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CÉSAR AZEVEDO CARNEIRO A Eclesiologia de Comunhão em Yves Marie-Joseph Congar Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teologia da PUC – Rio como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teologia. Orientadora: Profª Ana Maria Tepedino Rio de Janeiro Março de 2008

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CÉSAR AZEVEDO CARNEIRO

A Eclesiologia de Comunhão em Yves Marie-Joseph Congar

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teologia da PUC – Rio como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teologia.

Orientadora: Profª Ana Maria Tepedino

Rio de Janeiro Março de 2008

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César Azevedo Carneiro

A Eclesiologia de Comunhão em Yves Marie-Joseph Congar

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC – Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Ana Maria de A. Tepedino Orientadora

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Profa. Eva Aparecida R. de Moraes Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. José Li Guozhong Faculdade São Bento

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro

De Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 28 de março de 2008

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da Universidade.

César Azevedo Carneiro

Graduado em Filosofia pela PUC Minas e em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA – BH). Especialista em Ciências da Religião (PUC Minas).

Ficha Catalográfica

Carneiro, César Azevedo

A eclesiologia de comunhão em Yves Marie-Joseph Congar / César Azevedo Carneiro; orientadora: Ana Maria Tepedino. – 2008. 95 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Eclesiologia. 3. Comunhão. 4. Trindade. 5. Concílio Vaticano. 6. Congar, Yves Marie-Joseph. I. Tepedino, Ana Maria. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

CDD: 200

Dedico esse trabalho à minha família, aos amigos fiéis, aos eternos mestres e aos alunos companheiros do dia-a-dia.

Agradecimentos

À minha orientadora Professora Doutora Ana Maria Tepedino pela dedicação nesse acompanhamento e sensibilidade aos imprevistos da distância (BH – Rio). À PUC - Rio pelo acolhimento, apoio e confiança. À minha família que sempre esteve na torcida, apoiando e incentivando minha trajetória acadêmica. Ao amigo Pe. Ronnie Anderson Diniz, irmão e orientador de todas as horas e necessidades. À amiga, mestre e sempre companheira Ir. Maria Helena Morra, que me mostrou a beleza da teologia, grande incentivadora na vida profissional e acadêmica. Aos colegas professores e funcionários do Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, pela paciência, confiança e solidariedade. À Igreja de Deus em terras mineiras, pelo ensinamento pastoral e vivência da comunhão.

RESUMO

Carneiro, César Azevedo; Tepedino, Ana Maria Azeredo. A Eclesiologia de Comunhão

em Yves Marie-Joseph Congar. Rio de Janeiro, 2008, 95p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O foco deste trabalho está na fundamentação, na caracterização e no processo da

Eclesiologia de Comunhão no pensamento de Yves Marie-Joseph Congar, cuja contribuição

teológica nos remete a refletir a Igreja na dinâmica da Trindade, onde reside sua origem, seu

modelo e sua meta. A Igreja é anunciada e revelada como comunhão. Pretende-se refletir essa

eclesiologia articulada com as intuições e a “reviravolta” teológica trazida pelo Concílio

Ecumênico Vaticano II no contexto de sua recepção. Visando uma síntese mais abrangente

que valorize tanto o Concílio quanto os estudos de nosso teólogo, o autor procede em três

passos: primeiro, a caracterização do fundamento básico da eclesiologia congariana: toda

cristologia é pneumatologia e vice-versa. Segundo, a articulação da recepção do Vaticano II

com o pensamento de Congar, valorizando os modelos de Igreja, as suas notas e propriedades.

No terceiro passo, refletiremos sobre os sinais, dimensões e procedimentos da Eclesiologia de

Comunhão em Yves Congar e suas implicações na dinâmica eclesial.

Palavras-chave

Eclesiologia, Comunhão, Trindade, Concílio Vaticano II, Yves Marie-Joseph Congar.

RESUME

Carneiro, César Azevedo; Tepedino, Ana Maria Azeredo. L’ecclésiologie de

Communion chez Yves Marie-Joseph Congar. Rio de Janeiro, 2008, 95p. Mémoire de Mastère – Departamento de Teologia , Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

L’objet de cette recherche se situe dans la fondamentation, la caractérisation et dans le

processus de l’Ecclésiologie de Communion dans la pensée de Yves Marie-Joseph Congar,

dont la contribution théologique nous conduit à penser l’Église dans la dynamique de la

Trinité, dans laquelle se trouve son origine, son modèle et son but. L’Église est annoncée et

révélée comme communion. Il s’agira de penser cette ecclesiologie en l’articulant avec les

intuitions et le “retournement” théologique opéré par le Concile Vatican II, dans le contexte de

sa réception. Visant une large synthèse, l’auteur procède en trois étapes. La première est la

caractérisation du fondement de base de l´ecclésiologie congarienne: toute christologie est

pneumatologie et inversement. La seconde est l’articulation de la réception de Vatican II avec

la pensée de Congar, en mettant en valeur les modeles d’Église, leurs notes et leurs propriétés.

Dans la troisième étape, nous réfléchirons aux signes, aux dimensions et aux méthodes de

l’Ecclesiologie de Communion chez Yves Congar et ses implications dans la dynamique

ecclésiale.

Mots-clé

Ecclésiologie, communion, Trinité, Concile Vatican II, Yves Marie-Joseph Congar.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

Capítulo I: A caracterização do pressuposto básico da Eclesiologia de

Comunhão em Yves Congar 17

I.1. Introdução 17

I.2. A Cristologia Pneumatológica 18

I. 2.1. A Experiência de Revelação e Filiação 19

I. 3. A Pneumatologia Cristológica 23

I. 3.1. O Espírito Santo e a Experiência da Revelação 24

I. 3. 2. A Teologia Trinitária e o Espírito Santo 26

I. 4. Toda Cristologia é pneumatológica e toda Pneumatologia é

Cristológica 29

I. 4.1. A quênose do Espírito e a quênose do Verbo 30

I. 5. Conclusão 32

Capítulo II: A caminho da Eclesiologia de Comunhão: o Concílio Vaticano II

e a Eclesiologia de Comunhão de Yves Congar 35

II. 1. Introdução: O Concílio Vaticano II e suas esperanças para a Igreja 35

II. 2. A questão dos modelos de Igreja e as perspectivas da comunhão 42

II. 2.1. Igreja Povo de Deus 42

II. 2. 2. Igreja Corpo Místico de Cristo 46

II. 2. 3. Igreja Templo do Espírito Santo 49

II. 3. Notas e propriedades da Igreja 51

II. 3.1. Unidade 52

II. 3. 2. Santidade 54

II. 3.3. Catolicidade 55

II. 3. 4. Apostolicidade 56

II. 4. A Eclesiologia de Comunhão no pensamento de Yves Congar 57

II. 5. Conclusão 60

Capítulo III: A Eclesiologia de Comunhão e realidade eclesial: sinais,

dimensões e formas de processamento da Eclesiologia de Comunhão 62

III.1. Introdução: O redescobrimento da Eclesiologia de Comunhão 62

III. 2. As dimensões da comunhão 64

III. 2.1. A dimensão de Koinonia 64

III. 2.2. A dimensão Escatológica 68

III. 2.3. A dimensão Sacramental 70

III. 3. As formas de se processar a comunhão 73

III. 3.1. A comunhão de fé 73

III. 3. 2. A comunhão de culto e pelos sacramentos 75

III. 3. 3. A comunhão de vida social na perspectiva da caridade 78

III. 4. Conclusão: a Igreja é uma comunhão, uma comunhão de Igrejas 80

CONCLUSÃO 84

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 88

ABREVIATURAS

De escritos de Congar: AG Decreto do Concílio Vaticano II Ad gentes

ES I Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo I: L´Esprit Saint dans l’ Économie;

révélation et expérience de l’Esprit.

ES II Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo II: Il est Seigneur et Il donne la vie.

ES III Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo III: Le Fleuve de vie (Ap 22, 1) coule em

Orient et em Occident.

PE A Palavra e o Espírito

SC Le Saint-Espirit et le corps Apostolique réalisateurs de l´oeuvre du Christ

Outras abreviaturas:

AG Decreto Ad gentes

CD Decreto Christus Dominus

CEB Comunidade Eclesial de Base

CIC Catecismo da Igreja Católica

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

DV Constituição Dogmática Dei Verbum

GS Constituição Dogmática Gaudium et Spes

LG Constituição Dogmática Lumen Gentium

OT Decreto Optatam totius

PC Decreto Perfectae caritatis

PO Decreto Presbyterorum ordinis

SC Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium

UR Decreto Unitatis redintegratio

“No início está a comunhão do três, e não a solidão do um”

Leonardo Boff

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INTRODUÇÃO

O símbolo maior da mudança de enfoque da relação entre fé cristã e

mundo moderno é o Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII.

Precedido por importantes movimentos de renovação que, num cauteloso

crescente, vinham propondo os grandes temas da renovação da Igreja nos mais

diversos aspectos, como na exegese bíblica, na vida eclesial, na liturgia, na ação

pastoral e na teologia propriamente. De caráter prevalentemente pastoral, o

Concílio inaugurou um tempo novo para a Igreja em todo o mundo, cunhando,

definitivamente, a necessidade de uma correta reflexão teológico-pastoral em vista

de uma Igreja mais dialógica e comunional.

Pela própria natureza da Igreja, esse evento foi (e ainda é!) ao mesmo

tempo uma experiência espiritual, enquanto manifestação do Espírito de Cristo

que renova a sua Igreja, e um acontecimento da história, no clima cultural do

mundo moderno. Como todo evento histórico, também o Concílio está submetido

às suas limitações. Por isso mesmo, para compreender seu dinamismo pleno não é

suficiente fixar-se na sua realização como evento histórico. É necessário buscar-

lhe um sentido mais amplo no horizonte de sua repercussão, de seus antecedentes,

sua eficácia histórica, no conjunto do povo de Deus. Teologicamente, o Concílio e

todo seu momento de preparação e recepção fazem parte da mesma ação do

Espírito que conduz a Igreja pelo caminho da comunhão.

Um dos obstáculos apontados pelo Concílio foi urgente reflexão

pneumatológica sobre a Igreja. Um “novo Pentecostes” configurava o Concílio

nessa perspectiva. Teólogos como Yves Congar1 propuseram uma visão nova de

1 Yves Marie-Joseph Congar (1904-1995), ilustre teólogo do século XX, descobriu sua vocação religiosa num ambiente diocesano de Paris. Aos 21 anos ingressa à Ordem dos Pregadores, tornando-se uma das grandes referências dos Dominicanos contemporâneos. De formação Tomista (influenciado, sobretudo, por J. Maritain e F. Blanche), Congar recebe sua maior influência intelectual de Marie-Domenique Chenu, principalmente no contexto da “historicidade da Teologia”. Ordenado sacerdote em julho de 1930, Congar inicia seu “ministério teológico” em direção de uma Eclesiologia ecumênica. Em Le Saulchoir descobre o gosto pela carreira acadêmica assumindo a cadeira “De Ecclesia”, onde no ano de 1937, impulsionado por espírito de

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ver e entender a Igreja que já abriria caminhos a uma consciência de comunhão

dentro e fora dos muros eclesiais. Yves Marie-Joseph Congar foi um grande

responsável pela abertura da teologia católica para a questão ecumênica. Para ele,

a unidade dos cristãos é uma tarefa histórica para as Igrejas. O problema é saber

até que ponto a comunhão pode tolerar a diversidade. Sua proposta se baseia em

praticar uma re-recepção dos escritos normativos para a fé de cada Igreja, para

situá-los de novo no conjunto do testemunho da Escritura. Supõe repensar os

dogmas, historicizar a própria tradição e relativizar contrastes, evidenciando o

núcleo comum das diversas tradições cristãs. Congar pondera que, para isso, é

necessário uma longa e cautelosa caminhada.

Posto isto, nesta dissertação refletiremos sobre o paradigma eclesiológico

de Congar baseado na comunhão, a saber, a Eclesiologia de Comunhão, que tem

como fundamento primordial a origem da Igreja na Trindade. As relações

intratrinitárias, queridas por Deus e garantidas pela ação do Espírito,

autonomamente preservadas, asseguram a fundamentação teológica para esse

paradigma. A Igreja, com sua natureza batismal e como sinal visível de salvação à

humanidade, é o lugar da comunhão por excelência.

Pretende-se articular o pensamento de Congar sob o crivo de três relações

essenciais, a saber: pneumatologia – eclesiologia – comunhão. Na amplitude dos

escritos de Congar, essas relações se fazem fortemente notar, ainda que nem

sempre verbalmente explicitadas. Apesar de se co-implicarem reciprocamente,

renovação declaradamente de ardor ecumênico, lança a Coleção de Eclesiologia e ecumenismo “Unam Sanctam”. Essa coleção de livros, inicialmente, deveria abarcar estudos teológicos, históricos e ecumênicos e, pela urgência de uma reflexão teológica mais apurada nessa área, acabou por se tornar uma referência na renovação da eclesiologia católica francesa marcada pela Cristandade. Dessa coleção surge a principal obra de nosso teólogo na linha do ecumenismo: “Les chrétiens desunis”. Conhecido pela excelência de sua pregação e pelos conteúdos teológicos libertários da mesma, no período da Segunda Guerra Mundial, nosso teólogo é preso e nessa experiência de exílio relê a história recente da Igreja na França e vê nesses acontecimentos o período de maior amadurecimento eclesiológico de sua carreira. Nos anos seguintes, 1947-1956, por conta da publicação de sua obra “Vraie et fausse reforme dans l’église”, recebe por parte da Igreja Universal censuras e intervenções e exilado, novamente, é enviado à Terra Santa. Nos anos do Concílio Vaticano II (1961-1964), Congar torna-se uma figura chave nesse processo de mudança da Igreja. Consultor e perito oficial da Comissão teológica, ele redescobre nessa abertura da Igreja um evento providencial de renovação da eclesiologia. No ano de 1995 nosso teólogo “é chamado a contemplar a face de Deus” deixando um legado inestimável ao saber teológico.

15

nesta dissertação optaremos por dialogar com essas categorias no contexto próprio

do Concílio Vaticano II e no período subseqüente a fim de compreendermos a

Eclesiologia de Comunhão de nosso teólogo e suas implicações no espaço

eclesial.

Precedido desta introdução, o corpo da dissertação constará de três capítulos.

O primeiro tratará da fundamentação e os pressupostos da Eclesiologia de

Comunhão de Yves Congar, ou seja, da relação dialético-teológica entre

pneumatologia e cristologia. Perscrutada a origem dessa relação no mistério

trinitário, mediante uma avaliação e confrontação crítica das tradições latinas e

grega, dar-se-á uma atenção especial às missões econômicas do Verbo e do

Espírito advindas do Pai, testificadas pelas Escrituras. Daí Congar propunha a

base histórica de seu axioma fundamental: Toda Cristologia é Pneumatologia e

vice-versa. Ratificada essa base teórico-existencial do pensamento de Congar que

preconiza a existência de uma dualidade relativa entre as operações e iniciativas

salvíficas do Filho e do Espírito na Economia da graça, teremos o chão concreto

de nossa pesquisa que é a Eclesiologia de Comunhão, que nasce do coração

mesmo da Trindade.

No segundo capítulo, buscaremos a base histórica da Eclesiologia de

Comunhão em diálogo profundo com a realidade do Concílio Vaticano II,

ressaltando as discussões em torno do tema e as características da Eclesiologia de

Comunhão em Yves Congar. O foco desse capítulo deve ser encontrado

positivamente na articulação da chave eclesiológica do Concílio, a categoria Povo

de Deus, com a categoria que mais fortuna teve no pós-concílio e muito cara a

nosso teólogo, a saber, a comunhão. Parte-se do fato de que o Concílio não foi um

evento historicamente acabado e perfeito. Sua visão eclesiológica,

necessariamente aberta ao processo de recepção, carece de uma síntese mais

profunda. As categorias eclesiológicas, tanto trazidas pelo Concílio como

refletidas por Congar, são produtos históricos da razão crente e, por isso mesmo,

não esgotam a compreensão do mistério da Igreja, mas cada uma delas conota

algo de fundamental do ser da Igreja enquanto mistério de comunhão. Além do

mais o uso de categorias sempre tem a ver com interesses concretos que transitam

na sociedade, conotando não só o dado teológico, mas também a sua relação com

16

a sociedade e seus ordenamentos históricos como o político, o econômico, o

cultural e o religioso.

O terceiro capítulo abordará os sinais e as formas de processamento da

Eclesiologia de Comunhão. A Comunhão deve ser um conceito entendido

teologicamente à luz dos dados da revelação de Deus. Desde sua raiz trinitária até

os eventos eclesiais propriamente, podemos refleti-la de formas variadas e com

significações diversas. Suas dimensões – koinonia – sacramental – escatológica –

dão-nos a medida precisa de como valorizar e identificar na vida cristã a sua

vocação primeira. Suas formas de processamento na realidade eclesial

determinam o modo próprio de ser e de realizar-se na história e testifica a Igreja,

em sua natureza, origem e estrutura como comunhão.

A pesquisa baseou-se em fontes bibliográficas, buscando fazer uma leitura

teológico-pastoral das principais obras de Yves Congar concernente ao tema da

Eclesiologia de Comunhão e um diálogo com outros autores afins. Para isso, o

principal método foi o que parte da experiência fundamental cristã, assumindo a

Igreja como Povo de Deus, sujeito da comunhão, nascido da e chamado à

comunhão pericorética intratrinitária. E também: o método reflexivo e o da

mediação sócio-analítica (teologia dos sinais dos tempos, relação Igreja –

mundo).

Cabe ressaltar que a escolha de Yves Congar e de sua obra como objeto de

investigação e análise deve-se, sobretudo, à sua grande notoriedade na Igreja

como teólogo e moderador do grande Concílio Ecumênico do século XX:

Vaticano II. Somado a isso, sua perspectiva ecumênica de Igreja, seu zelo

apostólico pelo papel dos leigos na vida eclesial, face ao clericalismo

institucional, e sua capacidade de discernimento à verdade histórica ratificam o

desejo e o valor dessa escolha. E, finalmente, a vasta e valiosa contribuição

literária congariana, especialmente seus escritos pós-conciliares concernentes à

Pneumatologia – que, a propósito, hão de constituir-se na principal fonte de

análise e consulta da presente dissertação, dão a certeza da escolha feita.

Não obstante talentoso e perspicaz em suas análises, dotado de um estilo

literário preciso e fluente, Congar não se intitula como um grande teólogo

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sistemático. Ao escrever, nosso autor tende a ser, muitas vezes, digressivo e

repetitivo, dificultando o alinhavamento das idéias. Nem sempre se vê clara a

organização de seu pensamento, quando não se tem em mente o conjunto de seus

escritos teológicos (sobre a sua Eclesiologia de Comunhão, Congar não dedicou

uma obra específica sobre esse tema, mas ele abordará o tema em diversos de seus

escritos).

Na prática, o que se pretende nessa dissertação é articular a Eclesiologia de

Comunhão de Yves Congar numa tentativa de superar de vez a insuficiência

histórica da categoria comunhão como definição da natureza da Igreja,

contrabalançando o seu uso ideo-político, determinando-lhe o modo próprio de ser

e de realizar na história.

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CAPÍTULO 1:

A CARACTERIZAÇÃO DO PRESSUPOSTO BÁSICO DA ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO EM YVES CONGAR

I.1. Introdução

O pensar teológico, durante alguns séculos de história, trabalhou a

Cristologia como conteúdo independente e até mesmo isolado da ação do Espírito.

Tamanha foi a supremacia dessa postura dentro da teologia, que se acabou por

criar um cristomonismo2 exacerbado, tendo como conseqüência um

desaparecimento da Pneumatologia dentro das esferas teológicas e,

conseqüentemente, tornando-a a grande esquecida da fé crente. O tratado da

Cristologia é a explicitação de tudo aquilo que está encerrado na confissão de fé:

Jesus (de Nazaré) é o Cristo, ou seja, o Ungido, o Enviado último de Deus à

humanidade. Essa profissão de fé não pode se esquivar do prenúncio

pneumatológico, ou seja, a ação de Deus em Jesus é absolutamente marcada por

uma existência pneumática. A ação do Espírito em Jesus e o dom que ele faz do

Espírito não são eventos divisíveis do ponto de vista temporal. O kairós de Cristo

é também Kairós do Espírito3. É imprescindível que a Cristologia seja entendida

em sua articulação fundamental com a Pneumatologia e vice-versa, acredita

Congar.

2 Termo relativamente recente dentro das esferas teológicas, é utilizado, sobretudo, para significar o primado e a unicidade da mediação de Jesus Cristo. E mais, relaciona a realidade da Igreja unilateralmente a Jesus Cristo como seu fundador e princípio de vida, não valorizando suficientemente a missão e função originais do Espírito Santo para sua animação carismática. Conseqüência eclesiológica: uma concepção de Igreja ligada fundamentalmente só a Cristo, sendo que ao Espírito Santo não é reconhecida nenhuma função constitutiva. 3 No pensamento Congariano, Kairós tem sua originalidade na declaração de que a situação temporal da história já se cumpriu em razão da encarnação de Deus, o Filho, no tempo e no espaço do homem sob égide renovadora do Espírito Santo.

19

Imbuído dessa intuição, Congar propõe uma relação dialético-teológica

fundamental entre Pneumatologia e Cristologia. Pesquisada a origem dessa

relação no mistério intratrinitário, resguardando a cidadania do Verbo e do

Espírito, ambas advindas do Pai, nosso autor extrairá a base de seu axioma

fundamental: Toda Cristologia é Pneumatologia e toda Pneumatologia é

Cristologia. Esse axioma servirá de fundamentação e pilar à sua Eclesiologia de

Comunhão.

Refletiremos agora as etapas pelas quais nosso teólogo seguiu para definir

seu axioma fundamental.

I.2. A Cristologia Pneumatológica

O Cristo está penetrado pelo Espírito e vice-versa. Na unidade de Deus-

Pai, Filho e Espírito, a relação pericorética4 assegura a essencialidade da profissão

de fé trinitária: nosso Deus é um Deus relação, um Deus Tri-uno, unidade na

diversidade das pessoas santas. Os enunciados primordiais de Congar bebem

dessa verdade para aprofundar a Cristologia e a Pneumatologia. Uma Cristologia

só é plena se não houver divisão da ação do Espírito da obra mesma de Cristo.

Também a Pneumatologia não pode ser refletida sem a base cristológica. Na

existência histórica de Jesus, o Verbo e o Espírito se encontram indelevelmente

unidos. O Espírito é o Espírito de Cristo. Cristo e Espírito formam a união

hipostática de Deus com a raça humana.

4 Relacionalidade típica do Deus trinitário como amor que se comunica e ajuda a entrever no Deus-comunhão o ícone da comunidade dos homens chamados a fazer da experiência humana familiar, social, pessoal, um reflexo da circulação pericorética do amor do Deus de Jesus Cristo. Com a categoria de pericorese, a teologia trinitária obteve um ganho notável historicamente: o de aproximação da concepção ocidental à concepção oriental de Deus, vista sobretudo no sinal da oikonnomia e da dinâmica do amor tripessoal eterno que se funde e se comunica.

20

I. 2.1.

A Experiência de Revelação e Filiação

A relação intrínseca entre Cristologia e Pneumatologia advém da própria

experiência de Revelação, atestada pelos relatos bíblicos, passando pela tradição e

chegando até nossos dias. Essa realidade revelatória “constitui o objeto de nossa

fé e de nossa esperança à qual fomos chamados”5. O itinerário congariano é

percebido de forma decisiva pela revelação de Deus em Jesus: “ninguém subiu ao

céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem” (Jo 3, 13). A

experiência do Deus cristão se especifica mediante a revelação de Jesus Cristo.

Não há acesso a Deus a não ser no Filho, que, gozando da eternidade junto ao Pai,

se fez carne e tornou-se um de nós. Daí se conclui que conhecer a pessoa de Jesus

Cristo é essencial para o conhecimento de Deus (cf. Jo 17, 3). Jesus Cristo como

revelador do Pai aparece como a verdadeira chave hermenêutica da sua vida.

Congar tem nesse fato o ponto de partida de toda a sua fundamentação

básica. A Revelação histórica de Jesus é a condição primordial para compreensão

e desenvolvimento do dogma trinitário. E mais: um dos acessos a essa revelação

dá-se nos textos bíblicos, nos quais podemos testemunhar as características da

relação trinitária na qual professamos a fé. Mas adverte nosso teólogo: a fé

necessita apoiar-se na história, porém os Evangelhos não são propriamente um

testamento histórico, mas testamento de fé. Esses textos que sabemos não serem,

em grande parte, fatos históricos, mas que, apesar de tudo isso, cremos terem sido

inspirados pelo Espírito, suscitam a afirmação de fé.

O magistério da Igreja confirma essa verdade:

As coisas divinamente reveladas, que se encerram por escrito e se manifestam na Sagrada Escritura, formas consignadas sob inspiração do Espírito Santo (...) Portanto, já que tudo o que os autores inspirados ou os hagiógrafos afirmam deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista de nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras6.

5 CONGAR, Yves M. - J. Introdução ao mistério da Igreja. Tradução de Petrus Gerardus Hollanders. São Paulo: Herder, 1996. p.12. 6 DV nº 11

21

Percorrendo os relatos bíblicos, nos deparamos com experiências

extraordinárias da ação mesma de Deus, de seu desejo de querer se revelar. De

fazer-se Trindade em nós. Assegurando o foco de nossa pesquisa, nos textos

veterotestamentários, observamos uma preparação (implícita) da experiência

trinitária. Os autores bíblicos preparam os atributos de Deus – criador e redentor

– na perspectiva da revelação histórica que, posteriormente, serão cridos e

sistematizados na compreensão da Trindade.

Utilizando a nomenclatura do teólogo J. B. Libanio, podemos pensar a

revelação bíblico-histórica de Deus se desvelando como uma automanifestação de

Deus mesmo e de seu plano salvífico, em três grandes momentos7: fase da

Promessa, fase da Realização em Jesus Cristo e fase da Consumação. Dentro da

atmosfera do pensamento de Congar, podemos utilizar tal nomenclatura para

ratificar o valor dado pelo nosso teólogo à experiência histórica da revelação.

2. Fase da Promessa: exemplificamos com os relatos proféticos, onde a

imagem da revelação dá-se através das Palavras de Promessa, que

inspiram e despertam no povo a esperança diante do mistério divino

(cf. Is 42, 1-8; 49, 3-9; 50, 4-9; 52, 13; 53, 12). A centralidade da

Aliança no Sinai é ao mesmo tempo herança e promessa de Deus a seu

povo, que por sua vez lê a partir daí os acontecimentos anteriores

(criação – Noé – Abraão) e projeta o que viverá posteriormente (juízes

– realeza – profetismo – experiência sapiencial – apocalíptica). Israel

vê nessa experiência uma faceta de Deus e de seu plano salvífico,

ultrapassando uma visão religiosa cultual (1Rs 6, 8, 10-13; 9, 1-3, 7;

Esd 5,2) e projetando-se para uma experiência religiosa que valoriza a

vida e a história mesma do povo.

3. Fase da Realização de Jesus Cristo: nessa fase, Jesus torna-se a voz

profética de Deus no meio de uma sociedade marcada por uma política

e por uma religião da “Lei pela Lei”, ressecada e distante da

7 LIBANIO, João Batista. Teologia da Revelação a partir da modernidade. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 317.

22

experiência mesma de Deus. A palavra de Jesus desvela o querer

libertador de Deus à humanidade na medida em que denuncia essa

sociedade que assegura o primado da Lei em detrimento do primado da

pessoa humana. Por isso, Jesus torna-se uma Palavra de Promessa, de

esperança e de intimidade com Deus. Ele é a plenitude da revelação

histórica e definitiva de Deus (cf. Hb 13, 8; 1,2). Jesus confirma e

plenifica a fase anterior, ao mesmo tempo em que inaugura um modo

novo de o homem pensar e viver Deus na vida (cf. Mc 1, 14s). Ele é o

perfeito e escatológico revelador de Deus (cf. Mt 11, 25-27; Jo 17).

4. Fase da Consumação: o Verbo encarnado é a revelação plena do amor

gratuito e fiel do Pai à humanidade. A consumação dá-se na glória

visível do Filho que manifesta a invisibilidade do Pai, conforme atesta

o evangelista João: “Quem me viu, viu o Pai” (14, 9).

Todo esse itinerário da revelação história de Deus não só aponta para um

estudo histórico e cultural, mas, sobretudo, para uma legítima maneira de se

compreender o movimento de Deus em revelar a si mesmo e o seu plano salvífico.

Nosso teólogo afirma que esse processo se dará na homogeneidade de finalidade e

conteúdo entre a obra de Cristo e a obra do Espírito8.

Outra categoria teológica central que para Congar é um elemento

imprescindível para a articulação de toda Cristologia é a filiação. Essa relação-

experiência viva, dinâmica e totalizante é captada, segundo nosso autor, por certos

elementos implícitos: as atitudes e comportamentos de Jesus (Ex.: quando Jesus

perdoa ou cura, ele não fala de Deus, mas implicitamente revela algo de sua

autoridade, de sua relação com Deus); e elementos explícitos: oração, obediência

e fé. Como Jesus viveu essa relação de filiação dá-nos a medida, do ponto de vista

humano, da densidade dessa experiência na história: “Jesus se dirige ao Pai com

gritos e lágrimas”.

8 Cf. Introdução ao Mistério da Igreja, p. 3.

23

Essa experiência orienta-nos sobre a identidade de Jesus (Quem é Jesus?)

e como ele entendia o Pai. Jesus como homem, só se pode entender sua existência

humana na medida em que se refere a Deus, a quem chama de Pai. Ele vive

totalmente de Deus e para Deus. Na própria consciência de Jesus emerge a certeza

de que ele nem começa e nem termina em si mesmo. Sua identidade é totalmente

relativa: Pai – Filho. Estar sempre fora de si, voltado para o Pai, constitui o

pressuposto de tudo o que Jesus faz. Tudo lhe é dado pelo Pai: Deus é alteridade

total, que não se confunde com ele – é o Pai. Aí aparece a unidade de tudo o que

ele realiza: uniciência de seu ser de, em e para Deus (Jo 10, 30: “O pai e eu somos

um”).

A radicalidade dessa relação filial em Jesus é tamanha que extrapola a sua

própria experiência. Jesus vai introduzindo os discípulos nessa experiência. Ele

não diz “Pai nosso”, mas “Pai” (Cf. Jo 20, 17: “o meu Pai e o vosso Pai”, “o

meu Deus e o vosso Deus”; Jo 10, 29s.37s; Jo 5, 19.30).

As duas realidades explicitadas anteriormente, revelação e filiação,

atestam a necessidade de uma correta articulação da Cristologia com a

Pneumatologia. O Espírito é o grande articulador desse movimento. Nessa

experiência fundante, nosso autor suscita a pergunta introdutória sobre o acesso ao

conhecimento da Pneumatologia cristológica: “O Espírito está sem rosto, quase

sem nome próprio. É o vento que não se vê, mas que faz mexer as coisas. Por seus

efeitos ele se dá a conhecer”9.

I. 3.

A Pneumatologia Cristológica

Nas Cristologias contemporâneas, uma atenção especial à intervenção do

Espírito no mistério de Cristo tem norteado o estudo de muitos teólogos. Congar

9 Cf. ES III, p. 193.

24

defende a necessidade de uma reflexão cristológica imbuída da Pneumatologia,

fazendo juz às missões do Verbo e do Espírito na vida concreta de Cristo.

I. 3.1.

O Espírito Santo e a experiência da Revelação

Anterior a fé em estado de saber, está à experiência revelatória do Espírito

de Deus. Na tradição teológica o Espírito sempre se colocou como uma presença-

real indagadora e dinamizadora da própria obra de Deus. Na escritura e na

Tradição da Igreja, recorda Congar, esse Espírito é lembrado na presença variada

de símbolos e imagens10. Tais como: sopro, ar, vento. Dos relatos

neotestamentários subtraem a experiência da “ruah” divina11, que se revela como

uma força vitalizadora do homem e do mundo, que na história realiza o desígnio

de Deus.

Essa experiência bíblica estritamente existencial, Congar contrasta-a com

o conceito grego afirmando:

Se o mundo da cultura grega pensa em categorias de substância, o judeu pensa em força, energia, princípio de ação. O espírito-sopro é aquele que age e faz agir e, se tratando do Sopro de Deus, anima e faz agir para realizar o Desígnio de Deus. É sempre uma energia de vida12.

Sob a ótica do Novo Testamento, nosso teólogo explora o simbolismo do

Espírito-Água do Evangelho joanino (cf. Jo 4, 10.13-14; 6, 35; 7, 37-39; Is 44, 3-

4) que, na lógica deste, aplaca nos homens a sede de vida eterna13. Outras

metáforas que retratam a presença dinâmica e vitalizadora do Espírito são as de

fogo e línguas luminosas (cf. Is 66, 15; 6, 6-7; At 2, 3), da Unção do Crisma (cf.

10 Cf. ES III, p. 26-27. 11 No Antigo Testamento a palavra hebraica Ruah, empregada 378 vezes, tem várias acepções: acepção etimológica: movimento de ar surpreendente e forte (movimento do vento, da respiração); acepção básica: vento, respiração; desdobramento antropológico: força vital, ânimo ou mente, vontade; e, finalmente, uma acepção teológica: força espiritual divina; força profética; Espírito de Deus. No Novo Testamento, os sinóticos testificam Jesus como portador do Espírito; já João e Paulo ampliam o conceito pneumatológico. 12 Cf. ES I, p. 20-21. 13 Cf. ES I, p. 75-81.

25

Is 61, 1; Lc 4, 18; At 10, 38), da Pomba (cf. Mt 3, 16) e do Dedo de Deus (Lc 11,

20; Mt 12, 28).

Congar questiona o porquê de a Revelação Divina do Santo Espírito

acontecer, preferencialmente, através de símbolos e imagens, analogias e

metáforas? E é a partir dessa indagação que nosso autor dá início à sua

sistematização a respeito da Pneumatologia cristológica.

Recorrendo a São Tomás, nosso autor esclarece que tais imagens são

necessárias para não esgotar o mistério inefável de Deus. Essas imagens, por mais

estranhas que sejam, são, talvez, as mais indicadas por evitarem a ilusão de que

um enunciado racional seja adequado para captar e abarcar o mistério infinito. Daí

a indicação da mediação simbólica como espaço da apreensão do transcendente14.

A metáfora intenciona o significado relacional da ação do Espírito de Deus. A

experiência revelatória do Espírito diz respeito, sobretudo, àquilo que Deus é para

nós, com vistas à nossa salvação em Jesus Cristo, nosso Senhor. Não se pretende

com isso dissecar a realidade íntima do ser de Deus, conclui Congar15.

As dificuldades de sistematização em torno do Espírito Santo já vêm de

longa data. Parte dessa dificuldade dá-se, sobretudo, pela manifestação do Espírito

destituído de um rosto pessoal mais explícito16; gerando uma incorreta acepção de

que sua ação está dissimulada ou até dissolvida na ação do Pai e do Filho.

Em termos teológicos, essa dificuldade tende a se acentuar. Na dinâmica

da Trindade, as características próprias de cada uma das pessoas divinas (noção)

são atestadas com uma apropriação clara e acessível da relação Pai - Filho.

“Paternidade” e “filiação” são absolutamente compreendidas na esfera humana

em sua explicitação: a partir de tais características, compreende-se o conceito de

pessoa, ou melhor, a partir de suas diferenças, visualiza-se, em si mesmas, um ser

pessoal (Pai e Filho). Já na experiência do Espírito, tal assimilação não é tão clara 14 Cf. PE, p. 15. 15 Cf. PE, p. 15. Sobre esse questionamento, afirma São Bernado: “Sei bem o que Deus é para mim; quanto ao que Ele é para si, somente Ele o sabe” (De Consideratione V, 11.24). 16 Embora o Espírito Santo seja reconhecido pelo Novo Testamento como sujeito de variadas ações, essa dificuldade persiste ao longo da grande tradição teológica.

26

e objetiva. “Espiração passiva”, a princípio, não caracteriza, por si mesma, uma

pessoa. A própria noção de “Espírito” e “Santo” é perfeitamente aplicada ao Pai e

ao Filho. E mais, na dinâmica das processões trinitárias as dificuldades persistem.

Não há uma revelação objetiva da terceira pessoa da Trindade, assim como é

explícito na experiência do Pai e na do Filho.

O que isso tem a nos dizer à luz de Congar e de toda a Tradição teológica?

É legítimo afirmar uma relatividade do Espírito em relação ao Pai e ao Filho?

Como passar do nível das imagens a formulações conceituais (racionalização)?

Ao Espírito é possível conferir nome e ação próprios?

As Escrituras nos acalentam, dizendo que sim. E mais, nos lançam à

questão pneumatológica crucial: o esvaziamento do Espírito Santo, ou melhor, a

sua quênose trinitária. Embora o Espírito seja caracterizado, tanto na Escritura

quanto na experiência religiosa, como uma força ou um dinamismo retratados em

imagens, a fé crente pede a confissão de sua condição de pessoa17 (cf. Jo 14, 26).

Para Congar, as imagens bíblicas são legítimas em si mesmas, pois se prestam à

tarefa dogmática – ricas em conteúdos e significados inteligíveis (a analogia é

necessária ao ato de teologizar e indispensável na sistematização da dinâmica

trinitária e na própria experiência de Deus).

Embora em nosso trabalho não seja possível, e nem é o objetivo primeiro,

descrever a história da Pneumatologia, é necessário apresentar alguns dados

essenciais, relativos ao nosso tema proposto, a saber, a relação entre Cristologia e

Pneumatologia, e um aprofundamento teológico que nos garanta uma

compreensão da fé eclesial em torno da pessoa do Espírito Santo18. Mas, antes,

cabe uma breve sistematização sobre a teologia trinitária onde aparecem o papel e

a especificidade mesma do Espírito Santo.

17 Nos escritos congarianos, tal tema é mais bem sistematizado na obra ES I, a qual nos oferece uma reflexão sobre a personalização do Espírito em São Paulo, São Lucas e São João. 18 Cabe ressaltar que antes de uma dogmática explícita em torno da igualdade ôntica entre as pessoas divinas, a Tradição eclesial priorizou algumas experiências e expressões de cunho pneumatológico de grande destaque na vida da comunidade: batismo, inspiração das Escrituras, preexistência de Cristo... Nesse contexto, a fala sobre o Espírito se dá numa perspectiva assinaladamente soteriológica.

27

I. 3. 2. A Teologia Trinitária e o Espírito Santo

Numa busca pela identidade pneumatológica dentro da teologia trinitária,

devemos ter claro que isso significa primordialmente uma penetração no mistério

mesmo da Trindade. Segundo nosso teólogo, o ponto de partida dessa reflexão é a

análise da revelação histórica.

Toda a tradição escriturística, bem como a eclesial, apontam para a

doutrina da Trindade na perspectiva da economia19, chegando assim às

experiências teológicas propriamente ditas. Historicamente, se faz necessário

diferenciar a Teologia Latina da Teologia Ortodoxa (diferenciação cara a Congar).

Na sistematização da Teologia Latina, a passagem da economia à teologia

é ilustrada na doutrina das missões divinas, a saber, o Pai envia o Filho e ambos

enviam (juntos) o Espírito Santo e, conseqüentemente, o ser humano experimenta

a graça provinda de Deus. Nessa perspectiva, Congar constata e enquadra a

teologia Rahneriana da “Trindade econômica na Trindade imanente (e vice-

versa)”20. Porém, nosso teólogo questiona Rahner, indagando: Na trindade

econômica revela-se a Trindade imanente; no entanto, revela-se ela por completo?

Se Deus se autocomunica na economia, o faz por inteiro? Se assim o é, nos

equivocamos na economia: o Filho torna-se mal compreendido, o Espírito não tem

rosto e o Pai é impotente. Uma distância necessária se impõe, pensa Congar, entre

a Trindade econômica e a Trindade imanente21. O mistério ultrapassa o revelado.

19 Ver explicação detalhada em ES III, p. 80. 20 Karl Rahner (1904-1984) em sua Teologia transcendental propõe o axioma da “Trindade econômica é a Trindade imanente (e vice-versa)” num desejo de provar a rigorosa correspondência entre Pai – Filho – Espírito Santo – história da Salvação. Rahner justifica esse princípio em três argumentos: 1- A Trindade é um mistério salvífico; do contrário não teria sido revelada; 2- Encarnação do Logos (caso decisivo) e 3- A história da Salvação difere de uma mera auto-revelação de Deus: é autocomunicação, sendo o próprio Deus o conteúdo dessa história. 21 Aprofundar em ES III.

28

Deus não é acessível segundo nossa lógica. Ele se revela se escondendo. Ele opera sua obra própria sob as espécies ou por meio de seu contrário, a justiça, a graça e a vida por um caminho de juízo e morte.22

Frente a esse axioma fundamental, a Teologia Latina23 afirma, no que diz

respeito à posição do Espírito face à pessoa do Filho, que existe uma

“continuidade ontológica entre a relação econômica do Espírito comunicado e a

relação eterna entre o Espírito e o Verbo”24. A Trindade é entendida numa

unidade da substância divina, onde as Pessoas se distinguem pela oposição de

relação de origem: o Filho procede do pai e, assim, distingue-se do Pai, que não

procede de ninguém; o Espírito procede do Pai e do Filho (ex Patre Filioque),

como de um único princípio consubstancial25.

Por sua vez, a Teologia Ortodoxa, questionando essa “continuidade”,

rejeita essa concepção Latina ao fazer com que o Espírito proceda não do que é

característico de uma hipóstase26, mas da natureza comum do Pai e do Filho.

Nessa teologia, a ênfase é dada à hipóstase das pessoas e não sobre a

consubstancialidade. Apoiados no Concílio de Constantinopla, os Ortodoxos

afirmam que, sob o aspecto hipostático, o Espírito procede do Pai, visto que uma

hipóstase apenas pode vir de uma outra; sob o aspecto de unidade substancial, o

Espírito procede do Pai pelo Filho27.

22 Cf. ES III, p. 43. 23 A reflexão Latina sobre a Trindade é influenciada pelo pensamento de Santo Agostinho. No que diz respeito a procedência Espírito, este afirma que o Espírito procede do Pai e do Filho, mas principalmente do primeiro, já que deste recebe o segundo a capacidade de ser co-princípio do Espírito ou de ter a vida e comunicá-la. 24 Cf. PE, p.121-122. 25 Para aprofundamento sistemático dessa questão: Schneider, Theodor. Manual de Dogmática. Vol II. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 437-509. 26 Etimologicamente, deriva do termo grego hypo-stasis, em latim sub-stancia, essentia, em português substância, essência. Conceito filosófico-teológico, equivalente a pessoa, central para a compreensão cristã do mistério de Deus Trindade, de Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado e da verdade da pessoa humana. 27 Para uma compreensão mais sistematizada dessas diferenças entre Gregos e Latinos, Congar recorre à tese de P. Régon: Gregos partem das pessoas como já dadas a priori para, em seguida, falar de sua consubstancialidade na unidade, respeitando a monarquia do Pai; os Latinos partem da unidade e unicidade de Deus para depois distinguir as pessoas (cf. ES III, p. 121-125).

29

Congar observa que cada tradição teológica traz a sua coerência própria e

que é fato a dificuldade de entendimento dogmático entre ambas28. Porém,

justifica sua ida a tais teologias concluindo que ambas refletem uma única e

mesma fé: o Espírito é confessado como a terceira pessoa da única natureza

divina, consubstancial ao Pai e ao Filho. Para tanto, conclui ressaltando a

apreciação de São João Crisóstomo que nos diz: “Amemo-nos uns e aos outros de

tal modo que possamos professar num só coração nossa fé no Pai, no Filho e no

Espírito Santo, Trindade consubstancial e indivisível”.29

Depois dessa breve viagem histórico-dogmática, nosso autor fundamenta

seu axioma apontando para o esvaziamento do Espírito estritamente ligado ao do

Verbo.

I. 4. Toda Cristologia é Pneumatológica e toda Pneumatologia é Cristológica

O axioma fundamental de Congar, a saber, toda Cristologia é

Pneumatologia e toda Pneumatologia é Cristologia, ratifica a verdade de que todo

ser de Cristo está penetrado do Espírito e vice-versa. Na unidade de Deus Pai, as

Pessoas divinas vivem uma relação de unidade indivisível em mútua doação e

acolhimento.

CRISTO ESPÍRITO

Sabedoria e segurança diante dos tribunais:

Lc 21, 12-15

Mt 10, 18-20; Mc 13, 10-12

Batismo no Cristo: Gl 3, 27 Batismo no Espírito: 1 Cor 12, 13

Um só corpo em Cristo: Ro 12, 5

Para formar um só corpo

28 Congar adverte, sobretudo, sobre a inadequação do vocabulário latino para traduzir nuances fundamentais do vocabulário grego e a utilização de dois princípios diversos para fundar a distinção das pessoas (cf. Ibidem, p. 263-264). 29 Cit. sem referência em Ibidem, p. 270.

30

O Cristo em nós: Ro 8, 10 O Espírito em nós: Ro 8, 9

E nós em Cristo: Ro 8, 1 E nós no Espírito: Ro 8, 9

Justificados em Cristo: Gl 2, 17 Justificados em nome do Senhor Jesus Cristo

e pelo Espírito de nosso Deus:

1 Cor 6, 11

Justiça de Deus em Cristo: 2 Cor 5, 21 Justiça, paz e alegria no Espírito Santo:

Ro 14, 17

Alegrai-vos no Senhor: Fp 3, 1 Alegria no Espírito Santo: Ro 14, 17

Amor de Deus em Cristo Jesus: Ro 8, 39 Vosso amor no Espírito: Cl 1, 8

Paz em Jesus Cristo: Fp 4, 7 Paz no Espírito Santo: Ro 14, 17

Santificados em Cristo: 1 Cor 1, 2 .30 No Espírito: Ro 15, 16; 2 Ts 2, 13

Falar em Cristo: 2 Cor 2, 17 Falar no Espírito: 1 Cor 12, 3

Repletos de Cristo: Cl 2, 10 Repletos do Espírito: Ef 5, 18

31

I. 4.1. A quênose do Espírito é a quênose do Verbo

Para fundamentar essa articulação tão cara ao seu itinerário teológico,

Congar fala da quênose do Espírito, estreitamente relacionada à do Verbo a partir

da teologia paulina que, para ele, melhor explicita essa articulação: se o Senhor

glorificado e o Espírito são distintos em Deus, todavia encontram-se

fundamentalmente tão unidos, que o experimentamos conjuntamente e podemos

tomar um pelo outro (cf. 2 Cor 3,17; 1 Cor 15, 45; Jo 14, 3.18) – a vitalidade da

Pneumatologia consiste na referência à obra de Cristo e à Palavra de Deus.

Nosso teólogo, bebendo da fonte da Tradição da Igreja, recorre aos Santos

Padres para falar da manifestação da obra de Deus operando através de duas

missões: a do Filho e a do Espírito Santo. S. Irineu, refletindo sobre elas, oferece a

sugestiva imagem das “duas mãos de Deus”. Procedendo do Pai, as “duas mãos”

realizam conjuntamente aquilo que o Primeiro no Amor deseja fazer: vivificar o

ser humano, conformando-o à imagem divina. O Pai envia o Filho e o Espírito

para executarem a mesma obra. Apesar de suas características próprias, uma

“unidade funcional”, salienta Congar, dialetiza o cumprimento das missões. Na

Sagrada Escritura, o Verbo e o Espírito se encontram sempre associados. Se o

Verbo é a forma, o Espírito é o sopro. A título de exemplificação, vejamos o

paralelo abaixo:

Nessa perspectiva, outro tema caro a nosso autor é a liberdade do Espírito

Santo, que é bem real, reconhece Gongar. Toda a tradição histórica e eclesiológica

testifica-a, comprobatoriamente. Tal liberdade, contudo, não é outra senão a do

Senhor Jesus, glorificado e vivo, em conjunção com o Espírito Santo. São as duas

mãos de Deus que, feito cabeça e coração, mantêm como de um só princípio a

vitalidade do corpo. Não há uma espécie de “setor livre” reservando ao Espírito,

como algo paralelo ao ordenamento das estruturas e meios de graças instituídos

pelo Cristo encarnado30. O Espírito comunica o que deve vir, ou seja, aquilo que

30 Cf. PE, p. 75. Sobre a “estrutura cristológica” das experiências pneumáticas da comunidade apostólica, cf. PALÁCIO, C. Jesus Cristo, história e interpretação. São Paulo, Loyola, 1979. p. 68-71.

32

recebe do Cristo glorificado, o mesmo que fala na carne. O que há de acontecer é

o futuro de Cristo no tempo da história!31

Como magnificamente expressou Lutero, “o Espírito não é cético”32. Se o

Verbo está penetrado de Espírito, o Espírito está penetrado de Verbo, porque

ambos procedem do Pai.

Numa alusão indireta às imprevisíveis iniciativas de liberdade do Espírito,

Congar alerta para o risco de uma dissociação simplista entre o cristológico e o

não instituído (o carismático). O pneumatológico é cristológico e vice-versa.

“Porque o Senhor é o Espírito, e lá onde está o Espírito do Senhor, lá está a

liberdade” (2Co 3,17). O Cristo está vivo, e muito ativo! Exclama Congar. Na

história Ele intervém.33

A ação do Senhor com e pelo Espírito não se reduz a uma mera atualização

das estruturas da aliança outorgadas na encarnação. Na ordem da vida da Igreja, o

Espírito Santo opera como enviado pelo Filho para completar sua obra. Mas não

se trata mais aqui do simples exercício eficaz dos poderes instituídos pelo Cristo,

da simples realização efetiva de uma estrutura posta pelo Verbo encarnado nos

dias de sua carne. Trata-se da realização de uma obra conduzida ativamente pelo

Cristo glorioso, chefe celeste do Corpo34. Continua Congar: “Ela é a fonte de

novidade na história”35. A transcendência do Cristo para com seu Corpo histórico

possibilita-lhe atuar de novas maneiras36. No entanto, o Espírito e o Senhor

sempre visam à edificação do Corpo. As novas intervenções do Espírito de Cristo

devem conformar-se plenamente com o Evangelho e o kerigma apostólico. Como

escreve Congar:

31 Cf. PE, p. 44. 32 De Servo arbítrio – WA 18,605. p. 31-34 (cit. Por Congar em Idibem, p.89.). 33 Cf. PE, p. 64. 34 Cf. SC, p. 44. 35 Cf. ES II, p. 24. ‘A obra de Cristo na história é irredutível àquilo que foi instituído na história constituinte da Revelação bíblica e da Encarnação (...) Não se pode ignorar um princípio pessoal de iniciativa. Em um catolicismo centrado na organização e na pura obediência, não há espaço para esta realidade incontestável” (PE, p. 65). 36 Cf. SC, p. 45.

33

A santidade da pneumatologia é a sua referência à obra do Cristo e à palavra de Deus.37

Para São Tomás de Aquino, Cristo e o Espírito formam juntos um só

princípio de graça. “Et ideo quidquid fit per Spiritum Sanctum etiam fit per

Christum”38 (Portanto, cada coisa feita pelo Espírito Santo também foi feita pelo

Cristo). Cristo age pelo Espírito, este age por meio daquele. O Espírito é do

Verbo, mas Jesus Cristo é do Espírito. Comunicando ao mundo o futuro de Cristo,

o Espírito glorifica o Filho, o qual, por sua vez, glorifica o Pai. Se a referência do

Espírito ao Verbo é total, não menos contundente, pensa Congar, será a afirmação

da monarquia do Pai.

Paradigmaticamente, no Verbo encarnado as duas mãos do Pai se unem

para dizer: toda pneumatologia é cristologia e toda cristologia é pneumatologia,

porque em teologia suprassumem-se doxologicamente, em unidade com o Pai. Em

sua existência eterna, o Cristo aparece penetrado do Espírito e vice-versa. Na

unidade do Pai, as Pessoas Divinas vivem, pericoreticamente, a essencialidade do

Amor, em mútua doação e acolhimento.

Assim sendo, na existência histórica de Jesus, o Verbo e o Espírito se

encontram indelevelmente unidos. Juntos, configuram a união hipostática de Deus

com o gênero humano. Da Graça Incriada, emerge a santificação do Cristo,

processada em sucessivos pentecostes, como atesta Congar. Mergulhado no

Espírito, Jesus abre-se crescentemente ao Pai em obediência filial, como servidor

do Amor. Quando morto na cruz, é assumido gloriosamente pelo Pai e constituído

Senhor na dinâmica recriadora do Espírito Santo. Herdando a plenitude da Vida, o

Filho humanizado de Deus se assenhora do destino salvífico de toda a criação,

podendo doravante intervir em todas as realidades e situações históricas pela

mediação graciosa do Espírito.

37 Cf. ES II, p. 24. 38 “Portanto, cada coisa feita pelo Espírito Santo também foi feita pelo Cristo” – Com. In Ephes. C. 1, lect. 5 (cf. PE, p. 76-77).

34

I. 5.

CONCLUSÃO

Após esse processo reflexivo, nosso teólogo aponta para a necessidade de

uma Cristologia histórica que faça jus à convergência histórico-salvífica das

missões do Verbo e do Espírito Santo na vida concreta de Cristo.

Dessa cristologia histórica, Congar extrai, por conseguinte, duas

conseqüências.

Primeira conseqüência: na Pneumatologia está a santidade da Cristologia.

Não há Graça Criada sem Graça Incriada, não há estruturas instituídas pelo

Verbo feito carne que não estejam pervadidas, a um só tempo, pela liberdade

transcendental do Espírito, penhor da plenitude escatológica do próprio Cristo. Se

o envio do Pneuma ao mundo é devido ao Filho, é por encontrar-se este revestido

daquele por primeiro... O modo latino de tratar a processão do Espírito ex Patre

Filioque (a saber: o Filho procede do Pai e, assim, distingue-se do Pai, que não

procede de ninguém. O Espírito, por sua vez, procede do Pai e do Filho)

subentende-se, no mistério, numa linearidade de dependência que parece ofuscar a

reciprocidade das relações intradivinas. O risco latente a essa visão de um

cristocentrismo paralizante pode incorrer, segundo Congar, em nefastas

conseqüências para a vida da Igreja e sua identidade no mundo.

Segunda conseqüência: na Cristologia radica-se, por sua vez, a santidade

da Pneumatologia. Uma exaltação sistemática do Espírito pela crítica oriental,

traindo não raro um certo ressentimento anti-ocidental, resulta na ótica de Congar,

em algo sumamente artificial. É inconcebível, pois uma doutrina isolada ou

autônoma do Espírito remete este constantemente à verdade do Senhor. Não há

corpo místico do Espírito Santo, e sim, de Cristo, com efeito, ambos são relativos

um ao outro, já que testemunham e atualizam a mesma verdade: o Amor do Pai.

Na liberdade do Espírito, subjaz a plenitude criativa e poderosa do Glorificado,

capaz de trazer para o hoje da história o sabor da novidade salvífica futura.

35

O Espírito e o Filho, como as duas mãos conjuntas do Pai, realizam na

criação e na história o plano salvífico de Deus. Através de suas missões

econômicas, o Amor Divino assume e transfigura o precário da experiência

humana e criatural. Assim como o Verbo, o Espírito participa da quênose salvífica

de Deus na história. Destituído de rosto próprio, faz-se todo relativo ao Filho

Primogênito e, por conseguinte, a seus irmãos. Sua única missão é fazer dos

homens filhos de Deus, configurando-os em amor e graça a Cristo. No Espírito, a

autocomunicação do ser divino se modela em diaconia divinizatória da

humanidade inteira.

Enfim, na Pneumatologia reside, portanto, a santidade da antropologia,

convertida, então, em Cristologia. Levando a humanidade a percorrer o caminho

de Jesus, o Espírito torna-a participante de sua filiação, conformando-a à divina

imagem e semelhança. Como fruto excelente e palpável da Pneumatologia

cristológica, impõe-se a antropologia da graça, como apelo existencial à

Liberdade e à Vida. Deus chama os homens à Vida em liberdade. Concede-lhes o

dom humanizador de seu Espírito.

Colocadas as bases de sua Eclesiologia, nosso teólogo nos convoca, a

exemplo das relações trinitárias que, assegurando as especificidades e respeitando

a diversidade, vivem absolutamente a unidade, a pensar sua Eclesiologia na

perspectiva da comunhão, dentro e fora das esferas eclesiais. Sobre esse tema será

delineada a segunda parte dessa dissertação.

36

CAPÍTULO 2:

A CAMINHO DA ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO: O CONCÍLIO VATICANO II E A ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO DE YVES CONGAR

II. 1.

Introdução: O Concílio Vaticano II e suas esperanças para a Igreja

No início na década de 60 a Igreja Católica vive um dos principais

momentos de sua história: o Concílio Ecumênico Vaticano II. Tal fato eclesial e

teológico marca o início de uma abertura providencial da Igreja com o mundo,

principalmente no que diz respeito à sistematização de uma Eclesiologia de

Comunhão Ad Intra (Relações mais dialógicas entre os membros, hierarquia e

fiéis, discussão de ministérios...) e Ad Extra (questão do diálogo da Igreja com

outras tradições religiosas cristãs e não-cristãs). Impulsionado pelo Espírito, o

Concílio Vaticano II ousou caminhos de liberdade frente aos novos “sinais dos

tempos”: cunhou, definitivamente, a necessidade de uma correta reflexão sobre a

comunhão em vista de uma Igreja mais dialógica e menos hierárquica39.

Um dos desafios apontados pelo Concílio foi a urgente reflexão

pneumatológica sobre a Igreja possibilitando assim o seu direcionamento a

caminho de sua vocação batismal, a saber, a comunhão. Um “novo Pentecostes”

39 No entanto, é preciso ter presente que a Igreja Católica, apesar de toda a transformação trazida pelo Concílio Vaticano II, ainda encontra na prática, senão até mesmo na visão que dela têm considerável número de responsáveis eclesiásticos, uma grande resistência em se situar dialogicamente no seio da comunidade cristã universal. É muito difícil conciliar a consciência de sua hegemonia no seio das Igrejas e comunidades eclesiais cristãs, que faz parte de sua identidade, como Igreja Católica, com o diálogo amplo e franco em busca da unidade com as demais Igrejas e denominações cristãs. Para além das explicações históricas, políticas, sociológicas ou, até mesmo, culturais, há quem pense num obstáculo propriamente teológico que tornará praticamente inviável o diálogo verdadeiramente ecumênico com as Igrejas e comunidades cristãs separadas da unidade católica.

37

configurava o Concílio nessa perspectiva. Se até então bastante rarefeita ou

mesmo olvidada na reflexão teológica latina, a pneumatologia e a eclesiologia

adquirem, a partir do Concílio, uma insuspeitada importância. Toda atmosfera do

Vaticano II busca suprir a falta de um desdobramento mais profundo e fecundo da

teologia do Espírito Santo no universo católico apontando para a necessidade de

uma Igreja mais dialógica e aberta aos desafios do mundo. Com efeito, uma

concepção da Igreja como “encarnação continuada”, moldada em parâmetros

“cristomonistas”40 unilaterais, vem delineando, há séculos, a autoconsciência da

Igreja ocidental e seu modo de agir. A ênfase dada ao institucional e às estruturas

hierárquicas de poder tem relegado, não raro, ao obscurantismo, valores

comunionais tão preclaros como aqueles assinalados por São Paulo em sua

primeira carta aos Coríntios (cf. cap. 12 a 14)41 e denunciados por nosso ilustre

teólogo Congar.

É sabido que o Vaticano II é um resultado de todos os movimentos de

renovação da Igreja que a partir do final do século XIX e início do século XX vão

influenciando a consciência católica em várias direções. A eclesiologia conciliar

move-se substancialmente em três direções, a saber:

1- na direção da auto-compreensão da Igreja como Povo de Deus, cujo

conteúdo essencial é o mistério de Cristo (temos a Lumen Gentium);

40 Etimologicamente deriva de Christos (Cristo) e monos (só, unicamente). O termo quer significar o primado e a unicidade da mediação de Jesus Cristo para que o homem alcance e viva uma relação de graça com Deus. Tal tendência no universo católico quis e quer relacionar a realidade da Igreja unilateralmente a Jesus Cristo como seu fundador e princípio de vida, não valorizando suficientemente a missão e função originais do Espírito Santo para a sua animação carismática: um cristomonismo eclesiológico em que se tem uma Igreja ligada fundamentalmente só a Cristo, sendo que ao Espírito não é reconhecida nenhuma função constitutiva. 41 Um dos méritos do Concílio foi o de ter recuperado, ainda que germinalmente, a eclesiologia paulina, buscando reequilibrar o dado cristológico central com o dado pneumatológico, numa sólida impostação do pensamento trinitário. Assim como a cristologia deve se articular com a pneumatologia para que se chegue a uma eclesiologia saudável e plena, também se espera o mesmo da segunda quanto à primeira. A perspectiva sedutora de um autonomismo pneumatológico, apreensível, por exemplo, em certas manifestações do movimento de Renovação Carismática, necessita, prontamente, de uma acurada avaliação e correção, mediante o juízo da cristologia histórica, sob o risco de obscurecer a concretude histórica das mediações salvíficas e sacramentais da Graça no mundo. Donde o valor fundante do axioma de Yves Marie-Joseph Congar, que servirá de base para a sua elaboração teológica da Eclesiologia de Comunhão: “toda pneumatologia é cristologia, e vice-versa” (questão explicitada no capítulo anterior).

38

2- na direção dos outros cristãos organizados em Igreja, ecumenismo, e

de outras religiões, no diálogo inter-religioso. Essa nova fase da

eclesiologia envolve uma concepção de Igreja diversa do passado, mais

aberta, não exclusivista, mas de fronteiras abertas a partir de sua

identidade fontal (temos a Unitatis Redintegratio);

3- na direção do mundo de hoje, compreendido como espaço onde

necessariamente ela deve exercer sua missão evangélica (temos então a

Gaudium et Spes).

Assim, inicialmente definido como Concílio dogmático, interessado em

proclamar novos dogmas, como expressão insuperável da identidade histórica da

Igreja, o Vaticano II surpreende por sua opção pastoral, ou seja, um concílio de

“aggiornamento” (João XXIII): uma verdadeira atualização da Igreja e de sua

mensagem à nova realidade do mundo, depois de quatro séculos de fixismo em

torno de Trento (diante dessa nova situação da Igreja, especialmente no terceiro

mundo, incluindo a América Latina, era de se esperar alguma evolução

eclesiológica posterior42).

O itinerário pós-conciliar, no entanto, demonstrou que, apesar das grandes

intuições do Vaticano II sobre a Igreja e suas orientações globais, nem tudo ficou

esclarecido. Há hesitações de nomenclatura43, há posições diferentes que são

42 Foi o que aconteceu na AL através de uma leitura do concílio a partir da periferia dos países centrais do Cristianismo ocidental (especialmente europeus, que, com o vigor de sua teologia, foram os principais responsáveis pelo bom êxito do concílio). A emergência dos pobres dentro da Igreja, no quadro atual das transformações sócio-eclesiais, se expressou na AL, com força, nos documentos episcopais de Medellín (1968), de Puebla (1979) e de Santo Domingo (1992), aprovados respectivamente pelo Papa (Paulo VI e João Paulo II). A visão de Igreja (e de sociedade) que se esboça, mesmo com algumas contradições, parte do “reverso” da história, do “não-homem”, ou simplesmente do pobre, reconhecido não simplesmente como objeto de solicitude pastoral da hierarquia ou dos cristãos burgueses, mas como sujeitos de sua fé, capazes de uma resposta plena do evangelho de Jesus Cristo, portanto, capazes de se organizarem como “ekklesia”. Essa emergência dos pobres dentro da Igreja e o reconhecimento dessa emergência pela hierarquia foram os acontecimentos eclesiológicos mais importantes dos últimos tempos. Tal acontecimento produziu transformações profundas na forma histórica de a Igreja se articular dentro do mundo. 43 Além dessas hesitações pode-se anotar também mudança de enfoque da Igreja como “povo de Deus”, forte no momento do Concílio, para a Igreja considerada como “comunhão”. Para esse deslocamento de acentos ver: Rev. Teologia 2 (1985) 135ss.; a Relatio Finalis do Sínodo Extraordinário de 1985, lembrando os 20 anos do término do Concílio, cf. SEDOC 18 (1986) 791-846; C. CALIMAN, “Visão eclesiológica do Sínodo”, em J. E. PINHEIRO (org.), O Sínodo e os Leigos, Loyola, 1988. p. 83-95.

39

“reconciliadas” no interior do texto. Alguns exemplos de nomenclatura hesitante

são: falamos de Igreja “católica” ou “universal”; de Igreja “particular” ou “local”;

de Igreja “particular” em contraposição com Igreja “universal” ou talvez, mais

precisamente, Igreja “local” em contraposição com “universal”? O que importa: o

Vaticano II pede que tratemos da Igreja a partir de sua realização “em um lugar”,

isto, a partir da Igreja local ou particular.

Mas, enfim, o que significou a eclesiologia do Vaticano II?

A visão da Igreja do Concílio, superando uma compreensão exclusivista

por uma mais aberta (inclusiva), tem um duplo significado para a construção de

uma nova teoria eclesiológica hoje, resumidamente:

A) Por ela se realiza a superação da eclesiologia “ultramontana”

elaborada especialmente no século XIX. O projeto eclesiológico

universalista, que pensa a Igreja sempre a partir do seu ápice, do topo

da hierarquia eclesiástica, agora é revisado. Inicia-se uma nova

abordagem a partir da Igreja Particular. Um texto muito significativo

dessa nova mentalidade eclesial pode ser encontrado na

Sacrossanctum Concilium 41: “principal manifestação da Igreja se

realiza na plena e ativa participação de todo o povo santo de Deus nas

mesmas celebrações litúrgicas, sobretudo na mesma eucaristia...”

B) Essa visão da Igreja a partir da Igreja local projeta uma eclesiologia

centrada na Palavra de Deus anunciada e na Eucaristia como centro da

comunhão eclesial. Projeta uma eclesiologia de “comunhão dos

santos” e de “comunhão das Igrejas” e das Igrejas (a contribuição do

Vaticano II vai nessa direção quando revaloriza a figura do bispo e da

colegialidade episcopal).

E ainda, enumeramos esquematicamente quatro pontos relevantes onde o

concílio, de fato, contribuiu decisivamente para as transformações da Igreja e seus

apontamentos à comunhão:

40

- Afirmando que a Igreja de Jesus Cristo se realiza “num lugar”, isto, nas

Igrejas locais44;

- Reconceituando a catolicidade. A relação da Igreja local com o seu

contexto (realidade, espaço humano, “mundo”...) é parte integrante de sua

catolicidade45. Isso quer dizer que Igreja católica não é aquela que paira acima das

culturas, da realidade, mas é aquela que pela sua encarnação nas culturas, na

realidade humana de cada lugar e cada tempo se expressa em sua abertura para o

projeto de Deus de salvar a todos. Abre-se para a realização de uma comunhão

universal46;

- O Vaticano II suscitou instituições novas e reanimou outras que fazem

reviver a Igreja local. O processo de renovação suscitado pelo Concílio corre de

baixo para cima e não o inverso (são as Conferências Episcopais, os Conselhos

Pastorais nos seus vários níveis, grupos de cristãos até os que pertencem ao

governo central da Igreja em Roma);

- O Concílio, alimentado pelo fecundo "retorno às fontes", recupera a

perspectiva de comunhão da igreja antiga, caracterizada pelo primado da

eclesiologia de comunhão: a unidade está antes da distinção; a variedade

ministerial é fundada e alimentada pela riqueza pneumatológica e sacramental do

mistério eclesial (ao situar o capítulo sobre o Povo de Deus antes dos capítulos

sobre a hierarquia e sobre o laicato na Lumen Gentium, o Vaticano II realizou

uma autêntica revolução: a vida segundo o Espírito, condição do cristão, precede

toda articulação e variedade interior da mesma e une os batizados entre si no

mesmo ato que os faz diferentes do mundo). Nesta perspectiva, o Concílio

redescobre a dimensão carismática de todo o povo de Deus, isto é, a riqueza dos

44 Cf. CD 11; LG 23. 45 A revista Concilium sempre enfrentou alguns temas interessantes de eclesiologia. O nº. 3 de 1997 trabalha o tema “A Igreja em fragmentos: a busca de que unidade?” Como pensar a Igreja em sua dimensão de catolicidade, ou seja, de universalidade num mundo pluralista e fragmentado como o nosso? 46 Cf. AG 4, 15,22; LG 13.

41

dons que o Espírito infunde nos batizados em virtude da utilidade comum47.

Apesar de operar a recuperação do primado da comunhão, o Vaticano II

visualiza ainda a Igreja conforme um dualismo hierarquia-laicato. Esse binômio,

precisamente à luz da eclesiologia de comunhão, aparece inadequado, pois, por

um lado, ele distingue demais, porque não evidencia suficientemente a unidade

batismal e eucarística que une leigos e ministros ordenados; por outro lado,

distingue muito pouco, porque no âmbito dessa unidade acentua a única

articulação de ministério ordenado, pensando negativamente das outras (leigos =

não-clérigos) e deixando completamente na sombra a maravilhosa variedade de

dons infundidos pelo único Espírito.

É por isso que, na fidelidade à "revolução", iniciada pelo Concílio, é

preciso superar o binômio hierarquia-laicato e o próprio conceito de laicato: a

Igreja não se identifica com o ministério hierárquico, a respeito do qual os outros

batizados postar-se-iam como totalidade indistinta, como rebanho passivo a ser

guiado (não existe uma Igreja docente em absoluto e uma Igreja em absoluto

discente, e nem uma Igreja que só dá, e outra Igreja que somente recebe!). Todos

na Igreja recebem o Espírito e todos devem dá-lo conforme o dom que lhes foi

conferido, no serviço correspondente a esse dom. Ao binômio hierarquia-laicato

é preciso dar lugar ao binômio comunidade-carismas e ministérios, que,

enquanto valoriza a unidade batismal, eucarística, pneumatológica de todo o

povo de Deus, evidencia a variedade carismática e ministerial no interior do

mesmo48.

Posto isto, qual a relação de nosso teólogo com as inspirações

eclesiológicas do Vaticano II?

A reflexão sobre a Eclesiologia é para Congar um problema teológico

primordial. Crítico por excelência da estagnação da teologia, cuja característica

47 Para aprofundamento dessa questão: LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005. 48 Uma boa compreensão do laicato dá acesso a uma saudável Eclesiologia de Comunhão. Porém, esse tema, também caro ao nosso autor, não será explicitado em nosso texto por não ser objeto de nossa pesquisa.

42

maior debruçava em uma estéril preocupação em defender os aspectos visíveis e

hierárquicos49, Congar propunha uma renovação da Eclesiologia que passava pela

redescoberta de Igreja como mistério a partir de seu aspecto sacramental, que

reacendia a realidade teândrica da mesma.

Ao viajar nas obras de nosso autor vislumbramos alguns questionamentos

imprescindíveis e anteriores a qualquer sistematização eclesiológica. São eles:

Como pensar a Igreja no tempo e no espaço histórico? A Igreja é imutável como

Deus, como as verdades eternas ou mutável como o processo histórico, como as

verdades humanas que vão sendo aos poucos desveladas? A Igreja já se realizou

plenamente no seu início em Jesus Cristo e agora é só um desdobramento dessa

realização plena ou ela progride no tempo para sua plena realização escatológica?

Como pensar a realidade mistérica da Igreja numa realidade eclesial

marcadamente hierarquiologizada?

Numa atmosfera daquilo que mais tarde seria o grande evento eclesial da

Igreja, o Concílio Vaticano II, nosso teólogo, em suas inquietações teológicas,

propusera uma visão nova de ver e entender a Igreja que já abriria perspectivas a

uma consciência de comunhão dentro e fora dos muros eclesiais. Aqui, cabe

ressaltar que ele foi um dos grandes responsáveis pela abertura da teologia

católica para a questão ecumênica com sua obra "Os cristãos desunidos", de 1937.

Nesse tema, Congar entende que a unidade /comunhão50 dos cristãos é uma tarefa

histórica para as Igrejas. O problema é saber até que ponto a comunhão pode

tolerar a diversidade. Sua proposta se baseia em praticar uma re-recepção dos

escritos normativos para a fé de cada Igreja, para situá-los de novo no conjunto

do testemunho da Escritura. Supõe repensar os dogmas, historicizar a própria

49 A concepção da Igreja, predominante na teologia católica até o Vaticano II, é aquela caracterizada pela expressão de Congar: "eclesiologia hierarcológica": significando uma valorização a respeito do aspecto hierárquico, visível e piramidal da realidade eclesial: a Igreja é vista como uma instituição histórica auto-suficiente (societas perfecta), com leis próprias, ritos próprios e chefes próprios. A mediação hierárquica é tão valorizada, a ponto de provocar a ironia da afirmação: 'Deus criou a hierarquia e assim providenciou mais do que o suficiente para as necessidades da Igreja até o fim do mundo'. (J. A. Mohler). Maior aprofundamento ver: FORTE, B. A missão dos leigos. São Paulo: Paulinas, 1987. 50 Para Congar os conceitos de Unidade e Comunhão são sinônimos. Essa questão será explicitada no próximo capítulo, onde trataremos sobre os elementos constitutivos da Eclesiologia de Comunhão e as suas perspectivas.

43

tradição e relativizar contrastes, evidenciando o núcleo comum das diversas

tradições cristãs. Porém, Congar pondera que, para isto, é necessária uma longa e

cautelosa caminhada...

Seguindo um caminho reflexivo em vista da eclesiologia congariana, nos

deparamos com a necessária compreensão sobre os modelos de Igreja.

II . 2. A questão dos modelos de Igreja e as perspectivas da

comunhão No ensaio Pode-se definir a Igreja? (1961), o eclesiólogo francês se

interroga a respeito do conceito mais apropriado para definir a Igreja. Ele

distingue quatro noções para descrever a realidade e o mistério da Igreja: as

categorias de Povo de Deus, Corpo Místico de Cristo, Sociedade e Comunhão. No

ensaio, Congar propunha uma síntese entre as categorias “Povo de Deus” e

“Corpo Místico de Cristo”, uma vez que considerava inviável uma definição da

Igreja centrada na categoria pós-tridentina de “sociedade”.

II. 2.1.

Igreja “Povo de Deus”51

O Concílio recuperou a categoria bíblica de Povo de Deus, que a teologia

católica redescobrira nos anos 1937-1942, graças sobretudo a Congar com o

estudo A Igreja e sua unidade (1937), também ao teólogo alemão Koster e ao

biblista Cerfaux. Congar mostra o múltiplo valor desta categoria, destacando: 1)

valor histórico, enquanto sublinha a continuidade da Igreja com Israel; 2) valor

antropológico: a Igreja não é uma unidade abstrata que passa sobre nossas

cabeças, mas é feita de homens que se convertem ao Evangelho; 3) valor de

historicidade: destaca mais “povo” que “instituição”; 4) valor ecumênico e

missionário: permite o diálogo com as Igrejas da Reforma; 5) valor dialógico:

permite o confronto com as filosofias da história.

51 Muito antes do Concílio Vaticano II, Congar já refletia sobre a noção da Igreja como Povo de Deus. Por exemplo, no estudo redigido em maio de 1937, em prol da Conferência do Cristianismo Prático, em Oxford, em julho de 1937, passim: Introdução ao Mistério da Igreja (1941).

44

Nosso eclesiólogo reconhece que a Igreja, no Vaticano II, se definiu como

Povo de Deus no momento em que, de um lado, a sociedade e a vida se

secularizavam e, de outro, os cristãos tinham melhor e mais intensamente

consciência das implicações sociais e políticas de sua fé.

Congar bebe da vigorosa contribuição de K. Mörsdorf e M. D. Koster para

fundamentar sua reflexão sobre a Igreja como povo de Deus. Esses autores

definem a Igreja como Povo de Deus, estruturado como um corpo orgânico, tendo

membros e cabeça e, portanto, segundo uma certa ordem hierárquica, povo

finalmente congregado para realizar o Reino de Deus. Este Povo de Deus é

estruturado e organizado sobre uma base sacramental, pelas consagrações

batismais. Todos os membros deste povo têm parte na atividade da Igreja, embora

alguns membros sejam discernidos entre os outros por uma outra maneira de ter

parte no tríplice domínio do culto, do ensino e da pastoral52.

Na análise do Concílio Vaticano II, nosso teólogo diz que a redescoberta

da categoria “Povo de Deus” foi devida ao fato de alguns terem excedido o ponto

de vista mais jurídico de uma fundação da Igreja e terem buscado, no conjunto das

Escrituras, o desenvolvimento da intenção de Deus. Redescobriram a

continuidade da Igreja como Israel, a situar a Igreja na perspectiva mais ampla da

História da Salvação e em concebê-la como Povo de Deus (“Ekklesia tou Theou”)

tal como ela existe ao longo dos tempos messiânicos. A Igreja é esse povo que

Deus constituiu, que estava como em gestação na história de Israel e foi

constituído na forma da Igreja que nós conhecemos pela obra do Verbo encarnado

e o envio de seu Espírito.

Um outro destaque que a categoria de Povo de Deus suscita em nosso

teólogo é o aspecto ecumênico, sobretudo pelo diálogo com os Protestantes (para

ele, diálogo é lugar ao mesmo tempo de acordo e de confrontação). Na

perspectiva Protestante tal categoria favorece pela idéia de eleição e de apelo:

tudo está sob a iniciativa de Deus! A Igreja como ‘Povo de Deus’ possibilita

evitar, de um lado, a institucionalização (com o uso desregrado de idéias de 52 Cf. Cette Église que j’aime, p. 16-17.

45

“poder” e de infabilidade), e, de outro lado, o romantismo de uma concepção

biológica do Corpo místico.

Sendo assim, acrescenta Congar, é o Povo de Deus estruturado que traz a

missão e representa, no mundo, o sinal da salvação que Deus constitui. Aqui a

questão fundante é a responsabilidade de todo batizado frente a essa missão, onde

essa categoria Povo de Deus se torna ponto de partida para a vocação comum de

todos os fiéis.

Entretanto, para Congar é preciso distinguir “Povo de Deus” em dois

sentidos ou extensões: 1) Sentido estrito – é o povo da religião revelada e

instituída, formada por aqueles que conhecem as estruturas positivas da Aliança e

vivem nela; este povo é, todo inteiro, portador do Cristo, a quem ele deve fazer

conhecer a verdade e transmitir a graça; 2) Sentido extensivo – tudo isto que, no

gênero humano, é para Deus: a imensa multidão dos humanos efetivamente

salvos, e todas as pessoas sem exceção, visto que salvas em princípio pela

Redenção tomada nela mesma ou no sentido objetivo.

Mas o eclesiólogo francês está também consciente dos limites da categoria

Povo de Deus, que deve ser completada com a de Corpo Místico de Cristo. Essa

Eclesiologia do Povo de Deus vai se aprofundar na direção de uma Eclesiologia

de Comunhão e Fraternidade, onde todos os membros da Igreja (para além de suas

funções e papéis) estão em situação de igualdade radical, derivada da graça do

Batismo53.

53 Aqui temos uma valiosa contribuição à laicidade: verificamos uma passagem de uma teologia do laicato à teologia do Povo de Deus. Pio XII, referindo-se, certa vez, aos leigos, disse: “Eles também são Igreja”. Afinal, qual é o estatuto do leigo na Igreja? Qual a sua função? Como fazer o leigo dizer sem constrangimento: “Nós somos Igreja”? Para que isso seja possível é preciso reformular a prática eclesial e a mesma eclesiologia. Dizia-se que o leigo tem uma participação própria na missão da Igreja por causa de sua secularidade. Sua fonte de energia (graça) vem de Jesus Cristo e não necessariamente da hierarquia. Do Espírito e não simplesmente do ministério hierárquico. Essas energias formam e constroem o povo de Deus em Igreja. Entrando já no Concílio Vaticano II, a Lumen Gentium nos liberta da predominância do jurídico, definindo a identidade histórica da Igreja com a categoria “povo”. Essa categoria tem as seguintes vantagens: Introduz na eclesiologia um dinamismo histórico; - Comunica um sentido dinâmico e concreto à Igreja, no seu agir; - Permite ultrapassar, com propriedade, definitivamente, o conflito entre hierarquia e laicato (houve mesmo quem afirmasse que “talvez seja preciso eliminar a palavra leigo, tão carregada de ambigüidades, para ficar apenas com “cristão” (Guilmot)”).

46

Concluindo:

Conforme Congar, a eclesiologia do Povo de Deus vai se aprofundar na

direção de uma eclesiologia de comunhão e fraternidade54, como dito

anteriormente. Posteriormente, o Documento de Puebla propõe uma eclesiologia

de “comunhão e participação”. Refazendo a história da eclesiologia do século XX

descobrimos como ela, partindo de uma concepção de uniformidade, caminhou na

direção do pluralismo enriquecedor da diversidade a partir da qual se constrói a

comunhão eclesial, graças à presença do Espírito. Caminhou-se, pois, na direção

do “comunitário”. Essa dimensão catalisou todos os esforços renovadores até a

nossa experiência latino-americana das CEBs. Os pontos de maior evidência são:

os movimentos de jovens, a renovação litúrgica, a valorização da assembléia

litúrgica e a nova consciência comunitária, presente do próprio agir histórico da

Igreja, ou seja, na pastoral55.

54 Para essa visão leia-se CONGAR, Y. Uma teologia da Comunhão. In: FEINER-LOHRER, Mysterium Salutis IV/3, Vozes, 1976, pp. 40-49. 55 Vejamos esses pontos de relevância eclesial: a) Os movimentos de jovens. Como reações ao individualismo crescente da sociedade liberal capitalista, surgiram nas Igrejas em geral e de modo específico dentro da Igreja católica, movimentos de juventude. Esses movimentos tinham como objetivo a educação da fé e como cerne de atração o tema “comunidade”, a dimensão comunitária. Esse pode ser considerado, sem receio, o acontecimento do século XX. Não se pode vê-lo, no entanto, de uma forma ingênua. Esses movimentos não nasceram do nada. A mesma sociedade civil, em reação ao exagerado individualismo da sociedade pequeno-burguesa, começou a desenvolver formas de organização na direção da socialização e do socialismo. Todavia, o fenômeno mais avassalador e problemático que se apresentou foi que, em alguns países, o fenômeno foi manipulado e as energias da juventude foram canalizadas na direção do estado totalitário. Trata-se da experiência da juventude nazista, na Alemanha de Hitler, e da juventude fascista, na Itália de Mussolini. Da parte da Igreja católica tornou-se um imperativo da época organizar, de maneira disciplinada, a Ação Católica, como resposta adequada da Igreja no contexto do estado totalitário; b) A renovação litúrgica. Este é um outro dado importante para compreender a renovação da eclesiologia. Ela recolocou no centro da própria ação litúrgica a dimensão comunitária da Igreja, no esforço para superar o juridicismo e o casuísmo litúrgico que tomaram conta da Igreja pós-tridentina. De fato, nos últimos séculos foi o que dominou o espírito da própria instituição eclesial. Os fiéis se viram obrigados a apelar para devoções particulares para satisfazerem sua piedade. A renovação litúrgica veio então promover a efetiva participação dos fiéis, como pessoas e comunidade, na celebração, da qual haviam sido afastados na qualidade de meros assistentes passivos da ação “produzida e administrada” pelo padre. Quando o Vaticano II promulgou a Sacrossanctum Concilium, sobre a Liturgia, a parte maior do caminho já havia sido percorrida. Esse documento havia sido precedido pela encíclica de Pio XII, Mediator Dei (1947). Depois disso, o Vaticano II conseguiu avançar em três pontos decisivos: no princípio da descentralização, no princípio da participação e no princípio da experimentação na liturgia; c) A valorização da assembléia litúrgica. Hoje este constitui um ponto pacífico na visão dos próprios fiéis. Essa valorização constitui um grande passo e uma grande conquista se for analisar o que era a liturgia antes do Concílio. A assembléia tinha seu lugar próprio, fora do “presbitério”, calada ou rezando o seu terço, enquanto o padre desenvolvia a ação litúrgica, toda ela rezada em latim. Havia, pois, dissociação entre a comunidade ideal (aquela imaginada e projetada pelos textos e reflexões teóricas) e a real (aquela concreta, do dia-a-dia). Mais: essa dissociação se expressava no

47

Essa auto-compreensão da Igreja, Povo de Deus, em nível histórico,

conduz a 5 áreas onde atualmente na Igreja se detectam mudanças, como

exigências dos novos tempos:

1) Na área das relações entre Igreja e mundo: acontece a exigência de uma

redefinição mais global;

2) Na área da pertença à Igreja: aqui se exige uma nova definição da

questão;

3) Na área da compreensão da Igreja como sacramento de salvação, deve-

se rever a questão do “extra ecclesiam nulla salus”;

4) Na área das relações entre as Igrejas particulares e destas com a Igreja

de Roma, há anseios de mudanças (que ainda não se concretizaram);

5) Na área dos serviços e ministérios eclesiais há também mudanças que se

esperam, partindo da nova experiência eclesial.

II. 2. 2. Igreja “Corpo Místico de Cristo”56

A categoria Corpo Místico de Cristo, segundo Congar, recebe sua maior

contribuição teológica do Movimento de renovação litúrgico e da Ação Católica.

O princípio básico dessa categoria é a afirmação de que no mistério de Cristo

todos somos iguais: “Se levarmos uma vida que seja d’Ele, a vida d’Ele em nós, a

vida d’Ele na humanidade, então seremos, verdadeiramente, seus membros”57.

Todos aqueles que se entregam a Cristo recebem uma vida nova, que é a vida

próprio momento da celebração. Foi então que entrou em cena o princípio da experimentação e da criatividade. Desenvolveram-se vários tipos de celebrações e reuniões litúrgicas: para pequenos grupos, para assembléias maiores, para grandes concentrações etc; d) Nova consciência comunitária. A renovação litúrgica ajudou a dar nova consciência aos fiéis da dimensão comunitária da Igreja na sua totalidade e não apenas dentro da ação delimitada pelo espaço litúrgico. A conquista do “comunitário” na celebração abriu caminho para a conquista do “comunitário” fora do espaço litúrgico, pois faltava ainda levar essa preocupação para fora, onde a vida do povo de Deus se realiza no dia-a-dia. Era preciso buscar uma ligação maior entre celebração e vida, entre fé e vida. Esse passo iria exigir um esforço bem mais profundo quer da parte do clero, que estava mal-acostumado a repartir tarefas, quer da parte do povo, que já havia desaprendido a participar ativamente nas tarefas eclesiais. 56 Ao falar dessa categoria, Congar cita a obra de M. D. Koster, “Ekklesiologie im Werden”, publicado em 1940 e que colocava a idéia da Igreja como Corpo Místico, assegurando um estado pré-científico da eclesiologia. 57 Cf. Introdução ao Mistério da Igreja, p. 75-93.

48

d’Ele por um mesmo e único princípio, que é o Espírito d’Ele, e somos, todos

juntos e de modo igual o corpo d’Ele e a Igreja d’Ele. O Corpo Místico se realiza

quando levamos nossa vida por conta de Cristo, afirma Congar.

A idéia de Corpo Místico não pode ser identificada como um conceito

romântico ou até mesmo intimista, mas este Corpo Místico não é somente a

humanidade que se consagra a Deus e imita a Cristo: é a humanidade que vive a

vida de Cristo, ou, o que é a mesma coisa, o Cristo que continua sua vida na

humanidade. Segundo Congar, a noção de corpo deve ser entendida como uma

construção, uma elaboração, não como um conceito propriamente. Isto é devido as

diferentes interpretações bíblicas da idéia paulina58 de “Corpo de Cristo”.

Refletindo a teologia Paulina, nosso teólogo explica que São Paulo partiu da idéia

de Povo de Deus e somente depois ele passa à afirmação do Cristo em nós e às

conseqüências éticas disto. Tudo isto faz pressentir a Congar que a noção de Povo

de Deus, por mais rica e verdadeira que seja ela, sem a articulação com a noção de

Corpo Místico é insuficiente para pensar adequadamente o mistério da Igreja

presente.

Assim, conclui Congar, como no corpo humano existe uma variedade de

funções na unidade de vida, a mesma coisa acontece com o Corpo Místico: ele

assume toda a diversidade humana na unidade de uma vida santa e religiosa que é

a vida de Cristo. Ele faz com que nossos atos sejam inscritos em Cristo e, enfim,

misteriosamente, sejam d’Ele, uma vez que são de Seu Corpo.

Concluindo:

Desta forma, temos como coroamento dessa nova mentalidade a passagem

de uma eclesiologia jurídica para uma eclesiologia do “Corpo místico”. A

58 Tomando como referência o “corpo”, Paulo desenvolve sua doutrina eclesiológica sobre a Igreja enquanto “Corpo de Cristo”. Com isso ele estabelece uma comparação: assim como os membros estão no corpo e formam o corpo, também a realidade “Igreja” une a todos. A Igreja como “Corpo de Cristo” adquire também um caráter universal. Assim como o primeiro Adão expressa a universalidade da humanidade, do mesmo modo o segundo Adão e sua representação histórica expressam essa universalidade de princípio e destino de todo ser humano em direção a Deus.

49

eclesiologia jurídica de que estamos falando agora corresponde ao modelo de

cristandade num contexto de confronto “Igreja-Mundo” (o pressuposto é que a

“societas perfecta” se coloca em plano de continuidade com a cristandade apenas

no plano intra-eclesial. No plano da relação da Igreja com a sociedade revela uma

Igreja aliada do poder, na defensiva, como modelo de confronto). Trata-se da

eclesiologia jurídica inaugurada por Gregório XVI e aprofundada por Pio IX, de

apologética contra o “indiferentismo” e contra o ideário da Revolução Francesa.

Nela se insiste sobre a autoridade (que se identifica sem mais com o poder) e

sobre a obediência. A isso se deu o nome de “ideologia da restauração”: “Uma

forte articulação em torno do poder e da autoridade na Igreja” vista sob o ângulo

de Roma, com o objetivo de refazer de novo o arranjo histórico entre trono e altar.

Qualquer tentativa de quebrar o monólito dessa eclesiologia no século XIX

(exemplos: Moehler, Newman) foi dar no Vaticano I, dominado por uma maioria

ultramontana, que exaltava incondicionalmente a autoridade papal. No século XX

homens como R. Guardini, K. Adam, Ch. Journet, de Lubac, o próprio Congar e

tantos outros, colocaram todo o seu esforço na renovação eclesiológica.

Introduziram o conceito de “sacramento”, aplicado agora à Igreja, orientando a

reflexão teológica para além daquele espaço eclesial que Congar chamou de

hierarcologia: a teoria de uma Igreja “societas perfecta, inaequalis, hierarchica”.

Não podemos esquecer que ainda no início deste século Pio X assim se

expressava a respeito da Igreja:

A Igreja é, por essência, uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que

abrange duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho, os que ocupam uma posição nos diversos graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E essas categorias são tão distintas entre si que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessária para promover e dirigir todos os membros ao fim da sociedade; quanto à multidão, esta não tem outro dever senão o de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os seus pastores59.

A visão sacramental da Igreja levou, aos poucos, a superar essa

compreensão na direção do “Corpo místico”. Já Pio XII escrevia em 1943 uma

importante Encíclica sobre o Corpo Místico (Mystici Corporis Christi). Por meio

de uma compreensão mistérica e sacramental da Igreja ele supera uma

59 Encíclica Vehementer Nos. Documentos Pontifícios, 88. Petrópolis: Vozes, 1957. p.10.

50

compreensão meramente societária e institucional. Abre o caminho para uma nova

compreensão do ministério papal como “chefe secundário” (sendo o principal

sempre Jesus Cristo, presente no mistério da Igreja). Há uma margem para

incentivar a participação dos fiéis, margem essa que já não é mais ocupada pelo

corpo clerical. Eis o princípio básico que orienta a nova fase da eclesiologia: no

mistério de Cristo todos somos iguais.

Em diálogo com nosso teólogo, indagamos: que conseguiu até aqui a

reflexão da Igreja como “Corpo Místico”? Conseguiu-se restabelecer a igualdade

radical dos batizados no plano do mistério, isto é, do Corpo místico, refletindo

sobre as nossas experiências de Igreja? O que falta? Falta recuperar essa

linguagem no plano histórico concreto: afirmar a igualdade radical no plano da

vida concreta. Esse é o próximo passo e o desejo maior de uma eclesiologia de

comunhão.

II. 2. 3. Igreja “Templo do Espírito Santo”

A Igreja na Teologia Paulina é também apresentada como Templo do

Espírito Santo. Tal idéia é cara a nosso teólogo. Esse modelo de Igreja como

Templo do Espírito Santo torna-se basilar para sua Eclesiologia Pneumatológica.

O Espírito Santo é o princípio de comunicação e de comunhão entre Deus e nós, e

entre todos nós, por que é soberano e sutil, é único em todos. O Espírito une as

pessoas sem profanar a sua interioridade e sem pôr limites à sua liberdade (cf.

2Cor 13, 13).

A pneumatologia é como que uma passagem, uma ponte, entre a

cristologia e a antropologia: o laço, o elo, que une Cristo e o fiel batizado e,

principalmente, o viés por onde se deve pensar a Igreja. Uma pneumatologia

completa não separa a ação do Espírito da obra de Cristo: “uma verdadeira

pneumatologia é aquela que descreve e comenta a vida na liberdade do Espírito e

51

na comunhão concreta da Igreja histórica, cuja essência não está nela mesma

nem em suas instituições”60.

O Vaticano II, situando a identidade histórica da Igreja no conceito Povo

de Deus, colocou em evidência, por isso mesmo, a ação do Espírito Santo como

poder gerador da Igreja em Jesus Cristo. A Encíclica de Pio XII sobre o “Corpo

Místico” falou em carismas, como dons do Espírito dados aos fiéis para o

testemunho e para a vida. O cristão deixa assim de ser meramente objeto de

solicitude pastoral da Igreja, entendida como hierarquia, para ser ele mesmo

sujeito da realização histórica do mistério da Igreja e de sua missão histórica.

A Igreja é o lugar do Espírito de Cristo atuante na história. Presente em

cada fiel que permanece em Cristo, o Espírito é força e comunhão para a vida da

Igreja. O Espírito é dado à comunidade e às pessoas. São João escreve nos

capítulos 14 a 16: "o Pai vos dará outro Paráclito, virá a vós, vos ensinará, vos

recordará, enviá-Io-ei a vós, vos anunciará toda verdade"; "vós" significa

certamente as pessoas e a comunidade reunida pelo Espírito enviado.

A Igreja é uma comunhão, uma fraternidade de pessoas; nela se unem então um princípio pessoal e um princípio de unidade comunitária, sendo o Espírito Santo que os harmoniza. A grande riqueza da Igreja são as pessoas. Cada uma delas é um princípio original e autônomo de sensibilidade, de experiência, de relações, de iniciativas61.

O Espírito reúne as pessoas numa comunidade de fé, faz nascer entre elas

o amor, no qual são impulsionadas a viver e partilhar fraternalmente, formando a

unidade e a comunhão de fiéis em Cristo. É o único Espírito de Cristo que em

todos e em cada um gera unidade e comunhão. A cada um e a todos em

comunidade foram dadas, no Espírito de Cristo, as condições de realizarem o

desígnio de Deus de dar vida e cooperar na salvação.

O Espírito é dado para realizar a Igreja como comunhão, como 60 Cf. ES I. 61 Cf. ES II.

52

testemunha da comunhão de Deus; sendo sinal e antecipação da vida futura, Ele

pode ser experimentado na comunidade por cada um, unidos uns aos outros no

Novo Povo de Deus, por uma nova condição religiosa das pessoas feitas filhos de

Deus e incorporadas a Cristo no Espírito62.

A tendência de compreender a Igreja concreta e real, aquela que é

concretamente vivida para daí se chegar à Igreja na sua figura “universal”, parece

que se impõe como idéia fundante da Igreja como Templo do Espírito Santo. Na

verdade, a Igreja “universal” não é outra coisa senão a Igreja particular aberta à

comunhão e à fraternidade universal sob a ação do Espírito.

Concluindo:

A eclesiologia é uma teoria relacionada com uma prática de Igreja. Na

medida em que a Igreja se transforma em sua prática, também se transforma em

sua teoria. Vimos na reflexão que fizemos em torno dos modelos de Igreja a

necessidade de superação de uma concepção de Igreja “societas perfecta”. O

Concílio dá o passo essencial para essa passagem: de “societas perfecta” para a

Igreja “Povo de Deus”. A cada modelo corresponde uma linguagem, um jeito de

falar, uma expressão simbólica, produto da prática histórica. Afinal, toda

experiência trazida à reflexão vem seguida de um esforço explicativo de

legitimação, formando uma teoria para justificar o caminho percorrido.

Cabe ressaltar que no itinerário latino-americano da Igreja cunhou-se

também a expressão “Igreja Popular”63, combatida por uns e defendida por outros

(os debates se desenvolveram, sobretudo, nas décadas de 70 e 80) para expressar

as novas práticas eclesiais. Documenta-se assim a passagem de uma eclesiologia

jurídica, centrada, sobretudo na categoria “Sociedade”, para uma eclesiologia do

“Corpo Místico”, centrada na categoria “Mistério”, ao redor do termo

62 Há dois pontos fundamentais da renovação da eclesiologia ligados à ação do Espírito Santo confirmados por nosso teólogo: 1) a participação dos fiéis na missão da Igreja; 2) a teologia da Igreja particular. 63 Cf. B. KLOPPENGURG, Igreja popular. 3 ed. Rio de Janeiro: AGIR, 1983; e P. RICHARD. A Igreja latino-americana entre o Temor e a Esperança. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 71-83.

53

“comunidade” mística com Cristo; e desta para uma eclesiologia do “Povo de

Deus” centrada na categoria “Povo”.

II. 3. Notas e propriedades da Igreja

Após entendermos os modelos de Igreja centrais de nosso autor, um outro

aspecto relevante na compreensão de sua eclesiologia é a tarefa de pensar a Igreja

a partir de suas notas e propriedades (Unidade - Santidade – Catolicidade -

Apostolicidade). Segundo Congar, as propriedades da Igreja, no seu papel de

notas (notificare, notum facere), significam o advento de comunhão para o mundo

e atestam que o fato único do Cristo possui valor absoluto e universal de salvação.

Essas notas emanam da própria natureza da Igreja. Compreendemos as intuições

de nosso teólogo:

II. 3.1. Unidade

A unidade na Igreja é uma comunhão e uma extensão da própria unidade

de Deus: “A razão pela qual a Igreja existe, é a comunicação da vida do Pai a

muitos. E porque há um só Deus é que há uma só Igreja, una pela própria

unidade de Deus, fora da qual ela não existe”64.

O Espírito Santo é o princípio da unidade da Igreja (Dom de Deus – cf. At

2, 37-38; 8, 18-20; 10, 44-46; 11, 15-17; Ef 4, 7-8). Porém, alerta Congar, o

Espírito somente é dado quando existem criaturas capazes de possuí-Lo e gozá-

Lo: “Quando nos é dado, nos une a Deus e entre nós, pelo mesmo princípio que

64 Cf. Chrétiens desunis, p. 59.

54

sela a unidade de amor e da paz em Deus mesmo”65. E o Espírito só atua quando

estamos em relação: Antropologia no Espírito (a relação como princípio de

comunhão)66.

Sobre a nota da Unidade, nos deparamos com um desafio de ordem

metodológica nos estudos de Congar: a palavra comunhão é sinônimo de unidade.

Em nossa realidade eclesiológica essa distinção faz-se necessária: podemos, na

Igreja, estar unidos, sem estarmos em comunhão. Podemos estar em unidade (pois

proclamamos a mesma fé, participamos do mesmo batismo, recebemos e

testemunhamos a mesma Tradição); no entanto, podem nos faltar o amor mútuo, o

espírito de diálogo, a caridade... ou seja, a comunhão!67

Para configurar seu modo próprio de ser, a vida eclesial, o povo de Deus

deve dirigir seu olhar para o mistério da Trindade, onde reside a unidade perfeita.

Nela a diferença das Três Pessoas Divinas não gera nem divisão, nem separação,

mas a unidade. No princípio da vida divina está a comunhão. Assim, o modo

próprio do povo de Deus ser é a comunhão. Portanto, devemos buscar a

comunhão na Igreja sem anular a diferença das pessoas, mas reconhecendo a vida

divina que se derrama em cada um de seus membros.

Nessa realidade plural a Igreja é chamada a viver a unidade e diferença em

tensão entre vários projetos de Igreja. Mas todos esses projetos têm que guardar a

65 Cf. CONGAR, Y. El Espíritu Santo, Sección de Teologia y Filosofia. Barcelona: Herder, 1991. p. 111. 66 Num balanço da vida moderna, Congar descortina uma tendência geral de massificação, que inibe as pessoas de seu processo normal de individuação e socialização. O instinto de liberdade, porém, visando compensar essa massificação e o peso da sociedade competidora e planificadora, leva, não raro, à evasão da natureza. O homem moderno se encontra sedento de interioridade e de novo modo de participação no mundo. Necessitado de integridade do ser, pede a liberdade e clama, indiretamente, pelo Espírito (cf. ST, p. 11-15; EH p. 23-24). Frente a essa situação, nosso teólogo propõe uma reflexão sobre o papel do Espírito na progressiva realização da identidade pessoal do homem: enquanto presença ativa do absoluto no homem, o Espírito é fonte de interioridade profunda, sólida e calorosa, suficiente para que ele possa comunicar-se com os outros. 67 Exemplo mais eloqüente dessa diferença conceitual é a própria experiência no âmbito dos sacramentos: a eucaristia é o sinal visível de nossa comunhão; mas, alguns cristãos e cristãs, devido a motivos disciplinares, são “excluídos” dela (ora, se estão fora da comunhão visível, como permanecem em unidade com a Igreja?).

55

regra suprema da unidade na diferença. Nem a unidade anula a diversidade nem a

diversidade anula a unidade.

A unidade da Igreja de Cristo é a graça, acredita Congar. Ela nos chega

pela ação do Espírito Santo que opera na Igreja para que ela seja fiel ao projeto de

Deus em Cristo. Na sua realização histórica, a Igreja é constituída, na sua forma

social, por homens e mulheres, frágeis e pecadores. Por esse motivo, ela está

sempre ameaçada por rupturas da unidade visível.

Para melhor compreender esse princípio, recordemos as sábias palavras do

Vaticano II: “Todos os cristãos, mesmo separados de nós, tornam-se, pelo

Batismo, membros do Povo de Deus e, portanto, da Igreja”.68 Existe, pois, uma

comunhão verdadeira, não total, mas imperfeita, entre todos os batizados. Essa

comunhão verdadeira exige de todos um empenho ao diálogo, interno e externo,

humilde e aplicado.

II. 3. 2.

Santidade

Esta é a nota mais característica da Igreja, pois especifica de perto a Igreja

como lugar da presença de Deus no mundo (Deus = santo e fonte de santidade do

mundo). Essa santidade é, anterior a qualquer definição epistemológica, fruto do

Espírito; uma obra exclusiva do Espírito Santo (princípio da “inspiração” e da

“revelação” do pensamento, do plano e das vontades de Deus para com seu povo).

O Concílio Vaticano II destaca a função eclesial de santificação como

participação na unção de Cristo pelo Espírito e, sendo a Igreja a comunhão dos

Santos, ela torna-se comunidade santificante.

68 Cf. UR 3

56

Em razão do laço de destino que existe entre o cosmo e o homem, o mundo inteiro é envolvido na realização dos santos (cf. Rm 8, 20s): nós esperamos novos céus e uma terra nova onde a justiça habita (cf. 2Pd 3, 13)69

Ainda sobre a nota de Santidade, Congar adverte sobre as leis de

Santidade fundamentais de uma atitude pastoral70:

- 1ª Ter um mundo diante de si e ter consciência de sua existência: a

Santidade da Igreja: ter um mundo diante dela e o saber (Santidade não é

existir por si mesma, mas ser enviada a serviço do mundo em vista de Jesus

Cristo);

- 2ª “A Igreja não são as paredes, mas os fiéis”: a Igreja é o povo dos

evangelizados que se convertem ao Evangelho. Ela é excitadora e meio de

conversão (atos feitos por Cristo a atos feitos para Cristo).

Em suma, dizemos que a Igreja é indefectivelmente santa. Por graça ela

não perde nunca a santidade, não porque nós estamos dentro dela, mas porque

“Cristo amou a Igreja e se entregou por ela; ele quis com isso torná-la santa,

purificando-a com a água que lava, e isto pela Palavra; ele quis apresentá-la a si

mesmo esplêndida, sem mancha nem ruga, nem defeito algum; quis a sua Igreja

santa e irrepreensível” (Ef. 5, 25-27).

Na verdade, nos encontramos diante de duas situações. Quando a Igreja

em seus fiéis e em sua forma social se abre à ação do Espírito Santo, se desdobra

em fidelidade, ela é santa. Por isso, atesta Congar, a certeza dessa santidade

indefectível não pode vir, de forma nenhuma, de nós, mas de Deus mesmo. É da

fé para fé.

69 Cf. Cette Église que j´aime, p. 47-48. 70 Cf. “À mês frères” – Cerf – 1968.

57

II. 3.3. Catolicidade

Aqui nosso teólogo adverte para o sentido qualitativo: “No Cristo, a

totalidade da vida foi restaurada, e a Igreja nada mais é que a realidade desta

restauração levada a cabo no espaço e no tempo”71.

A palavra Católica (kath´holou – ser em plenitude) abrange a

universalidade do ser e dos seres na unidade, apontando para uma séria e honesta

maneira de pensar a articulação da Igreja no mundo: a Igreja é una, porque é

corpo de Cristo, que é um; Ela é santa, porque seu ser é comunicado por Cristo,

um ser santo, pneumático; Ela é católica, porque lhe são comunicados,

efetivamente, pelo Cristo, uma vida e um movimento capazes de reunir, por meio

dela e nela, todas as coisas, que estão no céu e na terra. Portanto: somos Uma

Santa Igreja Católica!

A Catolicidade da Igreja é a capacidade universal da Unidade:

“Universalidade dinâmica dos princípios de unidade da Igreja”72. A Unidade é

dada toda de uma vez só. Já a Catolicidade tem algo de potencial que se

desenvolve um pouco de cada vez. Assim, essa Catolicidade deve ser vivida como

a capacidade que os princípios de unidade da Igreja têm de assimilar, preencher,

ganhar para Deus, reunir e consumar Nele todo o homem e todos os homens, bem

como cada valor de humanidade.

Daí derivam as implicações da Catolicidade na vida do cristão: todos os

membros são católicos, mas, conforme a sua posição, devem concretizar a

catolicidade de maneiras diversas, acredita Congar: 1) Sacerdotes: instruir os fiéis

sobre o princípio da catolicidade; 2) Missionários: realizar a catolicidade com

71 Cf. Introdução ao mistério da Igreja, p. 17. 72 Cf. Chrétiens desunis, p. 115-148.

58

referência aos valores das religiões não-cristãs; 3) Leigos: concretizar a

catolicidade com referência aos valores terrestres.

Enfim, a unidade católica do Povo de Deus abrange diferentes modos de fé

eclesial. A dimensão universal do mistério salvífico que se manifesta na Igreja, se

realiza de muitos modos pela história da humanidade. A catolicidade da Igreja

deve refletir a universalidade de Cristo. Cristo é que é “católico”. Todos e cada

um dele recebem a vida. Somos Igreja católica por causa dele.

II. 3. 4. Apostolicidade

Segundo a Teologia da Apostolicidade “a Igreja não é somente

sacramental: ela é apostólica e hierárquica”73. A Igreja age em duas atividades

vicárias do Cristo: 1- A do Espírito (invisível) por dentro; 2- A do corpo

apostólico (visível) por fora. Assim, assegura a identidade do ministério atual da

Igreja com aquele dos apóstolos e, conseqüentemente, com aquele de Cristo.

Alguns textos bíblicos apontam para uma certa organização hierárquica a

partir da autoridade dos apóstolos. Nesses textos, a Igreja, como Corpo Místico, é

sacramental e Apostólica. Sendo responsável pela função de órgão e de critério de

unidade doutrinária – ministerial – pastoral. Nesses aspectos, alerta Congar, a

hierarquia deve entender a apostolicidade da Igreja corretamente sem abusos e

desvios conforme o esquema proposto:

Apóstolos → Pedro → Corpo Episcopal (Sede Apostólica)

=

Relação Vicarial (procuradores) com Cristo (e não sucessores do Cristo).

73 Cf. Introdução ao mistério da Igreja, p. 18-29.

59

Congar retrata os sentidos da Apostolicidade, destacando: 1- Sentido

Formal: a humanidade se perpetua pela sucessão das gerações; 2- Sentido de

Conteúdo: conservar – através do espaço, que não pode ocupar uma mesma

presença corporal, através do tempo, que nossa caducidade não domina – a

identidade da missão apostólica: “Aqueles que foram enviados podem e devem

enviar outros depois de si”.

Nosso autor adverte para a necessária articulação entre Apostolicidade e

fato hierárquico, que devem fazer na própria ordem visível, que tudo derive do

fato único da Encarnação e da Páscoa históricas.

Enfim, todas essas propriedades não são separáveis entre si. Existe uma

presença e interioridade mútua; semelhante são as diversas funções de Cristo que

são emanações de sua unção pelo Espírito Santo e de sua plenitude de graça, de

maneira que sua realeza é profética e sacerdotal; seu sacerdócio, profético e real;

seu profetismo, real e sacerdotal.

II. 4. A Eclesiologia de Comunhão no pensamento de Yves Congar

Como vimos anteriormente, o paradigma eclesiológico de Congar baseia-

se na comunhão, a saber, a Eclesiologia de Comunhão, que tem como fundamento

primordial a origem da Igreja na Trindade. As relações intratrinitárias, queridas

por Deus e garantidas pela ação do Espírito, autonomamente preservadas,

asseguram a fundamentação teológica para esse paradigma.

Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo em comunhão recíproca.

Coexistem desde toda a eternidade; ninguém é anterior, nem posterior, nem

superior, nem inferior ao outro. Cada Pessoa envolve as outras, todas se

interpenetram mutuamente e moram uma nas outras. É a realidade da comunhão

trinitária, tão infinita que os Três são, por isso, um só Deus. A unidade divina é

comunitária, porque cada Pessoa está em comunhão com as outras duas.

60

Dizer que Deus é comunhão significa que as Três Pessoas Eternas, Pai,

Filho e Espírito Santo, estão voltadas umas para as outras. Cada Pessoa Divina sai

de si e se entrega às outras duas. As Pessoas são distintas. O Pai não é o Filho e o

Espírito Santo, e assim sucessivamente, não para estarem separadas, mas para

poderem se entregar umas às outras e fazer assim comunhão. No princípio está a

comunhão dos Três Únicos. A comunhão é a realidade mais profunda e criadora

que existe. É por causa da comunhão que existe o amor, a amizade e a doação

entre as pessoas sejam Elas Divinas, sejam elas humanas.

A comunhão da Santíssima Trindade se abre para fora, não está fechada

em si mesma. Toda a criação significa um desdobramento de vida e de comunhão

das Pessoas Divinas convidando as criaturas para também estarem em comunhão

entre si e com a Trindade Santa. O Evangelho nos revela esta realidade:

Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em Ti. Que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste. Eu Ihes dei a glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um: eu neles, e tu em mim, para que sejam perfeitamente unidos, e o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste como amaste a mim (João 17,21 - 23).

A comunidade cristã tem por fundamento a comunhão da Trindade Santa.

A Igreja com sua natureza batismal e como sinal visível de salvação à

humanidade, é o lugar dessa comunhão por excelência, acredita Congar.

Essa comunhão, segundo nosso teólogo, tem duas dimensões que lhe são

essenciais. Uma primeira refere-se à relação de origem da Igreja. Sua raiz

profunda está no mistério de Deus uno e trino, em seu desígnio salvífico e

universal 74, como dito anteriormente. A Trindade é a fonte da vida e da santidade

da Igreja. Pela missão do Filho, o Verbo encarnado, Deus convoca um povo para

si, mediante a incorporação, pelo batismo. Por isso “não há judeu nem grego, não

há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em

Cristo Jesus”75.

74 Cf. LG, 1. 75 GL 3, 28.

61

Essa realidade profunda que constitui a dignidade fundamental do cristão

precede qualquer distinção de vocações, dons, tarefas, ministérios ou condição de

vida. Não se deve pensar, além do mais, que essa diversidade possa atrapalhar a

unidade. De fato, tanto a diversidade quanto a unidade na Igreja têm a mesma

origem, no dinamismo do Espírito76.

Uma segunda dimensão dessa comunhão, tão fundamental à Igreja quanto

a primeira, pois provém do mesmo dinamismo do Espírito, consiste no fato de que

ela é vivida não num espaço puramente subjetivo, intimista e privatizante, mas

numa forma pública, historicamente comprometida. Ela se vive na forma de

comunhão de discípulos de Jesus Cristo, enviados ao mundo a ser salvo. Não é

uma comunhão abstrata, que serve a todos os gostos, mas inserida no mundo, na

história, no contexto da realidade conflitiva, pecaminosa, quer do ponto de vista

pessoal quer social. Neste sentido, deve ser vivida profeticamente como denúncia

de um mundo que nega a comunhão e como anúncio de uma comunhão plena que

todos são chamados a viver a começar da história, em busca do Reino definitivo.

Por conseguinte, essa comunhão deve ser vivida como “comunhão dos

santos”. Trata-se da comunhão dos bens salvíficos que deve existir entre aqueles

que foram santificados pelo batismo. Ela exige circulação profunda da graça

libertadora no coração dos fiéis não apenas para o gozo próprio, mas, sobretudo,

para a vida do mundo.

II. 5. Conclusão

Após esse percurso, faz-se juz dizer que a comunhão deve tratar-se, pois,

de uma comunhão missionária dos discípulos de Jesus. Ela exige uma prática

histórica concreta de uma comunhão vivida e celebrada.

76 Cf. LG, 12; 1 Cor 12-14.

62

Para o cristão, a fé é vivida na diversidade das tarefas, dos compromissos e

dos trabalhos de cada um conforme a realidade na qual está inserido. Essa Igreja

“dispersa” deve viver a comunhão em primeiro lugar como participação à vida da

comunidade eclesial, sinal da participação no mistério de Cristo; em segundo

lugar, como participação na sociedade humana, na história, para denunciar as

contradições ao projeto de Deus, pelo empenho no mundo do trabalho, na família,

na economia, na política, na cultura, de forma a contribuir na transformação do

mundo.

A essa comunhão vivida corresponde sem dúvida a comunhão celebrada

pela comunidade convocada pela Palavra de Deus e reunida em seu nome. Aqui se

revela, de fato, a dimensão histórica de que essa comunhão baseia-se no tripé:

eucaristia, Igreja particular e inserção dentro da realidade do mundo para

transformá-lo em instrumento de comunhão universal.

Partindo dessa última intuição e aprofundando suas obras, podemos dizer

que a grande proposta de Yves Congar, à luz do Concílio Vaticano II, é

desenvolver uma eclesiologia “integral”, apontando o real papel da Igreja dentro

do mundo de hoje.

Mais do que isso trata-se de fundamentar uma eclesiologia que tenha como

ponto de partida a “eclesialidade batismal” do Povo de Deus, à luz do Vaticano II,

de seu desenvolvimento no pós-concílio e sua visibilidade no mundo moderno. O

Concílio tinha um objetivo: tornar o batizado “sujeito ativo” na Igreja, superando

a passividade a que ele fora relegado, sobretudo no milênio que está chegando a

seu fim. É nesse ponto que o Concílio abre as portas para um novo jeito de ser

cristão, um novo cristianismo e, conseqüentemente, um novo jeito de ser Igreja.

Essa “eclesialidade batismal” deve ser entendida em primeiro lugar não

como derivada do ministério pastoral da Igreja (enquanto instituição o

hierárquica), mas deve ser compreendida a partir do ato primeiro de Deus em

Cristo, constituindo um povo para que o conheça e o sirva (Cf. LG, 9).

63

Não se trata, pois, de uma teoria eclesiológica derivada de uma teoria

sobre a hierarquia. Mas o contrário, de uma eclesiologia básica do Povo de Deus

onde cabe também uma visão coerente do ministério pastoral. Só uma eclesiologia

“integral” do Povo de Deus sujeito histórico portador do mistério que nele se

revela, leva a sério a “inversão eclesiológica” proposta pela Constituição

Dogmática sobre a Igreja do Vaticano II, Lumen Gentium.

64

CAPÍTULO 3:

A ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO E REALIDADE ECLESIAL: SINAIS, DIMENSÕES E FORMA DE PROCESSAMENTO DA ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO

III.1. Introdução: O redescobrimento da Eclesiologia de Comunhão

Ao longo do século XX vários foram os fatores que facilitaram a eclosão

da idéia de comunhão dentro e fora dos muros eclesiais: as catástrofes das grandes

guerras mundiais despertaram a nostalgia de uma experiência religiosa intensa,

concreta e mais comunitária; a renovação litúrgica mostrou a debilidade de uma

experiência devocional intimista; os estudos bíblicos haviam mostrado a

centralidade das imagens com “Povo de Deus” e “Corpo de Cristo”, apoiadas em

fórmulas como “Em Cristo”, como o melhor conhecimento da prática de

comunhão entre as Igrejas; a centralidade da eucaristia abriu diálogo com os

ortodoxos e permitiu perceber o sabor tradicional de sua experiência eclesial, mas

apontou necessidade de outros espaços de comunhão... Nesta perspectiva, o

conceito de comunhão se impôs como convergência de todas as aspirações

eclesiológicas e eclesiais num mundo marcadamente em processo de mudança.

O Concílio Vaticano II, como dito anteriormente nessa dissertação, é

considerado como o momento em que a Eclesiologia de Comunhão recebeu sua

carta de cidadania. Tal concílio, em termos de curiosidade, utiliza em 122

ocasiões o termo comunhão (ao passo que o Vaticano I somente cinco vezes).

Porém, a quantidade não deve impedir a prudência de um juízo valorativo. O

concílio faz um uso, muitas das vezes, impreciso e fluído do termo comunhão em

sentidos diversos e com conotações variadas77. É difícil dizer, portanto, que o

77 Cf. LG 4, 8, 9, 26; OT 5, AG 15, 17; PO 4 e a própria idéia da comunhão como referência à relação entre papa e bispos.

65

Vaticano II ofereceu uma noção tecnicamente elaborada sobre a comunhão. As

reflexões pós-concílio, por outro lado, como dissemos no capítulo anterior,

primaram pela categoria Povo de Deus como expoente dessa eclesiologia de

comunhão. Mas para nosso teólogo Congar não basta.

Não podemos desconsiderar outros dados. No período pós-concílio

algumas propostas apresentaram a comunhão como a coluna vertebral da

eclesiologia e como a chave hermenêutica para compreender a evolução do

Vaticano II. Mesmo assim, a recepção dessas idéias foi variada. Nessa linha, há de

assinalar o sínodo de 1985: aponta para a relação final da eclesiologia de

comunhão como tema fundamental dos documentos conciliares. Adverte que não

se pode reduzir a questões meramente organizacionais ou de partilha dos poderes,

e sim que consiste na comunhão com Deus por meio de Jesus Cristo e seu Espírito

e assim essa comunhão se tornará, também, o fundamento da ordem da Igreja e o

instrumento de articulação da unidade na diversidade.

Essa tomada de consciência inspirou a teologia de Congar, que ousou

introduzir um fator de equilíbrio e integração na eclesiologia e na vida eclesial:

frente ao secularismo reinante, destaca-se a dimensão mistérica da Igreja; frente às

divergências internas, se colocava a idéia de unidade (ou comunhão).

Dada sua centralidade e a amplitude de sua recepção, há de se destacar a

instrumentalização ideológica que o conceito de comunhão corria o risco:

a) Há de se evitar o uso absoluto da comunhão que exclua a validade de

outras imagens que acabem por se tornar sinônimas de Igreja;

b) Há de se evitar uma concepção muito mística e espiritual que

obscureça a dimensão social, pública e institucional;

c) Há de se evitar o uso retórico tanto para sugerir a gestão democrática

da vida eclesial quanto para estimular a uniformidade e a unidade sem

fissuras;

d) Há de se evitar um reducionismo psicológico que entenda a comunhão

como compensação da própria saudade e das carências afetivas.

66

Assim, Comunhão deve ser um conceito entendido teologicamente à luz

dos dados da revelação de Deus. Desde sua raiz trinitária até os eventos eclesias

propriamente, podemos refleti-la de formas variadas e com significações

diversas78.

III. 2. As dimensões da Comunhão

Perscrutando as obras de nosso teólogo, podemos assinalar que a

Eclesiologia de Comunhão, seguindo seu itinerário teológico, concorre para

algumas dimensões fundantes que irão assegurar-lhe sua dignidade. São elas:

dimensão de koinonia, dimensão escatológica e dimensão sacramental.

III. 2.1. A dimensão de Koinonia

Como muito se tem ouvido, a Koinonia não é um neologismo cristão, mas

uma experiência que recebeu do cristianismo um conteúdo novo e dinâmico. No

mundo grego a Koinonia era utilizada para designar as relações interpessoais, a

harmonia cósmica e a união de Deus com a obra criada. No AT não existe registro

de utilização do termo koinonia, ainda que a idéia de Aliança possa ser

considerada como equivalente.

Estes precedentes não tiram a ousadia da 2 Pd 1, 4, que fala da Koinonia

dos Cristãos como “partícipes da natureza divina”. O sentido exato, porém, só

pode ser entendido à luz da Revelação de Deus que atuou e atua na história

humana como trindade. Desde essa ótica, segundo nosso teólogo, se abrirão

perspectivas eclesiológicas fundamentais: a eclesiologia deve basear-se sobre a

teologia trinitária se quiser ser uma eclesiologia de comunhão.

78 Segundo o teólogo A. Leys, em “Eccleiological Impacts oh the Principle of Subsidiarity”, a comunhão recebe diversas classificações: a) Comunhão dos Santos: participação do fiel na salvação dada por Deus; b) Comunhão de fé: enquanto o crente é membro ativo do Povo de Deus; c) Comunhão eclesial: é a comunhão da Igreja Local edificada sobre a eucaristia e governada pelos bispos, que expressam a unidade e a diversidade da Igreja; d) Comunhão Colegialidade: baseada na anterior, mas destacando a comunhão hierárquica na relação entre papa e bispos; e) Comunhão Cristã: se refere à comunhão plena com as Igrejas cristãs.

67

Vejamos as luzes dessa Koinonia na experiência eclesiológica de Congar:

a) Como ponto de referência implícita deve ser considerada a

experiência de Jesus com seus discípulos mais íntimos e destes

entre si (cf. Mc 3, 14; Lc 5, 10). A vocação de seguir Jesus

implica ruptura com os vínculos existenciais anteriores para

unir-se inteiramente a ele, a seu destino, a sua missão. Na adesão

à pessoa de Jesus, os discípulos são transformados em suas vidas

e introduzidos numa experiência comunitária distinta das que já

existiam.

Porém, seria um equívoco falar da comunhão em sentido cristão tão

restrito. A partir da experiência da Páscoa, quando a missão do Filho de Deus

havia sido consumada por sua glorificação e efusão do Espírito, o crente

experimenta o sentido pleno da salvação: restaurado em suas relações

fundamentais e integrada com sua essência interior, é acolhido no mistério do

amor trinitário, perdoado e aberto a esperança e alegria de Deus, tornando-se

assim um novo homem, uma nova mulher. A comunhão sempre inclui um aspecto

soteriológico e antropológico.

b) Essa Koinonia se produz no processo da Trindade econômica: a

salvação vem de Deus por seu Filho no Espírito. Segundo

Congar, é esse dinamismo do amor trinitário em que o crente é

envolvido e faz-se partícipe com Deus. Esta é a dimensão

vertical da salvação, que o NT apresenta de modo muito realista.

No NT não se pode falar de uma comunhão com Deus em sentido genérico

e nem como uma relação com o Pai de modo direto. Só se produz uma relação

com Deus por mediação de Jesus. É a lógica que desvela em 1 Cor 1, 9: a graça e

os dons recebidos pela redenção operada por Jesus resumem a vocação cristã na

participação comunional com Cristo e em Cristo79. O convite de Deus em virtude

de seu amor revelado em Jesus e a filiação que é relegada aos crentes constituem 79 A doutrina Paulina do batismo e da eucaristia atesta essa convicção.

68

ao batizado uma situação histórico-salvífica nova. Em 1 Jo 1, 3.6 aponta-se nessa

direção: o Filho é o que faz dar a conhecer o Pai (cf. Jo 1, 18), e a vida que dele

procede é o que estabelece a comunhão com o Pai e os irmãos.

O Espírito é o que entrega comunhão, é o que a faz possível (cf. 2 Cor 13,

13). A “comunhão desde o Espírito” não designa a participação com ele. Em

paralelo com as funções atribuídas ao Pai e ao Filho, há de se pensar a comunhão

recebida pelo Espírito: comunhão, aqui, é aquele dom do Espírito pelo qual o

homem não está sozinho e nem distante de Deus, e sim, é chamado a participar da

mesma comunhão que une entre si Pai, Filho e Espírito, e tem como alegria a

comunhão profunda com os irmãos, com quem partilha o mistério de sua relação

com Deus. A comunhão, por sua raiz trinitária, se abre à história: ao ser recebida

pelo homem, essa comunhão rompe com o mais profundo sentimento humano de

egoísmo, fazendo desse homem Filho de Deus e irmão dos outros homens. A

liberdade da salvação se mede não somente pela escravidão da qual o homem em

Deus é libertado, mas pelo âmbito de comunhão a qual ele é incorporado, atesta

Congar.

A comunhão, como koinonia, possui uma base e uma expressão

sacramental: o batismo, início da comunhão, faz o homem participar do mistério

pascal e resgata-o numa nova filiação em Cristo pelo Espírito e o insere no

caminho do serviço. Essa abertura alcança sua ratificação e plenitude na

eucaristia, enquanto inserção no corpo do Senhor (cf. 1 Cor 10, 16. 17) e doação

ao outro. A dimensão vertical da comunhão faz possível a sua abertura horizontal:

sua eclesialidade.

c) A Koinonia possui sempre uma dimensão e uma abertura

eclesiológica. Essa dimensão é fruto de uma dialética positiva: a

comunhão, ela mesma, cria comunidade entre os participantes;

as relações interpessoais aqui estabelecidas serão tanto mais

profundas quanto mais elevada for essa realidade em que se

participa. A koinonia deve ser base da eclesiologia, assim, a

Igreja tornar-se-á o prolongamento, no tempo e no espaço, da

comunhão com a trindade santa. A cristologia e a

69

pneumatologia, enquanto são soteriologia, se transformam em

eclesiologia.

Essa abertura eclesiológica da Koinonia deve ser entendida de modo

concreto, referida às relações interpessoais vividas em um grupo humano

determinado, donde se desenrola o processo de comunhão e celebração da mesma

fé.

A reciprocidade eucaristia – Igreja articula e conjuga a conexão das

dimensões vertical e horizontal da comunhão. Na antiguidade cristã a koinonia

designava o modo inseparável de celebrar o corpo do Senhor e a vinculação

eclesial (pertença a um grupo humano solidário). A Igreja como mistério de

comunhão se faz presente e se realiza na assembléia litúrgica. Essa unidade do

Povo de Deus, fundada na consagração batismal, operada pelo Espírito, faz com

que esse mesmo povo seja santo e enviado ao mundo para manifestar o dom de

Deus recebido.

Assim, essa koinonia eucarística implica uma objetividade, uma estrutura

institucional. A Igreja, Corpo Místico de Cristo, é uma comunhão, interiormente

expressa na vida espiritual dos fiéis pela fé – esperança – caridade; exteriormente

expressa na profissão de fé, de disciplina e de vida sacramental.

A Eclesiologia de Comunhão como koinonia exige gestos, atitudes e ações

concretas em seu exercício. Ela encerra em si mesma uma carga de eclesialidade

que irá contornar a vida e o testemunho do ser cristão: é o senso dos membros de

uma mesma assembléia que criam um “mesmo sentir” (cf. Rm 12, 16; 15, 5; 1Cor

1, 10; 2Cor 13, 11), respeitando as diferenças e particularidades de cada um. As

experiências neotestamentárias apontam para isso: quando Paulo propõe a coleta

em favor da comunidade (2Cor 8, 4; 9, 13), essa coleta realiza a comunhão entre

as igrejas nascentes, conserva a união entre os cristãos-gentios e os cristãos-judeus

e se abre o mundo dos pagãos. Dificilmente poderemos falar de comunhão sem

nos referir às relações pessoais em comunidade. O amor aos irmãos (1 Jo 2, 7-11;

3, 11-15), a fé autêntica (2 Jo 8-11), a comunhão de bens (Hb 2, 42), a oração

70

recíproca, o zelo pastoral... não são simplesmente expressões da comunhão, mas

sim a dimensão de koinonia da comunhão com o exercício.

III. 2.2. A dimensão escatológica

A comunhão possui uma tensão escatológica intrínseca, pois aponta o

momento em que Deus se desvela tudo em todos (cf.1 Cor 15, 28). Todo exercício

de comunhão, em termos pessoais ou em termos de comunidades, é a condensação

dessa dimensão escatológica numa efetiva antecipação do querer de Deus no agir

do homem: é a unidade perfeita de sujeitos que continuam sendo sujeitos pessoais

(comunhão íntima) e social (coletividade exterior). Aqui, a comunhão adquire e se

projeta no horizonte da esperança, alimentada por uma promessa que afeta o

destino do homem e do seu papel no mundo. O Deus possuído e que nos possuirá

perfeitamente será o princípio, interior a cada um e comum a todos, de nossa

comunhão.

A comunhão vem de Deus e se torna itinerante na terra. Esta condição

terrena se caracteriza por um “já” e um “ainda não” simultaneamente

verdadeiros. A comunhão na Igreja já é aquilo que é chamada a ser.

Segundo Congar, esta situação dialética e por vezes paradoxal da Igreja em

sua vida itinerante confere-lhe uma estrutura igualmente dialética, caracterizada

por uma dualidade que corresponde a este já-ainda não. O próprio Cristo se

apresenta como aquele que assegura para os seus uma e outra coisa. Ele une seu

povo numa realidade de graça que permanecerá, mas para isso dispôs de alguns

meios externos que passarão: enunciados doutrinais, preceitos, sacramentos,

autoridade pastoral, etc... Tudo isso representa um conjunto de meios destinados a

conduzir à comunhão os filhos de Deus e permitir-lhes viver nela.

Mas entre o meio e a realidade que este busca ou alimenta existe uma

homogeneidade e uma continuidade asseguradas pela identidade do princípio que,

tendo instituído e garantido o meio, opera através dele aquilo de que ele mesmo

será a fonte permanente.

71

Exemplifiquemos:

1- A Palavra pronunciada, se for recebida, e graças à operação de Deus por

ela, gera a fé e lança as bases da comunhão (cf. Rm 10, 14, 17; Jô 17 20; 1Pd 1,

23; Tg 1, 21);

2- O batismo incorpora a Cristo morto e ressuscitado e nos faz comunhão

com ele (cf. Rm 6, 3-11; 1 Cor, 12, 13; Gal 3, 27);

3- A eucaristia é comunhão com o corpo de Cristo (cf. 1 Cor 10, 16s)80.

Na unidade terrena da Igreja, a comunhão, em sua perspectiva

escatológica, pode ser considerada em dois planos: aquele dos meios externos e

aquele da realidade interiorizada. O ideal consiste em obter a plenitude dessa

realidade íntima utilizando a plenitude dos meios dispostos por Deus para

consegui-la. Só assim se responde plenamente ao desígnio de Deus. Só assim se

efetua em toda sua plenitude a unidade da Igreja. Efetivamente, esta é ao mesmo

tempo unidade de comunhão espiritual, isto é, salvação, e unidade dos meios que

proporcionam esta vida e esta salvação. Mas o caráter dialético da condição

terrena da Igreja encerra a possibilidade de uma distância e até mesmo de uma

separação entre o plano dos meios e a realidade interior. Isso a faz mediação

salvífica.

Assim, a comunhão se dirige e oferece o drama do homem individual:

exilado, desequilibrado interiormente, atormentado pela angústia... recebe a

garantia do perdão, o convite a um amor que dignifica seu espaço humano e sua

comunidade eclesial. Igualmente se dirige ao drama da humanidade dividida:

80 Seguindo as Escrituras e os Santos Padres, Congar atesta que estes dois sacramentos – batismo e eucaristia – unem-nos e nos identificam misticamente com o corpo imolado e vivo de Jesus Cristo. A unidade que os fiéis formam entre si e sua união com Deus brotam, através dos sacramentos, da encarnação pela qual Deus se uniu à natureza humana. A teologia patrística estende esse valor sacramental aos ministros, presidentes de comunidades; não no sentido de que eles comunicam a união com Cristo, como fazem o batismo e a eucaristia, mas pelo fato de que representam Jesus Cristo, a quem Deus constituiu princípio de comunhão e unidade entre ele e nós e entre todos nós: “estar profundamente unidos (a vosso bispo), como a Igreja o está a Jesus Cristo ao Pai, a fim de que todas as coisas estejam de acordo na unidade” (Ignácio de Antioquia).

72

entre as tragédias de guerras e enfrentamento, o Espírito vai abrindo âmbito de

encontro como sucessão de Pentecostes...

Por essa tensão escatológica desde os dramas humanos e institucionais, a

comunhão se constitui dinâmica. Não se enclausura, é sempre aberta, é sempre

integrada. Não poderia ser de outro modo, uma vez que partindo do próprio

mistério de Deus que é trindade, dinâmica e relação.

III. 2.3. A dimensão Sacramental

A Igreja vive de, na e para a comunhão que a Trindade estabelece no

interior da história. Por isso não deve ser estranha a visualização dessa comunhão:

a Igreja é a presença pública da acolhida do ser humano a graça de Deus como

dom. Isso a torna sacramento de comunhão de Deus Trinitário no mundo. O que

nosso teólogo irá chamar de sacramentalidade da Igreja.

Podemos elencar três pressupostos que legitimam e validam a premissa da

Igreja como realidade sacramental:

a) A Igreja se apresenta como um acontecimento estruturante do

mistério de Deus: nela se expressa e se atualiza o mistério global

de Deus e por isso mesmo ela é constituída como sacramento;

b) Todo elemento da realidade esconde um componente simbólico

que remete a outra realidade. Assim o é a Igreja: seus gestos e

ações insinuam sempre o mistério de Deus;

c) A Igreja é precisamente a encarnação da graça, a manifestação

social da graça vitoriosa de Deus enquanto acolhida na liberdade

agraciada dos homens.

Esses pressupostos da sacramentalidade da Igreja recebem sentido na

sacramentalidade de Cristo. Cristo é o sacramento por autonomasia: “O mistério

73

(o sacramento) de Deus não é nada mais que Jesus Cristo”81. Ele revela e faz

presente de um modo singular e irrepetível o Deus invisível, porque nele não há

distância alguma entre símbolo e significado: o humano e o divino estão unidos de

modo pessoal. Jesus é o sacramento radical do Pai.

Da sacramentalidade de Cristo vive a Igreja como sacramento:

E porque a Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano, ela deseja oferecer a seus fiéis e a todo mundo um ensinamento mais preciso sobre sua natureza e sua missão universal...82.

Na LG, a Igreja como mistério se entende como o grande desígnio de Deus

de salvar todos os homens em Cristo. O ponto de partida da revelação do mistério

é Deus uno e trino, é o mistério mesmo da trindade santa. A Igreja, pois, pertence

àquilo que os Padres da Igreja chamavam de “economia”, isto é, a administração

histórica dessa auto-comunicação salvífico-libertadora de Deus na comunidade

humana. No acontecimento histórico da Igreja revela-se o mistério de Deus em

Cristo hoje. A Igreja, na expressão de Cipriano, aparece “como o povo reunido da

unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (cf. LG 4).

Assim, só se centrando em Cristo, a Igreja realiza plenamente sua

sacramentalidade. É como expressa belamente a imagem patrística da “mysterium

lunae”: assim como a lua reflete a luz do sol (não a sua própria), a Igreja deve

projetar sobre os homens o fulgor de Cristo, o sol que nos ilumina.

Sua sacramentalidade, na perspectiva da comunhão, permite perscrutar as

relações da Igreja com a Graça e o modo de sua mediação. Não basta dizer que a

Igreja é o sinal da graça sem se entender que o sentido que ela remete é distinto

dela mesma. Tampouco parece suficiente pensar que se produz a graça por si

mesma, desde fora, algo diverso dela, mas sobre seu domínio (monopólio).

81 Santo Agostinho, EP 187, 11. 82 Cf. LG, 1.

74

Uma adequada compreensão da sacramentalidade da Igreja permite

encontrar concepções válidas e algumas das questões mais debatidas na

eclesiologia congariana:

Se a Igreja é sacramento de salvação desde sua origem, se pode entender o papel

mediador da Igreja na salvação dos cristãos, seu mistério salvífico: se a graça

sempre se expressa na história, esta expressão visível aponta e vive de sua

referência a presença oficial e também visível que é a igreja (que atua, nesse caso,

como causa final);

A realidade divina e humana da Igreja, seu caráter de corpo místico e de

sociedade humana, se relacionam como “res” e “sacramentum”83, uma unidade

que não anula a distinção. A LG nº 8 indica que não são duas realidades distintas,

mas sim uma realidade complexa que deve ser compreendida e conciliada desde

analogia do mistério do Verbo encarnado;

Nesta integração do divino com o humano, que evita contraposições mantendo a

diferença, é peculiar a concepção católica de Igreja frente à realidade protestante:

se bem reconhece que a Igreja não monopoliza a salvação, mas sim vive dela,

proclama que ao encontrar a Igreja, se encontra Cristo, e que este se faz presente

na Igreja de modo objetivo e permanente. A eclesiologia católica, como afirma

um documento luterano-católico84, gira em torno do conceito sacramental de

Igreja, que justifica e legitima seu serviço de mediadora. Os luteranos, por sua

vez, como criatura e ministra do Verbo: sua função é servir ao anúncio do

Evangelho, porém, desde uma relação extrínseca respeitando o acontecimento

salvífico85;

83 Ib. idem. Mysterium Sallutis IV / 3. 84 Comissão Mista Católico-romana / Evangélico-Luterana. “Igreja e Justificação. A concepção da Igreja a luz da justificação”. nº 108, 1994. 85 Embora sejam ainda hoje amplamente discutidas essas diferenças, não se deve desconsiderar as convergências dessas duas eclesiologias: ambas aplicam a categoria símbolo à Igreja. Respeita-se a dependência radical a Cristo, que em seu fundamento e finalidade não estão enraizadas em si mesmo, mas na própria pessoa de Cristo e em seu espírito, que produz a mediação salvífica. A partir daí se pode precisar o conteúdo da Igreja como criatura e ministra da Palavra; o alcance de sua identidade enquanto gerada pela Palavra e enquanto prolongação histórica da Palavra proferida para a salvação do mundo.

75

A relação da Igreja com os sacramentos pode superar uma visão excessivamente

eclesiocêntrica: à luz do mistério que a Igreja atualiza, os sacramentos podem ser

apresentados como a celebração pela Igreja e na Igreja dos eventos fundadores e

estruturantes da história da salvação.

Enfim, em sua dimensão sacramental, a Igreja tem a possibilidade de

refletir que ela não é a mediação do “fazer” dos sacramentos, mas que em virtude

dessas celebrações sacramentais, ela insere o cristão no mistério maior que é

Cristo e ponto maior de nossa comunhão.

III. 3. As formas de se processar a Comunhão

Toda a Sagrada Escritura, especialmente os textos neotestamentários, está

repleta de relatos que apontam para uma consciência explícita do desejo de

comunhão. O livro dos Atos dos Apóstolos é um exemplo claro e digno dessa

verdade: ele dá-nos a dimensão correta de como a comunidade primitiva vivia a

comunhão: “E eram perseverantes no ensino dos apóstolos, na comunhão

fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2, 42). Esse ensinamento primitivo

da comunidade não se reduzia ao plano sentimental, mas era intenção lucana

apontar uma estrutura básica, que, segundo nosso teólogo, constituía por si mesmo

um ensinamento a respeito da comunhão: a- Unidade pela aceitação do

ensinamento apostólico (que assegura a unanimidade de fé e de confissão); b-

Unidade no plano da vida social (forma de vida comum) e c- Unidade na

celebração do culto (que comporta, juntamente com a oração realizada no âmbito

da comunidade judia, a celebração da fração do pão pela qual se consuma a união

dos fiéis com Cristo e dos fiéis entre si.

A esta análise da unidade (comunhão) proposta pela escritura, Congar

soma os textos de teólogos e até mesmo do magistério, distinguindo as formas da

unidade em vistas da comunhão: unidade de fé, de vida social e de culto e

sacramentos. A partir daí nosso teólogo sistematiza sua reflexão de como a

comunhão se processa na realidade eclesial e quais os seus desdobramentos e

desafios à Eclesiologia.

76

III. 3.1. A comunhão de Fé

Os ensinamentos patrísticos definiam a Igreja como “congregatio

fidelium”. Essa definição designa uma multidão de seres vivos dotados de

inteligência, congregados ou reunidos por um princípio de vida, ou ao menos de

ação, comum a todos eles. No caso da Igreja, esse princípio de união é a fé. A fé

não se resume num “depósito de verdades reveladas”, mas sim na realidade sobre

a qual se realiza a aliança entre Deus e nós. A fé em nós humanos é propriamente

abertura pela qual a ação de Deus encontra morada. É o nosso sim absoluto de nos

comprometer a ser totalmente para Deus. Na perspectiva divina, portanto, de

Deus, a fé é o ato pelo qual começa a comunicar-se a nós dizendo o que quer ser

para nós e, por conseguinte, dizendo algo daquilo que é para si mesmo.

Em alguns cristãos a experiência da fé pode ser “informe”, e neste caso

falta-lhe algo na linha da própria fé. Mas na Igreja, como afirma Congar, a Fé

tende à plenitude: nela, a fé une o povo da aliança com o Deus da aliança por

meio do laço eficaz e total da caridade. A fé não é só um princípio da existência

pessoal; é, além disso, o primeiro princípio de comunhão para as pessoas e de

unidade para a Igreja, pois nela as pessoas crêem na mesma coisa, tal como é

comunicado na Escritura, nos relatos da Tradição dos apóstolos e nos

ensinamentos que perpetua a Igreja.

Como princípio de comunhão, a fé atua interiormente e exteriormente na

vida do cristão convertido. Internamente, no compartilhar da mesma palavra, do

mesmo Deus e do mesmo Cristo, todos os fiéis têm como termo de seu

conhecimento e de sua adesão uma mesma realidade existencial. Essa realidade,

porém, não é só objeto de conhecimento – se assim o fosse, a Igreja seria uma

espécie de academia – e sim o princípio e o fim de nosso destino e do universo

inteiro, que não nos é apresentado de maneira objetiva e conceitual, mas sim sob o

crivo de uma experiência sobrenatural. Como realidade interna, a fé cria em nós

seres humanos uma unidade radical: a realização de uma mesma forma de vida.

77

Como princípio externo, a fé comporta uma estrutura determinada de

mediações: a revelação não nos é dada individualmente, mas publicamente, a uma

coletividade, por meio de ministros chamados para isso e encarregados de uma

missão, como são os profetas, apóstolos, redatores da Sagrada Escritura e o

magistério da Igreja. Tudo isso constitui o organismo de mediação para a

comunicação do objeto da fé.

A Escritura tem um valor normativo absoluto para aqueles que devem

receber a fé. Esse valor normativo absoluto deve-se à sua condição de inspirada,

que faz da Escritura a Palavra de Deus (Deus toma a iniciativa e

responsabilidade). Por esse motivo, os Santos Padres insistem em que a Igreja se

constrói sem cessar pela Escritura e pregação, que é seu anúncio vivo. Sobre esse

aspecto, Congar adverte: a Escritura não desempenha esse papel a não ser quando

em sua letra, e, através dela, manifesta seu verdadeiro sentido. A iniciativa

reveladora de Deus suscita, ao mesmo tempo, um testemunho escrito sobre os

fatos nos quais se inscreve – a Escritura – e uma missão acreditada, coextensiva à

duração e ao espaço nos quais a fé deve ser anunciada86. Assim, fica claro a

existência de um corpo único de testemunho e de ensinamento que corresponde à

unicidade e à universalidade da missão, sem detrimento da diferença entre as

primeiras testemunhas oculares, os apóstolos e seus sucessores. A doutrina

autêntica que emana desse corpo tem valor de regra para a fé da Igreja. No plano

da vida da Igreja como tal, isso só é possível se a regra da crença tem uma forma

efetiva propriamente eclesiástica. Sendo assim, para se evitar abusos de caráter

institucionais, reivindica-se o caráter teologal da fé: seu motivo é a verdade

primeira (incriada) tal como nos é proposta na Escritura segundo o ensinamento

da Igreja.

Um outro aspecto dessa dimensão externa da fé é a participação na

celebração dos sacramentos e em toda a liturgia, visto que muitos fiéis só tomam

acesso aos mistérios da fé nestes momentos. O batismo é a experiência maior

dessa verdade: como o próprio sacramento da fé, ele é ao mesmo tempo a

transmissão, a profissão e a incorporação do fiel à Cristo e à Igreja, ou na fala de 86 Cf. Mt 28, 19-20.

78

nosso teólogo, a Igreja não é mais do que o “nós” dos batizados; é a agregação

daqueles que, desde os apóstolos, creram em Cristo e viveram dele.

III. 3. 2. A comunhão de culto e pelos sacramentos

A fé situa-nos em face de Deus numa relação de culto; ela mesma é o

princípio de toda uma vida que tem valor cultual. O culto, na linguagem tomista, é

a expressão e profissão da fé. Nessa experiência cultual o fiel, além do uso dos

mesmos gestos, dos mesmos símbolos e das mesmas orações, realiza

comunitariamente uma atividade importante de formação da consciência e da

sensibilidade comum em torno daquilo em que se crê. Aqui emerge de modo

privilegiado, como relembra Congar, o papel da Tradição na sua função de

“imbuere”, ou seja, assegurar a doutrinação obtida pela participação na liturgia e

nos sacramentos87. Porém, a experiência cristã é muito mais que um culto, mas a

expressão da fé numa pessoa e em seu projeto: Jesus cristo, nosso salvador. O

culto cristão é inteiramente uma expressão desta fé. Como tal não une só por sua

natureza de culto, mas por seu conteúdo, já que dá a cada um dos fiéis, e a todos,

o mesmo centro e o mesmo princípio de vida, ao mesmo tempo que o mesmo

mestre.

A natureza do culto cristão se realiza plenamente nos sacramentos. Os

sacramentos não são somente os sinais pelos quais, ao expressar nossa fé, nos

unimos a Jesus Cristo; mas, e sobretudo, na celebração e vivência destes, opera-se

um laço corporal, através de um meio corporal, que a partir de Deus e de Cristo,

prolonga o ato supremo pelo qual Deus mesmo se fez meio corporal de nossa

salvação. Assim, a Igreja, compreendida desde a patrística até hoje, procede de

um dom e de uma comunicação de vida divina feita a partir do alto por meios

tomados de nosso mundo e adequados a nossa natureza, isto é, por meios

corporais. Pelos sacramentos – em virtude da intenção e da instituição divina –

entramos em contato corporal com o acontecimento histórico único com o qual

87 Cf. CONGAR, Y. La Tradition et les traditions, II: Essai theolog. Paris, 1963. p. 111-136.

79

Deus realizou nossa salvação comprometendo-se de maneira definitiva e eficaz na

salvação de todos.

Não é objeto dessa nossa dissertação explicar a natureza deste contato nem

como se realiza (isto é feito no Tratado dos Sacramentos), mas cabe ao tema do

qual estamos tratando assinalar a relação que existe entre sacramentos e a

eclesiologia de comunhão.

Nessa atmosfera, nosso teólogo dedica especial atenção ao sacramento da

eucaristia:

A Tradição sustenta unanimemente que a eucaristia é o sacramento da

unidade e da comunhão e que seu efeito espiritual é a unidade do corpo místico88.

Recorrendo brevemente à teologia sacramental, verificamos que o efeito de cada

sacramento corresponde a seu simbolismo. Na eucaristia este simbolismo consiste

numa realidade alimentícia, de nutrição: pela conversão do pão e do vinho

oferecidos no corpo e no sangue de Cristo, o alimento que nos é dado é o próprio

Verbo de Deus, unindo, assim, o ser humano consigo numa comunhão

divinizadora de vida. Na eucaristia, o cristão se une ao próprio Cristo

substancialmente presente e é a ele unido sob a forma de alimento. Estamos diante

de uma experiência de assimilação mística ao corpo de Cristo pelo ato de comer

seu corpo sacramentado.

Com freqüência essa verdade foi aplicada a Santo Agostinho: “Não és tu

que me mudarás em ti, como o alimento de teu corpo; sou eu quem te mudará em

mim”89. Aquilo que é comido é mais vivo e mais forte, e por isso nos assemelha a

si, exclama Paulo: “Vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim”90; e, ainda,

reler o apóstolo nos convoca à comunhão: “Por que há um só pão, nós, embora

muitos, somos um só corpo, visto participarmos todos do único pão”91.

88 Nos capítulos anteriores descrevemos a crítica de Congar acerca do conceito de unidade e comunhão em torno do sacramento da eucaristia. Agora apenas explicitaremos a sistematização teológica dessa relação. 89 Cf. SANTO AGOSTINHO. Confissões, VII, 10. São Paulo: Paulus, 2003. 90 Cf. Gal 2, 20. 91 Cf. 1 Cor 10, 17.

80

O conteúdo da eucaristia, enquanto produz nos fiéis bem dispostos que o

recebem na comunhão o efeito da unidade do corpo celestial, é Cristo em sua

Páscoa. A eucaristia é o sacramento da caridade pascal: é o dom da comunhão que

nos une a Cristo e que nos leva a dar-nos inteiramente, para além de todo o

egoísmo, a Deus e aos homens de forma inseparável, já que, para nós como para

Cristo, a aceitação da vontade do Pai compromete num dom total de si aos

homens e pelos homens.

III. 3. 3. A comunhão de vida social na perspectiva da caridade

Toda sociedade ou comunidade supõe em seus membros um amor pelo

mesmo objeto que una as vontades e as ações de diferentes pessoas numa comum

operação e numa vida comum. Para nós cristãos esse objeto comum é a caridade,

ou seja, o ágape cristão.

Essa caridade enquanto princípio de comunhão da Igreja se distingue em

dois aspectos: em primeiro lugar, é a força que reúne a multiplicidade na unidade

pelo fato de unir um grande número de pessoas na busca do mesmo bem e de

fazê-las cooperar em toda classe de serviço; em segundo lugar, é participação da

mesma raiz e fonte de vida. Assim, na Igreja a unidade de vida, pela ação do

mesmo princípio, precede e suscita a unidade de cooperação e de serviço. Se

todos os fiéis estão obrigados ao serviço mútuo e sua função respectiva, é porque

o Espírito Santo os faz participar da vida e do bem de Deus, que é o amor-agápe.

Se vivemos em comunhão com todos os membros da Igreja, como comunidade de

irmãos, comunhão que se expressa em forma de cooperação e de serviços mútuos,

é porque a caridade nos une à vida dessa Igreja.

Numa intuição didática e pastoral, nosso teólogo reflete sob dois caminhos

dessa caridade em vista da comunhão:

2. Caridade – Serviço: toda vida cristã é por sua natureza e conteúdo, serviço.

Isto vem do fato de que a vida cristã é, em primeiro lugar, participação da

81

vida de Cristo, que é o servidor por excelência; em segundo lugar, uma

vida social no mesmo corpo. Por isso os membros se ajudam mutuamente.

As imagens de que se servem as Escrituras para exprimir a realidade da

Igreja sempre comportam a idéia de uma solidariedade e de uma cooperação para

a realização dinâmica de um todo: a Igreja é uma construção edificada pelos

ministérios, mas na qual também os fiéis se edificam uns aos outros92.

Para designar tais atividades os textos neotestamentários empregam o

termo grego diakonia, que significa comumente serviço, mas que significa

também, mais especificamente, ministério. Isto nos leva a ampliar esta noção de

ministério reduzida na prática ao âmbito dos ministérios instituídos ou

hierárquicos, concebidos ordinariamente como autoridade e poder mais do que

como serviço. Congar alerta-nos de que é preciso restabelecer a noção

neotestamentária dos ministérios, segundo a qual existe uma gama de ministérios

utilizados pelo próprio Cristo93 que vai desde os apóstolos até a prática dos dons

mais simples (como os dons da consolação, da presidência...).

3. Caridade – Comunhão: cada um atua sobre o outro e, dentro de certos

limites, uns podem atuar por outros, animados pelo próprio Espírito Santo

que é o próprio Cristo. Aqui a caridade é a forma que a torna nossa e ao

Espírito Santo como a seu primeiro princípio, e é a condição daqueles que

vivem na caridade e da caridade.

A caridade é realmente o laço que faz os cristãos serem cristãos, levando à

sua perfeição a unidade de todos eles. Essa caridade – comunhão é

inseparável de dois princípios pessoais dos quais depende a realização da

Igreja: o princípio divino originário, que é o Espírito santo, e o princípio

humano que lhe está unido à consciência de Jesus Cristo, habitada e

movida pelo Espírito. Isso faz com que inúmeras pessoas diferentes

formem um “nós”, uma unidade plural de comunhão profunda.

92 Cf. 1 Tes 5, 11; Rom 14, 19; 1Pdr 2, 5; Jd 20. 93 Cf. 1 Cor 12, 4-5.

82

O ser e o ter do cristão são o ser e o ter de membro do corpo vivo que é a

Igreja. O fiel é um ser em comunhão sempre: naquilo que ele é mais intimamente

e naquilo que ele realiza em nome de Cristo na Igreja. Portanto, cabe lembrar que

toda autoridade exercida em nome de Cristo deve ser regida pelo serviço da

caridade que consuma todo o desígnio de Deus. Assim, pois, se estabelece uma

cooperação e uma correspondência entre a graça do Espírito interiormente e a

organização ou conduta de vida social externamente.

Enfim, o que se quer considerar nas formas de se processar a comunhão na

Igreja não é propriamente a abstração de sua análise, mas a verdade existencial

que podemos haurir a partir daí: a Igreja, por natureza, origem e estrutura, é uma

comunhão.

III. 4. Conclusão: a Igreja é uma comunhão, uma comunhão de Igrejas!

Após esse percurso reflexivo, já podemos ousar afirmar que, ao pensar a

comunhão na Igreja, não podemos confundi-la com um movimento de

uniformidade. A redução da comunhão à uniformidade é impensável tanto na

esfera divina (Deus – causa eficiente e suprema da Igreja), como na realidade

humana (homens e mulheres – sujeitos receptores ou causa material) do ser Igreja.

A comunhão pensada por Congar e refletida nessa dissertação realiza-se em

unidades parciais nas quais se reflete e realiza-se a natureza do todo. Nisso os

Santos Padres sempre insistiram sabiamente: a Igreja é o “nós” dos cristãos! E a

própria Escritura testifica: Ef 5, 23ss; 2Cor, 11, 2-3; 1Cor 6, 15.17; Ef 2, 21-22... .

Nos Santos Padres o primeiro é a Igreja, mas todo membro enquanto membro

possui a plenitude dos atributos da Igreja (unidade, catolicidade, ...). Isto introduz

em cada membro e em cada comunidade particular à vocação para comunhão. A

diferença é condição necessária à comunhão e não o seu contraponto.

Isto traz a tona, propriamente, um tema especial e de tensão de nosso

trabalho: a tensão entre o particular e o total, o local e o universal (do qual já

refletimos no capítulo anterior). Especial, pois aqui reside a riqueza da novidade

(unidade na diversidade); tensão porque o fato de que cada parte contenha o

83

totalidade não faz com que ela seja a totalidade. Dito concretamente, significa que

o fato de as comunidades ou Igrejas locais sejam homogêneas com relação ao

todo não lhes exige estar no todo e de concorrer para realizá-lo mediante aquilo

que há em cada uma delas de singular e diferente. A solução não é a

uniformidade, como também não pode ser a dispersão descompromissada. O

caminho é a busca por uma teologia da comunhão que desemboque numa

eclesiologia de comunhão itinerante e que reforce o espírito de universalidade e ao

mesmo tempo o de autenticidade94.

A Igreja acontece num espaço histórico onde se realiza o seu mistério no

mundo, sua concretização na Igreja Particular. Nosso teólogo toma a Igreja

Particular não simplesmente como sendo “o” bispo, mas como sendo a

“comunidade dos fiéis” que vive, celebra e testemunha sua fé no serviço ao

mundo e a Deus em dado lugar sob a presidência do serviço apostólico do bispo.

Fazendo um corte teológico na questão e a fim de melhor situá-la, aqui

nessa dissertação deve-se enfocar a Igreja Particular, na perspectiva da

Eclesiologia de Comunhão Congariana, no contexto de uma problemática mais

ampla do exercício eclesial do poder e da participação na Igreja:

2. A primeira observação a ser feita, já dita anteriormente nessa dissertação,

ratifica: Igreja não existe em estado puro. Ela é sempre uma realidade que

se concretiza, toma corpo em dado tempo e lugar. Portanto, falar em Igreja

Particular não é a mesma coisa que falar da Igreja Universal. Aquela existe

concretizada aqui e agora. Esta só existe pela comunhão universal de todas

as Igrejas particulares através do serviço petrino (referente a Pedro, ao

Papa), como sinal de unidade de todos os fiéis e de todas as Igrejas em

Cristo.

94 No decorrer da história tivemos perspectivas diferentes sobre essa questão: durante o primeiro milênio predominou um regime de comunhão das Igrejas locais diocesanas (isso continuou principalmente na eclesiologia das Igrejas Orientais). No segundo milênio cristão, predominou um regime de organização mais unitário e universal de uma Igreja que forma um só corpo, com uma estrutura visível de um único povo a qual tende aos poucos o conceito de papado como pastor supremo, único da Igreja.

84

3. A segunda observação diz respeito justamente a esses dois aspectos da

realidade “Igreja”: o “particular” e o “universal”95. Independente da

questão teórica, o que de fato articula a Igreja é uma questão prática: a

questão da organização do poder e da participação dentro da Igreja. Uma

eclesiologia do poder vai acentuar o centro do conjunto das Igrejas

particulares, encarnado na figura da Igreja universal, presidida pelo bispo

de Roma, o Papa. Uma eclesiologia mais voltada para o consenso entre as

Igrejas, na realização das Igrejas particulares e para as relações entre elas,

vai acentuar a colegialidade episcopal, isto é, a responsabilidade comum

de todos os bispos, como sucessores dos apóstolos, na pregação do

Evangelho no mundo. Essa eclesiologia de consenso exige uma

organização menos centralizadora e mais participativa.

Assim, a idéia da “Igreja como comunhão” e comunhão de Igrejas, em seu

modo de ser e agir, deve conjugar sua identidade confessante e sacramental com a

particularidade humana e a localização territorial. Ou seja: para realizar-se num

espaço humano, a Igreja tem como tarefa primeira cultivar sua identidade de fé

sempre articulada com a vida, para que a fé e o Evangelho possam se expressar a

partir dos sujeitos da cultura. E mais: essa Igreja comunhão é constituída por essa

mesma fé que acolhe o anúncio da Palavra de Deus, como dom do Espírito dado

ao fiel para responder pessoal e socialmente às exigências da realidade em que

vive.

Assim, uma Eclesiologia de Comunhão sadia deve, pois, ter em vista:

a) O Papel do Espírito Santo na construção da Igreja;

b) A articulação da própria Igreja, como comunhão, com o Evangelho,

enquanto: nela acontece a Palavra como alegre anúncio do amor

misericordioso de Deus, ligado à proclamação da morte e ressurreição

de Jesus Cristo; nela acontece uma prática que “julga o mundo”, em

nome do Deus de Jesus Cristo, como denúncia profética do mal que

fere a dignidade dos seres humanos, criados à imagem e semelhança do 95 Cf. para aprofundamento: BOFF, L. Eclesiogênese. Petrópolis: Vozes. p. 28-47.

85

mesmo Deus (é a denúncia de tudo o que vai contra a vida plena!); nela

e por ela é exercido o ministério da reconciliação entre os homens

entre si e com Deus, expressando a misericórdia de Deus no mundo;

nela se dá a adesão prática e histórica ao Evangelho, fé enquanto vida

(fé que salva), que nos constitui filhos de Deus e irmãos entre nós. A

comunidade viva nos gera para Deus em Cristo.

c) A Chave eucarística. A igreja comunhão tem uma chave eucarística

fundamental. De fato, a Eucaristia mostra que a Igreja é

necessariamente local e necessariamente comunhão de Igrejas. Não é

possível pensar o corpo eclesial de Cristo sem o corpo eucarístico de

Cristo. Por isso mesmo a memória eucarística é o centro da

comunidade eclesial, da Igreja comunhão.

d) O ministério Pastoral é uma elemento constitutivo dessa comunhão.

Ele preside a construção da Igreja e a situa visivelmente na comunhão

das Igrejas.

Enfim, A Igreja é plenamente Igreja na comunhão e é preciso chegar até o

termo dessa verdade sublime: ela é uma manifestação visível na terra da santa

sociedade das três pessoas. Qualquer que seja a teologia, as dimensões, as formas

que se adotem, a unidade das três pessoas divinas é para a Igreja fonte, modelo e

fim.

86

CONCLUSÃO:

Chegou o momento de recolher os resultados deste trabalho. Para isso,

deve-se ter em conta sua peculiaridade. Ele quer resgatar o percurso teológico de

nosso autor estudado, Yves Congar, no campo específico de sua Eclesiologia. No

caso, para essa tarefa, parte-se de duas delimitações bem claras: a primeira, no

espectro mais amplo da teologia, a dissertação se detém à fundamentação da

Eclesiologia de Comunhão, sua caracterização e suas formas de processamento no

âmbito eclesial; a segunda diz respeito à realidade do Concílio Vaticano II e o

pós-concílio e, assim, recolhe alguns fragmentos dos debates em torno da

eclesiologia de comunhão, de sua recepção e seu desenvolvimento teológico.

Posta essa premissa, busca-se expressar, a modo de conclusão, o caminho

percorrido em três passos:

1º passo: O papel definitivo do Espírito na obra mesma de Cristo, o filho

eterno de Deus. Na qualidade de êxtase do amor de Deus, o Espírito Santo faz

eclodir a criação do Universo. Fecunda a vida do ser nas origens, revigora-lhes as

forças ao longo do tempo, encaminha-o para o futuro de seu pleno acabamento. É

ele o “Dom escatológico de Deus”, cuja presença habitadora no mundo e nos

homens redunda-lhes de graça de santidade e divinização.

Num mundo eivado de inércia, indiferença e fragmentação, o Espírito

representa um apelo constante de renovação e reintegração, interligando a

contingência do processo histórico humano à escatologia do Reino. Como

princípio soberano do futuro absoluto do homem e da criação, concede-lhes a

oportunidade de experienciar, desde já, as primícias do intemporal. Para a verdade

de Cristo, faz confluir todas as coisas, instituindo a “nova criação”. Assimilando a

criatura humana ao filho de Deus, o “novo e definitivo Adão”, o Espírito restaura-

lhe, gradativamente, a similitude divina desfigurada pelo pecado, mediante o dom

pessoal e comunitário da conversão. O Espírito gera o ‘homem novo” pelo dom da

liberdade. Liberto de toda idolatria, do peso da lei e da morte, o “homem novo”

encontra-se intrinsecamente habilitado para amar o semelhante e defender a causa

87

da liberdade. Ungido pelo Espírito Santo, vive sob o regime do amor solidário.

Solidificado em profunda interioridade, num processo de crescente personalização

abre-se simultaneamente ao mundo e à comunidade humana, empenhado

ativamente na práxis histórica da libertação. O destino autêntico da liberdade,

insiste Congar, é a vida em comunhão, não havendo real personificação humana

sem efetiva socialização. Na entrega aos outros, na vivência concreta do amor

pró-existente, o cristão experimenta o dom da liberdade divina. Configurado a

Cristo pelo Espírito Santo, lhe é dado participar da agraciadora obediência filial,

que se reflete na conformação de seu desejo humano ao “Desejo de Deus”. À

imagem de Deus tri-unitário, o Espírito modela a unipluralidade humana,

explicitamente vigente na inter-comunhão eclesial.

A humanidade nascida do Espírito é formada, precisamente, para vida

eclesial. Na Igreja – e como Igreja – se consolida a identidade dos cristãos. Para a

unidade do Templo uno do Espírito uno, hão de convergir e interagir, criativa e

não massivamente, a variedade múltipla dos Templos firmados em cada um dos

cristãos. Forjando o corpo de Cristo, o Espírito Santo potencializa todos os dons e

carismas pessoais para a mútua edificação de seus membros. Se, portanto, da

cristologia, o Espírito faz brotar uma nova antropologia, marcada pela ontologia

histórica e cristificante da graça, pede igualmente que se explicite, como algo

inerente à segunda, uma eclesiologia pneumatológica em vista da comunhão.

2º passo: Passagem de uma concepção de Igreja voltada sobre si para

uma Igreja voltada para realidade: a Eclesiologia de Comunhão. Encerrado o

Concílio Vaticano II começa o debate pela sua interpretação. E no campo

eclesiológico não foi diferente. O Concílio tomou como chave de leitura de sua

compreensão de Igreja a categoria “Povo de Deus” como expressão de sua relação

de origem – de Trinitate – e de sua relação com o mundo: sua plena historicidade.

A eclesiologia conciliar significou, por um lado, a passagem do fechamento sobre

si para o campo aberto da realidade pluralista (do confronto ao diálogo). Por

outro, a superação de uma eclesiologia parcial, a partir da hierarquia, por uma

eclesiologia integral de comunhão religiosa e teologicamente qualificada a partir

da graça batismal.

88

No processo de recepção do Concílio, buscam-se novas chaves de leitura.

A categoria que teve maior sucesso foi a de “comunhão”96. Todavia, a categoria

“comunhão”, como bem teologizou Congar, não se apresenta sem problemas quer

na sua conotação mais intra-eclesial quer na conotação hierárquica, que seu uso

nem sempre consegue esconder. Nesse sentido, faz-se necessária uma distinção

entre comunhão eclesial, como realidade de fé produzida pela graça batismal, sob

a força do Espírito, e a comunhão hierárquica, subordinada àquela, também ela

realidade da fé produzida pela imposição das mãos, sob a força do mesmo

Espírito. Essa comunhão só existe com o suporte de um sujeito histórico: o povo

de Deus. Este é o sujeito real da fé, como tal, também o sujeito da comunhão

eclesial e de sua inserção no mundo em vista da missão salvífica. Aqui deve-se

também afirmar uma espécie de “sujeito ativo-oculto” da comunhão tanto eclesial

quanto hierárquica. Esse “sujeito ativo-oculto”, como que alma da Igreja, se faz

presente no sujeito histórico como ator principal da vida eclesial: o Espírito Santo!

Portanto, o sentido radical da comunhão eclesial não se situa, repito, na

hierarquia, mas na Igreja como um todo, como dom do Espírito dado a todo o

corpo eclesial, constituído pela graça batismal. O mesmo Espírito que gera e

sustenta a comunhão eclesial, gera e sustenta a comunhão hierárquica, e esta por

sua vez deve ser diaconal em sua plenitude. A comunhão, como dimensão

fundamental da Igreja, pode e deve articular-se em toda e qualquer realização

histórica da Igreja e em todas as direções da mesma.

Ainda nesse segundo passo, a perspectiva da Igreja voltada para a

realidade à luz de sua vocação comunional coloca o desafio da relação entre os

fiéis e o ministério apostólico. Sem entrar em detalhe, a afirmação da igualdade

radical de todos os batizados como anterior a qualquer diferenciação é um

princípio eclesiológico que deve expressar-se na vida real da Igreja. Ele

fundamenta a compreensão da Igreja como comunhão de vocações, carismas e

ministérios, em vista da missão. É necessário, a partir dele, estudar

96 Como dissemos anteriormente nesta dissertação, essa categoria se apresentou como crítica ao uso sociológico e ideologizante da categoria povo de Deus. Na prática, o Sínodo Extraordinário dos 20 anos do término do Concílio (1985) apresenta essa categoria como chave de leitura da eclesiologia conciliar, deixando a categoria povo de Deus no esquecimento.

89

diligentemente, no quadro histórico em constante transformação, como responder

aos desafios do processo real de diferenciação das formas eclesiais, dos serviços

ministeriais do povo de Deus e do ministério hierárquico, no horizonte amplo da

busca da unidade necessária a partir da diversidade operada pelo Espírito na

Igreja.

3º passo: Emergência de um agir pastoral no contexto da comunhão

profunda. Nenhum trabalho esgota a discussão. Muito menos este! Há um leque

de enormes questões a serem levadas adiante com responsabilidade eclesial. A

concepção de “Igreja Comunhão”, redescoberta pela pneumatologia, deve gerar

em nós uma mudança de mentalidade em nível macro, comenta Congar: pensar

um Cristianismo de comunhão, uma concepção mais dinâmica da unidade como

estando incessantemente por fazer, a consciência, enfim, da inadequação das

formas adquiridas com relação à pureza, profundidade e plenitude às quais somos

chamados (o Espírito Santo, sem cessar, impulsiona para frente e nos chama a

isso!) permitiriam assumir um pluralismo e mesmo requerimentos, não raro ricos

em promessa e progresso, de tantos cristãos que, presentemente, não encontram

mais suficiente oxigênio nas estruturas todas feitas, e acabam buscando mais ou

menos à margem da Igreja uma resposta para as suas necessidades.

Enfim, o Espírito suscita reformas e renovações que não são anárquicas,

porque este mesmo está unido ao Verbo e é princípio de comunhão. O Espírito de

Deus é um espírito de invenção, renovação e adaptação. Ele deve nos inspirar,

sem cessar, para que brote na Igreja movimentos nesse sentido, os quais, para

serem verdadeiros movimentos da Igreja, devem se harmonizar em unidade e

proceder não de novidades estranhas à tradição, mas do coração mesmo desta.

90

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II CONFERÊNCIA GERAL DO ESPISCOPADO LATINO-AMERICANO. DOCUMNETO DE Medellín.

91

III CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO.

DOCUMENTO DE Puebla: a evangelização no presente e no futuro da

América latina. Texto Oficial da CNBB, 1985.

III CONFERÊNCIA GERAL DO ESPISCOPADO LATINO-AMERICANO. DOCUMNETO DE Santo Domingos.

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Cette Église que j´aime. Paris: Les Éditions du Cerf,1968

Chrétiens desunis. Príncipes d´um “Oecuménisme” catholique. Unam

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Diálogos de Outono (Entretiens d’ automne) Trad. de Marcos Marcionillo.

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El Espíritu Santo. Sección de Teologia y Filosfia. Barcelona: Herder,

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(Ou: Os leigos na Igreja. São Paulo: Herder, 1996).

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Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo II: Il est Seigneur et Il donne la vie.

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Je crois em l’ Esprit Saint - Tomo III: Le Fleuve de vie (Ap 22, 1) coule em Orient et em Occident. Paris: Les Éditions du Cerf, 1980.

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