar mesmo nos gneros mais distantes da tradio paisagstica (o filme de

    amor, o musical, o melodrama suburbano, a comdia, o policial...) o que define a topofilia no

    cinema. E buscamos na geografia a noo de topofilia para associ-la s paisagens flmicas.

    Seguindo Yi-Fu Tuan, propomos pensar a topofilia no apenas como uma sndrome ou um

    excesso, mas como um amor pelo lugar que se manifesta de formas e intensidades variadas,

    um lao afetivo entre pessoas e espaos que revelam elos entre o ambiente e modos de ver e

    conceber o mundo (Tuan, 1990).

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    Para comear com um exemplo da comdia romntica, curioso perceber como o

    romantismo de Powell e Pressburger em I know where Im going (fig.2) delineado mais pelas

    maneiras de retratar a ilha de Mull, na Esccia, do que propriamente pelas convenes dos

    filmes de amor utilizados na composio dos seus personagens. O estranhamento, o exotismo,

    os ngulos inusitados e os contrastes entre as figuras humanas e a geografia fazem de I know

    where Im going (entre outros filmes igualmente criativos no uso das paisagens flmicas de The

    Archers) uma ilustrao relevante da ideia de construo flmica de afeto pela paisagem.

    Um gnero permanentemente associado caracterizao do ambiente urbano e mais

    especificamente a uma viso essencialmente negativa da cidade (cidade cheia de vicissitudes,

    plena de armadilhas), o filme noir evoca uma apreenso negativa do espao, quase que

    invariavelmente uma viso sombria da cidade. Por isso, destacamos uma das obras primas de

    Nicholas Ray, On Dangerous Ground (1951) (fig.3) como uma inusitada contribuio para a

    genealogia das paisagens cinematogrficas. O policial interpretado por Robert Ryan transita

    entre a dureza usual de uma cidade no nomeada e a beleza transcendental de uma paisagem

    invernal do interior.

    Essa materialidade quase abstrata da figura humana numa paisagem invernal tambm

    alcanada em The Criminal (1960) (fig. 4), de Joseph Losey. A cena final com o personagem

    agonizando na neve constitui um momento exemplar da irrupo do moderno que opera nos

    limites do cinema clssico, forando e estendendo tais limites. E o uso que Losey faz do espao

    um componente indispensvel para essa operao.

    Fig.4: The Criminal (1960); fig.5: Il deserto rosso (1964); fig.6: Stalker (1979)

    Mas so algumas recorrncias estticas do cinema moderno que enfaticamente

    reforam o nexo com uma potica do lugar, com uma afirmao particular do espao e com

    uma perspectiva mais complexa com relao topofilia flmica. Pensamos imediatamente em

    Antonioni (fig.5), Wenders ou Tarkovsky (fig.6), por exemplo, como representantes

    emblemticos dessa linhagem. Mas outros nomes tambm podem ser enumerados com

    relao composio de paisagens cinematogrficas e revelam geografias afetivas igualmente

    interessantes. Como a topografia australiana de Peter Weir em Picnic at Hanging Rock (1975)

    que combina certa delicadeza despreocupada com mistrio gtico. Ou aquela apresentada por

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    Werner Herzog em Herz Aus Glas (1976) (fig.7), na qual a Bavria do sculo XVII apresentada

    sob a inspirao da pintura de Caspar David Friedrich. Tambm a Sardenha dos irmos Taviani

    e a forma como ela desenhada em Padre Padrone (1977) (fig. 8), sempre ligada a um passado

    opressivo e estagnante. E ainda a Lisboa de Alain Tanner em Dans la ville blanche (1983) (fig.9),

    na qual composies martimas e vistas pitorescas contrastam com a introverso silenciosa do

    protagonista.

    Fig.7: Herz Aus Glas (1976); fig. 8: Padre Padrone (1977); fig. 9: Dans la ville blanche (1983)

    O cinema mundial contemporneo igualmente contribui para uma reconfigurao do

    espao flmico. De modo geral, podemos intuir inclusive que at mais do que no cinema

    moderno as tendncias dominantes mais recentes do (ainda) chamado cinema de autor

    recolocam a paisagem no centro das suas preocupaes. Um dos motivos para isso seria a

    consolidao da prpria noo de cinema mundial (vinculada emergncia do termo world

    cinema nos estudos flmicos anglo-saxes) e sua consequente inclinao territorializante:

    enquanto estrutura rizomtica, o cinema global estaria mais perto de um atlas, um mapa

    (...) ou ainda de constelaes de mltiplas possibilidades de configurao (LOPES, 2012, 75).

    Ento, os filmes desse atlas (ou mapa) do cinema contemporneo, portanto, parecem ter que

    necessria e recorrentemente apresentar seus nexos com o lugar geogrfico e consequente

    seus elos com a paisagem.

    H uma infinidade de exemplos das mais diversas regies do planeta que demonstra esse

    protagonismo da paisagem no cinema contemporneo. Em diretores to diversos como Abbas

    Kiarostami, Jane Campion, Carlos Sorn, Gus Van Sant, Abdherramane Sissako, Pedro Costa,

    Wong Kar Wai, Cristian Mungiu, Lisandro Alonso ou Miguel Gomes, pode-se perceber que os

    espaos (e os recortes e enquadramentos propostos a partir deles) so cruciais no

    estabelecimento no apenas dos panos de fundo das linhas narrativas, como tambm (e talvez

    acima de tudo) do cerne da viso de mundo implicada nos seus filmes. Nesse sentido, uma

    realizadora como Claire Denis articula laboriosamente paisagem, colonialismo, geografia e

    poltica desde Chocolat (1988), seu primeiro filme. Em Beau Travail (1999) (fig. 10), Denis

    chega ao pice da combinao e problematizao desses elementos privilegiando composies

    nas quais a forma humana ocupa um lugar secundrio com relao paisagem.

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    Lucrecia Martel tem vrios pontos em comum com Denis, embora se concentre mais na

    utilizao de atmosferas e texturas sonoras que em grandes planos visuais. Martel lida

    primordialmente com os horrores secretos da vida domstica, com o inaudito do cotidiano,

    utilizando-se na maior parte do tempo de estratgias sonoras para explorar o fora-de-campo.

    Seu primeiro longa-metragem, La Cinaga (2001), conjura um hbrido entre o filme de terror e

    um opressivo drama familiar e poltico. A diretora parece estar preocupada em encampar

    novos modos de filmar a inrcia, de retratar a inapetncia e sublinhar o sinistro que existe no

    banal. Para isso faz um uso extensivo da amplificao de paisagens sonoras (principalmente a

    partir de sons da natureza), estabelece uma mise-en-scne claustrofbica e perversa (na qual

    muitas vezes as paisagens se mostram desfocadas, embaadas e mutiladas), promove um

    deslocamento, um descompasso entre som e imagem, uma espcie de distoro entre o que

    est sendo visto e ouvido.

    Fig.10: Beau Travail (1999), fig.11: Still life (2006), fig.12: Post Tenebras Lux (2012)

    Jia Zhang-Ke outro cineasta adepto dos planos nos quais a figura humana se

    apequena ou empurrada para fora do quadro, substituda por uma espcie de foco alienante

    e difuso em lugares vazios, em ambientes industriais ou naturais. A maior parte dos seus filmes

    opera por uma espcie de frico, pelo atrito, seja entre natureza e tecnologia, entre a

    tradio e a modernidade, ou entre a prosperidade e o subdesenvolvimento, entre a riqueza e

    a misria que o ritmo frentico da industrializao da China trouxe em igual medida. Assim, o

    uso dos espaos e das paisagens funciona quase que invariavelmente como um operador

    audiovisual desses embates e contradies. Talvez de modo mais contundente, Still Life (2006)

    (fig.11) usa as mudanas topogrficas trazidas tona pela construo de uma barragem no rio

    Yangtze como uma forma de entender os limites e afetos dos dois casais retratados no filme

    em relao ao seu entorno.

    Carlos Reygadas outro realizador que distorce e reelabora os espaos flmicos a partir

    de suas interaes com a figura humana, especialmente as mais inusitadas, inquietantes e

    desconcertantes. Em Post Tenebras Lux (2012) (fig.12), foram justamente as vistas naturais

    que o levaram a optar pelo formato 4:3, no qual montanhas ngremes e um centro bem

    definido para os planos poderiam ser captados mais facilmente. Com algumas tintas

    autobiogrficas num plot mnimo (um casal e seus filhos numa casa de campo no interior do

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    Mxico; o protagonista faz amizade com um empregado), o filme explora as possibilidades do

    cinema digital em deformar e desfigurar as imagens, criando cenrios inusitados e imaginando

    novas paisagens.

    Os filmes e autores mencionados aqui so apenas uma parte nfima dos usos e dos

    modos da paisagem flmica. Ainda assim, nesse conjunto deliberadamente mnimo e ao

    mesmo tempo panormico ficam demonstradas a vitalidade e a relevncia dos espaos

    (naturais e construdos, povoados ou vazios) no cinema ao longo de sua histria. Ele evidencia

    a pluralidade de formas e as constantes mutaes da interao entre os sujeitos e seu

    entorno. Mais do que isso, as paisagens nos impelem a ver distintamente nossos prprios

    espaos, fazem-nos repensar nosso lugar no mundo.

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